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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS PROCURADORIA GERAL DE JUSTIÇA REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS ANO XI – N.15 – JUNHO DE 2008 GOIÂNIA – GOIÁS

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS ......de Aléxis de Tocqueville .....83 Juliana Martins Barbacena SUMÁRIO Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 3 Revista do

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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS

PROCURADORIA GERAL DE JUSTIÇA

REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS

ANO XI – N.15 – JUNHO DE 2008

GOIÂNIA – GOIÁS

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Revista do Ministério Público de Goiás - , n.15 (abril/junho.2008)- . - Goiânia: ESMP/GO,1996 -

v.; 22cm. 222p.

Trimestral

ISSN 1809-5917

1. Direito

– periódicos. Escola Superior do Ministério Público de Goiás.CDU 34 (051)

Escola Superior doMinistério Público do Estado de Goiás

Diretora: Estela de Freitas Rezende

Conselho Editorial: Analice Borges Loyola - Procuradora de JustiçaDenis Augusto Bimbati Marques - Promotor de JustiçaEstela de Freitas Rezende - Promotora de Justiça e Diretora da ESMPFabiana Lemes Zamalloa do Prado - Promotora de JustiçaMarcelo Henrique dos Santos - Promotor de JustiçaMarta Moriya Loyola - Promotora de JustiçaMurilo de Morais e Miranda - Promotor de JustiçaRegina Márcia Himenes dos Santos - Promotora de JustiçaSandra Mara Garbelini - Promotora de JustiçaSimone Disconsi de Sá Campos - Promotora de Justiça

Ficha catalográfica: Tânia Gonzaga Gouveia – CRB 1842 A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores.

Pede-se permuta On demande l' échange We ask for exchange

Editoração e Capa: Ana HolowateFoto Capa: Ângela ScalonEdição e Organização: Elaine Borges- JP – 00836/GOImpressão: GRAFSET Gráfica e Editora Ltda. (62) 3241-2577Revisão ortográfica e adequação às normas da ABNT: Mirela Adriele da SilvaTiragem: 800 exemplares

Ministério Público do Estado de GoiásProcuradoria-Geral de JustiçaProcurador-Geral de Justiça: Dr. Eduardo Abdon MouraEscola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás – ESMP-GORua 23, esquina c/AV. Fued José Sebba, Qd.06, Lts, 15/24.Jardim Goiás- Goiânia-GOCEP: 74.805-100 Fone (62) 3243-8000e-mail: [email protected]://www.mp.go.gov.br

Apresentação .................................................................................................05

ARTIGOS

A responsabilidade socioambiental da Administração Pública......................07Marta Moriya Loyola

O advento da complexidade na ciência contemporânea: uma nova idéia de natureza............................................................................................13Maria da Conceição Rodrigues dos Santos

A Lei 11.280/06 e o (excepcional) reconhecimento ex offício da prescrição..................................................................................................21Vinícius Marçal Vieira e Augusto Reis Bittencourt Silva

O repasse automático das verbas ao SUS pelos municípios em respeito à Constituição/Emenda 29/2000....................................................................27Reuder Cavalcante Motta

História, passado e processo – um diálogo sobre a construção do passado através do processo judicial .............................................................45Mário Henrique Cardoso Caixeta

Um novo enfoque à prisão civil.....................................................................55Luandra Carolina Pimenta

Aprovação em Concurso Público e a discricionariedade de nomeação pela Administração Pública ...........................................................................61Daiane Mendes Pereira Torres

Violação ao subsídio constitucional...............................................................71João Paulo Cândido S. Oliveira

Ação Popular e participação política: um diálogo com a teoria democrática de Aléxis de Tocqueville ...............................................................................83Juliana Martins Barbacena

SUMÁRIO

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 3

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Revista do Ministério Público de Goiás - , n.15 (abril/junho.2008)- . - Goiânia: ESMP/GO,1996 - v.; 22cm.

222p. Trimestral

ISSN 1809-5917

1. Direito

– periódicos. Escola Superior do Ministério Público de Goiás.CDU 34 (051)

Escola Superior doMinistério Público do Estado de Goiás

Diretora: Estela de Freitas Rezende

Conselho Editorial: Analice Borges Loyola - Procuradora de JustiçaDenis Augusto Bimbati Marques - Promotor de JustiçaEstela de Freitas Rezende - Promotora de Justiça e Diretora da ESMPFabiana Lemes Zamalloa do Prado - Promotora de JustiçaMarcelo Henrique dos Santos - Promotor de JustiçaMarta Moriya Loyola - Promotora de JustiçaMurilo de Morais e Miranda - Promotor de JustiçaRegina Márcia Himenes dos Santos - Promotora de JustiçaSandra Mara Garbelini - Promotora de JustiçaSimone Disconsi de Sá Campos - Promotora de Justiça

Ficha catalográfica: Tânia Gonzaga Gouveia – CRB 1842 A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores.

Pede-se permuta On demande l' échange We ask for exchange

Editoração e Capa: Ana HolowateFoto Capa: Ângela ScalonEdição e Organização: Elaine Borges- JP – 00836/GOImpressão: GRAFSET Gráfica e Editora Ltda. (62) 3241-2577Revisão ortográfica e adequação às normas da ABNT: Mirela Adriele da SilvaTiragem: 800 exemplares

Ministério Público do Estado de GoiásProcuradoria-Geral de JustiçaProcurador-Geral de Justiça: Dr. Eduardo Abdon MouraEscola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás – ESMP-GORua 23, esquina c/AV. Fued José Sebba, Qd.06, Lts, 15/24.Jardim Goiás- Goiânia-GOCEP: 74.805-100 Fone (62) 3243-8000e-mail: [email protected]://www.mp.go.gov.br

Apresentação .................................................................................................05

ARTIGOS

A responsabilidade socioambiental da Administração Pública......................07Marta Moriya Loyola

O advento da complexidade na ciência contemporânea: uma nova idéia de natureza............................................................................................13Maria da Conceição Rodrigues dos Santos

A Lei 11.280/06 e o (excepcional) reconhecimento ex offício da prescrição..................................................................................................21Vinícius Marçal Vieira e Augusto Reis Bittencourt Silva

O repasse automático das verbas ao SUS pelos municípios em respeito à Constituição/Emenda 29/2000....................................................................27Reuder Cavalcante Motta

História, passado e processo – um diálogo sobre a construção do passado através do processo judicial .............................................................45Mário Henrique Cardoso Caixeta

Um novo enfoque à prisão civil.....................................................................55Luandra Carolina Pimenta

Aprovação em Concurso Público e a discricionariedade de nomeação pela Administração Pública ...........................................................................61Daiane Mendes Pereira Torres

Violação ao subsídio constitucional...............................................................71João Paulo Cândido S. Oliveira

Ação Popular e participação política: um diálogo com a teoria democrática de Aléxis de Tocqueville ...............................................................................83Juliana Martins Barbacena

SUMÁRIO

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 3

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Reflexões sobre o Instituto da Propriedade Intelectual e os efeitos dos crimes contra os direitos autorais .................................................................93Danilo Cândido Rios e Nivaldo dos Santos

Dezoito anos do Estatuto da Criança e do Adolescente ................................103Mario Luiz Ramidoff

A nova execução de título extrajudicial........................................................117Viviane de Araújo Porto

Lei Maria da Penha: repúdio às práticas restaurativas..................................125Augusto Reis Bittencourt Silva

A efetividade da Lei n. 11.343/2006: usuário de drogas e tratamento ..........133Fernando Braga Viggiano O conflito entre a defesa social e o respeito às garantias fundamentais .......137 Geder Luiz Rocha Gomes

PEÇAS FUNCIONAIS

Parecer em ação indenizatória por ato ilícito................................................173José César Naves de Lima Júnior

Ação civil pública – Antecipação de tutela...................................................183Bruno Barra Gomes

Normas para publicação dos artigos .............................................................221

APRESENTAÇÃO

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 5Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/20084

Reúnem-se nesta edição trabalhos que veiculam variada sorte de enfoques e temas, seja na esfera jurídica, seja no âmbito de outras áreas do conhecimento.

Mesclam-se, dessarte, em harmonia, reflexões sobre a responsabilidade sócioambiental da Administração Pública e o repasse automático de verbas ao SUS; os consectários da aprovação em concurso público e a violação ao subsídio constitucional; o instituto da propriedade intelectual e o reconhecimento ex officio da prescrição; prisão civil e a nova execução de título extrajudicial; os dezoito anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Maria da Penha; a indenização por ato ilícito e a antecipação de tutela.

Desafiadoras as discussões sobre aspectos jurídicos, não menos instigantes as que se propõem para além desses lindes: despontam, em tal seara, considerações acerca do advento da complexidade na ciência contemporânea e uma nova idéia de natureza, a participação política à luz da teoria de Aléxis de Tocqueville e, ainda, história, passado e processo.

Não por acaso essa diversidade, empenhado que está o Ministério Público do Estado de Goiás na acolhida e na disseminação do pensamento e do agir sistêmico.

Conselho Editorial da Revista do MP-GO

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Reflexões sobre o Instituto da Propriedade Intelectual e os efeitos dos crimes contra os direitos autorais .................................................................93Danilo Cândido Rios e Nivaldo dos Santos

Dezoito anos do Estatuto da Criança e do Adolescente ................................103Mario Luiz Ramidoff

A nova execução de título extrajudicial........................................................117Viviane de Araújo Porto

Lei Maria da Penha: repúdio às práticas restaurativas..................................125Augusto Reis Bittencourt Silva

A efetividade da Lei n. 11.343/2006: usuário de drogas e tratamento ..........133Fernando Braga Viggiano O conflito entre a defesa social e o respeito às garantias fundamentais .......137 Geder Luiz Rocha Gomes

PEÇAS FUNCIONAIS

Parecer em ação indenizatória por ato ilícito................................................173José César Naves de Lima Júnior

Ação civil pública – Antecipação de tutela...................................................183Bruno Barra Gomes

Normas para publicação dos artigos .............................................................221

APRESENTAÇÃO

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 5Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/20084

Reúnem-se nesta edição trabalhos que veiculam variada sorte de enfoques e temas, seja na esfera jurídica, seja no âmbito de outras áreas do conhecimento.

Mesclam-se, dessarte, em harmonia, reflexões sobre a responsabilidade sócioambiental da Administração Pública e o repasse automático de verbas ao SUS; os consectários da aprovação em concurso público e a violação ao subsídio constitucional; o instituto da propriedade intelectual e o reconhecimento ex officio da prescrição; prisão civil e a nova execução de título extrajudicial; os dezoito anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Maria da Penha; a indenização por ato ilícito e a antecipação de tutela.

Desafiadoras as discussões sobre aspectos jurídicos, não menos instigantes as que se propõem para além desses lindes: despontam, em tal seara, considerações acerca do advento da complexidade na ciência contemporânea e uma nova idéia de natureza, a participação política à luz da teoria de Aléxis de Tocqueville e, ainda, história, passado e processo.

Não por acaso essa diversidade, empenhado que está o Ministério Público do Estado de Goiás na acolhida e na disseminação do pensamento e do agir sistêmico.

Conselho Editorial da Revista do MP-GO

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A RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL

DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

*Marta Moriya Loyola

Resumo:Este estudo se propõe a definir a responsabilidade social do setor público para que implemente, internamente, política de desenvolvimento sustentável e incorpore os princípios constitucionais, definidos para a administração pública, da moralidade e ecoeficiência, visando a diminuição de impactos ambientais negativos causados por suas atividades. Propõe, para o Ministério Público, adoção de medidas práticas que, de imediato, poderiam reduzir o passivo ambiental e, a médio prazo, a adoção de uma agenda ambiental, criada a partir de estudos feitos por uma comissão formada por servidores de diversas áreas da instituição.

Palavras-chave: Administração Pública, responsabilidade sócioambiental, A3P, gestão ambiental, Sustentabilidade, MP.

Responsabilidade social, para Cardoso e Ashley (2002),

pode ser definida como o compromisso que uma organização deve ter para com a sociedade expresso por meio de atos e atitudes que a afetem positivamente, de modo amplo, ou a alguma comunidade, de modo específico, agindo proativa e coerentemente no que tange a seu papel específico na sociedade e à sua prestação de contas para com ela.

Hodiernamente se constata, na iniciativa privada, significativa mudança de comportamento no sentido de

* 2ª Promotora de Justiça da Comarca de Senador Canedo e Promotora de Justiça em substituição na 15ª Promotoria de Justiça de Goiânia – especialista na Defesa do Meio Ambiente. E-mail: [email protected].

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 7Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/20086

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A RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL

DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

*Marta Moriya Loyola

Resumo:Este estudo se propõe a definir a responsabilidade social do setor público para que implemente, internamente, política de desenvolvimento sustentável e incorpore os princípios constitucionais, definidos para a administração pública, da moralidade e ecoeficiência, visando a diminuição de impactos ambientais negativos causados por suas atividades. Propõe, para o Ministério Público, adoção de medidas práticas que, de imediato, poderiam reduzir o passivo ambiental e, a médio prazo, a adoção de uma agenda ambiental, criada a partir de estudos feitos por uma comissão formada por servidores de diversas áreas da instituição.

Palavras-chave: Administração Pública, responsabilidade sócioambiental, A3P, gestão ambiental, Sustentabilidade, MP.

Responsabilidade social, para Cardoso e Ashley (2002),

pode ser definida como o compromisso que uma organização deve ter para com a sociedade expresso por meio de atos e atitudes que a afetem positivamente, de modo amplo, ou a alguma comunidade, de modo específico, agindo proativa e coerentemente no que tange a seu papel específico na sociedade e à sua prestação de contas para com ela.

Hodiernamente se constata, na iniciativa privada, significativa mudança de comportamento no sentido de

* 2ª Promotora de Justiça da Comarca de Senador Canedo e Promotora de Justiça em substituição na 15ª Promotoria de Justiça de Goiânia – especialista na Defesa do Meio Ambiente. E-mail: [email protected].

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 7Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/20086

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implementar política do desenvolvimento sustentável, unido ao conceito de eco-eficiência, adequando suas atividades de modo a reduzir o passivo ambiental e internalizar o conceito de desenvolvimento sustentável.

Percebe-se que referido movimento foi motivado, primeiramente, por pressões exercidas pela opinião pública e pelo mercado de consumo, as quais refletiam prejuízo financeiro à sua atividade econômica, seja por abalar a confiança de investidores e consumidores, seja pela constatação de que uma crise ambiental acarretaria riscos reais de escassez de matérias-primas e fontes energéticas que colocariam em xeque o atual padrão de produção industrial.

Se, por um lado, aqueles setores, tidos como incontestavelmente poluentes (petroquímico, metalúrgico, siderúrgico etc.), avançaram significativamente por terem sofrido a influência e pressões acima expostas, constatam-se dificuldades na conscientização do setor público em adequar-se ao contexto da sustentabilidade, alterando o seu modelo de gestão.

Como o conceito de lucro e competitividade não são, pelo menos de forma prioritária, norteadores da gestão pública, as pressões sofridas pelas organizações privadas ainda não atingiram, de maneira perceptível, as organizações públicas.

Contudo, chegamos ao inevitável momento em que essas questões, que eram desconsideradas pela administração pública, começaram a causar-nos considerável incômodo, levando-nos à necessidade de, pelo menos, iniciarmos uma reflexão acerca do tema – as dúvidas e os desafios que surgem –, como, por exemplo: a) a maneira correta de lidar com o imenso volume de lixo produzido pela Administração Pública; b) a forma como se deve dar a capacitação dos gestores públicos para que possam implementar o conceito de sustentabilidade; e c) a necessidade de incorporação, na rotina do serviço público, do princípio do desenvolvimento sustentável, adequando a estrutura e a instalação predial ocupada pela administração pública à otimização do manejo de recursos naturais, principalmente água e energia.

O Ministério Público, agente transformador da sociedade, a quem a Constituição da República conferiu a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e

individuais indisponíveis”, figurando dentre suas funções institucionais a “promoção de inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” tem feito a sua tarefa de casa?

Cumpre ressaltar que o conceito de responsabilidade social corporativa não se aplica somente às empresas, mas abarca toda a sociedade, incluindo-se ai o setor público.

Impende ressaltar, outrossim, que são princípios constitucionais que devem ser observados pela administração pública a moralidade, a qual impõe ao administrador um ethos próprio, consistente em, no âmbito da matéria aqui defendida, zelo com os recursos públicos, e a eficiência, que nesse contexto referido estaria representada no princípio da ecoeficiência.

Se estamos a exigir uma conduta ambientalmente correta, seja por meio de ação penal visando a apuração de crimes ambientais e infrações de menor potencial ofensivo, ou por meio de ações civis públicas e termos de compromisso e ajustamento de conduta, as quais obrigam o particular/administrado a adequar-se à normatização ambiental, como está a nossa internalização dos conceitos de desenvolvimento sustentável?

Em 1999, o Ministério do Meio Ambiente, no intuito de adotar novos referenciais em busca da sustentabilidade socioambiental, instituiu a Agenda Ambiental na Administração Pública – A P – que se propunha a instituir uma nova cultura 3

institucional, porquanto desempenha a administração pública papel estratégico na revisão de valores e padrões de produção e consumo que provocam impactos socioambientais nas suas atividades meio e fins.

O Ministério Público do Estado de Goiás encontra-se em um momento decisivo no que se refere a conceitos de administração. Está em curso a elaboração de planejamento estratégico que irá reformular conceitos de administração dentro desta instituição. O Poder Judiciário de nosso estado também caminha na mesma direção. Necessário, neste momento crucial, portanto, inserir, no planejamento e execução deste novo modelo de administração os conceitos de sustentabilidade socioambiental e ecoeficiência.

Uma das resistências apresentadas pelo setor

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 9Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/20088

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implementar política do desenvolvimento sustentável, unido ao conceito de eco-eficiência, adequando suas atividades de modo a reduzir o passivo ambiental e internalizar o conceito de desenvolvimento sustentável.

Percebe-se que referido movimento foi motivado, primeiramente, por pressões exercidas pela opinião pública e pelo mercado de consumo, as quais refletiam prejuízo financeiro à sua atividade econômica, seja por abalar a confiança de investidores e consumidores, seja pela constatação de que uma crise ambiental acarretaria riscos reais de escassez de matérias-primas e fontes energéticas que colocariam em xeque o atual padrão de produção industrial.

Se, por um lado, aqueles setores, tidos como incontestavelmente poluentes (petroquímico, metalúrgico, siderúrgico etc.), avançaram significativamente por terem sofrido a influência e pressões acima expostas, constatam-se dificuldades na conscientização do setor público em adequar-se ao contexto da sustentabilidade, alterando o seu modelo de gestão.

Como o conceito de lucro e competitividade não são, pelo menos de forma prioritária, norteadores da gestão pública, as pressões sofridas pelas organizações privadas ainda não atingiram, de maneira perceptível, as organizações públicas.

Contudo, chegamos ao inevitável momento em que essas questões, que eram desconsideradas pela administração pública, começaram a causar-nos considerável incômodo, levando-nos à necessidade de, pelo menos, iniciarmos uma reflexão acerca do tema – as dúvidas e os desafios que surgem –, como, por exemplo: a) a maneira correta de lidar com o imenso volume de lixo produzido pela Administração Pública; b) a forma como se deve dar a capacitação dos gestores públicos para que possam implementar o conceito de sustentabilidade; e c) a necessidade de incorporação, na rotina do serviço público, do princípio do desenvolvimento sustentável, adequando a estrutura e a instalação predial ocupada pela administração pública à otimização do manejo de recursos naturais, principalmente água e energia.

O Ministério Público, agente transformador da sociedade, a quem a Constituição da República conferiu a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e

individuais indisponíveis”, figurando dentre suas funções institucionais a “promoção de inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” tem feito a sua tarefa de casa?

Cumpre ressaltar que o conceito de responsabilidade social corporativa não se aplica somente às empresas, mas abarca toda a sociedade, incluindo-se ai o setor público.

Impende ressaltar, outrossim, que são princípios constitucionais que devem ser observados pela administração pública a moralidade, a qual impõe ao administrador um ethos próprio, consistente em, no âmbito da matéria aqui defendida, zelo com os recursos públicos, e a eficiência, que nesse contexto referido estaria representada no princípio da ecoeficiência.

Se estamos a exigir uma conduta ambientalmente correta, seja por meio de ação penal visando a apuração de crimes ambientais e infrações de menor potencial ofensivo, ou por meio de ações civis públicas e termos de compromisso e ajustamento de conduta, as quais obrigam o particular/administrado a adequar-se à normatização ambiental, como está a nossa internalização dos conceitos de desenvolvimento sustentável?

Em 1999, o Ministério do Meio Ambiente, no intuito de adotar novos referenciais em busca da sustentabilidade socioambiental, instituiu a Agenda Ambiental na Administração Pública – A P – que se propunha a instituir uma nova cultura 3

institucional, porquanto desempenha a administração pública papel estratégico na revisão de valores e padrões de produção e consumo que provocam impactos socioambientais nas suas atividades meio e fins.

O Ministério Público do Estado de Goiás encontra-se em um momento decisivo no que se refere a conceitos de administração. Está em curso a elaboração de planejamento estratégico que irá reformular conceitos de administração dentro desta instituição. O Poder Judiciário de nosso estado também caminha na mesma direção. Necessário, neste momento crucial, portanto, inserir, no planejamento e execução deste novo modelo de administração os conceitos de sustentabilidade socioambiental e ecoeficiência.

Uma das resistências apresentadas pelo setor

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empresarial, de início, foi a equivocada concepção de que a implementação da gestão ambiental implicaria a redução de lucros e a necessidade de se repassar os custos advindos desse novo modelo de gestão ao consumidor final. Mostrou-se esse entendimento equivocado na medida em que se constatou que o aperfeiçoamento de tecnologia ambiental, por meio da racionalização dos processos produtivos – reduzindo-se uso de insumos e desperdício, resultou em redução de custos por uma melhor racionalização do processo de produção, razão pela qual rapidamente expandiu-se o conceito de gestão ambiental, fundamentado no gerenciamento da qualidade total.

No setor público, por sua vez, percebe-se uma resistência que advém, em primeiro lugar, da ausência de profissionais capacitados e qualificados para criar e manter um sistema de gerenciamento socioambiental que abranja todas as esferas da administração pública. Em segundo lugar, porque devido ao imediatismo que costuma nortear a atuação da administração, resiste-se em elaborar e implementar um plano que, de início, poderia representar um gasto maior no orçamento, mas que, a médio e longo prazo, representaria aumento de produtividade e ecoeficiência, dentro do conceito de desenvolvimento sustentável. Referido ônus, contudo, poucos governantes e administradores estão dispostos a assumir, porquanto gastos feitos em sua administração repercutiriam em lucros e vantagens a serem auferidos pelo seu sucessor.

A AP, ao estimular a busca da qualidade ambiental, visa a 3

atingir uma gestão com qualidade e a criação de um ambiente de trabalho de melhor qualidade. Dentre os seus objetivos encontram-se:

promoção da reflexão sobre os problemas ambientais em todas as esferas da administração Publica; estímulo à adoção de atitudes e procedimentos que levem ao uso racional dos recursos naturais e dos bens públicos; estímulo e promoção de mudanças de hábitos dos servidores públicos e reacender a ética e a auto-estima dos servidores públicos.

Neste ponto, indaga-se se o Ministério Público, o qual,

por meio de Inquéritos Civis Públicos tem, por exemplo, investigado a questão da implementação efetiva da educação ambiental nas escolas municipais e estaduais em Goiás (Procedimento 346/2007 – 15ª Promotoria de Justiça), tem feito sua parte no sentido de estimular e despertar a responsabilidade socioambiental de seus membros – Procuradores e Promotores de Justiça e servidores –, no que se refere ao uso correto dos bens e serviços da administração pública.

Oportuno questionar-se, por fim, se o Ministério Público, que é o guardião dos cofres públicos e tem como função constitucional zelar pela probidade da administração pública, tem feito a sua parte ao não desenvolver projetos e ações de combate ao desperdício de recursos públicos, minimizando, dessa forma, impactos ambientais, diretos e indiretos, causados pela atividade pública.

Considerando ser a matéria relativamente nova, o Ministério do Meio Ambiente dispõe de um programa estruturado, consistente em uma ação de caráter voluntário a qual, mediante solicitação da esfera da administração pública interessada, tem chegado a quaisquer dos três níveis de governo. Recomendável seria que, neste momento de reformulação de conceitos de administração, a Procuradoria Geral de Justiça, em seu Planejamento Estratégico, buscasse a incorporação de conceitos de sustentabilidade e gestão ambiental, adotando um novo modelo de gestão pública que corrija e reduza impactos negativos gerados durante a execução de nosso trabalho, utilizando de forma ecoeficiente os recursos naturais, materiais, financeiros e humanos de nossa instituição, assumindo, assim, a nossa responsabilidade socioambiental.

Conclusões

1. Considerando estarem esculpidos na Constituição da República os princípios da moralidade e eficiência, a serem observados pela administração pública, se propõe, ao Ministério Público do Estado de Goiás, o exercício de reflexão crítica acerca do modus operandi da instituição, em termos de

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 11Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200810

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empresarial, de início, foi a equivocada concepção de que a implementação da gestão ambiental implicaria a redução de lucros e a necessidade de se repassar os custos advindos desse novo modelo de gestão ao consumidor final. Mostrou-se esse entendimento equivocado na medida em que se constatou que o aperfeiçoamento de tecnologia ambiental, por meio da racionalização dos processos produtivos – reduzindo-se uso de insumos e desperdício, resultou em redução de custos por uma melhor racionalização do processo de produção, razão pela qual rapidamente expandiu-se o conceito de gestão ambiental, fundamentado no gerenciamento da qualidade total.

No setor público, por sua vez, percebe-se uma resistência que advém, em primeiro lugar, da ausência de profissionais capacitados e qualificados para criar e manter um sistema de gerenciamento socioambiental que abranja todas as esferas da administração pública. Em segundo lugar, porque devido ao imediatismo que costuma nortear a atuação da administração, resiste-se em elaborar e implementar um plano que, de início, poderia representar um gasto maior no orçamento, mas que, a médio e longo prazo, representaria aumento de produtividade e ecoeficiência, dentro do conceito de desenvolvimento sustentável. Referido ônus, contudo, poucos governantes e administradores estão dispostos a assumir, porquanto gastos feitos em sua administração repercutiriam em lucros e vantagens a serem auferidos pelo seu sucessor.

A AP, ao estimular a busca da qualidade ambiental, visa a 3

atingir uma gestão com qualidade e a criação de um ambiente de trabalho de melhor qualidade. Dentre os seus objetivos encontram-se:

promoção da reflexão sobre os problemas ambientais em todas as esferas da administração Publica; estímulo à adoção de atitudes e procedimentos que levem ao uso racional dos recursos naturais e dos bens públicos; estímulo e promoção de mudanças de hábitos dos servidores públicos e reacender a ética e a auto-estima dos servidores públicos.

Neste ponto, indaga-se se o Ministério Público, o qual,

por meio de Inquéritos Civis Públicos tem, por exemplo, investigado a questão da implementação efetiva da educação ambiental nas escolas municipais e estaduais em Goiás (Procedimento 346/2007 – 15ª Promotoria de Justiça), tem feito sua parte no sentido de estimular e despertar a responsabilidade socioambiental de seus membros – Procuradores e Promotores de Justiça e servidores –, no que se refere ao uso correto dos bens e serviços da administração pública.

Oportuno questionar-se, por fim, se o Ministério Público, que é o guardião dos cofres públicos e tem como função constitucional zelar pela probidade da administração pública, tem feito a sua parte ao não desenvolver projetos e ações de combate ao desperdício de recursos públicos, minimizando, dessa forma, impactos ambientais, diretos e indiretos, causados pela atividade pública.

Considerando ser a matéria relativamente nova, o Ministério do Meio Ambiente dispõe de um programa estruturado, consistente em uma ação de caráter voluntário a qual, mediante solicitação da esfera da administração pública interessada, tem chegado a quaisquer dos três níveis de governo. Recomendável seria que, neste momento de reformulação de conceitos de administração, a Procuradoria Geral de Justiça, em seu Planejamento Estratégico, buscasse a incorporação de conceitos de sustentabilidade e gestão ambiental, adotando um novo modelo de gestão pública que corrija e reduza impactos negativos gerados durante a execução de nosso trabalho, utilizando de forma ecoeficiente os recursos naturais, materiais, financeiros e humanos de nossa instituição, assumindo, assim, a nossa responsabilidade socioambiental.

Conclusões

1. Considerando estarem esculpidos na Constituição da República os princípios da moralidade e eficiência, a serem observados pela administração pública, se propõe, ao Ministério Público do Estado de Goiás, o exercício de reflexão crítica acerca do modus operandi da instituição, em termos de

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responsabilidade socioambiental e sustentabilidade;2. De início, sugere-se a criação de uma comissão – formada por

servidores de áreas diversas da instituição – para diagnosticar a situação, apontando desperdícios e má gestão de recursos;

3. Após efetuado o diagnóstico, elaboração de uma agenda ambiental realista, onde devem ser acolhidas propostas e idéias para se otimizar o uso de recursos e diminuir gastos, tais como: a) utilizar/priorizar o uso de iluminação natural; b) treinamento de servidores e prestadores terceirizados (limpeza, copa etc.) em educação ambiental; c) desligar computadores que permaneçam ligados por mais de 30 (trinta) minutos, sem uso; d) descentralizar iluminação e ar condicionado, dentre outras medidas de fácil implementação.

Referências

CARDOSO, A. G.; ASHLEY, P. A responsabilidade social nos negócios: um conceito em construção. In: MAY, P. H.; LUSTOSA, M. C.; DA VINHA, V. Economia do Meio-Ambiente – Teoria e Prática. 3. ed. Editora Campus, 2003.

HAWKEN, P.; LOVINS, A.; LOVINS, L. H. Capitalismo Natural – criando a próxima revolução industrial. São Paulo: Editora Cultrix, 1999.

MAY, P. H.; LUSTOSA, M. C.; DA VINHA, V. Economia do Meio Ambiente – Teoria e Prática. 3. ed. Editora Campus, 2003.

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Agenda Ambiental da Administração Pública. Disponível em: http://www.mma.gov.br. Acesso em 3 set. 2007.

SILVA, J. A. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed. Malheiros, 2004.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200812

O ADVENTO DA COMPLEXIDADE NA CIÊNCIA

CONTEMPORÂNEA: UMA NOVA

IDÉIA DE NATUREZA

Maria da Conceição Rodrigues dos Santos*

Resumo:Este artigo tem por eixo a mudança de olhar do homem contemporâneo sobre a natureza e o necessário repensamento de suas relações para com ela, a partir da ruptura de paradigma que a física impôs à ciência do século XX, o que vem a significar o advento de uma nova filosofia da natureza. A questão será abordada a partir dos pressupostos teóricos associados ao pensamento cartesiano e das três frentes que promoveram a mudança da física clássica para a física moderna: a relatividade, a física quântica e particularmente a termodinâmica, responsável pela introdução da complexidade no âmbito da ciência contemporânea.

Palavras-chave: modelo cartesiano, ruptura de paradigma, termodinâmica, complexidade, idéia de natureza.

Introdução

1Com base na obra do físico-químico Ilya Prigogine , este estudo pretende demonstrar a derrocada do modelo de conhecimento introduzido pela revolução científica do século XVII, que instaurou no ocidente a modernidade, falência que aqui se aborda a partir de três grandes frentes de ruptura em sua estrutura epistêmica, todas provenientes da física: a relatividade, a física quântica e a

* Procuradora de Justiça do Estado de Goiás. Graduada em Física e mestranda em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás.1 Ilya Prigogine: físico-químico russo, naturalizado belga, que se tornou conhecido mundialmente após ser laureado com o Prêmio Nobel de Química em 1977. Com Isabelle Stengers, química e filósofa da ciência, faz uma releitura da história da física a partir das noções de caos e irreversibilidade temporal.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 13

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responsabilidade socioambiental e sustentabilidade;2. De início, sugere-se a criação de uma comissão – formada por

servidores de áreas diversas da instituição – para diagnosticar a situação, apontando desperdícios e má gestão de recursos;

3. Após efetuado o diagnóstico, elaboração de uma agenda ambiental realista, onde devem ser acolhidas propostas e idéias para se otimizar o uso de recursos e diminuir gastos, tais como: a) utilizar/priorizar o uso de iluminação natural; b) treinamento de servidores e prestadores terceirizados (limpeza, copa etc.) em educação ambiental; c) desligar computadores que permaneçam ligados por mais de 30 (trinta) minutos, sem uso; d) descentralizar iluminação e ar condicionado, dentre outras medidas de fácil implementação.

Referências

CARDOSO, A. G.; ASHLEY, P. A responsabilidade social nos negócios: um conceito em construção. In: MAY, P. H.; LUSTOSA, M. C.; DA VINHA, V. Economia do Meio-Ambiente – Teoria e Prática. 3. ed. Editora Campus, 2003.

HAWKEN, P.; LOVINS, A.; LOVINS, L. H. Capitalismo Natural – criando a próxima revolução industrial. São Paulo: Editora Cultrix, 1999.

MAY, P. H.; LUSTOSA, M. C.; DA VINHA, V. Economia do Meio Ambiente – Teoria e Prática. 3. ed. Editora Campus, 2003.

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Agenda Ambiental da Administração Pública. Disponível em: http://www.mma.gov.br. Acesso em 3 set. 2007.

SILVA, J. A. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed. Malheiros, 2004.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200812

O ADVENTO DA COMPLEXIDADE NA CIÊNCIA

CONTEMPORÂNEA: UMA NOVA

IDÉIA DE NATUREZA

Maria da Conceição Rodrigues dos Santos*

Resumo:Este artigo tem por eixo a mudança de olhar do homem contemporâneo sobre a natureza e o necessário repensamento de suas relações para com ela, a partir da ruptura de paradigma que a física impôs à ciência do século XX, o que vem a significar o advento de uma nova filosofia da natureza. A questão será abordada a partir dos pressupostos teóricos associados ao pensamento cartesiano e das três frentes que promoveram a mudança da física clássica para a física moderna: a relatividade, a física quântica e particularmente a termodinâmica, responsável pela introdução da complexidade no âmbito da ciência contemporânea.

Palavras-chave: modelo cartesiano, ruptura de paradigma, termodinâmica, complexidade, idéia de natureza.

Introdução

1Com base na obra do físico-químico Ilya Prigogine , este estudo pretende demonstrar a derrocada do modelo de conhecimento introduzido pela revolução científica do século XVII, que instaurou no ocidente a modernidade, falência que aqui se aborda a partir de três grandes frentes de ruptura em sua estrutura epistêmica, todas provenientes da física: a relatividade, a física quântica e a

* Procuradora de Justiça do Estado de Goiás. Graduada em Física e mestranda em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás.1 Ilya Prigogine: físico-químico russo, naturalizado belga, que se tornou conhecido mundialmente após ser laureado com o Prêmio Nobel de Química em 1977. Com Isabelle Stengers, química e filósofa da ciência, faz uma releitura da história da física a partir das noções de caos e irreversibilidade temporal.

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termodinâmica.A relatividade rompeu com a antiga concepção de

objetividade física, mas manteve intacta uma segunda característica intrínseca da física clássica, que diz respeito à persecução de uma descrição exaustiva da natureza. Neste sentido, pode-se dizer que a relatividade se situa ainda no prolongamento da física clássica, na medida em que supera o absoluto de Newton, que é o tempo, mas para colocar um outro em seu lugar: a velocidade da luz. Assim, Einstein quebra barreiras teóricas, mas sua teoria não adquire, por si própria, o status de novidade que anuncia.

Já a mecânica quântica rompe drasticamente com o universo clássico e se estabelece por inteiro, com a maravilhosa estranheza de sua novidade. Desde Newton, os físicos haviam crido que todos os fenômenos físicos pudessem ser reduzidos às propriedades de partículas materiais rígidas e sólidas. No entanto, no início do século passado, a teoria quântica forçou-os a aceitar o fato de que os objetos materiais sólidos da física clássica se dissolvem, no nível subatômico, em padrões de probabilidades semelhantes a ondas. Além disso, esses padrões não representam probabilidades de coisas, mas sim probabilidades de interconexões.

Na origem da mecânica quântica há um conjunto de dados novos que a mecânica clássica não conseguiu interpretar, tal como não havia sido capaz de encontrar em seu escopo, um século antes, suporte para o enunciado das leis de funcionamento das novas máquinas, que punham em ação não as forças da gravidade, mas o poder motriz do fogo.

Com isto, estamos afirmando que a termodinâmica foi a grande pioneira da inovação científica que deu lugar à Contemporaneidade, que já vem sendo considerada por muitos como uma revolução do porte daquela que pôs fim à Idade Média. Com efeito, foi a ciência do calor que, ao mesmo tempo em que desencadeou a revolução industrial, pôs em cheque o modelo que a propiciou, ao desvendar-nos a complexidade e o caos, características de um mundo novo e fascinante que a física de Newton não contempla.

O modelo cartesiano e seus desdobramentos

É fato que o modelo de ciência estabelecido com esteio na física de Newton e sob a metodologia desenvolvida por Descartes, para promover a “certeza” e a exauriência frente aos resultados obtidos quando da abordagem de um sistema – o que se faz necessariamente pela via quantitativa – impõe, por um lado, que o sistema seja isolado, fechado em torno de variáveis manipuláveis, e, por outro, pressupõe, como regra, que o tempo seja uma

2grandeza reversível . Tal postura exerceu influência radical sobre a cultura ocidental e uma de suas principais conseqüências, sem dúvida a mais dramática, consiste na proliferação e no uso indiscriminado de artefatos tecnológicos, incorporando à própria cultura uma conduta omissiva e, mais recentemente, francamente irresponsável, em relação ao equilíbrio e à preservação de nossos ecossistemas.

Parece largo demais o passo, a uma primeira vista, para uma inferência desse tipo; contudo, não é difícil perceber, a um segundo olhar, que, num modelo assim baseado em idealizações, onde o complexo não passa da justaposição de sistemas estrategicamente simplificados, não há lugar para o excedente, para a escória, para os detritos. Enfim, o que estamos propondo é que desse solo teórico não se poderia esperar produto diferente, de tal forma que assistimos a uma revolução industrial em que não se contemplou, em qualquer instância, a destinação a ser dada para seus detritos, para seu lixo. E, ademais, o arcabouço teórico da ciência newtoniana não contém elementos sugestivos para a análise do caráter irreversível de nossas drásticas incursões nos metabolismos da natureza.

3Ensina-nos Alexandre Koyré (1966) que o diálogo experimental é o cerne da prática original a que convencionamos

2 Trata-se do universo de domínio do “demônio de Laplace”, em que as condições iniciais e as regras de variação das grandezas envolvidas são suficientes para o conhecimento exauriente de um fenômeno: no passado, no presente e no futuro.3 Epistemólogo francês, de origem russa, considerado um dos mais importantes da atualidade, grande estudioso das obras de Galileu, Descartes e Newton.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 15Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200814

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termodinâmica.A relatividade rompeu com a antiga concepção de

objetividade física, mas manteve intacta uma segunda característica intrínseca da física clássica, que diz respeito à persecução de uma descrição exaustiva da natureza. Neste sentido, pode-se dizer que a relatividade se situa ainda no prolongamento da física clássica, na medida em que supera o absoluto de Newton, que é o tempo, mas para colocar um outro em seu lugar: a velocidade da luz. Assim, Einstein quebra barreiras teóricas, mas sua teoria não adquire, por si própria, o status de novidade que anuncia.

Já a mecânica quântica rompe drasticamente com o universo clássico e se estabelece por inteiro, com a maravilhosa estranheza de sua novidade. Desde Newton, os físicos haviam crido que todos os fenômenos físicos pudessem ser reduzidos às propriedades de partículas materiais rígidas e sólidas. No entanto, no início do século passado, a teoria quântica forçou-os a aceitar o fato de que os objetos materiais sólidos da física clássica se dissolvem, no nível subatômico, em padrões de probabilidades semelhantes a ondas. Além disso, esses padrões não representam probabilidades de coisas, mas sim probabilidades de interconexões.

Na origem da mecânica quântica há um conjunto de dados novos que a mecânica clássica não conseguiu interpretar, tal como não havia sido capaz de encontrar em seu escopo, um século antes, suporte para o enunciado das leis de funcionamento das novas máquinas, que punham em ação não as forças da gravidade, mas o poder motriz do fogo.

Com isto, estamos afirmando que a termodinâmica foi a grande pioneira da inovação científica que deu lugar à Contemporaneidade, que já vem sendo considerada por muitos como uma revolução do porte daquela que pôs fim à Idade Média. Com efeito, foi a ciência do calor que, ao mesmo tempo em que desencadeou a revolução industrial, pôs em cheque o modelo que a propiciou, ao desvendar-nos a complexidade e o caos, características de um mundo novo e fascinante que a física de Newton não contempla.

O modelo cartesiano e seus desdobramentos

É fato que o modelo de ciência estabelecido com esteio na física de Newton e sob a metodologia desenvolvida por Descartes, para promover a “certeza” e a exauriência frente aos resultados obtidos quando da abordagem de um sistema – o que se faz necessariamente pela via quantitativa – impõe, por um lado, que o sistema seja isolado, fechado em torno de variáveis manipuláveis, e, por outro, pressupõe, como regra, que o tempo seja uma

2grandeza reversível . Tal postura exerceu influência radical sobre a cultura ocidental e uma de suas principais conseqüências, sem dúvida a mais dramática, consiste na proliferação e no uso indiscriminado de artefatos tecnológicos, incorporando à própria cultura uma conduta omissiva e, mais recentemente, francamente irresponsável, em relação ao equilíbrio e à preservação de nossos ecossistemas.

Parece largo demais o passo, a uma primeira vista, para uma inferência desse tipo; contudo, não é difícil perceber, a um segundo olhar, que, num modelo assim baseado em idealizações, onde o complexo não passa da justaposição de sistemas estrategicamente simplificados, não há lugar para o excedente, para a escória, para os detritos. Enfim, o que estamos propondo é que desse solo teórico não se poderia esperar produto diferente, de tal forma que assistimos a uma revolução industrial em que não se contemplou, em qualquer instância, a destinação a ser dada para seus detritos, para seu lixo. E, ademais, o arcabouço teórico da ciência newtoniana não contém elementos sugestivos para a análise do caráter irreversível de nossas drásticas incursões nos metabolismos da natureza.

3Ensina-nos Alexandre Koyré (1966) que o diálogo experimental é o cerne da prática original a que convencionamos

2 Trata-se do universo de domínio do “demônio de Laplace”, em que as condições iniciais e as regras de variação das grandezas envolvidas são suficientes para o conhecimento exauriente de um fenômeno: no passado, no presente e no futuro.3 Epistemólogo francês, de origem russa, considerado um dos mais importantes da atualidade, grande estudioso das obras de Galileu, Descartes e Newton.

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designar por ciência. Esse diálogo remete a duas dimensões constitutivas das relações homem-natureza, que são compreender e modificar, as quais representam por excelência o espírito da modernidade. Estamos conduzindo a reflexão no rumo de clarificar o modo como alguns dos pressupostos basilares desse sistema encontram-se hoje severamente abalados, entre os quais podemos arrolar:

1. A convicção de que o método científico seria a única abordagem válida para a produção do conhecimento;

2. A concepção do universo como um sistema mecânico composto de unidades materiais elementares;

3. A concepção da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência;

4. A crença em um progresso material ilimitado, a ser alcançado através de crescimento econômico e tecnológico constantes.

De resto, a ênfase dada ao pensamento racional em nossa cultura, que está de modo célebre representado na expressão de Descartes “cogito, ergo sum”, encorajou o indivíduo ocidental a estruturar sua identidade exclusivamente a partir de uma mente racional, em detrimento das demais funções que integram seu organismo e o elevam à condição de um ser total. Ora, visto que a razão é característica privativa do homo sapiens, é compreensível que uma tal identificação restritiva tenha produzido uma profunda cisão entre o ser humano e os demais elementos do seu meio natural, havendo homem e natureza se descontextualizado drasticamente.

O advento da complexidade

A teoria de Ilya Prigogine contém uma mudança conceitual significativamente profunda em relação ao modelo cartesiano. Em princípio, Prigogine trabalha com as estruturas dissipativas, que são sistemas caóticos passíveis de descrição, por exemplo, em termodinâmica não-linear, cujas características são a sensibilidade a pequenas mudanças nos pontos críticos, a incerteza e a imprevisibilidade do futuro, concepções efetivamente revolucionárias

se comparadas aos pressupostos da ciência newtoniana.Quando desenvolveu sua teoria acerca das estruturas

dissipativas, Prigogine procurou os exemplos mais simples, que admitissem uma descrição matemática, no terreno da físico-química. Ele não trabalhou com sistemas vivos. Contudo, os mesmos laços catalíticos das oscilações químicas revelaram-se de importância central para o metabolismo da célula, que corresponde ao mais simples sistema vivo conhecido. Assim, o modelo de Prigogine começa por permitir-nos a leitura das características essenciais das células – que sabemos serem as estruturas básicas de todos os sistemas vivos, incluindo os seres humanos – em termos de estruturas dissipativas. A partir daí, já no terreno da filosofia, juntamente com sua parceira Isabelle Stengers, Prigogine pensa o próprio homem e propicia reflexões visceralmente inovadoras sobre sua relação com o mundo natural.

Ao invés de uma máquina, como se postulara na modernidade, a natureza se revela realmente mais parecida com a natureza humana: imprevisível, sensível ao mundo do seu entorno, influenciável por pequenas flutuações. Disso decorre uma mudança de perspectiva fundamental, sendo de se ressaltar que “a maneira mais apropriada de nos aproximarmos da natureza para aprender acerca de sua complexidade e da sua beleza não é por meio da dominação e do controle, mas sim por meio do respeito, da cooperação e do diálogo” (CAPRA, 2002); e tudo isso pressupõe uma reinserção.

Compreender a natureza foi um dos grandes projetos do pensamento ocidental, mas infelizmente esse projeto foi confundido com controle, a respeito do que nos alertam Prigogine & Stengers (1991): “Seria cego o senhor que acreditasse compreender seus escravos sob o pretexto de que eles obedecem as suas ordens”. E ainda:

O homem hoje sabe que não está só na imensidão indiferente do universo; se a ciência moderna, do alto do seu saber onisciente, fez da natureza um autônomo sem ilusões, a ciência contemporânea, através de sua ‘escuta poética’, devolveu-lhe o poder de inovar e, graças a um diálogo profícuo, reintegrou o homem no universo observado por ele.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 17Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200816

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designar por ciência. Esse diálogo remete a duas dimensões constitutivas das relações homem-natureza, que são compreender e modificar, as quais representam por excelência o espírito da modernidade. Estamos conduzindo a reflexão no rumo de clarificar o modo como alguns dos pressupostos basilares desse sistema encontram-se hoje severamente abalados, entre os quais podemos arrolar:

1. A convicção de que o método científico seria a única abordagem válida para a produção do conhecimento;

2. A concepção do universo como um sistema mecânico composto de unidades materiais elementares;

3. A concepção da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência;

4. A crença em um progresso material ilimitado, a ser alcançado através de crescimento econômico e tecnológico constantes.

De resto, a ênfase dada ao pensamento racional em nossa cultura, que está de modo célebre representado na expressão de Descartes “cogito, ergo sum”, encorajou o indivíduo ocidental a estruturar sua identidade exclusivamente a partir de uma mente racional, em detrimento das demais funções que integram seu organismo e o elevam à condição de um ser total. Ora, visto que a razão é característica privativa do homo sapiens, é compreensível que uma tal identificação restritiva tenha produzido uma profunda cisão entre o ser humano e os demais elementos do seu meio natural, havendo homem e natureza se descontextualizado drasticamente.

O advento da complexidade

A teoria de Ilya Prigogine contém uma mudança conceitual significativamente profunda em relação ao modelo cartesiano. Em princípio, Prigogine trabalha com as estruturas dissipativas, que são sistemas caóticos passíveis de descrição, por exemplo, em termodinâmica não-linear, cujas características são a sensibilidade a pequenas mudanças nos pontos críticos, a incerteza e a imprevisibilidade do futuro, concepções efetivamente revolucionárias

se comparadas aos pressupostos da ciência newtoniana.Quando desenvolveu sua teoria acerca das estruturas

dissipativas, Prigogine procurou os exemplos mais simples, que admitissem uma descrição matemática, no terreno da físico-química. Ele não trabalhou com sistemas vivos. Contudo, os mesmos laços catalíticos das oscilações químicas revelaram-se de importância central para o metabolismo da célula, que corresponde ao mais simples sistema vivo conhecido. Assim, o modelo de Prigogine começa por permitir-nos a leitura das características essenciais das células – que sabemos serem as estruturas básicas de todos os sistemas vivos, incluindo os seres humanos – em termos de estruturas dissipativas. A partir daí, já no terreno da filosofia, juntamente com sua parceira Isabelle Stengers, Prigogine pensa o próprio homem e propicia reflexões visceralmente inovadoras sobre sua relação com o mundo natural.

Ao invés de uma máquina, como se postulara na modernidade, a natureza se revela realmente mais parecida com a natureza humana: imprevisível, sensível ao mundo do seu entorno, influenciável por pequenas flutuações. Disso decorre uma mudança de perspectiva fundamental, sendo de se ressaltar que “a maneira mais apropriada de nos aproximarmos da natureza para aprender acerca de sua complexidade e da sua beleza não é por meio da dominação e do controle, mas sim por meio do respeito, da cooperação e do diálogo” (CAPRA, 2002); e tudo isso pressupõe uma reinserção.

Compreender a natureza foi um dos grandes projetos do pensamento ocidental, mas infelizmente esse projeto foi confundido com controle, a respeito do que nos alertam Prigogine & Stengers (1991): “Seria cego o senhor que acreditasse compreender seus escravos sob o pretexto de que eles obedecem as suas ordens”. E ainda:

O homem hoje sabe que não está só na imensidão indiferente do universo; se a ciência moderna, do alto do seu saber onisciente, fez da natureza um autônomo sem ilusões, a ciência contemporânea, através de sua ‘escuta poética’, devolveu-lhe o poder de inovar e, graças a um diálogo profícuo, reintegrou o homem no universo observado por ele.

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No universo determinista de Newton não há lugar para a história, nem para a criatividade. No mundo vivo das estruturas dissipativas, ao contrário, a história desempenha um papel importante, pois o futuro é incerto e tal incerteza impõe ao pesquisador um modo de operar necessariamente criativo, em alerta permanente, como convém ao seu novo estado de co-participação. O modelo científico subjacente a estas transformações demonstra que o caos entrópico, através de ínfimas flutuações-bifurcações, é uma fonte de evolução, de irrupção de novas organizações complexas e esta teoria permite extrapolações para os mais diversos campos: da formação dos turbilhões à organização dos cupins, passando pelo crescimento urbano e, por fim, dando lugar a uma nova idéia de natureza.

Conclusão

O enfoque científico aqui apresentado destaca a complexidade e a importância capital do tempo irreversível – o fluxo do devenir – pedra angular de todas as transformações, pondo-nos diante de uma verdadeira metamorfose da ciência. Trata-se, segundo o grande cientista e pensador Ilya Prigogine, de uma mudança radical que concorre para uma “nova aliança”, para a convergência de duas culturas, a científica e a humanística, que se interrogam sobre a significação dos mesmos fenômenos: o devenir, a reabilitação da desordem e o acaso organizador.

Por certo, a ciência e as humanidades não poderão se reconciliar senão sob a égide de um novo modelo de racionalidade, uma proposta radicalmente inovadora frente ao conhecimento e à vida em sociedade, o que inclui, de forma necessária e mesmo revolucionária, o auto-conhecimento. “Atualmente, o mundo que vemos fora de nós e o mundo que temos dentro de nós estão convergindo e esta convergência dos dois mundos é talvez um dos eventos culturais mais importantes de nossa era” (Prigogine & Stengers, 1991).

A busca desse novo modelo de racionalidade e de seu suporte filosófico constitui um objeto de investigação em aberto, visando à conformação de uma nova epistemologia, que ainda está

por ser construída, a partir da constatação de que uma natureza subjugável pressupõe um homem alienado a ela, o que é o mesmo que um homem alienado de si; e por extensão produz-se, desse modo, uma cultura alienada do equilíbrio e da vida, porque insistimos em ignorar que esta, à obviedade, extrapola em muito os limites da racionalidade humana.

Resta-nos, por fim, o consolo de que uma vertente da própria ciência se tenha elevado ao patamar de nos oferecer pungente alerta: de conclamar o homem para que se reinvente como ser natural e reestruture, com urgência, as bases de um novo diálogo com a natureza, de preferência “como algo que se diga de si para si”. Ou, posto de outra maneira, que uma nova idéia de natureza se articule, não ao revés, mas em estrita consonância com a humanidade em si mesma e, principalmente, com cada um de nós.

Referências

ABRANTES, P. C. C. Imagens de Natureza, Imagens de Ciência. Campinas: Papirus, 1998.

ABRÃO, B. & COSCODAI, M. (Orgs.). História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultura, 2002.

CAPRA, F. O Ponto de Mutação: a Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. São Paulo: Cultrix, 2002.

CASINI, P. As Filosofias da Natureza. Trad. de Ana Falcão Bastos e Luis Leitão. Lisboa: Presença, 1975.

HEISENBERG, W. Física e Filosofia. Trad. de Jorge Leal Ferreira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

KOYRÉ, A. Etudes galileénnes. Paris: Hermann, 1966.

MORIN, E. A Religação dos Saberes: o Desafio do Século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 19Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200818

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No universo determinista de Newton não há lugar para a história, nem para a criatividade. No mundo vivo das estruturas dissipativas, ao contrário, a história desempenha um papel importante, pois o futuro é incerto e tal incerteza impõe ao pesquisador um modo de operar necessariamente criativo, em alerta permanente, como convém ao seu novo estado de co-participação. O modelo científico subjacente a estas transformações demonstra que o caos entrópico, através de ínfimas flutuações-bifurcações, é uma fonte de evolução, de irrupção de novas organizações complexas e esta teoria permite extrapolações para os mais diversos campos: da formação dos turbilhões à organização dos cupins, passando pelo crescimento urbano e, por fim, dando lugar a uma nova idéia de natureza.

Conclusão

O enfoque científico aqui apresentado destaca a complexidade e a importância capital do tempo irreversível – o fluxo do devenir – pedra angular de todas as transformações, pondo-nos diante de uma verdadeira metamorfose da ciência. Trata-se, segundo o grande cientista e pensador Ilya Prigogine, de uma mudança radical que concorre para uma “nova aliança”, para a convergência de duas culturas, a científica e a humanística, que se interrogam sobre a significação dos mesmos fenômenos: o devenir, a reabilitação da desordem e o acaso organizador.

Por certo, a ciência e as humanidades não poderão se reconciliar senão sob a égide de um novo modelo de racionalidade, uma proposta radicalmente inovadora frente ao conhecimento e à vida em sociedade, o que inclui, de forma necessária e mesmo revolucionária, o auto-conhecimento. “Atualmente, o mundo que vemos fora de nós e o mundo que temos dentro de nós estão convergindo e esta convergência dos dois mundos é talvez um dos eventos culturais mais importantes de nossa era” (Prigogine & Stengers, 1991).

A busca desse novo modelo de racionalidade e de seu suporte filosófico constitui um objeto de investigação em aberto, visando à conformação de uma nova epistemologia, que ainda está

por ser construída, a partir da constatação de que uma natureza subjugável pressupõe um homem alienado a ela, o que é o mesmo que um homem alienado de si; e por extensão produz-se, desse modo, uma cultura alienada do equilíbrio e da vida, porque insistimos em ignorar que esta, à obviedade, extrapola em muito os limites da racionalidade humana.

Resta-nos, por fim, o consolo de que uma vertente da própria ciência se tenha elevado ao patamar de nos oferecer pungente alerta: de conclamar o homem para que se reinvente como ser natural e reestruture, com urgência, as bases de um novo diálogo com a natureza, de preferência “como algo que se diga de si para si”. Ou, posto de outra maneira, que uma nova idéia de natureza se articule, não ao revés, mas em estrita consonância com a humanidade em si mesma e, principalmente, com cada um de nós.

Referências

ABRANTES, P. C. C. Imagens de Natureza, Imagens de Ciência. Campinas: Papirus, 1998.

ABRÃO, B. & COSCODAI, M. (Orgs.). História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultura, 2002.

CAPRA, F. O Ponto de Mutação: a Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. São Paulo: Cultrix, 2002.

CASINI, P. As Filosofias da Natureza. Trad. de Ana Falcão Bastos e Luis Leitão. Lisboa: Presença, 1975.

HEISENBERG, W. Física e Filosofia. Trad. de Jorge Leal Ferreira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

KOYRÉ, A. Etudes galileénnes. Paris: Hermann, 1966.

MORIN, E. A Religação dos Saberes: o Desafio do Século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 19Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200818

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PRIGOGINE, I. & STENGERS, I. La nouvelle alliance: métamorphose de la science. Paris: Gallimard, 1979.

______. A Nova Aliança: Metamorfose da Ciência. Trad. de Miguel Faria e Maria Joaquina Machado Trincheira. Brasília: Editora UnB, 1991.

______. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996.

______. As Leis do Caos. Trad. de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 2002.

SCHNITMAN, D. F. (Org.). Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

SPIRE, A. O Pensamento Prigogine. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200820

Resumo:O presente artigo científico trata das questões básicas referentes à prescrição em matéria civil. Dentre outros aspectos, no seu desenvolver faz-se uma sumária incursão sobre a relevância jurídica do tema e sobre a modificação legislativa introduzida pela Lei 11.280/06. Conclui-se, por fim, que a par da alteração legislativa, em regra, o magistrado não poderá pronunciar ex officio a prescrição.

Palavras-chave: prescrição, alteração legislativa, pronunciamento ex officio, possibilidade excepcional.

Segundo dispõe o doutrinariamente elogiado artigo 189 1do Código Civil, a prescrição extingue a pretensão (e não a ação ),

subsistindo o chamado “direito de fundo”, embora não possa mais seu titular exigir o cumprimento da obrigação. Ela pressupõe o decurso do tempo e a inércia do titular do direito.

Do ponto de vista processual a pretensão, que é fulminada com a consumação da prescrição, corresponde à

A LEI 11.280/06 E O (EXCEPCIONAL) RECONHECIMENTO

EX OFFICIO DA PRESCRIÇÃO

Vinícius Marçal Vieira* Augusto Reis Bittencourt Silva**

* Promotor de Justiça do MP-GO; membro do Núcleo de Apoio Técnico do CAO-MeioAmbiente/MP-GO; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás; Pós-graduado em Direito Penal; exerceu a Advocacia em Goiás e o cargo de Delegado de Polícia do Distrito Federal. ** Promotor de Justiça do MP-GO; Membro do Núcleo de Apoio Técnico do CAO-Cível/MP-GO; Ex-Advogado; Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Goiás.1 “[...] recomendável a distinção entre pretensão e ação. Aquela se caracteriza pela afirmação de um direito; esta é, precisamente, o instrumento dentro do qual se coloca a pretensão, para que produza seus efeitos jurídicos” (ALVIM, 1971, p. 394-397).

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 21

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PRIGOGINE, I. & STENGERS, I. La nouvelle alliance: métamorphose de la science. Paris: Gallimard, 1979.

______. A Nova Aliança: Metamorfose da Ciência. Trad. de Miguel Faria e Maria Joaquina Machado Trincheira. Brasília: Editora UnB, 1991.

______. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996.

______. As Leis do Caos. Trad. de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 2002.

SCHNITMAN, D. F. (Org.). Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

SPIRE, A. O Pensamento Prigogine. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200820

Resumo:O presente artigo científico trata das questões básicas referentes à prescrição em matéria civil. Dentre outros aspectos, no seu desenvolver faz-se uma sumária incursão sobre a relevância jurídica do tema e sobre a modificação legislativa introduzida pela Lei 11.280/06. Conclui-se, por fim, que a par da alteração legislativa, em regra, o magistrado não poderá pronunciar ex officio a prescrição.

Palavras-chave: prescrição, alteração legislativa, pronunciamento ex officio, possibilidade excepcional.

Segundo dispõe o doutrinariamente elogiado artigo 189 1do Código Civil, a prescrição extingue a pretensão (e não a ação ),

subsistindo o chamado “direito de fundo”, embora não possa mais seu titular exigir o cumprimento da obrigação. Ela pressupõe o decurso do tempo e a inércia do titular do direito.

Do ponto de vista processual a pretensão, que é fulminada com a consumação da prescrição, corresponde à

A LEI 11.280/06 E O (EXCEPCIONAL) RECONHECIMENTO

EX OFFICIO DA PRESCRIÇÃO

Vinícius Marçal Vieira* Augusto Reis Bittencourt Silva**

* Promotor de Justiça do MP-GO; membro do Núcleo de Apoio Técnico do CAO-MeioAmbiente/MP-GO; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás; Pós-graduado em Direito Penal; exerceu a Advocacia em Goiás e o cargo de Delegado de Polícia do Distrito Federal. ** Promotor de Justiça do MP-GO; Membro do Núcleo de Apoio Técnico do CAO-Cível/MP-GO; Ex-Advogado; Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Goiás.1 “[...] recomendável a distinção entre pretensão e ação. Aquela se caracteriza pela afirmação de um direito; esta é, precisamente, o instrumento dentro do qual se coloca a pretensão, para que produza seus efeitos jurídicos” (ALVIM, 1971, p. 394-397).

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 21

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afirmação de um direito material que se almejava fosse admitido pelo Judiciário (é a opinião de ter direito ).

Nessa senda, vale repisar que, pela opção legislativa brasileira, a prescrição não fulmina a existência do direito subjetivo. Assim, embora elimine a pretensão, o direito material em si restará intacto (“não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita” – art. 882 do Código Civil), destarte, pode-se concluir: quem paga dívida prescrita, paga o que deve!

Fixados esses pontos iniciais, importa referenciar que, na vigência do Código Civil de 1916, permitia-se o conhecimento ex officio da prescrição de direitos não-patrimoniais: “Sucede que não havia prazo de prescrição de direitos não-patrimoniais, que ou são potestativos (e, portanto, submetidos a prazo decadencial) ou são imprescritíveis (como os personalíssimos)”. Ou seja, objetivamente, pode-se afirmar que mesmo na vigência do Código revogado a prescrição era sempre de ordem patrimonial (DIDIER JÚNIOR, JORGE e RODRIGUES, 2006, p. 39).

Por sua vez, o atual Código Civil, não se utilizando da inconveniente dicotomia direitos patrimoniais/direitos não-patrimoniais, estabeleceu a possibilidade de esta ser conhecida de ofício pelo magistrado sempre que viesse a beneficiar absolutamente incapaz.

No caminhar dessa progressão legislativa sobre o tema em comento, a Lei 11.051/04 alterou a Lei de Execução Fiscal para permitir o conhecimento ex officio da prescrição do crédito fiscal

3(após a oitiva do demandante) .Com inegável inspiração na lei reformadora supracitada,

em 2006 a Lei 11.280/06 revogou o art. 194 do Código Civil de 2002, que restringia a possibilidade de reconhecimento ex officio da prescrição aos casos em que favorecesse absolutamente incapaz e, ao mesmo tempo, alterou a redação do § 5º do art. 219 do Código de Processo Civil, para estabelecer que “o juiz pronunciará, de

2

2

3 “Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato” (art. 40, § 4º, da Lei 6.830/80).

Idem à nota supracitada.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200822

ofício, a prescrição”.Assim que este novel preceptivo entrou em vigor, não

faltou quem fizesse observações desta ordem:

não mais ficará restringido o órgão judiciário na aplicação da lei ao caso concreto. Assim, o reconhecimento da prescrição pelo juiz deve ocorrer em todo e qualquer caso. Tal mudança de paradigma vem a satisfazer dois dos mais importantes princípios regentes do processo civil moderno, quais sejam, a celeridade e a eficiência. (ARAPIRACA, 2007, s/p)

Apesar de aparentemente correta a citação acima, de antemão deve-se anunciar um problema causado pela “avalanche legislativa” sobre o instituto da prescrição. Não obstante tenha o legislador dado ao magistrado o poder de conhecer de ofício a prescrição, este mesmo legislador “não retirou do devedor a faculdade de a ela renunciar. Isto torna o direito civil brasileiro, em matéria de prescrição, absolutamente incoerente e, por isso mesmo, assistemático” (CÂMARA, 2007, s/p).

Como se sabe, o art. 191 do Código Civil permite expressamente a possibilidade de renúncia tácita da prescrição. Debruçando-se sobre o dispositivo em comento, a melhor doutrina indica que a não-argüição da prescrição consumada é uma forma

4de renúncia (tácita). Assim, estabelece-se o impasse: de um lado a lei permite ao demandado renunciar a prescrição operada em seu favor. De outra banda, o novo regime da prescrição dá ao juiz o

5poder de reconhecê-la de ofício. Como resolver a celeuma?

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 23

4 Nesse sentido: Câmara (op. cit.), Didier Júnior, Jorge e Rodrigues (op. cit., p. 41) e Theodoro Júnior (2003, p. 213).5 “Um ordenamento jurídico, portanto, deve ser um sistema coerente, o que exige congruência entre as normas que o compõem. Ora, se o direito brasileiro passa a admitir que o juiz conheça de ofício da prescrição, mas continua a admitir que a mesma seja objeto de renúncia, desaparece a coerência interna do sistema, o que é criticável sob todos os aspectos. É, pois, absolutamente inaceitável que se dê ao julgador o poder de reconhecer de ofício a prescrição se o prescribente a ela pode renunciar. E cabe ao jurista denunciar essa incoerência interna do ordenamento jurídico, que o torna assistemático” (CÂMARA, op. cit.).

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afirmação de um direito material que se almejava fosse admitido pelo Judiciário (é a opinião de ter direito ).

Nessa senda, vale repisar que, pela opção legislativa brasileira, a prescrição não fulmina a existência do direito subjetivo. Assim, embora elimine a pretensão, o direito material em si restará intacto (“não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita” – art. 882 do Código Civil), destarte, pode-se concluir: quem paga dívida prescrita, paga o que deve!

Fixados esses pontos iniciais, importa referenciar que, na vigência do Código Civil de 1916, permitia-se o conhecimento ex officio da prescrição de direitos não-patrimoniais: “Sucede que não havia prazo de prescrição de direitos não-patrimoniais, que ou são potestativos (e, portanto, submetidos a prazo decadencial) ou são imprescritíveis (como os personalíssimos)”. Ou seja, objetivamente, pode-se afirmar que mesmo na vigência do Código revogado a prescrição era sempre de ordem patrimonial (DIDIER JÚNIOR, JORGE e RODRIGUES, 2006, p. 39).

Por sua vez, o atual Código Civil, não se utilizando da inconveniente dicotomia direitos patrimoniais/direitos não-patrimoniais, estabeleceu a possibilidade de esta ser conhecida de ofício pelo magistrado sempre que viesse a beneficiar absolutamente incapaz.

No caminhar dessa progressão legislativa sobre o tema em comento, a Lei 11.051/04 alterou a Lei de Execução Fiscal para permitir o conhecimento ex officio da prescrição do crédito fiscal

3(após a oitiva do demandante) .Com inegável inspiração na lei reformadora supracitada,

em 2006 a Lei 11.280/06 revogou o art. 194 do Código Civil de 2002, que restringia a possibilidade de reconhecimento ex officio da prescrição aos casos em que favorecesse absolutamente incapaz e, ao mesmo tempo, alterou a redação do § 5º do art. 219 do Código de Processo Civil, para estabelecer que “o juiz pronunciará, de

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3 “Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato” (art. 40, § 4º, da Lei 6.830/80).

Idem à nota supracitada.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200822

ofício, a prescrição”.Assim que este novel preceptivo entrou em vigor, não

faltou quem fizesse observações desta ordem:

não mais ficará restringido o órgão judiciário na aplicação da lei ao caso concreto. Assim, o reconhecimento da prescrição pelo juiz deve ocorrer em todo e qualquer caso. Tal mudança de paradigma vem a satisfazer dois dos mais importantes princípios regentes do processo civil moderno, quais sejam, a celeridade e a eficiência. (ARAPIRACA, 2007, s/p)

Apesar de aparentemente correta a citação acima, de antemão deve-se anunciar um problema causado pela “avalanche legislativa” sobre o instituto da prescrição. Não obstante tenha o legislador dado ao magistrado o poder de conhecer de ofício a prescrição, este mesmo legislador “não retirou do devedor a faculdade de a ela renunciar. Isto torna o direito civil brasileiro, em matéria de prescrição, absolutamente incoerente e, por isso mesmo, assistemático” (CÂMARA, 2007, s/p).

Como se sabe, o art. 191 do Código Civil permite expressamente a possibilidade de renúncia tácita da prescrição. Debruçando-se sobre o dispositivo em comento, a melhor doutrina indica que a não-argüição da prescrição consumada é uma forma

4de renúncia (tácita). Assim, estabelece-se o impasse: de um lado a lei permite ao demandado renunciar a prescrição operada em seu favor. De outra banda, o novo regime da prescrição dá ao juiz o

5poder de reconhecê-la de ofício. Como resolver a celeuma?

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 23

4 Nesse sentido: Câmara (op. cit.), Didier Júnior, Jorge e Rodrigues (op. cit., p. 41) e Theodoro Júnior (2003, p. 213).5 “Um ordenamento jurídico, portanto, deve ser um sistema coerente, o que exige congruência entre as normas que o compõem. Ora, se o direito brasileiro passa a admitir que o juiz conheça de ofício da prescrição, mas continua a admitir que a mesma seja objeto de renúncia, desaparece a coerência interna do sistema, o que é criticável sob todos os aspectos. É, pois, absolutamente inaceitável que se dê ao julgador o poder de reconhecer de ofício a prescrição se o prescribente a ela pode renunciar. E cabe ao jurista denunciar essa incoerência interna do ordenamento jurídico, que o torna assistemático” (CÂMARA, op. cit.).

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Cremos que a situação deve ser divisada em dois momentos distintos, da seguinte forma: antes e depois da citação do réu. Explica-se.

Levando-se em conta a regra impeditiva do pedido de repetição do que se pagou para solver dívida prescrita e, também, a possibilidade de haver renúncia tácita à prescrição, o magistrado somente poderá reconhecê-la de ofício, se quiser respeitar toda a sistematização que envolve o tema (o que se presume), antes de ordenar a citação do demandado (posto que, nesse momento, não

6terá havido renúncia tácita pelo silêncio deste) .Operada a citação, o juiz deverá aguardar a alegação do

réu (que tem a faculdade de renunciar), ou, quando muito, “suscitar” de ofício a prescrição (“lembrar” os litigantes sobre a consumação desta), determinando às partes que se manifestem sobre a mesma (no prazo de 5 dias – art. 185 do Código de Processo Civil). Nesse caso, o demandado poderá manifestar-se pela ocorrência da prescrição (art. 269, IV, do Código de Processo Civil); manifestar-se “contrariamente” a esta (com o prosseguimento do processo – renúncia expressa) ou, ainda, simplesmente permanecer silente, hipótese que configurará renúncia tácita à prescrição (fato que impedirá o juiz de

7pronunciar ex officio a causa extintiva do processo) .Em linhas conclusivas, calha ressaltar que nada obstante

o legislador não tenha feito constar do novo § 5º do art. 219 do Estatuto Processual Civil a mesma ressalva existente no § 4º do artigo 40 da Lei de Execução Fiscal, no sentido de intimar o autor antes de pronunciar a prescrição, convém que esta providência seja adotada quando da verificação prima facie de sua consumação, mesmo fora dos casos atinentes à legislação especial. Esta postura, inegavelmente, caminha na direção do ideal processo cooperativo e revela estrita observância ao postulado do contraditório.

6

determina ao juiz o reconhecimento de ofício da prescrição, não retira do devedor a possibilidade de renúncia admitida no art. 191 do texto codificado” (Enunciado nº 295 da 4ª Jornada de Direito Civil, grifos meus).7 Nessa linha de entendimento: Didier Júnior, Jorge e Rodrigues, op. cit., p. 41-42.

“A revogação do art. 194 do Código Civil pela Lei n. 11.280/2006, que

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200824

Referências

ALVIM, A. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. São Paulo: RT, 1971. p. 394-397.

ARAPIRACA, C. J. de A. A Lei 11.280/06 e o reconhecimento de ofício da prescrição. Juris Plenum, Caxias do Sul, v. 1, n. 95, jul./ago. 2007. 2 CD-ROM.

CÂMARA, A. F. Reconhecimento de ofício da prescrição: uma r e f o r m a d e s c a b e ç a d a e i n ó c u a . D i s p o n í v e l e m : http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigosf/Camara_presc.doc. Acesso em: 2 mai. 2007.

DIDIER JÚNIOR, F.; JORGE, F. C. e RODRIGUES, M. A. A terceira etapa da reforma processual civil. São Paulo: Saraiva, 2006.

JDC (4ª Jornada de Direito Civil), Enunciados.

THEODORO JÚNIOR, H. Comentários ao Código Civil. v. 3, t. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 25

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Cremos que a situação deve ser divisada em dois momentos distintos, da seguinte forma: antes e depois da citação do réu. Explica-se.

Levando-se em conta a regra impeditiva do pedido de repetição do que se pagou para solver dívida prescrita e, também, a possibilidade de haver renúncia tácita à prescrição, o magistrado somente poderá reconhecê-la de ofício, se quiser respeitar toda a sistematização que envolve o tema (o que se presume), antes de ordenar a citação do demandado (posto que, nesse momento, não

6terá havido renúncia tácita pelo silêncio deste) .Operada a citação, o juiz deverá aguardar a alegação do

réu (que tem a faculdade de renunciar), ou, quando muito, “suscitar” de ofício a prescrição (“lembrar” os litigantes sobre a consumação desta), determinando às partes que se manifestem sobre a mesma (no prazo de 5 dias – art. 185 do Código de Processo Civil). Nesse caso, o demandado poderá manifestar-se pela ocorrência da prescrição (art. 269, IV, do Código de Processo Civil); manifestar-se “contrariamente” a esta (com o prosseguimento do processo – renúncia expressa) ou, ainda, simplesmente permanecer silente, hipótese que configurará renúncia tácita à prescrição (fato que impedirá o juiz de

7pronunciar ex officio a causa extintiva do processo) .Em linhas conclusivas, calha ressaltar que nada obstante

o legislador não tenha feito constar do novo § 5º do art. 219 do Estatuto Processual Civil a mesma ressalva existente no § 4º do artigo 40 da Lei de Execução Fiscal, no sentido de intimar o autor antes de pronunciar a prescrição, convém que esta providência seja adotada quando da verificação prima facie de sua consumação, mesmo fora dos casos atinentes à legislação especial. Esta postura, inegavelmente, caminha na direção do ideal processo cooperativo e revela estrita observância ao postulado do contraditório.

6

determina ao juiz o reconhecimento de ofício da prescrição, não retira do devedor a possibilidade de renúncia admitida no art. 191 do texto codificado” (Enunciado nº 295 da 4ª Jornada de Direito Civil, grifos meus).7 Nessa linha de entendimento: Didier Júnior, Jorge e Rodrigues, op. cit., p. 41-42.

“A revogação do art. 194 do Código Civil pela Lei n. 11.280/2006, que

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Referências

ALVIM, A. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. São Paulo: RT, 1971. p. 394-397.

ARAPIRACA, C. J. de A. A Lei 11.280/06 e o reconhecimento de ofício da prescrição. Juris Plenum, Caxias do Sul, v. 1, n. 95, jul./ago. 2007. 2 CD-ROM.

CÂMARA, A. F. Reconhecimento de ofício da prescrição: uma r e f o r m a d e s c a b e ç a d a e i n ó c u a . D i s p o n í v e l e m : http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigosf/Camara_presc.doc. Acesso em: 2 mai. 2007.

DIDIER JÚNIOR, F.; JORGE, F. C. e RODRIGUES, M. A. A terceira etapa da reforma processual civil. São Paulo: Saraiva, 2006.

JDC (4ª Jornada de Direito Civil), Enunciados.

THEODORO JÚNIOR, H. Comentários ao Código Civil. v. 3, t. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 25

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200826

Resumo:O presente estudo discorre acerca do direito à saúde nos municípios brasileiros e o abuso por parte de prefeitos municipais que retardam o repasse das verbas para a Secretaria ou Fundos Municipais de Saúde e as nefastas conseqüências para a população. Diante do problema, à luz do estudo do financiamento da saúde pública nos municípios, do princípio da dignidade da pessoa humana, do direito à vida e do princípio da máxima efetividade da constituição, exige-se que o repasse das verbas municipais para a área da saúde se faça diária e automaticamente. Noticia decisão do Poder Judiciário em Goiás nesse sentido e exorta a atuação do Ministério Público e de outros atores sociais para a perseguição de tal conquista em todos os municípios brasileiros. Noticia também meios operacionais disponíveis.

Palavras-chave: Direito à Saúde, Financiamento da Saúde Pública, Emenda Constitucional 29, Efetividade de Direitos Fundamentais, Ministério Público.

Colocação do problema

A ga ran t i a do Di re i to à Saúde , p rev i s to constitucionalmente, ganhou efetivo implemento com a promulgação da Emenda Constitucional 29, de 13 de setembro de 2000. Por ela, os Municípios tornaram-se obrigados a reverter um percentual determinado de um conjunto de impostos para o financiamento das ações de saúde em seu território. A partir de 2004 tal percentual é de quinze por cento.

Entretanto, em muitos municípios não há regularidade

O REPASSE AUTOMÁTICO DAS VERBAS AO SUS

PELOS MUNICÍPIOS EM RESPEITO À

CONSTITUIÇÃO / EMENDA 29/2000*Reuder Cavalcante Motta

* Promotor de Justiça em Goiás.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 27

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200826

Resumo:O presente estudo discorre acerca do direito à saúde nos municípios brasileiros e o abuso por parte de prefeitos municipais que retardam o repasse das verbas para a Secretaria ou Fundos Municipais de Saúde e as nefastas conseqüências para a população. Diante do problema, à luz do estudo do financiamento da saúde pública nos municípios, do princípio da dignidade da pessoa humana, do direito à vida e do princípio da máxima efetividade da constituição, exige-se que o repasse das verbas municipais para a área da saúde se faça diária e automaticamente. Noticia decisão do Poder Judiciário em Goiás nesse sentido e exorta a atuação do Ministério Público e de outros atores sociais para a perseguição de tal conquista em todos os municípios brasileiros. Noticia também meios operacionais disponíveis.

Palavras-chave: Direito à Saúde, Financiamento da Saúde Pública, Emenda Constitucional 29, Efetividade de Direitos Fundamentais, Ministério Público.

Colocação do problema

A ga ran t i a do Di re i to à Saúde , p rev i s to constitucionalmente, ganhou efetivo implemento com a promulgação da Emenda Constitucional 29, de 13 de setembro de 2000. Por ela, os Municípios tornaram-se obrigados a reverter um percentual determinado de um conjunto de impostos para o financiamento das ações de saúde em seu território. A partir de 2004 tal percentual é de quinze por cento.

Entretanto, em muitos municípios não há regularidade

O REPASSE AUTOMÁTICO DAS VERBAS AO SUS

PELOS MUNICÍPIOS EM RESPEITO À

CONSTITUIÇÃO / EMENDA 29/2000*Reuder Cavalcante Motta

* Promotor de Justiça em Goiás.

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nos repasses. Observa-se a retenção deliberada e o retardamento do repasse de recursos da Saúde, em atitude ordenada e respaldada pelos Prefeitos Municipais para que estes sejam aplicados em outras áreas ao talante de seus arbitrários entendimentos.

Com a retenção, os Fundos Municipais de Saúde trabalham apenas com os recursos repassados pelo Fundo Nacional de Saúde que, como se sabe, destina recursos a programas específicos de forma vinculada. Em conseqüência, os problemas na saúde pública se intensificam. Os atendimentos se tornam precários, parte dos serviços de saúde deixam de ser oferecidos, os pacientes carentes sofrem com constrangimentos e são ofendidos em sua dignidade de pessoas. Sob a ótica da gestão dos recursos da saúde, a atitude implica na impossibilidade de planejamento das ações de Saúde e, em especial, na impossibilidade de realização de compras mais otimizadas que pudessem trazer economia ao erário.

Sob o precário argumento de não haver previsão legislativa expressa de quando deveriam ser realizados os repasses da Saúde, os prefeitos se mantêm na ilícita conduta. Valem-se também do fato de que os Tribunais de Contas fazem análises dos Balanços Gerais anuais das Contas Públicas, só analisam e sancionam aqueles que não aplicaram o percentual mínimo em saúde e não se ocupam de analisar as datas dos repasses.

Sem sanções, os chefes dos executivos municipais se sentem à vontade para aplicar os recursos na área da saúde quando queiram, sendo comum que o façam já ao final do ano, realizando grandes compras sem qualquer planejamento e a preços elevados, tão somente para aplicarem o percentual mínimo exigido const i tuc ionalmente . Em sua defesa a legam uma “discricionariedade administrativa” que não guarda nenhuma

1relação com o moderno conceito contido no Direito Administrativo .

1

administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a solução vertente” (BANDEIRA DE MELO, 2000, p. 48).

“Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao

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Com o repasse automático das verbas municipais ao SUS, evitam-se os problemas acima, principalmente pelo melhor planejamento que proporcionam os gestores da saúde para implementação de programas e atividades, sem interrupções, ao longo do ano. Melhores rotinas de compras, por exemplo, que implicam em economia para o governo e ampliação do atendimento aos pacientes.

A atitude descrita dos Prefeitos é ilícita, e somente o repasse automático das verbas municipais ao SUS encontra respaldo constitucional e legal. Há meios operacionais para resolver o problema e há tutela jurídica para tal. É o que demonstraremos.

Da violação à Lei de Responsabilidade Fiscal

A Lei de Responsabilidade Fiscal, em suas disposições preliminares, enuncia o que é para o legislador a responsabilidade na gestão fiscal:

Lei Complementar 101, de 04/05/2000Art. 1º§ 1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade pessoal, da seguridade social e outras, dívida consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição de Restos a Pagar. (grifos meus)

A retenção e dilação na entrega dos recursos ao Fundo Municipal de Saúde constitui medida que ataca toda e qualquer possibilidade de realização de ação planejada por parte do Gestor de Saúde.

Não sabendo quanto ou quando irá receber as verbas destinadas à saúde, o Secretário de Saúde não tem como planejar e,

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nos repasses. Observa-se a retenção deliberada e o retardamento do repasse de recursos da Saúde, em atitude ordenada e respaldada pelos Prefeitos Municipais para que estes sejam aplicados em outras áreas ao talante de seus arbitrários entendimentos.

Com a retenção, os Fundos Municipais de Saúde trabalham apenas com os recursos repassados pelo Fundo Nacional de Saúde que, como se sabe, destina recursos a programas específicos de forma vinculada. Em conseqüência, os problemas na saúde pública se intensificam. Os atendimentos se tornam precários, parte dos serviços de saúde deixam de ser oferecidos, os pacientes carentes sofrem com constrangimentos e são ofendidos em sua dignidade de pessoas. Sob a ótica da gestão dos recursos da saúde, a atitude implica na impossibilidade de planejamento das ações de Saúde e, em especial, na impossibilidade de realização de compras mais otimizadas que pudessem trazer economia ao erário.

Sob o precário argumento de não haver previsão legislativa expressa de quando deveriam ser realizados os repasses da Saúde, os prefeitos se mantêm na ilícita conduta. Valem-se também do fato de que os Tribunais de Contas fazem análises dos Balanços Gerais anuais das Contas Públicas, só analisam e sancionam aqueles que não aplicaram o percentual mínimo em saúde e não se ocupam de analisar as datas dos repasses.

Sem sanções, os chefes dos executivos municipais se sentem à vontade para aplicar os recursos na área da saúde quando queiram, sendo comum que o façam já ao final do ano, realizando grandes compras sem qualquer planejamento e a preços elevados, tão somente para aplicarem o percentual mínimo exigido const i tuc ionalmente . Em sua defesa a legam uma “discricionariedade administrativa” que não guarda nenhuma

1relação com o moderno conceito contido no Direito Administrativo .

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administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a solução vertente” (BANDEIRA DE MELO, 2000, p. 48).

“Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao

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Com o repasse automático das verbas municipais ao SUS, evitam-se os problemas acima, principalmente pelo melhor planejamento que proporcionam os gestores da saúde para implementação de programas e atividades, sem interrupções, ao longo do ano. Melhores rotinas de compras, por exemplo, que implicam em economia para o governo e ampliação do atendimento aos pacientes.

A atitude descrita dos Prefeitos é ilícita, e somente o repasse automático das verbas municipais ao SUS encontra respaldo constitucional e legal. Há meios operacionais para resolver o problema e há tutela jurídica para tal. É o que demonstraremos.

Da violação à Lei de Responsabilidade Fiscal

A Lei de Responsabilidade Fiscal, em suas disposições preliminares, enuncia o que é para o legislador a responsabilidade na gestão fiscal:

Lei Complementar 101, de 04/05/2000Art. 1º§ 1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade pessoal, da seguridade social e outras, dívida consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição de Restos a Pagar. (grifos meus)

A retenção e dilação na entrega dos recursos ao Fundo Municipal de Saúde constitui medida que ataca toda e qualquer possibilidade de realização de ação planejada por parte do Gestor de Saúde.

Não sabendo quanto ou quando irá receber as verbas destinadas à saúde, o Secretário de Saúde não tem como planejar e,

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não tendo como planejar, não consegue também efetuar compras a preços mais vantajosos para a Administração. Afinal, fornecedores da cidade já sabem que vender para a Secretaria de Saúde é uma aventura, pois nunca recebem do Secretário de Saúde e de seus assessores informação sobre a data do pagamento. Por conseguinte, é de se esperar que estejam embutindo encargos financeiros elevados para compensar eventual atraso nos pagamentos. Violam-se, assim

2 3os princípios constitucionais da eficiência e da economicidade . Aumentam-se os custos para a Secretaria de Saúde, diminui-se o número de pessoas atendidas.

Da saúde como direito fundamental. Constituição e legislação infraconstitucional

O Preâmbulo da Carta Política de 1988 exalta o nosso Estado como destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e que tem como valores supremos a construção de uma sociedade fraterna em um Estado Democrático. O artigo 1º, inciso III, exorta a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos. O artigo 6º da Constituição inicia o capítulo dos Direitos Sociais elencando a saúde entre eles. O artigo 196 completa o conceito de Saúde como direito nos termos seguintes:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal igualitário às ações e os serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (grifos meus)

A prestação de serviços de Saúde Pública é explicitamente destacada como de relevância nos termos do artigo 197 da Carta Política de 1988. As linhas gerais do Sistema Único de Saúde estão compiladas no art. 198, da Carta Política de 1988,

2 Art. 37, caput da Constituição Federal de 1988.3 Art. 70, caput da Constituição Federal de 1988.

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estabelecendo o atendimento integral como uma de suas diretrizes.A Lei Federal n. 8080, Lei da Saúde, de 19 de setembro de

1990, contém a definição da saúde como direito fundamental: “Art. 2 – A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (grifos meus).

A Constituição da República, no parágrafo segundo do artigo 5º, afirma que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata”.

Os direitos fundamentais sociais ensejam a exigibilidade de prestações positivas do Estado consistente na atuação deste na efetiva entrega de um bem ou na satisfação de um interesse. O direito à saúde, após o direito à vida, é o que mais próximo está da efetiva garantia da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, a lição de Germano Schwartz (2001, p. 52): “A saúde é, senão o primeiro, um dos principais componentes da vida, seja como pressuposto indispensável à sua existência, seja como elemento agregado a sua qualidade. Assim, a saúde conecta ao direito à vida”.

Da responsabilidade de financiamento público da saúde na esfera de governo dos municípios

O financiamento das ações de Saúde ganhou relevante tratamento na Carta Política de 1988. Sobre o financiamento da Seguridade Social, definida como “o conjunto integrado de iniciativas dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (artigo 194 da CF 88), ficou disposto que “será financiada por toda sociedade de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios...” (artigo 195 da CF 88, grifos meus).

A Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990, foi a que primeiro utilizou a expressão “contrapartida de recursos municipais”, referindo-se à necessidade de que o Município passasse também a financiar as ações de saúde ao prescrever, em

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não tendo como planejar, não consegue também efetuar compras a preços mais vantajosos para a Administração. Afinal, fornecedores da cidade já sabem que vender para a Secretaria de Saúde é uma aventura, pois nunca recebem do Secretário de Saúde e de seus assessores informação sobre a data do pagamento. Por conseguinte, é de se esperar que estejam embutindo encargos financeiros elevados para compensar eventual atraso nos pagamentos. Violam-se, assim

2 3os princípios constitucionais da eficiência e da economicidade . Aumentam-se os custos para a Secretaria de Saúde, diminui-se o número de pessoas atendidas.

Da saúde como direito fundamental. Constituição e legislação infraconstitucional

O Preâmbulo da Carta Política de 1988 exalta o nosso Estado como destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e que tem como valores supremos a construção de uma sociedade fraterna em um Estado Democrático. O artigo 1º, inciso III, exorta a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos. O artigo 6º da Constituição inicia o capítulo dos Direitos Sociais elencando a saúde entre eles. O artigo 196 completa o conceito de Saúde como direito nos termos seguintes:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal igualitário às ações e os serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (grifos meus)

A prestação de serviços de Saúde Pública é explicitamente destacada como de relevância nos termos do artigo 197 da Carta Política de 1988. As linhas gerais do Sistema Único de Saúde estão compiladas no art. 198, da Carta Política de 1988,

2 Art. 37, caput da Constituição Federal de 1988.3 Art. 70, caput da Constituição Federal de 1988.

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estabelecendo o atendimento integral como uma de suas diretrizes.A Lei Federal n. 8080, Lei da Saúde, de 19 de setembro de

1990, contém a definição da saúde como direito fundamental: “Art. 2 – A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (grifos meus).

A Constituição da República, no parágrafo segundo do artigo 5º, afirma que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata”.

Os direitos fundamentais sociais ensejam a exigibilidade de prestações positivas do Estado consistente na atuação deste na efetiva entrega de um bem ou na satisfação de um interesse. O direito à saúde, após o direito à vida, é o que mais próximo está da efetiva garantia da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, a lição de Germano Schwartz (2001, p. 52): “A saúde é, senão o primeiro, um dos principais componentes da vida, seja como pressuposto indispensável à sua existência, seja como elemento agregado a sua qualidade. Assim, a saúde conecta ao direito à vida”.

Da responsabilidade de financiamento público da saúde na esfera de governo dos municípios

O financiamento das ações de Saúde ganhou relevante tratamento na Carta Política de 1988. Sobre o financiamento da Seguridade Social, definida como “o conjunto integrado de iniciativas dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (artigo 194 da CF 88), ficou disposto que “será financiada por toda sociedade de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios...” (artigo 195 da CF 88, grifos meus).

A Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990, foi a que primeiro utilizou a expressão “contrapartida de recursos municipais”, referindo-se à necessidade de que o Município passasse também a financiar as ações de saúde ao prescrever, em

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seu artigo 4º, inciso VII, que os Municípios deveriam contar com “contrapartida de recursos para a saúde no respectivo orçamento”.

Entretanto, sem que houvesse uma definição dos percentuais das rendas municipais que vinculassem o financiamento das rendas municipais para as áreas da saúde, inúmeros municípios prestavam serviços de saúde tão-somente com as verbas de repasses automáticos entre os Fundos Nacional e Estadual e o Fundo Municipal, em programas específicos.

Após longa tramitação, em 13 de setembro de 2000 o Congresso Nacional promulgou a EC 29/2000, que trouxe significativas modificações no financiamento das ações de Saúde nas três esferas do governo. O artigo 6º da Emenda Constitucional 29/2000 passou a contar com a seguinte redação, in verbis:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;[...]§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre:[...]III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:I - os percentuais de que trata o § 2º;[...]

Como se vê, o percentual das rendas municipais a ser destinado à saúde ficou pendente de Lei Complementar. Porém, o legislador, no uso do Poder Constituinte Derivado, inovou também no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu artigo 77, antevendo, com sabedoria, a demora na criação da referida Lei

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200832

Complementar (ainda não criada). A nova redação do artigo 77 do ADCT é a seguinte:

Art. 77. Até o exercício financeiro de 2004, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de saúde serão equivalentes:[...]III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, quinze por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.[...]§ 4º Na ausência da lei complementar a que se refere o art. 198, § 3º, a partir do exercício financeiro de 2005, aplicar-se-á à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o disposto neste artigo. (grifos meus)

As fontes de recursos previstas para o financiamento na esfera dos municípios, de acordo com os artigos acima enunciados são, a partir de 2004, de 15% dos seguintes tributos, conforme Resolução n. 316, de 4 de abril de 2002, do Conselho Nacional de Saúde: Total das receitas de impostos municipais de ISS, IPTU, ITBI; (+) Receitas de transferências da União: Quota-Parte do FPM, Quota-Parte do ITR, Quota-Parte da Lei Complementar n. 87/96 (Lei Kandir); (+) Imposto de Renda Retido na Fonte – IRRF; (+) Receitas de transferências do Estado: Quota-Parte do ICMS, Quota-Parte do IPVA, Quota-Parte do IPI – Exportação, (+) Outras Receitas Correntes: Receita da Dívida Ativa Tributária de Impostos, Multas, Juros de Mora e Correção Monetária (=) Base de Cálculo Municipal.

No relatório final da XI Conferência Nacional de Saúde constou o entendimento dominante de que, apesar de não atender plenamente os anseios dos sanitaristas, a Emenda Constitucional constituía avanço social para as ações na área da Saúde (TOJAL e ARANHA, 2002). Em artigo, Eduardo Jorge e Roberto Gouveia (2002) enunciavam os ganhos esperados que a Emenda Constitucional 29/2000 representava ao país. Destacamos, dentre os outros, os dois abaixo:

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seu artigo 4º, inciso VII, que os Municípios deveriam contar com “contrapartida de recursos para a saúde no respectivo orçamento”.

Entretanto, sem que houvesse uma definição dos percentuais das rendas municipais que vinculassem o financiamento das rendas municipais para as áreas da saúde, inúmeros municípios prestavam serviços de saúde tão-somente com as verbas de repasses automáticos entre os Fundos Nacional e Estadual e o Fundo Municipal, em programas específicos.

Após longa tramitação, em 13 de setembro de 2000 o Congresso Nacional promulgou a EC 29/2000, que trouxe significativas modificações no financiamento das ações de Saúde nas três esferas do governo. O artigo 6º da Emenda Constitucional 29/2000 passou a contar com a seguinte redação, in verbis:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;[...]§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre:[...]III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:I - os percentuais de que trata o § 2º;[...]

Como se vê, o percentual das rendas municipais a ser destinado à saúde ficou pendente de Lei Complementar. Porém, o legislador, no uso do Poder Constituinte Derivado, inovou também no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu artigo 77, antevendo, com sabedoria, a demora na criação da referida Lei

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Complementar (ainda não criada). A nova redação do artigo 77 do ADCT é a seguinte:

Art. 77. Até o exercício financeiro de 2004, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de saúde serão equivalentes:[...]III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, quinze por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.[...]§ 4º Na ausência da lei complementar a que se refere o art. 198, § 3º, a partir do exercício financeiro de 2005, aplicar-se-á à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o disposto neste artigo. (grifos meus)

As fontes de recursos previstas para o financiamento na esfera dos municípios, de acordo com os artigos acima enunciados são, a partir de 2004, de 15% dos seguintes tributos, conforme Resolução n. 316, de 4 de abril de 2002, do Conselho Nacional de Saúde: Total das receitas de impostos municipais de ISS, IPTU, ITBI; (+) Receitas de transferências da União: Quota-Parte do FPM, Quota-Parte do ITR, Quota-Parte da Lei Complementar n. 87/96 (Lei Kandir); (+) Imposto de Renda Retido na Fonte – IRRF; (+) Receitas de transferências do Estado: Quota-Parte do ICMS, Quota-Parte do IPVA, Quota-Parte do IPI – Exportação, (+) Outras Receitas Correntes: Receita da Dívida Ativa Tributária de Impostos, Multas, Juros de Mora e Correção Monetária (=) Base de Cálculo Municipal.

No relatório final da XI Conferência Nacional de Saúde constou o entendimento dominante de que, apesar de não atender plenamente os anseios dos sanitaristas, a Emenda Constitucional constituía avanço social para as ações na área da Saúde (TOJAL e ARANHA, 2002). Em artigo, Eduardo Jorge e Roberto Gouveia (2002) enunciavam os ganhos esperados que a Emenda Constitucional 29/2000 representava ao país. Destacamos, dentre os outros, os dois abaixo:

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2. Permitirá uma previsibilidade de recursos. As autoridades sanitárias poderão, pela primeira vez, fazer um planejamento de gastos com pessoal, investimentos e programas, o que era impossível até hoje, dadas as variações bruscas orçamentárias de um ano para o outro.3. Acaba a “gangorra orçamentária”. Quando um nível de governo aumentava, o outro diminuía. Por Exemplo: subiam os gastos municipais e desciam os estaduais. (JORGE e GOUVEIA, 2002, p. 235, grifos meus)

Como se viu, a Emenda Constitucional 29/2000 constituiu um grande avanço para o Sistema Único de Saúde, conquista que foi fruto de muita mobilização e idealismo de sanitaristas de todo Brasil. Razão suficiente para que se lute por sua efetividade.

As previsões de Eduardo Jorge e Roberto Gouveia (2002), destacadas no trecho acima, não se efetivam quando a prática ilícita destacada no início deste artigo é levada a efeito pelos Prefeitos como vimos. Há muitos anos tramita no Congresso Nacional projeto de lei para a regulamentação da forma, modo e tempo da realização dos repasses, contudo, para decepção dos sanitaristas tramita de maneira lenta, sem haver perspectivas de quando surgirá no ordenamento jurídico tal lei. Embora desejável, entendemos que tal lei é prescindível.

Da previsão legislativa do repasse automático de recursos da saúde na esfera federal

A Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) prevê a imediata distribuição da receita arrecadada ao Fundo Nacional de Saúde. Em seu art. 34 se lê que “As autoridades responsáveis pela distribuição da receita efetivamente arrecadada transferirão automaticamente ao Fundo Nacional de Saúde (FNS)” (grifos meus).

Na mesma linha de propósitos a Lei 8.142 prevê a obrigatoriedade de o Gestor Único Federal passar recursos a Estados e Municípios de forma direta e automática. Confira seu art. 3º, que reza que “Os recursos referidos no inciso IV do art. 2º desta lei serão repassados de forma regular e automática para

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Municípios, Estados e Distrito Federal” .Questiona-se por que as autoridades federais estão

obrigadas a repassar automaticamente os recursos para o Fundo Nacional de Saúde e, da mesma forma, o Gestor Único Federal do SUS está obrigado a repassar automaticamente os recursos para os programas de Saúde. Não estariam também os responsáveis pela arrecadação de Impostos nos Estados e nos Municípios obrigados a fazê-lo? E também automaticamente?

Ousamos inferir que, de maneira análoga ao princípio da simetria com o centro, previsto no artigo 25 da Constituição Federal, em se tratando de ações na área de Saúde, não podem Estados e Municípios adotarem condutas divergentes daquelas da esfera federal, até mesmo para garantia da harmonia do sistema único de saúde.

Da correta interpretação da emenda constitucional 29/2000

Para enfrentar o problema apresentado, mister se faz que se proceda a uma interpretação a partir da Constituição.

Há princípios de interpretação constitucional já consagrados na doutrina que funcionam como condicionantes da interpretação constitucional. Celso Ribeiro Bastos (1997, p. 100) explica que tais princípios de interpretação constitucional, a que chama de postulados constitucionais,

[s]ão uma série de regras que os autores que tratam do Direito Constitucional atualmente seguem. Extrai-se mais da experiência, da lógica, da evolução histórica, do surgimento e do desenvolvimento do próprio constitucionalismo. São postulados, axiomas que se caracterizam pelo aspecto cogente com que se apresentam ao intérprete.

Para o interesse do caso em tela, destacamos o princípio da máxima efetividade. Conforme Canotilho (1997, p. 1208), ele pode ser formulado da seguinte maneira:

(grifo meu)

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2. Permitirá uma previsibilidade de recursos. As autoridades sanitárias poderão, pela primeira vez, fazer um planejamento de gastos com pessoal, investimentos e programas, o que era impossível até hoje, dadas as variações bruscas orçamentárias de um ano para o outro.3. Acaba a “gangorra orçamentária”. Quando um nível de governo aumentava, o outro diminuía. Por Exemplo: subiam os gastos municipais e desciam os estaduais. (JORGE e GOUVEIA, 2002, p. 235, grifos meus)

Como se viu, a Emenda Constitucional 29/2000 constituiu um grande avanço para o Sistema Único de Saúde, conquista que foi fruto de muita mobilização e idealismo de sanitaristas de todo Brasil. Razão suficiente para que se lute por sua efetividade.

As previsões de Eduardo Jorge e Roberto Gouveia (2002), destacadas no trecho acima, não se efetivam quando a prática ilícita destacada no início deste artigo é levada a efeito pelos Prefeitos como vimos. Há muitos anos tramita no Congresso Nacional projeto de lei para a regulamentação da forma, modo e tempo da realização dos repasses, contudo, para decepção dos sanitaristas tramita de maneira lenta, sem haver perspectivas de quando surgirá no ordenamento jurídico tal lei. Embora desejável, entendemos que tal lei é prescindível.

Da previsão legislativa do repasse automático de recursos da saúde na esfera federal

A Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) prevê a imediata distribuição da receita arrecadada ao Fundo Nacional de Saúde. Em seu art. 34 se lê que “As autoridades responsáveis pela distribuição da receita efetivamente arrecadada transferirão automaticamente ao Fundo Nacional de Saúde (FNS)” (grifos meus).

Na mesma linha de propósitos a Lei 8.142 prevê a obrigatoriedade de o Gestor Único Federal passar recursos a Estados e Municípios de forma direta e automática. Confira seu art. 3º, que reza que “Os recursos referidos no inciso IV do art. 2º desta lei serão repassados de forma regular e automática para

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Municípios, Estados e Distrito Federal” .Questiona-se por que as autoridades federais estão

obrigadas a repassar automaticamente os recursos para o Fundo Nacional de Saúde e, da mesma forma, o Gestor Único Federal do SUS está obrigado a repassar automaticamente os recursos para os programas de Saúde. Não estariam também os responsáveis pela arrecadação de Impostos nos Estados e nos Municípios obrigados a fazê-lo? E também automaticamente?

Ousamos inferir que, de maneira análoga ao princípio da simetria com o centro, previsto no artigo 25 da Constituição Federal, em se tratando de ações na área de Saúde, não podem Estados e Municípios adotarem condutas divergentes daquelas da esfera federal, até mesmo para garantia da harmonia do sistema único de saúde.

Da correta interpretação da emenda constitucional 29/2000

Para enfrentar o problema apresentado, mister se faz que se proceda a uma interpretação a partir da Constituição.

Há princípios de interpretação constitucional já consagrados na doutrina que funcionam como condicionantes da interpretação constitucional. Celso Ribeiro Bastos (1997, p. 100) explica que tais princípios de interpretação constitucional, a que chama de postulados constitucionais,

[s]ão uma série de regras que os autores que tratam do Direito Constitucional atualmente seguem. Extrai-se mais da experiência, da lógica, da evolução histórica, do surgimento e do desenvolvimento do próprio constitucionalismo. São postulados, axiomas que se caracterizam pelo aspecto cogente com que se apresentam ao intérprete.

Para o interesse do caso em tela, destacamos o princípio da máxima efetividade. Conforme Canotilho (1997, p. 1208), ele pode ser formulado da seguinte maneira:

(grifo meu)

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a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais [...] sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve-se preferir-se a interpretação que maior eficácia reconheça aos direitos fundamentais).

João Pedro Gebran Neto (2002, p. 124) citando Enterría ensina:

Os atos jurídicos comportam análise segundo sua existência, validade e eficácia. Essa última, que interessa sobremaneira ao tema, consiste na aptidão para produzir os efeitos desejados. Não se insere no seu âmbito verificar se tais efeitos realmente se produzem. É nesse plano que vai se encontrar a efetividade ou eficácia social da norma. Segundo Enterria, efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.

Sobre o princípio leciona Inocêncio Mártires Coelho (2003, p. 137):

O cânone hermenêutico-constitucional da máxima efetividade orienta os aplicadores da lei maior para que interpretem as suas normas em ordem de otimizar-lhes a eficácia, mas sem alterar o conteúdo. De igual modo, veicula um apelo aos realizadores da constituição para que em toda hermenêutica, sobretudo em sede de direitos fundamentais, procurem densificar os direitos, cujas normas, naturalmente abertas, são predispostas a interpretações expansivas.

Para Celso Ribeiro Bastos (1997, p. 105-106), “[...] o postulado da efetividade máxima possível, se traduz na preservação da carga material que cada norma possui, e que deve

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prevalecer, não sendo aceitável sua nulificação nem que parcial”.Há de se ter plena eficácia daquelas normas que garantem

o direito à saúde, de modo a permitir em plenitude que o fim pretendido pelo legislador seja alcançado.

Em obra pioneira nesse tema no Brasil, Luís Roberto Barroso (2003) tratou da efetividade das normas constitucionais. Segundo o mestre, a efetividade significa a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Por seu turno,

a efetividade das normas depende, em primeiro lugar da sua eficácia jurídica, da aptidão formal para incidir e reger situações da vida, operando seus efeitos que lhe são próprios. [...] Se o efeito jurídico pretendido pela norma for irrealizável, não há efetividade possível. Mas esta seria uma situação anômala em que o Direito, como criação racional e lógica, usualmente não incorreria. [...] o Direito existe para realizar-se. O Direito Constitucional não foge a este desígnio. (BARROSO, 2003)

Portanto, da lição de Luís Roberto Barroso concluímos que só a efetividade da norma e o efeito jurídico pretendido irrealizável é que não pode ser vindicada em favor de seu beneficiário às portas do Poder Judiciário. É o que se reafirma no trecho abaixo:

[...] direito é direito e, ao ângulo subjetivo, ele designa uma específica posição jurídica. Não pode o Poder Judiciário negar-lhe a tutela, quando requerida, sob o fundamento de ser um direito não exigível. [...] Logo, somente poderá o juiz negar-lhe o cumprimento coercitivo no caso de impossibilidade material evidente e demonstrável, pela utilização de uma interpretação sistemática influenciada pela teoria geral do Direito. Fundar-se-ia em um raciocínio estruturado de forma assemelhada a esta: a Constituição está no vértice do sistema jurídico. O sistema jurídico é um sistema lógico. Uma regra que preceitue um fato que de antemão se saiba irrealizável, viola a lógica do sistema. Não pode, portanto, integrá-lo validamente. (BARROSO, 2003, p. 116)

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a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais [...] sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve-se preferir-se a interpretação que maior eficácia reconheça aos direitos fundamentais).

João Pedro Gebran Neto (2002, p. 124) citando Enterría ensina:

Os atos jurídicos comportam análise segundo sua existência, validade e eficácia. Essa última, que interessa sobremaneira ao tema, consiste na aptidão para produzir os efeitos desejados. Não se insere no seu âmbito verificar se tais efeitos realmente se produzem. É nesse plano que vai se encontrar a efetividade ou eficácia social da norma. Segundo Enterria, efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.

Sobre o princípio leciona Inocêncio Mártires Coelho (2003, p. 137):

O cânone hermenêutico-constitucional da máxima efetividade orienta os aplicadores da lei maior para que interpretem as suas normas em ordem de otimizar-lhes a eficácia, mas sem alterar o conteúdo. De igual modo, veicula um apelo aos realizadores da constituição para que em toda hermenêutica, sobretudo em sede de direitos fundamentais, procurem densificar os direitos, cujas normas, naturalmente abertas, são predispostas a interpretações expansivas.

Para Celso Ribeiro Bastos (1997, p. 105-106), “[...] o postulado da efetividade máxima possível, se traduz na preservação da carga material que cada norma possui, e que deve

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prevalecer, não sendo aceitável sua nulificação nem que parcial”.Há de se ter plena eficácia daquelas normas que garantem

o direito à saúde, de modo a permitir em plenitude que o fim pretendido pelo legislador seja alcançado.

Em obra pioneira nesse tema no Brasil, Luís Roberto Barroso (2003) tratou da efetividade das normas constitucionais. Segundo o mestre, a efetividade significa a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Por seu turno,

a efetividade das normas depende, em primeiro lugar da sua eficácia jurídica, da aptidão formal para incidir e reger situações da vida, operando seus efeitos que lhe são próprios. [...] Se o efeito jurídico pretendido pela norma for irrealizável, não há efetividade possível. Mas esta seria uma situação anômala em que o Direito, como criação racional e lógica, usualmente não incorreria. [...] o Direito existe para realizar-se. O Direito Constitucional não foge a este desígnio. (BARROSO, 2003)

Portanto, da lição de Luís Roberto Barroso concluímos que só a efetividade da norma e o efeito jurídico pretendido irrealizável é que não pode ser vindicada em favor de seu beneficiário às portas do Poder Judiciário. É o que se reafirma no trecho abaixo:

[...] direito é direito e, ao ângulo subjetivo, ele designa uma específica posição jurídica. Não pode o Poder Judiciário negar-lhe a tutela, quando requerida, sob o fundamento de ser um direito não exigível. [...] Logo, somente poderá o juiz negar-lhe o cumprimento coercitivo no caso de impossibilidade material evidente e demonstrável, pela utilização de uma interpretação sistemática influenciada pela teoria geral do Direito. Fundar-se-ia em um raciocínio estruturado de forma assemelhada a esta: a Constituição está no vértice do sistema jurídico. O sistema jurídico é um sistema lógico. Uma regra que preceitue um fato que de antemão se saiba irrealizável, viola a lógica do sistema. Não pode, portanto, integrá-lo validamente. (BARROSO, 2003, p. 116)

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Marcos Masselli Gouvêa (2003), em obra doutrinária recente, atualizada com a melhor doutrina estrangeira e de densa qualidade em se tratando de direitos sociais, que os prefere nominar como direitos prestacionais, informa que o Supremo Tribunal Federal já deixou assentado que existem normas definidoras de direitos e garantias fundamentais mesmo fora ao elenco do artigo 5º da Constituição, inteligência da ADIN n. 939-7, P leno , Re l . Min . Sydney Sanches , DJ 18 /03 /94 (inconstitucionalidade da EC n. 3). Segundo o autor, a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento supra já se deu influenciada que fora aquela Corte Suprema “pela doutrina da pré-estatalidade dos direitos fundamentais” (op. cit., p. 99). “Portanto, na medida em que os direitos sociais forem fundamentais, valerá para eles a norma expressa que prevê aplicação imediata”.

Com fulcro nas lições acima, estrutura-se o raciocínio adiante.

Há consenso de que quando o constituinte determinou percentual certo de repasse por parte dos Municípios ao SUS visava melhorar o atendimento, garantir mais recursos para que o direito fundamental à saúde fosse exercido (a histórica luta dos sanitaristas nos informa). Impossível refutar que o quanto antes os recursos municipais chegarem ao SUS, melhor se atende às metas traçadas pelo constituinte. Portanto, na dúvida quanto ao momento do repasse, deve-se preferir a interpretação que dá maior eficácia ao direito à saúde, preferindo-se que o repasse seja imediato, pois desta forma se densifica o direito, realiza-se o direito à saúde de forma otimizada e de modo a conferir-lhe maior desempenho concreto em sua função social. O repasse automático seria também um direito fundamental do cidadão implícito no ato das disposições transitórias e de aplicação imediata, uma vez que ele reforça o direito à saúde expresso anteriormente na Constituição em vários locais, como se viu.

Se não se deve aceitar a nulificação sequer parcial da efetividade dos direitos fundamentais, não se deve aceitar um dia sequer de atraso nos repasses, eis que a cada dia de atraso violam-se direitos fundamentais de pacientes que minguam à espera de procedimentos médicos e medicamentos.

O atraso nos repasses das verbas para a Saúde viola o

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200838

direito à saúde dos cidadãos. Por conseguinte, a única interpretação para a Emenda Constitucional 29 que alcança a máxima efetividade de tal direito é aquela em que se determina que o repasse das verbas para a saúde seja imediato.

O princípio da máxima efetividade, ao qual foi dada maior ênfase na exposição acima, no caso em tela não entra em colisão com outros princípios hermenêutico-constitucionais. Ao contrário, reforça-se com o princípio da força normativa da Constituição e com o princípio da unidade da Constituição.

Não se olvide, ainda, uma das poucas regras de interpretação jurídica expressa em texto legislativo no Brasil, perfeitamente adequada ao caso, o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. O Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, prevê em seu artigo 5º que “Na aplicação da Lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Da decisão da justiça do Estado de Goiás

O Ministério Público do Estado de Goiás, por um de seus órgãos de execução na Comarca de Itumbiara, no ano de 2004 se viu diante do retardamento dos repasses para a área de saúde por parte do Prefeito Municipal da época. Diante da crise no atendimento à saúde da população, onde uma das causas fundamentais era o atraso nos repasses, por meio de ação civil pública, utilizando-se dos argumentos acima esposados, buscou a tutela jurisdicional para que os repasses à saúde se fizessem de forma automática – Autos 2004.011.3269, 2.ª Vara Cível da Comarca de Itumbiara.

O pedido encontrou acolhida do Juízo de primeiro grau, que proferiu decisão de antecipação dos efeitos da tutela, que, a posteriori, foi confirmada na sentença de mérito. Destaca-se, na decisão do insigne Juiz de Direito Doutor Fernando Mello Xavier,

Deixar os critérios de transferência dos recursos ao inteiro alvedrio do administrador, guiado, exclusivamente pela conveniência e oportunidade, não representa a melhor aplicação do direito.

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Marcos Masselli Gouvêa (2003), em obra doutrinária recente, atualizada com a melhor doutrina estrangeira e de densa qualidade em se tratando de direitos sociais, que os prefere nominar como direitos prestacionais, informa que o Supremo Tribunal Federal já deixou assentado que existem normas definidoras de direitos e garantias fundamentais mesmo fora ao elenco do artigo 5º da Constituição, inteligência da ADIN n. 939-7, P leno , Re l . Min . Sydney Sanches , DJ 18 /03 /94 (inconstitucionalidade da EC n. 3). Segundo o autor, a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento supra já se deu influenciada que fora aquela Corte Suprema “pela doutrina da pré-estatalidade dos direitos fundamentais” (op. cit., p. 99). “Portanto, na medida em que os direitos sociais forem fundamentais, valerá para eles a norma expressa que prevê aplicação imediata”.

Com fulcro nas lições acima, estrutura-se o raciocínio adiante.

Há consenso de que quando o constituinte determinou percentual certo de repasse por parte dos Municípios ao SUS visava melhorar o atendimento, garantir mais recursos para que o direito fundamental à saúde fosse exercido (a histórica luta dos sanitaristas nos informa). Impossível refutar que o quanto antes os recursos municipais chegarem ao SUS, melhor se atende às metas traçadas pelo constituinte. Portanto, na dúvida quanto ao momento do repasse, deve-se preferir a interpretação que dá maior eficácia ao direito à saúde, preferindo-se que o repasse seja imediato, pois desta forma se densifica o direito, realiza-se o direito à saúde de forma otimizada e de modo a conferir-lhe maior desempenho concreto em sua função social. O repasse automático seria também um direito fundamental do cidadão implícito no ato das disposições transitórias e de aplicação imediata, uma vez que ele reforça o direito à saúde expresso anteriormente na Constituição em vários locais, como se viu.

Se não se deve aceitar a nulificação sequer parcial da efetividade dos direitos fundamentais, não se deve aceitar um dia sequer de atraso nos repasses, eis que a cada dia de atraso violam-se direitos fundamentais de pacientes que minguam à espera de procedimentos médicos e medicamentos.

O atraso nos repasses das verbas para a Saúde viola o

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direito à saúde dos cidadãos. Por conseguinte, a única interpretação para a Emenda Constitucional 29 que alcança a máxima efetividade de tal direito é aquela em que se determina que o repasse das verbas para a saúde seja imediato.

O princípio da máxima efetividade, ao qual foi dada maior ênfase na exposição acima, no caso em tela não entra em colisão com outros princípios hermenêutico-constitucionais. Ao contrário, reforça-se com o princípio da força normativa da Constituição e com o princípio da unidade da Constituição.

Não se olvide, ainda, uma das poucas regras de interpretação jurídica expressa em texto legislativo no Brasil, perfeitamente adequada ao caso, o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. O Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, prevê em seu artigo 5º que “Na aplicação da Lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Da decisão da justiça do Estado de Goiás

O Ministério Público do Estado de Goiás, por um de seus órgãos de execução na Comarca de Itumbiara, no ano de 2004 se viu diante do retardamento dos repasses para a área de saúde por parte do Prefeito Municipal da época. Diante da crise no atendimento à saúde da população, onde uma das causas fundamentais era o atraso nos repasses, por meio de ação civil pública, utilizando-se dos argumentos acima esposados, buscou a tutela jurisdicional para que os repasses à saúde se fizessem de forma automática – Autos 2004.011.3269, 2.ª Vara Cível da Comarca de Itumbiara.

O pedido encontrou acolhida do Juízo de primeiro grau, que proferiu decisão de antecipação dos efeitos da tutela, que, a posteriori, foi confirmada na sentença de mérito. Destaca-se, na decisão do insigne Juiz de Direito Doutor Fernando Mello Xavier,

Deixar os critérios de transferência dos recursos ao inteiro alvedrio do administrador, guiado, exclusivamente pela conveniência e oportunidade, não representa a melhor aplicação do direito.

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Concordar com o argumento do requerido, no sentido de que o cumprimento do percentual do repasse somente deve ser avaliado ao final do exercício financeiro, seria admitir, por exemplo, que os recursos não fossem transferidos por vários meses, sendo posteriormente transferidos em maior volume para compensar o atraso.

Em face ao reexame necessário da decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, tendo por relator o Desembargador Carlos Escher confirmou, por unanimidade, a decisão do juízo a quo ressaltando que “O direito a saúde impõe, para sua efetivação, que os poderes públicos se abstenham da prática de atos obstaculizadores do exercício desse direito fundamental” – TJGO Autos 2006.0110.7572, 4.ª Câm. Cível, Vara Cível da Comarca de Itumbiara.

Dos meios operacionais

Embora não seja muito divulgado, o Banco do Brasil oferece gratuitamente aos administradores municipais o direito de utilização de um software (produto na linguagem bancária) capaz de realizar diariamente a transferência dos 15% das verbas da União para a conta do fundo municipal de saúde. Para tal, basta que o Prefeito assine contrato de adesão com a instituição, conhecido por todos os gerentes de agências.

Em referência às verbas do Estado que devem ser repassadas aos municípios para o fundo municipal de saúde, no caso do Estado de Goiás o Ministério Público conseguiu do Banco Itaú S.A. (qie é depositário das contas do Estado) que este desenvolvesse software com o mesmo fim. A cidade de Itumbiara-GO foi escolhida para o projeto piloto. Tal evidencia não haver empecilhos operacionais a outras instituições bancárias do país para que, também no tocante ao repasse das verbas dos Estados e dos Municípios que devam se dirigir à Saúde, estas possam também ser transferidas automaticamente.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200840

Da atuação do Ministério Público

O inciso II do artigo 129 da Carta Magna estabelece que é função do Ministério Público “ zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (grifos meus). A saúde pública foi o único serviço registrado como de relevância pública no texto constitucional, exsurgindo daí claramente a vontade do constituinte para que o Ministério Público a defendesse.

Diante dos interesses políticos e econômicos que a questão envolve, vislumbramos que o Ministério Público é a instituição melhor preparada para lutar com imparcialidade para que a busca pelo repasse imediato dos recursos dos Municípios para o financiamento das ações de saúde seja efetivada nos termos propostos, podendo-se valer das medidas necessárias e do esperado apoio dos Conselhos Municipais de Saúde.

Para alcançar a medida acima, o Ministério Público deve valer-se, inicialmente, dos institutos de solução extrajudiciais de conflitos coletivos, quais sejam o Termo de Ajustamento (art. 5º, §

46º, da Lei Federal 7.347) e a Recomendação com fixação de “prazo razoável para adoção das providências cabíveis” ou apresentação de justificativa da omissão (art. 27, IV da Lei 8.625/93 e art. 6º, XX da Lei Complementar 75/93 c/c art. 80 da Lei 8.625/93). Todavia, caso haja resistência em adotar-se a medida do repasse automático das verbas municipais para a área de saúde, entendemos que a tutela poderá ser alcançada judicialmente, conforme exemplo referido infra. Não se exclui, também, analisar se a conduta omissiva se faz de forma dolosa e em desvio de finalidade (o desatendimento à recomendação faz, em regra, prova

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 41

4 “A recomendação consiste em um ato formal não coercitivo dirigido ao investigado, no qual é expressamente traduzida a vontade da ordem jurídica pelo Ministério Público, que toma posição e sugere a realização de determinada conduta referente a um caso concreto, com o escopo de atingir finalidade de interesse público primário com propósito expresso ou subjacente na Constituição e nas leis” (GOMES, 2003, p. 237).

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Concordar com o argumento do requerido, no sentido de que o cumprimento do percentual do repasse somente deve ser avaliado ao final do exercício financeiro, seria admitir, por exemplo, que os recursos não fossem transferidos por vários meses, sendo posteriormente transferidos em maior volume para compensar o atraso.

Em face ao reexame necessário da decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, tendo por relator o Desembargador Carlos Escher confirmou, por unanimidade, a decisão do juízo a quo ressaltando que “O direito a saúde impõe, para sua efetivação, que os poderes públicos se abstenham da prática de atos obstaculizadores do exercício desse direito fundamental” – TJGO Autos 2006.0110.7572, 4.ª Câm. Cível, Vara Cível da Comarca de Itumbiara.

Dos meios operacionais

Embora não seja muito divulgado, o Banco do Brasil oferece gratuitamente aos administradores municipais o direito de utilização de um software (produto na linguagem bancária) capaz de realizar diariamente a transferência dos 15% das verbas da União para a conta do fundo municipal de saúde. Para tal, basta que o Prefeito assine contrato de adesão com a instituição, conhecido por todos os gerentes de agências.

Em referência às verbas do Estado que devem ser repassadas aos municípios para o fundo municipal de saúde, no caso do Estado de Goiás o Ministério Público conseguiu do Banco Itaú S.A. (qie é depositário das contas do Estado) que este desenvolvesse software com o mesmo fim. A cidade de Itumbiara-GO foi escolhida para o projeto piloto. Tal evidencia não haver empecilhos operacionais a outras instituições bancárias do país para que, também no tocante ao repasse das verbas dos Estados e dos Municípios que devam se dirigir à Saúde, estas possam também ser transferidas automaticamente.

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Da atuação do Ministério Público

O inciso II do artigo 129 da Carta Magna estabelece que é função do Ministério Público “ zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (grifos meus). A saúde pública foi o único serviço registrado como de relevância pública no texto constitucional, exsurgindo daí claramente a vontade do constituinte para que o Ministério Público a defendesse.

Diante dos interesses políticos e econômicos que a questão envolve, vislumbramos que o Ministério Público é a instituição melhor preparada para lutar com imparcialidade para que a busca pelo repasse imediato dos recursos dos Municípios para o financiamento das ações de saúde seja efetivada nos termos propostos, podendo-se valer das medidas necessárias e do esperado apoio dos Conselhos Municipais de Saúde.

Para alcançar a medida acima, o Ministério Público deve valer-se, inicialmente, dos institutos de solução extrajudiciais de conflitos coletivos, quais sejam o Termo de Ajustamento (art. 5º, §

46º, da Lei Federal 7.347) e a Recomendação com fixação de “prazo razoável para adoção das providências cabíveis” ou apresentação de justificativa da omissão (art. 27, IV da Lei 8.625/93 e art. 6º, XX da Lei Complementar 75/93 c/c art. 80 da Lei 8.625/93). Todavia, caso haja resistência em adotar-se a medida do repasse automático das verbas municipais para a área de saúde, entendemos que a tutela poderá ser alcançada judicialmente, conforme exemplo referido infra. Não se exclui, também, analisar se a conduta omissiva se faz de forma dolosa e em desvio de finalidade (o desatendimento à recomendação faz, em regra, prova

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4 “A recomendação consiste em um ato formal não coercitivo dirigido ao investigado, no qual é expressamente traduzida a vontade da ordem jurídica pelo Ministério Público, que toma posição e sugere a realização de determinada conduta referente a um caso concreto, com o escopo de atingir finalidade de interesse público primário com propósito expresso ou subjacente na Constituição e nas leis” (GOMES, 2003, p. 237).

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de tal). Acrescente-se que o repasse automático, conforme dito, expressa comando constitucional, é possível que tal conduta venha a ensejar, por essas duas condições, ato de improbidade por violação ao princípio da legalidade (art. 11º, caput e inciso II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício). Conforme o caso, ou melhor, conforme o descaso, a conduta pode importar ainda em ilícito criminal: prevaricação, prevista no artigo 319 do Código Penal.

Conclusão

Por violar direito fundamental do cidadão, a retenção e retardamento dos repasses de verbas municipais para os fundos municipais de saúde são condutas inconstitucionais e ilícitas, altamente prejudiciais à população e ao SUS. Somente o repasse diário e automático das verbas para a saúde alcança os princípios e objetivos da Carta Política de 1988. Tais desvios de conduta devem ser combatidos, notadamente pelo Ministério Público, em face à relevância social do tema. O Ministério Público dispõe de meios extrajudiciais para obtenção da medida legal, contudo, se necessário, é esperado que a tutela seja alcançada por meio da jurisdição.

Referências

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SANTOS, M. H. Coleção centros de apoio operacional, defesa do cidadão, manual da saúde. Goiânia: Ministério Público do Estado de Goiás, s/d.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 43

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de tal). Acrescente-se que o repasse automático, conforme dito, expressa comando constitucional, é possível que tal conduta venha a ensejar, por essas duas condições, ato de improbidade por violação ao princípio da legalidade (art. 11º, caput e inciso II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício). Conforme o caso, ou melhor, conforme o descaso, a conduta pode importar ainda em ilícito criminal: prevaricação, prevista no artigo 319 do Código Penal.

Conclusão

Por violar direito fundamental do cidadão, a retenção e retardamento dos repasses de verbas municipais para os fundos municipais de saúde são condutas inconstitucionais e ilícitas, altamente prejudiciais à população e ao SUS. Somente o repasse diário e automático das verbas para a saúde alcança os princípios e objetivos da Carta Política de 1988. Tais desvios de conduta devem ser combatidos, notadamente pelo Ministério Público, em face à relevância social do tema. O Ministério Público dispõe de meios extrajudiciais para obtenção da medida legal, contudo, se necessário, é esperado que a tutela seja alcançada por meio da jurisdição.

Referências

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 43

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SCHWARTZ, G. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

TOJAL, S. B. de B.; ARANHA, M. I. A (Orgs.). Manual conceitual do curso de Especialização em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília: UnB, 2002.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200844

Resumo:O processo judicial, em especial o processo judicial criminal, vem sendo comumente empregado como fonte da história. O presente artigo tem por escopo discutir o processo judicial sob outra perspectiva: o processo judicial enquanto instrumento de pesquisa histórica, destinado à construção do passado.

Palavras-chave: História, passado, processo.

Processo judicial e fonte da história

É corrente o uso de processos judiciais, especialmente processos judiciais criminais, como fonte da história. Sidney Chalhoub (1990), utilizando autos de processos criminais arquivados no Arquivo do Primeiro Tribunal do Júri da cidade do Rio de Janeiro, construiu a obra Visões da Liberdade – Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. Segundo o autor (idem, p. 16), “o historiador, portanto, através de um esforço minucioso de decodificação e contextualização de documentos, pode chegar a descobrir a 'dimensão social do pensamento'”.

Como destacado por Vellasco (2005),

a partir dos anos 80 começaram a surgir trabalhos, com inequívoco lastro empírico, cujas fontes eram exatamente processos criminais, ações de liberdade, livros de sentenças, enfim, a documentação produzida pelo sistema de justiça.

HISTÓRIA, PASSADO E PROCESSO – UM DIÁLOGO

SOBRE A CONSTRUÇÃO DO PASSADO ATRAVÉS

DO PROCESSO JUDICIAL*Mário Henrique Cardoso Caixeta

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), mestrando em História pela UCG e Promotor de Justiça de Rio Verde.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 45

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SCHWARTZ, G. Direito à saúde: efetivação de uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

TOJAL, S. B. de B.; ARANHA, M. I. A (Orgs.). Manual conceitual do curso de Especialização em Direito Sanitário para membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Brasília: UnB, 2002.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200844

Resumo:O processo judicial, em especial o processo judicial criminal, vem sendo comumente empregado como fonte da história. O presente artigo tem por escopo discutir o processo judicial sob outra perspectiva: o processo judicial enquanto instrumento de pesquisa histórica, destinado à construção do passado.

Palavras-chave: História, passado, processo.

Processo judicial e fonte da história

É corrente o uso de processos judiciais, especialmente processos judiciais criminais, como fonte da história. Sidney Chalhoub (1990), utilizando autos de processos criminais arquivados no Arquivo do Primeiro Tribunal do Júri da cidade do Rio de Janeiro, construiu a obra Visões da Liberdade – Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. Segundo o autor (idem, p. 16), “o historiador, portanto, através de um esforço minucioso de decodificação e contextualização de documentos, pode chegar a descobrir a 'dimensão social do pensamento'”.

Como destacado por Vellasco (2005),

a partir dos anos 80 começaram a surgir trabalhos, com inequívoco lastro empírico, cujas fontes eram exatamente processos criminais, ações de liberdade, livros de sentenças, enfim, a documentação produzida pelo sistema de justiça.

HISTÓRIA, PASSADO E PROCESSO – UM DIÁLOGO

SOBRE A CONSTRUÇÃO DO PASSADO ATRAVÉS

DO PROCESSO JUDICIAL*Mário Henrique Cardoso Caixeta

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), mestrando em História pela UCG e Promotor de Justiça de Rio Verde.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 45

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Talvez um dos traços mais distintivos dessa produção seja, além do tratamento exaustivo da documentação, uma disposição menos apriorística na leitura das fontes e menos ancorada em pressupostos teóricos rigidamente definidos.

Pode ser denominada fonte histórica “todo aquele material, instrumento ou ferramenta, símbolo ou discurso intelectual, que procede da criação humana, através do qual se pode inferir algo acerca de uma determinada situação social no tempo” (ARÓSTEGUI, 2006, p. 491). Essas fontes, prossegue o mesmo autor (idem, p. 94), são a “matéria sobre a qual o historiador trabalha, de caráter muito peculiar: restos materiais de atividades humanas, relatos escritos, relatos orais, textos de qualquer gênero, vestígios de todo tipo, documentos administrativos, etc.”. Assim, à luz desse conceito, bastante amplo, é inegável que os processos judiciais podem ser utilizados enquanto fonte da história.

Como ocorre com as demais fontes, os processos judiciais devem ser decodificados e contextualizados (CHALHOUB, 1990). Isso implica dizer que os processos judiciais não podem ser assimilados pela história enquanto instrumento de mera e simples reconstrução “objetiva” de um fato que importa ao sistema judicial. Muito pelo contrário. O processo judicial é uma forma eficaz de exercício do poder. No dizer de Foucault (2005, p. 78),

[o] inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. É a análise dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e as determinações econômico-políticas.

Le Goff (2003, p. 110) ensina que

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200846

[a]s estruturas de poder de uma sociedade compreendem o poder das categorias sociais e dos grupos dominantes ao deixarem, voluntariamente ou não, testemunhos suscetíveis de orientar a história num ou noutro sentido; o poder sobre a memória futura, o poder de perpetuação, deve ser conhecido e desmontado pelo historiador. Nenhum documento é inocente. (grifos meus)

Assim, tomando-se o especial cuidado de considerar que o fato histórico narrado no processo judicial é reflexo de uma específica estrutura de poder; que não há imparcialidade nessa narrativa; que o passado ali narrado é uma construção, uma representação, não um dado definitivo e acabado; que é possível a existência de versões diferentes para aquele fato narrado e que, por vezes, o processo judicial nos faz crer que a verdade declarada na sentença judicial é a única possível; que o processo judicial, assim como as demais fontes, exige um profundo trabalho de contextualização; que o processo judicial nos apresenta migalhas, rastros do passado, deixando espaço para a ficção na colmatação de lacunas; tem-se que a utilização daquele como fonte da história não só é legítima, mas também interessante para o alargamento dos domínios da história.

Processo judicial e pesquisa histórica

Que o processo judicial é fonte da história, já sabemos. Cabe indagar, agora, se o processo judicial, cujo “objetivo é eminentemente prático, atual e jurídico e se limita à declaração de certeza da verdade, em relação ao fato concreto e à aplicação de suas conseqüências jurídicas” (TOURINHO, 1997, p. 33, grifos meus), pode ser encarado como instrumento de pesquisa histórica.

Um raciocínio preliminar, antes de estabelecermos paralelo entre processo judicial e pesquisa histórica, se impõe. Os processos judiciais servem à história como fontes, não é demais

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 47

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Talvez um dos traços mais distintivos dessa produção seja, além do tratamento exaustivo da documentação, uma disposição menos apriorística na leitura das fontes e menos ancorada em pressupostos teóricos rigidamente definidos.

Pode ser denominada fonte histórica “todo aquele material, instrumento ou ferramenta, símbolo ou discurso intelectual, que procede da criação humana, através do qual se pode inferir algo acerca de uma determinada situação social no tempo” (ARÓSTEGUI, 2006, p. 491). Essas fontes, prossegue o mesmo autor (idem, p. 94), são a “matéria sobre a qual o historiador trabalha, de caráter muito peculiar: restos materiais de atividades humanas, relatos escritos, relatos orais, textos de qualquer gênero, vestígios de todo tipo, documentos administrativos, etc.”. Assim, à luz desse conceito, bastante amplo, é inegável que os processos judiciais podem ser utilizados enquanto fonte da história.

Como ocorre com as demais fontes, os processos judiciais devem ser decodificados e contextualizados (CHALHOUB, 1990). Isso implica dizer que os processos judiciais não podem ser assimilados pela história enquanto instrumento de mera e simples reconstrução “objetiva” de um fato que importa ao sistema judicial. Muito pelo contrário. O processo judicial é uma forma eficaz de exercício do poder. No dizer de Foucault (2005, p. 78),

[o] inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. É a análise dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e as determinações econômico-políticas.

Le Goff (2003, p. 110) ensina que

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200846

[a]s estruturas de poder de uma sociedade compreendem o poder das categorias sociais e dos grupos dominantes ao deixarem, voluntariamente ou não, testemunhos suscetíveis de orientar a história num ou noutro sentido; o poder sobre a memória futura, o poder de perpetuação, deve ser conhecido e desmontado pelo historiador. Nenhum documento é inocente. (grifos meus)

Assim, tomando-se o especial cuidado de considerar que o fato histórico narrado no processo judicial é reflexo de uma específica estrutura de poder; que não há imparcialidade nessa narrativa; que o passado ali narrado é uma construção, uma representação, não um dado definitivo e acabado; que é possível a existência de versões diferentes para aquele fato narrado e que, por vezes, o processo judicial nos faz crer que a verdade declarada na sentença judicial é a única possível; que o processo judicial, assim como as demais fontes, exige um profundo trabalho de contextualização; que o processo judicial nos apresenta migalhas, rastros do passado, deixando espaço para a ficção na colmatação de lacunas; tem-se que a utilização daquele como fonte da história não só é legítima, mas também interessante para o alargamento dos domínios da história.

Processo judicial e pesquisa histórica

Que o processo judicial é fonte da história, já sabemos. Cabe indagar, agora, se o processo judicial, cujo “objetivo é eminentemente prático, atual e jurídico e se limita à declaração de certeza da verdade, em relação ao fato concreto e à aplicação de suas conseqüências jurídicas” (TOURINHO, 1997, p. 33, grifos meus), pode ser encarado como instrumento de pesquisa histórica.

Um raciocínio preliminar, antes de estabelecermos paralelo entre processo judicial e pesquisa histórica, se impõe. Os processos judiciais servem à história como fontes, não é demais

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repetir, como já demonstrado, por exemplo, por Sidnei Chalhoub (1990), Sandra Jatahy Pesavento (2004) e Carlo Ginzburg (1987), logo, o processo judicial, em si, responde pela construção de um fato passado. Em verdade, esse é o objetivo último do processo judicial: reconstruir, através da narrativa e com base em provas, um fato passado, atribuindo-lhe conseqüências jurídicas específicas.

Através do processo judicial ou através da pesquisa histórica busca-se obter um conhecimento real, verdadeiro, de fato ou fatos que residem no passado, longínquos no tempo (KEITH, p. 54). Sob esse prisma, os objetivos de um e outro são idênticos. A semelhança de objetivos, porém, deve ser melhor estudada. Aróstegui (2006, p. 308) resume o objeto da historiografia, dizendo que

[o] objeto historiográfico é temporal, de forma que se pode dizer que o eixo substancial do que o historiador persegue é o comportamento dos fatos sociais no tempo, a variação no tempo das atividades humanas, pessoais ou coletivas e o resultado, visto também na escala temporal, dessas atividades.

É certo que o processo judicial tem por característica a reconstrução de um fato passado, inédito. Contudo, não se observa, à primeira vista, o processo judicial perseguindo o comportamento dos fatos sociais no tempo, a variação no tempo das atividades humanas. Isto, à primeira vista. Estudado ontologicamente, os processos judiciais ensejam a reconstrução de um fato inédito (também caracteriza a história o ineditismo, a singularidade, a irrepetibilidade dos fatos passados!), delimitado no tempo e no espaço e, paralelamente a esse fato – ao qual se agregarão conseqüências jurídicas – são (re)construídas e reveladas circunstâncias carregadas de temporalidade, que permitem observar a evolução do homem incriminado, por exemplo; que permitem observar a evolução da sociedade na qual ele cresceu e viveu; que permitem observar a representação desse fato à luz dos valores defendidos por aqueles que detém o poder;

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200848

que permitem observar a representação desse fato à luz daqueles que não detém o poder (o incriminado, por exemplo, pode apresentar versão e provas diferentes). Não é à toa que o artigo 59 do Código Penal estabelece que

[o] juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; [...].

Logicamente, devemos ter em conta que a missão do historiador transcende a mera narrativa do fato passado. O historiador a faz com a precípua função de “orientação cultural mediante a experiência interpretada e representada na forma de uma direção temporal do agir humano e na forma de concepções de identidade histórica” (RUSEN, 2001, p. 59). O processo judicial, por óbvio, não tem por objetivo imediato orientar o agir humano. Se a pesquisa histórica reconstrói o passado, sob a ótica do presente, para dar ao homem direção para atuar no futuro (objetivo imediato da pesquisa histórica), o processo judicial reconstrói o passado, também sob a ótica do presente, para aplicar a conseqüência jurídica decorrente do fato reconstruído e declarado como verdade na sentença judicial (objetivo imediato do processo judicial). Contudo, mediatamente, o resultado de um processo judicial serve de orientação para julgamentos semelhantes, a serem realizados no futuro. Veja, nesse sentido, o papel desempenhado pela jurisprudência (conjunto de decisões dos tribunais relativamente a algum assunto). Sobre ser mediata ou imediata a orientação do agir humano para o futuro: essa distinção, ao meu sentir, é a única que distancia o processo judicial da pesquisa histórica. No primeiro, a orientação do agir humano para o futuro é mediata e, na segunda, imediata.

Outra questão que merece abordagem diz respeito à verdade e à certeza. Tanto o fruto de uma pesquisa histórica como

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 49

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repetir, como já demonstrado, por exemplo, por Sidnei Chalhoub (1990), Sandra Jatahy Pesavento (2004) e Carlo Ginzburg (1987), logo, o processo judicial, em si, responde pela construção de um fato passado. Em verdade, esse é o objetivo último do processo judicial: reconstruir, através da narrativa e com base em provas, um fato passado, atribuindo-lhe conseqüências jurídicas específicas.

Através do processo judicial ou através da pesquisa histórica busca-se obter um conhecimento real, verdadeiro, de fato ou fatos que residem no passado, longínquos no tempo (KEITH, p. 54). Sob esse prisma, os objetivos de um e outro são idênticos. A semelhança de objetivos, porém, deve ser melhor estudada. Aróstegui (2006, p. 308) resume o objeto da historiografia, dizendo que

[o] objeto historiográfico é temporal, de forma que se pode dizer que o eixo substancial do que o historiador persegue é o comportamento dos fatos sociais no tempo, a variação no tempo das atividades humanas, pessoais ou coletivas e o resultado, visto também na escala temporal, dessas atividades.

É certo que o processo judicial tem por característica a reconstrução de um fato passado, inédito. Contudo, não se observa, à primeira vista, o processo judicial perseguindo o comportamento dos fatos sociais no tempo, a variação no tempo das atividades humanas. Isto, à primeira vista. Estudado ontologicamente, os processos judiciais ensejam a reconstrução de um fato inédito (também caracteriza a história o ineditismo, a singularidade, a irrepetibilidade dos fatos passados!), delimitado no tempo e no espaço e, paralelamente a esse fato – ao qual se agregarão conseqüências jurídicas – são (re)construídas e reveladas circunstâncias carregadas de temporalidade, que permitem observar a evolução do homem incriminado, por exemplo; que permitem observar a evolução da sociedade na qual ele cresceu e viveu; que permitem observar a representação desse fato à luz dos valores defendidos por aqueles que detém o poder;

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que permitem observar a representação desse fato à luz daqueles que não detém o poder (o incriminado, por exemplo, pode apresentar versão e provas diferentes). Não é à toa que o artigo 59 do Código Penal estabelece que

[o] juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; [...].

Logicamente, devemos ter em conta que a missão do historiador transcende a mera narrativa do fato passado. O historiador a faz com a precípua função de “orientação cultural mediante a experiência interpretada e representada na forma de uma direção temporal do agir humano e na forma de concepções de identidade histórica” (RUSEN, 2001, p. 59). O processo judicial, por óbvio, não tem por objetivo imediato orientar o agir humano. Se a pesquisa histórica reconstrói o passado, sob a ótica do presente, para dar ao homem direção para atuar no futuro (objetivo imediato da pesquisa histórica), o processo judicial reconstrói o passado, também sob a ótica do presente, para aplicar a conseqüência jurídica decorrente do fato reconstruído e declarado como verdade na sentença judicial (objetivo imediato do processo judicial). Contudo, mediatamente, o resultado de um processo judicial serve de orientação para julgamentos semelhantes, a serem realizados no futuro. Veja, nesse sentido, o papel desempenhado pela jurisprudência (conjunto de decisões dos tribunais relativamente a algum assunto). Sobre ser mediata ou imediata a orientação do agir humano para o futuro: essa distinção, ao meu sentir, é a única que distancia o processo judicial da pesquisa histórica. No primeiro, a orientação do agir humano para o futuro é mediata e, na segunda, imediata.

Outra questão que merece abordagem diz respeito à verdade e à certeza. Tanto o fruto de uma pesquisa histórica como

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também o resultado final de um processo judicial não resultam na construção de uma verdade objetiva, absoluta, acabada. Ambos, pautados em técnicas, critérios, normas e métodos, alcançam tão-somente a verossimilhança. Nem poderia ser diferente. Tanto num como noutro tem-se a reconstrução e a interpretação de um fato passado sob a ótica do presente, através de provas/fontes não inocentes e incompletas, elaboradas por historiador (ou juiz e partes) subjetivamente comprometido (o que não significa má-fé). Sobre a neutralidade do intérprete no campo jurídico, disse Barroso (1996, p. 268):

A pretensão de neutralidade do intérprete, embora seja passível de atendimento no que toca à sua imparcialidade e impessoalidade, é inatingível na s u a p l e n i t u d e . I n t e r p r e t a r e n v o l v e , freqüentemente, a escolha de valores e de alternativas possíveis. Ainda quando não atue movido por interesses de classe ou estamentais, ainda quando não milite em favor do próprio interesse, o juiz sempre estará promovendo as suas crenças, a sua visão do mundo, o seu senso de justiça. (grifos meus)

No campo historiográfico acontece a mesma coisa. De Certeau (2000, p. 67) confidenciou que

[t]oda interpretação histórica depende de um sistema de referência; que este sistema permanece uma “filosofia” implícita particular; que infiltrando-se no trabalho de análise, organizando-se à sua revelia, remete à “subjetividade” do autor.

Desse contexto não pode eclodir tão propalada verdade real, substancial, objetiva! Aproximamo-nos dela, mas sabemos que ela é inalcançável.

Na pesquisa histórica, para alcançarmos esse juízo de verossimilhança, devemos nos apegar às fontes. No processo judicial, às provas. Devem, as provas ou as fontes, nos conduzir à certeza. Entretanto, as fontes e as provas nos trazem tão-somente

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200850

vestígios do passado. No dizer de Malatesta (2005, p. 25),

a verdade, em geral, é a conformidade da noção ideológica com a realidade; a crença na percepção desta conformidade é a certeza. Ela é, portanto, um estado subjetivo da alma, podendo ou não corresponder à verdade objetiva.

Nucci (2006, p. 60) observa que “jamais, no processo, pode assegurar o juiz ter alcançado a verdade objetiva, aquela que corresponde perfeitamente com o acontecido no plano real”. Essa premissa também é válida para a pesquisa histórica. Verdadeiras, diz Rusen (2001, p. 87),

[s]ão as histórias com que se pode consentir; consente-se com as histórias nas quais as possíveis dúvidas surgidas podem ser resolvidas com as razões que elas fornecem. Sem que indicarem, por meio de sua narrativa, o modo de superar as eventuais dúvidas que suscitem, as histórias sinalizam sua verdade.

Alcançar a verossimilhança, seja no processo judicial, seja na pesquisa histórica, depende não somente da apreensão das provas e das fontes. O trabalho de reconstrução do fato passado deve ser guiado pela cientificidade do método. O método científico é, segundo lição de Aróstegui (2006, p. 421),

[u]m procedimento para obter conhecimentos através de determinados passos que asseguram que aquilo que se pretende conhecer seja “explicado” e, indiscutivelmente, explicado significa que se deve dar conta da realidade propondo afirmações demonstráveis.

Descabido, no corpo deste artigo, discutir se os métodos historiográficos são dotados ou não de cientificidade, pois isso transbordaria os limites aqui estabelecidos. Partamos do pressuposto que sim, que história é ciência e que os métodos por

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também o resultado final de um processo judicial não resultam na construção de uma verdade objetiva, absoluta, acabada. Ambos, pautados em técnicas, critérios, normas e métodos, alcançam tão-somente a verossimilhança. Nem poderia ser diferente. Tanto num como noutro tem-se a reconstrução e a interpretação de um fato passado sob a ótica do presente, através de provas/fontes não inocentes e incompletas, elaboradas por historiador (ou juiz e partes) subjetivamente comprometido (o que não significa má-fé). Sobre a neutralidade do intérprete no campo jurídico, disse Barroso (1996, p. 268):

A pretensão de neutralidade do intérprete, embora seja passível de atendimento no que toca à sua imparcialidade e impessoalidade, é inatingível na s u a p l e n i t u d e . I n t e r p r e t a r e n v o l v e , freqüentemente, a escolha de valores e de alternativas possíveis. Ainda quando não atue movido por interesses de classe ou estamentais, ainda quando não milite em favor do próprio interesse, o juiz sempre estará promovendo as suas crenças, a sua visão do mundo, o seu senso de justiça. (grifos meus)

No campo historiográfico acontece a mesma coisa. De Certeau (2000, p. 67) confidenciou que

[t]oda interpretação histórica depende de um sistema de referência; que este sistema permanece uma “filosofia” implícita particular; que infiltrando-se no trabalho de análise, organizando-se à sua revelia, remete à “subjetividade” do autor.

Desse contexto não pode eclodir tão propalada verdade real, substancial, objetiva! Aproximamo-nos dela, mas sabemos que ela é inalcançável.

Na pesquisa histórica, para alcançarmos esse juízo de verossimilhança, devemos nos apegar às fontes. No processo judicial, às provas. Devem, as provas ou as fontes, nos conduzir à certeza. Entretanto, as fontes e as provas nos trazem tão-somente

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vestígios do passado. No dizer de Malatesta (2005, p. 25),

a verdade, em geral, é a conformidade da noção ideológica com a realidade; a crença na percepção desta conformidade é a certeza. Ela é, portanto, um estado subjetivo da alma, podendo ou não corresponder à verdade objetiva.

Nucci (2006, p. 60) observa que “jamais, no processo, pode assegurar o juiz ter alcançado a verdade objetiva, aquela que corresponde perfeitamente com o acontecido no plano real”. Essa premissa também é válida para a pesquisa histórica. Verdadeiras, diz Rusen (2001, p. 87),

[s]ão as histórias com que se pode consentir; consente-se com as histórias nas quais as possíveis dúvidas surgidas podem ser resolvidas com as razões que elas fornecem. Sem que indicarem, por meio de sua narrativa, o modo de superar as eventuais dúvidas que suscitem, as histórias sinalizam sua verdade.

Alcançar a verossimilhança, seja no processo judicial, seja na pesquisa histórica, depende não somente da apreensão das provas e das fontes. O trabalho de reconstrução do fato passado deve ser guiado pela cientificidade do método. O método científico é, segundo lição de Aróstegui (2006, p. 421),

[u]m procedimento para obter conhecimentos através de determinados passos que asseguram que aquilo que se pretende conhecer seja “explicado” e, indiscutivelmente, explicado significa que se deve dar conta da realidade propondo afirmações demonstráveis.

Descabido, no corpo deste artigo, discutir se os métodos historiográficos são dotados ou não de cientificidade, pois isso transbordaria os limites aqui estabelecidos. Partamos do pressuposto que sim, que história é ciência e que os métodos por

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ela utilizados são dotados de cientificidade.É inegável que o processo judicial e a pesquisa histórica

são construídos a partir de métodos científicos, porque se assim não fosse os frutos de um e outro seriam imprestáveis, as afirmações deles resultantes não seriam demonstráveis. O processo judicial e a pesquisa histórica partem de pressupostos teóricos prévios; têm em comum, como objeto, uma situação problema que deve ser aclarada, discutida; são pautados por procedimentos que nos fazem avançar “em conhecimentos de forma simples, completa e fiável, além de contrastável” (ARÓSTEGUI, 2006, p. 426).

Por óbvio, há diferença entre os métodos utilizados no processo judicial e aqueles empregados na pesquisa histórica. Contudo, em ambos os casos, verifica-se que o objeto de estudo é marcado pela intencionalidade do comportamento humano; pela temporalidade; e pela complexidade, em razão das infindáveis variáveis que neles intervêm. As diferenças de métodos, pois, são decorrentes da especificidade do fato em estudo, mas não são hábeis ao distanciamento desses dois irmãos: processo judicial e pesquisa histórica.

Considerações finais: o processo judicial é pesquisa histórica

Esta última coincidência entre processo judicial e pesquisa histórica deixa evidente que o Estado-juiz, através do processo judicial, realiza pesquisa história. O juiz é um historiador!

O processo judicial e a pesquisa histórica buscam a verdade; bastam-se com a verossimilhança; buscam desvendar o passado através das fontes ou provas; sejam fontes, sejam provas, ambas são rastros do passado, não inocentes, com lacunas colmatadas pela ficção controlada.

O processo judicial e a pesquisa histórica são dirigidos por alguém subjetivamente comprometido, pois a neutralidade é impossível de ser alcançada. Juiz e historiador são homens imersos

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200852

na densa teia de valores que guiam o estar e ser no mundo.O processo judicial e a pesquisa histórica resultam, o

primeiro mediatamente, a segunda imediatamente, em orientação do comportamento humano para o futuro.

Por fim, o processo judicial e a pesquisa histórica são guiados por métodos dotados de cientificidade, pois do contrário os frutos de um e outro não seriam sociáveis, contrastáveis, dignos de fé.

Referências

ARÓSTEGUI, J. A pesquisa histórica – Teoria e método. Trad. de Andréa Dore. São Paulo: Edusc, 2006.

BARROSO, L. R. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996.

BRASIL. Código Penal. São Paulo: Saraiva, 2003.

CHALHOUB, S. Visões da liberdade – Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

DE CERTEAU, M. A escrita da história. Trad. de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Trad. de Roberto Cabral de Melo e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005.

GINZBURG, C. O queijo e os vermes – O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Trad. de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

KEITH, Jenkins. A história repensada. Trad. de Mário Vilela. São

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 53

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ela utilizados são dotados de cientificidade.É inegável que o processo judicial e a pesquisa histórica

são construídos a partir de métodos científicos, porque se assim não fosse os frutos de um e outro seriam imprestáveis, as afirmações deles resultantes não seriam demonstráveis. O processo judicial e a pesquisa histórica partem de pressupostos teóricos prévios; têm em comum, como objeto, uma situação problema que deve ser aclarada, discutida; são pautados por procedimentos que nos fazem avançar “em conhecimentos de forma simples, completa e fiável, além de contrastável” (ARÓSTEGUI, 2006, p. 426).

Por óbvio, há diferença entre os métodos utilizados no processo judicial e aqueles empregados na pesquisa histórica. Contudo, em ambos os casos, verifica-se que o objeto de estudo é marcado pela intencionalidade do comportamento humano; pela temporalidade; e pela complexidade, em razão das infindáveis variáveis que neles intervêm. As diferenças de métodos, pois, são decorrentes da especificidade do fato em estudo, mas não são hábeis ao distanciamento desses dois irmãos: processo judicial e pesquisa histórica.

Considerações finais: o processo judicial é pesquisa histórica

Esta última coincidência entre processo judicial e pesquisa histórica deixa evidente que o Estado-juiz, através do processo judicial, realiza pesquisa história. O juiz é um historiador!

O processo judicial e a pesquisa histórica buscam a verdade; bastam-se com a verossimilhança; buscam desvendar o passado através das fontes ou provas; sejam fontes, sejam provas, ambas são rastros do passado, não inocentes, com lacunas colmatadas pela ficção controlada.

O processo judicial e a pesquisa histórica são dirigidos por alguém subjetivamente comprometido, pois a neutralidade é impossível de ser alcançada. Juiz e historiador são homens imersos

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200852

na densa teia de valores que guiam o estar e ser no mundo.O processo judicial e a pesquisa histórica resultam, o

primeiro mediatamente, a segunda imediatamente, em orientação do comportamento humano para o futuro.

Por fim, o processo judicial e a pesquisa histórica são guiados por métodos dotados de cientificidade, pois do contrário os frutos de um e outro não seriam sociáveis, contrastáveis, dignos de fé.

Referências

ARÓSTEGUI, J. A pesquisa histórica – Teoria e método. Trad. de Andréa Dore. São Paulo: Edusc, 2006.

BARROSO, L. R. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996.

BRASIL. Código Penal. São Paulo: Saraiva, 2003.

CHALHOUB, S. Visões da liberdade – Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

DE CERTEAU, M. A escrita da história. Trad. de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Trad. de Roberto Cabral de Melo e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005.

GINZBURG, C. O queijo e os vermes – O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Trad. de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

KEITH, Jenkins. A história repensada. Trad. de Mário Vilela. São

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Paulo: Contexto, 2005.

LE GOFF, J. História e memória. 5. ed. Trad. de Bernardo Leitão et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.

MALATESTA, N. F. A lógica das provas em matéria criminal. 6. ed. Trad. de Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 2005.

NUCCI, G. de S. Código de Processo Penal comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2006.

PESAVENTO, S. J. Uma outra cidade – O mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.

RÜSEN, J. Razão histórica – Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Trad. de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

TOURINHO, F. da C. Processo Penal. v. 1. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

VELLASCO, I. de A. Os predicados da ordem: os usos sociais da justiça nas Minas Gerais 1780-1840. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 25, n. 50, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0102-01882005000200007&lng= pt&nrm=iso>. Acesso em: 22 jan 2008. Doi: 10.1590/S0102-01882005000200007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200854

Resumo:Este trabalho aborda o tema da prisão civil sob um novo enfoque. Pretende-se demonstrar a possibilidade de utilização da prisão civil como medida executiva atípica, a fim de prestigiar o princípio da efetividade e afastar os corriqueiros abusos e desrespeitos aos provimentos jurisdicionais.

Palavras-chave: prisão civil, princípio do poder geral de efetivação, conflito entre princípios constitucionais.

A Constituição da República já alcançou a maioridade, porém muitos de seus comandos causam polêmicas e acirradas discussões entre os operadores do direito. Dentre os controvertidos mandamentos constitucionais, ressalta-se o inciso LXVII do artigo 5º, que prescreve: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

No que tange à prisão do devedor de alimentos, há unanimidade quanto à sua legitimidade constitucional. No entanto, a prisão do depositário infiel divide a doutrina e a jurisprudência, notadamente, em razão da adesão do Brasil ao Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos aprovada pelo Decreto Legislativo 27, de 25.09.1992, e promulgada pelo Decreto 678, de 06.11.1992), que em seu artigo 7º dispõe: “Ninguém deverá ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

UM NOVO ENFOQUE À PRISÃO CIVIL

*Luandra Carolina Pimenta

* Procuradora Federal e ex-Promotora de Justiça - MP-GO.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 55

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Paulo: Contexto, 2005.

LE GOFF, J. História e memória. 5. ed. Trad. de Bernardo Leitão et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.

MALATESTA, N. F. A lógica das provas em matéria criminal. 6. ed. Trad. de Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 2005.

NUCCI, G. de S. Código de Processo Penal comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2006.

PESAVENTO, S. J. Uma outra cidade – O mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.

RÜSEN, J. Razão histórica – Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Trad. de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

TOURINHO, F. da C. Processo Penal. v. 1. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

VELLASCO, I. de A. Os predicados da ordem: os usos sociais da justiça nas Minas Gerais 1780-1840. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 25, n. 50, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0102-01882005000200007&lng= pt&nrm=iso>. Acesso em: 22 jan 2008. Doi: 10.1590/S0102-01882005000200007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200854

Resumo:Este trabalho aborda o tema da prisão civil sob um novo enfoque. Pretende-se demonstrar a possibilidade de utilização da prisão civil como medida executiva atípica, a fim de prestigiar o princípio da efetividade e afastar os corriqueiros abusos e desrespeitos aos provimentos jurisdicionais.

Palavras-chave: prisão civil, princípio do poder geral de efetivação, conflito entre princípios constitucionais.

A Constituição da República já alcançou a maioridade, porém muitos de seus comandos causam polêmicas e acirradas discussões entre os operadores do direito. Dentre os controvertidos mandamentos constitucionais, ressalta-se o inciso LXVII do artigo 5º, que prescreve: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

No que tange à prisão do devedor de alimentos, há unanimidade quanto à sua legitimidade constitucional. No entanto, a prisão do depositário infiel divide a doutrina e a jurisprudência, notadamente, em razão da adesão do Brasil ao Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos aprovada pelo Decreto Legislativo 27, de 25.09.1992, e promulgada pelo Decreto 678, de 06.11.1992), que em seu artigo 7º dispõe: “Ninguém deverá ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

UM NOVO ENFOQUE À PRISÃO CIVIL

*Luandra Carolina Pimenta

* Procuradora Federal e ex-Promotora de Justiça - MP-GO.

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Um dos temas que rodeia a possibilidade ou não de prisão do depositário infiel é o status normativo dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos. A discussão cinge-se, principalmente, ao deslinde da questão da prevalência ou não do direito internacional sobre o direito interno.

Recentemente, o Ministro Gilmar Mendes manifestou-se no seguinte sentido:

A evolução jurisprudencial sempre foi uma marca de qualquer jurisdição de perfil constitucional. A afirmação da mutação constitucional não implica o reconhecimento, por parte da Corte, de erro ou equívoco interpretativo do texto constitucional em julgados pretéritos. Ela reconhece e reafirma, ao contrário, a necessidade da contínua e paulatina adaptação dos sentidos possíveis da letra da Constituição aos câmbios observados numa sociedade que, como a atual, está marcada pela complexidade e pelo pluralismo. A prisão do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para si mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção aos

1direitos humanos.

Em paralelo a esse importante debate que travam os acadêmicos e os profissionais da área jurídica, outra interessante controvérsia tem tido destaque entre renomados doutrinadores. Trata-se da utilização da prisão civil como medida coercitiva atípica, secundada pelo artigo 461 do Código de Processo Civil e pelo artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor.

É consabido que o artigo 461, § 5º, do CPC, ao prever que o juiz poderá determinar as “medidas necessárias” à obtenção do resultado almejado e reconhecido, garante a atipicidade dos meios executivos (ou coercitivos) na efetivação das obrigações que tenham por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não-

1 RE 466.343-1 São Paulo.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200856

fazer, ou de dar coisa distinta de dinheiro. Consagra-se, com essa previsão, o princípio do poder geral de efetivação.

O mesmo se aplica ao artigo 84 do CDC, em que se prioriza a concessão da tutela específica da obrigação e a adoção pelo magistrado de meios que assegurem resultado prático equivalente. A sua atuação deve visar ao acesso efetivo à tutela jurisdicional.

Esses dispositivos compõem o marco da quebra de um paradigma de salvaguarda acentuada do devedor em detrimento do credor. Foi o início da reformulação das normas processuais, desaguando nas últimas leis reformadoras, nitidamente amparadas pela busca da efetividade.

Nesse sentido, pontuam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2004, p. 494):

É indubitável que o legislador brasileiro, ao enumerar as denominadas “medidas necessárias”, não desejou limitar os poderes de execução do juiz, subordinando-o a elas. Ao contrário, o legislador serviu-se, certamente de propósito, da expressão “tais como” (prevista no § 5º dos arts. 461 do CPC, e 84, CDC), exatamente para indicar que as medidas por ele elencadas destinam-se apenas a exemplificar algumas das medidas que podem ser adotadas pelo juiz.

Também sobre a questão, vale trazer à baila a lição primorosa dos doutrinadores Fredie Didier, Paula Samo e Rafael Oliveira (2007, p. 340):

Com os olhos postos nessa finalidade, tem-se admitido que o julgador imponha qualquer medida que, à luz do caso concreto, se mostre necessária, adequada e razoável para a realização do direito reconhecido, seja mediante cognição exauriente ou sumária. É o caso concreto que vai revelar o meio mais adequado.

Pois bem.Como já salientado no texto reproduzido, é a análise dos

pormenores do caso concreto que permitirá a ilação sobre a medida (coercitiva) capaz de efetivar o direito do exeqüente. Cabe, então, a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 57

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Um dos temas que rodeia a possibilidade ou não de prisão do depositário infiel é o status normativo dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos. A discussão cinge-se, principalmente, ao deslinde da questão da prevalência ou não do direito internacional sobre o direito interno.

Recentemente, o Ministro Gilmar Mendes manifestou-se no seguinte sentido:

A evolução jurisprudencial sempre foi uma marca de qualquer jurisdição de perfil constitucional. A afirmação da mutação constitucional não implica o reconhecimento, por parte da Corte, de erro ou equívoco interpretativo do texto constitucional em julgados pretéritos. Ela reconhece e reafirma, ao contrário, a necessidade da contínua e paulatina adaptação dos sentidos possíveis da letra da Constituição aos câmbios observados numa sociedade que, como a atual, está marcada pela complexidade e pelo pluralismo. A prisão do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para si mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção aos

1direitos humanos.

Em paralelo a esse importante debate que travam os acadêmicos e os profissionais da área jurídica, outra interessante controvérsia tem tido destaque entre renomados doutrinadores. Trata-se da utilização da prisão civil como medida coercitiva atípica, secundada pelo artigo 461 do Código de Processo Civil e pelo artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor.

É consabido que o artigo 461, § 5º, do CPC, ao prever que o juiz poderá determinar as “medidas necessárias” à obtenção do resultado almejado e reconhecido, garante a atipicidade dos meios executivos (ou coercitivos) na efetivação das obrigações que tenham por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não-

1 RE 466.343-1 São Paulo.

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fazer, ou de dar coisa distinta de dinheiro. Consagra-se, com essa previsão, o princípio do poder geral de efetivação.

O mesmo se aplica ao artigo 84 do CDC, em que se prioriza a concessão da tutela específica da obrigação e a adoção pelo magistrado de meios que assegurem resultado prático equivalente. A sua atuação deve visar ao acesso efetivo à tutela jurisdicional.

Esses dispositivos compõem o marco da quebra de um paradigma de salvaguarda acentuada do devedor em detrimento do credor. Foi o início da reformulação das normas processuais, desaguando nas últimas leis reformadoras, nitidamente amparadas pela busca da efetividade.

Nesse sentido, pontuam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2004, p. 494):

É indubitável que o legislador brasileiro, ao enumerar as denominadas “medidas necessárias”, não desejou limitar os poderes de execução do juiz, subordinando-o a elas. Ao contrário, o legislador serviu-se, certamente de propósito, da expressão “tais como” (prevista no § 5º dos arts. 461 do CPC, e 84, CDC), exatamente para indicar que as medidas por ele elencadas destinam-se apenas a exemplificar algumas das medidas que podem ser adotadas pelo juiz.

Também sobre a questão, vale trazer à baila a lição primorosa dos doutrinadores Fredie Didier, Paula Samo e Rafael Oliveira (2007, p. 340):

Com os olhos postos nessa finalidade, tem-se admitido que o julgador imponha qualquer medida que, à luz do caso concreto, se mostre necessária, adequada e razoável para a realização do direito reconhecido, seja mediante cognição exauriente ou sumária. É o caso concreto que vai revelar o meio mais adequado.

Pois bem.Como já salientado no texto reproduzido, é a análise dos

pormenores do caso concreto que permitirá a ilação sobre a medida (coercitiva) capaz de efetivar o direito do exeqüente. Cabe, então, a

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pergunta: essa amplitude de poder conferida ao juiz abarca a possibilidade de prender o réu ou qualquer outra pessoa para que sua ordem seja cumprida?

Marcelo José Magalhães Bonício (2006, s/p), contrário a essa abertura à prisão por descumprimento de decisão judicial, menciona:

É importante ressaltar que, nos termos da Constituição da República, somente nas hipóteses de obrigação de cunho alimentar ou de depositário infiel será possível impor a prisão civil do devedor a qual perdurará até que ele cumpra a obrigação (meio coercitivo), embora, para parte da doutrina, a possibilidade de prisão do depositário infiel não mais subsista, considerando-se os conhecidos termos do Pacto de San José da Costa Rica.

O autor afirmou que a prisão civil é permitida tão-somente nas hipóteses de obrigação alimentar e do depositário infiel, esta, por sua vez, com ressalvas. No entanto, em leitura atenta da Constituição, verifica-se constar a expressão “prisão por dívida”, e não “prisão civil”, o que poderia afastar a tese da proibição constitucional.

Porém, o raciocínio não deve ser tão simplista e basear-se apenas em uma interpretação gramatical.

Sucede que essa possibilidade pode sim ser sustentada, mas com base em um outro argumento mais plausível e sob o prisma dos direitos fundamentais, sem afastar o respeito à liberdade individual. Cuida-se, na verdade, da aplicação do princípio da razoabilidade e proporcionalidade na colisão entre outros princípios constitucionais, em casos que não envolvam diretamente uma prestação pecuniária.

Não é novidade o caráter relativo que possuem os direitos fundamentais, primeiro em razão de haver no próprio texto constitucional algumas restrições; segundo, como consectário do embate entre eles ou com outros princípios constitucionais. Em havendo choque entre eles, a razoabilidade deve preponderar. Portanto, nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida (artigo 5, inciso XLVII, alínea “a”, da CF).

Assim, no real confronto entre o direito à liberdade do

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200858

executado e o direito à vida, à dignidade ou à integridade física de um terceiro, o primeiro poderá ser preterido.

Nesse sentido, cumpre fazer alusão aos ensinamentos do jurista Alexandre de Moraes (2006, p. 27-28):

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).

A razoabilidade, por conseguinte, está concebida como um cânone do direito constitucional hodierno, propagando-se por todo o ordenamento e menoscabando decisões desarrazoadas e arbitrárias.

Segundo Ana Carolina Lobo Gluck Paul (2006, s/p),

No primeiro momento (tatbestand), ocorre a determinação do âmbito de proteção dos direitos fundamentais envolvidos de acordo com as situações fáticas que a situação subjetiva revela, configurando a efetiva colisão, de modo a eliminar a possibilidade de uma colisão apenas aparente. Feito isso, o segundo momento caracteriza-se pela ponderação do interesse jurídico em conflito, levando ao aplicador a extrair o núcleo essencial deles de modo a causar o menor sacrifício possível, devendo, para tanto, utilizar-se dos princípios da unidade da Constituição e da razoabilidade. Somente dessa forma é que ocorre a máxima proteção e concretização dos direitos fundamentais.

Assim, em situações extremas que envolvam, por exemplo, direitos da personalidade, direitos ambientais, em que não for suficiente uma presunção ou uma multa, sendo razoável, a prisão poderá ser decretada como medida executiva atípica. Com isso, evitam-se os recorrentes abusos e desrespeitos e propicia-se mais efetividade aos provimentos jurisdicionais, cumprindo, inclusive, o escopo da norma contida no inciso XXXV do artigo 5º da CF.

Conforme Fredie Didier, Paula Samo e Rafael Oliveira

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 59

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pergunta: essa amplitude de poder conferida ao juiz abarca a possibilidade de prender o réu ou qualquer outra pessoa para que sua ordem seja cumprida?

Marcelo José Magalhães Bonício (2006, s/p), contrário a essa abertura à prisão por descumprimento de decisão judicial, menciona:

É importante ressaltar que, nos termos da Constituição da República, somente nas hipóteses de obrigação de cunho alimentar ou de depositário infiel será possível impor a prisão civil do devedor a qual perdurará até que ele cumpra a obrigação (meio coercitivo), embora, para parte da doutrina, a possibilidade de prisão do depositário infiel não mais subsista, considerando-se os conhecidos termos do Pacto de San José da Costa Rica.

O autor afirmou que a prisão civil é permitida tão-somente nas hipóteses de obrigação alimentar e do depositário infiel, esta, por sua vez, com ressalvas. No entanto, em leitura atenta da Constituição, verifica-se constar a expressão “prisão por dívida”, e não “prisão civil”, o que poderia afastar a tese da proibição constitucional.

Porém, o raciocínio não deve ser tão simplista e basear-se apenas em uma interpretação gramatical.

Sucede que essa possibilidade pode sim ser sustentada, mas com base em um outro argumento mais plausível e sob o prisma dos direitos fundamentais, sem afastar o respeito à liberdade individual. Cuida-se, na verdade, da aplicação do princípio da razoabilidade e proporcionalidade na colisão entre outros princípios constitucionais, em casos que não envolvam diretamente uma prestação pecuniária.

Não é novidade o caráter relativo que possuem os direitos fundamentais, primeiro em razão de haver no próprio texto constitucional algumas restrições; segundo, como consectário do embate entre eles ou com outros princípios constitucionais. Em havendo choque entre eles, a razoabilidade deve preponderar. Portanto, nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida (artigo 5, inciso XLVII, alínea “a”, da CF).

Assim, no real confronto entre o direito à liberdade do

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200858

executado e o direito à vida, à dignidade ou à integridade física de um terceiro, o primeiro poderá ser preterido.

Nesse sentido, cumpre fazer alusão aos ensinamentos do jurista Alexandre de Moraes (2006, p. 27-28):

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).

A razoabilidade, por conseguinte, está concebida como um cânone do direito constitucional hodierno, propagando-se por todo o ordenamento e menoscabando decisões desarrazoadas e arbitrárias.

Segundo Ana Carolina Lobo Gluck Paul (2006, s/p),

No primeiro momento (tatbestand), ocorre a determinação do âmbito de proteção dos direitos fundamentais envolvidos de acordo com as situações fáticas que a situação subjetiva revela, configurando a efetiva colisão, de modo a eliminar a possibilidade de uma colisão apenas aparente. Feito isso, o segundo momento caracteriza-se pela ponderação do interesse jurídico em conflito, levando ao aplicador a extrair o núcleo essencial deles de modo a causar o menor sacrifício possível, devendo, para tanto, utilizar-se dos princípios da unidade da Constituição e da razoabilidade. Somente dessa forma é que ocorre a máxima proteção e concretização dos direitos fundamentais.

Assim, em situações extremas que envolvam, por exemplo, direitos da personalidade, direitos ambientais, em que não for suficiente uma presunção ou uma multa, sendo razoável, a prisão poderá ser decretada como medida executiva atípica. Com isso, evitam-se os recorrentes abusos e desrespeitos e propicia-se mais efetividade aos provimentos jurisdicionais, cumprindo, inclusive, o escopo da norma contida no inciso XXXV do artigo 5º da CF.

Conforme Fredie Didier, Paula Samo e Rafael Oliveira

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 59

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(2007, p. 367): “Essa medida deverá ser utilizada apenas em último caso, desde que o valor que se busca resguardar se mostre, no caso concreto, mais relevante do que a liberdade individual do devedor”.

Logo, propositadamente, deve-se negar a prisão civil para efetivação de direito exclusivamente patrimonial e, noutro extremo, afastar o preconceito e aceitar a imposição da prisão civil dentro do contexto delineado, sem qualquer óbice decorrente da norma escorada no inciso LXVII do artigo 5º da CF, pois a ela não se amolda.

Quanto ao prazo dessa prisão civil, comumente tem sido observado o mesmo previsto ao devedor de alimentos, que é de até três meses. Certo é que o magistrado deverá fixar antecipadamente o prazo de duração, esclarecendo que o cumprimento da prestação fará cessar imediatamente a prisão. Além disso, deverá, sempre, garantir o contraditório.

Referências

BONÍCIO, M. J. M. Impossibilidade de prisão civil do réu na tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e de entregar coisa certa ou incerta (arts. 461 e 461-A do CPC). São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, maio 2006. Disponível em: www.damasio.com.br.

DIDIER JR, F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. Curso de direito processual civil. v. 2. Bahia: Edições Jus Podivm, 2007.

MARINONI, L. G.; ARENHART, S. C. Manual do processo de conhecimento. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

MORAES, A. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2006.

PAUL, A. C. L. G. Colisão entre direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1136, 11 de agosto de 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id= 8770.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200860

Resumo:Análise do cabimento de direito subjetivo ou expectativa de direito à nomeação pelos aprovados em concurso público, face o poder discricionário da Administração Pública em seus atos administrativos, tendo por base o artigo 37, inciso IV da Constituição Federal, em prol da moralidade no serviço público, ensejando o fornecimento de algumas respostas para solução deste paradoxo jurídico que envolve o Estado e toda a sociedade.

Palavras-chave: concurso público, aprovação, expectativa, Direito.

Desde o início do século XXI as relações empregatícias vêm se tornando cada vez mais dinâmicas. A iniciativa privada exige sempre empregados mais esforçados, eficientes e, acima de tudo, capacitados. Esse modo de seleção eleva o nível do trabalho, bem como o nível de resultados. Seguindo essa linha de raciocínio, a Administração Pública, apesar de não buscar lucros, vem se pautando em selecionar seus servidores a fim de alcançar a excelência na qualidade de seus serviços.

Contudo, em um país como o Brasil, que desde seus primórdios foi regido por regime centralizador, como a monarquia de Dom Pedro I, sem esquecer dos altos níveis de desemprego que assolam a sociedade, a idéia de privilegiar familiares e amigos, em todos os aspectos, acabou por se arraigar em sua cultura. Não foi diferente nos órgãos do Governo. Quem detinha o poder de um

APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO E A

DISCRICIONARIEDADE DE NOMEAÇÃO

PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA*Daiane Mendes Pereira Torres

* Cursando o 10º período do curso de Direito da Universidade Católica de Goiás e estagiária da 57ª Promotoria de Justiça – Defesa do Patrimônio Público, desde 21.08.2006. E-mail: [email protected].

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 61

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(2007, p. 367): “Essa medida deverá ser utilizada apenas em último caso, desde que o valor que se busca resguardar se mostre, no caso concreto, mais relevante do que a liberdade individual do devedor”.

Logo, propositadamente, deve-se negar a prisão civil para efetivação de direito exclusivamente patrimonial e, noutro extremo, afastar o preconceito e aceitar a imposição da prisão civil dentro do contexto delineado, sem qualquer óbice decorrente da norma escorada no inciso LXVII do artigo 5º da CF, pois a ela não se amolda.

Quanto ao prazo dessa prisão civil, comumente tem sido observado o mesmo previsto ao devedor de alimentos, que é de até três meses. Certo é que o magistrado deverá fixar antecipadamente o prazo de duração, esclarecendo que o cumprimento da prestação fará cessar imediatamente a prisão. Além disso, deverá, sempre, garantir o contraditório.

Referências

BONÍCIO, M. J. M. Impossibilidade de prisão civil do réu na tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e de entregar coisa certa ou incerta (arts. 461 e 461-A do CPC). São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, maio 2006. Disponível em: www.damasio.com.br.

DIDIER JR, F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. Curso de direito processual civil. v. 2. Bahia: Edições Jus Podivm, 2007.

MARINONI, L. G.; ARENHART, S. C. Manual do processo de conhecimento. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

MORAES, A. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2006.

PAUL, A. C. L. G. Colisão entre direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1136, 11 de agosto de 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id= 8770.

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Resumo:Análise do cabimento de direito subjetivo ou expectativa de direito à nomeação pelos aprovados em concurso público, face o poder discricionário da Administração Pública em seus atos administrativos, tendo por base o artigo 37, inciso IV da Constituição Federal, em prol da moralidade no serviço público, ensejando o fornecimento de algumas respostas para solução deste paradoxo jurídico que envolve o Estado e toda a sociedade.

Palavras-chave: concurso público, aprovação, expectativa, Direito.

Desde o início do século XXI as relações empregatícias vêm se tornando cada vez mais dinâmicas. A iniciativa privada exige sempre empregados mais esforçados, eficientes e, acima de tudo, capacitados. Esse modo de seleção eleva o nível do trabalho, bem como o nível de resultados. Seguindo essa linha de raciocínio, a Administração Pública, apesar de não buscar lucros, vem se pautando em selecionar seus servidores a fim de alcançar a excelência na qualidade de seus serviços.

Contudo, em um país como o Brasil, que desde seus primórdios foi regido por regime centralizador, como a monarquia de Dom Pedro I, sem esquecer dos altos níveis de desemprego que assolam a sociedade, a idéia de privilegiar familiares e amigos, em todos os aspectos, acabou por se arraigar em sua cultura. Não foi diferente nos órgãos do Governo. Quem detinha o poder de um

APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO E A

DISCRICIONARIEDADE DE NOMEAÇÃO

PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA*Daiane Mendes Pereira Torres

* Cursando o 10º período do curso de Direito da Universidade Católica de Goiás e estagiária da 57ª Promotoria de Justiça – Defesa do Patrimônio Público, desde 21.08.2006. E-mail: [email protected].

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cargo de chefia acabava por contratar pessoas de sua “confiança” para exercer funções técnicas, em detrimento daqueles que detinham o conhecimento específico de determinada área.

Assim, após inúmeras tentativas de extirpar essa mentalidade medíocre, a Administração Pública está abrindo suas portas para a sociedade, para que os cidadãos ocupem o “lado de dentro dos balcões de informações”, resultando na melhor forma de democratizar o acesso da comunidade ao serviço público através de concurso.

Apesar de atender bem ao conceito da palavra “discricionário”, quando a Administração, diante de caso concreto, tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas para o Direito, o Governo acaba ferindo a letra da Carta Magna que disciplina os princípios administrativos e constitucionais que norteiam a atuação do Estado, como a moralidade administrativa, bem como também ferem a disposição que todo cargo público deve ser ocupado através de concurso público, ressalvadas as funções de chefia, assessoria e direção, art. 37, II, CF/88.

Os aprovados nos concursos públicos acabam ficando excluídos dessa relação, pois com muito esforço e dedicação conseguiram sua aprovação. O Estado, que arrecadou milhões com as taxas de inscrição, alega que a dotação orçamentária não é suficiente para convocá-los, pois não querem se desvencilhar de seus ‘apaniguados’ políticos. Por fim, os aprovados ainda possuem a dúvida de que a aprovação lhes garanta o direito subjetivo ou mera expectativa de direito à nomeação.

Primeiramente, cabe analisar o teor do poder discricionário conferido ao Estado. O Governo executa sua atividade por meio de atos, denominados atos administrativos. Estes atos são dotados de requisitos que os diferenciam dos atos legislativos (leis) e judiciários (decisões judiciais).

Ato administrativo é toda prescrição unilateral, juízo ou conhecimento, predisposta à produção de efeitos jurídicos, expedida pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, no exercício de suas prerrogativas e como parte interessada numa relação, estabelecida na conformidade ou na compatibilidade da lei, sob o

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200862

fundamento de cumprir finalidades assinaladas no sistema normativo, sindicável pelo Judiciário (GASPARINI, 2004).

Assim, entre as várias classificações que podem ser dadas ao ato administrativo, interessa-nos o regramento, que divide os atos em vinculados e discricionários.

Os atos vinculados estão intimamente ligados ao princípio da legalidade, é a lei o principal fator que limita as ações da Administração Pública: “Isto significa que os poderes que exerce o administrador público são regrados pelo sistema jurídico vigente. Não pode a autoridade ultrapassar os limites que a lei traça à sua atividade, sob pena de ilegalidade” (DI PIETRO, 1992, p. 161).

Esta conceituação é oposta ao do ato discricionário que, para Celso Antônio Bandeira de Melo (citado em MOTTA, 2005, p. 179),

é a margem de ‘liberdade’ que remaneça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um entre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à situação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandato, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para situação vertente.

Os atos discricionários estão fundados na conveniência e na oportunidade da Administração Pública para praticar tal ato.

Concurso público está intimamente ligado à discricionariedade e à vinculação. A forma deste certame está preestabelecida no respectivo Edital e editada pela União, Estado e Município, não podendo o administrador se pautar em sua própria vontade. Trata-se de ato vinculado.

Contudo, por exemplo, os critérios adotados pela Administração Pública na correção de provas do certame que realiza para a contratação de seus servidores são do âmbito discricionário, pois “está no campo da liberdade, maior ou menor, que assista ao administrador público, isto é, o mérito do ato administrativo” (MOTTA, 2005, p. 179).

Nesse sentido, tem decidido o Superior Tribunal de Justiça:

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cargo de chefia acabava por contratar pessoas de sua “confiança” para exercer funções técnicas, em detrimento daqueles que detinham o conhecimento específico de determinada área.

Assim, após inúmeras tentativas de extirpar essa mentalidade medíocre, a Administração Pública está abrindo suas portas para a sociedade, para que os cidadãos ocupem o “lado de dentro dos balcões de informações”, resultando na melhor forma de democratizar o acesso da comunidade ao serviço público através de concurso.

Apesar de atender bem ao conceito da palavra “discricionário”, quando a Administração, diante de caso concreto, tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas para o Direito, o Governo acaba ferindo a letra da Carta Magna que disciplina os princípios administrativos e constitucionais que norteiam a atuação do Estado, como a moralidade administrativa, bem como também ferem a disposição que todo cargo público deve ser ocupado através de concurso público, ressalvadas as funções de chefia, assessoria e direção, art. 37, II, CF/88.

Os aprovados nos concursos públicos acabam ficando excluídos dessa relação, pois com muito esforço e dedicação conseguiram sua aprovação. O Estado, que arrecadou milhões com as taxas de inscrição, alega que a dotação orçamentária não é suficiente para convocá-los, pois não querem se desvencilhar de seus ‘apaniguados’ políticos. Por fim, os aprovados ainda possuem a dúvida de que a aprovação lhes garanta o direito subjetivo ou mera expectativa de direito à nomeação.

Primeiramente, cabe analisar o teor do poder discricionário conferido ao Estado. O Governo executa sua atividade por meio de atos, denominados atos administrativos. Estes atos são dotados de requisitos que os diferenciam dos atos legislativos (leis) e judiciários (decisões judiciais).

Ato administrativo é toda prescrição unilateral, juízo ou conhecimento, predisposta à produção de efeitos jurídicos, expedida pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, no exercício de suas prerrogativas e como parte interessada numa relação, estabelecida na conformidade ou na compatibilidade da lei, sob o

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fundamento de cumprir finalidades assinaladas no sistema normativo, sindicável pelo Judiciário (GASPARINI, 2004).

Assim, entre as várias classificações que podem ser dadas ao ato administrativo, interessa-nos o regramento, que divide os atos em vinculados e discricionários.

Os atos vinculados estão intimamente ligados ao princípio da legalidade, é a lei o principal fator que limita as ações da Administração Pública: “Isto significa que os poderes que exerce o administrador público são regrados pelo sistema jurídico vigente. Não pode a autoridade ultrapassar os limites que a lei traça à sua atividade, sob pena de ilegalidade” (DI PIETRO, 1992, p. 161).

Esta conceituação é oposta ao do ato discricionário que, para Celso Antônio Bandeira de Melo (citado em MOTTA, 2005, p. 179),

é a margem de ‘liberdade’ que remaneça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um entre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à situação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandato, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para situação vertente.

Os atos discricionários estão fundados na conveniência e na oportunidade da Administração Pública para praticar tal ato.

Concurso público está intimamente ligado à discricionariedade e à vinculação. A forma deste certame está preestabelecida no respectivo Edital e editada pela União, Estado e Município, não podendo o administrador se pautar em sua própria vontade. Trata-se de ato vinculado.

Contudo, por exemplo, os critérios adotados pela Administração Pública na correção de provas do certame que realiza para a contratação de seus servidores são do âmbito discricionário, pois “está no campo da liberdade, maior ou menor, que assista ao administrador público, isto é, o mérito do ato administrativo” (MOTTA, 2005, p. 179).

Nesse sentido, tem decidido o Superior Tribunal de Justiça:

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R e c u r s o e m m a n d a d o d e s e g u r a n ç a . Administrativo. Concurso público. Questões ob je t ivas . Anulação . Imposs ib i l idade . Substituição à banca examinadora. Limitação de atuação do Poder Judiciário. Ainda que a Corte a quo tenha concordado com a anulação de uma das questões apontadas, não socorre à recorrente o direito de que o Pode Judiciário, atuando em verdadeira substituição à banca examinadora, aprecie critérios na formulação de questões, correção de provas e outros, muito menos a pretexto de anular questões. Procedentes. Recurso desprovido. (ROMS 15666/RS; Recurso Ordinár io em Mandado de Segurança 2002/0129441-1, Ministro José Arnaldo da Fonseca (1106), T5-Quinta Turma, 06.04.2004. DJ 10.05.2004, p. 00306, grifos meus)

Cabe ressaltar que o Ministério Público tem um papel importante no Controle Judiciário dos atos administrativos, já que atua na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, CF), os chamados interesses difusos e coletivos.

Neste sentido, Fabrício Motta (2005, p. 173, nota 4) se pronuncia:

Resulta evidente que tudo quanto disser respeito a aspectos de legalidade, no sentido amplo, de um concurso público, comporta apreciação pelo judiciário desde que provocado por quem tenha legítimo interesse para agir, seja um candidato prejudicado, seja qualquer cidadão na defesa da moralidade administrativa violada (CF, art. 5º, LXXII), seja o Ministério Público quando couber atuar.

Agora, urge analisarmos os requisitos autorizadores para a abertura de concurso público para determinado cargo.

Emerson Garcia (2006, p. 365) elenca os fatores que norteiam a decisão da Administração Pública na realização de concurso público, pois “a princípio, é ato discricionário a aferição de necessidade ou não, de realização de concurso público para a admissão de novos servidores”:

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200864

a) diminuição do quadro de pessoal – por motivos de aposentadoria, demissão, promoção, etc.;b) remanejamento ou redimensionamento das atribuições dos órgãos e dos agentes, inviabilizando a manutenção do serviço prestado;c) precariedade do serviço, em flagrante descompasso com o princípio da eficiência.

Havendo a análise desses aspectos, frise-se, de caráter discricionário do Estado, pois se trata de mérito administrativo, é que o ente estatal estaria apto a realizar um concurso para suprir a carência de servidores.

Nessa mesma seara se encontra o direito à nomeação dos aprovados. Se esses fatores perpetuarem após a realização do concurso o Estado estaria apto a convocá-los. Frise-se, novamente, que essa análise é personalíssima da Administração Pública, não podendo o Poder Judiciário avocar essa atribuição em prejuízo do princípio da separação dos poderes. O que o Poder Judiciário pode averiguar é se realmente houve, por parte da Administração Pública, um ato baseado no poder discricionário e não na arbitrariedade.

Hely Lopes Meirelles (2005, p. 688) orienta:

Nem mesmo os atos discricionários refogem do controle judicial, porque, quanto à competência, constituem matéria de legalidade, tão sujeita ao confronto da Justiça como qualquer outro elemento do ato vinculado. [...] Daí por que o Judiciário terá que examinar o ato argüido de discricionário, primeiro, para verificar se realmente o é; segundo, para apurar se a discrição não desbordou para o arbítrio.

Hely Lopes Meirelles (idem, p. 422) segue a corrente positivista, tradicionalista, também leciona:

Vencido o concurso, o primeiro colocado adquire direito subjetivo à nomeação com preferência sobre qualquer outro , desde que a Administração se disponha a prover o cargo ou o emprego público, mas com a conveniência e

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 65

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R e c u r s o e m m a n d a d o d e s e g u r a n ç a . Administrativo. Concurso público. Questões ob je t ivas . Anulação . Imposs ib i l idade . Substituição à banca examinadora. Limitação de atuação do Poder Judiciário. Ainda que a Corte a quo tenha concordado com a anulação de uma das questões apontadas, não socorre à recorrente o direito de que o Pode Judiciário, atuando em verdadeira substituição à banca examinadora, aprecie critérios na formulação de questões, correção de provas e outros, muito menos a pretexto de anular questões. Procedentes. Recurso desprovido. (ROMS 15666/RS; Recurso Ordinár io em Mandado de Segurança 2002/0129441-1, Ministro José Arnaldo da Fonseca (1106), T5-Quinta Turma, 06.04.2004. DJ 10.05.2004, p. 00306, grifos meus)

Cabe ressaltar que o Ministério Público tem um papel importante no Controle Judiciário dos atos administrativos, já que atua na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, CF), os chamados interesses difusos e coletivos.

Neste sentido, Fabrício Motta (2005, p. 173, nota 4) se pronuncia:

Resulta evidente que tudo quanto disser respeito a aspectos de legalidade, no sentido amplo, de um concurso público, comporta apreciação pelo judiciário desde que provocado por quem tenha legítimo interesse para agir, seja um candidato prejudicado, seja qualquer cidadão na defesa da moralidade administrativa violada (CF, art. 5º, LXXII), seja o Ministério Público quando couber atuar.

Agora, urge analisarmos os requisitos autorizadores para a abertura de concurso público para determinado cargo.

Emerson Garcia (2006, p. 365) elenca os fatores que norteiam a decisão da Administração Pública na realização de concurso público, pois “a princípio, é ato discricionário a aferição de necessidade ou não, de realização de concurso público para a admissão de novos servidores”:

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a) diminuição do quadro de pessoal – por motivos de aposentadoria, demissão, promoção, etc.;b) remanejamento ou redimensionamento das atribuições dos órgãos e dos agentes, inviabilizando a manutenção do serviço prestado;c) precariedade do serviço, em flagrante descompasso com o princípio da eficiência.

Havendo a análise desses aspectos, frise-se, de caráter discricionário do Estado, pois se trata de mérito administrativo, é que o ente estatal estaria apto a realizar um concurso para suprir a carência de servidores.

Nessa mesma seara se encontra o direito à nomeação dos aprovados. Se esses fatores perpetuarem após a realização do concurso o Estado estaria apto a convocá-los. Frise-se, novamente, que essa análise é personalíssima da Administração Pública, não podendo o Poder Judiciário avocar essa atribuição em prejuízo do princípio da separação dos poderes. O que o Poder Judiciário pode averiguar é se realmente houve, por parte da Administração Pública, um ato baseado no poder discricionário e não na arbitrariedade.

Hely Lopes Meirelles (2005, p. 688) orienta:

Nem mesmo os atos discricionários refogem do controle judicial, porque, quanto à competência, constituem matéria de legalidade, tão sujeita ao confronto da Justiça como qualquer outro elemento do ato vinculado. [...] Daí por que o Judiciário terá que examinar o ato argüido de discricionário, primeiro, para verificar se realmente o é; segundo, para apurar se a discrição não desbordou para o arbítrio.

Hely Lopes Meirelles (idem, p. 422) segue a corrente positivista, tradicionalista, também leciona:

Vencido o concurso, o primeiro colocado adquire direito subjetivo à nomeação com preferência sobre qualquer outro , desde que a Administração se disponha a prover o cargo ou o emprego público, mas com a conveniência e

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oportunidade do provimento ficam à inteira discrição do Poder Público. O que não se admite é a nomeação de outro candidato que não o vencedor do concurso, pois, nesse caso, haverá preterição do seu direito, salvo a exceção do art. 37, IV. (grifos meus)

Para a linha tradicionalista, a aferição da necessidade da nomeação está à inteira discrição do Poder Público, podendo o Judiciário atuar somente quando houver preterição do direito do vencedor do concurso.

Inclusive o Supremo Tribunal Federal consagrou esse entendimento na súmula 15, conforme se vislumbra pelos seguintes julgados:

C O N C U R S O P Ú B L I C O : D I R E I TO À NOMEAÇÃO: SÚMULA 15/STF. Firme o entendimento do STF no sentido de que o candidato aprovado em concurso público detém mera expectativa de direito, não direito à nomeação. (AI-AgR 381529 – SP – São Paulo. Ag. Reg. No Agravo de Instrumento. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Julg.: 22/06/2004. Pub.: DJ 03/06/2005, grifos meus)

C O N C U R S O P Ú B L I C O : D I R E I TO À NOMEAÇÃO: SÚMULA 15-STF. Firmou-se o entendimento do STF no sentido de que o candidato aprovado em concurso público torna-se detentor de mera expectativa de direito, não de direito à nomeação: precedentes. [...]. (AI-AgR 510573/DF-Distrito Federal. AG.REG.no Agravo de Instrumento. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento 12/04/2005. Primeira Turma. Pub. DJ 26-08-2005, grifos meus)

Contudo, eis que surgem operadores do Direito que seguem a tendência mais modernista como Luciano Ferraz (citado em MOTTA, 2005, p. 246, nota 4), pois estão mais atentos aos desmandos da Administração Pública, que defende

que a Teoria Geral do Direito tem se esforçado em

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200866

buscar perspectivas mais afinadas com um Estado Democrático, fundado em valores tais como cidadania, dignidade humana, pleno emprego, livre iniciativa, m pluralismo político, enfim, a superação do legalismo.

Assim, apenas com o fato de deixar de convocar os aprovados para as vagas existentes (previstas no edital ou não), simplesmente para contratá-los (ou a terceiros) precariamente, com base no art. 37, IX da Constituição, ou ainda, realizando a execução indireta (terceirização) do serviço, estão declarando a necessidade de mão-de-obra, motivo suficiente para consagrar o direito subjetivo dos aprovados à nomeação, em respeito ao princípio da razoabilidade.

Está também pacificado jurisprudencialmente que, surgindo vagas no decorrer do prazo de validade do concurso, em virtude da desistência da nomeação por parte dos aprovados e classificados dentre o número inicial de vagas, previsto no Edital, a mera expectativa dos aprovados e incluídos no cadastro de reserva torna-se direito subjetivo à nomeação. Vejamos trecho do seguinte julgado:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO: CADASTRO DE RESERVA. CANDIDATO APROVADO: DIREITO À NOMEAÇÃO. ATO OMISSIVO. VALIDADE DO CONCURSO. PRAZO DECADENCIAL. TERMO INICIAL. 1. Candidatos aprovados em concurso público e classificados além do número de vagas originalmente previsto no Edital de convocação. Inclusão no cadastro de reserva destinado ao preenchimento de cargos que viessem a ficar vagos no prazo de validade. Conseqüência: direito subjetivo à nomeação, durante o lapso assinalado no respectivo edital, caso se verifiquem as condições legais veiculadas para o ato. 2. Ato omissivo consistente na não nomeação de candidatos aprovados em concurso público. Alegação insubsistente, dado que não se pode reputar omisso o administrador que, em razão do término da eficácia jurídica do

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oportunidade do provimento ficam à inteira discrição do Poder Público. O que não se admite é a nomeação de outro candidato que não o vencedor do concurso, pois, nesse caso, haverá preterição do seu direito, salvo a exceção do art. 37, IV. (grifos meus)

Para a linha tradicionalista, a aferição da necessidade da nomeação está à inteira discrição do Poder Público, podendo o Judiciário atuar somente quando houver preterição do direito do vencedor do concurso.

Inclusive o Supremo Tribunal Federal consagrou esse entendimento na súmula 15, conforme se vislumbra pelos seguintes julgados:

C O N C U R S O P Ú B L I C O : D I R E I TO À NOMEAÇÃO: SÚMULA 15/STF. Firme o entendimento do STF no sentido de que o candidato aprovado em concurso público detém mera expectativa de direito, não direito à nomeação. (AI-AgR 381529 – SP – São Paulo. Ag. Reg. No Agravo de Instrumento. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Julg.: 22/06/2004. Pub.: DJ 03/06/2005, grifos meus)

C O N C U R S O P Ú B L I C O : D I R E I TO À NOMEAÇÃO: SÚMULA 15-STF. Firmou-se o entendimento do STF no sentido de que o candidato aprovado em concurso público torna-se detentor de mera expectativa de direito, não de direito à nomeação: precedentes. [...]. (AI-AgR 510573/DF-Distrito Federal. AG.REG.no Agravo de Instrumento. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento 12/04/2005. Primeira Turma. Pub. DJ 26-08-2005, grifos meus)

Contudo, eis que surgem operadores do Direito que seguem a tendência mais modernista como Luciano Ferraz (citado em MOTTA, 2005, p. 246, nota 4), pois estão mais atentos aos desmandos da Administração Pública, que defende

que a Teoria Geral do Direito tem se esforçado em

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200866

buscar perspectivas mais afinadas com um Estado Democrático, fundado em valores tais como cidadania, dignidade humana, pleno emprego, livre iniciativa, m pluralismo político, enfim, a superação do legalismo.

Assim, apenas com o fato de deixar de convocar os aprovados para as vagas existentes (previstas no edital ou não), simplesmente para contratá-los (ou a terceiros) precariamente, com base no art. 37, IX da Constituição, ou ainda, realizando a execução indireta (terceirização) do serviço, estão declarando a necessidade de mão-de-obra, motivo suficiente para consagrar o direito subjetivo dos aprovados à nomeação, em respeito ao princípio da razoabilidade.

Está também pacificado jurisprudencialmente que, surgindo vagas no decorrer do prazo de validade do concurso, em virtude da desistência da nomeação por parte dos aprovados e classificados dentre o número inicial de vagas, previsto no Edital, a mera expectativa dos aprovados e incluídos no cadastro de reserva torna-se direito subjetivo à nomeação. Vejamos trecho do seguinte julgado:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO: CADASTRO DE RESERVA. CANDIDATO APROVADO: DIREITO À NOMEAÇÃO. ATO OMISSIVO. VALIDADE DO CONCURSO. PRAZO DECADENCIAL. TERMO INICIAL. 1. Candidatos aprovados em concurso público e classificados além do número de vagas originalmente previsto no Edital de convocação. Inclusão no cadastro de reserva destinado ao preenchimento de cargos que viessem a ficar vagos no prazo de validade. Conseqüência: direito subjetivo à nomeação, durante o lapso assinalado no respectivo edital, caso se verifiquem as condições legais veiculadas para o ato. 2. Ato omissivo consistente na não nomeação de candidatos aprovados em concurso público. Alegação insubsistente, dado que não se pode reputar omisso o administrador que, em razão do término da eficácia jurídica do

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concurso, não mais detém autorização legal para efetivação do ato requerido. [...] (RMS 22119/DF – Distrito Federal. Relato Min. Maurício Corrêa. Julg.: 30/04/2002. Pub.: DJ 14/06/2002, grifos meus)

Não obstante o ordenamento jurídico garantir o direito subjetivo quando vislumbrar preterição desse direito, na prática a Administração Pública ainda está relutante em obedecer a esses mandamentos.

Concluímos, assim, que há duas tendências quanto à garantia de nomeação dos aprovados. A primeira é a que predomina nos tribunais, pacificada por meio da Súmula 15, que engessa a convocação da expectativa em direito subjetivo apenas nos casos de preterição da ordem convocatória.

A segunda tendência, que surge veemente, defende que apenas com a violação de algum dos princípios constitucionais elencados no caput do art. 37 da Carta Política já é o suficiente para acarretar a intervenção do Poder Judiciário nos atos da Administração Pública, com o fim de garantir a convocação. Isto se daria a partir do momento que há a contratação de pessoal, de forma precária, para o preenchimento de vagas existentes, em flagrante preterição dos aprovados em concurso público ainda válido. Havendo desistência dos melhores classificados na lista dos aprovados, ou até mesmo nos casos de aposentadoria, a mera expectativa torna-se direito subjetivo à nomeação dos aprovados até no Cadastro de Reserva.

Esta tendência jurídica vem despertando a atenção dos operadores do Direito. A sociedade, na qual se incluem todos aqueles que almejam ingressar no serviço público, está disposta a dar um basta aos desmandos do Governo. Diante disso, o ordenamento jurídico, que provem fatos sociais, deve se amoldar a estes, inclusive resguardando os direitos dos hipossuficientes ‘concurseiros’ em relação aos nossos governantes anti-democratas.

Finalizamos este estudo com a citação de Ronaldo Pinheiro de Queiroz (2005, s/p), Procurador da República no Distrito Federal, que resume, de forma brilhante, o significado do concurso público:

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200868

O concurso público é a forma mais democrática e legítima de se buscar as melhores pessoas, dentre as que participam do certame, para ingressar no serviço público. Além de ensejar a todos iguais oportunidades de disputar cargos ou empregos na Administração Pública direta ou indireta, atende, a um só tempo, aos princípios da legalidade, igualdade, impessoalidade, eficiência e, acima de tudo, moralidade.

Referências

DI PIETRO, M. S. Direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1992.

GARCIA, E.; ALVES, R. P. Improbidade administrativa. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumem Jures, 2006.

GASPARINI, D. Direito administrativo. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004.

MEIRELLES, H. L. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2005.

MOTTA, F. (Org.). Concurso público e constituição. Belo Horizonte: Fórum, 2005.

QUEIROZ, R. P. de. A contratação temporária, o Supremo Tribunal Federal e o alcance da expressão “necessidade temporária de excepcional interesse público”. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 559, 17 jan. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=6193>. Acesso em: 10 jul. 2007

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concurso, não mais detém autorização legal para efetivação do ato requerido. [...] (RMS 22119/DF – Distrito Federal. Relato Min. Maurício Corrêa. Julg.: 30/04/2002. Pub.: DJ 14/06/2002, grifos meus)

Não obstante o ordenamento jurídico garantir o direito subjetivo quando vislumbrar preterição desse direito, na prática a Administração Pública ainda está relutante em obedecer a esses mandamentos.

Concluímos, assim, que há duas tendências quanto à garantia de nomeação dos aprovados. A primeira é a que predomina nos tribunais, pacificada por meio da Súmula 15, que engessa a convocação da expectativa em direito subjetivo apenas nos casos de preterição da ordem convocatória.

A segunda tendência, que surge veemente, defende que apenas com a violação de algum dos princípios constitucionais elencados no caput do art. 37 da Carta Política já é o suficiente para acarretar a intervenção do Poder Judiciário nos atos da Administração Pública, com o fim de garantir a convocação. Isto se daria a partir do momento que há a contratação de pessoal, de forma precária, para o preenchimento de vagas existentes, em flagrante preterição dos aprovados em concurso público ainda válido. Havendo desistência dos melhores classificados na lista dos aprovados, ou até mesmo nos casos de aposentadoria, a mera expectativa torna-se direito subjetivo à nomeação dos aprovados até no Cadastro de Reserva.

Esta tendência jurídica vem despertando a atenção dos operadores do Direito. A sociedade, na qual se incluem todos aqueles que almejam ingressar no serviço público, está disposta a dar um basta aos desmandos do Governo. Diante disso, o ordenamento jurídico, que provem fatos sociais, deve se amoldar a estes, inclusive resguardando os direitos dos hipossuficientes ‘concurseiros’ em relação aos nossos governantes anti-democratas.

Finalizamos este estudo com a citação de Ronaldo Pinheiro de Queiroz (2005, s/p), Procurador da República no Distrito Federal, que resume, de forma brilhante, o significado do concurso público:

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200868

O concurso público é a forma mais democrática e legítima de se buscar as melhores pessoas, dentre as que participam do certame, para ingressar no serviço público. Além de ensejar a todos iguais oportunidades de disputar cargos ou empregos na Administração Pública direta ou indireta, atende, a um só tempo, aos princípios da legalidade, igualdade, impessoalidade, eficiência e, acima de tudo, moralidade.

Referências

DI PIETRO, M. S. Direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1992.

GARCIA, E.; ALVES, R. P. Improbidade administrativa. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumem Jures, 2006.

GASPARINI, D. Direito administrativo. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004.

MEIRELLES, H. L. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2005.

MOTTA, F. (Org.). Concurso público e constituição. Belo Horizonte: Fórum, 2005.

QUEIROZ, R. P. de. A contratação temporária, o Supremo Tribunal Federal e o alcance da expressão “necessidade temporária de excepcional interesse público”. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 559, 17 jan. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=6193>. Acesso em: 10 jul. 2007

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200870

Resumo:Muitos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, além de outros órgãos, auferem dos Municípios o pagamento de seus aluguéis pessoais. Afastada a confusão deste pagamento com o denominado auxílio-moradia, previsto na Resolução n. 14, de 21 de março de 2006, do Conselho Nacional de Justiça, essa prática indiscriminada viola o subsídio constitucional estipulado aos agentes públicos por ser considerado salário “in natura” pelo Direito do Trabalho. Além disso, há vedação constitucional aos membros das instituições supramencionadas de auferirem auxílio e contribuições a qualquer título ou pretexto de entidades públicas (Municípios).

Palavras-chave: pagamento de aluguéis, subsídio, auxílio-moradia, salário “in natura”, vedação constitucional.

Introdução

O presente artigo, longe de esgotar o assunto, tem a finalidade de provocar ilações acerca do pagamento de aluguéis pelos Municípios aos membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, além de outros agentes públicos.

Sabe-se que na Constituição não existem palavras inúteis (TAVARES, 2008) ou fora de contexto, de modo que se presume ter o legislador meditado e escolhido o melhor significado para as palavras para empregá-las nos diplomas normativos.

VIOLAÇÃO AO SUBSÍDIO CONSTITUCIONAL

*João Paulo Cândido S. Oliveira

* Promotor de Justiça Substituto do Estado de Goiás. Especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Paraná. Graduado pela FUNDINOPI – Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro - Estado do Paraná.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 71

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200870

Resumo:Muitos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, além de outros órgãos, auferem dos Municípios o pagamento de seus aluguéis pessoais. Afastada a confusão deste pagamento com o denominado auxílio-moradia, previsto na Resolução n. 14, de 21 de março de 2006, do Conselho Nacional de Justiça, essa prática indiscriminada viola o subsídio constitucional estipulado aos agentes públicos por ser considerado salário “in natura” pelo Direito do Trabalho. Além disso, há vedação constitucional aos membros das instituições supramencionadas de auferirem auxílio e contribuições a qualquer título ou pretexto de entidades públicas (Municípios).

Palavras-chave: pagamento de aluguéis, subsídio, auxílio-moradia, salário “in natura”, vedação constitucional.

Introdução

O presente artigo, longe de esgotar o assunto, tem a finalidade de provocar ilações acerca do pagamento de aluguéis pelos Municípios aos membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, além de outros agentes públicos.

Sabe-se que na Constituição não existem palavras inúteis (TAVARES, 2008) ou fora de contexto, de modo que se presume ter o legislador meditado e escolhido o melhor significado para as palavras para empregá-las nos diplomas normativos.

VIOLAÇÃO AO SUBSÍDIO CONSTITUCIONAL

*João Paulo Cândido S. Oliveira

* Promotor de Justiça Substituto do Estado de Goiás. Especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Paraná. Graduado pela FUNDINOPI – Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro - Estado do Paraná.

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A Constituição da República assevera, em seu artigo 39, §4°, que

o membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI. (grifos meus)

Questiona-se, então, se o pagamento de aluguéis pelo Município aos membros supramencionados configura ou não violação ao subsídio constitucional.

Do subsídio constitucional

A partir da Emenda Constitucional n. 19/98 a retribuição pecuniária para o membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e Secretários Estaduais e Municipais (art. 39, § 4º, da CRFB), os membros do Ministério Público (art. 128, § 5º, CRFB), para os membros da Advocacia Pública e da Defensoria Pública (art. 135, CRFB), para as Carreiras Policiais (art. 144, § 9º, CRFB) será obrigatoriamente feito por meio do subsídio.

Já aos demais servidores estatutários organizados em carreira (art. 39, § 8º, CRFB) poderá ser instituído o subsídio, caso seja oportuno.

Nas palavras de Carmem Lúcia Antunes da Rocha (1999, p. 303-314), Ministra do Supremo Tribunal Federal, tem-se que:

Tem-se na norma constitucional em estudo (art. 39, § 4º) que aqueles titulares do direito ao subsídio terão nele a sua fonte exclusiva de pagamento ('serão remunerados exclusivamente por subsídio') e que ele se forma por uma parcela única, vedando-se outros acréscimos.Há de interpretar aquela norma considerando-se a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200872

inovação positivada com a utilização de um rótulo jurídico que, anteriormente, ostentava conteúdo inteiramente diverso, mesmo em sua composição administrativa e pecuniária, e em sua natureza jurídica.Em primeiro lugar, há de se inteligir que o subsídio é a forma de remuneração exclusiva daqueles agentes no sentido de que não se lhes há de admitir tal pagamento como uma espécie remuneratória acrescendo-se a ela um vencimento ou qualquer outra espécie de pagamento pela contraprestação devida em razão do exercício do cargo ou da função.[...]O subsídio é fixado em parcela única, mas a remuneração não necessariamente. Não há qualquer vedação constitucional a que os demais direitos dos agentes públicos, aí incluídos aqueles definidos na norma do art. 39, § 4º, venham a ser espoliados ou excluídos do seu patrimônio. Nem poderia, porque a Emenda Constitucional não pode sequer tender a abolir, que dirá botar por terra, direitos fundamentais como aquele relativo ao pagamento no período de férias, o 13º, dentre outros, que alteram o valor remuneratório, mas não o valor do subsídio. O que não se pretende permitir, na norma constitucional em epígrafe, é tão-somente que o padrão subsidiado e destinado à remuneração básica dos agentes públicos, aos quais ele se destina, componha-se de parcela fixa e outra variável, parcela referente ao exercício e outras formas de gratificação, parcela fixa e outra pelo exercício de representação etc.[...]Daí se tem que não há qualquer proibição constitucional a que o agente público, descrito dentre aqueles elencados na norma do art. 39, § 4º, venha a perceber, em sua remuneração, e não em seu subsídio, outra parcela que corresponda a uma circunstância específica, esporádica e com fundamento diverso daquele relativo ao valor padrão básico devido em função do exercício do cargo.[...]Subsídio não elimina nem é incompatível com

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A Constituição da República assevera, em seu artigo 39, §4°, que

o membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI. (grifos meus)

Questiona-se, então, se o pagamento de aluguéis pelo Município aos membros supramencionados configura ou não violação ao subsídio constitucional.

Do subsídio constitucional

A partir da Emenda Constitucional n. 19/98 a retribuição pecuniária para o membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e Secretários Estaduais e Municipais (art. 39, § 4º, da CRFB), os membros do Ministério Público (art. 128, § 5º, CRFB), para os membros da Advocacia Pública e da Defensoria Pública (art. 135, CRFB), para as Carreiras Policiais (art. 144, § 9º, CRFB) será obrigatoriamente feito por meio do subsídio.

Já aos demais servidores estatutários organizados em carreira (art. 39, § 8º, CRFB) poderá ser instituído o subsídio, caso seja oportuno.

Nas palavras de Carmem Lúcia Antunes da Rocha (1999, p. 303-314), Ministra do Supremo Tribunal Federal, tem-se que:

Tem-se na norma constitucional em estudo (art. 39, § 4º) que aqueles titulares do direito ao subsídio terão nele a sua fonte exclusiva de pagamento ('serão remunerados exclusivamente por subsídio') e que ele se forma por uma parcela única, vedando-se outros acréscimos.Há de interpretar aquela norma considerando-se a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200872

inovação positivada com a utilização de um rótulo jurídico que, anteriormente, ostentava conteúdo inteiramente diverso, mesmo em sua composição administrativa e pecuniária, e em sua natureza jurídica.Em primeiro lugar, há de se inteligir que o subsídio é a forma de remuneração exclusiva daqueles agentes no sentido de que não se lhes há de admitir tal pagamento como uma espécie remuneratória acrescendo-se a ela um vencimento ou qualquer outra espécie de pagamento pela contraprestação devida em razão do exercício do cargo ou da função.[...]O subsídio é fixado em parcela única, mas a remuneração não necessariamente. Não há qualquer vedação constitucional a que os demais direitos dos agentes públicos, aí incluídos aqueles definidos na norma do art. 39, § 4º, venham a ser espoliados ou excluídos do seu patrimônio. Nem poderia, porque a Emenda Constitucional não pode sequer tender a abolir, que dirá botar por terra, direitos fundamentais como aquele relativo ao pagamento no período de férias, o 13º, dentre outros, que alteram o valor remuneratório, mas não o valor do subsídio. O que não se pretende permitir, na norma constitucional em epígrafe, é tão-somente que o padrão subsidiado e destinado à remuneração básica dos agentes públicos, aos quais ele se destina, componha-se de parcela fixa e outra variável, parcela referente ao exercício e outras formas de gratificação, parcela fixa e outra pelo exercício de representação etc.[...]Daí se tem que não há qualquer proibição constitucional a que o agente público, descrito dentre aqueles elencados na norma do art. 39, § 4º, venha a perceber, em sua remuneração, e não em seu subsídio, outra parcela que corresponda a uma circunstância específica, esporádica e com fundamento diverso daquele relativo ao valor padrão básico devido em função do exercício do cargo.[...]Subsídio não elimina nem é incompatível com

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vantagem constitucionalmente obrigatória ou legalmente concedida. O que não se admite mais é a concessão de um aumento que venha travestido de vantagem, mas que dessa natureza não é. A vantagem guarda natureza própria, fundamento específico e característica legal singular, que não é confundida com os sucessivos aumentos e aumentos sobre aumentos, que mais escondiam que mostravam aos cidadãos quanto cada dos seus agentes percebia em função do exercício do seu cargo, função ou emprego público. (grifos meus)

Já o professor Dirley da Cunha Júnior (2006, p. 227) encara o subsídio da seguinte forma:

Subsídio, portanto, consiste em nova modalidade de retribuição pecuniária paga a certos agentes públicos, em parcela única, sendo vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória. Sem embargo disso, a própria Constituição Federal, em face do § 3º do art. 39, permitiu o acréscimo ao subsídio de certas gratificações e indenizações, e determinados adicionais, como a gratificação de natal, os a d i c i o n a i s d e f é r i a s , d e s e r v i ç o s extraordinários, as diárias, as ajudas de custo e o salário-família. (grifos meus)

Conclui-se, então, que o subsídio é a forma de remuneração obrigatória de alguns agentes públicos ocupantes de certos cargos específicos, pago em “parcela única” e vedado o acréscimo de outras espécies remuneratórias, salvo aqueles casos compreendidos no artigo 39, §3°, da Constituição da República.

Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça editou Resolução n. 14, de 21 de março de 2006, para aclarar os pontos obscuros entre o subsídio e o teto remuneratório, onde, em um dos aspectos, asseverou sobre o auxílio-moradia e sua natureza jurídica.

Agora, resta saber o que é o auxílio-moradia e se ele tem a mesma natureza jurídica do pagamento de aluguéis feitos por vários Municípios do país aos membros do Poder Judiciário e do

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200874

Ministério Público e ocupantes de outros cargos.

Do auxílio-moradia

Com vistas a regulamentar a ressalva constitucional (art. 39, §3°, CRFB), o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n. 14, de 21 de março de 2006, cujo excerto segue abaixo, no que importa:

Art. 4º Ficam excluídas da incidência do teto remuneratório constitucional as seguintes verbas: I - de caráter indenizatório, previstas em lei: [...]c) auxílio-moradia;[...](grifos meus)

Considerou-se, então, o auxílio-moradia uma verba de caráter indenizatório, que não fere o subsídio e que está excluída da incidência de teto remuneratório constitucional.

Todavia, primeiramente, questiona-se: Que seria, então, o denominado auxílio-moradia?

O fundamento dessa primeira questão, mutatis mutandis, pode ser encontrado no Decreto n. 3.255, de novembro de 1999, no qual o Presidente da República dispôs sobre o custeio de auxílio-moradia para dirigentes de empresas estatais.

Segue excerto do diploma legal, no que importa:

Art. 1º As empresas estatais federais, que não dispuserem de imóvel funcional em número suficiente, poderão custear os gastos com moradia de seus dirigentes, que tenham que transferir seu domicílio ou sua residência para o exercício do cargo, mediante ressarcimento das despesas efetuadas e nas condições estabelecidas neste Decreto.§ 1º A empresa estatal federal poderá, alternativamente, fornecer moradia funcional na forma da cessão de uso de imóvel de terceiro,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 75

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vantagem constitucionalmente obrigatória ou legalmente concedida. O que não se admite mais é a concessão de um aumento que venha travestido de vantagem, mas que dessa natureza não é. A vantagem guarda natureza própria, fundamento específico e característica legal singular, que não é confundida com os sucessivos aumentos e aumentos sobre aumentos, que mais escondiam que mostravam aos cidadãos quanto cada dos seus agentes percebia em função do exercício do seu cargo, função ou emprego público. (grifos meus)

Já o professor Dirley da Cunha Júnior (2006, p. 227) encara o subsídio da seguinte forma:

Subsídio, portanto, consiste em nova modalidade de retribuição pecuniária paga a certos agentes públicos, em parcela única, sendo vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória. Sem embargo disso, a própria Constituição Federal, em face do § 3º do art. 39, permitiu o acréscimo ao subsídio de certas gratificações e indenizações, e determinados adicionais, como a gratificação de natal, os a d i c i o n a i s d e f é r i a s , d e s e r v i ç o s extraordinários, as diárias, as ajudas de custo e o salário-família. (grifos meus)

Conclui-se, então, que o subsídio é a forma de remuneração obrigatória de alguns agentes públicos ocupantes de certos cargos específicos, pago em “parcela única” e vedado o acréscimo de outras espécies remuneratórias, salvo aqueles casos compreendidos no artigo 39, §3°, da Constituição da República.

Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça editou Resolução n. 14, de 21 de março de 2006, para aclarar os pontos obscuros entre o subsídio e o teto remuneratório, onde, em um dos aspectos, asseverou sobre o auxílio-moradia e sua natureza jurídica.

Agora, resta saber o que é o auxílio-moradia e se ele tem a mesma natureza jurídica do pagamento de aluguéis feitos por vários Municípios do país aos membros do Poder Judiciário e do

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200874

Ministério Público e ocupantes de outros cargos.

Do auxílio-moradia

Com vistas a regulamentar a ressalva constitucional (art. 39, §3°, CRFB), o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n. 14, de 21 de março de 2006, cujo excerto segue abaixo, no que importa:

Art. 4º Ficam excluídas da incidência do teto remuneratório constitucional as seguintes verbas: I - de caráter indenizatório, previstas em lei: [...]c) auxílio-moradia;[...](grifos meus)

Considerou-se, então, o auxílio-moradia uma verba de caráter indenizatório, que não fere o subsídio e que está excluída da incidência de teto remuneratório constitucional.

Todavia, primeiramente, questiona-se: Que seria, então, o denominado auxílio-moradia?

O fundamento dessa primeira questão, mutatis mutandis, pode ser encontrado no Decreto n. 3.255, de novembro de 1999, no qual o Presidente da República dispôs sobre o custeio de auxílio-moradia para dirigentes de empresas estatais.

Segue excerto do diploma legal, no que importa:

Art. 1º As empresas estatais federais, que não dispuserem de imóvel funcional em número suficiente, poderão custear os gastos com moradia de seus dirigentes, que tenham que transferir seu domicílio ou sua residência para o exercício do cargo, mediante ressarcimento das despesas efetuadas e nas condições estabelecidas neste Decreto.§ 1º A empresa estatal federal poderá, alternativamente, fornecer moradia funcional na forma da cessão de uso de imóvel de terceiro,

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aplicando-se ao beneficiário as mesmas regras estabelecidas na ocupação de imóveis funcionais, obedecido ao limite máximo previsto no art. 5º deste Decreto.[...]Art. 2º Para os efeitos deste Decreto, consideram-se:[...]II - dirigentes: pessoas eleitas, nomeadas ou designadas para ocupar cargos de presidente, vice-presidente e diretores de empresa estatal;III - imóvel funcional: imóvel residencial de propriedade da empresa estatal federal, passível de permissão de uso a empregados ou dirigentes; eIV - moradia funcional: imóvel de propriedade privada, passível de ocupação para fim residencial ou de hospedagem por dirigentes, mediante contrato, acordo ou ajuste.Art. 3º Não fará jus ao benefício do ressarcimento o dirigente que for proprietário, promitente comprador, cessionário ou promitente cessionário de imóvel residencial na cidade para onde se tenha transferido, incluída a hipótese de lote edificado sem averbação de construção.Parágrafo único. Igualmente não fará jus ao benefício o dirigente cujo cônjuge ou companheiro ou companheira, amparados por lei, encontrem-se na situação descrita no caput deste artigo.[...](grifos meus)

Como se percebe pelo Decreto Presidencial, quando o órgão não dispuser de imóvel funcional em número suficiente poderá ser custeado o gasto com a moradia dos seus dirigentes que tenham que transferir seu domicílio ou residência para o exercício do cargo.

Ademais, consideram-se dirigentes as pessoas eleitas, nomeadas ou designadas para ocupar cargos de presidentes, vice-presidentes e diretores.

Em analogia, somente permitir-se-ia o auxílio-moradia, novamente mutatis mutandis, aos membros do Poder Judiciário ou

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do Ministério Público, ou outros, que exercessem certos postos da administração da instituição e que tivessem de se deslocar de seu domicílio ou de residência em outra localidade já estabelecida.

Seria, então, a indenização por ter de deixar a paz e tranqüilidade de seu lar para exercer um cargo onde não possua qualquer vínculo.

Ainda, o Decreto dispõe que não fará jus ao benefício do ressarcimento o “dirigente” que for proprietário, promitente-comprador, cessionário ou promitente-cessionário de imóvel residencial na cidade para onde se tenha transferido.

Em português claro, somente teria direito ao auxílio-moradia o ocupante de cargo diretivo da instituição (Poder Judiciário ou Ministério Público), caso este não possua residência ou domicílio no local para o qual foi designado.

Do pagamento de aluguéis pelo município aos agentes públicos

Postas essas balizas, há sustentáculo para responder à segunda questão que se apresenta: pode o denominado auxílio-moradia, que é verba indenizatória, confundir-se com o pagamento de aluguéis pelas Prefeituras do país de forma indiscriminada aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público?

A resposta, data máxima vênia aos pensamentos contrários, somente admite a forma negativa.

Ora, o auxílio-moradia é a contraprestação paga a certos dirigentes que devem sair de seu domicílio ou residência habitual para exercerem cargos de chefia na administração em face da inexistência de imóvel funcional e, ainda, na falta de imóvel próprio.

Por isso, o auxílio-moradia é considerado verba indenizatória e pode ser conferida além do teto remuneratório, sem violar o subsídio constitucional.

Porém, os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, por força constitucional, têm o dever de residir na Comarca em que são titulares, conforme inteligência do artigo 93, inciso VII, e artigo 129, §2°, CRFB:

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aplicando-se ao beneficiário as mesmas regras estabelecidas na ocupação de imóveis funcionais, obedecido ao limite máximo previsto no art. 5º deste Decreto.[...]Art. 2º Para os efeitos deste Decreto, consideram-se:[...]II - dirigentes: pessoas eleitas, nomeadas ou designadas para ocupar cargos de presidente, vice-presidente e diretores de empresa estatal;III - imóvel funcional: imóvel residencial de propriedade da empresa estatal federal, passível de permissão de uso a empregados ou dirigentes; eIV - moradia funcional: imóvel de propriedade privada, passível de ocupação para fim residencial ou de hospedagem por dirigentes, mediante contrato, acordo ou ajuste.Art. 3º Não fará jus ao benefício do ressarcimento o dirigente que for proprietário, promitente comprador, cessionário ou promitente cessionário de imóvel residencial na cidade para onde se tenha transferido, incluída a hipótese de lote edificado sem averbação de construção.Parágrafo único. Igualmente não fará jus ao benefício o dirigente cujo cônjuge ou companheiro ou companheira, amparados por lei, encontrem-se na situação descrita no caput deste artigo.[...](grifos meus)

Como se percebe pelo Decreto Presidencial, quando o órgão não dispuser de imóvel funcional em número suficiente poderá ser custeado o gasto com a moradia dos seus dirigentes que tenham que transferir seu domicílio ou residência para o exercício do cargo.

Ademais, consideram-se dirigentes as pessoas eleitas, nomeadas ou designadas para ocupar cargos de presidentes, vice-presidentes e diretores.

Em analogia, somente permitir-se-ia o auxílio-moradia, novamente mutatis mutandis, aos membros do Poder Judiciário ou

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do Ministério Público, ou outros, que exercessem certos postos da administração da instituição e que tivessem de se deslocar de seu domicílio ou de residência em outra localidade já estabelecida.

Seria, então, a indenização por ter de deixar a paz e tranqüilidade de seu lar para exercer um cargo onde não possua qualquer vínculo.

Ainda, o Decreto dispõe que não fará jus ao benefício do ressarcimento o “dirigente” que for proprietário, promitente-comprador, cessionário ou promitente-cessionário de imóvel residencial na cidade para onde se tenha transferido.

Em português claro, somente teria direito ao auxílio-moradia o ocupante de cargo diretivo da instituição (Poder Judiciário ou Ministério Público), caso este não possua residência ou domicílio no local para o qual foi designado.

Do pagamento de aluguéis pelo município aos agentes públicos

Postas essas balizas, há sustentáculo para responder à segunda questão que se apresenta: pode o denominado auxílio-moradia, que é verba indenizatória, confundir-se com o pagamento de aluguéis pelas Prefeituras do país de forma indiscriminada aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público?

A resposta, data máxima vênia aos pensamentos contrários, somente admite a forma negativa.

Ora, o auxílio-moradia é a contraprestação paga a certos dirigentes que devem sair de seu domicílio ou residência habitual para exercerem cargos de chefia na administração em face da inexistência de imóvel funcional e, ainda, na falta de imóvel próprio.

Por isso, o auxílio-moradia é considerado verba indenizatória e pode ser conferida além do teto remuneratório, sem violar o subsídio constitucional.

Porém, os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, por força constitucional, têm o dever de residir na Comarca em que são titulares, conforme inteligência do artigo 93, inciso VII, e artigo 129, §2°, CRFB:

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Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:[...]VII - o juiz titular residirá na respectiva comarca, salvo autorização do tribunal;

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:[...]§ 2º As funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira, que deverão residir na comarca da respectiva lotação, salvo autorização do chefe da instituição.

Pela mens legis constitucional, os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, por terem o dever de firmar moradia na Comarca em que atuam, não são considerados dirigentes ou ocupantes de cargos de chefia na instituição na qual laboram. Por força disso, não podem ter direito ao auxílio-moradia apenas por laborarem na Comarca, já que isso é imposição constitucional.

Ocorre que muitos Juízes, Promotores, Delegados, enfim, auferem o pagamento de aluguéis pessoais por parte do Município, sem que seja considerado auxílio-moradia, ao arrepio das normas legais e constitucional.

E há muitas razões para se pensar assim:

a) porque se auxílio-moradia fosse, deveria ser pago pela própria instituição à qual estão vinculados, tal como ocorre com as diárias e auxílio-transporte;

b) porque se fosse considerado auxílio-moradia não poderia uma instituição municipal pagá-la aos agentes públicos alheios aos seus quadros funcionais; e

c) porque viola a equivalência remuneratória de agentes em mesmo cargo, pois nem todos possuem seus aluguéis pagos pelo Poder Público, seja porque já possuam residências na Comarca, seja porque discordam desta política adotada.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200878

A conclusão, portanto, caminha no sentido de que o pagamento de aluguéis pelas Prefeituras aos agentes públicos tem natureza jurídica de “salário in natura ou salário-utilidade”, efetuado ao arrepio do texto constitucional que estipulou o subsídio.

Como espeque justificante desse entendimento, basta valer das lições de Direito do Trabalho expostas nos julgados abaixo colacionados, que seguem:

(TRT/4ª Região) EMENTA: [...] AUXILIO MORADIA OU ALUGUEL. Ao pagar o empregador ajuda moradia ou aluguel independentemente de comprovação de despesa com locativos, resta demonstrada a natureza salarial da verba apontada, por se tratar de salário “in natura” devendo, portanto, compor a remuneração do empregado para todos os efeitos legais. (Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região – 4ª Turma – RO n° 00405.007/97-3, j. 14.10.1999, DJ/RS 22.11.1999, grifos meus)

(TRT/20ª Região) IMÓVEL FORNECIDO PELO EMPREGADOR - SALÁRIO IN NATURA - INTEGRAÇÃO DO VALOR. O imóvel fornecido para o trabalho e não pelo trabalho é aquele em que não se dissocia do local da prestação do serviço, sendo necessário para sua execução, quer seja em razão dos diferentes horários para a prestação do trabalho, como no caso do ferroviário, quer seja em razão da distância, como no caso do trabalhador rural, mas, jamais em contrapartida pela alteração do domicílio, constituindo-se neste caso em plus salarial, cujo valor há que integrar a remuneração para todos os efeitos legais. (Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região – RO n° 01.03-0777/99, j. 21.11.2000, DJ/SE. 6.12.2000, grifos meus)

No mais, qual seria o fundamento legal usado para o Município justificar a despesa ao Tribunal de Contas, haja vista se tratar de dinheiro despendido diretamente ao ocupante de cargo

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Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:[...]VII - o juiz titular residirá na respectiva comarca, salvo autorização do tribunal;

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:[...]§ 2º As funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira, que deverão residir na comarca da respectiva lotação, salvo autorização do chefe da instituição.

Pela mens legis constitucional, os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, por terem o dever de firmar moradia na Comarca em que atuam, não são considerados dirigentes ou ocupantes de cargos de chefia na instituição na qual laboram. Por força disso, não podem ter direito ao auxílio-moradia apenas por laborarem na Comarca, já que isso é imposição constitucional.

Ocorre que muitos Juízes, Promotores, Delegados, enfim, auferem o pagamento de aluguéis pessoais por parte do Município, sem que seja considerado auxílio-moradia, ao arrepio das normas legais e constitucional.

E há muitas razões para se pensar assim:

a) porque se auxílio-moradia fosse, deveria ser pago pela própria instituição à qual estão vinculados, tal como ocorre com as diárias e auxílio-transporte;

b) porque se fosse considerado auxílio-moradia não poderia uma instituição municipal pagá-la aos agentes públicos alheios aos seus quadros funcionais; e

c) porque viola a equivalência remuneratória de agentes em mesmo cargo, pois nem todos possuem seus aluguéis pagos pelo Poder Público, seja porque já possuam residências na Comarca, seja porque discordam desta política adotada.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200878

A conclusão, portanto, caminha no sentido de que o pagamento de aluguéis pelas Prefeituras aos agentes públicos tem natureza jurídica de “salário in natura ou salário-utilidade”, efetuado ao arrepio do texto constitucional que estipulou o subsídio.

Como espeque justificante desse entendimento, basta valer das lições de Direito do Trabalho expostas nos julgados abaixo colacionados, que seguem:

(TRT/4ª Região) EMENTA: [...] AUXILIO MORADIA OU ALUGUEL. Ao pagar o empregador ajuda moradia ou aluguel independentemente de comprovação de despesa com locativos, resta demonstrada a natureza salarial da verba apontada, por se tratar de salário “in natura” devendo, portanto, compor a remuneração do empregado para todos os efeitos legais. (Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região – 4ª Turma – RO n° 00405.007/97-3, j. 14.10.1999, DJ/RS 22.11.1999, grifos meus)

(TRT/20ª Região) IMÓVEL FORNECIDO PELO EMPREGADOR - SALÁRIO IN NATURA - INTEGRAÇÃO DO VALOR. O imóvel fornecido para o trabalho e não pelo trabalho é aquele em que não se dissocia do local da prestação do serviço, sendo necessário para sua execução, quer seja em razão dos diferentes horários para a prestação do trabalho, como no caso do ferroviário, quer seja em razão da distância, como no caso do trabalhador rural, mas, jamais em contrapartida pela alteração do domicílio, constituindo-se neste caso em plus salarial, cujo valor há que integrar a remuneração para todos os efeitos legais. (Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região – RO n° 01.03-0777/99, j. 21.11.2000, DJ/SE. 6.12.2000, grifos meus)

No mais, qual seria o fundamento legal usado para o Município justificar a despesa ao Tribunal de Contas, haja vista se tratar de dinheiro despendido diretamente ao ocupante de cargo

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público de outra instituição?E, ao falar em Tribunal de Contas, houve caso no Estado

de São Paulo, onde fora determinada a revogação imediata da lei municipal que conferia este benefício a Juiz.

Pode constatar-se, pelas palavras do diretor-responsável do Jornal O Debate, de Santa Cruz do Rio Pardo, Sergio Fleury Moraes, após contenda com Juiz da cidade, onde informou que:

Perdi a esperança na Justiça. Se ela existisse de fato, eu não seria condenado a pagar indenização e o juiz de Santa Cruz do Rio Pardo deveria devolver dinheiro aos cofres do município. Sim, porque a polêmica toda teve origem em denúncias publicadas pelo Debate que jamais foram negadas. O juiz [...] morou durante muito tempo numa casa cujo aluguel era pago pela prefeitura, enquanto outra casa de propriedade do Judiciário permanece até hoje às moscas. Ele também foi beneficiado pela cessão de uma linha telefônica da prefeitura (que na época valia 4 mil reais no mercado paralelo) para uso particular, instalada em sua residência. Após as denúncias, o TCE (Tribunal de Contas do Estado) determinou ao prefeito de Santa Cruz a revogação da lei que autorizava o pagamento do aluguel e o juiz também devolveu a linha telefônica. Excerto e x t r a í d o d o e n d e r e ç o e l e t r ô n i c o : http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ cadernos/cid280220011.htm, grifos meus)

O correto também seria devolver o valor auferido com os aluguéis.

Da vedação constitucional de recebimento de auxílio e contribuições

Conforme dicção do artigo 95, parágrafo único, inciso IV, e artigo 128, §5°, inciso II, alínea “f”, ambos da Constituição da República, é vedado aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público “receber(em), a qualquer título ou pretexto,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200880

auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei”.

A norma é clara em reafirmar que não podem receber qualquer auxílio ou contribuição (pagamento de aluguéis) proveniente de entidade pública (Prefeituras), a qualquer título ou pretexto.

A inteligência dessa determinação é no sentido de que a imparcialidade e a independência funcional sejam preservadas em quaisquer ações praticadas pelos membros do Poder Judiciário ou do Ministério Público.

Além disso, trata-se de norma fundamental carreada por princípio ético posta aos agentes públicos, a fim de que não sejam vistos pela sociedade como subservientes aos interesses escusos ou alheios de pessoas más intencionadas ou governos tendenciosos.

Infelizmente, aqueles que auferem tais benefícios ao arrepio do mandamento constitucional, aos olhos da sociedade, passam a imagem de desrespeito aos valores éticos e causam manchas indeléveis à moral da instituição da qual fazem parte.

Conclusão

O presente trabalho teve apenas o intuito de trazer à baila algumas ilações acerca do pagamento de aluguéis pelos Municípios do país aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, além de outros.

Ficou claro e evidente que esses pagamentos não se incluem nos denominados auxílios-moradia, considerados como verbas indenizatórias pelo Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução n. 14, de 21 de março de 2006.

Adiante, restou efetivamente demonstrado que o pagamento de aluguéis aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, além de outros, viola o subsídio constitucional por se tratar de vantagem que tem natureza de salário “in natura” aos olhos do Direito do Trabalho.

Como se não bastasse, também é considerado como auxílio ou contribuição fornecida por entidade pública e vedado pela norma

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público de outra instituição?E, ao falar em Tribunal de Contas, houve caso no Estado

de São Paulo, onde fora determinada a revogação imediata da lei municipal que conferia este benefício a Juiz.

Pode constatar-se, pelas palavras do diretor-responsável do Jornal O Debate, de Santa Cruz do Rio Pardo, Sergio Fleury Moraes, após contenda com Juiz da cidade, onde informou que:

Perdi a esperança na Justiça. Se ela existisse de fato, eu não seria condenado a pagar indenização e o juiz de Santa Cruz do Rio Pardo deveria devolver dinheiro aos cofres do município. Sim, porque a polêmica toda teve origem em denúncias publicadas pelo Debate que jamais foram negadas. O juiz [...] morou durante muito tempo numa casa cujo aluguel era pago pela prefeitura, enquanto outra casa de propriedade do Judiciário permanece até hoje às moscas. Ele também foi beneficiado pela cessão de uma linha telefônica da prefeitura (que na época valia 4 mil reais no mercado paralelo) para uso particular, instalada em sua residência. Após as denúncias, o TCE (Tribunal de Contas do Estado) determinou ao prefeito de Santa Cruz a revogação da lei que autorizava o pagamento do aluguel e o juiz também devolveu a linha telefônica. Excerto e x t r a í d o d o e n d e r e ç o e l e t r ô n i c o : http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ cadernos/cid280220011.htm, grifos meus)

O correto também seria devolver o valor auferido com os aluguéis.

Da vedação constitucional de recebimento de auxílio e contribuições

Conforme dicção do artigo 95, parágrafo único, inciso IV, e artigo 128, §5°, inciso II, alínea “f”, ambos da Constituição da República, é vedado aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público “receber(em), a qualquer título ou pretexto,

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auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei”.

A norma é clara em reafirmar que não podem receber qualquer auxílio ou contribuição (pagamento de aluguéis) proveniente de entidade pública (Prefeituras), a qualquer título ou pretexto.

A inteligência dessa determinação é no sentido de que a imparcialidade e a independência funcional sejam preservadas em quaisquer ações praticadas pelos membros do Poder Judiciário ou do Ministério Público.

Além disso, trata-se de norma fundamental carreada por princípio ético posta aos agentes públicos, a fim de que não sejam vistos pela sociedade como subservientes aos interesses escusos ou alheios de pessoas más intencionadas ou governos tendenciosos.

Infelizmente, aqueles que auferem tais benefícios ao arrepio do mandamento constitucional, aos olhos da sociedade, passam a imagem de desrespeito aos valores éticos e causam manchas indeléveis à moral da instituição da qual fazem parte.

Conclusão

O presente trabalho teve apenas o intuito de trazer à baila algumas ilações acerca do pagamento de aluguéis pelos Municípios do país aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, além de outros.

Ficou claro e evidente que esses pagamentos não se incluem nos denominados auxílios-moradia, considerados como verbas indenizatórias pelo Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução n. 14, de 21 de março de 2006.

Adiante, restou efetivamente demonstrado que o pagamento de aluguéis aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, além de outros, viola o subsídio constitucional por se tratar de vantagem que tem natureza de salário “in natura” aos olhos do Direito do Trabalho.

Como se não bastasse, também é considerado como auxílio ou contribuição fornecida por entidade pública e vedado pela norma

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constitucional estampada no artigo 95, parágrafo único, inciso IV, e no artigo 128, §5°, inciso II, alínea “f”, ambos da Constituição da República.

No momento atual, quando o Poder Judiciário e o Ministério Público sofrem de crises existenciais ante a evidente inadimplência de suas obrigações institucionais perante a sociedade, a manutenção do pagamento indiscriminado de aluguéis feito aos seus membros contribui para a perpetuação do flagrante desrespeito às normas fundamentais e aos valores éticos e morais. E, ao falar em ética, ou se é ético ou não, pois não existe meio termo.

Por isso, uma medida salutar é a revogação de qualquer lei ou convênio que estipule esse encargo desmedido ao Município e fulmina de morte o moral social das instituições responsáveis pela defesa da ética e da ordem jurídica.

Referências

JÚNIOR, D. da C. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. Salvador : Editora Podvium, 2006.

ROCHA, C. L. A. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999.

TAVARES, A. R. O desenvolvimento econômico e a Constituição de 1988. Jornal Carta Forense, 19 de março de 2008. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/ Materia.aspx?id=572. Acesso em: 25 abr. 2008.

TRT - Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região – 4ª Turma – RO n° 00405.007/97-3, j. 14.10.1999, DJ/RS 22.11.1999.

TRT - Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região – RO n° 01.03-0777/99, j. 21.11.2000, DJ/SE. 6.12.2000.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200882

Resumo:A reflexão teórica acerca da democracia em Aléxis de Tocqueville é acompanhada com a correspondente contextualização histórico-empírica, e seu pensamento consagrou-se por apresentar a construção de uma filosofia que descreve a realização de um ideal democrático configurado por homens em situação de ativa participação política. O Estado Democrático de Direito deve assegurar condições próprias para a implementação efetiva da participação e o instituto da Ação Popular, em seu mais amplo aspecto de participação política, é um meio viável de atuação política do cidadão.

Palavras-chave: Democracia, Aléxis de Tocqueville, participação política, ação popular.

1Introdução

A teorização acerca da democracia contém alguns elementos chaves: o exercício de direitos, a participação política, o compromisso do homem democrático em relação a sua cidadania, a concepção de liberdade política e a forma de entender uma sociedade política ordenada e participativa.

Aléxis de Tocqueville (1998), em A democracia na América, fundamenta uma concepção de democracia baseada, ao mesmo tempo, em instituições legítimas e na ação política dos

AÇÃO POPULAR E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: UM DIÁLOGO COM A TEORIA DEMOCRÁTICA DE

ALÉXIS DE TOCQUEVILLE

*Juliana Martins Barbacena

* Graduanda do 9º período do curso de Direito da Universidade Católica de Goiás.1 O presente artigo é fruto do trabalho de Iniciação Científica referente ao projeto de pesquisa intitulado Por que defender a democracia?, desenvolvido sob orientação da Professora Dra. Helena Esser dos Reis e fomentado pelo programa PIBIC/CNPq.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 83

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constitucional estampada no artigo 95, parágrafo único, inciso IV, e no artigo 128, §5°, inciso II, alínea “f”, ambos da Constituição da República.

No momento atual, quando o Poder Judiciário e o Ministério Público sofrem de crises existenciais ante a evidente inadimplência de suas obrigações institucionais perante a sociedade, a manutenção do pagamento indiscriminado de aluguéis feito aos seus membros contribui para a perpetuação do flagrante desrespeito às normas fundamentais e aos valores éticos e morais. E, ao falar em ética, ou se é ético ou não, pois não existe meio termo.

Por isso, uma medida salutar é a revogação de qualquer lei ou convênio que estipule esse encargo desmedido ao Município e fulmina de morte o moral social das instituições responsáveis pela defesa da ética e da ordem jurídica.

Referências

JÚNIOR, D. da C. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. Salvador : Editora Podvium, 2006.

ROCHA, C. L. A. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999.

TAVARES, A. R. O desenvolvimento econômico e a Constituição de 1988. Jornal Carta Forense, 19 de março de 2008. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/ Materia.aspx?id=572. Acesso em: 25 abr. 2008.

TRT - Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região – 4ª Turma – RO n° 00405.007/97-3, j. 14.10.1999, DJ/RS 22.11.1999.

TRT - Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região – RO n° 01.03-0777/99, j. 21.11.2000, DJ/SE. 6.12.2000.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200882

Resumo:A reflexão teórica acerca da democracia em Aléxis de Tocqueville é acompanhada com a correspondente contextualização histórico-empírica, e seu pensamento consagrou-se por apresentar a construção de uma filosofia que descreve a realização de um ideal democrático configurado por homens em situação de ativa participação política. O Estado Democrático de Direito deve assegurar condições próprias para a implementação efetiva da participação e o instituto da Ação Popular, em seu mais amplo aspecto de participação política, é um meio viável de atuação política do cidadão.

Palavras-chave: Democracia, Aléxis de Tocqueville, participação política, ação popular.

1Introdução

A teorização acerca da democracia contém alguns elementos chaves: o exercício de direitos, a participação política, o compromisso do homem democrático em relação a sua cidadania, a concepção de liberdade política e a forma de entender uma sociedade política ordenada e participativa.

Aléxis de Tocqueville (1998), em A democracia na América, fundamenta uma concepção de democracia baseada, ao mesmo tempo, em instituições legítimas e na ação política dos

AÇÃO POPULAR E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: UM DIÁLOGO COM A TEORIA DEMOCRÁTICA DE

ALÉXIS DE TOCQUEVILLE

*Juliana Martins Barbacena

* Graduanda do 9º período do curso de Direito da Universidade Católica de Goiás.1 O presente artigo é fruto do trabalho de Iniciação Científica referente ao projeto de pesquisa intitulado Por que defender a democracia?, desenvolvido sob orientação da Professora Dra. Helena Esser dos Reis e fomentado pelo programa PIBIC/CNPq.

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cidadãos, sendo por meio da participação popular que a coletividade determina suas ações e reivindica modificações para que suas demandas sejam satisfeitas. Segundo ele, o povo, grande titular da soberania, enfeixa, no exercício direto de sua autoridade, a parcela mais considerável de poder legítimo, como fazer a lei e decidir sobre questões fundamentais de governo.

A partir do momento em que o indivíduo participa de sua comunidade, atuando em nome de um interesse (ou motivação) maior, o interesse público, é que ele se tornará efetivamente um cidadão. O princípio da participação popular, fundada na soberania popular, reside justamente na ativa e continuada participação por parte de todos os cidadãos, na direção dos assuntos públicos, seja opinando sobre qual plano de governo deve ser seguido, seja fiscalizando o Estado na gestão da coisa pública. Essa é a forma mais adequada de se aperfeiçoar e, até mesmo, de moralizar a própria democracia representativa. Porém, quando o indivíduo é excluído, ou se exclui dessa participação, temos a negação da dignidade social e política do homem no meio em que vive.

Diante disso, há um interessante ponto de convergência entre o pensamento de Tocqueville e uma das formas de exercício da soberania popular garantida na CF brasileira. Justifico essa relação justamente na idéia de que o direito de ação e participação popular é central no pensamento tocquevilleano para a formação da vontade do estado democrático e, por ora, a ação e participação popular é assegurada pela CF, em seu art. 5°, inciso LXXIII, que trata da ação popular, pois, em uma sociedade democrática, deve haver o emprego de garantias jurídicas que sustentem as alternativas e mecanismos de satisfação das necessidades participativas dos cidadãos.

Cidadania e participação política

Para melhor deslinde do tema é cabível o delineamento da idéia de cidadania e do que é “ser cidadão”, uma das idéias centrais da filosofia política de Tocqueville.

“Ser cidadão” é ser membro de uma comunidade política e reconhecer seus interesses nos atos do governo, ou este lhe será

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200884

estranho e artificial. A cidadania demanda iniciativa de participação por parte dos indivíduos em busca de garantias e reconhecimento de si mesmos como parte integrante do sistema político e democrático da sociedade. É através do exercício das prerrogativas inerentes ao status de cidadão que o indivíduo pode interferir nos destinos do Estado, seja opinando sobre qual plano de governo deve ser seguido, seja fiscalizando o Estado na gestão da coisa pública, dentre outras ingerências. Para que a democracia se desenvolva, segundo Tocqueville, é necessário que haja ligação entre os atores sociais e os agentes políticos, que a representatividade social dos governados seja garantida e esteja associada à limitação dos poderes e à consciência da cidadania.

A força principal da democracia reside na vontade dos cidadãos de agirem de maneira responsável na vida pública. Se estes não se sentem responsáveis pelo seu governo, não pode haver representatividade dos dirigentes ou livre escolha pelos dirigidos. O agir responsável, por sua vez, prescinde do conhecimento dos direitos e das leis a que estão submetidos.

Tocqueville (1998, p. 43) compreende que não é fácil ensinar a todos os indivíduos a exercerem e servirem de seus direitos contidos nas leis: “a grande maioria da nação mal as conhece [as leis]: vê-as em ação apenas em casos particulares, só dificilmente apreende a sua tendência e se submete a elas sem meditar”. Mas afirma que quando isso acontecer os efeitos resultantes serão grandes, significativos. Afirma, a respeito dos direitos políticos:

É preciso atribuir de repente o exercício dos direitos políticos a todos os homens; afirmo, porém, que o meio mais eficaz e talvez o único que nos resta de interessar os homens pela sorte da sua pátria é fazê-los participar de seu governo. Hoje em dia, o espírito cívico parece-me inseparável do exercício. (TOCQUEVILLE, 1998, p. 183)

Um problema crucial, segundo Tocqueville, é implantar o espírito público em um grande número de pessoas. Por isso, a virtude pública deve ter características que complementam as da ação nas quais ela deve existir, ou seja, o cidadão deve ter

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 85

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cidadãos, sendo por meio da participação popular que a coletividade determina suas ações e reivindica modificações para que suas demandas sejam satisfeitas. Segundo ele, o povo, grande titular da soberania, enfeixa, no exercício direto de sua autoridade, a parcela mais considerável de poder legítimo, como fazer a lei e decidir sobre questões fundamentais de governo.

A partir do momento em que o indivíduo participa de sua comunidade, atuando em nome de um interesse (ou motivação) maior, o interesse público, é que ele se tornará efetivamente um cidadão. O princípio da participação popular, fundada na soberania popular, reside justamente na ativa e continuada participação por parte de todos os cidadãos, na direção dos assuntos públicos, seja opinando sobre qual plano de governo deve ser seguido, seja fiscalizando o Estado na gestão da coisa pública. Essa é a forma mais adequada de se aperfeiçoar e, até mesmo, de moralizar a própria democracia representativa. Porém, quando o indivíduo é excluído, ou se exclui dessa participação, temos a negação da dignidade social e política do homem no meio em que vive.

Diante disso, há um interessante ponto de convergência entre o pensamento de Tocqueville e uma das formas de exercício da soberania popular garantida na CF brasileira. Justifico essa relação justamente na idéia de que o direito de ação e participação popular é central no pensamento tocquevilleano para a formação da vontade do estado democrático e, por ora, a ação e participação popular é assegurada pela CF, em seu art. 5°, inciso LXXIII, que trata da ação popular, pois, em uma sociedade democrática, deve haver o emprego de garantias jurídicas que sustentem as alternativas e mecanismos de satisfação das necessidades participativas dos cidadãos.

Cidadania e participação política

Para melhor deslinde do tema é cabível o delineamento da idéia de cidadania e do que é “ser cidadão”, uma das idéias centrais da filosofia política de Tocqueville.

“Ser cidadão” é ser membro de uma comunidade política e reconhecer seus interesses nos atos do governo, ou este lhe será

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estranho e artificial. A cidadania demanda iniciativa de participação por parte dos indivíduos em busca de garantias e reconhecimento de si mesmos como parte integrante do sistema político e democrático da sociedade. É através do exercício das prerrogativas inerentes ao status de cidadão que o indivíduo pode interferir nos destinos do Estado, seja opinando sobre qual plano de governo deve ser seguido, seja fiscalizando o Estado na gestão da coisa pública, dentre outras ingerências. Para que a democracia se desenvolva, segundo Tocqueville, é necessário que haja ligação entre os atores sociais e os agentes políticos, que a representatividade social dos governados seja garantida e esteja associada à limitação dos poderes e à consciência da cidadania.

A força principal da democracia reside na vontade dos cidadãos de agirem de maneira responsável na vida pública. Se estes não se sentem responsáveis pelo seu governo, não pode haver representatividade dos dirigentes ou livre escolha pelos dirigidos. O agir responsável, por sua vez, prescinde do conhecimento dos direitos e das leis a que estão submetidos.

Tocqueville (1998, p. 43) compreende que não é fácil ensinar a todos os indivíduos a exercerem e servirem de seus direitos contidos nas leis: “a grande maioria da nação mal as conhece [as leis]: vê-as em ação apenas em casos particulares, só dificilmente apreende a sua tendência e se submete a elas sem meditar”. Mas afirma que quando isso acontecer os efeitos resultantes serão grandes, significativos. Afirma, a respeito dos direitos políticos:

É preciso atribuir de repente o exercício dos direitos políticos a todos os homens; afirmo, porém, que o meio mais eficaz e talvez o único que nos resta de interessar os homens pela sorte da sua pátria é fazê-los participar de seu governo. Hoje em dia, o espírito cívico parece-me inseparável do exercício. (TOCQUEVILLE, 1998, p. 183)

Um problema crucial, segundo Tocqueville, é implantar o espírito público em um grande número de pessoas. Por isso, a virtude pública deve ter características que complementam as da ação nas quais ela deve existir, ou seja, o cidadão deve ter

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preocupação na conciliação consciente de interesses público e privado, tomar parte ativa no governo da sociedade visando a construção participativa de um interesse comum e compreender que a prosperidade de seu país influencia diretamente sobre seu bem-estar.

Alguns teóricos do direito analisam que é por meio da participação política que se aperfeiçoa e se legitima o estado democrático. Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1992, p. 25-26):

Pela via de participação, os governantes recuperam a legitimidade originária; a participação no exercício do poder garante a legitimidade corrente e a participação no destino e controle dos resultados do poder asseguram a legitimidade finalística. [...] Esta é a utilidade da participação política: o aperfeiçoamento da legitimidade e com ela da democracia.

Já Canotilho (1986, p. 151), com muita propriedade, afirma:

A teoria da democracia participativa considera-se como teoria crítica da teoria pluralista e como alternativa para o impasse do sistema representativo. O seu ponto de partida fundamental é o interesse básico dos indivíduos na autodeterminação política e na abolição de domínio dos homens sobre os homens.

Como configuração histórica, consistem tais direitos de participação em direitos de quarta geração, ou seja, direitos fundamentais à participação política, em igualdades de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e mesmo tempo criam o direito legítimo. A participação dos homens na ação política do Estado, tanto exercendo a função fiscalizadora do poder público ou participando de decisões que dizem respeito à coletividade e à extensão dos direitos públicos a todos os membros, leva à possibilidade de participação cada vez maior dos homens no agir

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200886

do Estado e é, segundo Tocqueville (1998), imprescindível para a construção do Estado Democrático.

O Estado Democrático em Tocqueville: condições sociais de igualdade e situação política de liberdade

A democracia, segundo Tocqueville (1998), pode ser entendida sob dois aspectos: como um estado social conseqüente do avanço progressivo da igualdade das condições sociais e um regime político fundado na liberdade política de todos os cidadãos. Há uma preservação da liberdade do indivíduo e, ao mesmo tempo, a existência de um cidadão comprometido com a vida pública.

Para Tocqueville (idem), compreender os indivíduos como iguais decorre da possibilidade de todos alcançarem ou usufruírem de semelhantes circunstâncias da vida social, política e de garantias jurídicas. Embora considere positiva a existência de diferenças sociais, econômicas e culturais, não admite, porém, em um estado democrático, a imposição ou a obrigação de submissão de uns aos outros, porque todos são cidadãos em situação de igualdade e, dada a mobilidade característica da igualização das condições, a qualquer tempo podem mudar sua posição social, tendo em vista que não há acentuada desigualdade social e material.

Outro princípio da sociedade democrática tocquevilliana é a liberdade, ou seja, a indispensabilidade da existência de um conjunto de condições de liberdade política, que deva dar espaço a uma participação dos indivíduos, membros do povo, no transcorrer da vida do Estado. A liberdade é o instrumento de defesa e garantia de direitos consagrados. Só haverá liberdade onde houver ação permanente do corpo de cidadãos na esfera pública. Sua condição de sobrevivência se dá pela participação na esfera dos negócios públicos sob pena de os indivíduos se acomodarem no isolamento e na alienação cívica. O modelo de liberdade democrática engloba a liberdade participação e a liberdade responsabilidade.

Podemos concluir que Tocqueville (idem) pensa a democracia tanto em um aspecto mais social - uma sociedade fundada na igualdade de condições -, quanto em uma dimensão mediante a qual favoreça a participação dos indivíduos nos

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preocupação na conciliação consciente de interesses público e privado, tomar parte ativa no governo da sociedade visando a construção participativa de um interesse comum e compreender que a prosperidade de seu país influencia diretamente sobre seu bem-estar.

Alguns teóricos do direito analisam que é por meio da participação política que se aperfeiçoa e se legitima o estado democrático. Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1992, p. 25-26):

Pela via de participação, os governantes recuperam a legitimidade originária; a participação no exercício do poder garante a legitimidade corrente e a participação no destino e controle dos resultados do poder asseguram a legitimidade finalística. [...] Esta é a utilidade da participação política: o aperfeiçoamento da legitimidade e com ela da democracia.

Já Canotilho (1986, p. 151), com muita propriedade, afirma:

A teoria da democracia participativa considera-se como teoria crítica da teoria pluralista e como alternativa para o impasse do sistema representativo. O seu ponto de partida fundamental é o interesse básico dos indivíduos na autodeterminação política e na abolição de domínio dos homens sobre os homens.

Como configuração histórica, consistem tais direitos de participação em direitos de quarta geração, ou seja, direitos fundamentais à participação política, em igualdades de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e mesmo tempo criam o direito legítimo. A participação dos homens na ação política do Estado, tanto exercendo a função fiscalizadora do poder público ou participando de decisões que dizem respeito à coletividade e à extensão dos direitos públicos a todos os membros, leva à possibilidade de participação cada vez maior dos homens no agir

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200886

do Estado e é, segundo Tocqueville (1998), imprescindível para a construção do Estado Democrático.

O Estado Democrático em Tocqueville: condições sociais de igualdade e situação política de liberdade

A democracia, segundo Tocqueville (1998), pode ser entendida sob dois aspectos: como um estado social conseqüente do avanço progressivo da igualdade das condições sociais e um regime político fundado na liberdade política de todos os cidadãos. Há uma preservação da liberdade do indivíduo e, ao mesmo tempo, a existência de um cidadão comprometido com a vida pública.

Para Tocqueville (idem), compreender os indivíduos como iguais decorre da possibilidade de todos alcançarem ou usufruírem de semelhantes circunstâncias da vida social, política e de garantias jurídicas. Embora considere positiva a existência de diferenças sociais, econômicas e culturais, não admite, porém, em um estado democrático, a imposição ou a obrigação de submissão de uns aos outros, porque todos são cidadãos em situação de igualdade e, dada a mobilidade característica da igualização das condições, a qualquer tempo podem mudar sua posição social, tendo em vista que não há acentuada desigualdade social e material.

Outro princípio da sociedade democrática tocquevilliana é a liberdade, ou seja, a indispensabilidade da existência de um conjunto de condições de liberdade política, que deva dar espaço a uma participação dos indivíduos, membros do povo, no transcorrer da vida do Estado. A liberdade é o instrumento de defesa e garantia de direitos consagrados. Só haverá liberdade onde houver ação permanente do corpo de cidadãos na esfera pública. Sua condição de sobrevivência se dá pela participação na esfera dos negócios públicos sob pena de os indivíduos se acomodarem no isolamento e na alienação cívica. O modelo de liberdade democrática engloba a liberdade participação e a liberdade responsabilidade.

Podemos concluir que Tocqueville (idem) pensa a democracia tanto em um aspecto mais social - uma sociedade fundada na igualdade de condições -, quanto em uma dimensão mediante a qual favoreça a participação dos indivíduos nos

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assuntos públicos. Para que haja uma autêntica democracia, deve haver um concurso na relação dialética entre igualdade e liberdade, a construção de uma ordem política democrática adequada às modernas sociedades igualitárias depende de uma orientação política voltada para a intervenção no mundo público.

A democracia não pode ser reduzida a procedimentos e formalismos jurídicos, pois é a participação social e política que caracteriza profundamente a sociedade e o governo democráticos. É nesse sentido que o filósofo Tocqueville (1998) apela para uma cultura política democrática, a partir do compartilhamento das responsabilidades públicas em cada comunidade, que multiplica e proporciona ocasiões para os indivíduos atuarem conjuntamente e sentirem que dependem uns dos outros, que vivem em sociedade.

Pelo fato de a democracia pressupor manifestações participativas do povo soberano, o que compreende um conteúdo político, este é, ao mesmo tempo, indissociável de aspectos jurídicos. Assim, a ordem jurídica deve dispor o resguardo da manifestação da vontade popular, concedendo pleno respaldo a um regime fundado neste princípio de convivência social e de ação política. Tocqueville (idem) vê, de algum modo, essa harmonia e interdependência do poder judiciário e o mundo político para manutenção da ordem democrática.

Ação Popular: propulsora de participação política e aperfeiçoamento da democracia

Trazendo para a análise o elemento participativo da teoria democrática tocquevilleana, esse fundamental para a construção de uma sociedade democrática, e correlacionando-o a uma das formas de exercício de participação garantida pela Constituição

3Brasileira, tomamos como exemplo a chamada Ação Popular , um

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200888

3 Art. 50, LXXIII, da Constituição Federal: qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

instituto de democracia direta que permite ao cidadão intervir, a qualquer momento, no processo político, na comunidade política, e participar de certa forma do exercício do poder, fiscalizando-o e exigindo apuração de responsabilidades por meio do Poder Judiciário e atuando através deste na função pública de controle. É direito de participação na vida política do Estado e fiscalização na gerência do patrimônio público.

A Ação Popular é, na Constituição da República brasileira, um direito-dever do seu pleno exercício e tem ela natureza de um direito público, subjetivo e autônomo, incluído

4dentro dos direitos políticos do cidadão brasileiro. Assim, a liberdade-participação não é apenas um direito para proteger a privacidade individual, e sim uma obrigação e responsabilidade do cidadão em levar a sério o governo democrático e se atentar para as questões públicas.

Essencial é a natureza impessoal da Ação Popular, onde o interesse que é defendido é o interesse da coletividade, interesse público. Interessante apontar que tal finalidade da ação popular coincide com a doutrina do “interesse bem compreendido” de Tocqueville (1998), ou seja, um sentimento segundo o qual a promoção do bem-estar coletivo refletirá no bem-estar individual. A lógica do interesse bem compreendido é no sentido de que se transmite ao cidadão a responsabilidade pela administração e fiscalização das questões públicas, estimulando a participação política via ação conjunta e reforçando os laços de interdependência entre os indivíduos.

5Mas, apesar de toda garantia e regulamentação de tal instrumento participativo, acontece exatamente o que Tocqueville (1998, p. 412-413) já observara:

não é necessário tirar de tais cidadãos os direitos que possuem; eles mesmos os deixam voluntariamente escapar. O exercício de seus

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 89

4 Há divergências doutrinárias quanto a inclusão da Ação Popular como um direito político tendo em vista o rol do art. 14 da Constituição Federal de 1988.5 E regulada pela Lei n°4.717 de 29 de junho de 1965.

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assuntos públicos. Para que haja uma autêntica democracia, deve haver um concurso na relação dialética entre igualdade e liberdade, a construção de uma ordem política democrática adequada às modernas sociedades igualitárias depende de uma orientação política voltada para a intervenção no mundo público.

A democracia não pode ser reduzida a procedimentos e formalismos jurídicos, pois é a participação social e política que caracteriza profundamente a sociedade e o governo democráticos. É nesse sentido que o filósofo Tocqueville (1998) apela para uma cultura política democrática, a partir do compartilhamento das responsabilidades públicas em cada comunidade, que multiplica e proporciona ocasiões para os indivíduos atuarem conjuntamente e sentirem que dependem uns dos outros, que vivem em sociedade.

Pelo fato de a democracia pressupor manifestações participativas do povo soberano, o que compreende um conteúdo político, este é, ao mesmo tempo, indissociável de aspectos jurídicos. Assim, a ordem jurídica deve dispor o resguardo da manifestação da vontade popular, concedendo pleno respaldo a um regime fundado neste princípio de convivência social e de ação política. Tocqueville (idem) vê, de algum modo, essa harmonia e interdependência do poder judiciário e o mundo político para manutenção da ordem democrática.

Ação Popular: propulsora de participação política e aperfeiçoamento da democracia

Trazendo para a análise o elemento participativo da teoria democrática tocquevilleana, esse fundamental para a construção de uma sociedade democrática, e correlacionando-o a uma das formas de exercício de participação garantida pela Constituição

3Brasileira, tomamos como exemplo a chamada Ação Popular , um

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200888

3 Art. 50, LXXIII, da Constituição Federal: qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

instituto de democracia direta que permite ao cidadão intervir, a qualquer momento, no processo político, na comunidade política, e participar de certa forma do exercício do poder, fiscalizando-o e exigindo apuração de responsabilidades por meio do Poder Judiciário e atuando através deste na função pública de controle. É direito de participação na vida política do Estado e fiscalização na gerência do patrimônio público.

A Ação Popular é, na Constituição da República brasileira, um direito-dever do seu pleno exercício e tem ela natureza de um direito público, subjetivo e autônomo, incluído

4dentro dos direitos políticos do cidadão brasileiro. Assim, a liberdade-participação não é apenas um direito para proteger a privacidade individual, e sim uma obrigação e responsabilidade do cidadão em levar a sério o governo democrático e se atentar para as questões públicas.

Essencial é a natureza impessoal da Ação Popular, onde o interesse que é defendido é o interesse da coletividade, interesse público. Interessante apontar que tal finalidade da ação popular coincide com a doutrina do “interesse bem compreendido” de Tocqueville (1998), ou seja, um sentimento segundo o qual a promoção do bem-estar coletivo refletirá no bem-estar individual. A lógica do interesse bem compreendido é no sentido de que se transmite ao cidadão a responsabilidade pela administração e fiscalização das questões públicas, estimulando a participação política via ação conjunta e reforçando os laços de interdependência entre os indivíduos.

5Mas, apesar de toda garantia e regulamentação de tal instrumento participativo, acontece exatamente o que Tocqueville (1998, p. 412-413) já observara:

não é necessário tirar de tais cidadãos os direitos que possuem; eles mesmos os deixam voluntariamente escapar. O exercício de seus

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 89

4 Há divergências doutrinárias quanto a inclusão da Ação Popular como um direito político tendo em vista o rol do art. 14 da Constituição Federal de 1988.5 E regulada pela Lei n°4.717 de 29 de junho de 1965.

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deveres políticos parece-lhes um contratempo desagradável que os distrai da sua indústria.

O fato de o indivíduo se desinteressar pelos problemas públicos e se apegar somente a sua vida privada é caracterizado por Tocqueville como individualismo. O individualismo, por sua vez, corrompe o espírito cívico e a virtude pública, gera o descaso com a coisa pública e a submissão a um governo tutelar e têm origem na separação dos cidadãos uns dos outros e no abandono do interesse público decorrente do enaltecimento da vida privada.

Não há, no Brasil atual, uma educação política e cívica amadurecida, que contribuiria com o processo democrático. Há uma deficiência de instrução e conscientização da população brasileira no sentido de desenvolver uma mentalidade crítica e política e ter consciência de preservação do patrimônio público e da moralidade administrativa. Muitos cidadãos nunca tomaram nem mesmo conhecimento da existência de uma ação constitucional por meio da qual pudessem pleitear a anulação de atos lesivos a bens que lhes pertencem. Não é dada a devida importância para a defesa de patrimônio e de interesse públicos, justamente porque há um grande desconhecimento da população em relação aos modos de participação. A tendente atitude dos governantes que exercem o poder estatal consiste em desfavorecer o interesse do cidadão pela coisa pública e a concentrá-los em seus próprios negócios, salvo nos momentos em que se dá o procedimento eleitoral.

Conclusão

A participação popular é essencialmente uma questão política, relacionada ao grau de desenvolvimento e efetivação da democracia. É na sua capacidade de ação e participação que está a possibilidade de os indivíduos e os grupos mudarem a realidade que os cerca. É a força social e política que dá razão à sociedade democrática. As pessoas tornam-se cidadãs na medida em que agem no âmbito político, sendo que o processo de aprendizagem democrático está diretamente vinculado à prática e ao hábito.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200890

A partir de uma cultura cívica e política leva-se à compreensão do que o individualismo se nega em compreender: a auto-suficiência do indivíduo na esfera privada é uma ilusão, porque os assuntos individuais dependem estritamente da direção dos negócios públicos. É mister, portanto, que os cidadãos deliberem sobre as questões de interesse comum e compartilhem as responsabilidades. Eis a finalidade das instituições democráticas, segundo Tocqueville (1998, p. 461):

“poder-se-ia supor que a conseqüência última e o efeito necessário das instituições democráticas é confundir os cidadãos na vida privada, tanto quanto na vida pública, e forçá-los todos a levar uma existência comum”.

Referências

BRASIL. Constituição Federal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

CANOTILHO, J. G. Direito Constitucional. Coimbra: Ed. Almedina, 1986.

LEFORT, C. A questão da democracia. In: Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 23-36.

MELGARÉ, P. Horizontes da Democracia e do Direito: um compromisso humano. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 78, p. 653-685, 2002.

NETO, D. de F. M. Direito da participação política. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1992.

REIS, H. E. dos. Tocqueville e a democracia. In: BARBOSA, W. Estado e Poder Político. Goiânia: UCG, 2004. p. 65-95.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 91

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deveres políticos parece-lhes um contratempo desagradável que os distrai da sua indústria.

O fato de o indivíduo se desinteressar pelos problemas públicos e se apegar somente a sua vida privada é caracterizado por Tocqueville como individualismo. O individualismo, por sua vez, corrompe o espírito cívico e a virtude pública, gera o descaso com a coisa pública e a submissão a um governo tutelar e têm origem na separação dos cidadãos uns dos outros e no abandono do interesse público decorrente do enaltecimento da vida privada.

Não há, no Brasil atual, uma educação política e cívica amadurecida, que contribuiria com o processo democrático. Há uma deficiência de instrução e conscientização da população brasileira no sentido de desenvolver uma mentalidade crítica e política e ter consciência de preservação do patrimônio público e da moralidade administrativa. Muitos cidadãos nunca tomaram nem mesmo conhecimento da existência de uma ação constitucional por meio da qual pudessem pleitear a anulação de atos lesivos a bens que lhes pertencem. Não é dada a devida importância para a defesa de patrimônio e de interesse públicos, justamente porque há um grande desconhecimento da população em relação aos modos de participação. A tendente atitude dos governantes que exercem o poder estatal consiste em desfavorecer o interesse do cidadão pela coisa pública e a concentrá-los em seus próprios negócios, salvo nos momentos em que se dá o procedimento eleitoral.

Conclusão

A participação popular é essencialmente uma questão política, relacionada ao grau de desenvolvimento e efetivação da democracia. É na sua capacidade de ação e participação que está a possibilidade de os indivíduos e os grupos mudarem a realidade que os cerca. É a força social e política que dá razão à sociedade democrática. As pessoas tornam-se cidadãs na medida em que agem no âmbito político, sendo que o processo de aprendizagem democrático está diretamente vinculado à prática e ao hábito.

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A partir de uma cultura cívica e política leva-se à compreensão do que o individualismo se nega em compreender: a auto-suficiência do indivíduo na esfera privada é uma ilusão, porque os assuntos individuais dependem estritamente da direção dos negócios públicos. É mister, portanto, que os cidadãos deliberem sobre as questões de interesse comum e compartilhem as responsabilidades. Eis a finalidade das instituições democráticas, segundo Tocqueville (1998, p. 461):

“poder-se-ia supor que a conseqüência última e o efeito necessário das instituições democráticas é confundir os cidadãos na vida privada, tanto quanto na vida pública, e forçá-los todos a levar uma existência comum”.

Referências

BRASIL. Constituição Federal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

CANOTILHO, J. G. Direito Constitucional. Coimbra: Ed. Almedina, 1986.

LEFORT, C. A questão da democracia. In: Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 23-36.

MELGARÉ, P. Horizontes da Democracia e do Direito: um compromisso humano. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 78, p. 653-685, 2002.

NETO, D. de F. M. Direito da participação política. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1992.

REIS, H. E. dos. Tocqueville e a democracia. In: BARBOSA, W. Estado e Poder Político. Goiânia: UCG, 2004. p. 65-95.

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______. A virtude na filosofia política de Tocqueville. Filósofos, Goiânia, v. 4, n. 2, p. 83-93, jul/dez. 1999.

TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América. Trad. de, prefácio e notas: Neil Ribeiro da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1998.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200892

Resumo:Neste trabalho pretendemos analisar, sucintamente, alguns contornos jurídicos do tema proposto. Iniciamos conceituando o instituto da propriedade intelectual, considerando como principal finalidade do instituto o incentivo à produção intelectual através da concessão dos direitos autorais sobre a obra desenvolvida e retratando a natureza jurídica sui generis do direito à propriedade intelectual. Adiante, sob a ótica criminal, analisamos brevemente as principais conseqüências sociais advindas dos delitos contra a propriedade intelectual. Por fim, destacamos a criação do Conselho Nacional de Combate à Pirataria como uma fonte de esperança brasileira em preservar o Estado dos malefícios dos crimes contra a propriedade intelectual e em garantir os direitos autorais aos criadores de bens de inteligência.

Palavras-chave: propriedade intelectual, direitos autorais, crimes, contrafação, efeitos.

A instituição da propriedade intelectual fundamenta-se principalmente na pressuposição de estímulo à produção de novas

REFLEXÕES SOBRE O INSTITUTO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL E OS EFEITOS DOS CRIMES

CONTRA OS DIREITOS AUTORAIS

* **Danilo Cândido Rios Nivaldo dos Santos

* Acadêmico do 5º ano do curso de Direito da Universidade Federal de Goiás; membro do Núcleo de Patentes de Transferência de Tecnologia do Estado de Goiás (NUPATTE-GO), pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected].* * Graduado em Direito pela Universidade Federal de Goiás (1985), mestre em História das Sociedades Agrárias pela Universidade Federal de Goiás (1992) e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999), professor titular da Universidade Católica de Goiás, professor adjunto da Universidade Federal de Goiás, secretário especial de ciência e tecnologia do Instituto Goiano de Direito Ambiental, diretor de desenvolvimento da Associação Goiana dos Advogados e Coordenador do Núcleo de Patentes e Transferência de Tecnologia do estado de Goiás (NUPATTE-GO). E-mail: [email protected].

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 93

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______. A virtude na filosofia política de Tocqueville. Filósofos, Goiânia, v. 4, n. 2, p. 83-93, jul/dez. 1999.

TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América. Trad. de, prefácio e notas: Neil Ribeiro da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1998.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200892

Resumo:Neste trabalho pretendemos analisar, sucintamente, alguns contornos jurídicos do tema proposto. Iniciamos conceituando o instituto da propriedade intelectual, considerando como principal finalidade do instituto o incentivo à produção intelectual através da concessão dos direitos autorais sobre a obra desenvolvida e retratando a natureza jurídica sui generis do direito à propriedade intelectual. Adiante, sob a ótica criminal, analisamos brevemente as principais conseqüências sociais advindas dos delitos contra a propriedade intelectual. Por fim, destacamos a criação do Conselho Nacional de Combate à Pirataria como uma fonte de esperança brasileira em preservar o Estado dos malefícios dos crimes contra a propriedade intelectual e em garantir os direitos autorais aos criadores de bens de inteligência.

Palavras-chave: propriedade intelectual, direitos autorais, crimes, contrafação, efeitos.

A instituição da propriedade intelectual fundamenta-se principalmente na pressuposição de estímulo à produção de novas

REFLEXÕES SOBRE O INSTITUTO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL E OS EFEITOS DOS CRIMES

CONTRA OS DIREITOS AUTORAIS

* **Danilo Cândido Rios Nivaldo dos Santos

* Acadêmico do 5º ano do curso de Direito da Universidade Federal de Goiás; membro do Núcleo de Patentes de Transferência de Tecnologia do Estado de Goiás (NUPATTE-GO), pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected].* * Graduado em Direito pela Universidade Federal de Goiás (1985), mestre em História das Sociedades Agrárias pela Universidade Federal de Goiás (1992) e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999), professor titular da Universidade Católica de Goiás, professor adjunto da Universidade Federal de Goiás, secretário especial de ciência e tecnologia do Instituto Goiano de Direito Ambiental, diretor de desenvolvimento da Associação Goiana dos Advogados e Coordenador do Núcleo de Patentes e Transferência de Tecnologia do estado de Goiás (NUPATTE-GO). E-mail: [email protected].

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criações intelectuais, através da proteção temporária do direito de exploração exclusiva da obra intelectual desenvolvida, de modo a garantir a justa recompensa do investimento, esforço e talento empregados em seu desenvolvimento.

Até onde se sabe, tal noção de propriedade intelectual somente veio a ganhar relevância com o surgimento da imprensa, quando então se otimizou a divulgação de idéias e se democratizou o acesso à informação.

A regulamentação sobre o conceito formal e a proteção legal conferida pela propriedade intelectual tem origem na Inglaterra, berço do sistema legal da common law, no início do século XVIII, quando, valendo-se de prerrogativas reais (royal prerogatives), a Coroa Britânica editou o Statute of Anne, em 1709 (BRANSCOMB, 1994, p. 121), com a intenção de incentivar a produção intelectual, passando a ser protegidos os direitos econômicos referentes ao processo de divulgação e publicação das obras realizadas pelos seus criadores.

Por proteger direitos relacionados às obras intelectuais, a concepção de propriedade sobre estas é bastante peculiar. Seus teóricos sabiam disso desde o princípio das análises sobre o tema. Nos Estados Unidos, onde a propriedade intelectual foi teorizada e consolidada pelos “pais fundadores”, já se sabia que essa modalidade de propriedade era distinta da propriedade material. Os estudiosos estadunidenses já sabiam que canções, poemas, invenções e obras literárias – devido a sua imaterialidade – não têm a mesma natureza dos objetos materiais que eram garantidos pelas leis de proteção à propriedade privada.

A Convenção da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI, ou, na versão inglesa, WIPO) define como Propriedade Intelectual

a soma dos direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200894

denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico. (WIKIPÉDIA, 2006)

É certo que a propriedade intelectual é revestida de particularidades acerca de sua natureza e de seus limites de abrangência. As expressões de idéias, especialmente por terem a característica de uma vez expressas serem compenetradas por todos que a recebem, devem ser especialmente protegidas, para que seus criadores não fiquem desestimulados a criá-las.

Dessa forma, o autor/inventor, a partir da inspiração em uma idéia abstraída do vasto repertório de conhecimentos humanos acumulados durante o passar dos tempos, realizará o trabalho intelectual de dar uma forma – um modelo – original a essa idéia, de modo a torná-la útil ou interessante a quem quer que a receba ou a utilize, desenvolvendo, assim, uma obra intelectual pronta, acabada e original, à qual o Estado garantirá o direito de exploração econômica exclusiva, abonando a justa recompensa do investimento, esforço e talento empregados em seu desenvolvimento.

É como disse Olagnier (apud ROCHA, 2004), quando se trata da relação jurídica que liga o autor a sua obra, esta relação apresenta as mesmas características da tutela paternal: a obra intelectual é como um filho, é concebido (inspiração em uma idéia), gerado (trabalho intelectual) e, finalmente, nasce (obra intelectual pronta, acabada e original).

Assim, sob o âmbito de proteção conferido pelo instituto da propriedade intelectual, aquele que desenvolve uma obra intelectual deve ter direito autoral sobre ela, de forma que a obra desenvolvida seja com ele identificada perpetuamente e todas as vezes que alguém a utilize ou receba se tenha uma recompensa material. Os direitos autorais concedidos ao criador de uma obra intelectual se subdividem em direitos morais e patrimoniais.

O direito moral é aquele atribuído à pessoa do criador (autor, artista, intérprete, executante, produtor fonográfico etc.), consistindo na faculdade de defesa e proteção de sua criação

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 95

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criações intelectuais, através da proteção temporária do direito de exploração exclusiva da obra intelectual desenvolvida, de modo a garantir a justa recompensa do investimento, esforço e talento empregados em seu desenvolvimento.

Até onde se sabe, tal noção de propriedade intelectual somente veio a ganhar relevância com o surgimento da imprensa, quando então se otimizou a divulgação de idéias e se democratizou o acesso à informação.

A regulamentação sobre o conceito formal e a proteção legal conferida pela propriedade intelectual tem origem na Inglaterra, berço do sistema legal da common law, no início do século XVIII, quando, valendo-se de prerrogativas reais (royal prerogatives), a Coroa Britânica editou o Statute of Anne, em 1709 (BRANSCOMB, 1994, p. 121), com a intenção de incentivar a produção intelectual, passando a ser protegidos os direitos econômicos referentes ao processo de divulgação e publicação das obras realizadas pelos seus criadores.

Por proteger direitos relacionados às obras intelectuais, a concepção de propriedade sobre estas é bastante peculiar. Seus teóricos sabiam disso desde o princípio das análises sobre o tema. Nos Estados Unidos, onde a propriedade intelectual foi teorizada e consolidada pelos “pais fundadores”, já se sabia que essa modalidade de propriedade era distinta da propriedade material. Os estudiosos estadunidenses já sabiam que canções, poemas, invenções e obras literárias – devido a sua imaterialidade – não têm a mesma natureza dos objetos materiais que eram garantidos pelas leis de proteção à propriedade privada.

A Convenção da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI, ou, na versão inglesa, WIPO) define como Propriedade Intelectual

a soma dos direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e

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denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico. (WIKIPÉDIA, 2006)

É certo que a propriedade intelectual é revestida de particularidades acerca de sua natureza e de seus limites de abrangência. As expressões de idéias, especialmente por terem a característica de uma vez expressas serem compenetradas por todos que a recebem, devem ser especialmente protegidas, para que seus criadores não fiquem desestimulados a criá-las.

Dessa forma, o autor/inventor, a partir da inspiração em uma idéia abstraída do vasto repertório de conhecimentos humanos acumulados durante o passar dos tempos, realizará o trabalho intelectual de dar uma forma – um modelo – original a essa idéia, de modo a torná-la útil ou interessante a quem quer que a receba ou a utilize, desenvolvendo, assim, uma obra intelectual pronta, acabada e original, à qual o Estado garantirá o direito de exploração econômica exclusiva, abonando a justa recompensa do investimento, esforço e talento empregados em seu desenvolvimento.

É como disse Olagnier (apud ROCHA, 2004), quando se trata da relação jurídica que liga o autor a sua obra, esta relação apresenta as mesmas características da tutela paternal: a obra intelectual é como um filho, é concebido (inspiração em uma idéia), gerado (trabalho intelectual) e, finalmente, nasce (obra intelectual pronta, acabada e original).

Assim, sob o âmbito de proteção conferido pelo instituto da propriedade intelectual, aquele que desenvolve uma obra intelectual deve ter direito autoral sobre ela, de forma que a obra desenvolvida seja com ele identificada perpetuamente e todas as vezes que alguém a utilize ou receba se tenha uma recompensa material. Os direitos autorais concedidos ao criador de uma obra intelectual se subdividem em direitos morais e patrimoniais.

O direito moral é aquele atribuído à pessoa do criador (autor, artista, intérprete, executante, produtor fonográfico etc.), consistindo na faculdade de defesa e proteção de sua criação

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intelectual. Trata-se de um direito intimamente ligado à personalidade do autor, que reconhece a ligação ad infinitum entre este e sua obra, garantindo a este, inclusive, o direito de ver ser nome mencionado toda vez que um trecho de uma obra for citado em outra. São irrenunciáveis e inalienáveis (art. 27 da Lei n. 9610/98 dos Direitos Autorais). Pouillet (apud AZEVEDO, 2006, p. 41) conceitua os direitos morais como o “direito de emanado da personalidade do autor, de criar e fazer respeitar essa personalidade, manifestada na obra artística ou literária”.

Já o direito patrimonial ou, conforme preferem Mouchet e Radaelli (1953, p. 465-558), o “direito pecuniário”, são por estes assim definidos: “El derecho pecuniario es la faz del derecho intelectual que se refiere a la exploración económica de las obras, de la cual se beneficiam no sólo el autor sino también sus herderos y derechos habientes”. O direito patrimonial é, portanto, aquele que o criador tem sobre sua obra de utilizar, fruir, dispor e de autorizar sua utilização e fruição por terceiros, no todo ou em parte, seja por meio de reprodução, comunicação ao público ou por distribuição (art. 28 da Lei dos Direitos Autorais).

Portanto, não existe a figura do autor proprietário de direitos autorais, e sim a figura do autor/criador, que é titular dos direitos autorais sobre a obra, isso porque a natureza jurídica dos direitos autorais é mista, sui generis, por ter uma característica de direito real, que equivale ao direito patrimonial, e outra de direito pessoal, que equivale ao direito moral. A própria Lei n. 9610/98, a chamada Lei dos Direitos Autorais (LDA), define tais direitos

1como sendo sui generis, admitindo-os como bens móveis (art. 3) , com características simultâneas de direito pessoal e de direito real.

Também entendem ser mista e sui generis a natureza jurídica dos direitos autorais os juristas argentinos Carlos Mouchet e Sigifrido Radaelli (1998, p. 193), para quem

una parte de la doctrina y de la legislación, reconociendo la naturaleza sui generis de los delitos contra los derechos intelectuales, en lugar de

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200896

1 Lei 9610/98: “Art. 3º - Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis”.

asimilar aquellos a figuras delectivas conocidas, prefiere referirse, en forma indeterminada, a violaciones, ataques, contravenciones o infraciones a los derechos del autor.

Pois bem, feitas essas considerações sobre o conceito, a finalidade e a natureza jurídica do instituto da propriedade intelectual, bem como a respeito do seu âmbito de proteção legal (a obra intelectual pronta, acabada e original), passamos agora a visualizar sucintamente algumas problemáticas atinentes aos prejuízos sociais causados pela agressão aos direitos autorais conferidos ao criador de uma obra intelectual.

As figuras mais comuns de infrações contra a garantia de propriedade intelectual são o plágio e a contrafação. Nas palavras do eminente Carlos Alberto Bittar (2003, p. 149-150), define-se plágio como “imitação servil ou fraudulenta de obra alheia, mesmo quando dissimulada por artifício, que, no entanto, não elide o intuito malicioso”, afastando de seu conceito aquele aproveitamento denominado remoto ou fluído, ou seja, de pequeno vulto. Por contrafação entende-se “a publicação ou reprodução abusivas de obra alheia”, pressupondo-se “a falta de consentimento do autor, não importando a forma extrínseca (a modificação de formato), o destino, ou a finalidade da ação violadora”.

Assim, no plágio, o plagiador apresenta obra alheia como se sua fosse, enquanto que na contrafação o contrafator representa ou reproduz a obra alheia sem a devida autorização do seu criador, podendo ser total ou parcial.

Dando maior atenção à contrafação, ou simplesmente pirataria, buscamos nas palavras do jurista Aurélio Wander Bastos (1997, p. 217) o melhor conceito para tal conduta, segundo o qual a pirataria em propriedade intelectual é

a atividade de copiar ou reproduzir, sem a autorização dos titulares, marcas ou patentes, livros ou impressos em geral, gravações de som e/ou imagens ou ainda qualquer suporte típico que contenha obras intelectuais legalmente protegidas, inclusive softwares.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 97

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intelectual. Trata-se de um direito intimamente ligado à personalidade do autor, que reconhece a ligação ad infinitum entre este e sua obra, garantindo a este, inclusive, o direito de ver ser nome mencionado toda vez que um trecho de uma obra for citado em outra. São irrenunciáveis e inalienáveis (art. 27 da Lei n. 9610/98 dos Direitos Autorais). Pouillet (apud AZEVEDO, 2006, p. 41) conceitua os direitos morais como o “direito de emanado da personalidade do autor, de criar e fazer respeitar essa personalidade, manifestada na obra artística ou literária”.

Já o direito patrimonial ou, conforme preferem Mouchet e Radaelli (1953, p. 465-558), o “direito pecuniário”, são por estes assim definidos: “El derecho pecuniario es la faz del derecho intelectual que se refiere a la exploración económica de las obras, de la cual se beneficiam no sólo el autor sino también sus herderos y derechos habientes”. O direito patrimonial é, portanto, aquele que o criador tem sobre sua obra de utilizar, fruir, dispor e de autorizar sua utilização e fruição por terceiros, no todo ou em parte, seja por meio de reprodução, comunicação ao público ou por distribuição (art. 28 da Lei dos Direitos Autorais).

Portanto, não existe a figura do autor proprietário de direitos autorais, e sim a figura do autor/criador, que é titular dos direitos autorais sobre a obra, isso porque a natureza jurídica dos direitos autorais é mista, sui generis, por ter uma característica de direito real, que equivale ao direito patrimonial, e outra de direito pessoal, que equivale ao direito moral. A própria Lei n. 9610/98, a chamada Lei dos Direitos Autorais (LDA), define tais direitos

1como sendo sui generis, admitindo-os como bens móveis (art. 3) , com características simultâneas de direito pessoal e de direito real.

Também entendem ser mista e sui generis a natureza jurídica dos direitos autorais os juristas argentinos Carlos Mouchet e Sigifrido Radaelli (1998, p. 193), para quem

una parte de la doctrina y de la legislación, reconociendo la naturaleza sui generis de los delitos contra los derechos intelectuales, en lugar de

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200896

1 Lei 9610/98: “Art. 3º - Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis”.

asimilar aquellos a figuras delectivas conocidas, prefiere referirse, en forma indeterminada, a violaciones, ataques, contravenciones o infraciones a los derechos del autor.

Pois bem, feitas essas considerações sobre o conceito, a finalidade e a natureza jurídica do instituto da propriedade intelectual, bem como a respeito do seu âmbito de proteção legal (a obra intelectual pronta, acabada e original), passamos agora a visualizar sucintamente algumas problemáticas atinentes aos prejuízos sociais causados pela agressão aos direitos autorais conferidos ao criador de uma obra intelectual.

As figuras mais comuns de infrações contra a garantia de propriedade intelectual são o plágio e a contrafação. Nas palavras do eminente Carlos Alberto Bittar (2003, p. 149-150), define-se plágio como “imitação servil ou fraudulenta de obra alheia, mesmo quando dissimulada por artifício, que, no entanto, não elide o intuito malicioso”, afastando de seu conceito aquele aproveitamento denominado remoto ou fluído, ou seja, de pequeno vulto. Por contrafação entende-se “a publicação ou reprodução abusivas de obra alheia”, pressupondo-se “a falta de consentimento do autor, não importando a forma extrínseca (a modificação de formato), o destino, ou a finalidade da ação violadora”.

Assim, no plágio, o plagiador apresenta obra alheia como se sua fosse, enquanto que na contrafação o contrafator representa ou reproduz a obra alheia sem a devida autorização do seu criador, podendo ser total ou parcial.

Dando maior atenção à contrafação, ou simplesmente pirataria, buscamos nas palavras do jurista Aurélio Wander Bastos (1997, p. 217) o melhor conceito para tal conduta, segundo o qual a pirataria em propriedade intelectual é

a atividade de copiar ou reproduzir, sem a autorização dos titulares, marcas ou patentes, livros ou impressos em geral, gravações de som e/ou imagens ou ainda qualquer suporte típico que contenha obras intelectuais legalmente protegidas, inclusive softwares.

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Como se infere da definição de Aurélio Bastos (1997) acima transposta, em meio ao instituto da propriedade intelectual a pirataria é ampla e multifacetada, podendo assumir variadas modalidades, com ou sem intuito lucrativo, mas sempre atingindo o direito autoral conferido ao criador de uma obra intelectual. Por isso, é reprimida pelo Código Penal Brasileiro (em seu art. 184), pela Lei de Propriedade Industrial (Lei n. 9.279/96), pela Lei dos Direitos Autorais (Lei n. 9.610/98) e também pela Lei dos Softwares (Lei n. 9.609/98).

Como se nota, é incomensurável o prejuízo pessoal, intelectual e financeiro daquele que desenvolve certo produto ou aperfeiçoa determinada tecnologia diante do crime de pirataria. O esforço, a inteligência e todo o investimento aplicados são totalmente apropriados por pessoas menos escrupulosas (chamados de “piratas”), que se aproveitam do renome das marcas, dos frutos do trabalho alheio e da confiança imposta aos consumidores para reproduzirem ou copiarem os bens de inteligência desenvolvidos por seus criadores.

A conseqüência direta desta apropriação do trabalho intelectual alheio é o desestímulo à criação intelectual, o que nos permite visualizar claramente que a pirataria esvazia a finalidade direta do instituto da propriedade intelectual, consistente no incentivo à produção de novas idéias através da proteção temporária do direito de exploração exclusiva da obra intelectual criada. Dessa forma, diante das constantes agressões ao referido direito de exploração exclusiva da obra intelectual desenvolvida, é natural que a sociedade sinta-se desestimulada à criação intelectual.

Notoriamente, a pirataria também impõe danos patrimoniais, na maioria das vezes vultosos, àquele que se dignou ao trabalho intelectual de produzir uma obra de inteligência pronta, acabada e original, quer pela exibição (divulgação) ou revelação, quer pelo aproveitamento do conteúdo (utilização) ou da própria criação intelectual, colocando em risco outra finalidade precípua do instituto da propriedade intelectual, consistente na garantia da justa recompensa do investimento, esforço e talento empregados no desenvolvimento da criação intelectual.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200898

Os efeitos dos crimes contra os direitos autorais também se alastram densamente rumo à liberdade de concorrência no comércio. A partir do momento em que os produtos da contrafação ganham comercialização, surgirá então a concorrência desleal contra o criador dos produtos originais. O concorrente pirata, que age comercialmente com deslealdade, procura, sempre, locupletar-se com o esforço alheio, gozando da credibilidade, confiabilidade e respeito de outrem que no comércio age com lealdade, ferindo a honestidade na competição comercial, as leis de mercado e as normas jurídicas que as disciplinam.

Nessa esteira de pensamento, Emerson Kapaz (TRF 3ª Região, 2006), presidente executivo do Instituto Brasileiro de Ética na Concorrência (ETCO), salienta:

A pirataria traz para o mercado uma concorrência desleal que inibe o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável do país [...] quebrada a confidencialidade de processos e de produtos, e repassados estes à concorrência, a pirataria inibe, sem dúvida, a criação de novos métodos, produtos e serviços, por propiciar, mediante simples cópia criminosa, o mesmo resultado que somente seria obtido após vultuosos investimentos [...].

Longe de cessar por aí, os malefícios causados pelos crimes contra a propriedade intelectual também são experimentados pela arrecadação tributária nacional, pois uma vez lançados ilegalmente no comércio produtos ilegítimos torna-se impossível o recolhimento dos respectivos tributos (ICMS, IPI etc.), gerando enorme prejuízo ao erário público. De acordo com Emerson Kapaz (idem), o Brasil perde para a pirataria entre 30 a 60 bilhões de reais por ano em impostos, além de 1,5 milhão de empregos formais. Só nos setores de bebida, combustível e fumo, as perdas são de aproximadamente 6 bilhões de reais ao ano em razão da pirataria, sonegação e contrabando.

Como conseqüência conexa ao impacto na arrecadação tributária provocado pelos crimes contra a propriedade intelectual, fica estabelecido um choque de legitimação entre o Estado arrecadador e aqueles comerciantes de produtos legítimos, na

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 99

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Como se infere da definição de Aurélio Bastos (1997) acima transposta, em meio ao instituto da propriedade intelectual a pirataria é ampla e multifacetada, podendo assumir variadas modalidades, com ou sem intuito lucrativo, mas sempre atingindo o direito autoral conferido ao criador de uma obra intelectual. Por isso, é reprimida pelo Código Penal Brasileiro (em seu art. 184), pela Lei de Propriedade Industrial (Lei n. 9.279/96), pela Lei dos Direitos Autorais (Lei n. 9.610/98) e também pela Lei dos Softwares (Lei n. 9.609/98).

Como se nota, é incomensurável o prejuízo pessoal, intelectual e financeiro daquele que desenvolve certo produto ou aperfeiçoa determinada tecnologia diante do crime de pirataria. O esforço, a inteligência e todo o investimento aplicados são totalmente apropriados por pessoas menos escrupulosas (chamados de “piratas”), que se aproveitam do renome das marcas, dos frutos do trabalho alheio e da confiança imposta aos consumidores para reproduzirem ou copiarem os bens de inteligência desenvolvidos por seus criadores.

A conseqüência direta desta apropriação do trabalho intelectual alheio é o desestímulo à criação intelectual, o que nos permite visualizar claramente que a pirataria esvazia a finalidade direta do instituto da propriedade intelectual, consistente no incentivo à produção de novas idéias através da proteção temporária do direito de exploração exclusiva da obra intelectual criada. Dessa forma, diante das constantes agressões ao referido direito de exploração exclusiva da obra intelectual desenvolvida, é natural que a sociedade sinta-se desestimulada à criação intelectual.

Notoriamente, a pirataria também impõe danos patrimoniais, na maioria das vezes vultosos, àquele que se dignou ao trabalho intelectual de produzir uma obra de inteligência pronta, acabada e original, quer pela exibição (divulgação) ou revelação, quer pelo aproveitamento do conteúdo (utilização) ou da própria criação intelectual, colocando em risco outra finalidade precípua do instituto da propriedade intelectual, consistente na garantia da justa recompensa do investimento, esforço e talento empregados no desenvolvimento da criação intelectual.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/200898

Os efeitos dos crimes contra os direitos autorais também se alastram densamente rumo à liberdade de concorrência no comércio. A partir do momento em que os produtos da contrafação ganham comercialização, surgirá então a concorrência desleal contra o criador dos produtos originais. O concorrente pirata, que age comercialmente com deslealdade, procura, sempre, locupletar-se com o esforço alheio, gozando da credibilidade, confiabilidade e respeito de outrem que no comércio age com lealdade, ferindo a honestidade na competição comercial, as leis de mercado e as normas jurídicas que as disciplinam.

Nessa esteira de pensamento, Emerson Kapaz (TRF 3ª Região, 2006), presidente executivo do Instituto Brasileiro de Ética na Concorrência (ETCO), salienta:

A pirataria traz para o mercado uma concorrência desleal que inibe o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável do país [...] quebrada a confidencialidade de processos e de produtos, e repassados estes à concorrência, a pirataria inibe, sem dúvida, a criação de novos métodos, produtos e serviços, por propiciar, mediante simples cópia criminosa, o mesmo resultado que somente seria obtido após vultuosos investimentos [...].

Longe de cessar por aí, os malefícios causados pelos crimes contra a propriedade intelectual também são experimentados pela arrecadação tributária nacional, pois uma vez lançados ilegalmente no comércio produtos ilegítimos torna-se impossível o recolhimento dos respectivos tributos (ICMS, IPI etc.), gerando enorme prejuízo ao erário público. De acordo com Emerson Kapaz (idem), o Brasil perde para a pirataria entre 30 a 60 bilhões de reais por ano em impostos, além de 1,5 milhão de empregos formais. Só nos setores de bebida, combustível e fumo, as perdas são de aproximadamente 6 bilhões de reais ao ano em razão da pirataria, sonegação e contrabando.

Como conseqüência conexa ao impacto na arrecadação tributária provocado pelos crimes contra a propriedade intelectual, fica estabelecido um choque de legitimação entre o Estado arrecadador e aqueles comerciantes de produtos legítimos, na

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 99

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medida em que estes passam a sentir-se incentivados e “legitimados” a também sonegarem os devidos impostos, como meio de compensar as perdas decorrentes das desvantagens advindas da presença de contrafatores no comércio. Ademais, por fazer uso da via criminosa sem serem fiscalizados nem tributados pelo poder público, os comerciantes piratas reúnem condições de fornecerem produtos, muitas vezes com boa qualidade, com um preço bem menor do que aqueles oferecidos pelos comerciantes de produtos legítimos, agravando a deslealdade na concorrência de mercado e alimentando ainda mais as engrenagens desse ciclo criminoso.

Por fim, mas longe de se exaurir a temática proposta, também são graves as complicações arrostadas pelo Estado brasileiro frente as suas relações internacionais, tanto em políticas econômicas multilaterais quanto bilaterais, quando se constata que os crimes contra os direitos autorais crescem significativamente por aqui. Um cenário que denuncia a prosperidade dos negócios da pirataria obstina sobremaneira a entrada de investimentos externos, que poderiam estar fomentando um maior crescimento econômico do país. Além do empecilho à atração de investimentos externos, são bastante comuns as pressões internacionais no sentido de se intensificar o combate aos crimes contra os direitos de autor. O Escritório de Comércio Exterior (USTR, em Inglês) aponta que, em 2004, as empresas americanas perderam quase 932 milhões de dólares devido à cópia ilegal de seus produtos, sendo 24,5 milhões a mais do que no ano anterior. O USTR disse ainda que

até agora as medidas adotadas pelo governo brasileiro foram insuficientes para aumentar de forma significativa o número de julgamentos e condenações por violações penais dos direitos de autorais, o que é um elemento chave para reduzir com êxito os níveis de pirataria. (MERCANTIL, 2005),

Destarte, ante a existência de atos de comércio de produtos resultantes da pirataria e da prática desmedida de crimes contra a propriedade intelectual e em meio a esse clima de forte pressão internacional – principalmente vinda dos Estados Unidos

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008100

–, o governo brasileiro, em 14 de outubro de 2004, através do Decreto n. 5.244, criou o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual, que é um órgão colegiado consultivo que integra a estrutura básica do Ministério da Justiça e que tem por finalidade elaborar as diretrizes para formulação e proposição de plano nacional para o combate à pirataria, à sonegação fiscal dela decorrente e aos delitos contra a propriedade intelectual.

A criação do Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual significa muito mais que uma reação do Estado brasileiro às ameaças de represálias norte-americanas e do resto do mundo, é também uma esperança de preservação da ordem jurídica e dos direitos autorais daqueles que com muito esforço e investimento desenvolvem as obras que alimentam o progresso desta nação. Dessa forma, esperamos ter deixado um pouco mais claro a necessidade de uma política repressora mais dinâmica e eficiente por parte do Estado Brasileiro, que seja capaz de acompanhar de perto os avanços tecnológicos e resguardar os direitos intelectuais garantidos constitucionalmente aos autores e inventores em relação a suas obras intelectuais.

Referências

AZEVEDO, P. Direito Moral do Escritor. Rio de Janeiro: Editora Livraria Jacintho, 1942.

BASTOS, A. W. Dicionário brasileiro de propriedade intelectual e assuntos conexos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 1997.

BITTAR, C. A. Direito de autor. 4. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2003.

BRANSCOMB, A. W. Who Owns Information?. New York: Book Reviews, Privacy to Public Access/Basic Books, 1994.

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medida em que estes passam a sentir-se incentivados e “legitimados” a também sonegarem os devidos impostos, como meio de compensar as perdas decorrentes das desvantagens advindas da presença de contrafatores no comércio. Ademais, por fazer uso da via criminosa sem serem fiscalizados nem tributados pelo poder público, os comerciantes piratas reúnem condições de fornecerem produtos, muitas vezes com boa qualidade, com um preço bem menor do que aqueles oferecidos pelos comerciantes de produtos legítimos, agravando a deslealdade na concorrência de mercado e alimentando ainda mais as engrenagens desse ciclo criminoso.

Por fim, mas longe de se exaurir a temática proposta, também são graves as complicações arrostadas pelo Estado brasileiro frente as suas relações internacionais, tanto em políticas econômicas multilaterais quanto bilaterais, quando se constata que os crimes contra os direitos autorais crescem significativamente por aqui. Um cenário que denuncia a prosperidade dos negócios da pirataria obstina sobremaneira a entrada de investimentos externos, que poderiam estar fomentando um maior crescimento econômico do país. Além do empecilho à atração de investimentos externos, são bastante comuns as pressões internacionais no sentido de se intensificar o combate aos crimes contra os direitos de autor. O Escritório de Comércio Exterior (USTR, em Inglês) aponta que, em 2004, as empresas americanas perderam quase 932 milhões de dólares devido à cópia ilegal de seus produtos, sendo 24,5 milhões a mais do que no ano anterior. O USTR disse ainda que

até agora as medidas adotadas pelo governo brasileiro foram insuficientes para aumentar de forma significativa o número de julgamentos e condenações por violações penais dos direitos de autorais, o que é um elemento chave para reduzir com êxito os níveis de pirataria. (MERCANTIL, 2005),

Destarte, ante a existência de atos de comércio de produtos resultantes da pirataria e da prática desmedida de crimes contra a propriedade intelectual e em meio a esse clima de forte pressão internacional – principalmente vinda dos Estados Unidos

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008100

–, o governo brasileiro, em 14 de outubro de 2004, através do Decreto n. 5.244, criou o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual, que é um órgão colegiado consultivo que integra a estrutura básica do Ministério da Justiça e que tem por finalidade elaborar as diretrizes para formulação e proposição de plano nacional para o combate à pirataria, à sonegação fiscal dela decorrente e aos delitos contra a propriedade intelectual.

A criação do Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual significa muito mais que uma reação do Estado brasileiro às ameaças de represálias norte-americanas e do resto do mundo, é também uma esperança de preservação da ordem jurídica e dos direitos autorais daqueles que com muito esforço e investimento desenvolvem as obras que alimentam o progresso desta nação. Dessa forma, esperamos ter deixado um pouco mais claro a necessidade de uma política repressora mais dinâmica e eficiente por parte do Estado Brasileiro, que seja capaz de acompanhar de perto os avanços tecnológicos e resguardar os direitos intelectuais garantidos constitucionalmente aos autores e inventores em relação a suas obras intelectuais.

Referências

AZEVEDO, P. Direito Moral do Escritor. Rio de Janeiro: Editora Livraria Jacintho, 1942.

BASTOS, A. W. Dicionário brasileiro de propriedade intelectual e assuntos conexos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 1997.

BITTAR, C. A. Direito de autor. 4. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2003.

BRANSCOMB, A. W. Who Owns Information?. New York: Book Reviews, Privacy to Public Access/Basic Books, 1994.

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KAPAZ, E. Pirataria e crescimento sustentável. Revista Eletrônica do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial. Disponível em http://www.etco.org.br/listanoticia.php. Acesso em: 24.abr.2007.

LEITE, G. e GIACCHETTA, A. Z. Normas contábeis e propriedade intelectual. Valor Econômico. TRF 3ª Região. Clipping On-Line @. Disponível em: http://www.trf3.gov.br/trf3r/index.php? id=11&op=propriedade_intelectual. Acesso em: 24 nov. 2006.

MERCANTIL, G. EUA adiam decisão sobre sanções ao Brasil. Texto publicado no site do Ministério da Justiça. Disponível em:

Acesso em: 24.nov.2006.

MOUCHET, C. e RADAELLI, S. A. Los derechos del escritor y del artista. Madrid: Editora Cultura Hispânica, 1953. p. 465-558.

ROCHA, J. M. da. Dos direitos de autor e da executoriedade dos bens de inteligência. São Paulo: Editora RT, 1978.

WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Verbete: Propriedade Intelectual. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Direito_da_Propriedade_Intelectual. Acesso em: 24 nov. 2006.

http://www.mj.gov.br/combatepirataria/default.asp?var=news0504200553.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008102

Resumo:No presente artigo, evidencia-se que nesses 17 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente houve conquistas significativas, no entanto, ainda são necessários maiores investimentos públicos para definir uma política orçamentária participativa e permanente, que viabilize a efetiva implementação dos direitos fundamentais afetos à criança e ao adolescente.

Palavras-chave: Direito da Criança e do Adolescente, Doutrina da Proteção Integral, políticas públicas, prioridade absoluta.

A Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), completou dezoito (18) anos de vigência, contudo, ainda precisa, e por isso mesmo é dependente de emancipação cultural, ideológica, política e social, isto é, de que se estabeleçam pautas públicas que adotem dentre suas temáticas os assuntos de interesse da infância e da juventude para a implementação efetiva de melhores e superiores interesses desses novos cidadãos. Aos dezoito (18) anos do Estatuto é possível dizer que já se consagrou, no Brasil, a doutrina da proteção integral como marco teórico-pragmático que serve como orientação para todas as ações governamentais e não-governamentais que se realizam em prol da criança e do adolescente. Entretanto, é possível observar em inúmeros núcleos familiares, em diversos segmentos sociais e em todos os níveis de governo que muito ainda deve ser feito.

18 ANOS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

*Mário Luiz Ramidoff

* Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Paraná; mestre (CPGD-UFSC) e doutorando em Direito (PPGD-UFPR); professor de Direito da Criança e do Adolescente na UniCuritiba. E-mail [email protected].

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KAPAZ, E. Pirataria e crescimento sustentável. Revista Eletrônica do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial. Disponível em http://www.etco.org.br/listanoticia.php. Acesso em: 24.abr.2007.

LEITE, G. e GIACCHETTA, A. Z. Normas contábeis e propriedade intelectual. Valor Econômico. TRF 3ª Região. Clipping On-Line @. Disponível em: http://www.trf3.gov.br/trf3r/index.php? id=11&op=propriedade_intelectual. Acesso em: 24 nov. 2006.

MERCANTIL, G. EUA adiam decisão sobre sanções ao Brasil. Texto publicado no site do Ministério da Justiça. Disponível em:

Acesso em: 24.nov.2006.

MOUCHET, C. e RADAELLI, S. A. Los derechos del escritor y del artista. Madrid: Editora Cultura Hispânica, 1953. p. 465-558.

ROCHA, J. M. da. Dos direitos de autor e da executoriedade dos bens de inteligência. São Paulo: Editora RT, 1978.

WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Verbete: Propriedade Intelectual. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Direito_da_Propriedade_Intelectual. Acesso em: 24 nov. 2006.

http://www.mj.gov.br/combatepirataria/default.asp?var=news0504200553.

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Resumo:No presente artigo, evidencia-se que nesses 17 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente houve conquistas significativas, no entanto, ainda são necessários maiores investimentos públicos para definir uma política orçamentária participativa e permanente, que viabilize a efetiva implementação dos direitos fundamentais afetos à criança e ao adolescente.

Palavras-chave: Direito da Criança e do Adolescente, Doutrina da Proteção Integral, políticas públicas, prioridade absoluta.

A Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), completou dezoito (18) anos de vigência, contudo, ainda precisa, e por isso mesmo é dependente de emancipação cultural, ideológica, política e social, isto é, de que se estabeleçam pautas públicas que adotem dentre suas temáticas os assuntos de interesse da infância e da juventude para a implementação efetiva de melhores e superiores interesses desses novos cidadãos. Aos dezoito (18) anos do Estatuto é possível dizer que já se consagrou, no Brasil, a doutrina da proteção integral como marco teórico-pragmático que serve como orientação para todas as ações governamentais e não-governamentais que se realizam em prol da criança e do adolescente. Entretanto, é possível observar em inúmeros núcleos familiares, em diversos segmentos sociais e em todos os níveis de governo que muito ainda deve ser feito.

18 ANOS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

*Mário Luiz Ramidoff

* Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Paraná; mestre (CPGD-UFSC) e doutorando em Direito (PPGD-UFPR); professor de Direito da Criança e do Adolescente na UniCuritiba. E-mail [email protected].

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A doutrina da proteção integral enquanto programa de ação deve continuar vinculando as proposições legislativas e as atividades administrativas adotadas pelos gestores públicos, assim como as medidas judiciais, pelo maior tempo possível, senão, que for necessário para a (re)organização social e política da Nação brasileira, (re)estruturando funcionalmente as intervenções estatais (Poder Público) para a (re)democratização das relações sociais que se desenvolvem comunitariamente na promoção e defesa dos direitos fundamentais afetos à infância e à juventude. A doutrina da proteção integral se constitui em um programa de ação – seja como princípio, seja como teoria – que assegura com absoluta prioridade os direitos individuais e as garantias fundamentais inerentes à criança e ao adolescente enquanto sujeitos de direito, isto é, cidadãos que merecem dedicação protetiva diferenciada e especial por distinção constitucional decorrente de opções políticas civilizatórias e humanitárias.

O s d i r e i t o s h u m a n o s e n t ã o o b j e t i v a d o s constitucionalmente como fundamentais, aqui com destinação especial para a infância e a juventude, são decorrentes de políticas que se alinharam às diretrizes internacionais estabelecidas por valores humanitários – ainda que ocidentalizados – configurando, assim, substancialmente, a concepção aberta (noção ou idéia) do que se possa entender por proteção integral dos interesses, dos direitos e das garantias afetos à criança e ao adolescente, ou seja, de tudo aquilo fundamental e mais comezinho para a promoção e defesa das liberdades públicas desses novos cidadãos (ação positiva e propositiva), ao mesmo tempo em que se impede, com isso, todo e qualquer tipo de ameaça e violência atentatórias (ações negativas e limitativas) àquelas liberdades substanciais.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, tanto quanto a Constituição da República de 1988, constituem-se, por isso, nas “Leis de Regência” fundadas teórico-pragmaticamente na doutrina da proteção integral (superior e melhor interesse da criança e do adolescente) determinantes jurídico, social e politicamente para priorização absoluta do atendimento das questões inerentes à infância e à juventude, delimitando, assim, a atuação do Poder Público na formulação das políticas sociais públicas que se destinem ao atendimento de tais demandas – como,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008104

por exemplo, a destinação privilegiada de recursos públicos.O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição

da República de 1988 assinalam a atuação política dos gestores públicos, dos conselhos de direitos, dos conselhos tutelares, dos operadores do direito, enfim, de todos aqueles que desenvolvem atividades em prol da infância e da juventude, compondo, por assim dizer, uma rede de atendimento direto e indireto, de proteção e sistema de garantias. Entretanto, os mencionados atores (transformadores) sociais não devem se limitar ao cumprimento, senão à mera desoneração de suas funções jurídicas e ou sociais legalmente estabelecidas, mas, acima de tudo, devem procurar participar ativa e decisivamente na comunidade em que vivem, ocupando, pois, democraticamente, a espacialidade pública da palavra e da ação (ARENDT, 1997).

A democracia contemporânea exige a superação do princípio da igualdade, emancipando-se para a ambiência sócio-político participativa, paritária, comunitária e plural, pois tal experiência democrática forjou e deve continuar forjando a atuação, permanência e conquistas de outras espacialidades públicas para o exercício democrático e paritário da palavra e da ação como, por exemplo, os Conselhos dos Direitos e os Conselhos Tutelares enquanto novas expressões paritárias da também jovem democracia brasileira.

Os Conselhos dos Direitos e os Conselhos Tutelares, para além de se constituírem em novas categorias jurídico-legais com atribuições legais, sociais e políticas definidas no Estatuto da Criança e do Adolescente – e por decorrência de previsão estatutária também através das resoluções deliberadas pelos Conselhos dos Direitos, aqui, em especial, o Nacional

1(CONANDA ) – devem desenvolver importantes transformações

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 105

1 Resolução n. 105, de 15 de junho de 2005 – Dispõe sobre os Parâmetros para Criação e Funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e dá outras providências; Resolução n. 106, de 17 de novembro de 2005 – Altera dispositivos da Resolução n. 105/2005, que dispõe sobre os Parâmetros para Criação e Funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Resolução n. 116 – Altera dispositivos das Resoluções n. 105/2005 e 106/2006, que dispõe sobre os Parâmetros para Criação e Funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e dá outras providências.

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A doutrina da proteção integral enquanto programa de ação deve continuar vinculando as proposições legislativas e as atividades administrativas adotadas pelos gestores públicos, assim como as medidas judiciais, pelo maior tempo possível, senão, que for necessário para a (re)organização social e política da Nação brasileira, (re)estruturando funcionalmente as intervenções estatais (Poder Público) para a (re)democratização das relações sociais que se desenvolvem comunitariamente na promoção e defesa dos direitos fundamentais afetos à infância e à juventude. A doutrina da proteção integral se constitui em um programa de ação – seja como princípio, seja como teoria – que assegura com absoluta prioridade os direitos individuais e as garantias fundamentais inerentes à criança e ao adolescente enquanto sujeitos de direito, isto é, cidadãos que merecem dedicação protetiva diferenciada e especial por distinção constitucional decorrente de opções políticas civilizatórias e humanitárias.

O s d i r e i t o s h u m a n o s e n t ã o o b j e t i v a d o s constitucionalmente como fundamentais, aqui com destinação especial para a infância e a juventude, são decorrentes de políticas que se alinharam às diretrizes internacionais estabelecidas por valores humanitários – ainda que ocidentalizados – configurando, assim, substancialmente, a concepção aberta (noção ou idéia) do que se possa entender por proteção integral dos interesses, dos direitos e das garantias afetos à criança e ao adolescente, ou seja, de tudo aquilo fundamental e mais comezinho para a promoção e defesa das liberdades públicas desses novos cidadãos (ação positiva e propositiva), ao mesmo tempo em que se impede, com isso, todo e qualquer tipo de ameaça e violência atentatórias (ações negativas e limitativas) àquelas liberdades substanciais.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, tanto quanto a Constituição da República de 1988, constituem-se, por isso, nas “Leis de Regência” fundadas teórico-pragmaticamente na doutrina da proteção integral (superior e melhor interesse da criança e do adolescente) determinantes jurídico, social e politicamente para priorização absoluta do atendimento das questões inerentes à infância e à juventude, delimitando, assim, a atuação do Poder Público na formulação das políticas sociais públicas que se destinem ao atendimento de tais demandas – como,

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por exemplo, a destinação privilegiada de recursos públicos.O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição

da República de 1988 assinalam a atuação política dos gestores públicos, dos conselhos de direitos, dos conselhos tutelares, dos operadores do direito, enfim, de todos aqueles que desenvolvem atividades em prol da infância e da juventude, compondo, por assim dizer, uma rede de atendimento direto e indireto, de proteção e sistema de garantias. Entretanto, os mencionados atores (transformadores) sociais não devem se limitar ao cumprimento, senão à mera desoneração de suas funções jurídicas e ou sociais legalmente estabelecidas, mas, acima de tudo, devem procurar participar ativa e decisivamente na comunidade em que vivem, ocupando, pois, democraticamente, a espacialidade pública da palavra e da ação (ARENDT, 1997).

A democracia contemporânea exige a superação do princípio da igualdade, emancipando-se para a ambiência sócio-político participativa, paritária, comunitária e plural, pois tal experiência democrática forjou e deve continuar forjando a atuação, permanência e conquistas de outras espacialidades públicas para o exercício democrático e paritário da palavra e da ação como, por exemplo, os Conselhos dos Direitos e os Conselhos Tutelares enquanto novas expressões paritárias da também jovem democracia brasileira.

Os Conselhos dos Direitos e os Conselhos Tutelares, para além de se constituírem em novas categorias jurídico-legais com atribuições legais, sociais e políticas definidas no Estatuto da Criança e do Adolescente – e por decorrência de previsão estatutária também através das resoluções deliberadas pelos Conselhos dos Direitos, aqui, em especial, o Nacional

1(CONANDA ) – devem desenvolver importantes transformações

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1 Resolução n. 105, de 15 de junho de 2005 – Dispõe sobre os Parâmetros para Criação e Funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e dá outras providências; Resolução n. 106, de 17 de novembro de 2005 – Altera dispositivos da Resolução n. 105/2005, que dispõe sobre os Parâmetros para Criação e Funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Resolução n. 116 – Altera dispositivos das Resoluções n. 105/2005 e 106/2006, que dispõe sobre os Parâmetros para Criação e Funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e dá outras providências.

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valorativas através de suas múltiplas intervenções legalmente previstas.

Nestes dezoito (18) anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, conquistas e avanços significativos foram alcançados, ensejando a assunção de compromissos angariados democraticamente. No entanto, agora é hora de maiores investimentos públicos na definição de uma política orçamentária participativa e permanente que viabilize a implementação efetiva dos direitos fundamentais afetos à criança e ao adolescente que possibilite a realização de políticas sociais públicas que propiciem

2não só a efetivação daqueles direitos fundamentais , mas que também ofereçam apoio institucional aos núcleos familiares.

A efetivação dos direitos fundamentais afetos à criança e ao adolescente, para além de vitalizar as “Leis de Regência”, isto é, a Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, também vitaliza a própria democracia e a cidadania infanto-juventil, pois o “reconhecimento da dignidade da pessoa, na inviolabilidade dos direitos e no livre desenvolvimento da personalidade” certamente constitue-se em expressões significativas de um Estado, “como organização jurídico-política por excelência das sociedades civilizadas”, segundo José Alfredo

3de Oliveira Baracho (1995, p. 61 e ss) , que se pretende

2 Ramidoff (2005, p. 30 e ss) pontua que “somente através do deslocamento da perspectiva jurídica racional lógico-dedutiva para uma perspectiva da discursividade transdisciplinar e afetiva, ou seja, para também perceber a realidade que lhe circunstancia, será possível (re)conquistar as condições de possibilidade do exercício dos direitos mais comezinhos da personalidade, ao que se denomina de cidadania”.3 Para Baracho (1995), mutatis mutandis, legislações como essas “além da enunciação dos princípios fundamentais, que precedem os direitos e deveres dos cidadãos, procuram promovê-los, através de certas garantias, que não se restringem apenas às iniciativas judiciais dos titulares de situações jurídicas subjetivas, mas supõem o compromisso de todos os órgãos dos poderes públicos para que todos se tornem funcionalmente efetivos. [...] Os conflitos políticos e jurídicos são resolvidos pela correta interpretação dos direitos fundamentais, tornando possível concretizar os enunciados contidos na Constituição, compatibilizando todos eles, para que possam efetuar as garantias que os tornam aplicáveis. A prática das garantias constitucionais, para a efetivação dos direitos inscritos de maneira positivada, está vinculada à interpretação da Constituição e dos valores superiores deferidos pelo texto básico”.

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democrático (Constitucional, de acordo com Cademartori (1999)) e de Direito.

É preciso investimentos estruturais na educação infantil, principalmente na construção e manutenção de creches e na contratação de pessoal capacitado – capacitação permanente, então, concebida como troca de experiências e renovação ideológica pelo reconhecimento dos valores humanos. É preciso investimentos públicos humanitários, orçamentários, políticos, na construção, implementação e manutenção dos Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil – CAPsi – e dos Centros de Atenção Psicossocial aos Usuários Abusivos de Álcool e Drogas – CAPsad –, destinados ao atendimento de crianças e adolescentes que tiverem sofrimento mental grave. Conquanto, importa ressaltar que a reforma psiquiátrica, no Brasil, opera-se a partir de dois princípios fundamentais, quais sejam: o antimanicomial e o antihospitalicêntrico, pois, com isso, realiza-se também a (re)democratização nas relações sociais em que se inserem pessoas cujo direito à saúde mental (psíquica) – além é certo da física e social – para além de ser assegurado e efetivado, principalmente,

4deve evitar toda e qualquer hipótese de exclusão social .Enfim, é preciso investimentos preferenciais na

formulação e execução de políticas sociais públicas, com destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude – alíneas “c)” e “d)”, do § único do art. 4º do Estatuto – que sejam independentes das circunstanciais e sazonais governabilidades e de suas “razões de Estado” e que não se inclinem per lege às diretrizes constitucionais e estatutárias consubstanciadas na doutrina da proteção integral cuja prioridade é absoluta. Ademais, pontue-se

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4 Segundo Foucault (2000, p. 71-74), “uma sociedade se exprime positivamente nas doenças mentais que manifestam seus membros; e isto, qualquer que seja o status que ela dá a estas formas mórbidas: que os coloca no centro de sua vida religiosa como é freqüentemente o caso dos primitivos, ou que procura expatriá-las situando-os no exterior da vida social, como faz nossa cultura. Duas questões se colocam então: como chegou nossa cultura a dar à doença o sentido do desvio, e ao doente um status que o exclui? E como, apesar disso, nossa sociedade exprime-se nas formas mórbidas nas quais recusa reconhecer-se?”.

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valorativas através de suas múltiplas intervenções legalmente previstas.

Nestes dezoito (18) anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, conquistas e avanços significativos foram alcançados, ensejando a assunção de compromissos angariados democraticamente. No entanto, agora é hora de maiores investimentos públicos na definição de uma política orçamentária participativa e permanente que viabilize a implementação efetiva dos direitos fundamentais afetos à criança e ao adolescente que possibilite a realização de políticas sociais públicas que propiciem

2não só a efetivação daqueles direitos fundamentais , mas que também ofereçam apoio institucional aos núcleos familiares.

A efetivação dos direitos fundamentais afetos à criança e ao adolescente, para além de vitalizar as “Leis de Regência”, isto é, a Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, também vitaliza a própria democracia e a cidadania infanto-juventil, pois o “reconhecimento da dignidade da pessoa, na inviolabilidade dos direitos e no livre desenvolvimento da personalidade” certamente constitue-se em expressões significativas de um Estado, “como organização jurídico-política por excelência das sociedades civilizadas”, segundo José Alfredo

3de Oliveira Baracho (1995, p. 61 e ss) , que se pretende

2 Ramidoff (2005, p. 30 e ss) pontua que “somente através do deslocamento da perspectiva jurídica racional lógico-dedutiva para uma perspectiva da discursividade transdisciplinar e afetiva, ou seja, para também perceber a realidade que lhe circunstancia, será possível (re)conquistar as condições de possibilidade do exercício dos direitos mais comezinhos da personalidade, ao que se denomina de cidadania”.3 Para Baracho (1995), mutatis mutandis, legislações como essas “além da enunciação dos princípios fundamentais, que precedem os direitos e deveres dos cidadãos, procuram promovê-los, através de certas garantias, que não se restringem apenas às iniciativas judiciais dos titulares de situações jurídicas subjetivas, mas supõem o compromisso de todos os órgãos dos poderes públicos para que todos se tornem funcionalmente efetivos. [...] Os conflitos políticos e jurídicos são resolvidos pela correta interpretação dos direitos fundamentais, tornando possível concretizar os enunciados contidos na Constituição, compatibilizando todos eles, para que possam efetuar as garantias que os tornam aplicáveis. A prática das garantias constitucionais, para a efetivação dos direitos inscritos de maneira positivada, está vinculada à interpretação da Constituição e dos valores superiores deferidos pelo texto básico”.

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democrático (Constitucional, de acordo com Cademartori (1999)) e de Direito.

É preciso investimentos estruturais na educação infantil, principalmente na construção e manutenção de creches e na contratação de pessoal capacitado – capacitação permanente, então, concebida como troca de experiências e renovação ideológica pelo reconhecimento dos valores humanos. É preciso investimentos públicos humanitários, orçamentários, políticos, na construção, implementação e manutenção dos Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil – CAPsi – e dos Centros de Atenção Psicossocial aos Usuários Abusivos de Álcool e Drogas – CAPsad –, destinados ao atendimento de crianças e adolescentes que tiverem sofrimento mental grave. Conquanto, importa ressaltar que a reforma psiquiátrica, no Brasil, opera-se a partir de dois princípios fundamentais, quais sejam: o antimanicomial e o antihospitalicêntrico, pois, com isso, realiza-se também a (re)democratização nas relações sociais em que se inserem pessoas cujo direito à saúde mental (psíquica) – além é certo da física e social – para além de ser assegurado e efetivado, principalmente,

4deve evitar toda e qualquer hipótese de exclusão social .Enfim, é preciso investimentos preferenciais na

formulação e execução de políticas sociais públicas, com destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude – alíneas “c)” e “d)”, do § único do art. 4º do Estatuto – que sejam independentes das circunstanciais e sazonais governabilidades e de suas “razões de Estado” e que não se inclinem per lege às diretrizes constitucionais e estatutárias consubstanciadas na doutrina da proteção integral cuja prioridade é absoluta. Ademais, pontue-se

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4 Segundo Foucault (2000, p. 71-74), “uma sociedade se exprime positivamente nas doenças mentais que manifestam seus membros; e isto, qualquer que seja o status que ela dá a estas formas mórbidas: que os coloca no centro de sua vida religiosa como é freqüentemente o caso dos primitivos, ou que procura expatriá-las situando-os no exterior da vida social, como faz nossa cultura. Duas questões se colocam então: como chegou nossa cultura a dar à doença o sentido do desvio, e ao doente um status que o exclui? E como, apesar disso, nossa sociedade exprime-se nas formas mórbidas nas quais recusa reconhecer-se?”.

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que todo e qualquer imperativo legal deve ter ampla publicidade, 5em decorrência da exigência ético-política de transparência

administrativa que se impõe para o tratamento de assuntos cujos interesses pertencem a todos (VIANNA, 2007).

A criança e o adolescente não podem mais ser tratados como “problema de polícia” (atos desviados) “ou de assistência caritativa” (abandono), segundo Luigi Ferrajoli, no prefácio da obra de Méndez e Beloff (2001), para quem as condições de pobreza e marginalidade empurram aqueles novos cidadãos para uma relação adulta com a sociedade através da exploração do trabalho ilegal, da exploração sexual comercial infanto-juvenil, senão, pela “pequena criminalidade de subsistência”. O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao longo desses dezoito (18) anos, reformulou não só a legislação referente aos interesses, direitos e garantias afetos à infância e à juventude, mas também operou transformações valorativas fundamentais nas relações sociais (relações de poder) entre aquelas pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento – as famílias, a comunidade e o poder público, em todos os níveis.

O direito da criança e do adolescente materializou-se na Constituição da República de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, passando, então, a reformular as antigas relações naturalistas entre a infância e a juventude e o ordenamento jurídico brasileiro, até então de cunho espontaneamente afetivo e tutelar, para a emancipação civilizatória e humanitária politicamente inscrita no reconhecimento constitucional da força vinculante das diretrizes internacionais (lógica) dos direitos humanos destinados especificamente às pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento da personalidade, quais sejam: crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao fazer dezessete (18) anos, se encaminha para a “maioridade” temporal

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008108

5 Segundo Vianna (2007, p. 208 e ss), “o direito como instrumento de limitação do poder na sociedade de controle deve fundar-se em duas premissas fundamentais: a transparência pública, entendida como a máxima publicidade dos atos de interesse público, e a opacidade privada, entendida como a máxima confidenciabilidade dos atos da esfera privada”.

legislativa (vigência legal), impondo-se, assim, a amadurecer político e ideologicamente para concreção de seus preceitos jurídico-legais que se fundam nos valores humanos agregados constitucional e estatutariamente à ordem jurídica brasileira na defesa dos interesses, dos direitos e das garantias fundamentais da criança e do adolescente, pois, com isso, será possível alcançar a mais ampla eficácia jurídica e social.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja validade constitucional é alinhavada à mutação da perspectiva humanitária, certamente levou a sério a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, estabelecendo. assim, uma nova “lógica dos direitos e suas garantias”, a qual não pode mais sucumbir frente à “lógica da

6força do mercado”, segundo Luigi Ferrajoli (2001). Suas inúmeras temáticas que, por suas complexidades, exigem dedicação aprofundada e, por vezes, contribuições distintas da atuação meramente jurídica, técnica ou teórica. Nesse sentido, a legislação estatutária prevê que uma de suas principais diretrizes políticas é a mobilização social, isto é, a mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação paritária dos diversos segmentos da sociedade – consoante inc. VI do seu art. 88 –, principalmente, na formulação das políticas sociais públicas que requerem destinação privilegiada de recursos públicos para a formatação orçamentária específica.

A valorização dessa ainda jovem legislação que regulamenta a responsabilidade familiar, comunitária e estatal acerca das condições mínimas de dignidade das crianças e adolescentes requer, assim, tanto a proteção (defesa) dos direitos afetos àquelas cidadanias, quanto a promoção (veiculações propositivas) dos valores humanitários que são inerentes à própria dignidade daquelas pessoas que se encontram em condição

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 109

6 De acordo com Luigi Ferrajoli (2001), “esta transformação - da tutela paternalista e autoritária à garantia dos direitos, do velho regime de ‘compaixão-repressão’ como foi chamado por Emílio Garcia Méndez, à cidadania da infância - se traduz em uma nova dimensão constitucional do direito da infância”.

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que todo e qualquer imperativo legal deve ter ampla publicidade, 5em decorrência da exigência ético-política de transparência

administrativa que se impõe para o tratamento de assuntos cujos interesses pertencem a todos (VIANNA, 2007).

A criança e o adolescente não podem mais ser tratados como “problema de polícia” (atos desviados) “ou de assistência caritativa” (abandono), segundo Luigi Ferrajoli, no prefácio da obra de Méndez e Beloff (2001), para quem as condições de pobreza e marginalidade empurram aqueles novos cidadãos para uma relação adulta com a sociedade através da exploração do trabalho ilegal, da exploração sexual comercial infanto-juvenil, senão, pela “pequena criminalidade de subsistência”. O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao longo desses dezoito (18) anos, reformulou não só a legislação referente aos interesses, direitos e garantias afetos à infância e à juventude, mas também operou transformações valorativas fundamentais nas relações sociais (relações de poder) entre aquelas pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento – as famílias, a comunidade e o poder público, em todos os níveis.

O direito da criança e do adolescente materializou-se na Constituição da República de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, passando, então, a reformular as antigas relações naturalistas entre a infância e a juventude e o ordenamento jurídico brasileiro, até então de cunho espontaneamente afetivo e tutelar, para a emancipação civilizatória e humanitária politicamente inscrita no reconhecimento constitucional da força vinculante das diretrizes internacionais (lógica) dos direitos humanos destinados especificamente às pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento da personalidade, quais sejam: crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao fazer dezessete (18) anos, se encaminha para a “maioridade” temporal

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5 Segundo Vianna (2007, p. 208 e ss), “o direito como instrumento de limitação do poder na sociedade de controle deve fundar-se em duas premissas fundamentais: a transparência pública, entendida como a máxima publicidade dos atos de interesse público, e a opacidade privada, entendida como a máxima confidenciabilidade dos atos da esfera privada”.

legislativa (vigência legal), impondo-se, assim, a amadurecer político e ideologicamente para concreção de seus preceitos jurídico-legais que se fundam nos valores humanos agregados constitucional e estatutariamente à ordem jurídica brasileira na defesa dos interesses, dos direitos e das garantias fundamentais da criança e do adolescente, pois, com isso, será possível alcançar a mais ampla eficácia jurídica e social.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja validade constitucional é alinhavada à mutação da perspectiva humanitária, certamente levou a sério a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, estabelecendo. assim, uma nova “lógica dos direitos e suas garantias”, a qual não pode mais sucumbir frente à “lógica da

6força do mercado”, segundo Luigi Ferrajoli (2001). Suas inúmeras temáticas que, por suas complexidades, exigem dedicação aprofundada e, por vezes, contribuições distintas da atuação meramente jurídica, técnica ou teórica. Nesse sentido, a legislação estatutária prevê que uma de suas principais diretrizes políticas é a mobilização social, isto é, a mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação paritária dos diversos segmentos da sociedade – consoante inc. VI do seu art. 88 –, principalmente, na formulação das políticas sociais públicas que requerem destinação privilegiada de recursos públicos para a formatação orçamentária específica.

A valorização dessa ainda jovem legislação que regulamenta a responsabilidade familiar, comunitária e estatal acerca das condições mínimas de dignidade das crianças e adolescentes requer, assim, tanto a proteção (defesa) dos direitos afetos àquelas cidadanias, quanto a promoção (veiculações propositivas) dos valores humanitários que são inerentes à própria dignidade daquelas pessoas que se encontram em condição

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6 De acordo com Luigi Ferrajoli (2001), “esta transformação - da tutela paternalista e autoritária à garantia dos direitos, do velho regime de ‘compaixão-repressão’ como foi chamado por Emílio Garcia Méndez, à cidadania da infância - se traduz em uma nova dimensão constitucional do direito da infância”.

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peculiar de desenvolvimento.Importantes conquistas e avanços já foram alcançados ao

longo dos dezoito (18) anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente na efetivação dos direitos afetos à infância e à juventude. Contudo, é preciso ainda que se implementem não só regras jurídico-legais humanitárias, mas, principalmente, aquelas que se destinem preferentemente à construção (formulação), implementação (execução) e manutenção de políticas sociais públicas sérias e permanentes, as quais demandam a destinação absolutamente prioritária de recursos públicos através de dotações orçamentárias vinculadas constitucional e estatutariamente ao recolhimento (receita) quanto à aplicação (despesas) de tais recursos. Somente assim será possível consignar, no marco legislativo, um programa de ação que assegure, na Lei de Diretrizes Orçamentárias, uma destinação privilegiada de receitas públicas para as “áreas relacionadas com a proteção da infância e à juventude”, consoante as alíneas “c)” e “d)” do parágrafo único (garantia da prioridade) do art. 4º da Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Até porque, antes mesmo de que se possa pensar em novos investimentos públicos na área da educação, saúde, assistência social, dentre tantas outras questões estruturais, afigura-se como fundamental o estabelecimento de um orçamento específico, participativo, permanente e prioritariamente destinado ao atendimento dos interesses, direitos e garantias individuais de cunho fundamental da criança e do adolescente, construindo, por assim dizer, “uma decidida política dos gastos públicos”, segundo Luigi Ferrajoli (2001), em prol da infância e da juventude.

O desenvolvimento teórico e civilizatório (ideológico), alinhado às práticas propositivas (ações e experiências humanitárias), proporcionaram o rompimento legislativo (político) e social com o regime legal anterior então fundado na perspectiva da “situação irregular” – “Código de Menores”, Lei Federal n. 6.697, de 10 de outubro de 1979, expressamente revogada pelo art. 267, do Estatuto da Criança e do Adolescente – através mesmo da assunção do marco teórico-pragmático denominado de “doutrina da proteção integral”. Este assegura,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008110

com absoluta prioridade, os direitos fundamentais (valores humanos) afetos à criança e ao adolescente.

A denominada doutrina da proteção integral estrategicamente consagra institutos, categorias, sistemas e metodologias assecuratórias destinadas ao integral cumprimento e efetivação dos direitos fundamentais constitucional e estatutariamente garantidos, mediante a destinação privilegiada de recursos públicos – dotações orçamentárias priorizadas para a infância e a juventude – que, na verdade, determinam “mudança comportamental orçamentária assim como um severo fiscalizar do destino das dotações orçamentárias”, segundo Liborni Siqueira (1991).

Eis, pois, a revolução jurídico-legal (RAMIDOFF, 2005), ideológica, política e social que se implementa diuturnamente não só em prol da criança e do adolescente, mas, principalmente, para a concreção e reconhecimento dessas novas cidadanias que exigem uma ampla e irrestrita (re)democratização das relações sociais, senão das próprias instâncias públicas de poder, preservando-se, assim, a identidade infanto-juvenil como a matéria prima das presentes e futuras sociedades brasileiras. O Estatuto da Criança e do Adolescente se constitui, nesses dezoito (18) anos de vigência, por muito mais do que uma simples legislação formal, haja vista que se consagrou verdadeiramente num projeto jurídico para a construção da democracia, pois cuidou não só da regulação das relações sociais em que se inseriam os interesses, direitos e garantias da criança e do adolescente, mas projetou, também, importantes transformações na realidade do mundo da vida vivida.

Enfim, o Estatuto da Criança e do Adolescente constitui-se, por assim dizer, em um projeto de democracia – “uma construção ao mesmo tempo racional e social”, segundo Luigi Ferrajoli (2001) – destacadamente para a consolidação da cidadania infanto-juvenil realizável, pois, através do respeito e da responsabilidade familiar, comunitária e estatal (poder público) para com a dignidade daquelas pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento, quais sejam: crianças e adolescentes. Assim como a Constituição da República de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente também não se substitui à política, mutatis mutandis como bem observa Eros Roberto Grau

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peculiar de desenvolvimento.Importantes conquistas e avanços já foram alcançados ao

longo dos dezoito (18) anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente na efetivação dos direitos afetos à infância e à juventude. Contudo, é preciso ainda que se implementem não só regras jurídico-legais humanitárias, mas, principalmente, aquelas que se destinem preferentemente à construção (formulação), implementação (execução) e manutenção de políticas sociais públicas sérias e permanentes, as quais demandam a destinação absolutamente prioritária de recursos públicos através de dotações orçamentárias vinculadas constitucional e estatutariamente ao recolhimento (receita) quanto à aplicação (despesas) de tais recursos. Somente assim será possível consignar, no marco legislativo, um programa de ação que assegure, na Lei de Diretrizes Orçamentárias, uma destinação privilegiada de receitas públicas para as “áreas relacionadas com a proteção da infância e à juventude”, consoante as alíneas “c)” e “d)” do parágrafo único (garantia da prioridade) do art. 4º da Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Até porque, antes mesmo de que se possa pensar em novos investimentos públicos na área da educação, saúde, assistência social, dentre tantas outras questões estruturais, afigura-se como fundamental o estabelecimento de um orçamento específico, participativo, permanente e prioritariamente destinado ao atendimento dos interesses, direitos e garantias individuais de cunho fundamental da criança e do adolescente, construindo, por assim dizer, “uma decidida política dos gastos públicos”, segundo Luigi Ferrajoli (2001), em prol da infância e da juventude.

O desenvolvimento teórico e civilizatório (ideológico), alinhado às práticas propositivas (ações e experiências humanitárias), proporcionaram o rompimento legislativo (político) e social com o regime legal anterior então fundado na perspectiva da “situação irregular” – “Código de Menores”, Lei Federal n. 6.697, de 10 de outubro de 1979, expressamente revogada pelo art. 267, do Estatuto da Criança e do Adolescente – através mesmo da assunção do marco teórico-pragmático denominado de “doutrina da proteção integral”. Este assegura,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008110

com absoluta prioridade, os direitos fundamentais (valores humanos) afetos à criança e ao adolescente.

A denominada doutrina da proteção integral estrategicamente consagra institutos, categorias, sistemas e metodologias assecuratórias destinadas ao integral cumprimento e efetivação dos direitos fundamentais constitucional e estatutariamente garantidos, mediante a destinação privilegiada de recursos públicos – dotações orçamentárias priorizadas para a infância e a juventude – que, na verdade, determinam “mudança comportamental orçamentária assim como um severo fiscalizar do destino das dotações orçamentárias”, segundo Liborni Siqueira (1991).

Eis, pois, a revolução jurídico-legal (RAMIDOFF, 2005), ideológica, política e social que se implementa diuturnamente não só em prol da criança e do adolescente, mas, principalmente, para a concreção e reconhecimento dessas novas cidadanias que exigem uma ampla e irrestrita (re)democratização das relações sociais, senão das próprias instâncias públicas de poder, preservando-se, assim, a identidade infanto-juvenil como a matéria prima das presentes e futuras sociedades brasileiras. O Estatuto da Criança e do Adolescente se constitui, nesses dezoito (18) anos de vigência, por muito mais do que uma simples legislação formal, haja vista que se consagrou verdadeiramente num projeto jurídico para a construção da democracia, pois cuidou não só da regulação das relações sociais em que se inseriam os interesses, direitos e garantias da criança e do adolescente, mas projetou, também, importantes transformações na realidade do mundo da vida vivida.

Enfim, o Estatuto da Criança e do Adolescente constitui-se, por assim dizer, em um projeto de democracia – “uma construção ao mesmo tempo racional e social”, segundo Luigi Ferrajoli (2001) – destacadamente para a consolidação da cidadania infanto-juvenil realizável, pois, através do respeito e da responsabilidade familiar, comunitária e estatal (poder público) para com a dignidade daquelas pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento, quais sejam: crianças e adolescentes. Assim como a Constituição da República de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente também não se substitui à política, mutatis mutandis como bem observa Eros Roberto Grau

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7(apud COUTINHO, 2003) , para quem aquelas “Leis de Regência” devem sujeitar, na área jurídico-legal destinada à infância e à juventude, a política à fundamentação constitucional e estatutária, pois, certamente, nisso residiria a força vinculativa da “doutrina da proteção integral” ideológica, constitucional e estatutariamente adotada, “com vinculação das políticas públicas a ela”.

O desafio, hoje, da legislação estatutária, é se converter em um sentido comum politicamente compartilhado pelos diversos segmentos sociais, parafraseando, assim, Luigi Ferrajoli (2001), para quem as condições de efetividade do Estatuto da Criança e do Adolescente

dependem da medida na qual o direito e os direitos se convertem – através do diálogo, do confronto racional e da firmeza em sua defesa – em sentido comum socialmente compartilhado, fincado na cultura popular e nas práticas sociais e políticas.

As resoluções jurídicas (judicial) ou políticas (legislativa) acerca de questões relativas aos direitos fundamentais afetos à criança e ao adolescente, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, passaram a exigir procedimentos especiais para discussão, elaboração e implementação das medidas legais a serem adotadas jurídica e politicamente através de esforços teóricos e pragmáticos que estabeleçam uma nova racionalidade baseadas em argumentos dedutíveis dos primados constitucionais sistematizados estatutariamente.

Com isso, procura-se interromper deduções lógico-formais que se afastem da sistematização constitucional-estatutária, evitando-se, assim, a utilização indevida de institutos, categorias e

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008112

7 Adverte Eros Roberto Grau (apud COUTINHO, 2003) que “uma das pautas que pronunciadamente concorre para limitar o elenco das soluções corretas a que pode chegar o intérprete da Constituição é a da ideologia constitucional. O direito – e, muito especialmente, a Constituição – é não apenas ideologia, mas também nível no qual se opera a cristalização de mensagens ideológicas. Por isso que as soluções de que cogitamos somente poderão ser tidas como corretas quando e se adequadas e coerentes com a ideologia constitucionalmente adotada”.

elementos alógicos (MOURULLO, 1988) àquela sistemática jurídico-protetiva de caráter insofismavelmente humanitário. O desafio hermenêutico que se propõe agora é a de lealdade estatutária, isto é, de uma interpretação das novas regras, institutos e categorias estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente que se coadune com a orientação humanitária consignada na doutrina da proteção integral, reforçando, assim, a proposição teórico-pragmática constitucional com as normas concretas inseridas nessa nova legislação estatutária, através da articulação com a realidade

8social concreta (FALBO, 2002) .Conquanto não se pode olvidar que o mundo vivido pelas

crianças e adolescentes, no Brasil, como bem ressalta Ricardo Nery Falbo (2007), lamentavelmente ainda é muito diferenciado daquele concebido nas “Leis de Regência” e na decorrente construção jurisprudencial.

Que, em breve, o Estatuto da Criança e do Adolescente se encaminhe não só para a maturidade legislativa (vigência), mas, também, para a maturidade cultural, ideológica, política e social, transformando-se assim num direito maior na constelação legislativa do ordenamento jurídico brasileiro. Certamente o Estatuto da Criança e do Adolescente possui a capacidade e a

9potência de realizar “uma verdadeira educação na legalidade” , isto é, através de regras humanitárias que se orientem pelo respeito e responsabilidade para com a matéria-prima da presente e futura sociedade brasileira: a infância e a juventude.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 113

8 Eis, pois, a advertência de Falbo (2007), “o Estatuto da Criança e do Adolescente, de promulgação recente à época da realização deste trabalho [...] não apresenta articulação com aspectos relevantes dessa realidade social, embora parecesse oferecer condições bastante favoráveis de aproximação com a sociedade”.9 De acordo com Luigi Ferrajoli (2001), “uma verdadeira educação na legalidade, ou seja, com respeito às regras, se obtém sobretudo respeitando o adolescente”.

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7(apud COUTINHO, 2003) , para quem aquelas “Leis de Regência” devem sujeitar, na área jurídico-legal destinada à infância e à juventude, a política à fundamentação constitucional e estatutária, pois, certamente, nisso residiria a força vinculativa da “doutrina da proteção integral” ideológica, constitucional e estatutariamente adotada, “com vinculação das políticas públicas a ela”.

O desafio, hoje, da legislação estatutária, é se converter em um sentido comum politicamente compartilhado pelos diversos segmentos sociais, parafraseando, assim, Luigi Ferrajoli (2001), para quem as condições de efetividade do Estatuto da Criança e do Adolescente

dependem da medida na qual o direito e os direitos se convertem – através do diálogo, do confronto racional e da firmeza em sua defesa – em sentido comum socialmente compartilhado, fincado na cultura popular e nas práticas sociais e políticas.

As resoluções jurídicas (judicial) ou políticas (legislativa) acerca de questões relativas aos direitos fundamentais afetos à criança e ao adolescente, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, passaram a exigir procedimentos especiais para discussão, elaboração e implementação das medidas legais a serem adotadas jurídica e politicamente através de esforços teóricos e pragmáticos que estabeleçam uma nova racionalidade baseadas em argumentos dedutíveis dos primados constitucionais sistematizados estatutariamente.

Com isso, procura-se interromper deduções lógico-formais que se afastem da sistematização constitucional-estatutária, evitando-se, assim, a utilização indevida de institutos, categorias e

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7 Adverte Eros Roberto Grau (apud COUTINHO, 2003) que “uma das pautas que pronunciadamente concorre para limitar o elenco das soluções corretas a que pode chegar o intérprete da Constituição é a da ideologia constitucional. O direito – e, muito especialmente, a Constituição – é não apenas ideologia, mas também nível no qual se opera a cristalização de mensagens ideológicas. Por isso que as soluções de que cogitamos somente poderão ser tidas como corretas quando e se adequadas e coerentes com a ideologia constitucionalmente adotada”.

elementos alógicos (MOURULLO, 1988) àquela sistemática jurídico-protetiva de caráter insofismavelmente humanitário. O desafio hermenêutico que se propõe agora é a de lealdade estatutária, isto é, de uma interpretação das novas regras, institutos e categorias estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente que se coadune com a orientação humanitária consignada na doutrina da proteção integral, reforçando, assim, a proposição teórico-pragmática constitucional com as normas concretas inseridas nessa nova legislação estatutária, através da articulação com a realidade

8social concreta (FALBO, 2002) .Conquanto não se pode olvidar que o mundo vivido pelas

crianças e adolescentes, no Brasil, como bem ressalta Ricardo Nery Falbo (2007), lamentavelmente ainda é muito diferenciado daquele concebido nas “Leis de Regência” e na decorrente construção jurisprudencial.

Que, em breve, o Estatuto da Criança e do Adolescente se encaminhe não só para a maturidade legislativa (vigência), mas, também, para a maturidade cultural, ideológica, política e social, transformando-se assim num direito maior na constelação legislativa do ordenamento jurídico brasileiro. Certamente o Estatuto da Criança e do Adolescente possui a capacidade e a

9potência de realizar “uma verdadeira educação na legalidade” , isto é, através de regras humanitárias que se orientem pelo respeito e responsabilidade para com a matéria-prima da presente e futura sociedade brasileira: a infância e a juventude.

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8 Eis, pois, a advertência de Falbo (2007), “o Estatuto da Criança e do Adolescente, de promulgação recente à época da realização deste trabalho [...] não apresenta articulação com aspectos relevantes dessa realidade social, embora parecesse oferecer condições bastante favoráveis de aproximação com a sociedade”.9 De acordo com Luigi Ferrajoli (2001), “uma verdadeira educação na legalidade, ou seja, com respeito às regras, se obtém sobretudo respeitando o adolescente”.

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Referências

ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

BARACHO, J. A. de O. Teoria geral da cidadania: a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais. São Paulo: Saraiva, 1995.

BRASIL, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resoluções n. 105, 106 e 116.

CADEMARTORI, S. U. de. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

COUTINHO, J. N. de M. (Org.). Canotilho e a constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

FALBO, R. N. Natureza do conhecimento jurídico: generalidade e especificidade no direito da criança e do adolescente. Porto Alegre: Safe, 2002.

FERRAJOLI, L. Prefácio. In: MÉNDEZ, E. G.; BELOFF, M. (Orgs.). Infância, lei e democracia na América Latina: análise crítica do panorama legislativo no marco da convenção internacional sobre os direitos da criança 1990-1998. v. 1. Blumenau: Edifurb, 2001.

FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. 6. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.

MÉNDEZ, E. G.; BELOFF, M. (Orgs.). Infância, lei e democracia na América Latina: análise crítica do panorama legislativo no marco da convenção internacional sobre os direitos da criança 1990-1998. v. 1. Blumenau: Edifurb, 2001.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008114

MOURULLO, G. R. Aplicación judicial del derecho y lógica de la argumentación jurídica. Madrid: Cívitas, 1988. (Cuadernos Cívitas)

RAMIDOFF, M. L. Lições de direito da criança e do adolescente: ato infracional e medidas socioeducativas. Curitiba: Juruá, 2005.

SIQUEIRA, L. (Coord.). Comentários ao estatuto da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

VIANNA, T. Transparência pública, opacidade privada: o direito como instrumento de limitação do poder na sociedade de controle. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 115

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Referências

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BARACHO, J. A. de O. Teoria geral da cidadania: a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais. São Paulo: Saraiva, 1995.

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CADEMARTORI, S. U. de. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

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FERRAJOLI, L. Prefácio. In: MÉNDEZ, E. G.; BELOFF, M. (Orgs.). Infância, lei e democracia na América Latina: análise crítica do panorama legislativo no marco da convenção internacional sobre os direitos da criança 1990-1998. v. 1. Blumenau: Edifurb, 2001.

FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. 6. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.

MÉNDEZ, E. G.; BELOFF, M. (Orgs.). Infância, lei e democracia na América Latina: análise crítica do panorama legislativo no marco da convenção internacional sobre os direitos da criança 1990-1998. v. 1. Blumenau: Edifurb, 2001.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008114

MOURULLO, G. R. Aplicación judicial del derecho y lógica de la argumentación jurídica. Madrid: Cívitas, 1988. (Cuadernos Cívitas)

RAMIDOFF, M. L. Lições de direito da criança e do adolescente: ato infracional e medidas socioeducativas. Curitiba: Juruá, 2005.

SIQUEIRA, L. (Coord.). Comentários ao estatuto da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

VIANNA, T. Transparência pública, opacidade privada: o direito como instrumento de limitação do poder na sociedade de controle. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 115

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008116

Resumo:Este trabalho apresenta uma abordagem sobre a Lei n. 11.382, de 06 de dezembro de 2006, em especial às inovações trazidas à execução em geral e à execução de obrigação por quantia certa. Através do método dedutivo chegou-se à conclusão de que a referida lei trouxe benefícios para o credor, facilitando a expropriação dos bens do devedor e restringindo os meios de defesa deste, o que resulta em uma satisfação jurisdicional mais célere.

Palavras-chave: execução extrajudicial, Lei n. 11.382/06

Introdução

As inovações trazidas ao Código de Processo Civil pela Lei n. 11.382/2006 alteraram profundamente o instituto da execução extrajudicial. O legislador buscou afunilar os meios protelatórios de defesa do executado visando uma célere prestação jurisdicional satisfatória ao exeqüente, visto que, a princípio, este possui um título executivo constituído por uma obrigação certa, líquida e exigível que não foi não adimplida em seu vencimento.

Alterações substanciais foram introduzidas no que tange à citação, penhora e aos prazos de defesa, bem como relativamente aos efeitos em que os embargos são recebidos, tudo isso visando a celeridade processual.

Outra alteração importante está relacionada com as maneiras que os bens penhorados podem ser expropriados e a

A NOVA EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL

*Viviane de Araújo Porto

* Advogada, especializanda em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Goiás.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 117

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Resumo:Este trabalho apresenta uma abordagem sobre a Lei n. 11.382, de 06 de dezembro de 2006, em especial às inovações trazidas à execução em geral e à execução de obrigação por quantia certa. Através do método dedutivo chegou-se à conclusão de que a referida lei trouxe benefícios para o credor, facilitando a expropriação dos bens do devedor e restringindo os meios de defesa deste, o que resulta em uma satisfação jurisdicional mais célere.

Palavras-chave: execução extrajudicial, Lei n. 11.382/06

Introdução

As inovações trazidas ao Código de Processo Civil pela Lei n. 11.382/2006 alteraram profundamente o instituto da execução extrajudicial. O legislador buscou afunilar os meios protelatórios de defesa do executado visando uma célere prestação jurisdicional satisfatória ao exeqüente, visto que, a princípio, este possui um título executivo constituído por uma obrigação certa, líquida e exigível que não foi não adimplida em seu vencimento.

Alterações substanciais foram introduzidas no que tange à citação, penhora e aos prazos de defesa, bem como relativamente aos efeitos em que os embargos são recebidos, tudo isso visando a celeridade processual.

Outra alteração importante está relacionada com as maneiras que os bens penhorados podem ser expropriados e a

A NOVA EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL

*Viviane de Araújo Porto

* Advogada, especializanda em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Goiás.

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sanção passível de aplicação caso o devedor, intimado para indicar onde estão e quais são seus bens penhoráveis, deixe de cumprir a determinação judicial.

Merece destaque, ainda, a inovação que permite que o exeqüente, no ato da distribuição da ação de execução, obtenha certidão do ajuizamento da ação para ser averbada à margem da matrícula de imóveis do executado, no órgão responsável pelo registro de veículos ou qualquer outro órgão de registro de bens passíveis de penhora.

Nesse diapasão, passemos a analisar cada uma dessas alterações.

Alterações na execução extrajudicial

Diante das novidades trazidas pela Lei n. 11.382/2006, os operadores do Direito insurgem-se para aplicar as novas normas processuais buscando uma melhor prestação jurisdicional, tendo em vista ser patente os benefícios trazidos pela referida lei aos exeqüentes.

Da citação, penhora e do prazo para defesa

Proposta a ação de execução, o devedor será citado para pagar sua dívida no prazo de três dias (art. 652, CPC). Apesar do prazo para pagamento ter sido ampliado de 24 horas para três dias, o mandado que é entregue ao oficial de justiça lhe dá poderes não só para citar, como também para penhorar e avaliar os bens que podem ser indicados pelo exeqüente desde a petição inicial da execução.

A primeira via do mandado que está em poder do oficial de justiça é devolvida ao cartório logo após a citação. Transcorrido o prazo para pagamento voluntário da obrigação o oficial, de posse da segunda via do mandado, promove a penhora e avaliação dos bens.

A partir da juntada nos autos do mandado de citação do executado começa a fluir o prazo de 15 dias para oferecimento de embargos do devedor, conforme preceituam o artigo 736 e 738 do

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008118

Código de Processo Civil. A inovação quanto aos embargos está na desnecessidade de garantia do juízo para a propositura da defesa. Vejamos a lição do prof. Humberto Theodoro Júnior (2007):

A segurança do juízo não é mais requisito para o exercício da ação incidental de embargos do executado. Por isso, perdeu relevância, in casu, a data da intimação da penhora ou do depósito da coisa sub executione. A contagem do prazo para embargos, em qualquer modalidade de execução de título extrajudicial, terá como ponto de partida a citação do executado.

Os embargos, que correm como ação autônoma em apenso à execução, em regra, não terão efeitos suspensivos, razão pela qual a ação de execução continua seu trâmite normal, passando da fase de citação, penhora e avaliação para a fase de expropriação, que será objeto de análise em outro tópico deste trabalho.

Todavia, o executado pode requerer ao juiz que seja conferido aos embargos efeito suspensivo, comprovando sua alegação com relevantes argumentos de que o prosseguimento da execução causará danos de difícil ou incerta reparação. Tal alegação pode ser acatada ou não pelo magistrado conforme seu julgamento íntimo, contudo, este só poderá conferir o efeito suspensivo se a execução estiver garantida por penhora, depósito ou caução suficiente.

Da expropriação dos bens penhorados

Passado o prazo de pagamento voluntário do executado o oficial de justiça, após certificado o não-pagamento e munido da 2ª via do mandado, penhorará o bem/bens porventura indicados pelo credor na inicial.

Após a avaliação dos mesmos, inicia-se a fase de expropriação dos bens. Nesse ponto houve uma profunda alteração do código. Antes da Lei n. 11.382/2006 a adjudicação pelo credor só era permitida na segunda praça, assim era notório que a praça ou leilão eram as metas da execução por quantia certa.

Com o advento da lei, a primeira forma de expropriação

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 119

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sanção passível de aplicação caso o devedor, intimado para indicar onde estão e quais são seus bens penhoráveis, deixe de cumprir a determinação judicial.

Merece destaque, ainda, a inovação que permite que o exeqüente, no ato da distribuição da ação de execução, obtenha certidão do ajuizamento da ação para ser averbada à margem da matrícula de imóveis do executado, no órgão responsável pelo registro de veículos ou qualquer outro órgão de registro de bens passíveis de penhora.

Nesse diapasão, passemos a analisar cada uma dessas alterações.

Alterações na execução extrajudicial

Diante das novidades trazidas pela Lei n. 11.382/2006, os operadores do Direito insurgem-se para aplicar as novas normas processuais buscando uma melhor prestação jurisdicional, tendo em vista ser patente os benefícios trazidos pela referida lei aos exeqüentes.

Da citação, penhora e do prazo para defesa

Proposta a ação de execução, o devedor será citado para pagar sua dívida no prazo de três dias (art. 652, CPC). Apesar do prazo para pagamento ter sido ampliado de 24 horas para três dias, o mandado que é entregue ao oficial de justiça lhe dá poderes não só para citar, como também para penhorar e avaliar os bens que podem ser indicados pelo exeqüente desde a petição inicial da execução.

A primeira via do mandado que está em poder do oficial de justiça é devolvida ao cartório logo após a citação. Transcorrido o prazo para pagamento voluntário da obrigação o oficial, de posse da segunda via do mandado, promove a penhora e avaliação dos bens.

A partir da juntada nos autos do mandado de citação do executado começa a fluir o prazo de 15 dias para oferecimento de embargos do devedor, conforme preceituam o artigo 736 e 738 do

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Código de Processo Civil. A inovação quanto aos embargos está na desnecessidade de garantia do juízo para a propositura da defesa. Vejamos a lição do prof. Humberto Theodoro Júnior (2007):

A segurança do juízo não é mais requisito para o exercício da ação incidental de embargos do executado. Por isso, perdeu relevância, in casu, a data da intimação da penhora ou do depósito da coisa sub executione. A contagem do prazo para embargos, em qualquer modalidade de execução de título extrajudicial, terá como ponto de partida a citação do executado.

Os embargos, que correm como ação autônoma em apenso à execução, em regra, não terão efeitos suspensivos, razão pela qual a ação de execução continua seu trâmite normal, passando da fase de citação, penhora e avaliação para a fase de expropriação, que será objeto de análise em outro tópico deste trabalho.

Todavia, o executado pode requerer ao juiz que seja conferido aos embargos efeito suspensivo, comprovando sua alegação com relevantes argumentos de que o prosseguimento da execução causará danos de difícil ou incerta reparação. Tal alegação pode ser acatada ou não pelo magistrado conforme seu julgamento íntimo, contudo, este só poderá conferir o efeito suspensivo se a execução estiver garantida por penhora, depósito ou caução suficiente.

Da expropriação dos bens penhorados

Passado o prazo de pagamento voluntário do executado o oficial de justiça, após certificado o não-pagamento e munido da 2ª via do mandado, penhorará o bem/bens porventura indicados pelo credor na inicial.

Após a avaliação dos mesmos, inicia-se a fase de expropriação dos bens. Nesse ponto houve uma profunda alteração do código. Antes da Lei n. 11.382/2006 a adjudicação pelo credor só era permitida na segunda praça, assim era notório que a praça ou leilão eram as metas da execução por quantia certa.

Com o advento da lei, a primeira forma de expropriação

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dos bens do devedor passou a ser a adjudicação, introduzida pelo artigo 685-A, na qual o credor poderá adjudicar o bem por preço não inferior ao da avaliação. Essa alternativa é benéfica ao credor porque garante a ele acesso rápido a um bem, mesmo que esse bem não seja aproveitado por ele, poderá, em um segundo momento, realizar sua venda longe dos olhos da justiça, o que se torna uma alternativa mais célere para o exeqüente. É nesse sentido a lição do afamado Humberto Theodoro Junior (2007). Vejamos:

As tradicionais modalidades de apuração de numerário por meio de alienação judicial tornaram-se secundárias. A execução tende, em primeiro lugar, a propiciar ao exeqüente a apropriação direta dos bens constritos em pagamento ao seu crédito.

Não tendo o exeqüente interesse em adjudicar o bem poderá, nos termos do artigo 685-C do Código de Processo Civil, alienar o bem por sua própria iniciativa ou por intermédio de corretor credenciado, sendo esta a segunda forma de expropriação de bens do devedor.

A expropriação fora do processo judicial não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que vem sendo promovida nos contratos do sistema financeiro de habitação, nos contratos de alienação fiduciária em garantia, entre outros.

A terceira e última forma de expropriação dos bens do devedor é a hasta pública. O artigo 686 do Código de Processo Civil deixa claro que a intenção do legislador era de que a expropriação ocorresse, preferencialmente, pela via da adjudicação, razão pela qual dispõe no referido artigo: “não requerida a adjudicação e não realizada a alienação particular do bem penhorado, será expedido o edital de hasta pública”.

Uma alteração benéfica para o credor nessa forma de expropriação foi a alteração do § 3 do artigo acima citado para dispensar a publicação de editais quando o valor do bem for inferior a 60 vezes o salário mínimo. A publicação de um edital é um ato oneroso que causava ainda mais prejuízos ao credor, uma vez que quem antecipa todas as despesas do processo é ele.

Outro ponto de mudança significativa recaiu sobre o

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008120

instituto do atentado à dignidade da justiça (art. 600, IV, CPC) que, com o advento da lei em estudo, passou a ter delimitado o prazo para indicação de bens a serem penhorados por parte do executado. A lei original dizia que o ato atentatório ocorreria se o executado não indicasse bens passíveis de penhora. Contudo, ante a não-delimitação de um prazo, entende-se que essa indicação poderia ocorrer a qualquer momento.

Fixado o prazo de 5 dias para o executado indicar os bens penhoráveis e seus respectivos valores e este transcorrer in albis estará configurado o atentado à dignidade da justiça, razão pela qual o juiz deverá aplicar a multa do artigo 601 do Código de Processo Civil em benefício do credor.

Segundo lição do prof. Humberto Theodoro Junior (2007) “as partes têm o dever de cooperar na prestação jurisdicional, inclusive na execução forçada”. Razão lógica para a aplicação de sanção ao executado, vez que em uma ação de execução ele é o menos interessado na prestação jurisdicional.

Da certidão de ajuizamento da ação de execução

A inovação trazida no artigo 615-A do Código de Processo Civil é, sem dúvida, uma grande aliada na prevenção contra a fraude de execução. A possibilidade de se obter uma certidão de ajuizamento de ação de execução logo no ato da distribuição antecipa ao credor a possível dilapidação ou ocultação de bens por parte do devedor.

Todavia, há limites para a utilização da referida certidão vez que os efeitos gerados pela averbação dela podem causar muitos prejuízos ao devedor, razão pela qual o Código de Processo Civil, em seu artigo 620, preconiza que havendo vários meios para promover a execução o juiz mandará que a faça pelo modo menos gravoso ao devedor.

Obtida a certidão, ela poderá ser averbada em cartórios de registro de imóveis, de veículos ou qualquer outro em que o devedor possua bens. A averbação não impede a venda do bem, vez que não é uma penhora, mas restringe a sua possibilidade de venda, tendo em vista que dificilmente uma pessoa comprará um bem com uma averbação de execução, uma vez que, conforme preceitua o §3º do artigo em estudo, será presumida a fraude à

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 121

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dos bens do devedor passou a ser a adjudicação, introduzida pelo artigo 685-A, na qual o credor poderá adjudicar o bem por preço não inferior ao da avaliação. Essa alternativa é benéfica ao credor porque garante a ele acesso rápido a um bem, mesmo que esse bem não seja aproveitado por ele, poderá, em um segundo momento, realizar sua venda longe dos olhos da justiça, o que se torna uma alternativa mais célere para o exeqüente. É nesse sentido a lição do afamado Humberto Theodoro Junior (2007). Vejamos:

As tradicionais modalidades de apuração de numerário por meio de alienação judicial tornaram-se secundárias. A execução tende, em primeiro lugar, a propiciar ao exeqüente a apropriação direta dos bens constritos em pagamento ao seu crédito.

Não tendo o exeqüente interesse em adjudicar o bem poderá, nos termos do artigo 685-C do Código de Processo Civil, alienar o bem por sua própria iniciativa ou por intermédio de corretor credenciado, sendo esta a segunda forma de expropriação de bens do devedor.

A expropriação fora do processo judicial não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que vem sendo promovida nos contratos do sistema financeiro de habitação, nos contratos de alienação fiduciária em garantia, entre outros.

A terceira e última forma de expropriação dos bens do devedor é a hasta pública. O artigo 686 do Código de Processo Civil deixa claro que a intenção do legislador era de que a expropriação ocorresse, preferencialmente, pela via da adjudicação, razão pela qual dispõe no referido artigo: “não requerida a adjudicação e não realizada a alienação particular do bem penhorado, será expedido o edital de hasta pública”.

Uma alteração benéfica para o credor nessa forma de expropriação foi a alteração do § 3 do artigo acima citado para dispensar a publicação de editais quando o valor do bem for inferior a 60 vezes o salário mínimo. A publicação de um edital é um ato oneroso que causava ainda mais prejuízos ao credor, uma vez que quem antecipa todas as despesas do processo é ele.

Outro ponto de mudança significativa recaiu sobre o

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instituto do atentado à dignidade da justiça (art. 600, IV, CPC) que, com o advento da lei em estudo, passou a ter delimitado o prazo para indicação de bens a serem penhorados por parte do executado. A lei original dizia que o ato atentatório ocorreria se o executado não indicasse bens passíveis de penhora. Contudo, ante a não-delimitação de um prazo, entende-se que essa indicação poderia ocorrer a qualquer momento.

Fixado o prazo de 5 dias para o executado indicar os bens penhoráveis e seus respectivos valores e este transcorrer in albis estará configurado o atentado à dignidade da justiça, razão pela qual o juiz deverá aplicar a multa do artigo 601 do Código de Processo Civil em benefício do credor.

Segundo lição do prof. Humberto Theodoro Junior (2007) “as partes têm o dever de cooperar na prestação jurisdicional, inclusive na execução forçada”. Razão lógica para a aplicação de sanção ao executado, vez que em uma ação de execução ele é o menos interessado na prestação jurisdicional.

Da certidão de ajuizamento da ação de execução

A inovação trazida no artigo 615-A do Código de Processo Civil é, sem dúvida, uma grande aliada na prevenção contra a fraude de execução. A possibilidade de se obter uma certidão de ajuizamento de ação de execução logo no ato da distribuição antecipa ao credor a possível dilapidação ou ocultação de bens por parte do devedor.

Todavia, há limites para a utilização da referida certidão vez que os efeitos gerados pela averbação dela podem causar muitos prejuízos ao devedor, razão pela qual o Código de Processo Civil, em seu artigo 620, preconiza que havendo vários meios para promover a execução o juiz mandará que a faça pelo modo menos gravoso ao devedor.

Obtida a certidão, ela poderá ser averbada em cartórios de registro de imóveis, de veículos ou qualquer outro em que o devedor possua bens. A averbação não impede a venda do bem, vez que não é uma penhora, mas restringe a sua possibilidade de venda, tendo em vista que dificilmente uma pessoa comprará um bem com uma averbação de execução, uma vez que, conforme preceitua o §3º do artigo em estudo, será presumida a fraude à

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execução se a alienação ocorrer após a averbação da certidão. Nesse sentido é a lição do afamado Humberto Theodoro Junior (2007): “a averbação torna a força da execução ajuizada oponível erga omnes, no tocante aos bens objetos da medida registral”.

No tocante à averbação da certidão, o credor deve agir de maneira sensata, buscando averbar a certidão em registros de bens suficientes para garantir a satisfação integral da execução, visto que a averbação indiscriminada e indevida é causa de indenização em favor do devedor, nos moldes do §2º do artigo 18 do Código de Processo Civil (litigância de má-fé). É necessário frisar que o que a lei visa punir é a “averbação manifestamente abusiva”, não sendo punível o credor que averba um bem de valor superior ao valor executado.

Conclusão

A análise feita nas linhas anteriores aborda apenas algumas das significativas mudanças trazidas pela Lei 11.382/206. No estudo em questão ficou patente que a execução, ao menos no campo de vista técnico e formal, ganhou um grande impulso, o que contribui substancialmente para a celeridade processual. Contudo, a aplicação da lei em comento pode encontrar como obstáculo a falta de estrutura do judiciário, tendo em vista que não é raro encontrar “recados” em cartórios pedindo a compreensão dos advogados no atraso dos processos em razão da falta de funcionários. Ademais, muitas dessas inovações aguardam instruções a serem expedidas pelos Tribunais, o que, por sua vez, pode descaracterizar a auto-aplicabilidade da lei processual.

Todavia, focando apenas na questão trazida ao bojo desse estudo, as inovações aprimoraram a execução dos títulos extrajudiciais, contribuindo eficazmente para a satisfação do crédito do exeqüente e para a prestação jurisdicional efetiva, não deixando de lado a proteção à pessoa do devedor, que continua, apesar de restrita sua defesa, amparado pelo dever de ver que a execução lhe é movida da maneira menos gravosa.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008122

Referências

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ASSIM, A. Manual da execução. 11. ed. São Paulo: RT, 2007.

JUNIOR, H. T. A reforma da execução do título extrajudicial. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 123

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execução se a alienação ocorrer após a averbação da certidão. Nesse sentido é a lição do afamado Humberto Theodoro Junior (2007): “a averbação torna a força da execução ajuizada oponível erga omnes, no tocante aos bens objetos da medida registral”.

No tocante à averbação da certidão, o credor deve agir de maneira sensata, buscando averbar a certidão em registros de bens suficientes para garantir a satisfação integral da execução, visto que a averbação indiscriminada e indevida é causa de indenização em favor do devedor, nos moldes do §2º do artigo 18 do Código de Processo Civil (litigância de má-fé). É necessário frisar que o que a lei visa punir é a “averbação manifestamente abusiva”, não sendo punível o credor que averba um bem de valor superior ao valor executado.

Conclusão

A análise feita nas linhas anteriores aborda apenas algumas das significativas mudanças trazidas pela Lei 11.382/206. No estudo em questão ficou patente que a execução, ao menos no campo de vista técnico e formal, ganhou um grande impulso, o que contribui substancialmente para a celeridade processual. Contudo, a aplicação da lei em comento pode encontrar como obstáculo a falta de estrutura do judiciário, tendo em vista que não é raro encontrar “recados” em cartórios pedindo a compreensão dos advogados no atraso dos processos em razão da falta de funcionários. Ademais, muitas dessas inovações aguardam instruções a serem expedidas pelos Tribunais, o que, por sua vez, pode descaracterizar a auto-aplicabilidade da lei processual.

Todavia, focando apenas na questão trazida ao bojo desse estudo, as inovações aprimoraram a execução dos títulos extrajudiciais, contribuindo eficazmente para a satisfação do crédito do exeqüente e para a prestação jurisdicional efetiva, não deixando de lado a proteção à pessoa do devedor, que continua, apesar de restrita sua defesa, amparado pelo dever de ver que a execução lhe é movida da maneira menos gravosa.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008122

Referências

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ASSIM, A. Manual da execução. 11. ed. São Paulo: RT, 2007.

JUNIOR, H. T. A reforma da execução do título extrajudicial. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 123

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008124

Resumo:O presente estudo aborda alguns pontos da Lei Maria da Penha em cotejo com os primados da Justiça Restaurativa, defendendo a tese do retrocesso normativo do novo diploma legal, por contrariar o novo desafio da política criminal, que é o consenso entre as partes envolvidas. A Lei Maria da Penha, ao tornar os crimes de lesão corporal de gênero em ação penal pública incondicionada, além de obstaculizar a renúncia ao direito de representação, retirando a vítima e o autor do fato do centro das discussões, contribui para o fomento do dissenso e da discórdia no seio da entidade familiar, em contradição com a Constituição Federal.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha, Justiça Restaurativa, abandono das práticas restaurativas, fomento da discórdia, inconstitucionalidade.

A lei federal n. 11.340/06, Lei Maria da Penha, promulgada com a finalidade de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, representou um grande retrocesso histórico nas questões de política criminal, por ofender os primados que irradiam da Justiça Restaurativa.

O modelo de justiça criminal convencional ou clássico, orientado pelos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal, tem como finalidade precípua a punição cega do delinqüente, por meio de processo penal que visualiza o injusto penal apenas como um ataque contra a ordem

LEI MARIA DA PENHA: REPÚDIO ÀS PRÁTICAS RESTAURATIVAS

*Augusto Reis Bittencourt Silva

* Promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás; Membro do Núcleo de Apoio Técnico do CAO-MeioAmbiente/MP-GO; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás; Pós-graduado em Direito Penal. Exerceu a Advocacia em Goiás e o cargo de Delegado de Polícia do Distrito Federal.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008124

Resumo:O presente estudo aborda alguns pontos da Lei Maria da Penha em cotejo com os primados da Justiça Restaurativa, defendendo a tese do retrocesso normativo do novo diploma legal, por contrariar o novo desafio da política criminal, que é o consenso entre as partes envolvidas. A Lei Maria da Penha, ao tornar os crimes de lesão corporal de gênero em ação penal pública incondicionada, além de obstaculizar a renúncia ao direito de representação, retirando a vítima e o autor do fato do centro das discussões, contribui para o fomento do dissenso e da discórdia no seio da entidade familiar, em contradição com a Constituição Federal.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha, Justiça Restaurativa, abandono das práticas restaurativas, fomento da discórdia, inconstitucionalidade.

A lei federal n. 11.340/06, Lei Maria da Penha, promulgada com a finalidade de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, representou um grande retrocesso histórico nas questões de política criminal, por ofender os primados que irradiam da Justiça Restaurativa.

O modelo de justiça criminal convencional ou clássico, orientado pelos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal, tem como finalidade precípua a punição cega do delinqüente, por meio de processo penal que visualiza o injusto penal apenas como um ataque contra a ordem

LEI MARIA DA PENHA: REPÚDIO ÀS PRÁTICAS RESTAURATIVAS

*Augusto Reis Bittencourt Silva

* Promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás; Membro do Núcleo de Apoio Técnico do CAO-MeioAmbiente/MP-GO; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás; Pós-graduado em Direito Penal. Exerceu a Advocacia em Goiás e o cargo de Delegado de Polícia do Distrito Federal.

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normativa e o Estado, em que os interesses da vítima são menosprezados.

A Justiça Retributiva (modelo clássico) não dispõe de instrumentos adequados para a composição do conflito travado entre o sujeito ativo do crime, a vítima e a sociedade, pois a idéia deste sistema não é a exasperação da situação de conflito, mas sim a simples imposição de uma sanção penal, sem qualquer preocupação com os fatores de interação social.

Para corrigir essa distorção foi concebida à Justiça Restaurativa, que

baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a restauração dos traumas e perdas causados pelo crime. Trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores, na forma de procedimentos tais como mediação vítima/infrator (mediation), reuniões coletivas abertas à participação de pessoas da família e da comunidade (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles). (PINTO, 2006, p. 32)

De acordo com a Resolução 2002/12 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, a Justiça Restaurativa gravita em torno dos seguintes pilares:

1) Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos;

2) Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e os círculos decisórios (sentencing circles);

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3) Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo. Resultados restaurativos incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes, bem como promover a reintegração da vítima e do ofensor;

4) Partes significa a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime que podem estar envolvidos em um processo restaurativo;

5) Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo restaurativo.

No Brasil, o Juizado Especial Criminal, concebido pela Lei n. 9.099/95, é a expressão suprema da adoção das práticas restaurativas, por alterar o centro de gravidade do processo penal, situando a vítima e o autor do fato no centro da construção da resolução do problema, com a composição civil dos danos no curso do procedimento persecutório, que pode gerar efeitos na órbita penal, com a renúncia ao direito de queixa ou de representação nos crimes de ação pública condicionada.

A composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo são legítimos instrumentos de Justiça Restaurativa, na medida em que se prestigia a solução amigável do caso penal, em detrimento do modelo estanque de curso forçado da ação penal.

Os operadores do direito que militam nos Juizados Criminais sabem que a maioria amplamente esmagadora dos casos é de ação penal privada ou condicionada, tais como injúrias, calúnias, lesões corporais leves, ameaças etc. Com baldrame nessa realidade, a Lei n. 9.099/95, preocupada com o consenso e firme nas recomendações das Nações Unidas, condicionou a ação persecutória do Estado à representação da vítima nos delitos de lesões corporais leves e lesões culposas, porque tais infrações, que deságuam cotidianamente no píer do JECRIM são praticadas geralmente no seio familiar, entre parentes e amigos, o que requer sobremodo a adoção do processo restaurativo, evitando o agravamento do litígio.

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normativa e o Estado, em que os interesses da vítima são menosprezados.

A Justiça Retributiva (modelo clássico) não dispõe de instrumentos adequados para a composição do conflito travado entre o sujeito ativo do crime, a vítima e a sociedade, pois a idéia deste sistema não é a exasperação da situação de conflito, mas sim a simples imposição de uma sanção penal, sem qualquer preocupação com os fatores de interação social.

Para corrigir essa distorção foi concebida à Justiça Restaurativa, que

baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a restauração dos traumas e perdas causados pelo crime. Trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores, na forma de procedimentos tais como mediação vítima/infrator (mediation), reuniões coletivas abertas à participação de pessoas da família e da comunidade (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles). (PINTO, 2006, p. 32)

De acordo com a Resolução 2002/12 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, a Justiça Restaurativa gravita em torno dos seguintes pilares:

1) Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos;

2) Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e os círculos decisórios (sentencing circles);

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3) Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo. Resultados restaurativos incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes, bem como promover a reintegração da vítima e do ofensor;

4) Partes significa a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime que podem estar envolvidos em um processo restaurativo;

5) Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo restaurativo.

No Brasil, o Juizado Especial Criminal, concebido pela Lei n. 9.099/95, é a expressão suprema da adoção das práticas restaurativas, por alterar o centro de gravidade do processo penal, situando a vítima e o autor do fato no centro da construção da resolução do problema, com a composição civil dos danos no curso do procedimento persecutório, que pode gerar efeitos na órbita penal, com a renúncia ao direito de queixa ou de representação nos crimes de ação pública condicionada.

A composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo são legítimos instrumentos de Justiça Restaurativa, na medida em que se prestigia a solução amigável do caso penal, em detrimento do modelo estanque de curso forçado da ação penal.

Os operadores do direito que militam nos Juizados Criminais sabem que a maioria amplamente esmagadora dos casos é de ação penal privada ou condicionada, tais como injúrias, calúnias, lesões corporais leves, ameaças etc. Com baldrame nessa realidade, a Lei n. 9.099/95, preocupada com o consenso e firme nas recomendações das Nações Unidas, condicionou a ação persecutória do Estado à representação da vítima nos delitos de lesões corporais leves e lesões culposas, porque tais infrações, que deságuam cotidianamente no píer do JECRIM são praticadas geralmente no seio familiar, entre parentes e amigos, o que requer sobremodo a adoção do processo restaurativo, evitando o agravamento do litígio.

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Todavia, a festejada Lei Maria da Penha gerou uma grave ruptura na adoção do processo restaurativo, na medida em que afastou a incidência das disposições da Lei n. 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher (crime de gênero), nos moldes do seu artigo 41, vedando, por conseguinte, a composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo.

Diante desse indigitado preceito legal, a primeira conclusão lógica é a de que apenas os crimes de gênero contra a mulher estão fora da alçada do Juizado Criminal, que ainda é competente para processar e julgar as contravenções penais praticadas contra a mulher com violência doméstica e familiar, por força dos princípios do devido processo legal e da legalidade estrita.

Conclui-se, também, que a Lei Maria da Penha, ao arredar a Lei n. 9.099/95, tornou os crimes de lesão corporal leve e culposa em ação penal pública incondicionada.

Essa orientação acabou sufragada no seio do Ministério Público, valendo destacar que o MP-GO, através do Centro de Apoio Operacional Criminal expediu orientação aos Promotores de Justiça no sentido de que “a lesão corporal de gênero é crime de

1ação penal pública incondicionada” .A jurisprudência pioneira do Tribunal de Justiça do

Distrito Federal endossa a tese, vejamos:

HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. CONTEÚDO POLÍTICO E SOCIAL DA LEI 11 .340 /2006 . DELITOS DE LESÕES CORPORAIS LEVES E LESÕES CULPOSAS. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E PROTEÇÃO À FAMILIA. EFETIVIDADE DA LEI. ORDEM DENEGADA.1. O artigo 1º da lei n. 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha enuncia o conteúdo

1 Enunciado n. 01 do Centro de Apoio Operacional do Ministério Público de Goiás, de 27 de agosto de 2007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008128

político social da recém norma editada, em atenção aos reclamos de ontem da sociedade brasileira ante o elevado índice de casos de violência contra a mulher no seio familiar e doméstico, exigindo uma resposta penal eficaz do Estado.2. A sociedade há muito tempo sente-se incomodada com as práticas violentas no seio familiar contra a mulher, cujas medidas despenalizadoras previstas na lei 9.099/95 não foram suficientes para coibir e prevenir a violência contra a mulher.3. A exegese que confere efetividade à repressão aos crimes de violência doméstica contra a mulher nos casos de lesões corporais leves e lesões culposas é o da não vinculação da atuação do Ministério Público ao interesse exclusivo da ofendida tal como previsto no art. 88 da Lei 9.099/95.4. Na busca da concretização dos fins propostos pela lei 11.340/2006 prevalece o interesse público traduzido na coibição de violência doméstica, lastreada na garantia constitucional de ampla proteção à família e no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.5. Essa orientação permite a compreensão do alcance, sentido e significado dos artigos 16 e 41 da lei n. 11.340/2006 para reconhecer que os delitos de lesão corporal simples e lesão culposa cometidos no âmbito doméstico e familiar contra a mulher são de ação pública incondicionada, reservando-se à aplicação do art. 16 àqueles crimes em que a atuação do Ministério Público fica vinculada ao interesse privado da vítima em punir o seu ofensor.6. Ordem denegada. (20070020040022HBC, Relator NILSONI DE FREITAS, 2ª Turma Criminal, julgado em 28/06/2007, DJ 26/09/2007 p. 122).

Por derradeiro, a Lei Maria da Penha criou um empecilho ainda maior para a renúncia à representação, que só é admissível em audiência especialmente designada para este propósito, na presença do juiz e do Ministério Público, antes do recebimento da denúncia (artigo 16). Urge frisar que tal regra estabelece um marco

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 129

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Todavia, a festejada Lei Maria da Penha gerou uma grave ruptura na adoção do processo restaurativo, na medida em que afastou a incidência das disposições da Lei n. 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher (crime de gênero), nos moldes do seu artigo 41, vedando, por conseguinte, a composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo.

Diante desse indigitado preceito legal, a primeira conclusão lógica é a de que apenas os crimes de gênero contra a mulher estão fora da alçada do Juizado Criminal, que ainda é competente para processar e julgar as contravenções penais praticadas contra a mulher com violência doméstica e familiar, por força dos princípios do devido processo legal e da legalidade estrita.

Conclui-se, também, que a Lei Maria da Penha, ao arredar a Lei n. 9.099/95, tornou os crimes de lesão corporal leve e culposa em ação penal pública incondicionada.

Essa orientação acabou sufragada no seio do Ministério Público, valendo destacar que o MP-GO, através do Centro de Apoio Operacional Criminal expediu orientação aos Promotores de Justiça no sentido de que “a lesão corporal de gênero é crime de

1ação penal pública incondicionada” .A jurisprudência pioneira do Tribunal de Justiça do

Distrito Federal endossa a tese, vejamos:

HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. CONTEÚDO POLÍTICO E SOCIAL DA LEI 11 .340 /2006 . DELITOS DE LESÕES CORPORAIS LEVES E LESÕES CULPOSAS. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E PROTEÇÃO À FAMILIA. EFETIVIDADE DA LEI. ORDEM DENEGADA.1. O artigo 1º da lei n. 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha enuncia o conteúdo

1 Enunciado n. 01 do Centro de Apoio Operacional do Ministério Público de Goiás, de 27 de agosto de 2007.

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político social da recém norma editada, em atenção aos reclamos de ontem da sociedade brasileira ante o elevado índice de casos de violência contra a mulher no seio familiar e doméstico, exigindo uma resposta penal eficaz do Estado.2. A sociedade há muito tempo sente-se incomodada com as práticas violentas no seio familiar contra a mulher, cujas medidas despenalizadoras previstas na lei 9.099/95 não foram suficientes para coibir e prevenir a violência contra a mulher.3. A exegese que confere efetividade à repressão aos crimes de violência doméstica contra a mulher nos casos de lesões corporais leves e lesões culposas é o da não vinculação da atuação do Ministério Público ao interesse exclusivo da ofendida tal como previsto no art. 88 da Lei 9.099/95.4. Na busca da concretização dos fins propostos pela lei 11.340/2006 prevalece o interesse público traduzido na coibição de violência doméstica, lastreada na garantia constitucional de ampla proteção à família e no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.5. Essa orientação permite a compreensão do alcance, sentido e significado dos artigos 16 e 41 da lei n. 11.340/2006 para reconhecer que os delitos de lesão corporal simples e lesão culposa cometidos no âmbito doméstico e familiar contra a mulher são de ação pública incondicionada, reservando-se à aplicação do art. 16 àqueles crimes em que a atuação do Ministério Público fica vinculada ao interesse privado da vítima em punir o seu ofensor.6. Ordem denegada. (20070020040022HBC, Relator NILSONI DE FREITAS, 2ª Turma Criminal, julgado em 28/06/2007, DJ 26/09/2007 p. 122).

Por derradeiro, a Lei Maria da Penha criou um empecilho ainda maior para a renúncia à representação, que só é admissível em audiência especialmente designada para este propósito, na presença do juiz e do Ministério Público, antes do recebimento da denúncia (artigo 16). Urge frisar que tal regra estabelece um marco

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temporal distinto daquele albergado no artigo 25 do CPP, segundo o qual a renúncia é admitida até o oferecimento da denúncia, ao passo que no novel diploma o marco é o recebimento da denúncia.

Abro um parêntese para sublinhar que tal audiência não é de designação obrigatória e automática, cabendo à vítima manifestar nos autos expressamente seu desejo de renunciar ao direito de representação, não sendo admissível que o juiz designe tal audiência de ofício, como condição de procedibilidade. Apenas de a vítima requer tempestivamente, antes do recebimento da denúncia, é que deve o juiz designar tal solenidade estéril e vazia. Essa orientação também encontra ressonância no seio do Ministério Público, tanto que o CAO Criminal do MP-GO editou o enunciado n. 01/2007, artículo 5, segundo o qual “a audiência prevista no artigo 16 da Lei Federal 11.340/06 será designada quando houver manifestação da ofendida para renúncia à representação”.

Dessarte, considerando apenas as citadas inovações trazidas pela Lei Maria da Penha, a conclusão inexorável é a de que a pretexto de endurecer o combate à inaceitável violência doméstica, o Estado brasileiro arredou as vantagens de um processo criminal restaurativo.

Ao afastar as disposições da Lei n. 9.099/95, cuja conseqüência é a de impedir a composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo, além de tornar os crimes de lesões corporais de gênero em ação pública incondicionada, dificultando, ainda, a renúncia à representação com um marco temporal mais dilatado, a Lei Maria da Penha obriga que simples questões familiares sejam submetidas ao crivo da ação persecutória do Estado, em detrimento da base do próprio Estado, que é a família, como anuncia a cabeça do artigo 226 da Constituição Federal.

Forçar o prosseguimento de ações penais por crimes de lesões corporais leves e culposas, contra a vontade da própria vítima, implica no agravamento da situação de ruptura familiar. O Estado, ao invés de criar mecanismos mais adequados para a solução destes distúrbios, prefere optar pelo endurecimento da intervenção das agências de criminalização secundária, o que configura autofagia, pois obriga a manutenção de uma ação penal

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008130

que apenas contribui para a desagregação da família. Isso gera, inelutavelmente, o desgaste do Estado, pois a família, repito, é a base do Estado.

A prática forense comprova que a maioria esmagadora das mulheres agredidas se concilia com seus agressores, por motivos diversos e que não devem ser fiscalizados por ninguém por pertencerem à esfera de intimidade exclusiva das vítimas. Exemplifico com um caso cotidiano nos fóruns do Brasil: o companheiro agride a mulher com um tapa, gerando lesões corporais leves. A vítima procura imediatamente a autoridade policial, que deflagra a persecução criminal. Nesse ínterim, a mulher, por diversos fatores, não deseja mais prosseguir com o feito, porque já reatou seu relacionamento, desejando viver em harmonia com seu agressor. Nessa hipótese, a surda Lei Maria da Penha não ouve os anseios da vítima, alijada do processo, e obriga o prosseguimento do feito, fazendo com que os principais atores da entidade familiar fiquem em lados opostos até a sentença final. Imagine o desconforto que a ação penal implicará no seio da família. Imagine a desagregação gerada por uma sentença condenatória, colocando em lados diametralmente opostos os consortes.

Portanto, é patente que nessas situações a Lei Maria da Penha representa um retrocesso na efetiva consagração da Justiça Restaurativa no Brasil, sendo inegável que a obrigatoriedade do curso da ação persecutória, colocando em lados opostos os principais artífices da família, representa um atentado contra a família, que goza de proteção estatal por determinação constitucional. Se a Constituição da República determinou proteção da família, não pode o legislador estabelecer fórmulas legais que obstaculizam o consenso e fomentam a discórdia, sob pena de flagrante inconstitucionalidade nomoestática, que é o caso da Lei Maria da Penha.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 131

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temporal distinto daquele albergado no artigo 25 do CPP, segundo o qual a renúncia é admitida até o oferecimento da denúncia, ao passo que no novel diploma o marco é o recebimento da denúncia.

Abro um parêntese para sublinhar que tal audiência não é de designação obrigatória e automática, cabendo à vítima manifestar nos autos expressamente seu desejo de renunciar ao direito de representação, não sendo admissível que o juiz designe tal audiência de ofício, como condição de procedibilidade. Apenas de a vítima requer tempestivamente, antes do recebimento da denúncia, é que deve o juiz designar tal solenidade estéril e vazia. Essa orientação também encontra ressonância no seio do Ministério Público, tanto que o CAO Criminal do MP-GO editou o enunciado n. 01/2007, artículo 5, segundo o qual “a audiência prevista no artigo 16 da Lei Federal 11.340/06 será designada quando houver manifestação da ofendida para renúncia à representação”.

Dessarte, considerando apenas as citadas inovações trazidas pela Lei Maria da Penha, a conclusão inexorável é a de que a pretexto de endurecer o combate à inaceitável violência doméstica, o Estado brasileiro arredou as vantagens de um processo criminal restaurativo.

Ao afastar as disposições da Lei n. 9.099/95, cuja conseqüência é a de impedir a composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo, além de tornar os crimes de lesões corporais de gênero em ação pública incondicionada, dificultando, ainda, a renúncia à representação com um marco temporal mais dilatado, a Lei Maria da Penha obriga que simples questões familiares sejam submetidas ao crivo da ação persecutória do Estado, em detrimento da base do próprio Estado, que é a família, como anuncia a cabeça do artigo 226 da Constituição Federal.

Forçar o prosseguimento de ações penais por crimes de lesões corporais leves e culposas, contra a vontade da própria vítima, implica no agravamento da situação de ruptura familiar. O Estado, ao invés de criar mecanismos mais adequados para a solução destes distúrbios, prefere optar pelo endurecimento da intervenção das agências de criminalização secundária, o que configura autofagia, pois obriga a manutenção de uma ação penal

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que apenas contribui para a desagregação da família. Isso gera, inelutavelmente, o desgaste do Estado, pois a família, repito, é a base do Estado.

A prática forense comprova que a maioria esmagadora das mulheres agredidas se concilia com seus agressores, por motivos diversos e que não devem ser fiscalizados por ninguém por pertencerem à esfera de intimidade exclusiva das vítimas. Exemplifico com um caso cotidiano nos fóruns do Brasil: o companheiro agride a mulher com um tapa, gerando lesões corporais leves. A vítima procura imediatamente a autoridade policial, que deflagra a persecução criminal. Nesse ínterim, a mulher, por diversos fatores, não deseja mais prosseguir com o feito, porque já reatou seu relacionamento, desejando viver em harmonia com seu agressor. Nessa hipótese, a surda Lei Maria da Penha não ouve os anseios da vítima, alijada do processo, e obriga o prosseguimento do feito, fazendo com que os principais atores da entidade familiar fiquem em lados opostos até a sentença final. Imagine o desconforto que a ação penal implicará no seio da família. Imagine a desagregação gerada por uma sentença condenatória, colocando em lados diametralmente opostos os consortes.

Portanto, é patente que nessas situações a Lei Maria da Penha representa um retrocesso na efetiva consagração da Justiça Restaurativa no Brasil, sendo inegável que a obrigatoriedade do curso da ação persecutória, colocando em lados opostos os principais artífices da família, representa um atentado contra a família, que goza de proteção estatal por determinação constitucional. Se a Constituição da República determinou proteção da família, não pode o legislador estabelecer fórmulas legais que obstaculizam o consenso e fomentam a discórdia, sob pena de flagrante inconstitucionalidade nomoestática, que é o caso da Lei Maria da Penha.

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Referências

MOREIRA, R. de A. A Lei Maria da Penha e suas inconstitucionalidades. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1507, 17 ago. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=10291>. Acesso em: 26 ago. 2008.

PINTO, R. S. G. A Construção da Justiça Restaurativa no Brasil. Goiânia: Revista do MP-GO, 2006.

______; CUNHA, R. S. A Lei Maria da Penha e a não-aplicação dos institutos despenalizadores dos juizados especiais criminais. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1517, 27 ago. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10328>. Acesso em: 26 ago. 2008.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008132

Resumo:O presente artigo aborda a política de combate às drogas e as medidas criadas por intermédio da lei n. 11.343/2006, notadamente em relação ao usuário de drogas e seu tratamento. Não obstante a previsão legal, inexistem instrumentos de aferição acerca da real eficácia do tratamento psicossocial e farmacológico dispensado ao dependente e dos resultados obtidos. Conclui-se, por fim, que a criação de instituições públicas, privadas ou filantrópicas, com o devido controle social, é medida imperiosa.

Palavras-chave: Lei de drogas, política de combate, implementação das medidas, eficácia do tratamento, controle social.

Sempre que se promulga uma nova lei, o discurso daqueles que exercem a atividade legislativa é uníssono em asseverar que daí em diante o País terá condições próprias para erradicar seus males ou corrigir rumos. No entanto, o quadro real demonstra que a produção legislativa em larga escala não tem alcançado o fim desejado, encerrando apenas um simbolismo, já que a edição de normas não é seguida do devido cumprimento destas pelo Poder público.

Na esfera penal, é certo que as leis por si só não são capazes de intimidar as pessoas para que deixem de cometer crimes de homicídio, roubo, tráfico de drogas etc. Aqueles que

A EFETIVIDADE DA LEI N. 11.343/2006: USUÁRIO DE DROGAS E TRATAMENTO

*Fernando Braga Viggiano

* Promotor de Justiça em Goiás, Mestre em Direito (UFG) – Área de concentração em Ciências Penais, Membro da Comissão Nacional de Apoio ao Programa de Penas e Medidas Alternativas/MJ, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária/MJ.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 133

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Referências

MOREIRA, R. de A. A Lei Maria da Penha e suas inconstitucionalidades. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1507, 17 ago. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=10291>. Acesso em: 26 ago. 2008.

PINTO, R. S. G. A Construção da Justiça Restaurativa no Brasil. Goiânia: Revista do MP-GO, 2006.

______; CUNHA, R. S. A Lei Maria da Penha e a não-aplicação dos institutos despenalizadores dos juizados especiais criminais. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1517, 27 ago. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10328>. Acesso em: 26 ago. 2008.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008132

Resumo:O presente artigo aborda a política de combate às drogas e as medidas criadas por intermédio da lei n. 11.343/2006, notadamente em relação ao usuário de drogas e seu tratamento. Não obstante a previsão legal, inexistem instrumentos de aferição acerca da real eficácia do tratamento psicossocial e farmacológico dispensado ao dependente e dos resultados obtidos. Conclui-se, por fim, que a criação de instituições públicas, privadas ou filantrópicas, com o devido controle social, é medida imperiosa.

Palavras-chave: Lei de drogas, política de combate, implementação das medidas, eficácia do tratamento, controle social.

Sempre que se promulga uma nova lei, o discurso daqueles que exercem a atividade legislativa é uníssono em asseverar que daí em diante o País terá condições próprias para erradicar seus males ou corrigir rumos. No entanto, o quadro real demonstra que a produção legislativa em larga escala não tem alcançado o fim desejado, encerrando apenas um simbolismo, já que a edição de normas não é seguida do devido cumprimento destas pelo Poder público.

Na esfera penal, é certo que as leis por si só não são capazes de intimidar as pessoas para que deixem de cometer crimes de homicídio, roubo, tráfico de drogas etc. Aqueles que

A EFETIVIDADE DA LEI N. 11.343/2006: USUÁRIO DE DROGAS E TRATAMENTO

*Fernando Braga Viggiano

* Promotor de Justiça em Goiás, Mestre em Direito (UFG) – Área de concentração em Ciências Penais, Membro da Comissão Nacional de Apoio ao Programa de Penas e Medidas Alternativas/MJ, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária/MJ.

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defendem que a legislação é suficiente para conter as diferentes motivações humanas professam sofismas, utopias. Se fosse diferente, a lei de crimes hediondos teria reduzido sensivelmente os índices de criminalidade e as Ordenações Filipinas a mercancia de substâncias psicotrópicas.

Especialmente em relação às drogas, a política de combate desenvolvida no Brasil é pouco eficaz. Vê-se que após editada a nova lei de drogas (n. 11.343/06) e adotado o modelo norte-americano de repressão ao tráfico (war on drugs) e terapêutico em relação ao usuário e dependente, não foram criadas as estruturas mínimas para a implementação dessas medidas. Exemplo disso é a falta de condições humanas e materiais (armamento sofisticado, serviço de inteligência e contra-inteligência etc.) das Polícias para o enfrentamento do narcotraficante.

Inexistem condições mínimas para a aplicação do disposto na nova lei em relação ao usuário e dependente. Em vigor desde 8 de outubro de 2006, o legislador acertadamente não previu a pena privativa de liberdade para o usuário ou dependente de droga, mas sim a advertência sobre os efeitos nocivos da droga, a prestação de serviços à comunidade e o comparecimento a programa ou curso educativo. De igual maneira, trouxe a possibilidade de o Juiz determinar a submissão a tratamento especializado e gratuito para a desintoxicação do infrator. Finalmente, reconheceu-se que o uso de droga é problema de saúde pública e não uma questão criminal.

Apesar do crescimento do uso de drogas e sua dependência, apenas 23% dos dependentes procuram tratamento (Ministério da Saúde, 2001). No entanto, a falta de comprometimento pessoal (evasões ou recaídas) impede a real adesão ao programa e sugere a seguinte indagação: qual a eficácia do tratamento psicossocial e farmacológico dispensado ao dependente?

Em vigência desde maio de 2002, a Resolução n. 101 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária disciplinou, por meio de regulamento técnico, as exigências mínimas para os serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso e abuso de substâncias psicoativas, notadamente as Comunidades Terapêuticas.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008134

Atuando junto ao Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas do Estado de Goiás (2005/2007), elaboramos um levantamento preliminar sobre as instituições públicas, privadas e filantrópicas que prestavam esse tipo de atendimento e, para surpresa de muitos Conselheiros, algumas sequer responderam aos questionários, alegando receio de que suas atividades fossem extintas, por falta de preenchimento dos requisitos ou outros motivos. Porém, ao contrário do alegado, os questionamentos procuravam levantar e corrigir as deficiências, buscando o apoio das autoridades competentes para o funcionamento adequado dessas entidades.

Como é sabido, essas entidades padecem devido à falta de quadro técnico especializado (em regra, conduzidos por membros de comunidades religiosas ou por dependentes em recuperação), de programas de tratamento e de critérios e processos de avaliação dos processos e resultados obtidos.

As deficiências apontadas obstaculizam qualquer controle social. E, sem gestão estratégica e fiscalização dos investimentos de verbas públicas nessas instituições, o desperdício de dinheiro persistirá, assim como a ineficiência do tratamento dispensado aos pacientes.

Outro problema crucial é a falta de centros especializados no tratamento de crianças e adolescentes drogaditos. A inserção deles no mesmo local e programa terapêutico dos adultos impede a obtenção de qualquer resultado eficaz. A dependência nesses casos torna os adolescentes vulneráveis às ações de cooptação dos traficantes, que acabam fornecendo drogas diversas para eles em troca de serviços prestados.

Acrescente-se a esse quadro a hedionda seletividade do sistema repressivo. Afinal, quando um jovem de classe média consome drogas, aplica-se sempre o estereótipo médico. No entanto, quando se trata de jovem pobre, o sistema deve atuar, em face do “risco” que ele representa ao próprio sistema (estereótipo criminal).

Conclui-se, portanto, que a falta de instituições públicas, privadas ou filantrópicas dificulta a aplicação do disposto na lei de drogas, transferindo para o dependente a responsabilidade de extirpar de sua vida a substância psicoativa.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 135

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defendem que a legislação é suficiente para conter as diferentes motivações humanas professam sofismas, utopias. Se fosse diferente, a lei de crimes hediondos teria reduzido sensivelmente os índices de criminalidade e as Ordenações Filipinas a mercancia de substâncias psicotrópicas.

Especialmente em relação às drogas, a política de combate desenvolvida no Brasil é pouco eficaz. Vê-se que após editada a nova lei de drogas (n. 11.343/06) e adotado o modelo norte-americano de repressão ao tráfico (war on drugs) e terapêutico em relação ao usuário e dependente, não foram criadas as estruturas mínimas para a implementação dessas medidas. Exemplo disso é a falta de condições humanas e materiais (armamento sofisticado, serviço de inteligência e contra-inteligência etc.) das Polícias para o enfrentamento do narcotraficante.

Inexistem condições mínimas para a aplicação do disposto na nova lei em relação ao usuário e dependente. Em vigor desde 8 de outubro de 2006, o legislador acertadamente não previu a pena privativa de liberdade para o usuário ou dependente de droga, mas sim a advertência sobre os efeitos nocivos da droga, a prestação de serviços à comunidade e o comparecimento a programa ou curso educativo. De igual maneira, trouxe a possibilidade de o Juiz determinar a submissão a tratamento especializado e gratuito para a desintoxicação do infrator. Finalmente, reconheceu-se que o uso de droga é problema de saúde pública e não uma questão criminal.

Apesar do crescimento do uso de drogas e sua dependência, apenas 23% dos dependentes procuram tratamento (Ministério da Saúde, 2001). No entanto, a falta de comprometimento pessoal (evasões ou recaídas) impede a real adesão ao programa e sugere a seguinte indagação: qual a eficácia do tratamento psicossocial e farmacológico dispensado ao dependente?

Em vigência desde maio de 2002, a Resolução n. 101 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária disciplinou, por meio de regulamento técnico, as exigências mínimas para os serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso e abuso de substâncias psicoativas, notadamente as Comunidades Terapêuticas.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008134

Atuando junto ao Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas do Estado de Goiás (2005/2007), elaboramos um levantamento preliminar sobre as instituições públicas, privadas e filantrópicas que prestavam esse tipo de atendimento e, para surpresa de muitos Conselheiros, algumas sequer responderam aos questionários, alegando receio de que suas atividades fossem extintas, por falta de preenchimento dos requisitos ou outros motivos. Porém, ao contrário do alegado, os questionamentos procuravam levantar e corrigir as deficiências, buscando o apoio das autoridades competentes para o funcionamento adequado dessas entidades.

Como é sabido, essas entidades padecem devido à falta de quadro técnico especializado (em regra, conduzidos por membros de comunidades religiosas ou por dependentes em recuperação), de programas de tratamento e de critérios e processos de avaliação dos processos e resultados obtidos.

As deficiências apontadas obstaculizam qualquer controle social. E, sem gestão estratégica e fiscalização dos investimentos de verbas públicas nessas instituições, o desperdício de dinheiro persistirá, assim como a ineficiência do tratamento dispensado aos pacientes.

Outro problema crucial é a falta de centros especializados no tratamento de crianças e adolescentes drogaditos. A inserção deles no mesmo local e programa terapêutico dos adultos impede a obtenção de qualquer resultado eficaz. A dependência nesses casos torna os adolescentes vulneráveis às ações de cooptação dos traficantes, que acabam fornecendo drogas diversas para eles em troca de serviços prestados.

Acrescente-se a esse quadro a hedionda seletividade do sistema repressivo. Afinal, quando um jovem de classe média consome drogas, aplica-se sempre o estereótipo médico. No entanto, quando se trata de jovem pobre, o sistema deve atuar, em face do “risco” que ele representa ao próprio sistema (estereótipo criminal).

Conclui-se, portanto, que a falta de instituições públicas, privadas ou filantrópicas dificulta a aplicação do disposto na lei de drogas, transferindo para o dependente a responsabilidade de extirpar de sua vida a substância psicoativa.

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Como o legislador já deu o primeiro passo, compete ao Poder Executivo e a nós – sociedade civil – reverter o quadro delineado, criando os mecanismos de efetivação e controle das medidas proclamadas. Caso contrário, a inércia acarretará, num futuro próximo, prejuízos ainda maiores para as crianças, adolescentes e nossas famílias.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008136

1Resumo :O presente artigo analisa a equação posta visando legitimar a maximização da intervenção penal estabelecendo o conflito entre a Defesa Social e o respeito aos direitos e garantias fundamentais do infrator para repaginá-la, enxergando-a como Direito de punir do Estado versus direitos e garantias do infrator, o que, por óbvio, em um Estado democrático de direito, redefine a opção do corpo social.

Palavras-chave: Defesa Social, direito de punir, garantias fundamentais, infrator, Estado.

Na análise acerca do direito de punir do Estado, bem como das idéias que buscam justificar o exercício desse poder, observam-se as variações conceituais e os distintos enfoques dados conforme se movem as correlações de forças no cenário político-social e que, por sua vez, refletem a conexão entre todas as formas de poder existentes na relação Estado-Sociedade.

No âmbito das ciências criminais, o questionamento quanto à legitimidade do poder de punir do Estado vem sendo discutido largamente, dentro de uma concepção que procura impor o maior limite possível ao seu exercício, buscando preservar direitos e garantias

O CONFLITO ENTRE A DEFESA SOCIAL E O RESPEITO ÀS GARANTIAS FUNDAMENTAIS

*Geder Luiz Rocha Gomes

* Promotor de Justiça – BA, Vice-Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), Presidente da Comissão Nacional de Penas e Medidas Alternativas – MJ (CONAPA), Presidente do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP), Professor de Direito Penal, Mestre e Doutorando em Direito Penal.1 O presente artigo é a reprodução, com poucas adaptações do trecho de um dos capítulos do livro de nossa autoria: A Substituição da Prisão (2008).

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 137

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Como o legislador já deu o primeiro passo, compete ao Poder Executivo e a nós – sociedade civil – reverter o quadro delineado, criando os mecanismos de efetivação e controle das medidas proclamadas. Caso contrário, a inércia acarretará, num futuro próximo, prejuízos ainda maiores para as crianças, adolescentes e nossas famílias.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008136

1Resumo :O presente artigo analisa a equação posta visando legitimar a maximização da intervenção penal estabelecendo o conflito entre a Defesa Social e o respeito aos direitos e garantias fundamentais do infrator para repaginá-la, enxergando-a como Direito de punir do Estado versus direitos e garantias do infrator, o que, por óbvio, em um Estado democrático de direito, redefine a opção do corpo social.

Palavras-chave: Defesa Social, direito de punir, garantias fundamentais, infrator, Estado.

Na análise acerca do direito de punir do Estado, bem como das idéias que buscam justificar o exercício desse poder, observam-se as variações conceituais e os distintos enfoques dados conforme se movem as correlações de forças no cenário político-social e que, por sua vez, refletem a conexão entre todas as formas de poder existentes na relação Estado-Sociedade.

No âmbito das ciências criminais, o questionamento quanto à legitimidade do poder de punir do Estado vem sendo discutido largamente, dentro de uma concepção que procura impor o maior limite possível ao seu exercício, buscando preservar direitos e garantias

O CONFLITO ENTRE A DEFESA SOCIAL E O RESPEITO ÀS GARANTIAS FUNDAMENTAIS

*Geder Luiz Rocha Gomes

* Promotor de Justiça – BA, Vice-Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), Presidente da Comissão Nacional de Penas e Medidas Alternativas – MJ (CONAPA), Presidente do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP), Professor de Direito Penal, Mestre e Doutorando em Direito Penal.1 O presente artigo é a reprodução, com poucas adaptações do trecho de um dos capítulos do livro de nossa autoria: A Substituição da Prisão (2008).

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individuais e, principalmente, o respeito à dignidade da pessoa humana.

Para que essa discussão se efetive em um campo minimamente contaminado com reações emotivas, oportunistas e sensacionalistas quanto ao fenômeno criminológico, intervenções eficazes na reestruturação social devem ser feitas visando novas diretrizes comportamentais tanto do povo em suas relações internas quanto do povo com as instituições envolvidas nesse contexto (Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Sociedade Civil Organizada etc.).

É sabido que, desde a formação mais antiga da idéia de Estado, tem-se como finalidade de sua existência a paz social e a continuidade da vida em sociedade. Para a consecução de tais objetivos se buscou, nos mais variados momentos históricos, “a consolidação do espaço público”.

Esse processo gerou a criação de estruturas e institutos, como as leis e políticas públicas, mediante as quais se perquiriu o regramento e a monitorização do convívio coletivo para a administração e solução das situações conflituosas próprias da pluralidade humana.

Toda estrutura organizacional do Estado passa pela noção da existência de um poder que, em sua forma mais simplista, pode ser definido como a concreta possibilidade de se obrigar alguém a fazer algo contra sua própria vontade, ou seja, imposição da obediência não-espontânea.

O poder é exercido sempre com vistas à consecução de um fim almejado por seu titular, que investido dessa condição conseqüentemente investe também no controle da possibilidade de permitir.

O poder opera através de procedimentos simbólicos buscando o consenso a partir da organização e estruturas emaranhadas que, diante da construção da idéia atual de Estado, assumiram caráter impessoal e normativo.

Vale ressaltar a lição de Duverger (1962, p. 125), para quem:

[...] todo poder repousa largamente sobre as crenças. Os governados acreditam que é preciso

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008138

obedecer, e que é preciso aos governantes estabelecidos de uma certa forma. A noção de “legitimidade” é assim uma das chaves do problema do poder. Em um dado grupo social, a maior parte dos homens acredita que o poder deve ter uma certa natureza, repousar sobre certos princípios, revestir uma certa forma, fundar-se sobre certa origem: é legítimo o poder que corresponde a essa crença dominante. A legitimidade, tal como a entendemos, é uma noção sociológica, essencialmente relativa e contingente. Não existe uma legitimidade, mas várias legitimidades, segundo os grupos sociais, os países, as épocas, etc.

Para alguns, como Laski (1964), a questão primordial que afeta o Estado e, nessa seqüência lógica, a própria política, diz respeito à tensão existente entre a liberdade e a autoridade, ou seja, os limites entre o poder soberano do Estado e a obrigação moral de resistência do indivíduo, levando-se em conta que não raras vezes o poder se impõe protegendo certo grupo de cidadãos, desfigurando a razão de ser da noção do Estado e negando sua finalidade, que é o bem comum.

Outro ponto nevrálgico, quanto ao tema, refere-se à maneira como o poder é exercido, ainda que em nome do bem comum, pois se dá através da força. O uso da força viabiliza a contensão da desobediência. Essa força é multifacetária, uma vez que se apresenta tanto como econômica quanto como física.

Essa questão reclama a noção do conceito de autoridade, que busca trazer para o seu âmago o consenso na aceitação do corpo social quanto aos atos emanados do poder, evitando-se que o prestígio e a influência contidos nas manifestações de força sejam entendidos como ilegítimos.

Para tanto, é necessário que a aceitação da idéia da legitimidade do exercício da força se dê pelo maior número de pessoas e grupos (AGUIAR, 1990).

Tem-se verificado que a tendência moderna para viabilizar a aceitação do exercício do poder é a sua despersonalização, que ocorre através das estruturas complexas criadas pelo Estado por meio da burocracia, a qual apresenta ao

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 139

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individuais e, principalmente, o respeito à dignidade da pessoa humana.

Para que essa discussão se efetive em um campo minimamente contaminado com reações emotivas, oportunistas e sensacionalistas quanto ao fenômeno criminológico, intervenções eficazes na reestruturação social devem ser feitas visando novas diretrizes comportamentais tanto do povo em suas relações internas quanto do povo com as instituições envolvidas nesse contexto (Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Sociedade Civil Organizada etc.).

É sabido que, desde a formação mais antiga da idéia de Estado, tem-se como finalidade de sua existência a paz social e a continuidade da vida em sociedade. Para a consecução de tais objetivos se buscou, nos mais variados momentos históricos, “a consolidação do espaço público”.

Esse processo gerou a criação de estruturas e institutos, como as leis e políticas públicas, mediante as quais se perquiriu o regramento e a monitorização do convívio coletivo para a administração e solução das situações conflituosas próprias da pluralidade humana.

Toda estrutura organizacional do Estado passa pela noção da existência de um poder que, em sua forma mais simplista, pode ser definido como a concreta possibilidade de se obrigar alguém a fazer algo contra sua própria vontade, ou seja, imposição da obediência não-espontânea.

O poder é exercido sempre com vistas à consecução de um fim almejado por seu titular, que investido dessa condição conseqüentemente investe também no controle da possibilidade de permitir.

O poder opera através de procedimentos simbólicos buscando o consenso a partir da organização e estruturas emaranhadas que, diante da construção da idéia atual de Estado, assumiram caráter impessoal e normativo.

Vale ressaltar a lição de Duverger (1962, p. 125), para quem:

[...] todo poder repousa largamente sobre as crenças. Os governados acreditam que é preciso

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008138

obedecer, e que é preciso aos governantes estabelecidos de uma certa forma. A noção de “legitimidade” é assim uma das chaves do problema do poder. Em um dado grupo social, a maior parte dos homens acredita que o poder deve ter uma certa natureza, repousar sobre certos princípios, revestir uma certa forma, fundar-se sobre certa origem: é legítimo o poder que corresponde a essa crença dominante. A legitimidade, tal como a entendemos, é uma noção sociológica, essencialmente relativa e contingente. Não existe uma legitimidade, mas várias legitimidades, segundo os grupos sociais, os países, as épocas, etc.

Para alguns, como Laski (1964), a questão primordial que afeta o Estado e, nessa seqüência lógica, a própria política, diz respeito à tensão existente entre a liberdade e a autoridade, ou seja, os limites entre o poder soberano do Estado e a obrigação moral de resistência do indivíduo, levando-se em conta que não raras vezes o poder se impõe protegendo certo grupo de cidadãos, desfigurando a razão de ser da noção do Estado e negando sua finalidade, que é o bem comum.

Outro ponto nevrálgico, quanto ao tema, refere-se à maneira como o poder é exercido, ainda que em nome do bem comum, pois se dá através da força. O uso da força viabiliza a contensão da desobediência. Essa força é multifacetária, uma vez que se apresenta tanto como econômica quanto como física.

Essa questão reclama a noção do conceito de autoridade, que busca trazer para o seu âmago o consenso na aceitação do corpo social quanto aos atos emanados do poder, evitando-se que o prestígio e a influência contidos nas manifestações de força sejam entendidos como ilegítimos.

Para tanto, é necessário que a aceitação da idéia da legitimidade do exercício da força se dê pelo maior número de pessoas e grupos (AGUIAR, 1990).

Tem-se verificado que a tendência moderna para viabilizar a aceitação do exercício do poder é a sua despersonalização, que ocorre através das estruturas complexas criadas pelo Estado por meio da burocracia, a qual apresenta ao

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corpo social a disciplina e a forma do uso da força. Esse método possibilita o desencadeamento de uma sanção por start interpessoal, direto e unilateral.

Também como mecanismo eficaz, o poder tem-se materializado através da lei: veículo simbólico, neutro, impessoal e eficiente do exercício da força e da autoridade. Assim, os conflitos sociais buscam ser resolvidos pelo direito em uma concepção própria da democracia moderna.

Contudo, o poder formal ultrapassa a idéia específica de governo focada no Poder Executivo e transcende para o âmbito do Judiciário, como amortecedor social, e do Legislativo, palco do debate ideológico.

E mesmo essa ampliação de limites não esgota o âmbito da idéia de poder, pois existem esferas distintas de sua operacionalidade. Nessa linha de raciocínio, vale lembrar a lição de Roberto de Aguiar (1990), segundo o qual existe o chamado “poder real”, aquele que surge dos conflitos do real e decorre daquilo que se pode observar e reflete o processo concreto do choque das forças sociais. Exercer, tomar ou manter esse poder exige o controle de uma determinada sociedade. Quem possui o poder real conseqüentemente possui o poder formal.

O exercício do poder encontra no binômio disciplina e obediência a forma mais simples e utilizada para a obtenção de sua efetividade. Porém, o desenho metodológico para utilização de tal instrumento reclama pressuposto ideológico, com o fito de selecionar condutas e comportamentos certos ou errados, bem como a forma de instalação e difusão das normas que regulam o conjunto desses comportamentos no meio social.

O poder, para disciplinar e se fazer impor, é indissociável do direito. O direito se constitui no principal instrumento para a implementação e manutenção da obediência e da ordem social.

Através do discurso formal justificativo da necessidade da imposição da coação para a ordem social, por meios quase sempre violentos e descritos como “legítimos”, o poder se utiliza do direito para construir o conceito de autoridade e obediência e difundir a noção da devida intervenção por meio da força para conter conflitos e tensões sociais.

O Estado exerce o poder sobre a concepção preliminar de

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tutela do bem público e da preservação do interesse predominante da coletividade, contudo não foge ao viés da atitude violenta do poder político organizado, pois a estrutura estatal também defende interesses privados daqueles que, possuindo o “poder real”, se encontram investidos do “poder formal”.

Percebe-se que a imagem do legislador é, muitas vezes, distinta da imagem daquele a quem se destina a norma jurídica, sendo comum quem legisla pertencer a segmento social controlador da atividade econômica, portanto dirigente dos destinos políticos da sociedade, gestando um direito voltado para seus interesses de permanência na posição de comando.

Sendo o legislador oriundo de parcela privilegiada da sociedade e legislando a favor dessa ideologia, contamina o conteúdo das normas jurídicas estatais, impregnando, nestas, forte discurso de manutenção do poder, através do direito, que passa a ser a filosofia de todo o Estado.

O Judiciário, apesar de ter entre uma de suas funções a constante legitimação do direito pela atualização do seu conteúdo, não consegue modificar essa realidade, imposta em face da corriqueira continuidade legislativa que o invade, bem assim ao Executivo, estendendo-se por todo o corpo social (AGUIAR, 1990).

O intuito do direito é regular o comportamento humano com o objetivo de alcançar a paz social e o bem comum, sendo as normas jurídicas, mormente as de cunho penal, destinadas àqueles que desenvolvem atitudes opostas ao que se pretende como tal. Porém dotadas de conteúdo ideológico, as normas jurídicas contêm, em sua essência, a idéia de preservação dos interesses daqueles que detém o poder.

Apresenta-se o direito como regulador do poder de punir, dirigido formalmente a todo corpo social, embora materialmente tenha destino certo, ou seja, grupos sociais opostos àqueles que detêm o poder, costumeiramente pertencentes a estratos sociais desfavorecidos na correlação de forças estabelecidas dentro da própria sociedade.

O direito, assim, cumpre dupla finalidade, ambas, porém, de controle: uma de manutenção e coesão de privilégios ao grupo dominante e outra de imposição do poder ao grupo dominado.

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corpo social a disciplina e a forma do uso da força. Esse método possibilita o desencadeamento de uma sanção por start interpessoal, direto e unilateral.

Também como mecanismo eficaz, o poder tem-se materializado através da lei: veículo simbólico, neutro, impessoal e eficiente do exercício da força e da autoridade. Assim, os conflitos sociais buscam ser resolvidos pelo direito em uma concepção própria da democracia moderna.

Contudo, o poder formal ultrapassa a idéia específica de governo focada no Poder Executivo e transcende para o âmbito do Judiciário, como amortecedor social, e do Legislativo, palco do debate ideológico.

E mesmo essa ampliação de limites não esgota o âmbito da idéia de poder, pois existem esferas distintas de sua operacionalidade. Nessa linha de raciocínio, vale lembrar a lição de Roberto de Aguiar (1990), segundo o qual existe o chamado “poder real”, aquele que surge dos conflitos do real e decorre daquilo que se pode observar e reflete o processo concreto do choque das forças sociais. Exercer, tomar ou manter esse poder exige o controle de uma determinada sociedade. Quem possui o poder real conseqüentemente possui o poder formal.

O exercício do poder encontra no binômio disciplina e obediência a forma mais simples e utilizada para a obtenção de sua efetividade. Porém, o desenho metodológico para utilização de tal instrumento reclama pressuposto ideológico, com o fito de selecionar condutas e comportamentos certos ou errados, bem como a forma de instalação e difusão das normas que regulam o conjunto desses comportamentos no meio social.

O poder, para disciplinar e se fazer impor, é indissociável do direito. O direito se constitui no principal instrumento para a implementação e manutenção da obediência e da ordem social.

Através do discurso formal justificativo da necessidade da imposição da coação para a ordem social, por meios quase sempre violentos e descritos como “legítimos”, o poder se utiliza do direito para construir o conceito de autoridade e obediência e difundir a noção da devida intervenção por meio da força para conter conflitos e tensões sociais.

O Estado exerce o poder sobre a concepção preliminar de

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tutela do bem público e da preservação do interesse predominante da coletividade, contudo não foge ao viés da atitude violenta do poder político organizado, pois a estrutura estatal também defende interesses privados daqueles que, possuindo o “poder real”, se encontram investidos do “poder formal”.

Percebe-se que a imagem do legislador é, muitas vezes, distinta da imagem daquele a quem se destina a norma jurídica, sendo comum quem legisla pertencer a segmento social controlador da atividade econômica, portanto dirigente dos destinos políticos da sociedade, gestando um direito voltado para seus interesses de permanência na posição de comando.

Sendo o legislador oriundo de parcela privilegiada da sociedade e legislando a favor dessa ideologia, contamina o conteúdo das normas jurídicas estatais, impregnando, nestas, forte discurso de manutenção do poder, através do direito, que passa a ser a filosofia de todo o Estado.

O Judiciário, apesar de ter entre uma de suas funções a constante legitimação do direito pela atualização do seu conteúdo, não consegue modificar essa realidade, imposta em face da corriqueira continuidade legislativa que o invade, bem assim ao Executivo, estendendo-se por todo o corpo social (AGUIAR, 1990).

O intuito do direito é regular o comportamento humano com o objetivo de alcançar a paz social e o bem comum, sendo as normas jurídicas, mormente as de cunho penal, destinadas àqueles que desenvolvem atitudes opostas ao que se pretende como tal. Porém dotadas de conteúdo ideológico, as normas jurídicas contêm, em sua essência, a idéia de preservação dos interesses daqueles que detém o poder.

Apresenta-se o direito como regulador do poder de punir, dirigido formalmente a todo corpo social, embora materialmente tenha destino certo, ou seja, grupos sociais opostos àqueles que detêm o poder, costumeiramente pertencentes a estratos sociais desfavorecidos na correlação de forças estabelecidas dentro da própria sociedade.

O direito, assim, cumpre dupla finalidade, ambas, porém, de controle: uma de manutenção e coesão de privilégios ao grupo dominante e outra de imposição do poder ao grupo dominado.

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Todavia, o exercício do poder baseado na idéia de força e imposição de comportamentos de forma distorcida até pode encontrar justificativa em um momento em que a formação do Estado constituía um fim para a proteção e a organização da vida em sociedade, período em que máximas como “bom governo”, bem assim “o alcance da paz social e política” embasavam a construção teórica patrocinada por quem detinha o poder.

Com a concepção da divisão dos poderes do Estado pelas idéias de John Lucke e Montesquieu, através dos sistemas de freios e de contrapeso, surge o que se denomina “Estado Moderno”, momento que coincide com a decadência do modelo econômico feudal e com um novo tipo de locus social representado pelas cidades, passando a História a conhecer o Estado absoluto como pré-fase para o Estado Moderno.

Propõe Lucke (1963) um pacto social ou contrato baseado na defesa da propriedade, justificando um poder político, o Estado, e a preservação da sociedade, evitando as ameaças contra a liberdade e a igualdade e pugnando por uma adesão da atividade coletiva em favor dos governantes para preservar as leis naturais que antecediam ao próprio pacto. Assim, Lucke (1963) propõe um equilíbrio social baseado na proteção pelo Estado.

O autor traça linhas gerais quanto aos Poderes Executivo e Legislativo, reconhecendo, no primeiro, legitimação para agir em favor do bem público, sempre para o bem do povo e não para ele, ainda que tais ações não se vinculem a prescrições legais. Quanto ao Legislativo, constitui-se no poder supremo da comunidade, sendo sagrado e inalterável, depositado nas mãos do escolhido pelo povo.

Observe-se que Lucke (1963) não concebeu o Judiciário como poder independente, colocando-o nos limites do Poder Executivo, sendo Montesquieu (1962), em 1701, responsável por este desenho, garantindo independência e estabilidade aos juízes.

A História registra o crédito da doutrina da separação dos poderes à obra de Montesquieu, ainda que reconheça as anteriores lições de Lucke. Coube a Montesquieu o desenho que permitisse uma limitação ao absoluto poder nas mãos de um só homem ou grupo. Essa geografia buscava garantir ao máximo liberdades individuais e uma forma democrática de gestão governamental.

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Segundo as idéias esboçadas por Montesquieu (1962, p. 180),

[...] para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder contenha o poder. Uma constituição pode ser tal que ninguém será obrigado a fazer as coisas a que a lei não o obrigue nem a fazer as que a lei lhe permite.

As idéias de Montesquieu servem de esteio para a convocação dos Estados Gerais na França e se consagram de vez na Constituição dos Estados Unidos da América do Norte, além de se fazerem presentes na Declaração do Direito do Homem e do Cidadão em 1789, em seu artigo 16, que versa sobre o reconhecimento da separação dos poderes.

As afirmações sobre a liberdade política da época retratam o conceito do termo liberdade como atrelado à idéia de tranqüilidade de espírito e segurança para o exercício da liberdade, cabendo ao Estado impedir ameaças ou ações que conflitem com esse direito.

Para tanto, a separação dos poderes é necessária contra o arbítrio e a tirania, vale dizer, a necessidade da limitação do poder que só ocorre pela contraposição a outro poder, registrando-se, porém, que tal momento histórico significativo para a humanidade também representava a conformação de um segmento sociopolítico econômico emergente, ou seja, a burguesia.

O Estado liberal e democrático que a História conheceu a partir do século XIX tem esteio nesse panorama político-econômico que, posteriormente, ganhou a forma denominada de constitucionalização do direito.

O fenômeno da constitucionalização tem como fulcro, portanto, não só a edificação da tripartição dos poderes, mas também, e principalmente, a subordinação de todo o poder do Estado ao direito, cumprindo, portanto, ao direito a função de regulamentação dos limites do poder do Estado e do seu exercício.

Esse limite a cargo do direito possibilitaria tanto a impessoalidade buscada em oposição ao poder absoluto do

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Todavia, o exercício do poder baseado na idéia de força e imposição de comportamentos de forma distorcida até pode encontrar justificativa em um momento em que a formação do Estado constituía um fim para a proteção e a organização da vida em sociedade, período em que máximas como “bom governo”, bem assim “o alcance da paz social e política” embasavam a construção teórica patrocinada por quem detinha o poder.

Com a concepção da divisão dos poderes do Estado pelas idéias de John Lucke e Montesquieu, através dos sistemas de freios e de contrapeso, surge o que se denomina “Estado Moderno”, momento que coincide com a decadência do modelo econômico feudal e com um novo tipo de locus social representado pelas cidades, passando a História a conhecer o Estado absoluto como pré-fase para o Estado Moderno.

Propõe Lucke (1963) um pacto social ou contrato baseado na defesa da propriedade, justificando um poder político, o Estado, e a preservação da sociedade, evitando as ameaças contra a liberdade e a igualdade e pugnando por uma adesão da atividade coletiva em favor dos governantes para preservar as leis naturais que antecediam ao próprio pacto. Assim, Lucke (1963) propõe um equilíbrio social baseado na proteção pelo Estado.

O autor traça linhas gerais quanto aos Poderes Executivo e Legislativo, reconhecendo, no primeiro, legitimação para agir em favor do bem público, sempre para o bem do povo e não para ele, ainda que tais ações não se vinculem a prescrições legais. Quanto ao Legislativo, constitui-se no poder supremo da comunidade, sendo sagrado e inalterável, depositado nas mãos do escolhido pelo povo.

Observe-se que Lucke (1963) não concebeu o Judiciário como poder independente, colocando-o nos limites do Poder Executivo, sendo Montesquieu (1962), em 1701, responsável por este desenho, garantindo independência e estabilidade aos juízes.

A História registra o crédito da doutrina da separação dos poderes à obra de Montesquieu, ainda que reconheça as anteriores lições de Lucke. Coube a Montesquieu o desenho que permitisse uma limitação ao absoluto poder nas mãos de um só homem ou grupo. Essa geografia buscava garantir ao máximo liberdades individuais e uma forma democrática de gestão governamental.

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Segundo as idéias esboçadas por Montesquieu (1962, p. 180),

[...] para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder contenha o poder. Uma constituição pode ser tal que ninguém será obrigado a fazer as coisas a que a lei não o obrigue nem a fazer as que a lei lhe permite.

As idéias de Montesquieu servem de esteio para a convocação dos Estados Gerais na França e se consagram de vez na Constituição dos Estados Unidos da América do Norte, além de se fazerem presentes na Declaração do Direito do Homem e do Cidadão em 1789, em seu artigo 16, que versa sobre o reconhecimento da separação dos poderes.

As afirmações sobre a liberdade política da época retratam o conceito do termo liberdade como atrelado à idéia de tranqüilidade de espírito e segurança para o exercício da liberdade, cabendo ao Estado impedir ameaças ou ações que conflitem com esse direito.

Para tanto, a separação dos poderes é necessária contra o arbítrio e a tirania, vale dizer, a necessidade da limitação do poder que só ocorre pela contraposição a outro poder, registrando-se, porém, que tal momento histórico significativo para a humanidade também representava a conformação de um segmento sociopolítico econômico emergente, ou seja, a burguesia.

O Estado liberal e democrático que a História conheceu a partir do século XIX tem esteio nesse panorama político-econômico que, posteriormente, ganhou a forma denominada de constitucionalização do direito.

O fenômeno da constitucionalização tem como fulcro, portanto, não só a edificação da tripartição dos poderes, mas também, e principalmente, a subordinação de todo o poder do Estado ao direito, cumprindo, portanto, ao direito a função de regulamentação dos limites do poder do Estado e do seu exercício.

Esse limite a cargo do direito possibilitaria tanto a impessoalidade buscada em oposição ao poder absoluto do

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soberano quanto a conformação aos anseios de seus destinatários legítimos, conforme se infere da lição de Bobbio (1992, p. 148):

[...] o segundo processo foi o que deu lugar à figura – verdadeiramente dominante em todas as teorias políticas do século passado – do Estado de direito, ou seja, do Estado no qual todo poder é exercido no âmbito de regras jurídicas que delimitam sua c o m p e t ê n c i a e o r i e n t a m ( a i n d a q u e freqüentemente com certa margem de discricionariedade) suas decisões. Ele corresponde àquele processo de transformação do poder tradicional fundado em relações patrimoniais, num poder legal e racional, essencialmente impessoal, processo que foi descrito com muita penetração por Max Weber.

O constitucionalismo estreitou-se com as idéias de Kelsen (1991), uma vez que, para este autor, desde que um Estado designe suas finalidades através de um conjunto de normas jurídicas sistematizadas este Estado é Estado de Direito.

Embora seja fato, a existência de uma essência ideológica do grupo dominante, normalmente oriundo de classes sociais economicamente mais robustas na roupagem que procura delinear o modelo de exercício do poder nas mais variadas formas de organização política que a História registra, não se pode deixar de constatar que o Estado organizado a partir de limites impostos pelo direito permite uma maior possibilidade de controle do poder.

Porém, a significação de poder do Estado deve se afastar para além da idéia restrita do seu aspecto meramente repressivo, uma vez que pensar o poder como instrumento de exclusão dos homens da vida social em função de comportamentos contraditórios àqueles orientados pelos que se encontram investidos na condição de dominantes é fazer tábula rasa de um conceito extremamente amplo.

O poder deve servir de catalisador das potencialidades do homem, aperfeiçoando suas atitudes tanto no âmbito econômico quanto político-social, capacitando-o para a vida em comum, reduzindo sua revolta, resistência e insurreição contra as ordens do poder, funcionando como instância produtora de individualidade,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008144

concebendo o homem enquanto indivíduo, em um produto do poder e do saber (COPETTI, 2000).

No entanto, no Estado moderno, a legitimação do poder, enquanto conceituado como poder de punir, traduzido por um sistema penal, busca justificação através de uma dupla via. A primeira é calcada nos limites e parâmetros da legalidade esculpida na programação normativa. A segunda é edificada sobre um foco utilitarista conectado à definição dos fins perseguidos pela pena (ANDRADE, 1997).

Isso quer dizer que o sistema penal, revelado como expressão do exercício do poder, se autolegitima através do direito, posto que repete sistematicamente antigos conceitos segregatórios quanto ao corpo social, dividindo a sociedade em grupos destinatários desse agressivo instrumento de controle e outros isentos de tal alcance.

No Estado de Direito não importa que forma, tipo ou modelo de ação venha a ser utilizada, desde que cerceie direitos sempre devem atender à estrita autorização legal que, para ser considerada como tal, por sua vez, não basta preencher os requisitos formais, mas, principalmente, ser legítima e adequada.

A vertente utilizada para o discurso de legitimação que envolve a idéia de legalidade, através do direito (lei), revela-se na construção do poder de punir sob forma de monopólio, aparentemente impessoal, que tem como base a utilização da força como instrumento de coesão das relações sociais, construindo o conceito de jus puniendi, calcado no princípio da legalidade.

Assim, o direito que fundamenta o poder de punir sobre a base de regras é o mesmo direito que fundamenta, em virtude de decisões, as regras fundadoras do direito de punir, como um processo complexo de auto-referência (BARATTA, 1986).

Numa segunda vertente, de cunho utilitarista, ensina Baratta (1986) sobre a impossibilidade de legitimação calcada tão-somente na racionalidade do direito, com seus caracteres formais, reclamando, portanto, alcance transcendente ao limite negativo imposto pelo normativismo puro e simples. Daí a idéia de funções socialmente úteis ao sistema penal, calcada nas teorias relativas ou utilitárias da pena, sendo constante a perseguição de argumentos que funcionem como subsídios para tais afirmações.

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soberano quanto a conformação aos anseios de seus destinatários legítimos, conforme se infere da lição de Bobbio (1992, p. 148):

[...] o segundo processo foi o que deu lugar à figura – verdadeiramente dominante em todas as teorias políticas do século passado – do Estado de direito, ou seja, do Estado no qual todo poder é exercido no âmbito de regras jurídicas que delimitam sua c o m p e t ê n c i a e o r i e n t a m ( a i n d a q u e freqüentemente com certa margem de discricionariedade) suas decisões. Ele corresponde àquele processo de transformação do poder tradicional fundado em relações patrimoniais, num poder legal e racional, essencialmente impessoal, processo que foi descrito com muita penetração por Max Weber.

O constitucionalismo estreitou-se com as idéias de Kelsen (1991), uma vez que, para este autor, desde que um Estado designe suas finalidades através de um conjunto de normas jurídicas sistematizadas este Estado é Estado de Direito.

Embora seja fato, a existência de uma essência ideológica do grupo dominante, normalmente oriundo de classes sociais economicamente mais robustas na roupagem que procura delinear o modelo de exercício do poder nas mais variadas formas de organização política que a História registra, não se pode deixar de constatar que o Estado organizado a partir de limites impostos pelo direito permite uma maior possibilidade de controle do poder.

Porém, a significação de poder do Estado deve se afastar para além da idéia restrita do seu aspecto meramente repressivo, uma vez que pensar o poder como instrumento de exclusão dos homens da vida social em função de comportamentos contraditórios àqueles orientados pelos que se encontram investidos na condição de dominantes é fazer tábula rasa de um conceito extremamente amplo.

O poder deve servir de catalisador das potencialidades do homem, aperfeiçoando suas atitudes tanto no âmbito econômico quanto político-social, capacitando-o para a vida em comum, reduzindo sua revolta, resistência e insurreição contra as ordens do poder, funcionando como instância produtora de individualidade,

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concebendo o homem enquanto indivíduo, em um produto do poder e do saber (COPETTI, 2000).

No entanto, no Estado moderno, a legitimação do poder, enquanto conceituado como poder de punir, traduzido por um sistema penal, busca justificação através de uma dupla via. A primeira é calcada nos limites e parâmetros da legalidade esculpida na programação normativa. A segunda é edificada sobre um foco utilitarista conectado à definição dos fins perseguidos pela pena (ANDRADE, 1997).

Isso quer dizer que o sistema penal, revelado como expressão do exercício do poder, se autolegitima através do direito, posto que repete sistematicamente antigos conceitos segregatórios quanto ao corpo social, dividindo a sociedade em grupos destinatários desse agressivo instrumento de controle e outros isentos de tal alcance.

No Estado de Direito não importa que forma, tipo ou modelo de ação venha a ser utilizada, desde que cerceie direitos sempre devem atender à estrita autorização legal que, para ser considerada como tal, por sua vez, não basta preencher os requisitos formais, mas, principalmente, ser legítima e adequada.

A vertente utilizada para o discurso de legitimação que envolve a idéia de legalidade, através do direito (lei), revela-se na construção do poder de punir sob forma de monopólio, aparentemente impessoal, que tem como base a utilização da força como instrumento de coesão das relações sociais, construindo o conceito de jus puniendi, calcado no princípio da legalidade.

Assim, o direito que fundamenta o poder de punir sobre a base de regras é o mesmo direito que fundamenta, em virtude de decisões, as regras fundadoras do direito de punir, como um processo complexo de auto-referência (BARATTA, 1986).

Numa segunda vertente, de cunho utilitarista, ensina Baratta (1986) sobre a impossibilidade de legitimação calcada tão-somente na racionalidade do direito, com seus caracteres formais, reclamando, portanto, alcance transcendente ao limite negativo imposto pelo normativismo puro e simples. Daí a idéia de funções socialmente úteis ao sistema penal, calcada nas teorias relativas ou utilitárias da pena, sendo constante a perseguição de argumentos que funcionem como subsídios para tais afirmações.

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Nesse contexto, não faltam afirmações com base na ideologia de defesa social calcadas nas teorias retributivas e preventivas da pena, que buscam legitimar a intervenção penal, estabelecendo sua imperativa necessidade como estratégia de tratamento para reinserção do infrator à sociedade.

Porém não se pode deixar de enxergar que, ao se invocar a defesa social como argumento para a produção legislativa inflacionária de tipos penais, esta se apresenta com conteúdo distorcido, cunhando delitos que resguardam privilégios e defendem interesses dos setores aquinhoados da sociedade (LYRA, 1942).

Nesse particular, merece reparo a forma como a criminologia tradicional enfoca a questão, uma vez que, partindo do pressuposto de que o criminoso é originário de sua própria patologia ou de conseqüências externas advindas da inter-relação com o meio social, acaba por sufragar o direito posto, legitimando-o.

A legitimação da intervenção do poder punitivo, portanto, acentua-se quando foca seus argumentos em uma equação de fácil visibilidade e aparente solução, qual seja, o conflito entre a defesa social e a ação do Estado contra o criminoso, impondo-lhe restrições a seus direitos.

É evidente que a força de tal argumento, em um primeiro momento, faz surgir a idéia de que, em nome da defesa da sociedade, a intervenção estatal contra direitos individuais torna-se claramente legítima, haja vista que o confronto põe em lados opostos valores que ressoam como desproporcionais em grau de importância. Na verdade, entre a preservação do interesse coletivo e a do interesse individual deve preponderar a primeira linha de raciocínio.

Destaca Pavarini (1988, p. 49), quando examina a questão:

A defesa social reivindica o mérito de haver liberado a política criminal (e em particular a penal) das hipotecas de velhas interpretações transcendentes e míticas e de havê-la reconduzido a uma prática científica através da qual a sociedade se defende do crime. A defesa social é portanto uma ideologia extremamente sedutora, enquanto é capaz de

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008146

enriquecer o sistema repressivo (vigente) com os atributos da necessidade, da legitimidade e da cientificidade.

Encontra o poder de punir do Estado, fértil solo para sua legitimação, através do discurso de proteção aos bens jurídicos, bem assim de reeducação do delinqüente, tudo organizado sistematicamente em limites e parâmetros traçados pelo direito, patrocinando, de forma coesa, a ideologia oficial sobre sua identidade e fins, conforme orienta a lição de Cirino dos Santos (1985, p. 26), ao afirmar:

O sistema penal, constituído pelos aparelhos judicial, policial e prisional, e operacionalizado nos limites das matrizes legais, aparece como sistema garantidor de uma ordem social justa, protegendo bens jurídicos gerais, e, assim, promovendo o bem comum. Essa concepção é legitimada pela teoria jurídica do crime (extraída da lei penal vigente), que funciona como metodologia garantidora de uma correta justiça, e pela teoria jurídica da pena, estruturada na dupla finalidade de retribuição (equivalente) e de prevenção (geral e especial) do crime.

No entanto, a par de toda estrutura lógica que acompanha a retórica argumentativa da legitimidade do poder de punir do Estado, o que se percebe é a instalação de um fenômeno de perplexidade quando se busca analisar concretamente a correspondência daquilo que se situa no plano teórico com o que de fato ocorre no plano real.

Uma legitimação que despreza o questionamento quanto à própria formação e edificação da estrutura política do direito penal posto, mormente na seleção das condutas a serem criminalizadas, de logo, merece censura.

Nesse particular, os fundamentos da criminologia crítica trilham melhor caminho, em virtude de focar o tema sobre o ponto de vista do controle social, próprio do processo de poder, buscando, assim, analisar os critérios utilizados para a decisão política acerca das condutas a serem tipificadas pelo poder

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Nesse contexto, não faltam afirmações com base na ideologia de defesa social calcadas nas teorias retributivas e preventivas da pena, que buscam legitimar a intervenção penal, estabelecendo sua imperativa necessidade como estratégia de tratamento para reinserção do infrator à sociedade.

Porém não se pode deixar de enxergar que, ao se invocar a defesa social como argumento para a produção legislativa inflacionária de tipos penais, esta se apresenta com conteúdo distorcido, cunhando delitos que resguardam privilégios e defendem interesses dos setores aquinhoados da sociedade (LYRA, 1942).

Nesse particular, merece reparo a forma como a criminologia tradicional enfoca a questão, uma vez que, partindo do pressuposto de que o criminoso é originário de sua própria patologia ou de conseqüências externas advindas da inter-relação com o meio social, acaba por sufragar o direito posto, legitimando-o.

A legitimação da intervenção do poder punitivo, portanto, acentua-se quando foca seus argumentos em uma equação de fácil visibilidade e aparente solução, qual seja, o conflito entre a defesa social e a ação do Estado contra o criminoso, impondo-lhe restrições a seus direitos.

É evidente que a força de tal argumento, em um primeiro momento, faz surgir a idéia de que, em nome da defesa da sociedade, a intervenção estatal contra direitos individuais torna-se claramente legítima, haja vista que o confronto põe em lados opostos valores que ressoam como desproporcionais em grau de importância. Na verdade, entre a preservação do interesse coletivo e a do interesse individual deve preponderar a primeira linha de raciocínio.

Destaca Pavarini (1988, p. 49), quando examina a questão:

A defesa social reivindica o mérito de haver liberado a política criminal (e em particular a penal) das hipotecas de velhas interpretações transcendentes e míticas e de havê-la reconduzido a uma prática científica através da qual a sociedade se defende do crime. A defesa social é portanto uma ideologia extremamente sedutora, enquanto é capaz de

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enriquecer o sistema repressivo (vigente) com os atributos da necessidade, da legitimidade e da cientificidade.

Encontra o poder de punir do Estado, fértil solo para sua legitimação, através do discurso de proteção aos bens jurídicos, bem assim de reeducação do delinqüente, tudo organizado sistematicamente em limites e parâmetros traçados pelo direito, patrocinando, de forma coesa, a ideologia oficial sobre sua identidade e fins, conforme orienta a lição de Cirino dos Santos (1985, p. 26), ao afirmar:

O sistema penal, constituído pelos aparelhos judicial, policial e prisional, e operacionalizado nos limites das matrizes legais, aparece como sistema garantidor de uma ordem social justa, protegendo bens jurídicos gerais, e, assim, promovendo o bem comum. Essa concepção é legitimada pela teoria jurídica do crime (extraída da lei penal vigente), que funciona como metodologia garantidora de uma correta justiça, e pela teoria jurídica da pena, estruturada na dupla finalidade de retribuição (equivalente) e de prevenção (geral e especial) do crime.

No entanto, a par de toda estrutura lógica que acompanha a retórica argumentativa da legitimidade do poder de punir do Estado, o que se percebe é a instalação de um fenômeno de perplexidade quando se busca analisar concretamente a correspondência daquilo que se situa no plano teórico com o que de fato ocorre no plano real.

Uma legitimação que despreza o questionamento quanto à própria formação e edificação da estrutura política do direito penal posto, mormente na seleção das condutas a serem criminalizadas, de logo, merece censura.

Nesse particular, os fundamentos da criminologia crítica trilham melhor caminho, em virtude de focar o tema sobre o ponto de vista do controle social, próprio do processo de poder, buscando, assim, analisar os critérios utilizados para a decisão política acerca das condutas a serem tipificadas pelo poder

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dominante.A mínima investida no intuito da constatação do divórcio

entre o proposto no discurso da legitimação e o alcançado no plano real encontra sucesso, tendo em vista que o sistema não cumpre as funções declaradas.

Oriundo que é o sistema jurídico da própria estrutura política, acaba por reproduzir essa mesma geografia, traduzida em um sistema hierarquizado de classes sociais e influenciando decisivamente toda a organização do Estado, que passa a se tornar, conseqüentemente, também um Estado de classes (SOUZA, 1991).

Todavia, essa constatação ab initio não se tem revelado como suficiente e capaz para ferir e desbancar o estágio de autolegitimação que alcançou o poder punitivo estatal.

Particularmente, o direito penal brasileiro pauta-se em uma ideologia própria de uma sociedade capitalista. Como tal, é orientada por valores políticos e econômicos relativos ao modo de produção, assentada em duas classes principais: a que controla o poder e a subordinada.

Dessa forma, o sistema penal é concebido com a finalidade primordial de administrar e controlar os conflitos advindos desse modelo social, que, por conseqüência, se inclina em preservar esse mesmo modelo através de um movimento cíclico e constante.

Historicamente, como ensina Pierangelli (1980), o direito penal brasileiro foi calcado, desde o Código Penal de 1890, na defesa de interesses voltados para a acumulação de capital por parte da parcela da sociedade que dispunha de mecanismos para tal alcance, com proteção destacada aos grupos sociais das indústrias emergentes da época, como de resto noticia a tipificação de condutas relativas a movimentos grevistas (artigo 206).

Nesse mesmo diapasão, o Código Penal de 1940 finca suas bases predominantemente na proteção ao patrimônio, sobrepondo-se inclusive aos bens jurídicos: pessoa, liberdade, administração pública, costumes, entre outros.

A ideologia protecionista que habita a alma dos tipos penais elencados no sistema repressivo brasileiro tenta, sem sucesso, dissimular-se. Basta observar a evidente concentração da

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008148

ação penal de natureza pública incondicionada nos delitos patrimoniais, movendo assim, imperiosamente, nessa direção, a estrutura do Estado na persecução criminal.

Conforme se constata, o direito brasileiro, ao estabelecer a disponibilidade do patrimônio na esfera civil, atende ao interesse do modelo capitalista, para o qual o patrimônio é um produto de consumo. Já quando, de maneira sistêmica, acaba por transformar o patrimônio em bem indisponível penal, ante a incondicionalidade da ação penal em crimes patrimoniais, nada mais faz do que agir em consonância com os imperativos econômicos, para quem o bem-estar geral é o bem-estar da proteção econômica (BERNARDES, 2005).

Outro aspecto a ser considerado acerca da ideologia penal brasileira é sua opção, na criminalização primária, pela desigualdade de tratamento em relação às classes sociais. Tendo o legislador a opção na confecção das condutas através do chamado “mecanismo de seleção”, procura contemplar comportamentos afetos aos indivíduos das classes sociais de menor patamar representativo, estratificando ainda mais a sociedade.

Dessa forma, o processo de criminalização descreve a preponderância da influência sobre os veículos capazes de rotular comportamentos. O segmento social mais forte reclama a tipificação de condutas que agridem seus bens e interesses e que, praticadas em função da diferente valoração, por parte do segmento social mais frágil, passam a ser consideradas como proibidas, dada a desproporção da capacidade de influência dos envolvidos, acabando por se tornar, aparentemente, um reclame de todos, graças à intervenção formal do Estado.

Essa atitude que marca secularmente o direito penal brasileiro termina por acentuar e projetar uma perspectiva ampliativa dos conflitos, ao invés de contê-los ou resolvê-los, revelando-se inadequada aos fundamentos de um Estado de Direito.

O que se tem vislumbrado é uma política criminal pautada no discurso de contenção dos conflitos através da dominação repressiva. A lógica dessa ideologia repousa no sentimento de que, quanto maior for o poder de punir e o arsenal punitivo, maior será a possibilidade de sucesso para a efetivação da justiça criminal.

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dominante.A mínima investida no intuito da constatação do divórcio

entre o proposto no discurso da legitimação e o alcançado no plano real encontra sucesso, tendo em vista que o sistema não cumpre as funções declaradas.

Oriundo que é o sistema jurídico da própria estrutura política, acaba por reproduzir essa mesma geografia, traduzida em um sistema hierarquizado de classes sociais e influenciando decisivamente toda a organização do Estado, que passa a se tornar, conseqüentemente, também um Estado de classes (SOUZA, 1991).

Todavia, essa constatação ab initio não se tem revelado como suficiente e capaz para ferir e desbancar o estágio de autolegitimação que alcançou o poder punitivo estatal.

Particularmente, o direito penal brasileiro pauta-se em uma ideologia própria de uma sociedade capitalista. Como tal, é orientada por valores políticos e econômicos relativos ao modo de produção, assentada em duas classes principais: a que controla o poder e a subordinada.

Dessa forma, o sistema penal é concebido com a finalidade primordial de administrar e controlar os conflitos advindos desse modelo social, que, por conseqüência, se inclina em preservar esse mesmo modelo através de um movimento cíclico e constante.

Historicamente, como ensina Pierangelli (1980), o direito penal brasileiro foi calcado, desde o Código Penal de 1890, na defesa de interesses voltados para a acumulação de capital por parte da parcela da sociedade que dispunha de mecanismos para tal alcance, com proteção destacada aos grupos sociais das indústrias emergentes da época, como de resto noticia a tipificação de condutas relativas a movimentos grevistas (artigo 206).

Nesse mesmo diapasão, o Código Penal de 1940 finca suas bases predominantemente na proteção ao patrimônio, sobrepondo-se inclusive aos bens jurídicos: pessoa, liberdade, administração pública, costumes, entre outros.

A ideologia protecionista que habita a alma dos tipos penais elencados no sistema repressivo brasileiro tenta, sem sucesso, dissimular-se. Basta observar a evidente concentração da

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ação penal de natureza pública incondicionada nos delitos patrimoniais, movendo assim, imperiosamente, nessa direção, a estrutura do Estado na persecução criminal.

Conforme se constata, o direito brasileiro, ao estabelecer a disponibilidade do patrimônio na esfera civil, atende ao interesse do modelo capitalista, para o qual o patrimônio é um produto de consumo. Já quando, de maneira sistêmica, acaba por transformar o patrimônio em bem indisponível penal, ante a incondicionalidade da ação penal em crimes patrimoniais, nada mais faz do que agir em consonância com os imperativos econômicos, para quem o bem-estar geral é o bem-estar da proteção econômica (BERNARDES, 2005).

Outro aspecto a ser considerado acerca da ideologia penal brasileira é sua opção, na criminalização primária, pela desigualdade de tratamento em relação às classes sociais. Tendo o legislador a opção na confecção das condutas através do chamado “mecanismo de seleção”, procura contemplar comportamentos afetos aos indivíduos das classes sociais de menor patamar representativo, estratificando ainda mais a sociedade.

Dessa forma, o processo de criminalização descreve a preponderância da influência sobre os veículos capazes de rotular comportamentos. O segmento social mais forte reclama a tipificação de condutas que agridem seus bens e interesses e que, praticadas em função da diferente valoração, por parte do segmento social mais frágil, passam a ser consideradas como proibidas, dada a desproporção da capacidade de influência dos envolvidos, acabando por se tornar, aparentemente, um reclame de todos, graças à intervenção formal do Estado.

Essa atitude que marca secularmente o direito penal brasileiro termina por acentuar e projetar uma perspectiva ampliativa dos conflitos, ao invés de contê-los ou resolvê-los, revelando-se inadequada aos fundamentos de um Estado de Direito.

O que se tem vislumbrado é uma política criminal pautada no discurso de contenção dos conflitos através da dominação repressiva. A lógica dessa ideologia repousa no sentimento de que, quanto maior for o poder de punir e o arsenal punitivo, maior será a possibilidade de sucesso para a efetivação da justiça criminal.

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De outro lado, percebe-se ampla ausência de legislação que contemple como tipos penais comportamentos que agridem parcelas sociais menos representativas economicamente nos seus interesses, tais como: fraudes financeiras, desvios de verbas públicas, abuso de poder em todas as suas formas, violação a direitos difusos e coletivos etc.

A amplidão do vazio legislativo nessa seara é minimizada com os poucos textos penais que, dissimulando uma regulação, são construídos de forma rarefeita em total discrepância com a robustez emprestada àqueles que contemplam os crimes comuns, principalmente os patrimoniais (DIAS, 1997).

Contudo, o Estado moderno buscou erigir-se sobre vários princípios, entre os quais o da igualdade com relação aos indivíduos, sendo pedra fundamental de praticamente todas as legislações atuais, descabendo a sustentação de uma legitimação pretendida através da imposição, ainda que pelo direito posto, de um controle ideológico pelos detentores do poder que, efetivamente, despreze valores fundamentais necessários à coesão de toda a sociedade.

Em um Estado Democrático de Direito não deve haver espaço para a continuidade dessa ideologia que conflita com seus fundamentos e propósitos, devendo romper-se com tal modelo implícito. Para tanto, torna-se mister utilizar-se da própria moldura oferecida pelo arcabouço formal traçado pelo ordenamento jurídico.

A legitimidade se faz presente quando se respeitam os princípios, e isto reclama a utilização de sanções adequadas.

Entre as diversas razões que podem ser utilizadas como argumento para uma mudança de raciocínio quanto aos limites e à forma de intervenção do poder punitivo do Estado no corpo social, para evitar-se a violação de direitos e garantias individuais, principalmente embutida nas sanções previstas, uma merece destaque: aquela que vislumbra uma perspectiva distinta de encarar o modelo posto pelo discurso legitimador do poder punitivo do Estado, focado no conflito: defesa social versus respeito a direitos e garantias individuais.

Ressalte-se que o discurso que coloca em confronto esses paradigmas, ainda que falacioso, sugere claramente a inclinação

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para o apoio do próprio corpo social a seus interesses coletivos, uma vez que o homem, por essência, é destinado a viver em sociedade.

Porém, deve-se questionar a verdadeira existência de um conflito entre a defesa social e a preservação das garantias individuais, que tem servido de esteio à legitimação do poder punitivo do Estado.

Essa questão torna-se ainda mais importante em um modelo de Estado Democrático de Direito, fundamentado no respeito à dignidade da pessoa humana, como é o exemplo do Estado brasileiro (art. 1º, III da Constituição Federal).

Travestida de legitimada, a intervenção penal esconde seu caráter meramente simbólico, expandindo suas fronteiras por meio de um arsenal punitivo que busca a solução para problemas que têm raízes na profunda desigualdade social, através de mecanismos ilusórios (penas mais rígidas), como se tem observado na última década de 90 no Brasil.

Materializando essa concepção ideológica, recentemente promoveu o direito penal pátrio, em uma verdadeira linha de montagem, a produção em larga escala de leis, ampliando crimes e penas e reduzindo direitos e garantias, a exemplo das Leis n. 7.960/89 (Prisão Temporária); Lei n. 8.072/90 (Crimes Hediondos); Lei n. 8.930/94 (Crimes Hediondos II); Lei n. 9.034/95 (Crime Organizado); Lei n. 9.296/96 (Interceptação Telefônica); Lei n. 9.455/97 (Tortura); Lei n. 10.792/03 (Regime Disciplinar Diferenciado); Lei Lei n. 10.826/03 (Arma de Fogo); Lei n. 11.340/06 (Violência Doméstica); entre outras.

Destaca-se o criticado instituto do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que retrata emblematicamente essa política criminal expansiva, em atrito com parâmetros de natureza constitucional como ressalta Rômulo Moreira (2006, p. 80):

Entendemos que o RDD também afronta a Constituição, agora o seu artigo 5º., XLVI, que trata da individualização da pena. Não se olvide que a individualização da pena engloba, não somente a aplicação da pena propriamente dita, mas também a sua posterior execução.

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De outro lado, percebe-se ampla ausência de legislação que contemple como tipos penais comportamentos que agridem parcelas sociais menos representativas economicamente nos seus interesses, tais como: fraudes financeiras, desvios de verbas públicas, abuso de poder em todas as suas formas, violação a direitos difusos e coletivos etc.

A amplidão do vazio legislativo nessa seara é minimizada com os poucos textos penais que, dissimulando uma regulação, são construídos de forma rarefeita em total discrepância com a robustez emprestada àqueles que contemplam os crimes comuns, principalmente os patrimoniais (DIAS, 1997).

Contudo, o Estado moderno buscou erigir-se sobre vários princípios, entre os quais o da igualdade com relação aos indivíduos, sendo pedra fundamental de praticamente todas as legislações atuais, descabendo a sustentação de uma legitimação pretendida através da imposição, ainda que pelo direito posto, de um controle ideológico pelos detentores do poder que, efetivamente, despreze valores fundamentais necessários à coesão de toda a sociedade.

Em um Estado Democrático de Direito não deve haver espaço para a continuidade dessa ideologia que conflita com seus fundamentos e propósitos, devendo romper-se com tal modelo implícito. Para tanto, torna-se mister utilizar-se da própria moldura oferecida pelo arcabouço formal traçado pelo ordenamento jurídico.

A legitimidade se faz presente quando se respeitam os princípios, e isto reclama a utilização de sanções adequadas.

Entre as diversas razões que podem ser utilizadas como argumento para uma mudança de raciocínio quanto aos limites e à forma de intervenção do poder punitivo do Estado no corpo social, para evitar-se a violação de direitos e garantias individuais, principalmente embutida nas sanções previstas, uma merece destaque: aquela que vislumbra uma perspectiva distinta de encarar o modelo posto pelo discurso legitimador do poder punitivo do Estado, focado no conflito: defesa social versus respeito a direitos e garantias individuais.

Ressalte-se que o discurso que coloca em confronto esses paradigmas, ainda que falacioso, sugere claramente a inclinação

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para o apoio do próprio corpo social a seus interesses coletivos, uma vez que o homem, por essência, é destinado a viver em sociedade.

Porém, deve-se questionar a verdadeira existência de um conflito entre a defesa social e a preservação das garantias individuais, que tem servido de esteio à legitimação do poder punitivo do Estado.

Essa questão torna-se ainda mais importante em um modelo de Estado Democrático de Direito, fundamentado no respeito à dignidade da pessoa humana, como é o exemplo do Estado brasileiro (art. 1º, III da Constituição Federal).

Travestida de legitimada, a intervenção penal esconde seu caráter meramente simbólico, expandindo suas fronteiras por meio de um arsenal punitivo que busca a solução para problemas que têm raízes na profunda desigualdade social, através de mecanismos ilusórios (penas mais rígidas), como se tem observado na última década de 90 no Brasil.

Materializando essa concepção ideológica, recentemente promoveu o direito penal pátrio, em uma verdadeira linha de montagem, a produção em larga escala de leis, ampliando crimes e penas e reduzindo direitos e garantias, a exemplo das Leis n. 7.960/89 (Prisão Temporária); Lei n. 8.072/90 (Crimes Hediondos); Lei n. 8.930/94 (Crimes Hediondos II); Lei n. 9.034/95 (Crime Organizado); Lei n. 9.296/96 (Interceptação Telefônica); Lei n. 9.455/97 (Tortura); Lei n. 10.792/03 (Regime Disciplinar Diferenciado); Lei Lei n. 10.826/03 (Arma de Fogo); Lei n. 11.340/06 (Violência Doméstica); entre outras.

Destaca-se o criticado instituto do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que retrata emblematicamente essa política criminal expansiva, em atrito com parâmetros de natureza constitucional como ressalta Rômulo Moreira (2006, p. 80):

Entendemos que o RDD também afronta a Constituição, agora o seu artigo 5º., XLVI, que trata da individualização da pena. Não se olvide que a individualização da pena engloba, não somente a aplicação da pena propriamente dita, mas também a sua posterior execução.

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Consigne-se que essa ideologia simbólica, diante da estrutura social brasileira, tem angariado legiões de adeptos, principalmente entre aqueles de escolaridade mais baixa e de menor poder aquisitivo, conforme se infere de pesquisa recente intitulada A cabeça do brasileiro, coordenada por Alberto Carlos Almeida (2007), na qual 51% dos entrevistados, entre os analfabetos, apóiam a atitude policial de espancar os presos para que estes confessem os crimes, e 40% concorda que a polícia mate assaltantes e ladrões depois de prendê-los, percentual levemente reduzido para 44% e 35%, respectivamente, quando os entrevistados possuem até a quarta série do primeiro grau.

Esse quadro retrata a sensação que se pode extrair de um corpo social constantemente invadido por discursos distorcidos e dotados de dramatização e alto teor de pânico, como se observa na afirmação de Silva Sánchez (2002, p. 33): “[...] nossa sociedade pode ser melhor definida como a sociedade da “insegurança sentida” (ou como a sociedade do medo)”.

Todavia, a legitimidade estará presente quando a construção do tipo penal e, principalmente, sua sanção, observar os princípios constitucionais que norteiam a intervenção punitiva, mormente aqueles afetos à preservação dos direitos e garantias individuais, cuja expressão maior exsurge do respeito à dignidade da pessoa humana.

O questionamento, inicialmente, foca-se no discurso de legitimação do poder de punir, baseado na proteção dos bens jurídicos atingidos pelo ilícito penal.

Segundo tal raciocínio, apresenta-se a idéia de que a proteção de tais bens se daria através da proteção dos valores que os lastreiam, tendo como matéria-prima enfoques ético-sociais, o que recomendaria uma lógica através da qual tanto maior deve ser a punição quanto maior for o desrespeito a tais bens.

Contudo, a dinâmica da vida social tem levado o discurso da tutela de bens por parte do direito penal para um terreno de constantes inquietações, tendo em vista a ampliação dos conflitos urbanos e a própria violação de tais bens em decorrência desta ampliação.

As reflexões acerca do tema têm feito surgir construções racionais que demonstram existir, na realidade, não um bem

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008152

jurídico tutelado pelo poder punitivo do Estado, mas, em verdade, agredido pela ação concreta dos conflitos individuais existentes de forma real no cotidiano social.

Apesar de tal distinção aparentemente não representar grande registro, ela é de crucial importância para a construção de um raciocínio questionador quanto à legitimidade e adequação do poder de punir do Estado, mormente no Estado moderno.

Essa importância deriva da mudança de enfoque quanto à idéia de legitimação, propondo a redefinição dos paradigmas que compõem a equação do conflito defesa social versus respeito aos direitos e garantias individuais do infrator.

Quando posta a equação dessa forma, é óbvio, presume-se a preponderância da importância de um de seus termos, qual seja, a defesa social. No entanto, ao admitirmos que não há um bem jurídico tutelado pelo exercício do poder punitivo quando este exercício se materializa, mas sim um bem jurídico lesado por uma ação concreta e esta lesão legitima a manifestação expressa e real do poder punitivo do Estado, outra leitura deve ser feita.

Como bem acentua Zaffaroni (2003, p. 227):

[...] essa distinção é tão necessária quão perigosa é sua equiparação, porque a idéia de bem jurídico tutelado digere e neutraliza o efeito limitador da idéia de bem jurídico lesionado ou exposto a perigo; devido a essa alquimia, o princípio de que todo delito pressupõe lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico deságua no princípio de que todo bem jurídico demanda uma tutela, o que instiga à criminalização sem lacunas.

Percebe-se que, diante do constante aumento dos conflitos rotulados pelo sistema penal, a proteção aos bens jurídicos, reclamada pela intervenção do poder punitivo do Estado, tem-se revelado inócua, permanecendo tais valores fundamentais ético-sociais vulneráveis a afetações incapazes de serem coibidas através da intervenção do sistema penal, tanto do ponto de vista restaurador quanto preventivo.

A evidência de tal situação também é constatada na afirmação de Franco (1996, p. 10), quando considera que a proteção

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Consigne-se que essa ideologia simbólica, diante da estrutura social brasileira, tem angariado legiões de adeptos, principalmente entre aqueles de escolaridade mais baixa e de menor poder aquisitivo, conforme se infere de pesquisa recente intitulada A cabeça do brasileiro, coordenada por Alberto Carlos Almeida (2007), na qual 51% dos entrevistados, entre os analfabetos, apóiam a atitude policial de espancar os presos para que estes confessem os crimes, e 40% concorda que a polícia mate assaltantes e ladrões depois de prendê-los, percentual levemente reduzido para 44% e 35%, respectivamente, quando os entrevistados possuem até a quarta série do primeiro grau.

Esse quadro retrata a sensação que se pode extrair de um corpo social constantemente invadido por discursos distorcidos e dotados de dramatização e alto teor de pânico, como se observa na afirmação de Silva Sánchez (2002, p. 33): “[...] nossa sociedade pode ser melhor definida como a sociedade da “insegurança sentida” (ou como a sociedade do medo)”.

Todavia, a legitimidade estará presente quando a construção do tipo penal e, principalmente, sua sanção, observar os princípios constitucionais que norteiam a intervenção punitiva, mormente aqueles afetos à preservação dos direitos e garantias individuais, cuja expressão maior exsurge do respeito à dignidade da pessoa humana.

O questionamento, inicialmente, foca-se no discurso de legitimação do poder de punir, baseado na proteção dos bens jurídicos atingidos pelo ilícito penal.

Segundo tal raciocínio, apresenta-se a idéia de que a proteção de tais bens se daria através da proteção dos valores que os lastreiam, tendo como matéria-prima enfoques ético-sociais, o que recomendaria uma lógica através da qual tanto maior deve ser a punição quanto maior for o desrespeito a tais bens.

Contudo, a dinâmica da vida social tem levado o discurso da tutela de bens por parte do direito penal para um terreno de constantes inquietações, tendo em vista a ampliação dos conflitos urbanos e a própria violação de tais bens em decorrência desta ampliação.

As reflexões acerca do tema têm feito surgir construções racionais que demonstram existir, na realidade, não um bem

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jurídico tutelado pelo poder punitivo do Estado, mas, em verdade, agredido pela ação concreta dos conflitos individuais existentes de forma real no cotidiano social.

Apesar de tal distinção aparentemente não representar grande registro, ela é de crucial importância para a construção de um raciocínio questionador quanto à legitimidade e adequação do poder de punir do Estado, mormente no Estado moderno.

Essa importância deriva da mudança de enfoque quanto à idéia de legitimação, propondo a redefinição dos paradigmas que compõem a equação do conflito defesa social versus respeito aos direitos e garantias individuais do infrator.

Quando posta a equação dessa forma, é óbvio, presume-se a preponderância da importância de um de seus termos, qual seja, a defesa social. No entanto, ao admitirmos que não há um bem jurídico tutelado pelo exercício do poder punitivo quando este exercício se materializa, mas sim um bem jurídico lesado por uma ação concreta e esta lesão legitima a manifestação expressa e real do poder punitivo do Estado, outra leitura deve ser feita.

Como bem acentua Zaffaroni (2003, p. 227):

[...] essa distinção é tão necessária quão perigosa é sua equiparação, porque a idéia de bem jurídico tutelado digere e neutraliza o efeito limitador da idéia de bem jurídico lesionado ou exposto a perigo; devido a essa alquimia, o princípio de que todo delito pressupõe lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico deságua no princípio de que todo bem jurídico demanda uma tutela, o que instiga à criminalização sem lacunas.

Percebe-se que, diante do constante aumento dos conflitos rotulados pelo sistema penal, a proteção aos bens jurídicos, reclamada pela intervenção do poder punitivo do Estado, tem-se revelado inócua, permanecendo tais valores fundamentais ético-sociais vulneráveis a afetações incapazes de serem coibidas através da intervenção do sistema penal, tanto do ponto de vista restaurador quanto preventivo.

A evidência de tal situação também é constatada na afirmação de Franco (1996, p. 10), quando considera que a proteção

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penal dos bens jurídicos, invocada para justificar a intervenção punitiva do Estado, “[...] ingressa numa fase crepuscular”, passando o direito penal a prestar-se a papel meramente simbólico no processo de tranqüilização do cidadão e da opinião pública, tentando acalmar a sensação individual e coletiva de insegurança.

Essa realidade tem proporcionado uma reelaboração quanto ao conteúdo axiológico do conceito de bem jurídico a ser protegido pela intervenção penal, dita legítima.

Assinale-se que não é intenção deste estudo enveredar pela discussão do tema bem jurídico com todas as nuances que essa tarefa reclama. A referência aqui feita ao assunto circunscreve-se ao âmbito de interesse específico para a temática examinada.

Feita tal observação, retoma-se a questão, entendendo-se que a reestruturação do conceito de bem jurídico a ser protegido faz surgir a idéia de resguardo da segurança pública, segurança coletiva ou segurança urbana. Sendo invocada tal proteção como necessidade vital para a preservação de um equilíbrio no convívio social, a tal ponto de poder se contrapor à idéia de liberdade individual, quando, segundo matiz constitucional, a idéia de segurança só se perfaz contemplando a idéia de preservação de liberdade individual, esta última como direito fundamental que, possibilitada em todos seus níveis e instâncias, conflui para a realização do sentido de segurança esboçado no modelo de Estado de Direito.

Para compreender o conteúdo do conceito de bem jurídico que justifique sua proteção pelo sistema penal, mister atá-lo àquele considerado como fundamental para a convivência harmônica e pacífica de toda a sociedade. Portanto, em um Estado Democrático de Direito, tais bens jurídicos são aqueles de suporte constitucional, suficientes para tornar relativo o robusto e concreto significado atribuído aos princípios concernentes à liberdade e à dignidade da pessoa humana (COELHO, 2003).

O discurso de proteção de bens jurídicos para legitimar a intervenção do poder punitivo estatal, dessa feita colocando como primordial a idéia de segurança cidadã ou urbana, com a conotação clara de “defesa social”, notabiliza-se como ardil para facilitar a ampliação dos discursos repressivos, oportunistas e simbólicos que caracterizam Estados distintos dos democráticos.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008154

O próprio conceito de segurança pública, dada a amplitude que o tema ganhou no cotidiano coletivo, sofre forte intervenção anômala de estereótipos como crime organizado, criminalidade infanto-juvenil, etc., que acabam por deturpar a linguagem científica reclamada para definição de tão relevante questão.

Não há como se reduzir a complexidade dos conflitos sociais a uma visão maniqueísta em que o bem advém dos valores dominantes no meio social e o mal da atitude daqueles que, contrariando tais valores, passam à condição de inimigo a ser neutralizado.

Com esses ingredientes, tem-se formado um produto distorcido acerca do conceito de segurança pública, predominando uma identificação e análise deturpada ou seletiva dos componentes do problema, ignorando principalmente seus aspectos essenciais. Isso tem raiz no fato de a reserva de domínio de tal tema ser praticamente circunscrita ao sistema de justiça criminal, que acaba por unificar a idéia de segurança como segurança contra o crime e de política de segurança como política criminal (DIAS NETO, 2005).

Também ensina o citado autor (2005, p. 72) que não se pode tratar o tema da segurança pública em meio a questões outras que buscam o apelo junto ao corpo social, como de resto se percebe em momentos eleitorais ou dramáticos em que sucedem episódios isolados de criminalidade mais grave, devendo ser explorado sim “[...] o caráter interdisciplinar e pluriagencial da questão criminal”, objeto de enfoque de diversas instâncias do Estado, transcendendo os estreitos limites do sistema penal.

O Estado que não tem poder para proteger tampouco tem o direito de exigir obediência (ISENSEE, 1983). Porém, o conceito de segurança não se pode reduzir a depositário fiel da legitimação da intervenção repressiva do Estado.

Destarte, não pode restar ao sistema penal a missão de ser o principal instrumento utilizado pelo Estado de intervenção na solução de conflitos sociais que resultam das mais variadas e complexas relações humanas. O que se percebe é que, quanto mais o Estado lança mão do sistema penal, ampliando-o, menos se faz presente na promoção de suas finalidades, o que ocorreria com a

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penal dos bens jurídicos, invocada para justificar a intervenção punitiva do Estado, “[...] ingressa numa fase crepuscular”, passando o direito penal a prestar-se a papel meramente simbólico no processo de tranqüilização do cidadão e da opinião pública, tentando acalmar a sensação individual e coletiva de insegurança.

Essa realidade tem proporcionado uma reelaboração quanto ao conteúdo axiológico do conceito de bem jurídico a ser protegido pela intervenção penal, dita legítima.

Assinale-se que não é intenção deste estudo enveredar pela discussão do tema bem jurídico com todas as nuances que essa tarefa reclama. A referência aqui feita ao assunto circunscreve-se ao âmbito de interesse específico para a temática examinada.

Feita tal observação, retoma-se a questão, entendendo-se que a reestruturação do conceito de bem jurídico a ser protegido faz surgir a idéia de resguardo da segurança pública, segurança coletiva ou segurança urbana. Sendo invocada tal proteção como necessidade vital para a preservação de um equilíbrio no convívio social, a tal ponto de poder se contrapor à idéia de liberdade individual, quando, segundo matiz constitucional, a idéia de segurança só se perfaz contemplando a idéia de preservação de liberdade individual, esta última como direito fundamental que, possibilitada em todos seus níveis e instâncias, conflui para a realização do sentido de segurança esboçado no modelo de Estado de Direito.

Para compreender o conteúdo do conceito de bem jurídico que justifique sua proteção pelo sistema penal, mister atá-lo àquele considerado como fundamental para a convivência harmônica e pacífica de toda a sociedade. Portanto, em um Estado Democrático de Direito, tais bens jurídicos são aqueles de suporte constitucional, suficientes para tornar relativo o robusto e concreto significado atribuído aos princípios concernentes à liberdade e à dignidade da pessoa humana (COELHO, 2003).

O discurso de proteção de bens jurídicos para legitimar a intervenção do poder punitivo estatal, dessa feita colocando como primordial a idéia de segurança cidadã ou urbana, com a conotação clara de “defesa social”, notabiliza-se como ardil para facilitar a ampliação dos discursos repressivos, oportunistas e simbólicos que caracterizam Estados distintos dos democráticos.

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O próprio conceito de segurança pública, dada a amplitude que o tema ganhou no cotidiano coletivo, sofre forte intervenção anômala de estereótipos como crime organizado, criminalidade infanto-juvenil, etc., que acabam por deturpar a linguagem científica reclamada para definição de tão relevante questão.

Não há como se reduzir a complexidade dos conflitos sociais a uma visão maniqueísta em que o bem advém dos valores dominantes no meio social e o mal da atitude daqueles que, contrariando tais valores, passam à condição de inimigo a ser neutralizado.

Com esses ingredientes, tem-se formado um produto distorcido acerca do conceito de segurança pública, predominando uma identificação e análise deturpada ou seletiva dos componentes do problema, ignorando principalmente seus aspectos essenciais. Isso tem raiz no fato de a reserva de domínio de tal tema ser praticamente circunscrita ao sistema de justiça criminal, que acaba por unificar a idéia de segurança como segurança contra o crime e de política de segurança como política criminal (DIAS NETO, 2005).

Também ensina o citado autor (2005, p. 72) que não se pode tratar o tema da segurança pública em meio a questões outras que buscam o apelo junto ao corpo social, como de resto se percebe em momentos eleitorais ou dramáticos em que sucedem episódios isolados de criminalidade mais grave, devendo ser explorado sim “[...] o caráter interdisciplinar e pluriagencial da questão criminal”, objeto de enfoque de diversas instâncias do Estado, transcendendo os estreitos limites do sistema penal.

O Estado que não tem poder para proteger tampouco tem o direito de exigir obediência (ISENSEE, 1983). Porém, o conceito de segurança não se pode reduzir a depositário fiel da legitimação da intervenção repressiva do Estado.

Destarte, não pode restar ao sistema penal a missão de ser o principal instrumento utilizado pelo Estado de intervenção na solução de conflitos sociais que resultam das mais variadas e complexas relações humanas. O que se percebe é que, quanto mais o Estado lança mão do sistema penal, ampliando-o, menos se faz presente na promoção de suas finalidades, o que ocorreria com a

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expansão e não com a atrofia de políticas públicas pois, infelizmente, como observa Eduardo Galeano (1999, p. 95): “[...] Os problemas sociais reduziram-se a problemas policiais”.

A intervenção penal deve obedecer aos estreitos limites traçados pela posição valorativa tomada pela Constituição, em um Estado fincado sobre esse modelo. Essa valoração é necessariamente de cunho jurídico, traduzida em uma unidade de normas e princípios.

A Constituição deve expressar as prioridades para um convívio social harmônico, construídas a partir de valores éticos e políticos de uma sociedade. Como norma fundamental do Estado, repele a produção legislativa que despreze aspectos de cunho material e princípios fundamentais, optando por uma legalidade formal que atenda a interesses e privilégios setorizados.

Funciona a Constituição como locus onde estão depositados os valores fundamentais que servem de esteio para toda a formatação do sistema jurídico. Assim sendo, o sistema jurídico é resultante dos limites determinados pelos ditames constitucionais.

Sendo o sistema penal um sistema jurídico, portanto criado a partir da conformação dos valores esculpidos na Constituição, não pode existir de forma desenfreada, arbitrária e sem limites, submetendo-se, rigorosamente, ao regramento constitucional.

Sobre o tema é maestral a lição de Baratta (2000, p. 47):

O direito penal da Constituição vive hoje a mesma condição que o direito penal do iluminismo viveu em seu tempo: ele deve limitar e regular a pena, mas para que o direito penal da Constituição não tenha a mesma sorte do direito penal liberal, permanecendo em grande parte na mente de seus ideólogos, é necessário que reencontre sua dimensão política forte e autêntica. Isso somente será possível se a ele se incorporar uma política integral de proteção dos direitos fundamentais.

Embora a História registre que o Estado, em virtude de fatores político-econômicos, tenha assumido com exclusividade a tarefa de

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disciplinar as condutas proibidas com suas respectivas sanções e, principalmente, de impô-las exercendo o poder punitivo, é bem verdade, também, que esse mesmo Estado revelou-se incapaz de materializar suas pretensões quanto à proteção dos bens jurídicos, bem assim quanto aos fins da pena.

Na esteira do raciocínio constitucional, deve o Estado ser capaz de racionalizar o conjunto de bens jurídicos a merecer a proteção penal. Esta racionalização reclama a idéia de aptidão, pois somente aqueles bens jurídicos extraídos de pautas axiológicas constitucionais, materializando valores fundamentais para o corpo social, devem servir à tutela penal.

O conceito de bem jurídico, calcado em um valor da ordem social juridicamente protegido, remete à construção do tipo penal ao modelo valorativo, permitindo a alteração da sua significação para o conteúdo de uma mera descrição legal, portanto, distinto de sua natureza. Torna-se somente fruto de uma abstrata construção jurídica, se divorciado dos valores extraídos do corpo social a que se destina.

Essa ressignificação de conceito possibilitou a eliminação do aspecto material da idéia de bem jurídico. Sendo uma construção valorativa, pode tornar-se o habitat de qualquer conteúdo ideológico.

O desenho que se perfez permite um risco incalculável para o sistema jurídico penal calcado na proteção ao bem jurídico, pois possibilita a perda da função crítica e limitadora da atividade criminalizadora do Estado, pois, sendo mero recipiente, pode conter as mais diversas formas de construção conceitual, ainda que divorciada da essência de valores ético-sociais.

A noção do bem jurídico importa como fundamento para que o subsistema jurídico, através do direito penal, possa conter ações ou atos nocivos contra o sistema social. Assim, os bens jurídicos têm a função de delimitar o caráter de danosidade das ações humanas para definir o objeto da proteção penal (SUXBERGER, 2006).

Diversas são as teorias que buscam uma melhor definição do conceito de bem jurídico. As de cunho iluminista buscam fundamentá-lo nos direitos inatos do indivíduo. As de concepção sociológica baseiam-se na realidade social. Porém, nenhuma delas

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expansão e não com a atrofia de políticas públicas pois, infelizmente, como observa Eduardo Galeano (1999, p. 95): “[...] Os problemas sociais reduziram-se a problemas policiais”.

A intervenção penal deve obedecer aos estreitos limites traçados pela posição valorativa tomada pela Constituição, em um Estado fincado sobre esse modelo. Essa valoração é necessariamente de cunho jurídico, traduzida em uma unidade de normas e princípios.

A Constituição deve expressar as prioridades para um convívio social harmônico, construídas a partir de valores éticos e políticos de uma sociedade. Como norma fundamental do Estado, repele a produção legislativa que despreze aspectos de cunho material e princípios fundamentais, optando por uma legalidade formal que atenda a interesses e privilégios setorizados.

Funciona a Constituição como locus onde estão depositados os valores fundamentais que servem de esteio para toda a formatação do sistema jurídico. Assim sendo, o sistema jurídico é resultante dos limites determinados pelos ditames constitucionais.

Sendo o sistema penal um sistema jurídico, portanto criado a partir da conformação dos valores esculpidos na Constituição, não pode existir de forma desenfreada, arbitrária e sem limites, submetendo-se, rigorosamente, ao regramento constitucional.

Sobre o tema é maestral a lição de Baratta (2000, p. 47):

O direito penal da Constituição vive hoje a mesma condição que o direito penal do iluminismo viveu em seu tempo: ele deve limitar e regular a pena, mas para que o direito penal da Constituição não tenha a mesma sorte do direito penal liberal, permanecendo em grande parte na mente de seus ideólogos, é necessário que reencontre sua dimensão política forte e autêntica. Isso somente será possível se a ele se incorporar uma política integral de proteção dos direitos fundamentais.

Embora a História registre que o Estado, em virtude de fatores político-econômicos, tenha assumido com exclusividade a tarefa de

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disciplinar as condutas proibidas com suas respectivas sanções e, principalmente, de impô-las exercendo o poder punitivo, é bem verdade, também, que esse mesmo Estado revelou-se incapaz de materializar suas pretensões quanto à proteção dos bens jurídicos, bem assim quanto aos fins da pena.

Na esteira do raciocínio constitucional, deve o Estado ser capaz de racionalizar o conjunto de bens jurídicos a merecer a proteção penal. Esta racionalização reclama a idéia de aptidão, pois somente aqueles bens jurídicos extraídos de pautas axiológicas constitucionais, materializando valores fundamentais para o corpo social, devem servir à tutela penal.

O conceito de bem jurídico, calcado em um valor da ordem social juridicamente protegido, remete à construção do tipo penal ao modelo valorativo, permitindo a alteração da sua significação para o conteúdo de uma mera descrição legal, portanto, distinto de sua natureza. Torna-se somente fruto de uma abstrata construção jurídica, se divorciado dos valores extraídos do corpo social a que se destina.

Essa ressignificação de conceito possibilitou a eliminação do aspecto material da idéia de bem jurídico. Sendo uma construção valorativa, pode tornar-se o habitat de qualquer conteúdo ideológico.

O desenho que se perfez permite um risco incalculável para o sistema jurídico penal calcado na proteção ao bem jurídico, pois possibilita a perda da função crítica e limitadora da atividade criminalizadora do Estado, pois, sendo mero recipiente, pode conter as mais diversas formas de construção conceitual, ainda que divorciada da essência de valores ético-sociais.

A noção do bem jurídico importa como fundamento para que o subsistema jurídico, através do direito penal, possa conter ações ou atos nocivos contra o sistema social. Assim, os bens jurídicos têm a função de delimitar o caráter de danosidade das ações humanas para definir o objeto da proteção penal (SUXBERGER, 2006).

Diversas são as teorias que buscam uma melhor definição do conceito de bem jurídico. As de cunho iluminista buscam fundamentá-lo nos direitos inatos do indivíduo. As de concepção sociológica baseiam-se na realidade social. Porém, nenhuma delas

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atingiu resposta satisfatória, tendo surgido uma outra orientação denominada Teoria Constitucional do Bem Jurídico, segundo a qual deve a legislação penal pautar-se pelo conteúdo constitucional para definir os valores sociais que merecem o rótulo de bens jurídicos a serem tutelados pelo direto penal.

Segundo os parâmetros dessa teoria, a Constituição não só traça as diretrizes para a fixação do conteúdo do bem jurídico a ser protegido pelo direito penal, como, em relação ao direito penal, proclama o que deve ou não ser incriminado, retratando a Constituição os valores fundamentais existentes no corpo social (PRADO, 1997).

Assim, invocando a concepção de direito de defesa social como bem jurídico fundamental, busca o Estado utilizar tal conceito como prevalente em relação aos direitos individuais do infrator, quando, na verdade, o que se estabelece é um conflito entre o direito de punir do Estado versus os direitos e garantias individuais do infrator, tendo em vista que o conceito de segurança pública usado como principal componente do conceito de defesa social não pode excluir a idéia de respeito aos direitos e garantias fundamentais do infrator (PRADO, 2006).

Seguindo tal entendimento, em um Estado Democrático de Direito como o brasileiro a intervenção penal deve obedecer rigorosamente os ditames constitucionais para que possa ser considerada como legítima e adequada, o que jamais ocorrerá caso se pretenda fazê-la através de discurso distorcido, capcioso e simbólico.

Como exemplo desses distorcidos vetores, traz-se à colação o discurso que referendou a Lei 8.072/90 (Crimes Hediondos) que, liderando a política da lei e ordem, criou na sociedade a expectativa de redução da prática dos crimes nela contidos.

No entanto, não é o resultado que se extrai da pesquisa realizada pelo ILANUD, em 2005, intitulada “Eficácia da Lei dos Crimes Hediondos”, apresentada perante o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, em sua reunião ordinária, ocorrida em 13 de fevereiro de 2006.

A citada pesquisa tinha como objetivo verificar o impacto da Lei de Crimes Hediondos e sua eficácia na redução da

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criminalidade por meio do caráter intimidatório e exacerbação das penas, além de maior rigor do direito penal como um fim em si mesmo.

Após monitorar os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, entre os anos de 1984 a 2003, quanto à prática dos delitos de latrocínio, estupro, homicídio qualificado, tráfico ilícito de drogas, atentado violento ao pudor e extorsão mediante seqüestro, o trabalho constatou, em suas conclusões, que: (1) não há como relacionar positivamente a edição da Lei dos Crimes Hediondos ao comportamento subseqüente dos índices criminais; (2) não se verifica, na maioria dos crimes, redução dos índices após a edição da Lei, o que por si já indica sua inocuidade; (3) em regra, os crimes registrados estão acima ou acompanham a linha de projeção construída com dados anteriores à Lei; e (4) é possível afirmar que o endurecimento penal, novamente, não interferiu na criminalidade registrada, mas concorreu para o agravamento de um problema bastante sério – a superpopulação prisional.

Essas conclusões implicam na obrigação de se refletir sobre a forma adequada de intervenção penal em um Estado de Direito, pois, uma vez mais, invocando o pensamento de Eduardo Galeano (1999, p. 81), ressalta-se sua reflexão ao afirmar: “Num mundo que prefere a segurança à justiça, há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar da segurança”.

Por conseguinte, é preciso diferenciar-se o modelo de Estado social no qual a intervenção penal e, por conseqüência, o poder punitivo do Estado, se apresentam como legítimos, com a finalidade de proteção efetiva ao cidadão, desde que sejam feitos na medida exata da necessidade de um Estado Democrático de Direito no qual a concepção da intervenção penal, por determinação constitucional, deve respeitar outra série de limites. Isso ocorre através da previsão das garantias e de direitos fundamentais do indivíduo que traça para o Estado os parâmetros relativos ao quando e como proibir e punir (SUXBERGER, 2006).

Destarte, não se enxerga conflito entre direitos fundamentais para a equação defesa social versus garantias individuais do infrator, mas sim entre o poder de punir do Estado e o respeito aos direitos e garantias individuais do infrator. Isso, por sua vez, transmuta a base de raciocínio para a solução de tal

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atingiu resposta satisfatória, tendo surgido uma outra orientação denominada Teoria Constitucional do Bem Jurídico, segundo a qual deve a legislação penal pautar-se pelo conteúdo constitucional para definir os valores sociais que merecem o rótulo de bens jurídicos a serem tutelados pelo direto penal.

Segundo os parâmetros dessa teoria, a Constituição não só traça as diretrizes para a fixação do conteúdo do bem jurídico a ser protegido pelo direito penal, como, em relação ao direito penal, proclama o que deve ou não ser incriminado, retratando a Constituição os valores fundamentais existentes no corpo social (PRADO, 1997).

Assim, invocando a concepção de direito de defesa social como bem jurídico fundamental, busca o Estado utilizar tal conceito como prevalente em relação aos direitos individuais do infrator, quando, na verdade, o que se estabelece é um conflito entre o direito de punir do Estado versus os direitos e garantias individuais do infrator, tendo em vista que o conceito de segurança pública usado como principal componente do conceito de defesa social não pode excluir a idéia de respeito aos direitos e garantias fundamentais do infrator (PRADO, 2006).

Seguindo tal entendimento, em um Estado Democrático de Direito como o brasileiro a intervenção penal deve obedecer rigorosamente os ditames constitucionais para que possa ser considerada como legítima e adequada, o que jamais ocorrerá caso se pretenda fazê-la através de discurso distorcido, capcioso e simbólico.

Como exemplo desses distorcidos vetores, traz-se à colação o discurso que referendou a Lei 8.072/90 (Crimes Hediondos) que, liderando a política da lei e ordem, criou na sociedade a expectativa de redução da prática dos crimes nela contidos.

No entanto, não é o resultado que se extrai da pesquisa realizada pelo ILANUD, em 2005, intitulada “Eficácia da Lei dos Crimes Hediondos”, apresentada perante o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, em sua reunião ordinária, ocorrida em 13 de fevereiro de 2006.

A citada pesquisa tinha como objetivo verificar o impacto da Lei de Crimes Hediondos e sua eficácia na redução da

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criminalidade por meio do caráter intimidatório e exacerbação das penas, além de maior rigor do direito penal como um fim em si mesmo.

Após monitorar os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, entre os anos de 1984 a 2003, quanto à prática dos delitos de latrocínio, estupro, homicídio qualificado, tráfico ilícito de drogas, atentado violento ao pudor e extorsão mediante seqüestro, o trabalho constatou, em suas conclusões, que: (1) não há como relacionar positivamente a edição da Lei dos Crimes Hediondos ao comportamento subseqüente dos índices criminais; (2) não se verifica, na maioria dos crimes, redução dos índices após a edição da Lei, o que por si já indica sua inocuidade; (3) em regra, os crimes registrados estão acima ou acompanham a linha de projeção construída com dados anteriores à Lei; e (4) é possível afirmar que o endurecimento penal, novamente, não interferiu na criminalidade registrada, mas concorreu para o agravamento de um problema bastante sério – a superpopulação prisional.

Essas conclusões implicam na obrigação de se refletir sobre a forma adequada de intervenção penal em um Estado de Direito, pois, uma vez mais, invocando o pensamento de Eduardo Galeano (1999, p. 81), ressalta-se sua reflexão ao afirmar: “Num mundo que prefere a segurança à justiça, há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar da segurança”.

Por conseguinte, é preciso diferenciar-se o modelo de Estado social no qual a intervenção penal e, por conseqüência, o poder punitivo do Estado, se apresentam como legítimos, com a finalidade de proteção efetiva ao cidadão, desde que sejam feitos na medida exata da necessidade de um Estado Democrático de Direito no qual a concepção da intervenção penal, por determinação constitucional, deve respeitar outra série de limites. Isso ocorre através da previsão das garantias e de direitos fundamentais do indivíduo que traça para o Estado os parâmetros relativos ao quando e como proibir e punir (SUXBERGER, 2006).

Destarte, não se enxerga conflito entre direitos fundamentais para a equação defesa social versus garantias individuais do infrator, mas sim entre o poder de punir do Estado e o respeito aos direitos e garantias individuais do infrator. Isso, por sua vez, transmuta a base de raciocínio para a solução de tal

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impasse, tendo em vista que, diante dessa redefinição, a preponderância, em um Estado fundado sob o respeito à dignidade da pessoa humana, reside sobre a preservação dos direitos e garantias individuais como limite intransponível ao poder de punir do Estado.

Por óbvio, a realização dos objetivos traçados pela Constituição Federal Brasileira, em seu artigo 3º, como fundamentais à República Federativa do Brasil, ou seja, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a promoção do bem de todos sem quaisquer formas de discriminação e a redução das desigualdades sociais, jamais serão alcançados sem a idéia de defesa social que contemple a liberdade individual e os demais direitos indisponíveis do cidadão.

O Estado Democrático de Direito tem sua definição calcada de maneira absoluta na idéia de observância e patrocínio dos direitos fundamentais, sendo toda a atuação da sua estrutura política e administrativa regida por essa vertente. Por via de conseqüência, não há como se falar em intervenção legítima dos poderes estatais (Legislativo, Executivo e Judiciário) que se paute no poder punitivo do Estado, mas sim em um discurso de contenção e encolhimento desse poder, ante a ampliação constante da efetivação dos direitos fundamentais do indivíduo.

Importa ressaltar que o ordenamento constitucional brasileiro disciplina como punir, tendo o legislador constitucional abdicado da explicitação do por que punir. Isso revela uma mudança de paradigma quanto aos discursos de justificação punitiva historicamente encontrados no ordenamento jurídico brasileiro.

Depreende-se de tal abstenção a implícita limitação às causas de justificação para imposição da pena, tratando tão-somente a Constituição dos meios para limitar o impacto invasivo suportado pelo condenado, em face da ação do Estado (CARVALHO, 2005).

Isso significa que, no modelo de Estado Democrático de Direito adotado pelo Brasil, a idéia central da missão do sistema penal é a de funcionar como escudo protetor do poder punitivo do Estado e instrumento de segurança do cidadão. O problema é exatamente a distância entre este objetivo a ser alcançado e a

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realidade, que se tem pautado em uma produção legislativa penal inflacionária e distorcida, divorciada dos princípios constitucionais.

O desafio que se vislumbra é a materialização de um sistema penal que se afaste do distorcido discurso da contraposição de dois interesses tidos como necessários e legítimos, quais sejam, a aplicação da lei penal e a proteção das garantias individuais, para compreender a integração existente entre ambos, através da preponderância dos objetivos de um Estado de direito quanto ao controle do poder punitivo.

Esse caminho deve orientar-se, inicialmente, por uma reordenação da idéia de defesa social calcada pura e simplesmente na noção de segurança pública. A defesa social, na verdade, compreende a efetivação de diversas obrigações do Estado, tanto no plano preventivo extrapenal quanto no preventivo penal.

O realinhamento desse raciocínio implica o desfazimento da idéia de que segurança pública e defesa social são a mesma coisa, tendo em vista a notória abrangência do conceito de defesa social que absorve, como um dos seus componentes, a segurança pública.

Revista a questão relativa a como se enxerga o conflito entre defesa social e preservação das garantias fundamentais, necessário é reanalisar, também, como se comporta essa nova definição ante a organização sistêmica do ordenamento jurídico constitucional brasileiro.

Sendo o confronto não mais visto dessa forma, enxerga-se como sendo posto, de fato, entre o poder de punir do Estado e o respeito a direitos e garantias fundamentais. Esse novo layout implica considerações que possam tentar dirimi-lo.

O discurso da segurança pública tem levado seus adeptos a conferir larga margem para intervenção penal, em uma crença de que essa atitude é necessária para preservar interesses sociais violados de maneira progressiva por aqueles transgressores da ordem vigente, que, portanto, devem ser alvo do poder punitivo do Estado, com o fito de restauração desta ordem violada. Tendem a ser complacentes com a intervenção penal dilatada.

Um exemplo recente dessa forma de pensar trouxe à baila a discussão da redução da maioridade penal, após a morte de uma

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impasse, tendo em vista que, diante dessa redefinição, a preponderância, em um Estado fundado sob o respeito à dignidade da pessoa humana, reside sobre a preservação dos direitos e garantias individuais como limite intransponível ao poder de punir do Estado.

Por óbvio, a realização dos objetivos traçados pela Constituição Federal Brasileira, em seu artigo 3º, como fundamentais à República Federativa do Brasil, ou seja, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a promoção do bem de todos sem quaisquer formas de discriminação e a redução das desigualdades sociais, jamais serão alcançados sem a idéia de defesa social que contemple a liberdade individual e os demais direitos indisponíveis do cidadão.

O Estado Democrático de Direito tem sua definição calcada de maneira absoluta na idéia de observância e patrocínio dos direitos fundamentais, sendo toda a atuação da sua estrutura política e administrativa regida por essa vertente. Por via de conseqüência, não há como se falar em intervenção legítima dos poderes estatais (Legislativo, Executivo e Judiciário) que se paute no poder punitivo do Estado, mas sim em um discurso de contenção e encolhimento desse poder, ante a ampliação constante da efetivação dos direitos fundamentais do indivíduo.

Importa ressaltar que o ordenamento constitucional brasileiro disciplina como punir, tendo o legislador constitucional abdicado da explicitação do por que punir. Isso revela uma mudança de paradigma quanto aos discursos de justificação punitiva historicamente encontrados no ordenamento jurídico brasileiro.

Depreende-se de tal abstenção a implícita limitação às causas de justificação para imposição da pena, tratando tão-somente a Constituição dos meios para limitar o impacto invasivo suportado pelo condenado, em face da ação do Estado (CARVALHO, 2005).

Isso significa que, no modelo de Estado Democrático de Direito adotado pelo Brasil, a idéia central da missão do sistema penal é a de funcionar como escudo protetor do poder punitivo do Estado e instrumento de segurança do cidadão. O problema é exatamente a distância entre este objetivo a ser alcançado e a

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realidade, que se tem pautado em uma produção legislativa penal inflacionária e distorcida, divorciada dos princípios constitucionais.

O desafio que se vislumbra é a materialização de um sistema penal que se afaste do distorcido discurso da contraposição de dois interesses tidos como necessários e legítimos, quais sejam, a aplicação da lei penal e a proteção das garantias individuais, para compreender a integração existente entre ambos, através da preponderância dos objetivos de um Estado de direito quanto ao controle do poder punitivo.

Esse caminho deve orientar-se, inicialmente, por uma reordenação da idéia de defesa social calcada pura e simplesmente na noção de segurança pública. A defesa social, na verdade, compreende a efetivação de diversas obrigações do Estado, tanto no plano preventivo extrapenal quanto no preventivo penal.

O realinhamento desse raciocínio implica o desfazimento da idéia de que segurança pública e defesa social são a mesma coisa, tendo em vista a notória abrangência do conceito de defesa social que absorve, como um dos seus componentes, a segurança pública.

Revista a questão relativa a como se enxerga o conflito entre defesa social e preservação das garantias fundamentais, necessário é reanalisar, também, como se comporta essa nova definição ante a organização sistêmica do ordenamento jurídico constitucional brasileiro.

Sendo o confronto não mais visto dessa forma, enxerga-se como sendo posto, de fato, entre o poder de punir do Estado e o respeito a direitos e garantias fundamentais. Esse novo layout implica considerações que possam tentar dirimi-lo.

O discurso da segurança pública tem levado seus adeptos a conferir larga margem para intervenção penal, em uma crença de que essa atitude é necessária para preservar interesses sociais violados de maneira progressiva por aqueles transgressores da ordem vigente, que, portanto, devem ser alvo do poder punitivo do Estado, com o fito de restauração desta ordem violada. Tendem a ser complacentes com a intervenção penal dilatada.

Um exemplo recente dessa forma de pensar trouxe à baila a discussão da redução da maioridade penal, após a morte de uma

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criança, arrastada pelas ruas do Rio de Janeiro, durante um roubo de veículo.

O fato desencadeou o surgimento e a retomada de projetos de lei, no Congresso Nacional, com as mais variadas propostas, todos fincados no fundamento da grande quantidade de crimes praticados por menores.

Contudo, mais uma vez analisada a questão sob o ponto de vista científico e não calcado no fervor da emoção do momento, capitaneado por alguns segmentos políticos e da própria mídia, chega-se a outra espécie de conclusão.

Segundo dados da Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, do total de crimes praticados no Brasil, apenas 8,8% têm envolvimento de menores como autores ou partícipes, e deste percentual 73,8% são crimes contra o patrimônio, e somente 8,5% são crimes contra a vida.

Portanto, de acordo com os dados oficiais, menos de 1% dos crimes contra a vida é praticado com o envolvimento de menores em sua autoria, o que, por si só, desmoraliza o argumento que tem sido utilizado como um dos mais fortes para possibilitar a redução da maioridade penal.

Ainda nessa esteira, merecem registro os dados fornecidos pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça (SNDH-MJ) e pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), que demonstram a eficácia da utilização das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, para os praticantes de atos infracionais, que acusam uma “reincidência” em torno de apenas 7,5%, ou seja, em 92,5% dos casos não há o retorno do adolescente à prática delituosa.

De outro lado, os que contestam a hipertrofia da intervenção penal buscam sua fundamentação na simbólica e ineficaz inserção do sistema penal repressivo que, longe de cumprir com aquilo a que se propõe, acaba por dramatizar, ainda mais, os conflitos sociais, além de minimizar ou até ignorar por completo a existência de direitos e garantias individuais fundamentais à conformação de um Estado de Direito.

Ambas as posições tendem a tensionar esse conflito, radicalizando os discursos, sem a perspectiva de um consenso que

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permita ao mesmo tempo a ação do poder punitivo do Estado e a observância dos direitos e garantias fundamentais.

Posta a questão sob o foco do princípio da ponderação ou balanceamento, raciocínio desenvolvido com vistas à solução de impasses entre direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, oriundo do princípio da proporcionalidade, observa-se que surge perspectiva de melhor deslinde.

Na lição de Canotilho (1999, p. 1.162), “[...] a ponderação visa elaborar critérios de ordenação para, em face dos dados normativos e factuais, obter a solução justa para o conflito de bens”. Portanto, não se verifica através desse método um significado de cunho normativo quanto às normas em conflito, mas se analisam os bens que de fato se encontram tensionados em um caso concreto.

A ponderação, assim, é a análise do conteúdo material dos bens em conflito para, no caso concreto, determinar a inclinação pelo mais representativo na solução do confronto.

Essa metodologia permite variação, dependendo da situação real quanto ao nível de importância atribuído aos bens em conflito, como uma espécie de hierarquia axiológica móvel entre os princípios conflitantes (CANOTILHO, 1999).

Embora seja possível permitir-se flexibilização quanto à valoração do conteúdo material do bem em conflito, diante do caso concreto é bem verdade que esta “hierarquia móvel” vincula-se aos ditames postos pela hierarquização existente no corpo da Constituição, de onde se extraem os princípios constitucionais.

Estabelecendo uma confrontação entre valores constitucionais, é sabido que, no sistema brasileiro, predomina como valor constitucional fundamental o respeito à dignidade da pessoa humana, norteador de todo o sistema constitucional vigente (PRADO, 2006).

Dessa forma, ao se utilizar a ponderação como método para a solução de conflitos entre bens constitucionalmente protegidos, desde que um deles seja o respeito à dignidade da pessoa humana, a inclinação pela predominância deste último será imperativa por força da observância da ordem constitucional posta.

Isso posto, extrai-se que o poder punitivo do Estado não

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criança, arrastada pelas ruas do Rio de Janeiro, durante um roubo de veículo.

O fato desencadeou o surgimento e a retomada de projetos de lei, no Congresso Nacional, com as mais variadas propostas, todos fincados no fundamento da grande quantidade de crimes praticados por menores.

Contudo, mais uma vez analisada a questão sob o ponto de vista científico e não calcado no fervor da emoção do momento, capitaneado por alguns segmentos políticos e da própria mídia, chega-se a outra espécie de conclusão.

Segundo dados da Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, do total de crimes praticados no Brasil, apenas 8,8% têm envolvimento de menores como autores ou partícipes, e deste percentual 73,8% são crimes contra o patrimônio, e somente 8,5% são crimes contra a vida.

Portanto, de acordo com os dados oficiais, menos de 1% dos crimes contra a vida é praticado com o envolvimento de menores em sua autoria, o que, por si só, desmoraliza o argumento que tem sido utilizado como um dos mais fortes para possibilitar a redução da maioridade penal.

Ainda nessa esteira, merecem registro os dados fornecidos pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça (SNDH-MJ) e pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), que demonstram a eficácia da utilização das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, para os praticantes de atos infracionais, que acusam uma “reincidência” em torno de apenas 7,5%, ou seja, em 92,5% dos casos não há o retorno do adolescente à prática delituosa.

De outro lado, os que contestam a hipertrofia da intervenção penal buscam sua fundamentação na simbólica e ineficaz inserção do sistema penal repressivo que, longe de cumprir com aquilo a que se propõe, acaba por dramatizar, ainda mais, os conflitos sociais, além de minimizar ou até ignorar por completo a existência de direitos e garantias individuais fundamentais à conformação de um Estado de Direito.

Ambas as posições tendem a tensionar esse conflito, radicalizando os discursos, sem a perspectiva de um consenso que

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permita ao mesmo tempo a ação do poder punitivo do Estado e a observância dos direitos e garantias fundamentais.

Posta a questão sob o foco do princípio da ponderação ou balanceamento, raciocínio desenvolvido com vistas à solução de impasses entre direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, oriundo do princípio da proporcionalidade, observa-se que surge perspectiva de melhor deslinde.

Na lição de Canotilho (1999, p. 1.162), “[...] a ponderação visa elaborar critérios de ordenação para, em face dos dados normativos e factuais, obter a solução justa para o conflito de bens”. Portanto, não se verifica através desse método um significado de cunho normativo quanto às normas em conflito, mas se analisam os bens que de fato se encontram tensionados em um caso concreto.

A ponderação, assim, é a análise do conteúdo material dos bens em conflito para, no caso concreto, determinar a inclinação pelo mais representativo na solução do confronto.

Essa metodologia permite variação, dependendo da situação real quanto ao nível de importância atribuído aos bens em conflito, como uma espécie de hierarquia axiológica móvel entre os princípios conflitantes (CANOTILHO, 1999).

Embora seja possível permitir-se flexibilização quanto à valoração do conteúdo material do bem em conflito, diante do caso concreto é bem verdade que esta “hierarquia móvel” vincula-se aos ditames postos pela hierarquização existente no corpo da Constituição, de onde se extraem os princípios constitucionais.

Estabelecendo uma confrontação entre valores constitucionais, é sabido que, no sistema brasileiro, predomina como valor constitucional fundamental o respeito à dignidade da pessoa humana, norteador de todo o sistema constitucional vigente (PRADO, 2006).

Dessa forma, ao se utilizar a ponderação como método para a solução de conflitos entre bens constitucionalmente protegidos, desde que um deles seja o respeito à dignidade da pessoa humana, a inclinação pela predominância deste último será imperativa por força da observância da ordem constitucional posta.

Isso posto, extrai-se que o poder punitivo do Estado não

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encontra força suficiente para uma colisão de interesses com os direitos e garantias individuais, em um Estado Democrático de Direito erigido sobre o fundamento da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal).

Assim, entende-se que o conflito existente entre o poder de punir do Estado e o respeito à dignidade da pessoa humana é de visível solução, qual seja, a ditada pela própria constituição em sua organização sistêmica.

Registre-se que a idéia de segurança pública, coletiva, cidadã ou urbana, ainda que travestida de defesa social, não tem conotação de importância suficiente para impor-se sobre a intransigente e imperativa proteção aos direitos fundamentais e garantias individuais do cidadão, lastreadas no respeito à dignidade da pessoa humana.

Portanto, o poder de punir do Estado, para ser considerado como legítimo, deve limitar-se às intervenções que não violem a ordem constitucional vigente, o que só ocorre quando propõe regramentos que observem a preservação e o respeito à dignidade da pessoa humana.

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encontra força suficiente para uma colisão de interesses com os direitos e garantias individuais, em um Estado Democrático de Direito erigido sobre o fundamento da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal).

Assim, entende-se que o conflito existente entre o poder de punir do Estado e o respeito à dignidade da pessoa humana é de visível solução, qual seja, a ditada pela própria constituição em sua organização sistêmica.

Registre-se que a idéia de segurança pública, coletiva, cidadã ou urbana, ainda que travestida de defesa social, não tem conotação de importância suficiente para impor-se sobre a intransigente e imperativa proteção aos direitos fundamentais e garantias individuais do cidadão, lastreadas no respeito à dignidade da pessoa humana.

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______. Estudos de Direito Penal. Trad. de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 171

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ZAFFARONI, R. E. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2003. v. 1.1

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008172

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS

PROCESSO Nº 200601515883

AUTORES: CLÉRIA ALVES MARTINS E OUTROS

RÉUS: AGNALDO ALEIXO DA SILVA E TERA GOMES DE MORAIS

NATUREZA: AÇÃO INDENIZATÓRIA POR ATO ILÍCITO

ORIGEM: COMARCA DE JOVIÂNIA

C. vista.

MMª Juíza EMENTA: Parecer do Ministério Público Estadual em ação indenizatória por ato ilícito - critérios práticos para fixação do quantum debeatur a título de ressarcimento de danos morais e patrimoniais. Incidência do Direito Intertemporal. Doutrina e Jurisprudência contemporâneas.

A senhora CLÉRIA ALVES MARTINS E SEUS FILHOS, através de seus nobres advogados, ajuizaram AÇÃO INDENIZATÓRIA em face dos senhores AGNALDO ALEIXO DA SILVA e TERA GOMES DE MORAIS pela prática de possível ato ilícito descrito na petição inicial.

PARECER EM AÇÃO INDENIZATÓRIA POR ATO ILÍCITO

*José César Naves de Lima Júnior

PEÇA FUNCIONAL

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 173

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008172

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS

PROCESSO Nº 200601515883

AUTORES: CLÉRIA ALVES MARTINS E OUTROS

RÉUS: AGNALDO ALEIXO DA SILVA E TERA GOMES DE MORAIS

NATUREZA: AÇÃO INDENIZATÓRIA POR ATO ILÍCITO

ORIGEM: COMARCA DE JOVIÂNIA

C. vista.

MMª Juíza EMENTA: Parecer do Ministério Público Estadual em ação indenizatória por ato ilícito - critérios práticos para fixação do quantum debeatur a título de ressarcimento de danos morais e patrimoniais. Incidência do Direito Intertemporal. Doutrina e Jurisprudência contemporâneas.

A senhora CLÉRIA ALVES MARTINS E SEUS FILHOS, através de seus nobres advogados, ajuizaram AÇÃO INDENIZATÓRIA em face dos senhores AGNALDO ALEIXO DA SILVA e TERA GOMES DE MORAIS pela prática de possível ato ilícito descrito na petição inicial.

PARECER EM AÇÃO INDENIZATÓRIA POR ATO ILÍCITO

*José César Naves de Lima Júnior

PEÇA FUNCIONAL

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 173

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Verbera a parte autora, esposa e filhos menores do finado Ailor Inácio de Godói, que este sofreu um acidente de veículo causado pela presença de semoventes na estrada. O condutor do caminhão, no dia 06 de abril de 1999, por volta das 15 horas e 20 minutos, à altura do km 30 da GO-040, trafegava no sentido Joviânia/Aloândia quando, ao passar por um declive naquela estrada de rodagem, foi surpreendido por vários animais na pista. Aquele automotor se chocou a diversas vacas e seu motorista perdeu o controle da direção, vindo a cair em desnível acentuado, fato que provocou sua morte. Segundo os autores, a condução de gado, de propriedade da parte adversa, não se deu em conformidade com as exigências do Código de Trânsito Brasileiro, ante a falta de sinalização e mantença das reses na lateral da pista, denotando-se culpa.

Ao final, rogam pela condenação dos réus ao pagamento de 100 (cem) salários mínimos, à título de danos patrimoniais e morais, além do equivalente a R$ 537.000,00 (quinhentos e trinta e sete mil reais) de lucros cessantes, em pensão mensal, estimando-se uma sobre-vida do de cujus em 65 anos de idade. Documentos (FLS. 14/101).

Devidamente citados (FLS. 104 – verso), os réus apresentaram atempadamente sua resposta, suscitando preliminarmente a inépcia da petição inicial sob argumento da incompatibilidade de pedidos, e no mérito atacaram a prova, valor da indenização, prescrição da ação, pugnando, por derradeiro, pela rejeição da exordial ou improcedência do pedido ante a inexistência de culpa.

A contestação foi impugnada, combatendo-se a inépcia pela natureza sucessiva dos pedidos. Aduziu-se também a inexistência de prescrição por força do disposto no artigo 198, inciso I, do Código Civil de 2002, ratificando-se, no mais, a argumentação inicial. Em seguida, frustrada a tentativa de conciliação, foi designada audiência instrutória, colhendo-se a prova testemunhal (FLS.141/142). Os sujeitos processuais ofertaram suas últimas alegações no processo sob a forma de memoriais.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008174

Relatados,

OPINO: Da Inépcia da Petição Inicial. É possível a cumulação de pedidos quando forem compatíveis entre si e também com o procedimento adotado, e isso acontece quando as pretensões não se auto-repelirem. O ressarcimento a danos morais e patrimoniais advindos do mesmo acontecimento são cumulável, sendo descabida a posição de que aquele seria englobado por este, dada a natureza distinta das lesões. Portanto, estão em perfeita harmonia tratando-se de espécies do mesmo gênero – Dano, além de sujeição a idêntico rito processual. (CPC, inciso I, §2º, do art. 292). Outrossim, sem delongas, manifesto pela rejeição desta preliminar. SÚMULA 37 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”.

A cumulação de pedidos é possível tanto no processo de conhecimento (art. 292), como no de execução (art. 573) e no cautelar, bem como em qualquer procedimento, em regra, obedecidos os requisitos legais. [...] A cumulação de pedidos exige como primeiro requisito a compatibilidade de ambos, e esta compatibilidade decorre simplesmente do fato de não se auto-repelirem, isto é, a compatibilidade se dá quando não há

1incompatibilidade.

Melhor sorte não assiste a prescrição alegada. Conquanto o novo Código Civil pátrio, em seu artigo 206, inc. V, tenha fixado o prazo de 03 (três) anos para ajuizamento dessa espécie de ação, o fato ocorreu no dia 06 de abril de 1999, sob a égide do estatuto de 1916, o qual não possuía em seu bojo inciso correspondente. Dessa forma, sem prejuízo do disposto nos arts. 169, inc. I, desse código, e 198, inc. I, do CC de 2002, tratando-se de ação que busca a tutela de direito pessoal decorrente da Lei, bem como da incidência de eventual ato ilícito – fonte de obrigações, está sujeita a prescrição vintenária

1 QUEIROZ, A. F. Direito Processual Civil. Teoria geral do processo. Processo de conhecimento. Recursos. 7. ed. Goiânia: IPEC, 2003. p. 312.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 175

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Verbera a parte autora, esposa e filhos menores do finado Ailor Inácio de Godói, que este sofreu um acidente de veículo causado pela presença de semoventes na estrada. O condutor do caminhão, no dia 06 de abril de 1999, por volta das 15 horas e 20 minutos, à altura do km 30 da GO-040, trafegava no sentido Joviânia/Aloândia quando, ao passar por um declive naquela estrada de rodagem, foi surpreendido por vários animais na pista. Aquele automotor se chocou a diversas vacas e seu motorista perdeu o controle da direção, vindo a cair em desnível acentuado, fato que provocou sua morte. Segundo os autores, a condução de gado, de propriedade da parte adversa, não se deu em conformidade com as exigências do Código de Trânsito Brasileiro, ante a falta de sinalização e mantença das reses na lateral da pista, denotando-se culpa.

Ao final, rogam pela condenação dos réus ao pagamento de 100 (cem) salários mínimos, à título de danos patrimoniais e morais, além do equivalente a R$ 537.000,00 (quinhentos e trinta e sete mil reais) de lucros cessantes, em pensão mensal, estimando-se uma sobre-vida do de cujus em 65 anos de idade. Documentos (FLS. 14/101).

Devidamente citados (FLS. 104 – verso), os réus apresentaram atempadamente sua resposta, suscitando preliminarmente a inépcia da petição inicial sob argumento da incompatibilidade de pedidos, e no mérito atacaram a prova, valor da indenização, prescrição da ação, pugnando, por derradeiro, pela rejeição da exordial ou improcedência do pedido ante a inexistência de culpa.

A contestação foi impugnada, combatendo-se a inépcia pela natureza sucessiva dos pedidos. Aduziu-se também a inexistência de prescrição por força do disposto no artigo 198, inciso I, do Código Civil de 2002, ratificando-se, no mais, a argumentação inicial. Em seguida, frustrada a tentativa de conciliação, foi designada audiência instrutória, colhendo-se a prova testemunhal (FLS.141/142). Os sujeitos processuais ofertaram suas últimas alegações no processo sob a forma de memoriais.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008174

Relatados,

OPINO: Da Inépcia da Petição Inicial. É possível a cumulação de pedidos quando forem compatíveis entre si e também com o procedimento adotado, e isso acontece quando as pretensões não se auto-repelirem. O ressarcimento a danos morais e patrimoniais advindos do mesmo acontecimento são cumulável, sendo descabida a posição de que aquele seria englobado por este, dada a natureza distinta das lesões. Portanto, estão em perfeita harmonia tratando-se de espécies do mesmo gênero – Dano, além de sujeição a idêntico rito processual. (CPC, inciso I, §2º, do art. 292). Outrossim, sem delongas, manifesto pela rejeição desta preliminar. SÚMULA 37 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”.

A cumulação de pedidos é possível tanto no processo de conhecimento (art. 292), como no de execução (art. 573) e no cautelar, bem como em qualquer procedimento, em regra, obedecidos os requisitos legais. [...] A cumulação de pedidos exige como primeiro requisito a compatibilidade de ambos, e esta compatibilidade decorre simplesmente do fato de não se auto-repelirem, isto é, a compatibilidade se dá quando não há

1incompatibilidade.

Melhor sorte não assiste a prescrição alegada. Conquanto o novo Código Civil pátrio, em seu artigo 206, inc. V, tenha fixado o prazo de 03 (três) anos para ajuizamento dessa espécie de ação, o fato ocorreu no dia 06 de abril de 1999, sob a égide do estatuto de 1916, o qual não possuía em seu bojo inciso correspondente. Dessa forma, sem prejuízo do disposto nos arts. 169, inc. I, desse código, e 198, inc. I, do CC de 2002, tratando-se de ação que busca a tutela de direito pessoal decorrente da Lei, bem como da incidência de eventual ato ilícito – fonte de obrigações, está sujeita a prescrição vintenária

1 QUEIROZ, A. F. Direito Processual Civil. Teoria geral do processo. Processo de conhecimento. Recursos. 7. ed. Goiânia: IPEC, 2003. p. 312.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 175

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prevista no revogado artigo 177, do vetusto Código de 1916, por força do fascinante Direito Intertemporal, no caso, evidenciado na regra Tempus Regit Actum. Outrossim, esse argumento não merece prosperar.

Ultrapassada a preliminar e enfrentada a prescrição, passo a examinar o caso em tes t i lha e a ex i s tênc ia de RESPONSABILIDADE CIVIL.

Pois bem, é fato incontroverso que a pessoa de Ailor Inácio de Godói trafegava no sentido Joviânia/Aloândia e após uma colisão com animais na pista seu veículo veio a tombar em declive acentuado, causando-lhe a morte. Diante disso, presente a relação tripartite através de uma ação (condução de semoventes em rodovia), de um resultado lesivo (morte em acidente de veículo) e, por derradeiro, do nexo de causalidade (acidente de veículo com vítima fatal causado por animais na rodovia), restando-se apenas a verificação de culpa no sinistro, ponto controvertido da demanda.

Nesse particular, convém dar atenção à prova. Depreende-se da perícia realizada que as reses foram colhidas na pista de rolamento, na mão de direção da vítima, inexistindo sinalização quanto à presença de animais naquele local. Outro detalhe a salientar foi a ausência de elementos materiais indicativos de velocidade inadequada do caminhão no momento da batida, deduzindo-se, do exposto, segundo a parte conclusiva do laudo, inobservância das regras estabelecidas no art. 53, incisos II e III do Código de Trânsito, por parte dos réus, no desenvolvimento dessa atividade (FLS. 32/42). As declarações colhidas, tanto em sede de inquérito policial, como em juízo, corroboram com o resultado da prova técnica, concluindo-se, de maneira indubitável, pela condução negligente de boiada em via pública.

As testemunhas Leandro Henrique do Carmo e Eli Naves Fernandes atestaram a presença de animais mortos na pista, atropelados pelo caminhão da vítima, demonstrando que os semoventes estavam na estrada e não, como deveria ser, em

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008176

acostamento ou parte lateral (FLS. 49/50). Além disso, segundo os próprios vaqueiros e condutores do gado, ratificando essa informação, disseram que aproximadamente de 12 (doze) à 15 (quinze) vacas foram mortas na estrada, comprovando sua presença em local inadequado.

Ademais, quem presenciou o fato não avistou nenhuma sinalização de alerta ou de advertência aos transeuntes.

JAVAIR ANTÔNIO DE SOUZA: “... que na tarde de 06.04.99, por volta das 16:00 horas, deixou a cidade de Aloândia com destino a Fazenda São João, neste município, e nas proximidades da cidade, em um declive acentuado da GO-040, antes de um riacho notou uma boiada que ia no mesmo sentido do depoente e que o mesmo não notou a presença dos bandeirinhas no meio das pessoas que tocavam o gado” (FL. 63).

FRANCISCO DE ASSIS DA COSTA: “... deixou a cidade de Aloândia com destino a esta cidade, e na GO-040, nas proximidades de Aloândia em declive acentuado, já próximo a uma ponte, notou que uma boiada transitava pela rodovia e que não era grande o número de funcionários ou peões que tangia o gado; Que o depoente pode afirmar que não notou a presença de bandeirinhas na frente do gado [...] Que o depoente ao cruzar com AILOR na referida estrada, pode notar que o mesmo não desenvolvia alta velocidade” (FL. 64).

Sumariando, a presença de gado na pista de rolamento, abaixo de um declive acentuado, sem qualquer sinalização, com toda certeza impossibilitou ao caminhoneiro, com seu veículo carregado de arroz, evitar um choque de proporções fatais.

GILMAR P. DE OLIVEIRA: “... que antes da ponte existe uma lombada, sendo que o acidente ocorreu logo após essa lombada; que da ponte à lombada há uma distância de aproximadamente trezentos metros; que quando o motorista está no alto da lombada consegue enxergar a ponte adiante; que fica há cerca de trezentos metros; que não sabe dizer o horário em que o acidente ocorreu; que se um caminhão estiver carregado e a uma velocidade

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 177

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prevista no revogado artigo 177, do vetusto Código de 1916, por força do fascinante Direito Intertemporal, no caso, evidenciado na regra Tempus Regit Actum. Outrossim, esse argumento não merece prosperar.

Ultrapassada a preliminar e enfrentada a prescrição, passo a examinar o caso em tes t i lha e a ex i s tênc ia de RESPONSABILIDADE CIVIL.

Pois bem, é fato incontroverso que a pessoa de Ailor Inácio de Godói trafegava no sentido Joviânia/Aloândia e após uma colisão com animais na pista seu veículo veio a tombar em declive acentuado, causando-lhe a morte. Diante disso, presente a relação tripartite através de uma ação (condução de semoventes em rodovia), de um resultado lesivo (morte em acidente de veículo) e, por derradeiro, do nexo de causalidade (acidente de veículo com vítima fatal causado por animais na rodovia), restando-se apenas a verificação de culpa no sinistro, ponto controvertido da demanda.

Nesse particular, convém dar atenção à prova. Depreende-se da perícia realizada que as reses foram colhidas na pista de rolamento, na mão de direção da vítima, inexistindo sinalização quanto à presença de animais naquele local. Outro detalhe a salientar foi a ausência de elementos materiais indicativos de velocidade inadequada do caminhão no momento da batida, deduzindo-se, do exposto, segundo a parte conclusiva do laudo, inobservância das regras estabelecidas no art. 53, incisos II e III do Código de Trânsito, por parte dos réus, no desenvolvimento dessa atividade (FLS. 32/42). As declarações colhidas, tanto em sede de inquérito policial, como em juízo, corroboram com o resultado da prova técnica, concluindo-se, de maneira indubitável, pela condução negligente de boiada em via pública.

As testemunhas Leandro Henrique do Carmo e Eli Naves Fernandes atestaram a presença de animais mortos na pista, atropelados pelo caminhão da vítima, demonstrando que os semoventes estavam na estrada e não, como deveria ser, em

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008176

acostamento ou parte lateral (FLS. 49/50). Além disso, segundo os próprios vaqueiros e condutores do gado, ratificando essa informação, disseram que aproximadamente de 12 (doze) à 15 (quinze) vacas foram mortas na estrada, comprovando sua presença em local inadequado.

Ademais, quem presenciou o fato não avistou nenhuma sinalização de alerta ou de advertência aos transeuntes.

JAVAIR ANTÔNIO DE SOUZA: “... que na tarde de 06.04.99, por volta das 16:00 horas, deixou a cidade de Aloândia com destino a Fazenda São João, neste município, e nas proximidades da cidade, em um declive acentuado da GO-040, antes de um riacho notou uma boiada que ia no mesmo sentido do depoente e que o mesmo não notou a presença dos bandeirinhas no meio das pessoas que tocavam o gado” (FL. 63).

FRANCISCO DE ASSIS DA COSTA: “... deixou a cidade de Aloândia com destino a esta cidade, e na GO-040, nas proximidades de Aloândia em declive acentuado, já próximo a uma ponte, notou que uma boiada transitava pela rodovia e que não era grande o número de funcionários ou peões que tangia o gado; Que o depoente pode afirmar que não notou a presença de bandeirinhas na frente do gado [...] Que o depoente ao cruzar com AILOR na referida estrada, pode notar que o mesmo não desenvolvia alta velocidade” (FL. 64).

Sumariando, a presença de gado na pista de rolamento, abaixo de um declive acentuado, sem qualquer sinalização, com toda certeza impossibilitou ao caminhoneiro, com seu veículo carregado de arroz, evitar um choque de proporções fatais.

GILMAR P. DE OLIVEIRA: “... que antes da ponte existe uma lombada, sendo que o acidente ocorreu logo após essa lombada; que da ponte à lombada há uma distância de aproximadamente trezentos metros; que quando o motorista está no alto da lombada consegue enxergar a ponte adiante; que fica há cerca de trezentos metros; que não sabe dizer o horário em que o acidente ocorreu; que se um caminhão estiver carregado e a uma velocidade

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 177

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de aproximadamente oitenta quilômetros; que consegue apenas reduzir a velocidade [...]” (FL. 141).

Nesse contexto, vale ainda salientar que a responsabilidade do detentor de animal é presumida, cabendo a ele o ônus da prova, sob pena de se ver obrigado a ressarcir os danos ocorridos. Malgrado a culpabilidade apurada, os requeridos não produziram elementos que pudessem afastar sua obrigação de ressarcimento, art. 159 do CC/1916, atual art. 186 do estatuto vigente.

[...] o animal e a coisa não podem praticar fato, pois se tornam equivalentes a mero instrumento do dano causado em desfavor da vítima ou de seu patrimônio. A responsabilidade pelo fato de animal ou de coisa decorre da guarda que o agente possui. Torna-se responsável pelo fato de coisa ou de animal o sujeito que tinha, à época do evento danoso, a guarda intelectual do bem. [...] Como a responsabilidade do detentor do animal é presumida, cabe a ele a prova em sentido contrário, para que não seja obrigado a ressarcir o dano

2porventura ocorrido.

Sendo eles os responsáveis, resta-se discutir o valor da reparação. Com advento da Lei n. 11.232/2005, o legislador determinou, para litígios desta ordem, que o quantum debeatur será fixado de imediato pelo Juiz de Direito, através de seu prudente arbítrio, sendo-lhe vedado proferir sentença ilíquida, arts. 275, inc. II, alínea “d”, c.c 475 – A, § 3º, do nosso Código de Formas. Destarte, atento ao princípio da imediatidade que norteia a eficácia da norma processual no tempo, examino, primeiro, os DANOS MORAIS.

Dada sua essência, como é cediço, dispensa provas. O valor de seu ressarcimento, observando-se os princípios da

2 LISBOA, R. S. Manual elementar de Direito Civil. v. 2. Obrigações e responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p: 230.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008178

proporcionalidade e da razoabilidade, bem como de aspectos relacionados a gravidade objetiva do dano, da personalidade da vítima (situação familiar, social, reputação e etc.), da gravidade da falta, da personalidade dos autores do ato ilícito, longe de ser extraído por simples cálculo aritmético, deve ser estabelecido em patamar que não constitua enriquecimento ilícito proveniente do infortúnio, mas também não pode ser inexpressivo a ponto de se manter a impunidade dos autores. O sofrimento humano é imensurável, por isso apresenta-se como uma compensação para o mal sofrido, e reprimenda contra atos antijurídicos. A morte prematura da vítima em trágico acidente, aos 33 anos, no exercício de sua profissão, homem trabalhador, pai e esposo, sem notícia nos autos que desabone sua memória, privou de seu convívio filhos e familiares. Os réus, por sua vez, comerciante e produtor rural, possuidores de ocupação lícita definida, contando com advogados constituídos, de tradicional escritório da região, portanto, ao que parece de situação financeira estável, a míngua de outros elementos, podem e devem pagar uma verba compensatória.

Por tudo isso, opino pela fixação em até 24 (vinte e quatro) salários mínimos, o equivalente à R$ 8.400,00 (oito mil e quatrocentos reais), sendo 12 (doze) salários destinados à viúva, ou seja, R$ 4.200,00 (quatro mil e duzentos reais), e o remanescente para os filhos menores, dividido em partes iguais, o valor da condenação a título de ressarcimento dos danos morais.

No tocante aos DANOS PATRIMONIAIS (danos emergentes e lucros cessantes), não pode haver responsabilidade sem dano, e acaso presente, é preciso conhecer a sua extensão e proporção. Em regra, o ato danoso incide sobre o patrimônio atual, cuja diminuição ele proporciona. No entanto, esses efeitos podem se projetar para o futuro, impedindo ou reduzindo o benefício patrimonial a que faria jus a vítima. Em sintonia com todos estes aspectos, aliada a dependência econômica não contestada, encontra-se no feito às despesas de funeral (fls. 97), outros gastos, e declarações colhidas em juízo, apontando-se indícios de rendimentos advindos de fretes, em valores variáveis, na média de 02 (dois) a 05 (cinco) salários mínimos mensais, de um provedor

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 179

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de aproximadamente oitenta quilômetros; que consegue apenas reduzir a velocidade [...]” (FL. 141).

Nesse contexto, vale ainda salientar que a responsabilidade do detentor de animal é presumida, cabendo a ele o ônus da prova, sob pena de se ver obrigado a ressarcir os danos ocorridos. Malgrado a culpabilidade apurada, os requeridos não produziram elementos que pudessem afastar sua obrigação de ressarcimento, art. 159 do CC/1916, atual art. 186 do estatuto vigente.

[...] o animal e a coisa não podem praticar fato, pois se tornam equivalentes a mero instrumento do dano causado em desfavor da vítima ou de seu patrimônio. A responsabilidade pelo fato de animal ou de coisa decorre da guarda que o agente possui. Torna-se responsável pelo fato de coisa ou de animal o sujeito que tinha, à época do evento danoso, a guarda intelectual do bem. [...] Como a responsabilidade do detentor do animal é presumida, cabe a ele a prova em sentido contrário, para que não seja obrigado a ressarcir o dano

2porventura ocorrido.

Sendo eles os responsáveis, resta-se discutir o valor da reparação. Com advento da Lei n. 11.232/2005, o legislador determinou, para litígios desta ordem, que o quantum debeatur será fixado de imediato pelo Juiz de Direito, através de seu prudente arbítrio, sendo-lhe vedado proferir sentença ilíquida, arts. 275, inc. II, alínea “d”, c.c 475 – A, § 3º, do nosso Código de Formas. Destarte, atento ao princípio da imediatidade que norteia a eficácia da norma processual no tempo, examino, primeiro, os DANOS MORAIS.

Dada sua essência, como é cediço, dispensa provas. O valor de seu ressarcimento, observando-se os princípios da

2 LISBOA, R. S. Manual elementar de Direito Civil. v. 2. Obrigações e responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p: 230.

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proporcionalidade e da razoabilidade, bem como de aspectos relacionados a gravidade objetiva do dano, da personalidade da vítima (situação familiar, social, reputação e etc.), da gravidade da falta, da personalidade dos autores do ato ilícito, longe de ser extraído por simples cálculo aritmético, deve ser estabelecido em patamar que não constitua enriquecimento ilícito proveniente do infortúnio, mas também não pode ser inexpressivo a ponto de se manter a impunidade dos autores. O sofrimento humano é imensurável, por isso apresenta-se como uma compensação para o mal sofrido, e reprimenda contra atos antijurídicos. A morte prematura da vítima em trágico acidente, aos 33 anos, no exercício de sua profissão, homem trabalhador, pai e esposo, sem notícia nos autos que desabone sua memória, privou de seu convívio filhos e familiares. Os réus, por sua vez, comerciante e produtor rural, possuidores de ocupação lícita definida, contando com advogados constituídos, de tradicional escritório da região, portanto, ao que parece de situação financeira estável, a míngua de outros elementos, podem e devem pagar uma verba compensatória.

Por tudo isso, opino pela fixação em até 24 (vinte e quatro) salários mínimos, o equivalente à R$ 8.400,00 (oito mil e quatrocentos reais), sendo 12 (doze) salários destinados à viúva, ou seja, R$ 4.200,00 (quatro mil e duzentos reais), e o remanescente para os filhos menores, dividido em partes iguais, o valor da condenação a título de ressarcimento dos danos morais.

No tocante aos DANOS PATRIMONIAIS (danos emergentes e lucros cessantes), não pode haver responsabilidade sem dano, e acaso presente, é preciso conhecer a sua extensão e proporção. Em regra, o ato danoso incide sobre o patrimônio atual, cuja diminuição ele proporciona. No entanto, esses efeitos podem se projetar para o futuro, impedindo ou reduzindo o benefício patrimonial a que faria jus a vítima. Em sintonia com todos estes aspectos, aliada a dependência econômica não contestada, encontra-se no feito às despesas de funeral (fls. 97), outros gastos, e declarações colhidas em juízo, apontando-se indícios de rendimentos advindos de fretes, em valores variáveis, na média de 02 (dois) a 05 (cinco) salários mínimos mensais, de um provedor

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falecido aos 33 (trinta e três) anos, com expectativa de vida, na esteia jurisprudencial, de até 65 (sessenta e cinco) anos. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: “Inclina-se em corrente majoritária a jurisprudência pelo cálculo da vida média do brasileiro em sessenta e cinco anos para o fim de reparação de dano do qual decorre o evento morte” (STJ, 3ª Turma, Relator: Cláudio dos Santos, DJ de 13/08/90, RSTJ 18/147).

Assim, manifesto pela condenação dos réus, a título de lucros cessantes, ao pagamento, por cada um deles, no valor equivalente à 2/3 (dois terços) do salário mínimo vigente, ou seja, de R$ 233, 33 (duzentos e trinta e três reais e trinta e três centavos) sob a forma de pensão mensal, em favor dos autores. A doutrina e jurisprudência contemporâneas, na ausência de comprovante de renda da vítima, firmou entendimento que a pensão, nessas circunstâncias, deve ser fixada no percentual de 2/3 (dois terços) do salário mínimo.

A viúva fará jus à pensão de 2/3 (dois terços) do salário mínimo até a data em que a vítima completaria 65 anos de idade ou até o instante em que aquela venha a contrair novas núpcias. Em relação aos filhos, o pensionamento estabelecido em 2/3 (dois terços) do salário mínimo, no percentual de 50% desse valor para cada um, é devido até completarem seus 25 anos de idade, pois a jurisprudência também firmou entendimento no sentido de ser este o limite temporal suficiente para que possam prover seu próprio sustento, sem auxílio dos pais ou responsável, após o que a pensão deverá passar a ser paga, na íntegra, à viúva.

No que diz respeito aos danos emergentes, a prova se limitou às despesas com funeral, dívidas deixadas pelo de cujus e eventuais gastos com a manutenção de veículo, restringindo-se a elas minha análise. O prejuízo oriundo do enterro (Documento de fls. 97) está provado, merecendo a devida reparação - R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais) pagos no dia 06 (seis) de abril de 1999. Entrementes, as dívidas deixadas pelo de cujus, a meu ver, não merecem ressarcimento, sob pena de enriquecimento ilícito. Não há provas de que o espólio pagou aqueles débitos, ou mesmo a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008180

parte autora (CC/2002, art. 1.792, com dispositivo similar no estatuto de 1916). Com a manutenção de veículo o raciocínio é o mesmo. Externando por outra forma a idéia, penso que não houve a comprovação de prejuízo, por prova documental, capaz de afastar qualquer dúvida razoável, consistindo, a peça de fl. 101, em mero orçamento.

Ex positis

Calcado ainda no art. 5º, incisos V e X, da Carta Política, OPINO pela PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO, condenando-se os réus a indenizarem os familiares da vítima na forma explicitada, em valores corrigidos monetariamente, com a incidência de juros de 0,5% ao mês, 6% ao ano, segundo o art. 1.062, do Código Civil de 1916, desde a data do fato até o dia 11.01.2003, e dali por diante, da maneira prevista no art. 406, do estatuto vigente, conforme previsto nas SÚMULAS DE N. 43 – “Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo” e DE N. 54 – “Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual”, do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, sem prejuízo das custas processuais e de honorários advocatícios, ônus da sucumbência.

Nesses Termos, é o PARECER.

Joviânia, 16 de outubro de 2006.

JOSÉ CÉSAR NAVES DE LIMA JÚNIORPROMOTOR DE JUSTIÇA

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 181

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falecido aos 33 (trinta e três) anos, com expectativa de vida, na esteia jurisprudencial, de até 65 (sessenta e cinco) anos. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: “Inclina-se em corrente majoritária a jurisprudência pelo cálculo da vida média do brasileiro em sessenta e cinco anos para o fim de reparação de dano do qual decorre o evento morte” (STJ, 3ª Turma, Relator: Cláudio dos Santos, DJ de 13/08/90, RSTJ 18/147).

Assim, manifesto pela condenação dos réus, a título de lucros cessantes, ao pagamento, por cada um deles, no valor equivalente à 2/3 (dois terços) do salário mínimo vigente, ou seja, de R$ 233, 33 (duzentos e trinta e três reais e trinta e três centavos) sob a forma de pensão mensal, em favor dos autores. A doutrina e jurisprudência contemporâneas, na ausência de comprovante de renda da vítima, firmou entendimento que a pensão, nessas circunstâncias, deve ser fixada no percentual de 2/3 (dois terços) do salário mínimo.

A viúva fará jus à pensão de 2/3 (dois terços) do salário mínimo até a data em que a vítima completaria 65 anos de idade ou até o instante em que aquela venha a contrair novas núpcias. Em relação aos filhos, o pensionamento estabelecido em 2/3 (dois terços) do salário mínimo, no percentual de 50% desse valor para cada um, é devido até completarem seus 25 anos de idade, pois a jurisprudência também firmou entendimento no sentido de ser este o limite temporal suficiente para que possam prover seu próprio sustento, sem auxílio dos pais ou responsável, após o que a pensão deverá passar a ser paga, na íntegra, à viúva.

No que diz respeito aos danos emergentes, a prova se limitou às despesas com funeral, dívidas deixadas pelo de cujus e eventuais gastos com a manutenção de veículo, restringindo-se a elas minha análise. O prejuízo oriundo do enterro (Documento de fls. 97) está provado, merecendo a devida reparação - R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais) pagos no dia 06 (seis) de abril de 1999. Entrementes, as dívidas deixadas pelo de cujus, a meu ver, não merecem ressarcimento, sob pena de enriquecimento ilícito. Não há provas de que o espólio pagou aqueles débitos, ou mesmo a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008180

parte autora (CC/2002, art. 1.792, com dispositivo similar no estatuto de 1916). Com a manutenção de veículo o raciocínio é o mesmo. Externando por outra forma a idéia, penso que não houve a comprovação de prejuízo, por prova documental, capaz de afastar qualquer dúvida razoável, consistindo, a peça de fl. 101, em mero orçamento.

Ex positis

Calcado ainda no art. 5º, incisos V e X, da Carta Política, OPINO pela PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO, condenando-se os réus a indenizarem os familiares da vítima na forma explicitada, em valores corrigidos monetariamente, com a incidência de juros de 0,5% ao mês, 6% ao ano, segundo o art. 1.062, do Código Civil de 1916, desde a data do fato até o dia 11.01.2003, e dali por diante, da maneira prevista no art. 406, do estatuto vigente, conforme previsto nas SÚMULAS DE N. 43 – “Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo” e DE N. 54 – “Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual”, do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, sem prejuízo das custas processuais e de honorários advocatícios, ônus da sucumbência.

Nesses Termos, é o PARECER.

Joviânia, 16 de outubro de 2006.

JOSÉ CÉSAR NAVES DE LIMA JÚNIORPROMOTOR DE JUSTIÇA

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008182

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DE FAZENDAS PÚBLICAS DA

COMARCA DE SÃO LUÍS DE MONTES BELOS - GO

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS, por intermédio do Promotor de Justiça titular da 2ª Promotoria de São Luís de Montes Belos, com atribuição na tutela do patrimônio público, amparado no art. 129, III, da Constituição Federal; no art. 25, IV, “b”, da Lei n. 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); no art. 46, VI, “b” da Lei Complementar Estadual n. 25/98 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Goiás); e na Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), vem perante Vossa Excelência propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICAcom pedido de antecipação de tutela

em face doMunicípio de São Luís de Montes Belos/GO, pessoa

jurídica de direito público interno, representado pela Prefeita Municipal, Exma. Sra. Marisa Assis de Oliveira Guimarães, com sede na Rua Rio da Prata, n. 662, Centro, nesta cidade;

e doBanco Itaú S/A, pessoa jurídica de direito privado,

inscrita no CNPJ/MF sob o n. 60.701.190/0001-04, com sede na Praça Alfredo Egydio de Souza Aranha, 100, Torre Itaúsa, São Paulo/SP, CEP 04344-902;

AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

Bruno Barra Gomes

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 183

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008182

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DE FAZENDAS PÚBLICAS DA

COMARCA DE SÃO LUÍS DE MONTES BELOS - GO

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS, por intermédio do Promotor de Justiça titular da 2ª Promotoria de São Luís de Montes Belos, com atribuição na tutela do patrimônio público, amparado no art. 129, III, da Constituição Federal; no art. 25, IV, “b”, da Lei n. 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); no art. 46, VI, “b” da Lei Complementar Estadual n. 25/98 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Goiás); e na Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), vem perante Vossa Excelência propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICAcom pedido de antecipação de tutela

em face doMunicípio de São Luís de Montes Belos/GO, pessoa

jurídica de direito público interno, representado pela Prefeita Municipal, Exma. Sra. Marisa Assis de Oliveira Guimarães, com sede na Rua Rio da Prata, n. 662, Centro, nesta cidade;

e doBanco Itaú S/A, pessoa jurídica de direito privado,

inscrita no CNPJ/MF sob o n. 60.701.190/0001-04, com sede na Praça Alfredo Egydio de Souza Aranha, 100, Torre Itaúsa, São Paulo/SP, CEP 04344-902;

AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

Bruno Barra Gomes

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 183

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pelas razões fáticas e jurídicas que passa a expor.

I – DOS FATOS

No dia 04 de julho de 2006, os réus “Município de São Luís de Montes Belos” e “Banco Itaú S/A” firmaram convênio de cooperação técnica (fls. 11/18 do inquérito civil público), com fundamento na Lei Municipal n. 1.612/2006. O Município obrigou-se a centralizar no Banco Itaú, com exclusividade, a folha de pagamentos dos agentes públicos municipais, a folha da “Previbelos” e o pagamento de fornecedores e prestadores de serviços, dentre outras obrigações.

Em contrapartida, a empresa privada do ramo bancário comprometeu-se a pagar ao Município o montante de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) e a disponibilizar contas bancárias para depósito da remuneração de servidores, pensionistas, fornecedores e prestadores de serviço. As obrigações têm sido cumpridas por ambas as partes, conforme consta do extrato bancário de fl. 19, dos documentos de fls. 110/130 e dos termos de declarações de fls. 100/106 e 131.

Ao tomar conhecimento dos fatos, o Ministério Público do Estado de Goiás instaurou o inquérito civil público n. 03/2007, direcionando as investigações em três vertentes: a inconstitucionalidade da lei municipal que autorizou o convênio entre os réus Município de São Luís de Montes Belos e Banco Itaú, tratando do monopólio das contas bancárias dos servidores públicos na empresa ré; a inexistência de licitação para a contratação dos serviços bancários do Banco Itaú pelo Município; e a destinação do dinheiro obtido com o convênio.

O Ministério Público requisitou do Município, por intermédio do ofício n. 088/07 (fls. 23/24), informações e documentos diversos sobre a matéria.

Em resposta, o Município encaminhou ao Parquet o ofício n. 353/GP-2007 (fls. 77/81), acompanhado dos documentos de fls. 82/93. Sustentou a constitucionalidade da lei municipal e do convênio mencionados supracitados, alegando que os depósitos de vencimentos dos servidores e de pagamentos de prestadores de

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008184

serviços não constituem disponibilidade de caixa, e que os servidores do Município de São Luís de Montes Belos teriam liberdade de manter contas em outras instituições bancárias.

Diante da falsidade da última informação, o Ministério Público tomou providências para esclarecer a verdade dos fatos, e então requisitou da Diretoria de Recursos Humanos do Município relação dos servidores e suas respectivas contas bancárias para crédito de vencimentos. O rol de fls. 112/130 demonstra que 924 servidores, aposentados e pensionistas do Município, com exceção de 04, mantêm conta no banco réu, em detrimento dos demais grandes bancos com representação no Município (CEF, Banco do Brasil, Bradesco).

Foram ouvidos na Promotoria de Justiça, mediante compromisso de dizer a verdade, oito servidores municipais (fls. 100/106 e 131). Todos afirmaram que, em decorrência do convênio, foram forçados a abrir contas no banco réu, como condição para perceber vencimentos do Município. Dentre os agentes públicos, foi ouvida a diretora de recursos humanos do Município, que afirmou ter sido incumbida pelo Secretário de Finanças de solicitar a todos os agentes públicos a abertura de conta no banco réu, em prazo inferior a 60 dias.

Ainda no curso das investigações, o Ministério Público foi cientificado da promulgação da Lei Municipal n. 1.645/07, que

oalterou o art. 2 da Lei n. 1612/06, no tocante à destinação dos recursos provenientes do referido convênio.

Este Ministério Público encaminhou ao Município, no dia 03/05/07, a Recomendação das fls. 70/72, solicitando a anulação do convênio no prazo de 15 dias. O Município requereu a extensão do prazo por 30 dias (fl. 107), no que foi atendido pelo Parquet (fl. 108).

Em resposta, o Município remeteu ao Ministério Público o parecer das fls. 133/165, pelo qual informou que não cumpriria a recomendação. Alegou, em síntese, que a Medida Provisória n. 2192-70 acoberta a contratação do banco réu para depósito de disponibilidades de caixa e de folha de pagamento de servidores. Argumentou que o convênio não caracteriza bem o serviço público típico, o que dispensaria o processo licitatório, e que não houve prejuízo ao Erário. Tentou desqualificar as decisões proferidas

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 185

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pelas razões fáticas e jurídicas que passa a expor.

I – DOS FATOS

No dia 04 de julho de 2006, os réus “Município de São Luís de Montes Belos” e “Banco Itaú S/A” firmaram convênio de cooperação técnica (fls. 11/18 do inquérito civil público), com fundamento na Lei Municipal n. 1.612/2006. O Município obrigou-se a centralizar no Banco Itaú, com exclusividade, a folha de pagamentos dos agentes públicos municipais, a folha da “Previbelos” e o pagamento de fornecedores e prestadores de serviços, dentre outras obrigações.

Em contrapartida, a empresa privada do ramo bancário comprometeu-se a pagar ao Município o montante de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) e a disponibilizar contas bancárias para depósito da remuneração de servidores, pensionistas, fornecedores e prestadores de serviço. As obrigações têm sido cumpridas por ambas as partes, conforme consta do extrato bancário de fl. 19, dos documentos de fls. 110/130 e dos termos de declarações de fls. 100/106 e 131.

Ao tomar conhecimento dos fatos, o Ministério Público do Estado de Goiás instaurou o inquérito civil público n. 03/2007, direcionando as investigações em três vertentes: a inconstitucionalidade da lei municipal que autorizou o convênio entre os réus Município de São Luís de Montes Belos e Banco Itaú, tratando do monopólio das contas bancárias dos servidores públicos na empresa ré; a inexistência de licitação para a contratação dos serviços bancários do Banco Itaú pelo Município; e a destinação do dinheiro obtido com o convênio.

O Ministério Público requisitou do Município, por intermédio do ofício n. 088/07 (fls. 23/24), informações e documentos diversos sobre a matéria.

Em resposta, o Município encaminhou ao Parquet o ofício n. 353/GP-2007 (fls. 77/81), acompanhado dos documentos de fls. 82/93. Sustentou a constitucionalidade da lei municipal e do convênio mencionados supracitados, alegando que os depósitos de vencimentos dos servidores e de pagamentos de prestadores de

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008184

serviços não constituem disponibilidade de caixa, e que os servidores do Município de São Luís de Montes Belos teriam liberdade de manter contas em outras instituições bancárias.

Diante da falsidade da última informação, o Ministério Público tomou providências para esclarecer a verdade dos fatos, e então requisitou da Diretoria de Recursos Humanos do Município relação dos servidores e suas respectivas contas bancárias para crédito de vencimentos. O rol de fls. 112/130 demonstra que 924 servidores, aposentados e pensionistas do Município, com exceção de 04, mantêm conta no banco réu, em detrimento dos demais grandes bancos com representação no Município (CEF, Banco do Brasil, Bradesco).

Foram ouvidos na Promotoria de Justiça, mediante compromisso de dizer a verdade, oito servidores municipais (fls. 100/106 e 131). Todos afirmaram que, em decorrência do convênio, foram forçados a abrir contas no banco réu, como condição para perceber vencimentos do Município. Dentre os agentes públicos, foi ouvida a diretora de recursos humanos do Município, que afirmou ter sido incumbida pelo Secretário de Finanças de solicitar a todos os agentes públicos a abertura de conta no banco réu, em prazo inferior a 60 dias.

Ainda no curso das investigações, o Ministério Público foi cientificado da promulgação da Lei Municipal n. 1.645/07, que

oalterou o art. 2 da Lei n. 1612/06, no tocante à destinação dos recursos provenientes do referido convênio.

Este Ministério Público encaminhou ao Município, no dia 03/05/07, a Recomendação das fls. 70/72, solicitando a anulação do convênio no prazo de 15 dias. O Município requereu a extensão do prazo por 30 dias (fl. 107), no que foi atendido pelo Parquet (fl. 108).

Em resposta, o Município remeteu ao Ministério Público o parecer das fls. 133/165, pelo qual informou que não cumpriria a recomendação. Alegou, em síntese, que a Medida Provisória n. 2192-70 acoberta a contratação do banco réu para depósito de disponibilidades de caixa e de folha de pagamento de servidores. Argumentou que o convênio não caracteriza bem o serviço público típico, o que dispensaria o processo licitatório, e que não houve prejuízo ao Erário. Tentou desqualificar as decisões proferidas

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 185

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pelo Tribunal de Justiça e Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás, que serão citadas no curso desta petição.

Diante da recusa do Município em atender a recomendação, o Ministério Público deu por encerradas as apurações e concluiu pela propositura da presente ação civil pública.

II – DO DIREITO

II.1 – DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E DA LEGITIMIDADE DAS PARTES

A ação civil pública, prevista no art. 129, III, da Constituição Federal, e no art. 1º da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), é a via processual adequada para reprimir danos ao patrimônio público, ao meio ambiente, ao consumidor, a bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, dentre outros direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos da sociedade.

Hodiernamente, é induvidoso que a gestão correta do patrimônio público e dos princípios constitucionais da administração pública constituem interesse transindividual, cuja defesa excede o âmbito individual. Os danos causados pelo administrador público têm natureza indivisível e atingem grupo indeterminável de pessoas. Tais peculiaridades caracterizam a defesa do patrimônio público como interesse difuso da coletividade, apta a ser exercida via ação civil pública.

A Constituição da República e a Lei n. 7.347/85, esta complementada pela Lei n. 8.078/90, legitimaram o Ministério Público a aforar ação civil pública com a finalidade de obter anulação de atos e negócios jurídicos praticados pela Administração Pública, em caso de violação das regras concernentes ao patrimônio público. Vejamos:

Constituição Federal, Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...]III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008186

meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Lei n. 7.347/85, Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: [...]V - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.[...]Art. 3º. A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.[...]Art. 5º. A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Poderão também ser propostas por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação que: [...]

Nesse sentido, é uníssona a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. M I N I S T É R I O P Ú B L I C O . L E S Ã O À MORALIDADE PÚBLICA.1. O Ministério público, por força do art. 129, III, da CF/88, é legitimado a promover qualquer espécie de ação na defesa do patrimônio público social, não se limitando à ação de reparação de danos. Destarte, nas hipóteses em que não atua na condição de autor, deve intervir como custos legis (LACP, art. 5º,§ 1º; CDC, art. 92; ECA, art. 202 e LAP, art. 9º).2. A carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da administração, com a eleição dos valores imateriais do art. 37 da CF como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por uma série de instrumentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um microsistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da administração pública, nele encartando-se a Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de Segurança Coletivo, como instrumentos concorrentes

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pelo Tribunal de Justiça e Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás, que serão citadas no curso desta petição.

Diante da recusa do Município em atender a recomendação, o Ministério Público deu por encerradas as apurações e concluiu pela propositura da presente ação civil pública.

II – DO DIREITO

II.1 – DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E DA LEGITIMIDADE DAS PARTES

A ação civil pública, prevista no art. 129, III, da Constituição Federal, e no art. 1º da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), é a via processual adequada para reprimir danos ao patrimônio público, ao meio ambiente, ao consumidor, a bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, dentre outros direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos da sociedade.

Hodiernamente, é induvidoso que a gestão correta do patrimônio público e dos princípios constitucionais da administração pública constituem interesse transindividual, cuja defesa excede o âmbito individual. Os danos causados pelo administrador público têm natureza indivisível e atingem grupo indeterminável de pessoas. Tais peculiaridades caracterizam a defesa do patrimônio público como interesse difuso da coletividade, apta a ser exercida via ação civil pública.

A Constituição da República e a Lei n. 7.347/85, esta complementada pela Lei n. 8.078/90, legitimaram o Ministério Público a aforar ação civil pública com a finalidade de obter anulação de atos e negócios jurídicos praticados pela Administração Pública, em caso de violação das regras concernentes ao patrimônio público. Vejamos:

Constituição Federal, Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...]III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do

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meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Lei n. 7.347/85, Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: [...]V - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.[...]Art. 3º. A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.[...]Art. 5º. A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Poderão também ser propostas por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação que: [...]

Nesse sentido, é uníssona a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. M I N I S T É R I O P Ú B L I C O . L E S Ã O À MORALIDADE PÚBLICA.1. O Ministério público, por força do art. 129, III, da CF/88, é legitimado a promover qualquer espécie de ação na defesa do patrimônio público social, não se limitando à ação de reparação de danos. Destarte, nas hipóteses em que não atua na condição de autor, deve intervir como custos legis (LACP, art. 5º,§ 1º; CDC, art. 92; ECA, art. 202 e LAP, art. 9º).2. A carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da administração, com a eleição dos valores imateriais do art. 37 da CF como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por uma série de instrumentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um microsistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da administração pública, nele encartando-se a Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de Segurança Coletivo, como instrumentos concorrentes

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na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas.3. Em conseqüência, legitima-se o Ministério Público a toda e qualquer demanda que vise à defesa do patrimônio público sob o ângulo material (perdas e danos) ou imaterial (lesão à moralidade).4. A nova ordem constitucional erigiu um autêntico ‘concurso de ações’ entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos. [...](STJ, REsp 427140/RO, Primeira Turma, Rel. para acórdão Ministro Luiz Fux, julgado em 20/05/03, DJ 25/08/03).

Processual Civil. Ação Civil Pública. Defesa do Patrimônio Público. Ministério Público. Legitimidade Ativa. Inteligência do art. 129, III, da CF/88 c/c o art. 1º, da Lei n. 7.347/85. Precedente. Recurso especial não conhecido.I – O campo de atuação do MP foi ampliado pela Constituição de 1988, cabendo ao Parquet a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, sem a limitação imposta pelo art. 1º da Lei 7.347/85 (Resp. n. 31.547-9/SP).II – Recurso especial não conhecido(Resp n. 67.148/SP, Sexta Turma, Relator Ministro Adhemar Maciel, julgado em 25/09/95, DJ 04/12/95).

A remansosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça culminou na edição da Súmula 329, assim redigida: “Súmula nº 329. O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público” (grifos meus).

Patente, portanto, é a legitimidade do Ministério Público para propor toda e qualquer ação civil pública em defesa dos princípios constitucionais da administração pública e da correta destinação dos recursos públicos.

No tocante à legitimidade passiva da ação civil pública, é

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008188

notório que qualquer pessoa, física ou jurídica, pode ser parte passiva, bastando que realize ou ameace realizar uma conduta que cause lesão a interesses transindividuais. A doutrina admite a aplicação de litisconsórcio, assistência e intervenção de terceiros nas ações civis públicas, em conformidade com a relação jurídica que lhe justifique o ingresso nos autos, com exceção da denunciação da lide nos casos em que houver responsabilidade objetiva do réu.

A presente ação tem como réus o Município de São Luís de Montes Belos e o Banco Itaú S/A, pessoas jurídicas que assinaram o convênio ora atacado pelo Ministério Público. Os réus figuram como litisconsortes, nos termos do art. 47 do Código de Processo Civil, a seguir transcrito:

Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo.

O litisconsórcio é necessário e unitário. Necessário porque os integrantes do convênio devem obrigatoriamente figurar no pólo passivo da ação civil pública. Unitário porque a relação jurídica deduzida em juízo exige que o provimento jurisdicional seja idêntico para os dois réus.

II.3 – DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE INCIDENTER TANTUM DA LEI MUNICIPAL N. 1.612/06 E DA

CORRETA ALOCAÇÃO DE RECURSOS FINANCEIROS MUNICIPAIS

O Estado Democrático de Direito encerra vários princípios que lhe são imprescindíveis, basilares à sua consolidação inicial e manutenção legítima no decorrer de sua existência. O controle de constitucionalidade de atos normativos encontra fundamento em uma dessas normas básicas: a de supremacia do texto constitucional frente aos demais

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na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas.3. Em conseqüência, legitima-se o Ministério Público a toda e qualquer demanda que vise à defesa do patrimônio público sob o ângulo material (perdas e danos) ou imaterial (lesão à moralidade).4. A nova ordem constitucional erigiu um autêntico ‘concurso de ações’ entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos. [...](STJ, REsp 427140/RO, Primeira Turma, Rel. para acórdão Ministro Luiz Fux, julgado em 20/05/03, DJ 25/08/03).

Processual Civil. Ação Civil Pública. Defesa do Patrimônio Público. Ministério Público. Legitimidade Ativa. Inteligência do art. 129, III, da CF/88 c/c o art. 1º, da Lei n. 7.347/85. Precedente. Recurso especial não conhecido.I – O campo de atuação do MP foi ampliado pela Constituição de 1988, cabendo ao Parquet a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, sem a limitação imposta pelo art. 1º da Lei 7.347/85 (Resp. n. 31.547-9/SP).II – Recurso especial não conhecido(Resp n. 67.148/SP, Sexta Turma, Relator Ministro Adhemar Maciel, julgado em 25/09/95, DJ 04/12/95).

A remansosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça culminou na edição da Súmula 329, assim redigida: “Súmula nº 329. O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público” (grifos meus).

Patente, portanto, é a legitimidade do Ministério Público para propor toda e qualquer ação civil pública em defesa dos princípios constitucionais da administração pública e da correta destinação dos recursos públicos.

No tocante à legitimidade passiva da ação civil pública, é

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notório que qualquer pessoa, física ou jurídica, pode ser parte passiva, bastando que realize ou ameace realizar uma conduta que cause lesão a interesses transindividuais. A doutrina admite a aplicação de litisconsórcio, assistência e intervenção de terceiros nas ações civis públicas, em conformidade com a relação jurídica que lhe justifique o ingresso nos autos, com exceção da denunciação da lide nos casos em que houver responsabilidade objetiva do réu.

A presente ação tem como réus o Município de São Luís de Montes Belos e o Banco Itaú S/A, pessoas jurídicas que assinaram o convênio ora atacado pelo Ministério Público. Os réus figuram como litisconsortes, nos termos do art. 47 do Código de Processo Civil, a seguir transcrito:

Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo.

O litisconsórcio é necessário e unitário. Necessário porque os integrantes do convênio devem obrigatoriamente figurar no pólo passivo da ação civil pública. Unitário porque a relação jurídica deduzida em juízo exige que o provimento jurisdicional seja idêntico para os dois réus.

II.3 – DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE INCIDENTER TANTUM DA LEI MUNICIPAL N. 1.612/06 E DA

CORRETA ALOCAÇÃO DE RECURSOS FINANCEIROS MUNICIPAIS

O Estado Democrático de Direito encerra vários princípios que lhe são imprescindíveis, basilares à sua consolidação inicial e manutenção legítima no decorrer de sua existência. O controle de constitucionalidade de atos normativos encontra fundamento em uma dessas normas básicas: a de supremacia do texto constitucional frente aos demais

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componentes da ordem jurídica. O alicerce dessa norma principiológica está situado na concepção atual de que a Constituição é elaborada por um órgão de vontade popular imediata, detentor do Poder Constituinte originário.

Assim é que o ato infraconstitucional que esteja em desconformidade com a Lei Maior perde o seu fundamento de validade, já que as normas constitucionais expressam a vontade imediata do órgão popular soberano. Partindo-se de um raciocínio lógico direto, é imperioso reconhecer que a Constituição Federal, por ser hierarquicamente superior – seja tão-somente por situar-se no mais alto patamar hierárquico formal, seja pela alta carga axiológica de seu conteúdo – comanda toda a produção legislativa e administrativa que estejam insertos em determinada ordem jurídico-constitucional.

Portanto, toda produção administrativa ou legislativa deve obedecer aos princípios e normas constitucionais, sob pena de nulidade. É essa a conclusão do eminente José Afonso da Silva:

A doutrina distingue supremacia material e supremacia formal da constituição.Reconhece a primeira até nas constituições costumeiras e nas flexíveis. Isso é certo do ponto de vista sociológico, tal como também se lhes admite rigidez sócio-política. Mas, do ponto de vista jurídico, só é concebível a supremacia formal, que se apóia na regra da rigidez, de que é o primeiro e principal corolário.[...]Nossa Constituição é rígida. Em conseqüência, é a lei fundamental e suprema do Estado brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só e l a c o n f e r e p o d e r e s e c o m p e t ê n c i a governamentais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela estabelecidos.Por outro lado, todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se

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conformarem com as normas da Constituição 1Federal.

Ressalta-se ainda que, em se tratando de ausência de pressupostos de validade do ato infraconstitucional, tem-se por absoluta a inconstitucionalidade, insanável por meio de convalidação, retificação ou ratificação. Por não deter qualquer compatibilidade com a Constituição Federal, o contrato, ato administrativo ou normativo ou qualquer outra espécie jurídica cuja constitucionalidade seja impugnada é reputada como inexistente frente ao ordenamento jurídico.

Por decorrência lógica, a declaração judicial de nulidade de ato ou norma por inconstitucionalidade deve obedecer a esses ditames, o que traz supedâneo ao entendimento pacificado nos tribunais de que a declaração de nulidade de norma ou ato por mácula de inconstitucionalidade deve, quando incidental, ser feita

2com efeitos retroativos .A declaração incidental de inconstitucionalidade é

perfeitamente possível em sede de ação civil pública, conforme reconhece o Supremo Tribunal Federal. A declaração incumbe ao Poder Judiciário de qualquer instância, no exercício do controle difuso de constitucionalidade de leis ou atos normativos. Seguem dois arestos da Corte Suprema:

EMENTA: Recurso extraordinário. Ação Civil Pública. Ministério Público. Legitimidade. 2. Acórdão que deu como inadequada a ação civil pública para declarar a inconstitucionalidade de ato normativo municipal. 3. Entendimento desta Corte

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 191

1 SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 46-47.2 “[...] A decisão é de ser mantida, por seus fundamentos, porque apoiada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme nela demonstrado. [...]. É que a norma inconstitucional nasce morta. Assim ocorre, pelo menos no controle difuso. Já no controle concentrado os efeitos da decisão que decreta a inconstitucionalidade podem ser ex tunc, ex nunc e até pró-futuro.” (RE-AgR 394010, Segunda Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, Julgamento: 05/10/2004, Publicação: DJ 28-10-2004)

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componentes da ordem jurídica. O alicerce dessa norma principiológica está situado na concepção atual de que a Constituição é elaborada por um órgão de vontade popular imediata, detentor do Poder Constituinte originário.

Assim é que o ato infraconstitucional que esteja em desconformidade com a Lei Maior perde o seu fundamento de validade, já que as normas constitucionais expressam a vontade imediata do órgão popular soberano. Partindo-se de um raciocínio lógico direto, é imperioso reconhecer que a Constituição Federal, por ser hierarquicamente superior – seja tão-somente por situar-se no mais alto patamar hierárquico formal, seja pela alta carga axiológica de seu conteúdo – comanda toda a produção legislativa e administrativa que estejam insertos em determinada ordem jurídico-constitucional.

Portanto, toda produção administrativa ou legislativa deve obedecer aos princípios e normas constitucionais, sob pena de nulidade. É essa a conclusão do eminente José Afonso da Silva:

A doutrina distingue supremacia material e supremacia formal da constituição.Reconhece a primeira até nas constituições costumeiras e nas flexíveis. Isso é certo do ponto de vista sociológico, tal como também se lhes admite rigidez sócio-política. Mas, do ponto de vista jurídico, só é concebível a supremacia formal, que se apóia na regra da rigidez, de que é o primeiro e principal corolário.[...]Nossa Constituição é rígida. Em conseqüência, é a lei fundamental e suprema do Estado brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só e l a c o n f e r e p o d e r e s e c o m p e t ê n c i a governamentais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela estabelecidos.Por outro lado, todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se

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conformarem com as normas da Constituição 1Federal.

Ressalta-se ainda que, em se tratando de ausência de pressupostos de validade do ato infraconstitucional, tem-se por absoluta a inconstitucionalidade, insanável por meio de convalidação, retificação ou ratificação. Por não deter qualquer compatibilidade com a Constituição Federal, o contrato, ato administrativo ou normativo ou qualquer outra espécie jurídica cuja constitucionalidade seja impugnada é reputada como inexistente frente ao ordenamento jurídico.

Por decorrência lógica, a declaração judicial de nulidade de ato ou norma por inconstitucionalidade deve obedecer a esses ditames, o que traz supedâneo ao entendimento pacificado nos tribunais de que a declaração de nulidade de norma ou ato por mácula de inconstitucionalidade deve, quando incidental, ser feita

2com efeitos retroativos .A declaração incidental de inconstitucionalidade é

perfeitamente possível em sede de ação civil pública, conforme reconhece o Supremo Tribunal Federal. A declaração incumbe ao Poder Judiciário de qualquer instância, no exercício do controle difuso de constitucionalidade de leis ou atos normativos. Seguem dois arestos da Corte Suprema:

EMENTA: Recurso extraordinário. Ação Civil Pública. Ministério Público. Legitimidade. 2. Acórdão que deu como inadequada a ação civil pública para declarar a inconstitucionalidade de ato normativo municipal. 3. Entendimento desta Corte

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1 SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 46-47.2 “[...] A decisão é de ser mantida, por seus fundamentos, porque apoiada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme nela demonstrado. [...]. É que a norma inconstitucional nasce morta. Assim ocorre, pelo menos no controle difuso. Já no controle concentrado os efeitos da decisão que decreta a inconstitucionalidade podem ser ex tunc, ex nunc e até pró-futuro.” (RE-AgR 394010, Segunda Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, Julgamento: 05/10/2004, Publicação: DJ 28-10-2004)

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no sentido de que “nas ações coletivas, não se nega, à evidência, também, a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, de lei ou ato normativo federal ou local”. 4. Reconhecida a legitimidade do Ministério Público, em qualquer instância, de acordo com a respectiva jurisdição, a propor ação civil pública (CF, arts. 127 e 129, III). 5. Recurso extraordinário conhecido e provido para que se prossiga na ação civil pública movida pelo Ministério Público. (Supremo Tribunal Federal, Segunda Turma, RE 227159 / GO, Rel. Min. Néri da Silveira, julgado em 12/03/2002, DJ 17-05-2002, p. 73).

EMENTA: CONSTITUCIONAL. RECURSO E X T R A O R D I N Á R I O . O F E N S A À CONSTITUIÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. I. - Somente a ofensa direta à Constituição autoriza a admissão do recurso extraordinário. No caso, o acórdão limita-se a interpretar normas infraconstitucionais. II. - Ao Judiciário cabe, no conflito de interesses, fazer valer a vontade concreta da lei, interpretando-a. Se, em tal operação, interpreta razoavelmente ou desarrazoadamente a lei, a questão fica no campo da legalidade, inocorrendo o contencioso constitucional. III. - O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública, fundamentada em inconstitucionalidade de lei, na qual opera-se apenas o controle difuso ou incidenter tantum de constitucionalidade. Precedente. IV. - Agravo não provido. (Supremo Tribunal Federal, Segunda Turma, AI-AgR 504856 / DF, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 21/09/2004, DJ 08-10-2004, p. 18, grifos meus)

Nessa esteira, o Ministério Público passa a demonstrar a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 1.612, de 10 de julho de 2006, que contém quatro artigos, a seguir transcritos na íntegra:

oArt. 1 . Fica o Poder Executivo autorizado a firmar Termo de Convênio com o ITAÚBANCO, para a prestação de serviço, com exclusividade, para

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008192

folha de pagamento dos servidores públicos municipais, estatutários, celetistas, contratos temporários e fornecedores diversos e prestadores de serviços, bem como ocupar espaço público, a título precário, pelo período de 60 (sessenta) meses, obedecido ao estatuído da Lei 8.666/93.

oArt. 2 . Os recursos obtidos com o referido Convênio mencionado no artigo anterior serão destinados a custear as obras do TELECENTRO, e revitalização da Praça da República.

oArt. 3 . Esta Lei entrará em vigor na data de sua opublicação, retroagindo seus efeitos a partir de 1

de julho de 2006.oArt. 4 . Revogam-se as disposições em contrário.

Gabinete da Prefeita Municipal de São Luís de Montes Belos, Estado de Goiás, aos 10 de Julho de 2006.

A Lei Municipal n. 1.612/06 está em desacordo com três postulados da Constituição Federal de 1988, previstos no art. 22,

oinciso XXVII; no art. 37, inciso XXI; e no art. 164, §3 , da Carta da República, in verbis:

Constituição Federal. Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: [...]XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;[...]Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 193

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no sentido de que “nas ações coletivas, não se nega, à evidência, também, a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, de lei ou ato normativo federal ou local”. 4. Reconhecida a legitimidade do Ministério Público, em qualquer instância, de acordo com a respectiva jurisdição, a propor ação civil pública (CF, arts. 127 e 129, III). 5. Recurso extraordinário conhecido e provido para que se prossiga na ação civil pública movida pelo Ministério Público. (Supremo Tribunal Federal, Segunda Turma, RE 227159 / GO, Rel. Min. Néri da Silveira, julgado em 12/03/2002, DJ 17-05-2002, p. 73).

EMENTA: CONSTITUCIONAL. RECURSO E X T R A O R D I N Á R I O . O F E N S A À CONSTITUIÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. I. - Somente a ofensa direta à Constituição autoriza a admissão do recurso extraordinário. No caso, o acórdão limita-se a interpretar normas infraconstitucionais. II. - Ao Judiciário cabe, no conflito de interesses, fazer valer a vontade concreta da lei, interpretando-a. Se, em tal operação, interpreta razoavelmente ou desarrazoadamente a lei, a questão fica no campo da legalidade, inocorrendo o contencioso constitucional. III. - O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública, fundamentada em inconstitucionalidade de lei, na qual opera-se apenas o controle difuso ou incidenter tantum de constitucionalidade. Precedente. IV. - Agravo não provido. (Supremo Tribunal Federal, Segunda Turma, AI-AgR 504856 / DF, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 21/09/2004, DJ 08-10-2004, p. 18, grifos meus)

Nessa esteira, o Ministério Público passa a demonstrar a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 1.612, de 10 de julho de 2006, que contém quatro artigos, a seguir transcritos na íntegra:

oArt. 1 . Fica o Poder Executivo autorizado a firmar Termo de Convênio com o ITAÚBANCO, para a prestação de serviço, com exclusividade, para

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008192

folha de pagamento dos servidores públicos municipais, estatutários, celetistas, contratos temporários e fornecedores diversos e prestadores de serviços, bem como ocupar espaço público, a título precário, pelo período de 60 (sessenta) meses, obedecido ao estatuído da Lei 8.666/93.

oArt. 2 . Os recursos obtidos com o referido Convênio mencionado no artigo anterior serão destinados a custear as obras do TELECENTRO, e revitalização da Praça da República.

oArt. 3 . Esta Lei entrará em vigor na data de sua opublicação, retroagindo seus efeitos a partir de 1

de julho de 2006.oArt. 4 . Revogam-se as disposições em contrário.

Gabinete da Prefeita Municipal de São Luís de Montes Belos, Estado de Goiás, aos 10 de Julho de 2006.

A Lei Municipal n. 1.612/06 está em desacordo com três postulados da Constituição Federal de 1988, previstos no art. 22,

oinciso XXVII; no art. 37, inciso XXI; e no art. 164, §3 , da Carta da República, in verbis:

Constituição Federal. Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: [...]XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;[...]Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a

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todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

[...]Art. 164. [...]§ 3º - As disponibilidades de caixa da União serão depositadas no Banco Central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei. (grifos meus)

As inconstitucionalidades detectadas na lei municipal, que servirão de fundamento para a nulidade do convênio ora atacado, serão analisadas em três sub-tópicos distintos – II.3.1, II.3.2 e II.3.3 – visando melhor compreensão da matéria. A definição dos temas segue o critério de alocação dos recursos públicos, destinados à disponibilidade de caixa, pagamento do funcionalismo e despesas vinculadas.

II.3.1 – DA DISPONIBILIDADE DE CAIXA

O capítulo II do título IV da Constituição Federal de 1988, que trata das finanças públicas no Brasil, contém o seguinte postulado:

Art. 164. [...]§ 3º - As disponibilidades de caixa da União serão depositadas no Banco Central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei.

O dispositivo constitucional foi abarcado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2000), verbis: “Art. 43. As disponibilidades de caixa dos entes da Federação

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oserão depositadas conforme estabelece o § 3 do art. 164 da Constituição”.

oA norma contida no § 3 do art. 164 da Carta Magna encerra a regra básica sobre depósito de recursos dos entes públicos da federação. As disponibilidades de caixa da União devem ser depositadas no Banco Central, enquanto as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em instituições financeiras oficiais, assim entendidas aquelas de propriedade ou sob controle de um dos entes públicos. A Constituição do Estado de Goiás de 1989 contém regra semelhante, prevista no parágrafo único do art. 109.

Portanto, nem todos os recursos devem obrigatoriamente ser depositados em bancos oficiais, mas as disponibilidades de caixa certamente sim. Nesse ponto, é imperioso delimitar o conceito de disponibilidade de caixa, o que se faz com o auxílio da doutrina especializada. Antonio Sergio Baptista leciona:

Num conceito econômico e financeiro, exprime o vocábulo a soma de bens de que se pode dispor, sem qualquer ofensa à normalidade dos negócios de uma pessoa. Nesta acepção, é geralmente usado no plural: disponibilidades. Indicam-se, por isso, os recursos, sejam em bens móveis ou imóveis, em títulos ou em dinheiro, que possam ser utilizados (vendidos, trocados, alienados) sem acarretar dificuldades a quem deles dispõe. [...]‘disponibilidades de caixa’, em finanças públicas, nos termos da dicção constitucional, são aqueles recursos em títulos ou dinheiro, pertencentes às entidades mencionadas no parágrafo 3º do artigo 164 da Constituição Federal, que não estão sujeitos a qualquer comprometimento, que não estão vinculados a qualquer despesa ou, tecnicamente, que não estão reservados ou empenhados, como, por exemplo, o excesso de arrecadação.Aliás, o significado e o alcance da norma constitucional indicam que a expressão ‘disponibilidades de caixa’, grafada no texto, tem o sentido de reservas, até porque, e não é por outra razão que o parágrafo 3º do artigo 164 determina para a União que ‘as disponibilidades de caixa

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todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

[...]Art. 164. [...]§ 3º - As disponibilidades de caixa da União serão depositadas no Banco Central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei. (grifos meus)

As inconstitucionalidades detectadas na lei municipal, que servirão de fundamento para a nulidade do convênio ora atacado, serão analisadas em três sub-tópicos distintos – II.3.1, II.3.2 e II.3.3 – visando melhor compreensão da matéria. A definição dos temas segue o critério de alocação dos recursos públicos, destinados à disponibilidade de caixa, pagamento do funcionalismo e despesas vinculadas.

II.3.1 – DA DISPONIBILIDADE DE CAIXA

O capítulo II do título IV da Constituição Federal de 1988, que trata das finanças públicas no Brasil, contém o seguinte postulado:

Art. 164. [...]§ 3º - As disponibilidades de caixa da União serão depositadas no Banco Central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei.

O dispositivo constitucional foi abarcado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2000), verbis: “Art. 43. As disponibilidades de caixa dos entes da Federação

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oserão depositadas conforme estabelece o § 3 do art. 164 da Constituição”.

oA norma contida no § 3 do art. 164 da Carta Magna encerra a regra básica sobre depósito de recursos dos entes públicos da federação. As disponibilidades de caixa da União devem ser depositadas no Banco Central, enquanto as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em instituições financeiras oficiais, assim entendidas aquelas de propriedade ou sob controle de um dos entes públicos. A Constituição do Estado de Goiás de 1989 contém regra semelhante, prevista no parágrafo único do art. 109.

Portanto, nem todos os recursos devem obrigatoriamente ser depositados em bancos oficiais, mas as disponibilidades de caixa certamente sim. Nesse ponto, é imperioso delimitar o conceito de disponibilidade de caixa, o que se faz com o auxílio da doutrina especializada. Antonio Sergio Baptista leciona:

Num conceito econômico e financeiro, exprime o vocábulo a soma de bens de que se pode dispor, sem qualquer ofensa à normalidade dos negócios de uma pessoa. Nesta acepção, é geralmente usado no plural: disponibilidades. Indicam-se, por isso, os recursos, sejam em bens móveis ou imóveis, em títulos ou em dinheiro, que possam ser utilizados (vendidos, trocados, alienados) sem acarretar dificuldades a quem deles dispõe. [...]‘disponibilidades de caixa’, em finanças públicas, nos termos da dicção constitucional, são aqueles recursos em títulos ou dinheiro, pertencentes às entidades mencionadas no parágrafo 3º do artigo 164 da Constituição Federal, que não estão sujeitos a qualquer comprometimento, que não estão vinculados a qualquer despesa ou, tecnicamente, que não estão reservados ou empenhados, como, por exemplo, o excesso de arrecadação.Aliás, o significado e o alcance da norma constitucional indicam que a expressão ‘disponibilidades de caixa’, grafada no texto, tem o sentido de reservas, até porque, e não é por outra razão que o parágrafo 3º do artigo 164 determina para a União que ‘as disponibilidades de caixa

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serão depositadas no Banco Central’, nos termos do disposto no inciso do artigo 10, VII, da Lei n. 4.595/64, é o guardião das reservas oficiais. E, nesta linha de raciocínio, temos que as reservas, os recursos financeiros não comprometidos dos demais entes federativos, Estados, Distrito Federal e Municípios, administração direta e indireta, devem ser depositados em bancos oficiais. (grifos meus)(BAPTISTA, Antônio Sérgio. Constituição Federal. Artigo 164, Parágrafo 3º. Inteligência do Conceito de Disponibilidades de Caixa. A Superveniência da Lei de Responsabilidade Fiscal. A Medida Provisória n. 2.139 . Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, n. 18, ano 2 jun. 2003. Disponível em: <http://www. editoraforum.com.br/sist/conteudo/ lista_conteudo.asp.> Acesso em: 18 ago. 2006.)

Destarte, todos os recursos não comprometidos ou vinculados a qualquer despesa pública, portanto disponíveis aos entes públicos, como o excesso de arrecadação, deverão ser mantidos em bancos oficiais.

Algumas críticas persistem sobre a motivação do legislador constituinte ao proibir a disponibilidade de caixa em instituições bancárias privadas. Entretanto, trata-se de uma preferência, de um benefício constitucionalmente garantido às instituições oficiais, é dizer, aos bancos oficiais, que têm como característica marcante atender ao interesse público – programas sociais, financiamentos e créditos com menores taxas de juros e de administração, tarifas mais acessíveis, melhores condições etc.

Também já foi superado o debate sobre a possibilidade de lei estadual ou municipal estabelecer exceções à regra contida no §

o3 do art. 164 da Constituição Federal, mesmo à vista do termo “ressalvados os casos previstos em lei”. A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 2661/MA, a seguir transcrita, resume o posicionamento unânime de que somente a União pode definir exceções à citada regra constitucional, desde que não haja violação ao princípio da moralidade da administração pública.

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A Ç Ã O D I R E T A D E I N C O N S T I T U C I O N A L I D A D E - L E I ESTADUAL QUE AUTORIZA A INCLUSÃO, NO EDITAL DE VENDA DO BANCO DO ESTADO DO MARANHÃO S/A, DA OFERTA DO DEPÓSITO DAS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DO TESOURO ESTADUAL - IMPOSSIBILIDADE - CONTRARIEDADE AO ART. 164, § 3º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA - AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIA NORMATIVA DO ESTADO-MEMBRO - ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - EXISTÊNCIA DE PRECEDENTE ESPECÍFICO FIRMADO PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR, COM EFICÁCIA EX TUNC. AS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DOS E S T A D O S - M E M B R O S S E R Ã O D E P O S I TA D A S E M I N S T I T U I Ç Õ E S FINANCEIRAS OFICIAIS, RESSALVADAS AS HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI NACIONAL. - As disponibilidades de caixa dos Estados-membros, dos órgãos ou entidades que os integram e das empresas por eles controladas deverão ser depositadas em instituições financeiras oficiais, cabendo, unicamente, à União Federal, mediante lei de caráter nacional, definir as exceções autorizadas pelo art. 164, § 3º da Constituição da República. - O Estado-membro não possui competência normativa, para, mediante ato legislativo próprio, estabelecer ressalvas à incidência da cláusula geral que lhe impõe a compulsória utilização de instituições financeiras oficiais, para os fins referidos no art. 164, § 3º da Carta Política. O desrespeito, pelo Estado-membro, dessa reserva de competência legislativa, instituída em favor da União Federal, faz instaurar situação de inconstitucionalidade formal, que compromete a validade e a eficácia jurídicas da lei local, que, desviando-se do modelo normativo inscrito no art. 164, § 3º da Lei Fundamental, vem a permitir que as disponibilidades de caixa do Poder Público estadual sejam depositadas em entidades

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serão depositadas no Banco Central’, nos termos do disposto no inciso do artigo 10, VII, da Lei n. 4.595/64, é o guardião das reservas oficiais. E, nesta linha de raciocínio, temos que as reservas, os recursos financeiros não comprometidos dos demais entes federativos, Estados, Distrito Federal e Municípios, administração direta e indireta, devem ser depositados em bancos oficiais. (grifos meus)(BAPTISTA, Antônio Sérgio. Constituição Federal. Artigo 164, Parágrafo 3º. Inteligência do Conceito de Disponibilidades de Caixa. A Superveniência da Lei de Responsabilidade Fiscal. A Medida Provisória n. 2.139 . Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, n. 18, ano 2 jun. 2003. Disponível em: <http://www. editoraforum.com.br/sist/conteudo/ lista_conteudo.asp.> Acesso em: 18 ago. 2006.)

Destarte, todos os recursos não comprometidos ou vinculados a qualquer despesa pública, portanto disponíveis aos entes públicos, como o excesso de arrecadação, deverão ser mantidos em bancos oficiais.

Algumas críticas persistem sobre a motivação do legislador constituinte ao proibir a disponibilidade de caixa em instituições bancárias privadas. Entretanto, trata-se de uma preferência, de um benefício constitucionalmente garantido às instituições oficiais, é dizer, aos bancos oficiais, que têm como característica marcante atender ao interesse público – programas sociais, financiamentos e créditos com menores taxas de juros e de administração, tarifas mais acessíveis, melhores condições etc.

Também já foi superado o debate sobre a possibilidade de lei estadual ou municipal estabelecer exceções à regra contida no §

o3 do art. 164 da Constituição Federal, mesmo à vista do termo “ressalvados os casos previstos em lei”. A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 2661/MA, a seguir transcrita, resume o posicionamento unânime de que somente a União pode definir exceções à citada regra constitucional, desde que não haja violação ao princípio da moralidade da administração pública.

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A Ç Ã O D I R E T A D E I N C O N S T I T U C I O N A L I D A D E - L E I ESTADUAL QUE AUTORIZA A INCLUSÃO, NO EDITAL DE VENDA DO BANCO DO ESTADO DO MARANHÃO S/A, DA OFERTA DO DEPÓSITO DAS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DO TESOURO ESTADUAL - IMPOSSIBILIDADE - CONTRARIEDADE AO ART. 164, § 3º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA - AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIA NORMATIVA DO ESTADO-MEMBRO - ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - EXISTÊNCIA DE PRECEDENTE ESPECÍFICO FIRMADO PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR, COM EFICÁCIA EX TUNC. AS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DOS E S T A D O S - M E M B R O S S E R Ã O D E P O S I TA D A S E M I N S T I T U I Ç Õ E S FINANCEIRAS OFICIAIS, RESSALVADAS AS HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI NACIONAL. - As disponibilidades de caixa dos Estados-membros, dos órgãos ou entidades que os integram e das empresas por eles controladas deverão ser depositadas em instituições financeiras oficiais, cabendo, unicamente, à União Federal, mediante lei de caráter nacional, definir as exceções autorizadas pelo art. 164, § 3º da Constituição da República. - O Estado-membro não possui competência normativa, para, mediante ato legislativo próprio, estabelecer ressalvas à incidência da cláusula geral que lhe impõe a compulsória utilização de instituições financeiras oficiais, para os fins referidos no art. 164, § 3º da Carta Política. O desrespeito, pelo Estado-membro, dessa reserva de competência legislativa, instituída em favor da União Federal, faz instaurar situação de inconstitucionalidade formal, que compromete a validade e a eficácia jurídicas da lei local, que, desviando-se do modelo normativo inscrito no art. 164, § 3º da Lei Fundamental, vem a permitir que as disponibilidades de caixa do Poder Público estadual sejam depositadas em entidades

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privadas integrantes do Sistema Financeiro Nacional. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA - ENQUANTO VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO - CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS. - A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado. O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o compor tamento dos agentes e órgãos governamentais. A ratio subjacente à cláusula de depósito compulsório, em instituições financeiras oficiais, das disponibilidades de caixa do Poder Público em geral (CF, art. 164, § 3º) reflete, na concreção do seu alcance, uma exigência fundada no valor essencial da moralidade administrativa, que representa verdadeiro pressuposto de legitimação constitucional dos atos emanados do Estado. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. As exceções à regra geral constante do art. 164, § 3º da Carta Política - apenas definíveis pela União Federal - hão de respeitar, igualmente, esse postulado básico, em ordem a impedir que eventuais desvios ético-jurídicos possam instituir situação de inaceitável privilégio, das quais resulte indevido favorecimento, destituído de causa legítima, outorgado a determinadas instituições financeiras de caráter privado. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. A E F I C Á C I A E X T U N C D A M E D I D A CAUTELAR NÃO SE PRESUME, POIS

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008198

DEPENDE DE EXPRESSA DETERMINAÇÃO CONSTANTE DA DECISÃO QUE A DEFERE, E M S E D E D E A Ç Ã O D I R E TA D E INCONSTITUCIONALIDADE. - A medida cautelar, em ação direta de inconstitucionalidade, reveste-se, ordinariamente, de eficácia ex nunc, “operando, portanto, a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal a defere” (RTJ 124/80). Excepcionalmente, no entanto, e para que não se frustrem os seus objetivos, a medida cautelar poderá projetar-se com eficácia ex tunc, em caráter retroativo, com repercussão sobre situações pretéritas (RTJ 138/86). Para que se outorgue eficácia ex tunc ao provimento cautelar, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, impõe-se que o Supremo Tribunal Federal assim o determine, expressamente, na decisão que conceder essa medida extraordinária (RTJ 164/506-509, 508, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Situação excepcional que se verifica no caso ora em exame, apta a justificar a outorga de provimento cautelar com eficácia ex tunc. (Supremo Tribunal Federal, ADI 2661/MA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, Julgado em 05/06/02, DJ 23/08/02)

O mesmo entendimento já havia sido adotado pela Corte Suprema no julgamento da ADI 2600/ES (Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. 24/02/02, DJ 25/10/02).

Neste ponto, a Medida Provisória n. 2.192-70, de 24 de agosto de 2001, permitiu o depósito de disponibilidades de caixa dos entes públicos estatais e municipais em instituição financeira submetida a processo de privatização ou na que adquirir seu controle acionário até o final do exercício de 2010. Trata-se de mais um argumento utilizado pelo Município réu para justificar o depósito de recursos financeiros no banco Itaú S/A, visto que este assumiu o passivo do extinto Banco do Estado de Goiás (BEG) há

o ocerca de seis anos. Vejamos a redação dos arts. 4 , §1 e 29 da medida provisória:

Art. 4º [...]§1º. As disponibilidades de caixa dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou

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privadas integrantes do Sistema Financeiro Nacional. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA - ENQUANTO VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO - CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS. - A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado. O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o compor tamento dos agentes e órgãos governamentais. A ratio subjacente à cláusula de depósito compulsório, em instituições financeiras oficiais, das disponibilidades de caixa do Poder Público em geral (CF, art. 164, § 3º) reflete, na concreção do seu alcance, uma exigência fundada no valor essencial da moralidade administrativa, que representa verdadeiro pressuposto de legitimação constitucional dos atos emanados do Estado. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. As exceções à regra geral constante do art. 164, § 3º da Carta Política - apenas definíveis pela União Federal - hão de respeitar, igualmente, esse postulado básico, em ordem a impedir que eventuais desvios ético-jurídicos possam instituir situação de inaceitável privilégio, das quais resulte indevido favorecimento, destituído de causa legítima, outorgado a determinadas instituições financeiras de caráter privado. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. A E F I C Á C I A E X T U N C D A M E D I D A CAUTELAR NÃO SE PRESUME, POIS

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DEPENDE DE EXPRESSA DETERMINAÇÃO CONSTANTE DA DECISÃO QUE A DEFERE, E M S E D E D E A Ç Ã O D I R E TA D E INCONSTITUCIONALIDADE. - A medida cautelar, em ação direta de inconstitucionalidade, reveste-se, ordinariamente, de eficácia ex nunc, “operando, portanto, a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal a defere” (RTJ 124/80). Excepcionalmente, no entanto, e para que não se frustrem os seus objetivos, a medida cautelar poderá projetar-se com eficácia ex tunc, em caráter retroativo, com repercussão sobre situações pretéritas (RTJ 138/86). Para que se outorgue eficácia ex tunc ao provimento cautelar, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, impõe-se que o Supremo Tribunal Federal assim o determine, expressamente, na decisão que conceder essa medida extraordinária (RTJ 164/506-509, 508, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Situação excepcional que se verifica no caso ora em exame, apta a justificar a outorga de provimento cautelar com eficácia ex tunc. (Supremo Tribunal Federal, ADI 2661/MA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, Julgado em 05/06/02, DJ 23/08/02)

O mesmo entendimento já havia sido adotado pela Corte Suprema no julgamento da ADI 2600/ES (Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. 24/02/02, DJ 25/10/02).

Neste ponto, a Medida Provisória n. 2.192-70, de 24 de agosto de 2001, permitiu o depósito de disponibilidades de caixa dos entes públicos estatais e municipais em instituição financeira submetida a processo de privatização ou na que adquirir seu controle acionário até o final do exercício de 2010. Trata-se de mais um argumento utilizado pelo Município réu para justificar o depósito de recursos financeiros no banco Itaú S/A, visto que este assumiu o passivo do extinto Banco do Estado de Goiás (BEG) há

o ocerca de seis anos. Vejamos a redação dos arts. 4 , §1 e 29 da medida provisória:

Art. 4º [...]§1º. As disponibilidades de caixa dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou

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das entidades do poder público e empresas por eles controladas poderão ser depositadas em instituição financeira submetida a processo de privatização ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário, até o final do exercício de 2010.[...]Art. 29. Os depósitos judiciais efetuados em instituição financeira oficial submetida a processo de privatização poderão ser mantidos, até o regular levantamento, na própria instituição financeira privatizada ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário.Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se às instituições financeiras oficiais cujo processo de privatização tenha sido concluído, bem assim às instituições financeiras oficiais em processo de privatização.

Todavia, os dispositivos lidos acima foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão com eficácia erga omnes e efeito vinculante. Segue ementa da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3578/DF:

I. Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade: caso de excepcional urgência, que autoriza a decisão liminar sem audiência dos partícipes da edição das normas questionadas (LADIn, art. 10, § 3º), dada a iminência do leilão de privatização do controle de instituição financeira, cujo resultado poderia vir a ser comprometido com a concessão posterior da medida cautelar. II. Desestatização de empresas públicas e sociedades de economia mista: alegação de exigência constitucional de autorização legislativa específica, que - contra o voto do relator - o Supremo Tribunal tem rejeitado; caso concreto, ademais, no qual a transferência do controle da instituição financeira, do Estado-membro para a União, foi autorizada por lei estadual (conforme exigência do art. 4º, I, a, da MPr 2.192-70/01 - PROES) e a subseqüente privatização pela União constitui a finalidade legal específica de toda a operação; indeferimento da medida cautelar com

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relação ao art. 3º, I, da MPr 2.192-70/01, e ao art. 2º, I, II e IV, da L. 9.491/97. III. Desestatização: manutenção na instituição financeira privatizada das disponibilidades de caixa da administração pública do Estado que detinha o seu controle acionário (MPr 2.192-70/01, art. 4º, § 1º), assim como dos depósitos judiciais (MPr 2.192-70/01, a r t . 2 9 ) : a u t o r i z a ç ã o g e n é r i c a , c u j a constitucionalidade - não obstante emanada de diploma legislativo federal - é objeto de questionamento de densa plausibilidade, à vista do princípio da moralidade - como aventado em precedentes do Tribunal (ADIn 2.600-MC e ADIn 2.661-MC) - e do próprio art. 164, § 3º, da Constituição - que não permitiria à lei, ainda que federal, abrir exceção tão ampla à regra geral, que é a de depósitos da disponibilidade de caixa da Administração Pública em instituições financeiras oficiais; aparente violação, por fim, da exigência constitucional de licitação (CF, art. 37, XXI); ocorrência do periculum in mora: deferimento da medida cautelar para suspender ex nunc a eficácia dos arts. 4º, § 1º, e 29 e parágrafo único do ato normativo questionado (MPr 2.192/70/01).(Supremo Tribunal Federal, ADI-MC 3578/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 14/09/05, DJ 24/02/2006)

Observa-se que a decisão foi publicada alguns meses antes da assinatura do convênio ora questionado. Assim, ainda que a decisão liminar vinculante do Supremo Tribunal Federal não seja confirmada no mérito, o Município réu não poderá aplicar as regras da medida provisória para alocar suas disponibilidades de caixa no Banco Itaú S/A, pois essa instituição obteve da Lei Estadual n. 13.858/01 privilégio para centralizar apenas as contas do Estado de Goiás, já que adquiriu o Banco do Estado de Goiás (BEG), mas não dos municípios goianos. O Município de São Luís de Montes Belos, autônomo em relação ao Estado de Goiás na federação brasileira, não poderá manter disponibilidade de caixa em bancos privados, pois nunca possuiu banco de seu controle que tenha sido privatizado. Fica sujeito, portanto, à vedação contida no

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das entidades do poder público e empresas por eles controladas poderão ser depositadas em instituição financeira submetida a processo de privatização ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário, até o final do exercício de 2010.[...]Art. 29. Os depósitos judiciais efetuados em instituição financeira oficial submetida a processo de privatização poderão ser mantidos, até o regular levantamento, na própria instituição financeira privatizada ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário.Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se às instituições financeiras oficiais cujo processo de privatização tenha sido concluído, bem assim às instituições financeiras oficiais em processo de privatização.

Todavia, os dispositivos lidos acima foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão com eficácia erga omnes e efeito vinculante. Segue ementa da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3578/DF:

I. Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade: caso de excepcional urgência, que autoriza a decisão liminar sem audiência dos partícipes da edição das normas questionadas (LADIn, art. 10, § 3º), dada a iminência do leilão de privatização do controle de instituição financeira, cujo resultado poderia vir a ser comprometido com a concessão posterior da medida cautelar. II. Desestatização de empresas públicas e sociedades de economia mista: alegação de exigência constitucional de autorização legislativa específica, que - contra o voto do relator - o Supremo Tribunal tem rejeitado; caso concreto, ademais, no qual a transferência do controle da instituição financeira, do Estado-membro para a União, foi autorizada por lei estadual (conforme exigência do art. 4º, I, a, da MPr 2.192-70/01 - PROES) e a subseqüente privatização pela União constitui a finalidade legal específica de toda a operação; indeferimento da medida cautelar com

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relação ao art. 3º, I, da MPr 2.192-70/01, e ao art. 2º, I, II e IV, da L. 9.491/97. III. Desestatização: manutenção na instituição financeira privatizada das disponibilidades de caixa da administração pública do Estado que detinha o seu controle acionário (MPr 2.192-70/01, art. 4º, § 1º), assim como dos depósitos judiciais (MPr 2.192-70/01, a r t . 2 9 ) : a u t o r i z a ç ã o g e n é r i c a , c u j a constitucionalidade - não obstante emanada de diploma legislativo federal - é objeto de questionamento de densa plausibilidade, à vista do princípio da moralidade - como aventado em precedentes do Tribunal (ADIn 2.600-MC e ADIn 2.661-MC) - e do próprio art. 164, § 3º, da Constituição - que não permitiria à lei, ainda que federal, abrir exceção tão ampla à regra geral, que é a de depósitos da disponibilidade de caixa da Administração Pública em instituições financeiras oficiais; aparente violação, por fim, da exigência constitucional de licitação (CF, art. 37, XXI); ocorrência do periculum in mora: deferimento da medida cautelar para suspender ex nunc a eficácia dos arts. 4º, § 1º, e 29 e parágrafo único do ato normativo questionado (MPr 2.192/70/01).(Supremo Tribunal Federal, ADI-MC 3578/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 14/09/05, DJ 24/02/2006)

Observa-se que a decisão foi publicada alguns meses antes da assinatura do convênio ora questionado. Assim, ainda que a decisão liminar vinculante do Supremo Tribunal Federal não seja confirmada no mérito, o Município réu não poderá aplicar as regras da medida provisória para alocar suas disponibilidades de caixa no Banco Itaú S/A, pois essa instituição obteve da Lei Estadual n. 13.858/01 privilégio para centralizar apenas as contas do Estado de Goiás, já que adquiriu o Banco do Estado de Goiás (BEG), mas não dos municípios goianos. O Município de São Luís de Montes Belos, autônomo em relação ao Estado de Goiás na federação brasileira, não poderá manter disponibilidade de caixa em bancos privados, pois nunca possuiu banco de seu controle que tenha sido privatizado. Fica sujeito, portanto, à vedação contida no

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oart. 164, § 3 da Constituição Federal.Ultrapassada a discussão da primeira exceção à regra

constitucional, passemos à segunda. Os Tribunais de Contas de Estados e de Municípios do Brasil têm reconhecido a possibilidade de depósito de disponibilidades de caixa de municípios em instituições bancárias privadas, quando não houver em seu território agências de bancos oficiais, mas apenas de bancos privados. Seguem ementas de algumas decisões:

TCM/GO – RC n. 066/01 – Goianápolis.EMENTA: Movimentação de recursos públicos em bancos particulares. Possibilidade, desde que não haja banco oficial no Município e não estejam os recursos de origem federal ou estadual vinculados à movimentação em instituição oficial específica, dependendo ainda de autorização por lei municipal. (CF, art. 164, § 3º; CE, art. 109. RC n. 053/90 TCM, 02.05.2001)

[...] é de se responder ao consulente que, ‘a priori’, tanto a movimentação bancária e a aplicação financeira das disponibilidades hão de se efetivar em agências locais de instituições financeiras oficiais. Em não existindo essas no Município, entenderíamos que é de se facultar, mediante autorização específica em Norma Municipal, dentro de sua competência concorrente, proceder à movimentação bancária com instituições financeiras privadas, bem como ali efetuar aplicações financeiras, desde que unicamente com base em títulos e papéis com lastro oficial (artigo 76, inciso XIX, c/c art. 161, inciso XI, ambos da Constituição Estadual). (TC/MG. Consulta n. 53198-7 – Relator Conselheiro Murta Lages – Sessão do dia 15/03/00)

[...] TENDO EM VISTA QUE O AJUSTE EM TELA ESTABELECEU UM CONJUNTO DE C O N T R A P R E S TA Ç Õ E S , A S Q U A I S CONFEREM EXCLUSIVIDADE A UMA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA NÃO OFICIAL SOBRE TODAS AS PRINCIPAIS OPERAÇÕES B A N C Á R I A S R E A L I Z A D A S P E L A

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008202

PREFEITURA, E, EM CONSEQÜÊNCIA, S O B R E O D E P Ó S I T O D A S M A I S RELEVANTES DISPONIBILIDADES DE CAIXA DO MUNÍCIPIO, EM ABSOLUTA AFRONTA AO PARÁGRAFO TRES, DO ART. 1 6 4 , D A C . F ; D E C I D I U J U L G A R I R R E G U L A R E S À C O N C O R R Ê N C I A PÚBLICA E O CONTRATO EM EXAME, APLICANDO A ESPÉCIE O DISPOSTO NO ARTIGO DOIS, XV E XXVII, DA L.C. 709/93. DECIDIU TAMBÉM, PELA APLICAÇÃO DE MULTA AO SENHOR FÉLIX SAHÃO JUNIOR, P R E F E I T O E S U B S C R I T O R D O INSTRUMENTO CONTRATUAL, NO VALOR EQUIVALENTE A 1.000 UFESPs, COM FUNDAMENTO NO ART. 104, II, DA SUPRA R E F E R I D A L E I C O M P L E M E N TA R , FIXANDO-LHE O PRAZO DE 30 DIAS PARA O RECOLHIMENTO. [...] PUBLICADO NO DOE DE 30.10.2004. (TC/SP - Contrato n.: 2428/008/03. Interessado: MUNICIPIO DE CATANDUVA. Contatado: BANCO ITAU S/A)

O PLENARIO CONHECEU DA CONSULTA E QUANTO AO MÉRITO, DELIBEROU RESPONDÊ-LA NO SENTIDO DE QUE OS MUNICIPIOS E CONTROLADAS, NOS EXATOS TERMOS DO DISPOSTO NO PARAGRAFO 3 DO ARTIGO 164 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DEVERÃO MANTER SUAS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DEPOSITADAS EM INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS OFICIAIS, SEJAM FEDERAIS, OU ESTADUAIS – A SEU CRITÉRIO – RESSALVADOS OS CASOS PREVISTOS EM LEI. OUTROSSIM, QUE SE NÃO HOUVER NO MUNICIPIO ENTIDADE FINANCEIRA OFICIAL, O DEPÓSITO DEVERÁ SER EFETUADO EM QUALQUER BANCO DA REDE BANCÁRIA PRIVADA, NO PROPRIO MUNICÍPIO. [...]. PUBLICADO NO DOE DE 20.2.92, PAGINA 35. (TC/SP. CONSULTA n.: 64080/026/90. INTERESSADO: PREF. MUNICIPAL DE RANCHARIA. RELATOR: JOSÉ LUIZ DE ANHAIA MELLO. ÓRGÃO

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oart. 164, § 3 da Constituição Federal.Ultrapassada a discussão da primeira exceção à regra

constitucional, passemos à segunda. Os Tribunais de Contas de Estados e de Municípios do Brasil têm reconhecido a possibilidade de depósito de disponibilidades de caixa de municípios em instituições bancárias privadas, quando não houver em seu território agências de bancos oficiais, mas apenas de bancos privados. Seguem ementas de algumas decisões:

TCM/GO – RC n. 066/01 – Goianápolis.EMENTA: Movimentação de recursos públicos em bancos particulares. Possibilidade, desde que não haja banco oficial no Município e não estejam os recursos de origem federal ou estadual vinculados à movimentação em instituição oficial específica, dependendo ainda de autorização por lei municipal. (CF, art. 164, § 3º; CE, art. 109. RC n. 053/90 TCM, 02.05.2001)

[...] é de se responder ao consulente que, ‘a priori’, tanto a movimentação bancária e a aplicação financeira das disponibilidades hão de se efetivar em agências locais de instituições financeiras oficiais. Em não existindo essas no Município, entenderíamos que é de se facultar, mediante autorização específica em Norma Municipal, dentro de sua competência concorrente, proceder à movimentação bancária com instituições financeiras privadas, bem como ali efetuar aplicações financeiras, desde que unicamente com base em títulos e papéis com lastro oficial (artigo 76, inciso XIX, c/c art. 161, inciso XI, ambos da Constituição Estadual). (TC/MG. Consulta n. 53198-7 – Relator Conselheiro Murta Lages – Sessão do dia 15/03/00)

[...] TENDO EM VISTA QUE O AJUSTE EM TELA ESTABELECEU UM CONJUNTO DE C O N T R A P R E S TA Ç Õ E S , A S Q U A I S CONFEREM EXCLUSIVIDADE A UMA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA NÃO OFICIAL SOBRE TODAS AS PRINCIPAIS OPERAÇÕES B A N C Á R I A S R E A L I Z A D A S P E L A

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PREFEITURA, E, EM CONSEQÜÊNCIA, S O B R E O D E P Ó S I T O D A S M A I S RELEVANTES DISPONIBILIDADES DE CAIXA DO MUNÍCIPIO, EM ABSOLUTA AFRONTA AO PARÁGRAFO TRES, DO ART. 1 6 4 , D A C . F ; D E C I D I U J U L G A R I R R E G U L A R E S À C O N C O R R Ê N C I A PÚBLICA E O CONTRATO EM EXAME, APLICANDO A ESPÉCIE O DISPOSTO NO ARTIGO DOIS, XV E XXVII, DA L.C. 709/93. DECIDIU TAMBÉM, PELA APLICAÇÃO DE MULTA AO SENHOR FÉLIX SAHÃO JUNIOR, P R E F E I T O E S U B S C R I T O R D O INSTRUMENTO CONTRATUAL, NO VALOR EQUIVALENTE A 1.000 UFESPs, COM FUNDAMENTO NO ART. 104, II, DA SUPRA R E F E R I D A L E I C O M P L E M E N TA R , FIXANDO-LHE O PRAZO DE 30 DIAS PARA O RECOLHIMENTO. [...] PUBLICADO NO DOE DE 30.10.2004. (TC/SP - Contrato n.: 2428/008/03. Interessado: MUNICIPIO DE CATANDUVA. Contatado: BANCO ITAU S/A)

O PLENARIO CONHECEU DA CONSULTA E QUANTO AO MÉRITO, DELIBEROU RESPONDÊ-LA NO SENTIDO DE QUE OS MUNICIPIOS E CONTROLADAS, NOS EXATOS TERMOS DO DISPOSTO NO PARAGRAFO 3 DO ARTIGO 164 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DEVERÃO MANTER SUAS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DEPOSITADAS EM INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS OFICIAIS, SEJAM FEDERAIS, OU ESTADUAIS – A SEU CRITÉRIO – RESSALVADOS OS CASOS PREVISTOS EM LEI. OUTROSSIM, QUE SE NÃO HOUVER NO MUNICIPIO ENTIDADE FINANCEIRA OFICIAL, O DEPÓSITO DEVERÁ SER EFETUADO EM QUALQUER BANCO DA REDE BANCÁRIA PRIVADA, NO PROPRIO MUNICÍPIO. [...]. PUBLICADO NO DOE DE 20.2.92, PAGINA 35. (TC/SP. CONSULTA n.: 64080/026/90. INTERESSADO: PREF. MUNICIPAL DE RANCHARIA. RELATOR: JOSÉ LUIZ DE ANHAIA MELLO. ÓRGÃO

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JULG.: PLENO. CONSULTA DA PREFEITURA MUNICIPAL DE RANCHARIA, ACERCA DO PARAGRAFO 3 DO ARTIGO 164 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ATA DA 6 SESSÃO ORDINARIA DO TRIBUNAL PLENO, REALIZADA EM 12.2.92)

A tendência dos tribunais de contas foi destacada pela jurista Vanessa Lima Nascimento, no artigo “Administração Municipal – Conta e Movimentação Bancária em Instituição Financeira Privada – Possibilidade desde que Inexistente Instituição Financeira Oficial no Município – Inexigibilidade de Licitação” (Revista Brasileira de Direito Municipal-RBDM, Belo H o r i z o n t e , n . 1 4 , 2 0 0 4 . D i s p o n í v e l e m : <http://www.editoraforum.com.br/sist/conteudo/lista_conteudo. asp>, acesso em: 18/08/2006).

A hipótese tratada pelos tribunais de contas brasileiros não se aplica ao Município de São Luís de Montes Belos, pois neste há agências de dois bancos oficiais em atividade, quais sejam a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil.

Conforme será exposto no tópico seguinte, o crédito da folha de pagamento de servidores, objeto da Lei Municipal n. 1612/06, não constitui disponibilidade de caixa, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal.

Todavia, mesmo que a lei e o convênio ora apreciados não prevejam depósito de disponibilidade de caixa de recursos do Município de São Luís de Montes Belos no banco réu, há fortes indícios de que o Município transferiu suas disponibilidade de caixa para contas do Banco Itaú S/A, concedendo a este verdadeiro monopólio dos recursos financeiros municipais. Consta do parecer do Município no inquérito civil público farta fundamentação

ojurídica contrária à aplicabilidade do art. 164, § 3 da Constituição Federal, mormente em razão da Medida Provisória supracitada (fls. 135/151 do inquérito civil público).

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008204

II.3.2 – DO PAGAMENTO DOS VENCIMENTOS DOS SERVIDORES PÚBLICOS

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Rcl-AgR 3872/DF e o RE 19516/RS, pacificou o entendimento de que o crédito da folha de pagamento dos servidores públicos não constitui disponibilidade de caixa, portanto não deve ser obrigatoriamente depositado em bancos oficiais.

Por outro prisma, os entes estatais não podem obrigar os servidores públicos a manter relação de consumo com determinado banco privado, como condição para perceber seus vencimentos. É esta a conduta do Município réu com todos os servidores montebelenses desde julho de 2006, objeto de debate na presente ação.

A relação entre o Município e os servidores públicos municipais é estritamente público-institucional, decorrente do vínculo de natureza constitucional mantido por eles. A grosso modo, o servidor exerce suas funções legais e, em contrapartida, é remunerado pelo ente estatal.

A relação entre o servidor e a instituição bancária escolhida por ele para crédito de vencimentos e outros serviços é unicamente pessoal e privada, e ultrapassa o alcance da administração pública. O depósito de vencimento não integra o conceito de serviço público, mas consiste em vínculo privado dele decorrente. A relação é de caráter consumerista, protegida pela

oConstituição Federal (art. 5 , XXXII e 170, V) e pelo Código de Defesa do Consumidor. O servidor, como pessoa física, tem liberdade de optar pelo banco de seu interesse, sem interferência do ente público que o remunera.

O Município réu deveria ter oportunizado aos servidores públicos escolher uma entre as várias instituições bancárias que mantêm agências no Município ou outras autorizadas pelo Banco Central. Todavia, o Município vinculou todos os agentes públicos ao co-réu Banco Itaú S/A, obrigando-os a manterem contas bancárias na citada empresa privada.

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás julgou, em abril de 2007, liminar em mandado de segurança coletivo impetrado por servidores públicos estaduais contra o Estado de Goiás, tratando da

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 205

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JULG.: PLENO. CONSULTA DA PREFEITURA MUNICIPAL DE RANCHARIA, ACERCA DO PARAGRAFO 3 DO ARTIGO 164 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ATA DA 6 SESSÃO ORDINARIA DO TRIBUNAL PLENO, REALIZADA EM 12.2.92)

A tendência dos tribunais de contas foi destacada pela jurista Vanessa Lima Nascimento, no artigo “Administração Municipal – Conta e Movimentação Bancária em Instituição Financeira Privada – Possibilidade desde que Inexistente Instituição Financeira Oficial no Município – Inexigibilidade de Licitação” (Revista Brasileira de Direito Municipal-RBDM, Belo H o r i z o n t e , n . 1 4 , 2 0 0 4 . D i s p o n í v e l e m : <http://www.editoraforum.com.br/sist/conteudo/lista_conteudo. asp>, acesso em: 18/08/2006).

A hipótese tratada pelos tribunais de contas brasileiros não se aplica ao Município de São Luís de Montes Belos, pois neste há agências de dois bancos oficiais em atividade, quais sejam a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil.

Conforme será exposto no tópico seguinte, o crédito da folha de pagamento de servidores, objeto da Lei Municipal n. 1612/06, não constitui disponibilidade de caixa, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal.

Todavia, mesmo que a lei e o convênio ora apreciados não prevejam depósito de disponibilidade de caixa de recursos do Município de São Luís de Montes Belos no banco réu, há fortes indícios de que o Município transferiu suas disponibilidade de caixa para contas do Banco Itaú S/A, concedendo a este verdadeiro monopólio dos recursos financeiros municipais. Consta do parecer do Município no inquérito civil público farta fundamentação

ojurídica contrária à aplicabilidade do art. 164, § 3 da Constituição Federal, mormente em razão da Medida Provisória supracitada (fls. 135/151 do inquérito civil público).

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II.3.2 – DO PAGAMENTO DOS VENCIMENTOS DOS SERVIDORES PÚBLICOS

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Rcl-AgR 3872/DF e o RE 19516/RS, pacificou o entendimento de que o crédito da folha de pagamento dos servidores públicos não constitui disponibilidade de caixa, portanto não deve ser obrigatoriamente depositado em bancos oficiais.

Por outro prisma, os entes estatais não podem obrigar os servidores públicos a manter relação de consumo com determinado banco privado, como condição para perceber seus vencimentos. É esta a conduta do Município réu com todos os servidores montebelenses desde julho de 2006, objeto de debate na presente ação.

A relação entre o Município e os servidores públicos municipais é estritamente público-institucional, decorrente do vínculo de natureza constitucional mantido por eles. A grosso modo, o servidor exerce suas funções legais e, em contrapartida, é remunerado pelo ente estatal.

A relação entre o servidor e a instituição bancária escolhida por ele para crédito de vencimentos e outros serviços é unicamente pessoal e privada, e ultrapassa o alcance da administração pública. O depósito de vencimento não integra o conceito de serviço público, mas consiste em vínculo privado dele decorrente. A relação é de caráter consumerista, protegida pela

oConstituição Federal (art. 5 , XXXII e 170, V) e pelo Código de Defesa do Consumidor. O servidor, como pessoa física, tem liberdade de optar pelo banco de seu interesse, sem interferência do ente público que o remunera.

O Município réu deveria ter oportunizado aos servidores públicos escolher uma entre as várias instituições bancárias que mantêm agências no Município ou outras autorizadas pelo Banco Central. Todavia, o Município vinculou todos os agentes públicos ao co-réu Banco Itaú S/A, obrigando-os a manterem contas bancárias na citada empresa privada.

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás julgou, em abril de 2007, liminar em mandado de segurança coletivo impetrado por servidores públicos estaduais contra o Estado de Goiás, tratando da

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mesma matéria objeto deste tópico. Na oportunidade, o tribunal concedeu a segurança e desobrigou os servidores a manterem conta no Banco Itaú, assegurando-lhes o direito de receber vencimentos em qualquer instituição do sistema financeiro nacional. Segue ementa da brilhante decisão da corte goiana:

Mandado de Segurança Coletivo. Decadência. Inadequação. Não-ocorrência. Pagamento de Servidor Público. Instituição Financeira Oficial. Desnecessidade. Obrigatoriedade do Servidor Contratar a Instituição Financeira Indicada pelo Ente Público ao Qual Está Vinculado. Inexistência. 1 - O ato administrativo que gera lesão ao pagamento dos servidores públicos é de trato sucessivo, de modo que o prazo para impetração de mandado de segurança contra ele se renova a cada mês. 2 - Improcede a alegação de falta de interesse de agir por imprecisão do ato acoimado de coator e necessidade de dilação probatória, quando ato coator está por demais evidenciado, e a documentação coligida aos autos é suficiente para amparar o julgamento do writ. 3 - O pagamento dos s e r v i d o r e s p ú b l i c o s n ã o c o n f i g u r a “disponibilidade de caixa” de modo que se trata de serviço que pode ser prestado por qualquer instituição financeira, oficial ou não, sem que implique ofensa ao art. 164, § 3º, da CF. Precedentes do STF. 4 - A relação jurídica que se estabelece entre o ente público e seus servidores é institucional e regula tão-somente os aspectos atinentes ao serviço público. Já a relação jurídica firmada pelo servidor com as instituições financeiras, mesmo as oficiais, são de natureza pessoal e privada, daí porque não se mostra plausível à administração invadir o âmbito particular do servidor e impor a este, de forma compulsória, a contratação de serviços de quem ela indicar. 5 - Segurança concedida, em parte, para reconhecer a inexistência de obrigação dos servidores públicos vinculados ao impetrante de abrirem conta corrente (“de depósito”) no Banco Itaú S/A para recebimento de seus vencimentos, bem como lhes assegurar direito de receberem os respectivos créditos,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008206

com disponibilidade no mesmo dia, na conta de depósitos de que forem titulares, por sua livre iniciativa, seja no próprio Banco Itaú S/A ou em qualquer outra instituição financeira integrante do Sistema Financeiro Nacional. Segurança deferida, em parte.(Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, Mandado de Segurança Co le t ivo n . 234-3 /205 (200600953550), Órgão Especial, Rel. Des. João Ubaldo Ferreira. Julgado em 25/04/07, DJ 15026 de 22/06/07, grifos meus)

No âmbito desse julgamento, é oportuno transcrever trecho do voto do eminente Desembargador João Ubaldo Ferreira, in verbis:

[...] em consulta ao repositório de leis estaduais e federais, não encontrei nenhum dispositivo que autorizasse ao Estado impor a seus servidores, na forma compulsória, a abertura de uma conta corrente normal na instituição financeira contratada para efetuar o pagamento do funcionalismo. [...] conclui-se que não há obrigação legal de o servidor público vinculado ao Poder Executivo estadual, abrir uma conta corrente normal (“de depósito”) no Banco Itaú S/A c o m o c o n d i ç ã o p a r a r e c e b e r s e u s vencimentos/subsídios. O que se pode depreender dos textos normativos consultados é que, para receber seus vencimentos, o servidor deve ter, junto à instituição financeira contratada pelo ente público, tão-somente uma conta-salário, sendo que a decisão de abrir uma conta corrente normal (“de depósito”) na referida instituição deve ser feita por livre escolha do funcionário. Não poderia ser diferente. A relação jurídica que se estabelece entre o ente público e seus servidores é institucional e regula tão-somente os aspectos inerentes ao serviço público. Já a relação jurídica firmada pelo servidor com as instituições financeiras, mesmo as oficiais, são de natureza pessoal e privada, daí por que não se mostra plausível à Administração invadir o âmbito particular do servidor e impor a este, de forma compulsória, a contratação dos serviços de quem ela

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mesma matéria objeto deste tópico. Na oportunidade, o tribunal concedeu a segurança e desobrigou os servidores a manterem conta no Banco Itaú, assegurando-lhes o direito de receber vencimentos em qualquer instituição do sistema financeiro nacional. Segue ementa da brilhante decisão da corte goiana:

Mandado de Segurança Coletivo. Decadência. Inadequação. Não-ocorrência. Pagamento de Servidor Público. Instituição Financeira Oficial. Desnecessidade. Obrigatoriedade do Servidor Contratar a Instituição Financeira Indicada pelo Ente Público ao Qual Está Vinculado. Inexistência. 1 - O ato administrativo que gera lesão ao pagamento dos servidores públicos é de trato sucessivo, de modo que o prazo para impetração de mandado de segurança contra ele se renova a cada mês. 2 - Improcede a alegação de falta de interesse de agir por imprecisão do ato acoimado de coator e necessidade de dilação probatória, quando ato coator está por demais evidenciado, e a documentação coligida aos autos é suficiente para amparar o julgamento do writ. 3 - O pagamento dos s e r v i d o r e s p ú b l i c o s n ã o c o n f i g u r a “disponibilidade de caixa” de modo que se trata de serviço que pode ser prestado por qualquer instituição financeira, oficial ou não, sem que implique ofensa ao art. 164, § 3º, da CF. Precedentes do STF. 4 - A relação jurídica que se estabelece entre o ente público e seus servidores é institucional e regula tão-somente os aspectos atinentes ao serviço público. Já a relação jurídica firmada pelo servidor com as instituições financeiras, mesmo as oficiais, são de natureza pessoal e privada, daí porque não se mostra plausível à administração invadir o âmbito particular do servidor e impor a este, de forma compulsória, a contratação de serviços de quem ela indicar. 5 - Segurança concedida, em parte, para reconhecer a inexistência de obrigação dos servidores públicos vinculados ao impetrante de abrirem conta corrente (“de depósito”) no Banco Itaú S/A para recebimento de seus vencimentos, bem como lhes assegurar direito de receberem os respectivos créditos,

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com disponibilidade no mesmo dia, na conta de depósitos de que forem titulares, por sua livre iniciativa, seja no próprio Banco Itaú S/A ou em qualquer outra instituição financeira integrante do Sistema Financeiro Nacional. Segurança deferida, em parte.(Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, Mandado de Segurança Co le t ivo n . 234-3 /205 (200600953550), Órgão Especial, Rel. Des. João Ubaldo Ferreira. Julgado em 25/04/07, DJ 15026 de 22/06/07, grifos meus)

No âmbito desse julgamento, é oportuno transcrever trecho do voto do eminente Desembargador João Ubaldo Ferreira, in verbis:

[...] em consulta ao repositório de leis estaduais e federais, não encontrei nenhum dispositivo que autorizasse ao Estado impor a seus servidores, na forma compulsória, a abertura de uma conta corrente normal na instituição financeira contratada para efetuar o pagamento do funcionalismo. [...] conclui-se que não há obrigação legal de o servidor público vinculado ao Poder Executivo estadual, abrir uma conta corrente normal (“de depósito”) no Banco Itaú S/A c o m o c o n d i ç ã o p a r a r e c e b e r s e u s vencimentos/subsídios. O que se pode depreender dos textos normativos consultados é que, para receber seus vencimentos, o servidor deve ter, junto à instituição financeira contratada pelo ente público, tão-somente uma conta-salário, sendo que a decisão de abrir uma conta corrente normal (“de depósito”) na referida instituição deve ser feita por livre escolha do funcionário. Não poderia ser diferente. A relação jurídica que se estabelece entre o ente público e seus servidores é institucional e regula tão-somente os aspectos inerentes ao serviço público. Já a relação jurídica firmada pelo servidor com as instituições financeiras, mesmo as oficiais, são de natureza pessoal e privada, daí por que não se mostra plausível à Administração invadir o âmbito particular do servidor e impor a este, de forma compulsória, a contratação dos serviços de quem ela

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indicar. [...] Em resumo, ante a falta de previsão legal, o servidor público estadual vinculado ao impetrante não está obrigado a abrir conta corrente normal (“de depósito”) no Banco Itaú S/A como condição para recebimento de seus vencimentos.

Noutro ponto, não merece prosperar eventual alegação de permissão da vinculação da folha de pagamento, em razão das Resoluções n. 2718/00 e n. 3402/06 do Banco Central do Brasil, versando sobre conta salário. As resoluções facultam ao servidor o crédito de vencimentos em contas salários ou contas correntes, e estas poderão ser abertas em qualquer instituição financeira.

Em resumo, o Ministério Público entende que a folha de pagamento de servidores públicos não constitui serviço público e não pode ser objeto de licitação. O servidor tem o direito, como consumidor, a escolher a instituição bancária que pretende utilizar para perceber seus vencimentos, sem interferência do Município. O ente público abusou de seu poder, ao intervir em esfera privada em afronta à Constituição Federal.

Para encerrar qualquer dúvida, não se pode deixar de transcrever nesta peça trechos do voto do eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, ao apreciar a matéria no Agravo Regimental na Reclamação 3872-6/DF, julgado em 14/12/2005. Das notas taquigráficas constantes do sítio www.stf.gov.br extraem-se as seguintes opiniões, emitidas pelo ministro durante a sessão do Pleno:

É certo, fora de dúvida, que a administração e custódia dos títulos públicos federais adquiridos pelo Estado não pode ser contratada sem licitação. Não há dúvida quanto a isso. Prevalece, neste ponto, o princípio republicano como há muitos anos professa o Desembargador José Fernandes; quer dizer: não é necessário que a lei imponha o dever de licitar. Na República, impõe-se a licitação. Quanto à prestação de serviço de pagamento a fornecedores do Estado e da remuneração dos servidores do Estado, não poderia ser contratada entre o Estado e o banco. E isso porque o beneficiário da prestação desses serviços não é o Estado; quem dele desfruta são os

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credores, os fornecedores e os servidores do Estado. Assim, o que o Estado efetivamente pretende é criar uma clientela cativa em benefício do banco. Em rigor, não poderia alienar carteira de clientes que não lhe pertence, até porque a cria à custa de indevida imposição aos credores. [...] Embora tenha convicção de que há uma burla ao princípio da licitação e que não se pode vender o que não se tem – isso é estelionato, 171 –, vou pedir vista.

Já no voto vista, lido pelo Ministro no Tribunal Pleno, lê-se:

Quanto à prestação de serviços de pagamentos a fornecedores do Estado e da remuneração dos servidores do Estado, em rigor não poderia ser contratada entre o Estado e o banco, eis que o beneficiário da prestação desses serviços não é o Estado. Quem deles desfruta são os credores, os fornecedores e os servidores do Estado. A relação jurídica considerada quando se faz referência a pagamentos a fornecedores do Estado e da remuneração dos servidores do Estado é travada entre a instituição financeira e seus clientes, os credores aos quais serão feitos os pagamentos. [...] Sendo assim, dou provimento ao agravo regimental, não deixando, contudo, de registrar que, embora a decisão do Supremo no julgamento da ADI 3.578-9/DF não tenha sido afrontada, a contratação do BEC pelo Estado do Ceará sem prévia licitação importa franca violação dos preceitos veiculados pelos artigos 5º, caput e 170, IV da Constituição do Brasil.

Entretanto, caso esse juízo entenda que o crédito de vencimentos configura serviço público, percebe-se que o Município réu violou a Constituição Federal ao deixar de licitar o serviço, este considerado imprescindível pelo Supremo Tribunal Federal. Os réus afrontaram os princípios da moralidade, da impessoalidade e da legalidade da administração pública e a regra contida no art. 37, XXI, da Carta da República.

oPortanto, o art. 1 da Lei Municipal n. 1612/06 deve ser

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indicar. [...] Em resumo, ante a falta de previsão legal, o servidor público estadual vinculado ao impetrante não está obrigado a abrir conta corrente normal (“de depósito”) no Banco Itaú S/A como condição para recebimento de seus vencimentos.

Noutro ponto, não merece prosperar eventual alegação de permissão da vinculação da folha de pagamento, em razão das Resoluções n. 2718/00 e n. 3402/06 do Banco Central do Brasil, versando sobre conta salário. As resoluções facultam ao servidor o crédito de vencimentos em contas salários ou contas correntes, e estas poderão ser abertas em qualquer instituição financeira.

Em resumo, o Ministério Público entende que a folha de pagamento de servidores públicos não constitui serviço público e não pode ser objeto de licitação. O servidor tem o direito, como consumidor, a escolher a instituição bancária que pretende utilizar para perceber seus vencimentos, sem interferência do Município. O ente público abusou de seu poder, ao intervir em esfera privada em afronta à Constituição Federal.

Para encerrar qualquer dúvida, não se pode deixar de transcrever nesta peça trechos do voto do eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, ao apreciar a matéria no Agravo Regimental na Reclamação 3872-6/DF, julgado em 14/12/2005. Das notas taquigráficas constantes do sítio www.stf.gov.br extraem-se as seguintes opiniões, emitidas pelo ministro durante a sessão do Pleno:

É certo, fora de dúvida, que a administração e custódia dos títulos públicos federais adquiridos pelo Estado não pode ser contratada sem licitação. Não há dúvida quanto a isso. Prevalece, neste ponto, o princípio republicano como há muitos anos professa o Desembargador José Fernandes; quer dizer: não é necessário que a lei imponha o dever de licitar. Na República, impõe-se a licitação. Quanto à prestação de serviço de pagamento a fornecedores do Estado e da remuneração dos servidores do Estado, não poderia ser contratada entre o Estado e o banco. E isso porque o beneficiário da prestação desses serviços não é o Estado; quem dele desfruta são os

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credores, os fornecedores e os servidores do Estado. Assim, o que o Estado efetivamente pretende é criar uma clientela cativa em benefício do banco. Em rigor, não poderia alienar carteira de clientes que não lhe pertence, até porque a cria à custa de indevida imposição aos credores. [...] Embora tenha convicção de que há uma burla ao princípio da licitação e que não se pode vender o que não se tem – isso é estelionato, 171 –, vou pedir vista.

Já no voto vista, lido pelo Ministro no Tribunal Pleno, lê-se:

Quanto à prestação de serviços de pagamentos a fornecedores do Estado e da remuneração dos servidores do Estado, em rigor não poderia ser contratada entre o Estado e o banco, eis que o beneficiário da prestação desses serviços não é o Estado. Quem deles desfruta são os credores, os fornecedores e os servidores do Estado. A relação jurídica considerada quando se faz referência a pagamentos a fornecedores do Estado e da remuneração dos servidores do Estado é travada entre a instituição financeira e seus clientes, os credores aos quais serão feitos os pagamentos. [...] Sendo assim, dou provimento ao agravo regimental, não deixando, contudo, de registrar que, embora a decisão do Supremo no julgamento da ADI 3.578-9/DF não tenha sido afrontada, a contratação do BEC pelo Estado do Ceará sem prévia licitação importa franca violação dos preceitos veiculados pelos artigos 5º, caput e 170, IV da Constituição do Brasil.

Entretanto, caso esse juízo entenda que o crédito de vencimentos configura serviço público, percebe-se que o Município réu violou a Constituição Federal ao deixar de licitar o serviço, este considerado imprescindível pelo Supremo Tribunal Federal. Os réus afrontaram os princípios da moralidade, da impessoalidade e da legalidade da administração pública e a regra contida no art. 37, XXI, da Carta da República.

oPortanto, o art. 1 da Lei Municipal n. 1612/06 deve ser

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declarado inconstitucional por esse juízo, em controle difuso de constitucionalidade.

II.3.2 – DO DEPÓSITO DE RECURSOS PÚBLICOS VINCULADOS

Nos itens antecedentes, sustentamos que as disponibilidades de caixa devem ser depositadas em bancos oficiais e os vencimentos do servidor público em instituição financeira de sua preferência.

Neste tópico, trataremos do depósito dos demais recursos públicos, que não ficam à disposição dos entes públicos para despesas futuras nem são destinados a servidores públicos ou prestadores de serviços.

Tais recursos, empenhados para fins específicos e que deixam o Erário diretamente para contas bancárias previamente definidas, não constituem disponibilidade de caixa. A administração desses recursos pode ser realizada por instituição bancária privada, desde que precedida do devido procedimento licitatório.

De acordo com a Constituição Federal:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; [...]Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo

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de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

O Supremo Tribunal Federal decidiu, por ocasião da concessão de cautelar na Reclamação 3942/SC, que tratava de contratação de banco privado para pagamento de servidores municipais, que havia aparente violação da exigência constitucional de licitação. Vejamos:

DECISÃO: Reclamação - com pedido de liminar - contra a suspensão de liminar concedida pelo Primeiro Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Alega-se desrespeito ao julgado na ADIn 3578-MC. [...] caso de excepcional urgência, que autoriza a decisão liminar sem audiência dos partícipes da edição das normas questionadas (LADIn, art. 10, § 3º), dada a iminência do leilão de privatização do controle de instituição financeira, cujo resultado poderia vir a ser comprometido com a concessão posterior da medida cautelar. [...] aparente violação, por fim, da exigência constitucional de licitação (CF, art. 37, XXI); [...] O caso versa sobre pagamento de servidores municipais, hipótese que parece - neste juízo preliminar - ser diversa da discutida no acordão paradigma.

A doutrina autorizada posicionou-se também pela necessidade de licitação para a contratação de serviços bancários por entes públicos, quando não se trata de disponibilidade de caixa nem de pagamento de servidores, in verbis:

Em relação à extensa gama de serviços que as instituições financeiras colocam à disposição de seus clientes, em se tratando de Administração pública e havendo custos para estas, decorrentes da

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declarado inconstitucional por esse juízo, em controle difuso de constitucionalidade.

II.3.2 – DO DEPÓSITO DE RECURSOS PÚBLICOS VINCULADOS

Nos itens antecedentes, sustentamos que as disponibilidades de caixa devem ser depositadas em bancos oficiais e os vencimentos do servidor público em instituição financeira de sua preferência.

Neste tópico, trataremos do depósito dos demais recursos públicos, que não ficam à disposição dos entes públicos para despesas futuras nem são destinados a servidores públicos ou prestadores de serviços.

Tais recursos, empenhados para fins específicos e que deixam o Erário diretamente para contas bancárias previamente definidas, não constituem disponibilidade de caixa. A administração desses recursos pode ser realizada por instituição bancária privada, desde que precedida do devido procedimento licitatório.

De acordo com a Constituição Federal:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; [...]Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo

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de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

O Supremo Tribunal Federal decidiu, por ocasião da concessão de cautelar na Reclamação 3942/SC, que tratava de contratação de banco privado para pagamento de servidores municipais, que havia aparente violação da exigência constitucional de licitação. Vejamos:

DECISÃO: Reclamação - com pedido de liminar - contra a suspensão de liminar concedida pelo Primeiro Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Alega-se desrespeito ao julgado na ADIn 3578-MC. [...] caso de excepcional urgência, que autoriza a decisão liminar sem audiência dos partícipes da edição das normas questionadas (LADIn, art. 10, § 3º), dada a iminência do leilão de privatização do controle de instituição financeira, cujo resultado poderia vir a ser comprometido com a concessão posterior da medida cautelar. [...] aparente violação, por fim, da exigência constitucional de licitação (CF, art. 37, XXI); [...] O caso versa sobre pagamento de servidores municipais, hipótese que parece - neste juízo preliminar - ser diversa da discutida no acordão paradigma.

A doutrina autorizada posicionou-se também pela necessidade de licitação para a contratação de serviços bancários por entes públicos, quando não se trata de disponibilidade de caixa nem de pagamento de servidores, in verbis:

Em relação à extensa gama de serviços que as instituições financeiras colocam à disposição de seus clientes, em se tratando de Administração pública e havendo custos para estas, decorrentes da

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cobrança de tarifas e preços, surge, como inquestionável, a necessidade de realização de procedimento licitatório. Poderá ocorrer a contratação direta, com arrimo na exceção do artigo 25, caput, da Lei n. 8.666/93, por ser inexigível a licitação, em razão de inviabilidade de competição, quando existir no Município apenas uma instituição financeira ou, ainda, quando ocorrer a hipótese de uniformidade na cobrança de tarifas, caso em que todas as instituições financeiras existentes no mesmo Município poderão ser autorizadas-credenciadas a prestar-lhe serviços. De outra parte, a possibilidade de dispensa de licitação, com supedâneo na exceção do inciso VIII do artigo 24 do mesmo Estatuto das Licitações e Contratos, hoje, diferentemente de ontem, no momento em que, como se demonstrou neste trabalho, o cenário atual do sistema bancário nacional se encontra profundamente alterado, entendo como temerária a contratação direta de instituição financeira que preencha as condições exigidas pela regra de exceção, até porque, em face de sua reduzida participação no universo de instituições financeiras em atividade no País, poderiam estar sendo afrontados os princípios cons t i tuc iona is da i sonomia e ampla competitividade do certame, consagrados no artigo 3º da Lei n. 8.666/93. Ademais, sempre é bom lembrar que aquele permissivo excepcional contém uma contradição em si mesmo quando, muito embora admitindo a contratação direta, alerta: “desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado”. Ora, se a Administração pública, antes de contratar diretamente uma instituição financeira oficial que preencha os requisitos gizados na norma de regência, deve pesquisar os preços vigentes no mercado, não vislumbro razões para deixar de promover certame licitatório, no qual poderão concorrer os bancos públicos, sem qualquer privilégio. (BAPTISTA, A. S. Constituição Federal. Artigo 164, Parágrafo 3º. Inteligência do Conceito de Disponibilidades de Caixa. A Superveniência da Lei de Responsabilidade Fiscal. A Medida Provisória n. 2.139 . Fórum de

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Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, n. 18, ano 2 jun. 2003. Disponível em: <ht tp: / /www. edi toraforum.com.br/s is t / conteudo/lista_conteudo.asp>. Acesso em: 18 ago. 2006.)

O autor alerta que o aparente antagonismo existente entre oo § 2 do art. 35 e o art. 43 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC

3101/2000) é resolvido por uma interpretação sistemática do aplicador do direito, no sentido de que o que a LRF permite, nas “condições de mercado” e nos “limites e condições de prudência financeira” é a compra direta de títulos da União, e não a colocação de recursos públicos em bancos privados. Conclui o articulista:

As “condições de mercado” e os “limites e condições de prudência financeira” estão na Lei de Responsabilidade Fiscal ou, mais precisamente, nos parágrafos 2º e 3º do artigo 39. O parágrafo 2º autoriza “o Banco Central do Brasil a comprar diretamente títulos emitidos pela União”, na hipótese que especifica, enquanto que o parágrafo 3º diz que esta “operação deverá ser realizada à taxa média e condições alcançadas no dia, em leilão público”.Assim, qualquer Estado, qualquer Município brasileiro, qualquer regime de previdência, poderá comprar no mercado, diretamente, de qualquer instituição financeira autorizada a funcionar no

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 213

3 Art. 35. É vedada a realização de operação de crédito entre um ente da Federação, diretamente ou por intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída

oanteriormente. / [...] / § 2 O disposto no caput não impede Estados e Municípios de comprar títulos da dívida da União como aplicação de suas disponibilidades. / Art. 43. As disponibilidades de caixa dos entes da Federação serão depositadas conforme

o oestabelece o § 3 do art. 164 da Constituição. / § 1 As disponibilidades de caixa dos regimes de previdência social, geral e prpó rio dos servidores públicos, ainda que vinculadas a fundos específicos a que se referem os arts. 249 e 250 da Constituição, ficarão depositadas em conta separada das demais disponibilidades de cada ente e aplicadas nas condições de mercado, com observância dos limites e condições de proteção e prudência financeira.

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cobrança de tarifas e preços, surge, como inquestionável, a necessidade de realização de procedimento licitatório. Poderá ocorrer a contratação direta, com arrimo na exceção do artigo 25, caput, da Lei n. 8.666/93, por ser inexigível a licitação, em razão de inviabilidade de competição, quando existir no Município apenas uma instituição financeira ou, ainda, quando ocorrer a hipótese de uniformidade na cobrança de tarifas, caso em que todas as instituições financeiras existentes no mesmo Município poderão ser autorizadas-credenciadas a prestar-lhe serviços. De outra parte, a possibilidade de dispensa de licitação, com supedâneo na exceção do inciso VIII do artigo 24 do mesmo Estatuto das Licitações e Contratos, hoje, diferentemente de ontem, no momento em que, como se demonstrou neste trabalho, o cenário atual do sistema bancário nacional se encontra profundamente alterado, entendo como temerária a contratação direta de instituição financeira que preencha as condições exigidas pela regra de exceção, até porque, em face de sua reduzida participação no universo de instituições financeiras em atividade no País, poderiam estar sendo afrontados os princípios cons t i tuc iona is da i sonomia e ampla competitividade do certame, consagrados no artigo 3º da Lei n. 8.666/93. Ademais, sempre é bom lembrar que aquele permissivo excepcional contém uma contradição em si mesmo quando, muito embora admitindo a contratação direta, alerta: “desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado”. Ora, se a Administração pública, antes de contratar diretamente uma instituição financeira oficial que preencha os requisitos gizados na norma de regência, deve pesquisar os preços vigentes no mercado, não vislumbro razões para deixar de promover certame licitatório, no qual poderão concorrer os bancos públicos, sem qualquer privilégio. (BAPTISTA, A. S. Constituição Federal. Artigo 164, Parágrafo 3º. Inteligência do Conceito de Disponibilidades de Caixa. A Superveniência da Lei de Responsabilidade Fiscal. A Medida Provisória n. 2.139 . Fórum de

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Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, n. 18, ano 2 jun. 2003. Disponível em: <ht tp: / /www. edi toraforum.com.br/s is t / conteudo/lista_conteudo.asp>. Acesso em: 18 ago. 2006.)

O autor alerta que o aparente antagonismo existente entre oo § 2 do art. 35 e o art. 43 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC

3101/2000) é resolvido por uma interpretação sistemática do aplicador do direito, no sentido de que o que a LRF permite, nas “condições de mercado” e nos “limites e condições de prudência financeira” é a compra direta de títulos da União, e não a colocação de recursos públicos em bancos privados. Conclui o articulista:

As “condições de mercado” e os “limites e condições de prudência financeira” estão na Lei de Responsabilidade Fiscal ou, mais precisamente, nos parágrafos 2º e 3º do artigo 39. O parágrafo 2º autoriza “o Banco Central do Brasil a comprar diretamente títulos emitidos pela União”, na hipótese que especifica, enquanto que o parágrafo 3º diz que esta “operação deverá ser realizada à taxa média e condições alcançadas no dia, em leilão público”.Assim, qualquer Estado, qualquer Município brasileiro, qualquer regime de previdência, poderá comprar no mercado, diretamente, de qualquer instituição financeira autorizada a funcionar no

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3 Art. 35. É vedada a realização de operação de crédito entre um ente da Federação, diretamente ou por intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída

oanteriormente. / [...] / § 2 O disposto no caput não impede Estados e Municípios de comprar títulos da dívida da União como aplicação de suas disponibilidades. / Art. 43. As disponibilidades de caixa dos entes da Federação serão depositadas conforme

o oestabelece o § 3 do art. 164 da Constituição. / § 1 As disponibilidades de caixa dos regimes de previdência social, geral e prpó rio dos servidores públicos, ainda que vinculadas a fundos específicos a que se referem os arts. 249 e 250 da Constituição, ficarão depositadas em conta separada das demais disponibilidades de cada ente e aplicadas nas condições de mercado, com observância dos limites e condições de proteção e prudência financeira.

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País, “títulos emitidos pela União” (Lei Complementar n. 101/2000, artigo 29, II), observadas as condições fixadas pelo parágrafo 3º do artigo 39 da Lei Complementar n. 101/2000, isto porque, os limites e condições, as restrições que sujeitam o Banco Central do Brasil, aplicam-se, evidentemente, para os Estados, Municípios e regimes de previdência. (Op. cit.)

oAssim, o art. 1 da Lei Municipal n. 1612/06 é inconstitucional, na parte em que dispensa licitação e autoriza a contratação do banco réu pelo Município de São Luís de Montes Belos.

II.4 – DA ILEGALIDADE DO CONVÊNIO

Demonstrada a inconstitucionalidade material da Lei Municipal n. 1612/06, nos tópicos anteriores, é forçoso reconhecer a nulidade do convênio firmado pelos réus com fundamento no ato normativo.

Formalmente, o convênio não é instrumento adequado para formalizar acordo Município e empresa privada, mas sim para pactuar gestão associada de entes da federação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal. O instrumento hábil para execução de obras, serviços, compras e alienações é o contrato administrativo, precedido de licitação.

Materialmente, o ato administrativo é nulo, pois o Município réu contratou com o banco réu sem prévia licitação, em afronta direta ao art. 37, XXI da Constituição Federal. Violou também os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade da administração pública, previstos no caput do art. 37, e

oa proteção constitucional do consumidor, traduzida nos arts. 5 , XXXII e 170, V, da Carta Política.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008214

II.5 – DAS RESOLUÇÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS (TCM/GO) SOBRE A MATÉRIA

O Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás (TCM/GO) é órgão legitimado pela Constituição do Estado de Goiás de 1989 para auxiliar as Câmaras Municipais no controle externo das contas mensais e anuais dos Municípios goianos, de acordo com os arts. 79 a 82 da Carta Estadual.

Em 2006, o TCM/GO deparou-se com alguns casos de vinculação de servidores públicos a bancos, por iniciativa de Municípios goianos, como condição para depósito de vencimentos. A Corte, ao analisar a matéria em abstrato, vislumbrou irregularidades diversas e decidiu orientar os Municípios sobre a inconstitucionalidade dos vínculos com instituições bancárias.

Para tanto, expediu duas resoluções-consulta sobre o assunto: a Resolução-Consulta n. 002, de 15 de fevereiro de 2006; e a Resolução-Consulta n. 032, de 23 de agosto de 2006 – cópias acostadas às fls. 58/64 do inquérito civil público. Seguem trechos das resoluções:

Resolução RC n. 002/06Tratam os presentes autos de n. 10711/05, de consulta formulada pelo Senhor Ary Joel de Abreu Lanzarin, Superintendente Estadual do Banco do Brasil em Goiás, indagando sobre a legalidade do procedimento de concorrência pública que vem sendo adotado por municípios goianos, tendo como objeto a prestação de serviços de pagamento das folhas dos servidores públicos. Após fazer um relato sobre os programas em execução pelo Banco do Brasil de auxílio às políticas públicas, observa existir ‘uma ação capitaneada pelos bancos privados junto às Prefeituras, no sentido de que as mesmas transfiram-lhes sua movimentação financeira relacionada à folha de pagamento de servidores, mediante aporte direto de recursos estimulando a instalação de procedimentos licitatórios para prestação do serviço’ [...] Analisados pela Relatoria, esta comungou com parte do entendimento da Quinta Auditoria e de acordo com os entendimentos

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 215

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País, “títulos emitidos pela União” (Lei Complementar n. 101/2000, artigo 29, II), observadas as condições fixadas pelo parágrafo 3º do artigo 39 da Lei Complementar n. 101/2000, isto porque, os limites e condições, as restrições que sujeitam o Banco Central do Brasil, aplicam-se, evidentemente, para os Estados, Municípios e regimes de previdência. (Op. cit.)

oAssim, o art. 1 da Lei Municipal n. 1612/06 é inconstitucional, na parte em que dispensa licitação e autoriza a contratação do banco réu pelo Município de São Luís de Montes Belos.

II.4 – DA ILEGALIDADE DO CONVÊNIO

Demonstrada a inconstitucionalidade material da Lei Municipal n. 1612/06, nos tópicos anteriores, é forçoso reconhecer a nulidade do convênio firmado pelos réus com fundamento no ato normativo.

Formalmente, o convênio não é instrumento adequado para formalizar acordo Município e empresa privada, mas sim para pactuar gestão associada de entes da federação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal. O instrumento hábil para execução de obras, serviços, compras e alienações é o contrato administrativo, precedido de licitação.

Materialmente, o ato administrativo é nulo, pois o Município réu contratou com o banco réu sem prévia licitação, em afronta direta ao art. 37, XXI da Constituição Federal. Violou também os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade da administração pública, previstos no caput do art. 37, e

oa proteção constitucional do consumidor, traduzida nos arts. 5 , XXXII e 170, V, da Carta Política.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008214

II.5 – DAS RESOLUÇÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS (TCM/GO) SOBRE A MATÉRIA

O Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás (TCM/GO) é órgão legitimado pela Constituição do Estado de Goiás de 1989 para auxiliar as Câmaras Municipais no controle externo das contas mensais e anuais dos Municípios goianos, de acordo com os arts. 79 a 82 da Carta Estadual.

Em 2006, o TCM/GO deparou-se com alguns casos de vinculação de servidores públicos a bancos, por iniciativa de Municípios goianos, como condição para depósito de vencimentos. A Corte, ao analisar a matéria em abstrato, vislumbrou irregularidades diversas e decidiu orientar os Municípios sobre a inconstitucionalidade dos vínculos com instituições bancárias.

Para tanto, expediu duas resoluções-consulta sobre o assunto: a Resolução-Consulta n. 002, de 15 de fevereiro de 2006; e a Resolução-Consulta n. 032, de 23 de agosto de 2006 – cópias acostadas às fls. 58/64 do inquérito civil público. Seguem trechos das resoluções:

Resolução RC n. 002/06Tratam os presentes autos de n. 10711/05, de consulta formulada pelo Senhor Ary Joel de Abreu Lanzarin, Superintendente Estadual do Banco do Brasil em Goiás, indagando sobre a legalidade do procedimento de concorrência pública que vem sendo adotado por municípios goianos, tendo como objeto a prestação de serviços de pagamento das folhas dos servidores públicos. Após fazer um relato sobre os programas em execução pelo Banco do Brasil de auxílio às políticas públicas, observa existir ‘uma ação capitaneada pelos bancos privados junto às Prefeituras, no sentido de que as mesmas transfiram-lhes sua movimentação financeira relacionada à folha de pagamento de servidores, mediante aporte direto de recursos estimulando a instalação de procedimentos licitatórios para prestação do serviço’ [...] Analisados pela Relatoria, esta comungou com parte do entendimento da Quinta Auditoria e de acordo com os entendimentos

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manifestados pela Procuradoria Geral de Contas e Superintendência Jurídica, acrescendo aos fundamentos trazidos aos autos os seguintes: 1)- que o processamento da folha de pagamento dos servidores não se encerra com a simples emissão da Ordem de Pagamento, e sim, com a efetivação entrada do crédito na conta de cada servidor, quando então se dará a liquidação da despesa; 2)- que a efetivação da liquidação da despesa com o pagamento dos servidores é de responsabilidade exclusiva do Poder Público, portanto, não podendo ser delegada a terceiros não autorizados, como é o caso das instituições privadas, face ao disposto no art. 164, 3° da C.F.; 3) - que, além das proibições acima, não se é possível vislumbrar em quaisquer dos tipos de licitação previstos na Lei n. 8.666/93, aquele capaz de abarcar os objetivos da transação, que, na verdade, se enquadra mais em situação de concessão de serviço público do que em contratação; 4)- em última premissa, existe o fato de que a administração não pode impor aos servidores públicos o banco privado que deveriam manter conta bancária para fins de recebimento de seus salários, a não ser, no caso, os bancos oficiais.Assim sendo, RESOLVE o EGRÉGIO TRIBUNAL DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS, pelos membros integrantes de seu Colegiado, com base nas conclusões apresentadas pela Superintendência Jurídica e Procuradoria Geral de Contas, manifestar ao Consulente seu entendimento no sentido de: 1)- o processamento das folhas de pagamentos dos servidores dos Municípios deve sempre se dar em bancos oficiais, entendendo tal processamento até a efetiva entrada dos recursos na conta bancária dos servidores; 2)- é vedada a realização de p ro c e d i m e n t o l i c i t a t ó r i o v i s a n d o a transferência de tais serviços a instituições financeiras não oficiais.

Resolução RC n. 032/06[...] Assim sendo, RESOLVE o EGRÉGIO TRIBUNAL DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS, pelos membros integrantes de seu Colegiado, com base nas conclusões apresentadas pela

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008216

Superintendência Jurídica e Equipe Técnica, manifestar ao BANCO ITAÚ S.A. seu entendimento no sentido de que: 1 – a disponibilidade de caixa do Município deve ser depositada em banco oficial; 2 – o crédito de salário depositado na conta corrente do servidor não é disponibilidade de caixa; 3 – o serviço de processamento dos créditos de salário deve ser realizado pelo banco oficial onde se encontra a disponibilidade de caixa; 4 – o crédito de disponibilidade financeira para pagamento de salários deve sair direto da conta do Município, em banco oficial, para a conta dos servidores, sem qualquer intermediação; 5 – o Município não pode licitar a “carteira de contas bancárias” de seus servidores, uma vez que não pode dispor de direito de terceiros (art. 6º do CPC). (grifos meus)

As resoluções emanam de órgão legitimado pela Constituição do Estado de Goiás e constituem referência fundamental para a presente ação civil pública do Ministério Público, e certamente para a decisão judicial a ser proferida.

III – DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA

A Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85) autoriza a concessão de liminar em ação civil pública, com ou sem justificação prévia. Já a Lei Federal n. 8.437/92 estabelece que, em ação civil pública proposta contra atos do Poder Público, a liminar será concedida, quando cabível, após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de setenta e duas horas.

No caso em tela, é imprescindível a concessão de medida liminar, como forma de antecipar os efeitos da tutela final. Estão presentes os requisitos previstos no art. 273 do Código de Processo Civil.

Há prova inequívoca de que o réu Município de São Luís de Montes Belos invadiu esfera particular dos servidores públicos municipais, vinculando-os ao banco réu de forma inconstitucional.

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manifestados pela Procuradoria Geral de Contas e Superintendência Jurídica, acrescendo aos fundamentos trazidos aos autos os seguintes: 1)- que o processamento da folha de pagamento dos servidores não se encerra com a simples emissão da Ordem de Pagamento, e sim, com a efetivação entrada do crédito na conta de cada servidor, quando então se dará a liquidação da despesa; 2)- que a efetivação da liquidação da despesa com o pagamento dos servidores é de responsabilidade exclusiva do Poder Público, portanto, não podendo ser delegada a terceiros não autorizados, como é o caso das instituições privadas, face ao disposto no art. 164, 3° da C.F.; 3) - que, além das proibições acima, não se é possível vislumbrar em quaisquer dos tipos de licitação previstos na Lei n. 8.666/93, aquele capaz de abarcar os objetivos da transação, que, na verdade, se enquadra mais em situação de concessão de serviço público do que em contratação; 4)- em última premissa, existe o fato de que a administração não pode impor aos servidores públicos o banco privado que deveriam manter conta bancária para fins de recebimento de seus salários, a não ser, no caso, os bancos oficiais.Assim sendo, RESOLVE o EGRÉGIO TRIBUNAL DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS, pelos membros integrantes de seu Colegiado, com base nas conclusões apresentadas pela Superintendência Jurídica e Procuradoria Geral de Contas, manifestar ao Consulente seu entendimento no sentido de: 1)- o processamento das folhas de pagamentos dos servidores dos Municípios deve sempre se dar em bancos oficiais, entendendo tal processamento até a efetiva entrada dos recursos na conta bancária dos servidores; 2)- é vedada a realização de p ro c e d i m e n t o l i c i t a t ó r i o v i s a n d o a transferência de tais serviços a instituições financeiras não oficiais.

Resolução RC n. 032/06[...] Assim sendo, RESOLVE o EGRÉGIO TRIBUNAL DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS, pelos membros integrantes de seu Colegiado, com base nas conclusões apresentadas pela

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008216

Superintendência Jurídica e Equipe Técnica, manifestar ao BANCO ITAÚ S.A. seu entendimento no sentido de que: 1 – a disponibilidade de caixa do Município deve ser depositada em banco oficial; 2 – o crédito de salário depositado na conta corrente do servidor não é disponibilidade de caixa; 3 – o serviço de processamento dos créditos de salário deve ser realizado pelo banco oficial onde se encontra a disponibilidade de caixa; 4 – o crédito de disponibilidade financeira para pagamento de salários deve sair direto da conta do Município, em banco oficial, para a conta dos servidores, sem qualquer intermediação; 5 – o Município não pode licitar a “carteira de contas bancárias” de seus servidores, uma vez que não pode dispor de direito de terceiros (art. 6º do CPC). (grifos meus)

As resoluções emanam de órgão legitimado pela Constituição do Estado de Goiás e constituem referência fundamental para a presente ação civil pública do Ministério Público, e certamente para a decisão judicial a ser proferida.

III – DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA

A Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85) autoriza a concessão de liminar em ação civil pública, com ou sem justificação prévia. Já a Lei Federal n. 8.437/92 estabelece que, em ação civil pública proposta contra atos do Poder Público, a liminar será concedida, quando cabível, após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de setenta e duas horas.

No caso em tela, é imprescindível a concessão de medida liminar, como forma de antecipar os efeitos da tutela final. Estão presentes os requisitos previstos no art. 273 do Código de Processo Civil.

Há prova inequívoca de que o réu Município de São Luís de Montes Belos invadiu esfera particular dos servidores públicos municipais, vinculando-os ao banco réu de forma inconstitucional.

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Comprovou-se também que os réus feriram os princípios da moralidade, impessoalidade e legalidade da administração pública, previstos no caput do art. 37 da Constituição Federal, e deixaram de observar a regra que impõe a licitação para contratação de serviço, de acordo com o inciso XXI do dispositivo

oconstitucional. Já os indícios de violação ao art. 164, § 3 , da Constituição Federal, a serem confirmados no curso da ação, justificam a concessão de liminar para evitar possíveis danos ao patrimônio público.

A verossimilhança das alegações ministeriais aflora dos próprios fatos e fundamentos jurídicos trazidos a esta petição inicial, que não deixam dúvidas da inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 1612/06 e da nulidade do convênio pactuado pelos réus.

Há flagrante receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Os réus mantêm o convênio há um ano e os servidores municipais são violados continuamente em seu direito constitucional de liberdade, decorrente de abuso de autoridade do Município réu. Ademais, a manutenção do convênio afronta os princípios constitucionais da administração pública – moralidade, impessoalidade e legalidade – e a regra que impõe o processo de licitação para a escolha da proposta que mais atenda ao interesse público.

Portanto, o que se pede em sede de liminar é a suspensão imediata de todos os efeitos do convênio firmado pelos réus, por flagrante violação à Constituição Federal. A concessão de liminar deve ser seguida de ampla publicidade aos quase mil agentes públicos atingidos, sob ônus do Município réu.

IV – DOS PEDIDOS

Por todo o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO apresenta os seguintes pedidos e requerimentos:

a) a autuação da petição inicial, em conjunto com o inquérito civil público que a acompanha;b) a notificação do Município para se pronunciar no prazo de 72

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008218

ohoras, de acordo com o art. 2 da Lei n. 8.437/92;c) a antecipação dos efeitos da tutela, para:

c.1) determinar a imediata suspensão de todos os efeitos do convênio celebrado pelos réus;

c.1.1) determinar ao réu Município de São Luís de Montes Belos que cientifique por escrito todos os agentes públicos sobre a suspensão do convênio e a desnecessidade de manutenção de suas contas bancárias no Banco Itaú S/A, ora réu;

c.2) determinar ao Município réu que desvincule contas públicas eventualmente mantidas no banco réu para disponibilidades de caixa, para atender ao disposto no art.

o164, § 3 da Constituição Federal;c.3) determinar ao Município réu que desvincule contas

públicas eventualmente mantidas no banco réu para quaisquer fins, pois não houve licitação prévia à contratação (“convênio”), o que viola o art. 37, caput e XXI da Constituição Federal;

d) a citação dos réus da presente ação civil pública, com advertência sobre os efeitos da revelia;e) no mérito, a procedência do pedido, com confirmação da tutela antecipada postulada, e para:

e.1) reconhecer a inconstitucionalidade incidenter tantum do oart. 1 da Lei Municipal n. 1612/06 e anular o convênio

firmado pelos réus;e.2) impor ao Município obrigação de não vincular agentes

públicos municipais a bancos privados, como condição para perceberem vencimentos;

e.3) impor ao Município obrigação de não depositar recursos de disponibilidade de caixa em bancos que não sejam oficiais,

ona forma do art. 164, § 3 da Constituição Federal;e.4) impor ao Município obrigação de não celebrar contratos

com bancos privados para depósito de recursos financeiros vinculados, salvo se precedidos de prévia licitação.

f) a condenação dos réus ao pagamento de custas processuais e demais verbas de sucumbência.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 219

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Comprovou-se também que os réus feriram os princípios da moralidade, impessoalidade e legalidade da administração pública, previstos no caput do art. 37 da Constituição Federal, e deixaram de observar a regra que impõe a licitação para contratação de serviço, de acordo com o inciso XXI do dispositivo

oconstitucional. Já os indícios de violação ao art. 164, § 3 , da Constituição Federal, a serem confirmados no curso da ação, justificam a concessão de liminar para evitar possíveis danos ao patrimônio público.

A verossimilhança das alegações ministeriais aflora dos próprios fatos e fundamentos jurídicos trazidos a esta petição inicial, que não deixam dúvidas da inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 1612/06 e da nulidade do convênio pactuado pelos réus.

Há flagrante receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Os réus mantêm o convênio há um ano e os servidores municipais são violados continuamente em seu direito constitucional de liberdade, decorrente de abuso de autoridade do Município réu. Ademais, a manutenção do convênio afronta os princípios constitucionais da administração pública – moralidade, impessoalidade e legalidade – e a regra que impõe o processo de licitação para a escolha da proposta que mais atenda ao interesse público.

Portanto, o que se pede em sede de liminar é a suspensão imediata de todos os efeitos do convênio firmado pelos réus, por flagrante violação à Constituição Federal. A concessão de liminar deve ser seguida de ampla publicidade aos quase mil agentes públicos atingidos, sob ônus do Município réu.

IV – DOS PEDIDOS

Por todo o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO apresenta os seguintes pedidos e requerimentos:

a) a autuação da petição inicial, em conjunto com o inquérito civil público que a acompanha;b) a notificação do Município para se pronunciar no prazo de 72

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008218

ohoras, de acordo com o art. 2 da Lei n. 8.437/92;c) a antecipação dos efeitos da tutela, para:

c.1) determinar a imediata suspensão de todos os efeitos do convênio celebrado pelos réus;

c.1.1) determinar ao réu Município de São Luís de Montes Belos que cientifique por escrito todos os agentes públicos sobre a suspensão do convênio e a desnecessidade de manutenção de suas contas bancárias no Banco Itaú S/A, ora réu;

c.2) determinar ao Município réu que desvincule contas públicas eventualmente mantidas no banco réu para disponibilidades de caixa, para atender ao disposto no art.

o164, § 3 da Constituição Federal;c.3) determinar ao Município réu que desvincule contas

públicas eventualmente mantidas no banco réu para quaisquer fins, pois não houve licitação prévia à contratação (“convênio”), o que viola o art. 37, caput e XXI da Constituição Federal;

d) a citação dos réus da presente ação civil pública, com advertência sobre os efeitos da revelia;e) no mérito, a procedência do pedido, com confirmação da tutela antecipada postulada, e para:

e.1) reconhecer a inconstitucionalidade incidenter tantum do oart. 1 da Lei Municipal n. 1612/06 e anular o convênio

firmado pelos réus;e.2) impor ao Município obrigação de não vincular agentes

públicos municipais a bancos privados, como condição para perceberem vencimentos;

e.3) impor ao Município obrigação de não depositar recursos de disponibilidade de caixa em bancos que não sejam oficiais,

ona forma do art. 164, § 3 da Constituição Federal;e.4) impor ao Município obrigação de não celebrar contratos

com bancos privados para depósito de recursos financeiros vinculados, salvo se precedidos de prévia licitação.

f) a condenação dos réus ao pagamento de custas processuais e demais verbas de sucumbência.

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O Ministério Público protesta pela produção de todas as provas juridicamente admitidas, principalmente documentais e testemunhais, e dá à causa o valor de R$ 100,00 (cem reais), apenas para fins processuais.

Termos em que pede deferimento.

São Luís de Montes Belos, 31 de julho de 2007.

Bruno Barra GomesPromotor de Justiça

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008220

•O Conselho Consultivo da ESMP-GO definiu que a Revista do Ministério Público é de opinião doutrinária, cujo objetivo é fomentar o debate jurídico em temas que guardem pertinência e oportunidade com a atuação ministerial;

•Os artigos deverão ser preferencialmente inéditos; •Serão aceitos artigos doutrinários e peças funcionais,

observada a gramática normativa; •Cada artigo, na primeira lauda, deverá vir acompanhado de:

1- resumo (com o máximo de setenta palavras), sem parágrafos;2- palavras-chave (no máximo cinco palavras);3- título do trabalho;4- nome completo do autor (ou autores);5- minicurrículo (créditos), contendo o nome do autor (ou autores) com endereço, fac-símile e e-mail, situação acadêmica, títulos, instituições às quais pertence e a principal atividade exercida.

•Formatação: fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5, justificado, sem recuos, deslocamentos ou espaçamentos, antes ou depois e, tampouco, tabulação para determinar os parágrafos, que deverão ser abertos automaticamente. Tamanho de papel A4, margens superior e esquerda 3,0 cm e inferior e direita 2,0 cm. Os artigos deverão conter de 3 a 6 laudas, utilizando os editores de texto Word (Microsoft) ou Writer (BrOffice);

•Bibliografia: as referências bibliográficas seguirão as normas da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas, atendendo ao disposto na NBT ABNT 6023/2002. As citações deverão ser feitas em sistema de chamada, numérico ou

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008 221

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O Ministério Público protesta pela produção de todas as provas juridicamente admitidas, principalmente documentais e testemunhais, e dá à causa o valor de R$ 100,00 (cem reais), apenas para fins processuais.

Termos em que pede deferimento.

São Luís de Montes Belos, 31 de julho de 2007.

Bruno Barra GomesPromotor de Justiça

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 15, Jun/2008220

•O Conselho Consultivo da ESMP-GO definiu que a Revista do Ministério Público é de opinião doutrinária, cujo objetivo é fomentar o debate jurídico em temas que guardem pertinência e oportunidade com a atuação ministerial;

•Os artigos deverão ser preferencialmente inéditos; •Serão aceitos artigos doutrinários e peças funcionais,

observada a gramática normativa; •Cada artigo, na primeira lauda, deverá vir acompanhado de:

1- resumo (com o máximo de setenta palavras), sem parágrafos;2- palavras-chave (no máximo cinco palavras);3- título do trabalho;4- nome completo do autor (ou autores);5- minicurrículo (créditos), contendo o nome do autor (ou autores) com endereço, fac-símile e e-mail, situação acadêmica, títulos, instituições às quais pertence e a principal atividade exercida.

•Formatação: fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5, justificado, sem recuos, deslocamentos ou espaçamentos, antes ou depois e, tampouco, tabulação para determinar os parágrafos, que deverão ser abertos automaticamente. Tamanho de papel A4, margens superior e esquerda 3,0 cm e inferior e direita 2,0 cm. Os artigos deverão conter de 3 a 6 laudas, utilizando os editores de texto Word (Microsoft) ou Writer (BrOffice);

•Bibliografia: as referências bibliográficas seguirão as normas da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas, atendendo ao disposto na NBT ABNT 6023/2002. As citações deverão ser feitas em sistema de chamada, numérico ou

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autor/data, conforme especificado na NBR 10520/2002. A exatidão e a adequação das referências a trabalhos que tenham sido consultados e mencionados no corpo do artigo são de responsabilidade exclusiva do autor (ou autores);

•Remessa: Todo o material deverá ser gravado em CD e enviado via e-mail, em arquivo anexo, para o seguinte endereço eletrônico < [email protected] >. É obrigatório, ainda, que sejam enviadas à ESMP-GO (duas) cópias impressas, devidamente assinadas pelo seu autor (ou autores);

•Aprovação: a ESMP-GO, ao receber os trabalhos, fará sua análise pelo Conselho Editorial. O relator designado analisará o artigo que lhe for distribuído, conforme as regras estabelecidas pelo Conselho Consultivo;

•O trabalho aprovado será submetido a revisão ortográfica e, se for o caso, à concordância do autor;

•Em caso de rejeição do artigo para publicação, somente será feita a comunicação ao seu autor (ou autores) havendo consulta pessoal à direção da ESMP-GO;

•Os trabalhos recebidos para seleção não serão devolvidos;•Não serão devidos direitos autorais ou qualquer remuneração

pela publicação dos trabalhos na revista.

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