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    Um Acordar

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    Mnica Gomes

    Um Acordar

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    Copyright 2013 by Mnica Gomes

    Todos os direitos desta edio reservados.

    Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por

    qualquer processo eletrnico ou mecnico, fotocopiada

    ou gravada sem autorizao expressa do autor.

    ISBN: 978-85-8255-xx-xx

    Projeto grfico: Aped - Apoio e Produo Editora Ltda.

    Editorao eletrnica: Thiago Ribeiro

    Reviso: Aped - Apoio e Produo Editora Ltda.

    Capa: Thiago Ribeiro

    Aped - Apoio & Produo Editora Ltda.

    Rua Sylvio da Rocha Pollis, 201 bl. 04 1106

    Barra da Tijuca - Rio de Janeiro RJ 22793-395

    Tel.: (21) 2498-8483/ 9996-9067

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    [email protected]

    CIP-Brasil. Catalogao-na-Fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ

    Ao meu marido e flhos.

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    CAPTULOI

    Olhei-me no espelho nessa manh cinzenta de Novembro efiquei horrorizada com a minha figura obesa e deselegante.Ali, nua, eu observava no que me havia tornado: uma mulher feia,gorda, com algumas rugas conjuntamente com uma vida desinte-ressante e sem personalidade. Nesse dia eu fazia trinta anos.

    O que fiz com a minha vida?, perguntei a mim mesma.Sempre havia sonhado com o sucesso. E o que tinha eu?

    Um cubculo por pagar, um carro velho (oferecido pelos meusfalecidos pais), sem amigos, uma personalidade fraca inserida

    num corpo medonho. A minha vida profissional tambm estavalonge do que desejara. rabalhava arduamente, sem grandes fru-tos financeiros ou reconhecimento. enho que dar volta a isto!,pensei, No posso continuar assim!. Engoli o pequeno almooe sa para trabalhar, sempre com esta ideia latente de que tinhaque mudar.

    No trajeto, parei o carro e, por alguma razo, que aindahoje no entendi, mudei de direo e fui at praia.

    Hoje no vou trabalhar! Estou farta! Vou tirar o dia spara mim., matutei. E assim fiz, telefonei para o trabalho e disseque no ia porque no me sentia bem.

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    NOTADAEDITORA

    Prezado Leitor,

    Um Acordar um romance da escritora portuguesa MnicaGomes, residente em Portugal. Nossos idiomas, ditos iguais, narealidade possuem bastantes diferenas. Diversas so as palavrasque encontramos com significados e grafias diferentes.

    Optamos, em alguns trechos, no alterar essa grafia, mantendoa riqueza da obra, que est alm das fronteiras, alm dos acordosortogrficos, mas ser lida e compreendida por todos os pasesque falam a lngua portuguesa.

    Zlia de Oliveira

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    M G U A

    Na praia senti um vento cortante, sentei-me e vislumbrei omar revolto durante algum tempo. Nesse momento, iniciei umaviagem nostlgica aos meus tempos de estudante. Sempre quiserair para a escola, pois queria aprender e ser algum. custa demuito esforo fui uma boa aluna. Fazia tudo para conseguir. Eraassdua, pontual, participativa nas aulas e estudava bastante. Nasrelaes com os outros falhava um pouco, pois, por alguma razo,sempre tive tendncia para me isolar. Via os colegas nas aulas epassava o tempo livre sozinha, porm sentia falta do convvio. E,assim, foi at acabar o liceu.

    Por vezes, tentava me integrar procurando combinar sa-das, no entanto acabava sempre por ser um membro perifrico dogrupo. Lembro-me de ser a ltima a ser escolhida quando eramconstitudas as equipas de futebol em educao fsica. Por ser tomedocre em relaes interpessoais, deixei de tentar me integrar,concentrando-me mais em ser boa aluna para conseguir sucessoprofissional. Porm, apesar de todo o meu esforo, acabei o liceucom notas medianas, muito abaixo do potencial que eu poderiater. Entrei para o curso de engenharia civil e terminei h cerca decinco anos. Escolhi esse curso no s porque era boa em ma-temtica e fsica, mas tambm porque era um curso frequen-tado maioritariamente por rapazes. Dessa maneira, eu teria maischances com o sexo oposto. De fato, o meu nico namorado at adata foi meu colega de curso. Namoramos trs anos, contudo eletraa-me frequentemente e, apesar de t-lo perdoado nas primeiras

    vezes, acabei com ele. Namorei tanto tempo com ele porque fora onico a demonstrar interesse por mim.

    No meio desta retrospectiva, lembrei-me dos meus pais.Eles eram pessoas reservadas, com algum sucesso profissional,mas sem grandes dotes sociais. Criticavam-me muito e nunca, ouraras vezes, elogiavam-me. Para eles eu tinha sido um acidentede percurso. No estava planejado terem uma filha to cedo.Educaram-me, mas posso dizer que no me sentia em casa.

    O tempo na praia foi passando e eu continuava sentada,absorta em fazer uma retrospectiva da minha vida. Quando olheio relgio j era quase meio-dia. Decidi ir almoar. Entrei num

    restaurante e sentei-me. Fui atendida por um empregado novo,muito charmoso.

    O que deseja? Perguntou.Na minha cabea surgiu um pensamento lascivo: De-

    sejo-te No sei Quais so os pratos do dia? Questionei.

    O meu prato eras tu!, pensei. Cabrito assado, bacalhau moda da casa e feijoada

    transmontana. Pode ser um cabrito. E uma gua natural.

    Ele escreveu num bloco, sorriu e foi-se embora. Olhei minha volta e vi um casalzinho de mo dada por cima da mesa.A mulher era bonitinha, com cabelo curto, olhos grandes e umsorriso impecvel. O rapaz era novo, no muito bonito, masapresentvel. Conversavam baixinho e com um ar enamorado.Porque no eu?, cogitei.

    Em outra mesa estavam trs homens, todos gordos e comum ar entediado. Deviam falar de negcios. Um deles olhou paramim e eu corei logo. Entretanto, percebi que na realidade noestavam a olhar para mim, mas sim na minha direo, parecendomeditar sobre alguma coisa.

    O cabrito estava delicioso, todavia sentia-me triste porestar sozinha.

    De tarde fui ver montras e experimentar roupa. Entreinuma loja para experimentar umas calas.

    Boa tarde, em que posso ajudar? Perguntou a em-pregada.

    Queria umas calas pretas. amanho?Corei e disse: Quarenta e seis. Vou ver o que h.Dali a uns instantes, trouxe-me dois pares de calas.

    Experimentei-as, mas nenhuma me servia. Devo ter engor-dado! Pensei.

    em maior? Perguntei. Vou ver

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    Experimentei-as novamente e quando tentava vesti-las fora que reparei no mar de celulite em que as minhas coxastinham se tornado. Perante esta figura s me apetecia chorar.

    Fui para casa e devorei uma caixa de bombons enquantoassistia a um filme. hora de jantar, percebi que ningum haviase lembrado do meu aniversrio. O que teria eu feito de errado?A minha nica ligao sociedade era o meu trabalho. Se, porventura, ficasse desempregada no teria ningum para me ajudar.Comecei a imaginar um cenrio catastrfico em que perderia opouco que tinha e teria que viver na rua, pedindo. Senti-me muito

    abandonada.Apaguei a televiso e deitei-me no sof de barriga para

    cima, meditando. enho que mudar!. Mas como? O que podereifazer para mudar a minha vida?

    Levantei-me e fui at ao quarto para dormir. Foi ento queme olhei ao espelho do mvel do corredor. Ali estava eu, umamulher de trinta anos, gorda, feia, sem amigos e presa sociedadepor um fio. Falei alto para mim mesma:

    Bem O que eu posso fazer para j perder uns quilos!Estou mesmo uma lstima! E olha para este cabelo! Est na horade mudar o corte Pintar Amanh, depois do trabalho voucortar o cabelo e vou tambm iniciar uma dieta!

    Depois disto fui-me deitar, sentindo-me um pouco melhore mais aliviada, pois j tinha uma soluo para o meu aspecto.

    No dia seguinte fiz a minha rotina matinal e fui trabalhar.

    Passei o dia inteiro no computador e ao final da tarde fui a umcabeleireiro. Pintei as unhas, fiz a depilao e o meu novo cortede cabelo assentou-me maravilhosamente. Senti-me logo me-lhor. Ao chegar em casa, o telefone tocou. Pensei imediatamente:Finalmente um telefonema!. Do outro lado era uma moa quequeria fazer uma sondagem. Eu respondi, mas no meu interiorsentia-me extremamente magoada, pois no era ningum que euconhecia.

    Depois de jantar, senti-me entediada. Era sexta-feira e, nodia seguinte, no tinha que ir trabalhar. No me apetecia ver tele-viso nem ler livros. Apetecia-me conversar, comunicar-me com

    algum. Decidi sair um pouco, ir ver gente! Vesti-me e sa. Fui a umcaf, mas estava cheio de fumo e no havia lugar para me sentar.

    Mesmo que houvesse, qual era a piada? Estava sozinha!Lembrei-me de ir a um cybercaf: via gente e podia navegar pelaInternet. Sentei-me em frente a um computador e comecei a pes-quisar coisas sobre emagrecer e dietas. Entrei em inmeros stios,vi alguns artigos sobre nutrio, fitness, sade. Depois acessei aum chat. As pessoas com quem falava comeavam sempre porperguntar a mesma coisa: dd tc, idd, altura, peso, como sDiverti-me muito, pois inventei ser uma morenaa de 25 anos

    e com apetite sexual insacivel. s trs da manh fui para casa.Estava embriagada de tanta conversa jogada fora, mas feliz

    e divertida. No sbado limpei a casa toda e ao final da tarde vestiuma roupa de treino e fui correr. Fiquei muito admirada quandovi que no tinha resistncia nenhuma e que no conseguia corrermais de dez segundos. Estou mesmo em baixo de forma!, pen-sei. Optei por caminhar rpido, o mais rpido que conseguia.

    Ao jantar, mantive a dieta e adormeci em frente televiso.No domingo pesei-me: oitenta quilos. Nesse momento

    tomei conscincia que teria que mudar radicalmente os meushbitos alimentares e fazer mais exerccio seno iria ter proble-mas, no s para arranjar namorado como para ter sade. Fuifazer outra caminhada pela calada, junto praia, onde via de vezem quando uma pessoa a correr ou a andar de bicicleta. Quandome dirigia para casa, passou um grupo de jovens por mim. Riam

    muito e um deles olhou para mim e roncou como se fosse umporco. Eu fiquei sem reao, eles continuaram a caminhar, segre-davam entre eles e depois riam-se. Sem dvida que me tinhamchamado de porca! Nunca me senti to humilhada como naquelemomento. Retra-me, baixei a cabea e continuei.

    Cheguei em casa e fui tomar banho. Inevitavelmente aslgrimas comearam a correr pela minha face. Como que pu-deram gozar assim de mim? Eu era uma pessoa! Gorda? Sim!Mas no deixava de ter sentimentos por causa disso. Estava tofuriosa que depois do banho, em vez de almoar corretamente,agarrei-me num pacote de cereais e engoli-o todo! Posterior-

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    mente senti-me culpada, pus as mos boca e vomitei tudo. Pas-sei mais de meia hora a vomitar, pois no queria que ficasse nemum pedao de comida no meu estmago. De tarde, fiz flexes eabdominais enquanto assistia a um filme. hora de jantar recebium telefonema inesperado.

    Sandra? Parabns!... Atrasados Desculpa! que tenhoandado to ocupada que s hoje me lembrei!

    Era a minha prima Andreia. Morava em Lisboa, j era ca-sada e tinha duas filhas. Era mais velha que eu dois anos, mastinha se casado com 26 anos.

    No faz mal! Respondi. Ento? Quantos foram? rinta, no foram! uma bela

    idade! Ests a ficar velhota! Sim verdade O teu aniversrio foi bom Sentiste falta dos teus

    paisEu engoli a seco, pois tinha que mentir. No lhe contaria

    que ningum havia lembrado. No Foi timo! Vieram uns amigos para jantar Ah! Vida de solteira! Ainda me lembro Que maravilha! Pois Bem Que tenhas um bom ano e que vivas por muitos

    mais! Quando quiseres aparecer por aqui, esteja vontade! Certo Obrigada. Beijinhos!

    Consegui passar o dia seguinte s com um caf da ma-nh. No almocei, nem lanchei. Para qu? As minhas gorduraseram suficientes para me alimentarem durante um bom perodode tempo! No final do dia passei por um ginsio s para esprei-tar. Perguntei se seria possvel experimentar uma aula grtis spara ver. A menina da recepo disse que sim, mas que teria quetrazer um atestado mdico. Alguns dias depois arranjei consultacom a minha mdica de famlia e falei-lhe da minha vontade ememagrecer e ficar em forma. Ela deu-me alguns conselhos sobrealimentao, avisando-me que o jejum era perigoso e passou-meum atestado para iniciar a prtica de cardio-fitness.

    Comece devagar! Disse. No v com muita sedeao pote!

    Eu no liguei muito aos seus conselhos de alimentao,pois o que eu queria era emagrecer o mais rpido possvel.

    Iniciei o meu treino na semana seguinte e seguindo al-guns conselhos do monitor fui comeando devagar. Passada umasemana de treino e jejum, consegui chegar aos setenta e cincoquilos. inha perdido cerca de cinco quilos em duas semanas.Fiquei to contente que irradiava felicidade. Houve um colega detrabalho que reparou.

    Ol Sandra Est emagrecendo! J se nota qualquercoisinha

    Eu sorri e ele piscou-me o olho. Depois disto fiquei aindamais motivada. No ginsio comecei a conhecer algumas pessoas.No incio sentia-me um pouco intimidada, mas depois de quaseum ms de freqentar a academia, foi organizado um jantar denatal para os praticantes e monitores. Eu estava renitente em meinscrever, no entanto pensei que seria uma tima oportunidadede conhecer alguns colegas.

    No dia do jantar sa mais cedo do trabalho e fui arrumaro cabelo e as unhas. Vesti um vestido que me tinha deixado deservir, mas que agora graas aos meus oito quilos a menos, j meassentava bem.

    No jantar sentei-me junto a um rapaz e uma mulher queconhecia de vista dos treinos. Enquanto o meu corao palpitava,

    decidi conversar, coisa que era raro fazer. Ol! udo bem! Eu sou a Sandra Costumamos treinar

    mesma hora!O rapaz olhou para mim com um sorriso amarelo e cum-

    primentou-me. A mulher tambm me dirigiu um ol um poucoinspido. Continuaram a conversar um com o outro como se euno existisse.

    entei puxar assunto mais algumas vezes, mas infrutferas.Em suma, o jantar fora um fracasso. Cheguei em casa muito cedo,num sbado noite.

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    No dia vinte e trs de Dezembro deram-me folga no traba-lho para comprar presentes de Natal. Ora, eu no tinha nenhunspresentes para comprar! Ningum da minha famlia me haviaconvidado para a consoada e eu tambm no ia telefonar e pedirque me convidassem. Passei o dia em casa, enrolada numa mantaassistindo televiso. No dia da consoada fiz exatamente o mesmoe passei o Natal sozinha. Era a primeira vez que passava um Natalassim. No ano anterior, os meus pais ainda eram vivos e eu costu-mava passar a consoada com eles. Se j triste estar s, passar oNatal sozinha bem pior, pois em todo o lado nos lembram que

    o Natal reunio, uma festa divertida em famlia. Mas, apesar deno ter companhia humana, tinha comida. Comi tudo o que ti-nha direito e o que no tinha direito. Deixei-me prostrada no sofenquanto engolia guloseimas. Ao final da noite, coloquei tudopara fora, como estava habituada a fazer. Depois, senti-me muitomelhor e fui-me deitar.

    No dia vinte e seis fui trabalhar e sentia-me contente porisso, enquanto que os meus colegas se sentiam revoltados porterem de trabalhar no dia seguinte ao Natal. Nesse mesmo dia,depois do trabalho fui at um centro comercial. Olhei para umavitrine e apaixonei-me de imediato. Ele era fofo, querido, tinhauns olhos castanhos muito tristes e estava deitado com um ar en-tediado. Eu no resisti e comprei-o. Era um cachorrinho muitoamoroso, que s apetecia apertar. Alm do cachorro, comprei aguia, comida e uma alcofa para ele dormir. Nesse dia cheguei em

    casa com companhia. S no sabia o nome que lhe haveria de dar.Como gostava muito dos Beatles decidi cham-lo de Ringo.

    No sbado agarrei no carro e fui dar um passeio com oRingo visto no estar a chover. Ele era espetacular, fazia-mecompanhia em tudo: eu corria, ele corria; eu caminhava, ele ca-minhava; eu via televiso, ele deitava-se ao meu colo; eu comia,ele comia. Na segunda-feira seguinte custou-me ir trabalhar,pois queria estar com o meu co. Senti-me muito culpada pordeix-lo sozinho em casa.

    Aproveitei a hora de almoo para lev-lo a passear. Com omeu novo co arranjei, uma nova rotina diria: de manh, antes

    de ir trabalhar caminhava com Ringo cerca de meia hora, ia tra-balhar e voltava hora de almoo para outra caminhada. Depoisdo ginsio, fazamos uma grande caminhada quase at horadedeitar. Na noite de passagem de ano ele foi o meu companheiro.Fomos ver os fogos de artifcio, junto ao mar e ele no se assus-tou nada.

    No final do ms de Janeiro, eu j estava com menos dezquilos, mas na minha cabea, com a minha altura, ainda tinha umgrande caminho a percorrer.

    As pessoas no trabalho e no ginsio j reparavam que eu

    estava mais elegante. De fato, eu sentia-me muito melhor do queantes. Agora estava mais magra e Ringo ajudava-me a ser maisalegre. Sentia-me muito mais confiante em deixei de tomar osantidepressivos.

    Num dia bem frio, no final de Janeiro, estava a dar umavolta com Ringo no parque e reparei num senhor muito bem pa-recido que tambm passeava um labrador. Os ces comearama ladrar um para o outro e eu afastei o Ringo do outro co comfirmeza. A partir desse incidente, sempre que ia ao parque no fimde semana passear o Ringo, esse senhor tambm l estava.

    Ele intrigava-me, sempre sozinho, mas bem parecidoSer que tinha namorada? Ou mulher? Ou filhos? Depois deobserv-lo cerca de quatro fins de semana sozinho a passear noparque, decidi que tinha que conhec-lo. No fim de semana quedecidi travar conhecimento, ele estava sentado numa esplanada

    com o seu labrador. Sentei-me na mesma, estrategicamente emfrente a ele, mas como ele lia o jornal, no tive oportunidade demeter conversa. No fim de semana seguinte, enchi-me de cora-gem e aproveitando o fato de ter um co passei o mais perto pos-svel do senhor para que os ces ladrassem um para o outro. Eassim foi, agarrei no Ringo que ladrava sem parar e disse:

    Isto realmente O meu co no se sabe comportarPeo desculpa!

    Deixe pra l, o meu tambm no ajudou!Sandra Nunes. Carlos Silveira.

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    Abaixei-me e passei as mos pelo seu co. em um pelo to macio!E foi assim que conheci Carlos. No insisti em mais con-

    versa, pois deu para perceber que o senhor no estava muitointeressado. Porm, reparei que no tinha nenhum anel. Deviaser solteiro. Fiquei muito contente s por esse sinal, teoricamenteteria uma chance. Na semana seguinte, voltei a v-lo e desta vezconvidei-o para um caf. Antes de o fazer sentia-me agoniada,tremula e pouco confiante. Quando ele aceitou e disse que seriaum prazer, rejubilei de alegria por dentro.

    Desse pequeno contacto descobri que era solteiro, tinhaquarenta anos e que nunca tinha sido casado. Era agente imo-bilirio e fazia parte comercial em duas empresas de Lisboa,mas gostava de voltar Figueira da Foz aos fins de semanapara relaxar. Carlos parecia-me simptico e sincero. No eralindo, mas tinha charme, principalmente porque usava roupasclssicas muito distintas.

    Combinamos de voltar a nos encontrar e nas semanas se-guintes eu esperava ansiosamente pelo fim de semana, apenaspara estar com algum. O meu passeio com Ringo tornou-setambm um passeio de seduo. Vestia roupa confortvel, massensual. No meio de Abril, Carlos fez-me um convite inesperado.

    Gostaria muito que jantssemos hoje. Eu adoraria, mas ainda tenho que passar por casa Certamente! Eu vou busc-la daqui a uma hora Qual

    o seu endereo?Quando cheguei em casa nem sabia bem o que tinha de

    fazer. Olhei-me ao espelho e vi uma mulher vinte quilos mais ma-gra, com um certo charme.

    Coloquei-me em frente ao espelho e treinei poses, dissefrases e ri-me sozinha. Depois olhei para Ringo e disse alto:

    Isto at parece aquela histria dos 101 dlmatas Sque so dois labradores e sem a Cruela Devil.

    Corri para o chuveiro, tomei um banho rpido e arranjei-mebem. Sequei o cabelo, vesti uma blusa branca insinuante e uma saiacaqui, muito comprida, mas com racha.

    Coloquei um colar, brincos e estava linda. Olhei-me aoespelho e pensei: Bolas, estou linda!. Outrora, teria olhado edenegrido a mim mesma. Agora sentia-me realmente bonita.

    A campainha tocou e era ele. Fomos jantar a um restaurantemuito na moda. Serviam comida indiana. Eu fiquei deslumbradacom tudo aquilo. Ele era um autntico cavalheiro. Abriu-me aporta do carro, tirou-me o casaco, puxou-me a cadeira e ofere-ceu-me uma rosa. Desnecessrio dizer que eu estava radiantecom aquele tratamento, pois nunca me tinham feito nada assim.

    A conversa foi agradvel e o jantar estava uma delcia. O

    que mais poderia querer? Depois de jantar, fomos passear napraia. Parecia um daqueles filmes romnticos. Ambos de mosdadas, com os sapatos pendurados e uma aragem reconfortante.A noite terminou em minha casa, enrolados no sof aos beijoscom o meu co deitado no cho. Para a minha surpresa ele noquis fazer mais nada. Eu insisti, mas no consegui nada mais queuns beijos da sua parte. No domingo combinamos de nos encontrarno parque novamente. Nesse domingo, parecamos dois adolescen-tes aos beijinhos e abraos, caminhando junto aos nossos ces.

    Na segunda-feira seguinte, entrei no escritrio com um arradiante, pois o meu fim de semana tinha sido fenomenal. O meucolega reparou logo na minha alegria.

    Ests muito bem disposta hoje! Achas? Aconteceu alguma coisa?

    No udo normal!Ele olhou para mim com um ar desconfiado e sorriu.No ginsio, o meu esforo para arranjar amigos era parco.

    As pessoas pareciam pouco interessadas em se relacionarem co-migo. Nesse dia, tentei uma aproximao com uma novata queparecia meio perdida em meio de tantas mquinas.

    Quer baixar o banco? Perguntei. Sim assim E mostrei-lhe. Ela agradeceu-me e sentou-se

    para trabalhar os peitorais. Perguntei-lhe se era nova ali, pois nuncaa tinha visto treinar.

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    Sim Hoje o meu primeiro dia. Mas no estou gos-tando muito

    Por qu? Perguntei. Bem Vim para c no s para ficar em forma como

    tambm para conhecer gente. que no sou daqui! Mas isto muito impessoal.

    Ah no! De onde ? rate-me por voc, ainda sou muito nova. Sou de Beja. Alentejana E o que vieste fazer para to longe? Vim trabalhar na Cmara

    Bem, chamo-me Sandra. Lusa. Foi um prazer conhecer-te, espero que volte para c

    mais vezes.Ela sorriu enquanto fazia fora para trabalhar os msculos.

    Nos dias seguintes, ela continuou a frequentar o ginsio. Fal-vamos sempre um pouco, no passando a conversa de pequenastrivialidades.

    No fim de semana seguinte, voltei a encontrar Carlos.Passeamos pelo jardim, conversamos e samos noite. Quandovoltamos para minha casa, convidei-o para subir e ele aceitou.Ao entrarmos, ele abraou-me e deu-me um beijo, oferecendo--se para me fazer um caf. Recusei. Disse que no queria caf,mas sim que ele me beijasse mais. Agarrou-me e um impulsoapoderou-se de mim. Ele tinha de ser meu naquela noite.

    No domingo de manh, fumei um cigarro na varanda, comenorme satisfao. Aquela noite tinha sido maravilhosa. inhaagora um relacionamento com um homem. Eu, a eterna solitria,tinha algum. Ele levantou-se e chegou-se junto a mim abra-ando-me por trs.

    Gostaria de te ver mais vezes. Disse eu. Porque no agora? Respondeu, beijando-me de seguida.Na semana seguinte, todas as vezes que fui ao ginsio

    encontrei a alentejana. Durante o treino, esforcei-me para es-tar sempre perto dela para conversarmos. No meio da semana,convidei-a para tomar um caf. Ela recusou e usou as mudanas

    como desculpa. Fiquei triste. Ainda perguntei se queria ajuda,mas ela recusou novamente. Definitivamente, no queria a minhacompanhia por isso no insisti mais.

    O ms de Maio passou e o vero estava para chegar. Asroupas encolhiam e as pessoas mostravam alegremente o seucorpo. Pela primeira vez, em trinta anos, comprei um biquni. Jtinha perdido cerca de 30 quilos chegando ao meu peso objetivo:50 quilos. Olhava-me no espelho e sentia-me orgulhosa pela mi-nha persistncia sem antecedentes. Agora, sentia-me bem como meu corpo e isso refletia no meu humor. odo o meu esforo

    de no comer, ou de vomitar o que comia, estava a ser recom-pensado por um novo corpo. No meu trabalho, os meus colegasnotaram a minha transformao fsica e psicolgica. Porm, eucontinuava a ser uma espcie de sombra onde trabalhava. O meusuperior hierrquico era rude. No havia mais mulheres e eu nome sentia realizada profissionalmente. Mas era o meu sustento eeu no podia me dar ao luxo de abandonar aquele emprego. Osmeus refgios eram a minha casa, o meu co, o ginsio e os finsde semana maravilhosos que eu agora vivia.

    No primeiro fim de semana de julho estava um calor infer-nal e Carlos estava comigo numa esplanada.

    E se fossemos at praia? Perguntou.Respondi afirmativamente. Havia muita gente. Muitascrianas aos berros e eu, sinceramente, sentia-me um pouco

    tonta at que tombei.

    Quando acordei, estavam umas trs ou quatro pessoas minha volta abanando-me com papel e perguntando-me se euestava bem. Sentei-me e perguntei o que tinha acontecido.

    Caste amor Respondeu Carlos. De repentecaiu

    Deve ser do calor! Respondi.Deram-me logo um copo com gua, ajudaram-me a levan-

    tar e eu agradeci.Entretanto, Carlos abraou-me e perguntou-me se eu es-

    tava bem, se queria ficar ou ir para casa. Respondi que queriaficar. Passamos o resto da tarde na praia aos beijinhos como dois

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    pombinhos. No domingo, ele voltou para Lisboa e eu fui corrercom Ringo. Estava tanto calor que voltei a desmaiar e desta vezs Ringo podia me acudir. Acordei com uma pequena, a com osseus quinze anos a abanar-me e aos gritos. Eu levantei-me e disse--lhe que estava tudo bem e caminhei at em casa.

    Nessa semana, devido aos desmaios e ao calor, no fui aoginsio. Marquei uma consulta com a minha mdica que me re-cebeu no final da semana. Assim que entrei no seu consultrio elaolhou para mim, incrdula e

    abismada.

    Sandra? voc! Como emagreceu! Vejo que conseguiumanter a fora de vontade Estou passada com isto!

    Ah Foi com muito esforo! Mas consegui! Disseorgulhosa com omeu corpo.

    Quantos quilos perdeu? rinta. E tem-se sentido bem?Perante esta pergunta, eu contei-lhe sobre os meus desmaios

    deixando escapar uma certa preocupao. Ela escrevinhou num pa-pel enquanto me ouvia e no fim perguntou-me se estava comendo.Hesitei em dizer a verdade e respondi que comia pouco. Ela mediua minha presso arterial, fez-me um teste de glicemia, e pediu-meque fizesse alguns exames e que voltasse dali a uma semana.

    Voltei a encontrar Carlos. Cada momento que passvamosjuntos, sentia a intimidade aumentar. No final da tarde de sbado,

    enquanto passevamos com os ces, o silncio entre ns impe-rava. Nenhum de ns falava at que o silncio foi quebrado poruma palavra que eu ansiava ouvir.

    Eu te amo! Disse ele.Eu parei, sorri, olhei nos seus olhos e pensei comigo mesma:

    Nunca mais me sentirei s. Ele deu-me a mo e conduziu-me aum banco de jardim.

    e amo mesmoGritei de alegria por dentro. inha vontade de danar,

    cantar e fazer amor com ele. Depois de apenas oito meses, desdea minha deciso de mudar de vida, eu agora vivia um romance

    saudvel, como nunca vivera. inha agora uma imensa paixopela vida.

    Eu tambm te amo! Disse.O silncio voltou a se instalar. Na minha cabea, ecoavam

    as suas palavras. Palavras que agora faziam sentido. Nesse mo-mento, compreendi a razo pela qual vivemos e nos relacionamoscom outras pessoas. No h nada melhor que amar e se sentiramado. No h beleza nem dinheiro que pague um momentodestes. Nunca ningum havia me dirigido estas palavras sem eut-las sentido que as dizia porque queria algo em troca. Depois

    deste delicioso momento levantamo-nos do banco de jardim econtinuamos a caminhar at o Sol desaparecer do horizonte.

    Na semana seguinte, voltei ao ginsio. Para minha admi-rao, algumas pessoas deram pela minha ausncia, nomeada-mente a alentejana1.

    Ento? O que te aconteceu que no veio na semanapassada?

    Pois No me sentia bem! O que tiveste? Desmaiei duas vezes e decidi no vir E foste ao mdico? Fui. enho umas anlises para fazer. No deve ser nada!Ela sorriu, encolheu os ombros e foi para uma bicicleta

    ergomtrica, desejando-me um bom treino.Nessa noite cheguei em casa exausta. Estava to cansada

    que nem me apetecia levar Ringo rua. Mas como ele j tinha atrela na boca e abanava o rabo incessantemente, fiz um esforosuplementar. O passeio durou pouco tempo e assim que volteideitei-me logo. Fui novamente mdica para ela ver qual seria oproblema deste cansao. Assim que olhou as anlises, disse logoque eu tinha anemia.

    Pois, deve ter sido da dieta Vou-lhe receitar um suplemento de ferro. Veja l.

    Alimente-se melhor, ok!

    1Raa taurina portuguesa do grupo aquitnico ou turdetano.

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    Acenei com a cabea como se concordasse. Ao sair do con-sultrio, fui comprar o suplemento e pensei: Estas pessoas quesempre foram magras no sabem a sorte que tm! Engordo, ficodoente Emagreo, fico doente Parecia que quanto mais medizia para me alimentar convenientemente, mais vontade eu ti-nha de no comer.

    Nessa noite enquanto lavava Ringo, soou o telefone.Sandra? Disse uma voz sumida. Sim, a prpria! Sou eu, a Andreia udo bem?

    udo timo! Respondi. Olha, estou te ligando porque a minha filha Fabiana faz

    quatro anos e vou fazer uma festinha. Quer vir aqui? Vem afamlia toda!

    Fiquei contente com o convite. J no via os meus fami-liares desde o funeral dos meus pais. Ia fazer um ano em Agosto.Lembro-me perfeitamente do dia em que partiram de frias. Euno fui porque tinha de trabalhar. Dei-lhes um beijo de despedi-da e pedi que me telefonassem quando chegassem. Adverti o meupai para conduzirem com cuidado, como sempre fazia. Ao finalda noite, recebi um telefonema. Quando chegaram ao hospital,ambos j estavam mortos.

    Passei o resto do ms fechada em casa chorarando e porsorte no fui despedida.

    Apesar de nunca terem sido uns pais muito carinhosos,

    eram meus pais, a minha famlia. De restom s tinha primos eprimas em segundo grau visto que eram ambos filhos nicos. Foia partir desse momento que comecei a tomar antidepressivos e air a psiquiatras, pois sentia-me morta por dentro. Passei muitasnoites em claro pensando na melhor forma de morrer. Pensavaem armas de fogo, se sentiria a bala a transpassar pela cabea.Pensava em gs, se me sentiria a asfixiar ou se desmaiaria antesdisso; pensava em comprimidos, mas lembrava-me que prova-velmente teria convulses, o que no deveria ser nada agradvel.Pensei tambm em como seria a morte se cortasse os pulsos e meenfiasse dentro de uma banheira de gua quente. No iriam os

    pulsos sarar antes de ter a hiptese de morrer? Pensei em comoseria se me atirasse do topo de um edifcio. Sentiria o embate nocho? Ou morreria antes de l chegar? Pensei tambm em mor-rer electrocutada na banheira, no devia ser nada agradvel. E seeu me tentasse matar, mas no conseguisse? entariam me salvarno hospital, mesmo se estivesse em coma? Ou mesmo se tivesseficado com uma deficincia para a vida? Quem cuidaria de mim?Eram estes os pensamentos que tinha aps a morte dos meuspais. Felizmente, optei por me manter viva, pois neste momentotinha a oportunidade de viver um amor.

    Obviamente que aceitei o convite da minha prima e co-mentei com Carlos que iria a Lisboa no fim de semana seguinte.Ele ficou surpreso.

    Vem a Lisboa? em onde ficar? Perguntou. Fico com a minha prima. Ento, no nos veremos neste fim de semana? Sim, v l encontrar timo, depois te ligo.

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    CAPTULOII

    No sbado, parti para Lisboa. Sentia um n na garganta, poisno iria passar a noite com o meu amor. No entanto, tam-bm me sentia ansiosa por reencontrar alguns familiares. Apesarde nunca ter tido muito contato com a minha famlia, gostava dereencontr-los, sendo esta uma tima oportunidade.

    Cheguei casa da minha prima depois de almoo. Quandosa do carro vieram dois ces vira-latas a ladrar como se disses-sem Chegou algum, venham c ver!. Eu afaguei-os e apresen-tei-lhes Ringo. Latiram mais ainda, cheiraram-se muito e no fimficou tudo bem. Entretanto, vi a minha prima saindo de casa para

    o jardim. Andreia sempre fora uma rapariga extrovertida, muitoalegre e muito animada. Alm disso, apesar de j ter tido doisfilhos continuava linda e radiante.

    inha cabelos castanhos muito lisos, olhos grandes, sendomuito extica de cara. Vestia-se de forma elegante e mesmo assimdemonstrava distino.

    Ol Sandra s mesmo tu? Ests mesmo magra!Sorri e corei. irei uns trinta quilos de cima Est linda! Obrigada.

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    Dei-lhe um beijo e uma garrafa de vinho, pois no gosta-va de entrar na casa de outras pessoas de mos vazias. Entramosonde j se encontrava toda a famlia reunida, conversando ani-madamente. Repararam em mim e ficaram muito admirados.

    Sandra? s tu? Ests to diferente! Eram palavras quese repetiam medida que cumprimentava as pessoas.

    Depois dos cumprimentos, iniciais fomos todos passearum pouco no Parque das Naes. Estava um calor trrido e umabrisa muito fraca. No incio do passeio estava um pouco intimi-dada e pouco faladora, pois no sabia o que dizer.

    A minha prima tagarelava sobre tudo e mais alguma coisa,mantendo um ambiente divertido e descontrado. Sentamo-nosnuma esplanada e comecei a conversar com Andreia, um poucoalheia ao resto da famlia.

    Ento, que fazes agora? Perguntei.Ela respondeu-me que neste momento era me, dedicando-

    -se famlia.Abandonara o emprego, pois no tinha tempo de desfrutar

    das suas filhas. O seu marido ganhava dinheiro suficiente paraambos e, sendo assim, no havia razes alguma para o inferno queera trabalhar fora de casa. Eu observava-a, incrdula com aquelaatitude, invejando-a um pouco. Comentei que era uma escolhaboa para as filhas e que dessa maneira provavelmente seriam bas-tante bem educadas. Ela sorriu e disse que era uma das poucaspessoas que ela conhecia que concordava com a sua deciso de

    deixar o emprego. Eu penso que faria o mesmo Afirmei.Agora, com essa figura deve ser fcil arranjar um ho-

    mem! Disse sorrindo. Bem Bem? No me digas que j arranjaste um enho uma espcie de namorado Respondi, muito

    sorridente e orgulhosa. Uma espcie? Ou ou no ! Ainda me custa a acreditar! Desabafei.Depois desta resposta, bombardeou-me de perguntas so-

    bre ele. Quem era, como era, como se chamava, qual era a sua

    profisso, enfim, uma torrente qual tive muito gosto em res-ponder.

    Chama-se Carlos Silveira Vive aqui, em Lisboa. E no o trouxeste contigo por qu? Ele vai todos os fins de semana Figueira. Por qu? Ele de l Ah E no podia faltar um Estranho!Realmente era estranho. Desde que conhecera Carlos,

    nunca o tinha visto com amigos ou famlia. Apenas o vira passear

    com o seu co. Seria o co, a sua famlia? Que parvoce, que pen-samento ridculo!

    Mas amanh capaz de aparecer na festa da Fabiana, aofinal da tarde. Espero que no haja problema! Afirmei.

    A minha prima assegurou-me que no haveria problemaalgum e que, pelo contrrio, teria o maior prazer em conhecer omeu atual namorado.

    No dia seguinte, a casa estava cheia de parentes e amigos.Ao todo, eram umas cinquenta pessoas. Um mar de gente parauma festa de uma garota de apenas quatro anos. A minha primaera realmente uma pessoa bastante socivel.

    A Fabiana tinha mais pessoas na sua festa de aniversriodo que alguma vez teria tido. Havia bolos, doces, rebuados, jo-gos, presentes e barulho. Muito barulho! Que alegria devia sercrescer com uma me assim. A minha me era totalmente dife-

    rente. Sempre muito reservada e muito preocupada com o que omundo pensaria dela, vivia para as aparncias, mas no era muitosocivel. Fora de casa, vestia-se muito bem, sempre muito arran-jada. Dentro de casa vestia trapos velhos. Era muito sovina emtudo, principalmente em elogios. Preocupava-se demasiado como trabalho, fazendo uma vida casa/trabalho sem mais nada pelomeio. Raramente fazia festas ou jantares e quando os fazia eraporque o meu pai arranjava tudo. Nunca vi ir a um cinema, afazer desporto, a jogar s cartas ou com paixo pela vida. A suavida resumia-se a ver televiso, trabalhar, limpar a casa e dar umpasseio no final da tarde, aos domingos. O meu pai era um pouco

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    diferente, gostava de atividade, porm, devido minha me, a suaalma tambm foi ficando cinzenta. A sensao que sempre tiveao viver com a minha me que era proibido sentirmo-nos bem.Se, porventura, eu estivesse feliz e bem disposta, ela queixava-selogo de qualquer coisa desmoralizando qualquer um. Ou era otrabalho que era mau, ou era uma dor de costas ou de cabea.Nunca a vi feliz ou apaixonada, apenas cinzenta. A Fabiana tinhasorte em ter uma me assim, feliz, o que muito importante parao desenvolvimento de uma personalidade saudvel. Ao final datarde recebi o telefonema de Carlos.

    Ol querida Onde a casa da tua prima?Expliqueionde era e passados dez minutos ele chegou. Assim que o vi, deu--me uma enorme vontade de me pr em cima da mesa e chamara ateno de todos para o meu namorado, mas no o fiz, como bvio. Dei-lhe um beijo e fui apresentando-o aos convidados. Foimuito agradvel a sensao de estar numa festa com companhia,senti-me adulta, finalmente.

    noitinha, a festa terminou e com ela o meu fim de sema-na. Voltei para casa cheia de sorrisos. Porm, na segunda-feira,pesei-me e tinha engordado dois quilos. Entrei logo em pnico.Isto requer medidas de emergncia, pensei. Jejum toda a se-mana e exerccio dobrado. E assim foi. Esfalfei-me com exerc-cio e jejum molhado toda a semana. O fim de semana chegou,mas, infelizmente, no recebi notcias de Carlos. elefonei, maso seu celular estava desligado. Fiquei preocupada. Passaram-se

    duas semanas e eu continuei sem nenhuma palavra da sua parte.Ser que j no me amava? Por que no me telefonava? Foramnessas duas semanas que fiz progressos com a alentejana do gin-sio. Convidei-a para um caf e, para minha surpresa, ela aceitou.Fomos a um bar numa sexta-feira noite. Sentia-me abandonadapor Carlos e estava muito carente. Estvamos as duas sentadasno balco quando avistei um rapaz muito interessante. Era muitoatraente, com um ar desportivo, louro, olhos verdes. Observei osseus movimentos fluidos, como um felino. Ele percebeu que eu oobservava e sem hesitar veio falar conosco.

    Boa noite. Disse. Ol Respondi.

    A minha companheira que no gostou muito da sua aten-o e mantinha-se calada.

    Posso saber o seu nome. Eu sou Sandra e esta a Lusa.Lusa, com um ar antiptico disse: Desculpe No v que estvamos conversando?Ele olhou para ela e sorriu, no lhe dando muita impor-

    tncia. Chamo-me iago. Vira-se para Lusa e diz. ens

    um sotaque, s alentejana?

    Voc no tem nada a ver com isso! Respondeu Lusacom um ar aborrecido.

    Cutuquei-lhe o brao e sussurrei que no deveria ser toantiptica. Afinal, no havia mal nenhum em conhecer pessoasnovas. iago concordou e disse:

    Se quer estar sozinha, pode sempre ficar em casa. Ao vira um bar, ainda por cima linda como , arrisca-se

    Eu no gosto de garanhes e voc no faz o meu tipo!Ele olhou estupefato para ela, pediu desculpas e foi-se em-

    bora. Fiqueium pouco aborrecida com ela. Nunca tinham conversado

    comigo em um bar. Senti-me lisonjeada por ter captado a atenode um rapaz to bem educado e to confiante.

    Lusa No era preciso ser to antiptica!

    Lusa olhou-me fixamente e disse que os homens so todosiguais.

    Mas eu tambm gosto do que eles querem! Repliquei u no?

    Ela sorriu e respondeu que sim, mas no daquela maneira.Contou-me que uma vez quase fora violada devido a dar conversaa um rapaz. A partir da, passou a afugentar todos os que se me-tiam com ela em bares. Perante tal argumento eu no disse maisnada, mas aquele rapaz ficou na minha cabea.

    No sbado, fui passear com Ringo no parque e lembrei-mede Carlos. O que teria acontecido? elefonei-lhe de novo, mas o

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    celular estava desligado. Fiquei triste e ansiosa. No incio da noite,enquanto assistia televiso, lembrei-me de que por esta hora eracostume estarmos juntos, conversando e sorrindo. Seria por cau-sa de t-lo apresentado minha famlia? O que fiz de mal?

    Vi um filme com Ringo, junto a mim, e depois de terminareu no tinha sono.

    Vagueei uns minutos pela casa sem saber o que fazer e decidiir ao bar onde havia estado na noite anterior. Arranjei-me e sa.

    Ao chegar ao bar notei que estava semivazio. Sentei-menuma mesa e comecei a observar no que se passava minha vol-

    ta. Era um bar com pessoas na casa dos trinta a quarenta anos. Namaioria, pareciam divorciados, mal casados ou solteiros, comoeu. O bar tinha um estilo que me agradava: calmo, com pare-des em madeira, mesinhas baixinhas, luzes acolhedoras e msi-ca ambiente. Enquanto observava tudo em volta, avistei iagochegando. Ele no me viu logo, portanto, levantei-me para falarcom ele.

    Ol Disse, enquanto lhe tocava no ombro.Ele virou-se. Ficou surpreendido em me encontrar e me

    cumprimentou com dois beijos no canto dos meus lbios. Ento? A tua amiga no veio? Perguntou.Eu respondi que no, que tinha vindo sozinha. Depois de

    lhe dizer isto, percebi-me que iago estava acompanhado comdois amigos. Um era bonito, alto, moreno, com feies orientais.O outro era baixo e gordo, muito sorridente. Um deles perguntou

    a iago se no me apresentava. Conheci ambos, mas no fixeinenhum nome. Comeamos a conversar e como seria inevitveluma das primeiras questes que me fizeram foi saber qual eraa minha profisso. Respondi que podia falar de tudo menos detrabalho. A conversa estendeu-se a atualidades e a poltica, coisaque no me interessava muito. A maneira que arranjei para ficar ass com iago foi perguntar-lhe se queria vir comigo ao bar beberqualquer coisa. Ele aceitou. Dei-lhe a mo e deixei-o me seguir.Fiz um andar de super modelo enquanto avanava, deixando-ovislumbrar as minhas costas descobertas. Nessa noite, sentia-memuito sensual, pois levava uma camisa vestia uma camisa de ce-

    tim sem costas e uma saia. Quando chegamos ao bar, senti a suamo deslizar pelas minhas costas enquanto pedia duas bebidas.Depois de servidos, ficamos conversando ali mesmo, no bar. Aconversa era trivial, no entanto, de vez em quando ele tocava nomeu cabelo, acariciava-me o rosto e sorria com um ar malandro.Cada vez que me tocava, sentia o meu corao palpitar fortemente.Corei inmeras vezes at que:

    Queres ir tomar um caf na minha casa? Perguntou.Lembrei-me logo da histria da Lusa e recuei. Parecia que

    tinha acordado de um transe. Respondi que no.

    Por que no?Depois de ouvir a sua pergunta pensei para comigo mesma:

    Ele no me vai violar, pois quem o violarserei eu!. Depois a vozda conscincia emergiu: u tens namorado! No podes E se elefor um assassino? E fiquei com um dilema por alguns segundos.

    E se fssemos para minha casa? Perguntei.Ele concordou de imediato.Ao subirmos no elevador, ele colocou os seus braos em

    torno da minha cintura. Aproximou o seu rosto e deu-me umbeijo no pescoo. Arrepiei-me ao sentir os seus lbios e o calormido da sua boca. Aos poucos foi subindo at que finalmenteme beijou. Nesse momento o elevador parou no meu andar e sa-mos em silncio. No dia seguinte, ao acordar, ele j no estava l.Senti-me triste, mas ao mesmo tempo aliviada, at que a campai-

    nha tocou. Falei pelo interfone, era Carlos. Abri-lhe a porta e elenem me deixou falar, beijando-me logo. Empurrei-o e enquantofechava a porta perguntei onde ele tinha estado.

    ive que sair do pas! Desculpa no ter dito nada!Virei-me com um ar ameaador e falei firmemente: E nos outros pases no h telefone? Desculpa, tens razo Estava confuso!Perguntei-lhe porque que se sentia confuso e o que tinha

    isso a ver com o telefonema. Nunca senti isto por ningum ive que me isolar para

    pensar.

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    Para pensar em qu? Em me deixares?Ele abraou-me fora, beijou-me fora e eu me soltei.

    No gostava nada daquela atitude. Queres casar comigo?Fiquei estarrecida, sem palavras. Sentei-me porque as mi-

    nhas pernas tremiam muito e no me conseguia aguentar em p.Que pedido de casamento to estranho!, pensei.

    Ele sentou-se junto a mim e deu-me um anel. Ento? Queres juntar os trapinhos?Com uma voz mais calma, respondi que era uma loucura.

    Ele vivia em Lisboa e eu na Figueira. Que tipo de casamento seria?Um casamento de fim de semana? Um casamento empart-time.

    Podes sempre ir para Lisboa! Disse. Mas o meu trabalho aqui! E eu no quero viver em

    Lisboa, no gosto! rnsito, confuso Isso no para mim! Eu posso vir para c!Levantei-me e disse que tinha de pensar. Devolvi-lhe o anel

    e pedi que compreendesse. A sua expresso de entusiasmo mu-dou, ficando aptico.

    ens assim tantas dvidas? perguntou. Olha oda a minha vida fui filha nica e quando sa de

    casa sempre vivi sozinha No questo de no te amar, mas Pronto Eu dou-te o tempo que quiseres.Depois disso, olhou para mim com ateno notando algo

    diferente em mim.

    Emagreceste? No! Respondi, mentindo com todos os dentes que

    tinha na boca. A verdade que nestas duas semanas em que eletinha estado ausente eu tinha comido o mnimo e, consequente-mente, j estava na casa dos quarenta e seisquilos.

    Pareces mais magra No emagreas mais, seno per-des as curvas que tanto amo!

    Sorri, abracei-o e chamei-lhe parvo.Nessa noite, enquanto estava deitada na cama com Ringo

    pensava na minha vida e no que se havia tornado. Eu tinha tradoo nico homem que me amara at ento. Pensei em contar-lhe o

    sucedido, mas preferi no o fazer. Decerto, eu tambm no gos-taria de saber o que ele faria por Lisboa, ou gostaria? Fora apenasuma noite sem qualquer significado, para qu contar?

    Durante a semana levei minha vidinha normal: trabalhar,ir ao ginsio, passear com Ringo e ver filmes noitinha. Estavaum calor sufocante, o que era normal para esta poca do ano. Asminhas frias estavam quase chegando todavia no sentia grandevontade de aproveit-las.

    Quando chegou a sexta-feira, recebi um telefonema da mi-nha prima de Lisboa. Cumprimentou-me com alegria e falamos

    de futilidades at que, de forma camuflada, perguntou-me se ain-da namorava Carlos. Respondi-lhe afirmativamente.

    Ento acho que no vais gostar da notcia que te voudar O que se passa? Perguntei.

    Ontem noite eu estava jantando com umas amigasno centro comercial inha ido ao cinema ver um filme. Muitogiro, deves v-lo...

    Diz l! Interrompi de maneira brusca. Bem Vi o Carlos de mo dada com uma rapariga. Uma rapariga? em certeza de que era ele? Sim Ele no me viu, mas eu no esqueo uma cara! Desculpa, mas no acredito Ainda ontem falei com

    ele ao telefone At fico sem saber o que dizer Estive para no dizer

    nada! Mas s minha prima!

    De certeza no era ele! Exclamei. Pronto! Se queres negar u que sabes! Beijos. E

    desligou o telefone.Fiquei extremamente perturbada com a notcia. Dirigi-me

    ao frigorfico e agarrei num pote de gelado. No sabia o que fazer.Deveria falar com ele e pedir-lhe satisfaes? Mas quem era eupara lhe pedir satisfaes? Eu tinha feito o mesmo, com a diferen-a de no ter sido apanhada! Porm, no fui eu quem o pedi emcasamento! Se ele ia me trair por que me pediria em casamento?Que fado o meu! S aliciava traidores. Eu prpria me havia tor-nado uma traidora. Depois de acabar com o sorvete, apetecia-me

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    algo salgado, por isso agarrei nas chaves e fui at ao supermer-cado. Comprei s coisinhas boas: pastis doces, pastis salgados,pizza, um pr-preparado de pudim, chocolates, rebuados, sal-sichas e fruta. Cheguei em casa e pus-me a cozinhar enquantopetiscava um chocolate.

    Estava com imensa gula, s me apetecia comer at arreben-tar. Fiz arroz doce, batatas fritas com ovo estrelado e salsichas.Comi tudo, mas no era suficiente. Agarrei na pizza e meti-a nomicroondas. Enquanto esperava pela pizza, fui comendo rebua-dos. Depois de comer tudo, senti-me enjoada e enojada de mim

    mesma. Com medo de engordar, fui at o banheiro e vomitei maisde uma hora. No fim, ainda tomei laxantes, arrumei tudo e fuime deitar. Na cama, comecei a chorar. J tinha tido ataques degula, nunca to grandes como este. Senti que estava a retornar aopassado. O melhor que eu tinha a fazer era recusar o pedido decasamento e acabar com aquela relao o quanto antes. Queriadormir, mas no conseguia. Estava muito calor e a minha menteum turbilho. Agarrei no Ringo e fui dar uma volta s trs damanh.

    No sbado, dormi at tarde e Carlos chegou mesmo nomomento em que eu estava acordando. Abri-lhe a porta toda des-cabelada enquanto bocejava.

    Ol amor! Disse.Virei-lhe as costas, sentei-me e fiquei em silncio.Ele sentou-se junto a mim e perguntou-me se queria sair

    para passear os ces. emos de falar! Pedi. Sim emos Quem a tua namorada, em Lisboa? Perguntei.Ele franziu as sobrancelhas e mostrou-se surpreso. O qu? u ouviste bem!Levantou-se, olhou para cima sem mexer a cabea, como

    se estivesse a pensar numa justificao. Eu fiquei espera da suaresposta.

    Eu no tenho ningum! A no ser voc!

    Eu abanei a cabea incrdula. Sentia os olhos arderem de-vido fora que fazia para no chorar frente dele.

    No quero saber quem ela ! Quero que saias! Est tudoacabado! gritei.

    Mas eu no ando com ningum! Por favor, no sejasassim!

    Viram-te com ela! Quem? A minha prima viu-te agarrado a ela! A tua prima doida! Vais acreditar numa pessoa que s

    me viu uma vez Apenas uns dez ou vinte minutos!Fiquei sem resposta por alguns instantes. Quem me diz que no passaste aquelas duas semanas

    com ela S amo a ti! Acredita em mim! No era eu!Era o que eu precisava de ouvir. Mesmo que no fosse a

    verdade, eu preferia que ele mentisse, pois a ideia de acabar comele era muito dolorosa.

    Depois destas palavras, fingi acreditar, porm j sabia queamava um traidor.

    Passamos o resto do dia juntos, passeando com os ces econversando como se nada tivesse acontecido. noite, fizemosamor. No domingo, ele voltou para Lisboa. Durante a semana,surpreendeu-me com inmeros telefonemas e mensagens ro-mnticas. Quando voltou, ofereceu-me um ramo de flores.

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    CAPTULOIII

    As frias chegaram. O ginsio fechou e eu no sabia o que fa-zer com os meus dias totalmente livres. Carlos no os tinha,portanto eu teria que ocupar o meu tempo sozinha nos prximosquinze dias. Pensei em ficar pela Figueira, mas apetecia-me daruma volta por Portugal e conhecer outras terras. Olhei algumasrevistas de agncias de viagens, mas no era aquilo que eu queria.Eu queria aventura, conhecer gente, viajar com o meu co e serlivre. Decidi partir descoberta de Portugal, sozinha com o meuco. Fiz uma mala com pouca roupa, comprei uma tenda de cam-pismo e meti-me no carro. Decidi conhecer a Costa Vicentina,

    visto nunca l ter estado. Os meus pais s conheciam um destino:Algarve. Escapei-me da Figueira, apanhei a autoestrada at Lis-boa, s para fazer uma pequena visitinha a Carlos. elefonei-lheantes de partir e combinamos de nos encontrar no Parque dasNaes. Cheguei a Lisboa ao final da tarde de sbado, sentei-menuma esplanada e esperei por ele. Observei a paisagem enquan-to bebericava um ch gelado. Esta zona de Lisboa era realmentebonita, aprumadinha e organizada. O rio refletia o sol e via-semuitas famlias a passear. Olhei para eles com certa inveja. Ali, minha frente, estavam inmeras pessoas que possivelmente jteriam sentido solido, mas duvido que alguma delas tivessem

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    vivido em solido como eu. No me queixo, pois foi a solidoque fez de mim a pessoa que sou. Mas interrogo-me se de fato aminha vida no teria sido melhor se a solido no tivesse tomadoconta dela.

    Infelizmente, a sensao que sempre tive era de que as pes-soas no queriam ter tempo para mim. Interrogo-me se aindahoje tm as vidas assim to preenchidas ou se simplesmente mas-caram a sua prpria solido com inmeras atividades.

    Ento? J me esperas h muito? Perguntou Carlos. No, cheguei mesmo agora!

    Perguntou-me se eu j estava de frias e respondi afirma-tivamente.

    Contei-lhe qual a minha ideia para aqueles quinze dias eele apelidou-me de louca. Porm, apoiou-me e demonstrou quepara ele tudo estava bem, desde que eu estivesse bem. Achei tudoaquilo maravilhoso. inha-me sado a sorte grande. Um homemque no tinha o receio em me dar liberdade.

    Pela primeira vez desde o incio do nosso namoro, ele le-vou-me para conhecer a sua casa. Era um apartamento pequeno,com dois quartos, uma cozinha pequena e uma sala de estar enor-me. noite, demos um passeio a p com os ces junto sua casa.Depois decidimos ir at um centro comercial jantar. Eu optei porcomer somente sopa, no queria mais nada. Carlos achou estra-nho, mas no fez nenhum comentrio imbecil. Caminhamos umpouco enquanto observvamos passivamente as montras das lo-

    jas. Fomos para casa e fizemos amor. Aproveitamos a tarde dedomingo para passear de carro por Lisboa. Carlos fez questo deme mostrar algumas zonas da cidade que ele achava magnficas.

    Metemo-nos no seu carro e fomos at rua das Amoreirasonde se destacava o Aqueduto das guas livres. Com prazer, eleconversava dizendo que este havia sido uma obra do reinado deD. Joo V e que a parte monumental era formada por trs con-juntos: Arcdia de Alcntara, o arco das amoreiras e a me degua. Enquanto ele proferia a sua explicao, eu olhava o arco lo-calizado na rua das amoreiras. Era um arco triunfal com frontotriangular. Posteriormente, passamos pela Praa Estrela onde se

    situava a Baslica da Estrela. Samos do carro e entramos. O inte-rior era decorado por mrmores cor-de-rosa, preto e branco. Nacapela-morencontrava-se o tmulo de D. Maria I. Segundo Car-los, a Baslica da Estrela fora construda a pedido de D. Maria I,no sculo XVIII em cumprimento de uma promessa caso tivesseum filho varo. O edifcio tinha uma fachada de trs corpos orna-mentados de bela estaturia. Sobre as quatro colunas compsitaserguiam-se quatro esttuas que representariam a f, a adorao, aliberdade e a gratido. Depois levou-me at Praa do Municpioonde tive a oportunidade de olhar o edifcio Paos do Concelho.

    H uns anos houve um incndio que destruiu os pisossuperiores. Disse Carlos. aqui que se renem a presidn-cia e a vereao de Lisboa, acho eu!

    Eu olhei para ele, deslumbrada com a sua cultura e conhe-cimento.

    Este palcio foi feito na primeira metade do sculo XIX. em um estilo engraado Neoclssico, talvez

    Disse. Muito bem! Afirmou Carlos. A autoria deste

    projeto deve-se aos arquitetos Francisco Xavier Fabri e Jos daCosta e Silva.

    At sabes os nomes! ornou-se residncia oficial da famlia real portuguesa

    quando D. Lus se tornou rei de Portugal. bonito .Era final da tarde de domingo e eu j estava cansada de ver

    tanta coisa, por isso pedi-lhe que fossemos para casa. Est bem Mas ficas aqui hoje!Eu acenei que sim com a cabea. Assim que chegamos, dei-

    tei-me na cama e repousei olhando para o teto do quarto. Carlosjuntou-se a mim.

    E ento? J pensaste na minha proposta? Perguntou. Mais ou menos Eu gostaria de te conhecer melhor!

    Acho que ainda cedo! Conhecemo-nos praticamente h algunsmeses e s nos vimos aos finais de semana.

    Se quiseres, fazemos uma experincia antes!Olhei para ele e franzi a testa, enquanto ele falava.

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    Podamos viver juntos! Mas vivemos em cidades diferentes!Ele sorriu e disse: Nos prximos quinze dias no! Podias ficar aqui comigo!O silncio instalou-se. Eu no sabia o que responder. Que-

    ria aproveitar estes quinze dias para conhecer Portugal, mas pe-rante a proposta, fiquei na dvida deixando escapar apenas umlogo se v!.

    Passamos a noite a ver filmes e no dia seguinte ele saiucedo. Almoamos juntos e de tarde deixou-me novamente sozi-

    nha. Aproveitei para passear os ces e conhecer melhor Lisboa,pois poderia vir a ser a minha cidade. Passei pelo Mosteiro dos Je-rnimos, edifcio considerado patrimnio cultural de toda a hu-manidade e olhei para ele, imponente e belo. inha uma extensafachada de mais de trezentos metros em calcrio. Era uma joia doestilo manuelino e smbolo da poca dourada dos descobrimen-tos portugueses. Integrava tambm elementos arquitetnicos dogtico e renascimento. Sentei-me, pois sentia-me cansada e fiqueiali a contemplar a sua beleza. Ao final do dia, quando estava maisfresco, troquei de roupa e fui correr. Quando cheguei, ele aindano estava l.

    Sacudi as camas dos ces, dei-lhes comida, gua e elesadormeceram logo. Fui ver que comida havia e comecei a pre-parar um jantar romntico. omei banho e arranjei-me. No mo-mento em que punha a mesa ele chegou.

    Mas que mesa to bonita! s para ti! Disse enquanto enrolava os meus braos

    sua volta. E tu ests to linda! Obrigada! Vou s tomar uma ducha rpido No h problema,

    pois no? que estou todo pegajoso do suor! No, vai l No h problema!Deu-me um beijo e fechou-se na casa de banho.O jantar foi maravilhoso. Conversamos e rimos muito. No

    fim, samos de casa, pois a noite estava quente.

    Fiquei uma semana a viver com ele nesta rotina deliciosa.De manh dormia mais um pouco, arrumava-lhe a casa e saiacom os ces. Almovamos juntos numa esplanada e de tarde,enquanto ele ia trabalhar, eu passeava, tomava um refresco, cor-ria, preparava o jantar e passvamos as noites a passear dentro dabrisa quente que se fazia sentir. Gostei particularmente de doisstios: a S Patriarcal no largo da S e da orre de Belm.

    Numa tarde, lembrei-me de telefonar minha prima. Fuiat sua casa tomar um refresco. Ela recebeu-me de braos aber-tos, como sempre.

    Ento? O que te traz por Lisboa? Perguntou. Estou aqui a passar uns dias com o Carlos. u ainda andas com ele? Mesmo depois de eu o ter visto

    com outra? Ando Provavelmente no era ele! Deves ter visto mal!Ela levantou-se e circulou pela sala. No prima Sabes bem que eu no esqueo uma cara!

    Era ele! enho a certeza! Provavelmente no! No falemos mais nisso, est bem?

    Disse um pouco aborrecida com a conversa.Ela encolheu osombros e concordou de forma passiva, como se soubesse que ti-nha razo. A conversa continuou trivial, sem grande substncia.Entretanto, chegou uma colega sua para irem praia. Pergunta-ram-me se eu queria ir com elas, mas recusei. No tinha vontade

    nenhuma de me despir. Fui para casa e passei o resto da tardevendo televiso. Carlos chegou e encontrava-se visivelmente ner-voso. Levantei-me para lhe dar um beijo e ele virou-me a cara.

    Alguma coisa se passava! Ests chateado? NoDeixa-me em paz! Respondeu de forma hostil.Rodeei-o um pouco, mas ele entrou no banheiro e fechou-

    -se l dentro. Quando saiu, eu estava sentada na sala. O jantar est feito? No, ainda no Pensei que chegasses mais tarde! Raios partam Estou cheio de fome!

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    Olhei para ele indignada com a sua maneira de falar co-migo. No parecia Carlos, aquele homem calmo e sensato queeu estava habituada a ver. Enquanto andava pela cozinha meiodesorientado, a bater com as portas dos armrios, encostei-me porta a observ-lo. Foi ento que ele derrubou da bancada umasrie de utenslios e sentou-se numa cadeira com um ar visivel-mente perturbado.

    Amor! Conta! O que foi? Por que ests assim? A minha irm Estpida! uma controladora!

    Abracei-o juntando a sua cabea ao meu peito enquanto o ouvia

    falar. O meu cunhado e a minha irm querem-me pr em

    tribunal. Por qu? Por causa desta casa! Dizem que foram eles que a com-

    praram e que, Portanto, tm direito a ela Eu herdei esta casa dosmeus pais e ela herdou uma casa em Sintra, muito maior que esta.

    Achei aquela situao um pouco estranha, pois ele nuncahavia me falado de uma irm. Entretanto, o telefone tocou. Elesussurrou qualquer coisa, desligou, disse que tinha de sair e bateucom a porta. Senti-o a chegar de madrugada, visivelmente per-turbado e ouvi-o chorando no banheiro.

    No dia seguinte, ele dormiu at tarde e eu arrumei as coi-sas para eu ir embora. Ele acordou e eu me despedi, com certoalvio, pois subitamente senti que algo no batia certo. No lhe

    disse nada, mas no meu ntimo achei que a sua atitude comigo, nanoite anterior, no tinha sido correta. Passei os dias seguintes emalguns lugares, em Porto Cvo. Foi engraado montar a tenda noparque de campismo. Abri o saco que continha a tenda e s con-segui ver imensos ferros. primeira vista, pensei que no seriacapaz de montar a tenda sozinha, pois tudo parecia confuso. Asprimeiras tentativas foram um desastre, porm, no desisti e puso meu sentido de engenheira a funcionar.

    Passei os primeiros dias em silncio na praia, no parquejuntamente com o meu co. Ao terceiro dia acampou uma famliaao meu lado. Pareciam bastante animados, pois eram barulhen-

    tos e um pouco brejeiros. inham aspecto de quem j acampavah alguns anos. A tenda deles tinha tudo, zona de jantar, zonade dormir, fogo Eram cinco: a me, o pai, a av, o av e umagarota de quinze anos. A me era baixinha, mas robusta, tinhacabelo curto preto, cara enrugada e mos cheias de calos e feridas.Usava um vestidinho leve com flores e uma bata por cima. Achei--a amorosa, pois assim que chegou comeou logo a fazer o jantare ao ver que eu acampava sozinha conversou comigo, acabandopor me convidar para jantar com eles. Como eu j estava farta deestar sozinha, aceitei o seu convite. Sentei-me mesa e eles deram

    graas. Pareciam ser bastante religiosos. Achei uma palhaada,mas respeitei o seu ritual e fingi ser crente para no feri-los.

    O pai era gordo, com uma barriga proeminente, e uma t--shirtbem justa. Era bem disposto, contando muitas piadas e his-trias. O av era magro que nem um espeto, muito enrugado epouco falador. A av falava pelos cotovelos, mas devido ao seu so-taque, pouco percebia do que tanto tagarelava. A garota de quinzeanos aparentava ser tmida, ao contrrio da me. Lembrava-meum pouco eu mesma com a sua idade. Era gordinha, vestia-se male estava sempre com os ombros encolhidos.

    Ento de onde a Sandrinha? Perguntou a me. Sou da Figueira da Foz E vocs? Santo irso Conhece? odos os anos voltamos aqui

    para passar um ms. Srio? H muito tempo?

    H cinco anos. Disse o marido ambm j pas-samos uns anos na Figueira, mas aqui melhor Menos gente!

    L na Figueira uma confuso! E o que faz uma menina to jeitosa aqui sozinha?

    Perguntou a me. Vim conhecer o Alentejo. Mas no arranjei companhia,

    por isso No casada? No, ainda no encontrei ningum especial. Ah! Uma moa to jeitosa! Agora s larilas Na mi-

    nha altura no era nada assim. As mulheres casavam-se cedo e os

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    homens eram homens com H grande! Antigamente, namorava-se janela Agora uma pouca-vergonha! O mundo est perdido!Eu sorri. L vinha o discurso: Antigamente que era!.

    Quase todas as pessoas mais velhas que eu conhecera,tinham proferido o dito discurso. J ouvira vrias verses: anti-gamente no havia tantos crimes, namorava-se janela, era-sevirgem at ao casamento, fazia-se escola at quarta classe, masaprendia-se muito mais, os homens eram homens, as mulheres fi-cavam em casa, no havia divrcios, passava-se dificuldades, masaguentava-se. At recentemente j ouvi colegas de trinta anos a

    fazerem o discurso antigamente que era! Em relao aos de-senhos animados ou s brincadeiras de infncia. Nunca gosteimuito desse discurso, pois s fala bem do passado, esquecendoas melhorias que ocorreram. Para mim, sempre fora um dis-curso demasiado saudosista e nostlgico de quem tem medodas mudanas.

    Pois Respondi Antigamente que era!O homem sorriu e bebeu um copo de vinho de uma golada.

    Entretanto, o jantar foi interrompido por uma senhora. Ainda a jantar? Perguntou com uma voz muito

    esganiada. Estamos servida? Ofereceu a me. No J comi! Foi entrecosto! Quando fores lavar a

    loua diz, que vamos as duas!A me disse:

    No te vs! Come um bocado de po-de-l! Est muitobom!

    A senhora sentou-se e olhou para mim com curiosidade. Quem esta menina? Ah! Esta a Sandrinha Est aqui acampando e eu a

    convidei para jantar com a gente. Ah! De onde ? Figueira da Foz!Eu sorria, pois estavam a conversar sobre mim e nem

    sequer me deixavam falar. A menina est doente? Perguntou a senhora.

    Porque pergunta isso? Ah est to plida e magrinha! No, sou mesmo assim! Coma! Coma! Disse o pai, enquanto me servia mais

    batatas.Comi por cortesia, mas como j no estava habituada a co-

    mer tanto no final da refeio, senti-me completamente entupidae com vontade de por tudo para fora. A me ainda preparou cafs.Eu escapuli e fui at o banheiro vomitar, pois no queria engordarnovamente. No incio das frias tinha quarenta e dois quilos e o

    medo de engordar era constante. Enquanto estava no banheiro,senti baterem porta.

    Est tudo bem senhora? Perguntou uma vozinha. Est, Est Abri a porta e lavei a cara enquanto a

    garota de quinze anos me observava, um pouco inquieta. Esteve a vomitar, sente-se bem? Perguntou. No, no estive Foi s tossir enho esse problema Ah! Mas parecia No, no foi nada, j estou melhor No comentes

    nada com ningum!A rapariga olhou para mim com um ar de pena. Voltei ao

    acampamento da famlia, onde se bebia caf e comia po-de-l.Sentei-me e pela primeira vez senti-me culpada por ter vomitado.Aquela famlia no devia ter muitas posses, porm convidou umaestranha para partilhar a comida que tanto lhes havia custado a

    ganhar e no fim coloquei tudo para fora. Devido a esta sensa-o de culpa, no dia seguinte retribui a gentileza e comprei ummanjar para todos. A me fez o jantar e eu comi novamente comeles, no deitando comida fora. No momento em que tomva-mos o caf, no final da refeio, uma rapariga apareceu e ps-se aconversar com a famlia. Era extremamente magra, muito bonitacom cabelos loiros compridos e tom de pele dourada pelo sol. Osseus olhos azuis sobressaam no meio do bronzeado.

    Boa noite! Disse. Mariana, senta-te! Queres comer alguma coisa?

    Perguntou a me.

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    No obrigada, j jantei! O Marco no veio? No Foi para um festival Deve vir amanh! Ah! Foi ver aquelas bandas malucas Credo, que barulhoMariana sorriu e olhou para mim. A me apresentou-me

    prontamente. Esta a Sandrinha! da Figueira e est aqui passando

    frias sozinha J viu o co da moa? Um amor de co! Muitocomportado!

    Cala-te mulher! Chia! Ests sempre a falar! Deixa a ra-

    pariga falar! Interrompeu o pai.Eu falo o que eu quiser, o quanto quiser! Ol Sandra. Disse Mariana com um ar simptico. Ol! Respondi.Gostei imediatamente de Mariana. Alm de ser muito bo-

    nita, tinha um ar simples, mas aprumado. Quer ir dar uma volta. Ns vamos at ao caf Quem? Perguntou a me. Eu, o meu irmo, a minha prima, e uma rapariga que ela

    conheceu ontem.Eu estava simplesmente a adorar estar num parque de

    campismo. Parecia que todos se conheciam ou, eventualmente,acabariam por se conhecer. Havia comunicao entre as pessoas.Nunca tinha acampado na vida, pois os meus pais iam sempre

    para hotis. Sim Levantei-me juntamente com a Mariana. An-

    damos um pouco pelo parque para nos encontrarmos com o res-to do pessoal. Depois das apresentaes iniciais, fomos at umaesplanada. Sentamo-nos e fizemos o pedido a um empregado jo-vem, extremamente simptico.

    Ento? Vocs so todos de Santo irso? Inquiri. No, somos de Viseu, exceto a Carla que de Santarm.

    Respondeu Mariana. Eu estudo em Coimbra. Disse Pedro, irmo da Ma-

    riana.

    Ah! Que giro! Ento deve ir muitas vezes Figueira pertinho! Afirmei.

    Sim, fui l umas quantas vezes Estuda o qu? Perguntei. Engenharia civil. Eu sou engenheira civil Ah sim! Estuda aonde, no politcnico ou na universidade? Na universidadeConversamos mais um pouco sobre o curso e eu lhe expli-

    quei em que consistia o meu emprego. As meninas mantinham ou-

    tra conversa paralela desenvolvendo-se ali um burburinho tpicode uma mesa de caf. Passada cerca de meia hora, a prima da Ma-riana sugeriu irmos dar um passeio a p, no entanto, no me estavaa apetecer caminhar. Mariana tambm dispensou o passeio.

    Ficamos as duas sentadas na esplanada, sem assunto. Elabebia uma cola por uma palhinha absorvida nos seus pensamentos.Eu quebrei o silncio.

    Est gostando daqui? Perguntei. Sim J venho para aqui h alguns anos todos os

    veres. J est aqui h muito tempo? No Cheguei hoje de manh O meu irmo, a mi-

    nha prima e os meus pais que esto aqui h mais tempo. Mas j est morena! Estive no Algarve com uns amigos. Agora vim para c

    passar o resto de Agosto com os meus pais.Parecia um interrogatrio, mas continuei as perguntas. Estuda? No Fiz o dcimo segundo e decidi deixar porque sou

    modeloSenti alguma inveja. Mariana parecia ser uma rapariga ex-

    tremamente despreocupada. O interrogatrio continuou e desco-brimos ter muitas coisas em comum. Gostvamos do mesmo tipode msica, tnhamos convices polticas parecidas e gostvamosde ces. Enquanto conversvamos, eu observava cada pormenordo seu rosto: as pupilas pretas dos seus grandes olhos azuis, o seu

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    franzir da sobrancelha, as covinhas que fazia quando sorria. udonela era bonito, no havia uma falha. Passado um bom bocado,nossos trs companheiros voltaram.

    Ento? Vamos embora? Perguntou Pedro. Sim, estou cheia de sono! Respondeu Mariana.Fiquei um pouco triste por ela ter dito que estava com

    sono. Senti que afinal apenas eu havia achado aqueles momentosinteressantes.

    Voltamos para o parque e eu no tinha sono, portanto fi-quei do lado de fora da tenda a olhar as estrelas. Pensei no que

    havia mudado na minha vida. Agora estava prestes a sair de umarelao que fora interessante, sem grandes problemas, sem gran-des cimes, sem grandes recriminaes, mas que no estava dan-do em nada. Porm, no me sentia rancorosa, nem magoada, massim com a autoconfiana restaurada. Carlos fora um amigo muitoimportante, pois me demonstrou que eu podia ser interessante,bonita e inteligente. Por outro lado, nestes ltimos meses eu ha-via conseguido realizar um sonho de uma vida: emagrecer. inhaperdido cerca de quarenta quilos em apenas nove meses e essa erade longe a minha maior vitria. inha um companheiro insepa-rvel, o Ringo. E sentia-me menos s, apesar de continuar a noter amigos tinha conseguido sair da concha e conviver um pou-co com desconhecidos. ambm tinha conseguido uma maioraproximao com a minha prima de Lisboa, o que para mimera importante. No meio de toda esta divagao, senti algum a

    deitar-se a meu lado, no meio da noite. Era Pedro. Ento? No tens sono? Perguntou. No Est muito calor! Ests muito pensativa Disse Pedro enquanto me

    acariciava a cara com um dedo. Eu fiquei apreensiva e olhei paraele, virando-me. Disse que eu era bonita, encostando levementeos seus lbios nos meus. Ficamos assim um bom bocado at quequebrou o silncio fazendo-me um convite para irmos passear nodia seguinte.

    Esse dia foi sem dvida um dos melhores da minha vida.Brincamos na praia, almoamos numa esplanada e voltamos ao

    anoitecer. Pedro era totalmente diferente de Carlos, talvez por sermais novo, tudo para ele era intenso e tinha que ser vivido aomximo. Quando chegamos ao parque, todos j sabiam que t-nhamos sado e a me comentou comigo que o Pedro era muitobom rapaz, s que era doido por saias.

    Nessa noite, desfrutei da companhia da famlia com umascartadas de sueca. Aquelas frias estavam sendo bem melhoresdo que eu alguma vez imaginara. Considerava estes meus amigos,apesar de conhec-los h pouco tempo. Sentia-me parte de algu-ma coisa, algo que nunca tinha sentido antes. Aqui, chamavam-

    -me para conversar, para ajudar no jantar, para contar histriase para rir. Mas tudo tem um fim e, consequentemente, domingochegou, e eu tive de voltar para casa. roquei moradas e nmerosde telefone com todos os meus novos amigos. Cheguei em casa noitinha, contente, e em xtase pelos momentos que havia vividonessa semana to cheia de carinho e amizade.

    A segunda-feira foi um dia de ressaca. No queria ir tra-balhar, queria ter ficado em Porto Cvo, juntamente com a fa-mlia e a minha nova paixo. Comecei o dia olhando o nascerdo sol, como fazia no parque. Dei um passeio na praia antes deir trabalhar e ao entrar no escritrio tive uma vontade sbita deme demitir. No meio de todo este turbilho que se passava naminha mente, a razo apareceu, forando-me a trabalhar para omeu sustento e no pensar em tantas maluquices. O dia passou--se numa solido constante. Quando cheguei em casa, ao final da

    tarde, olhei para o meu co, tambm ele olhando a rua da varandacomo se sentisse falta da natureza dessa semana. Levei-o at praia e sentamo-nos a fitar o acaso, no meio da multido. Os diaspassaram-se sem histrias e no fim de semana seguinte, recebi otelefonema de Carlos.

    Ol Ento, como foram as frias? Perguntou. Foram boas Vem c neste fim de semana? No, tenho que ficar c por Lisboa, tenho um amigo que

    se decidiu casar e vou despedida de solteiro. Ah Est bem E desliguei o telefone. Sem dvi-

    da que a nossa relao esmorecera. Desde que vim embora, ele

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    nunca mais me telefonara nem eu a ele. Era sinal que, provavel-mente, o melhor seria mesmo terminarmos. Mas no o queriafazer por telefone, portanto iria aguardar at que ele viesse Figueira.

    CAPTULOIV

    Setembro chegou, e com ele o sossego. Os turistas comeavama partir e as noites a ficarem mais frescas. O ginsio reabriu eeu voltei aos treinos.

    Decidi que a prxima mudana que teria de fazer na mi-nha vida era a carreira. No gostava mesmo de nada do que fazia.O meu trabalho era muito entediante, demasiado ligado a com-putadores. Eu queria contato com pessoas. Ao folhear o jornalvi um anncio de uma Formao Pedaggica de Formadores.No sabia bem do que se tratava e decidi investigar. Era um cursorelativamente caro, na ordem dos quinhentos euros. Pensei que

    poderia ser interessante, pois poderia me abrir um pouco mais oshorizontes de trabalho. Nunca tinha pensado em dar formao,pois era muito tmida. Mas era uma tima oportunidade de per-der a timidez e comear a sair um pouco mais da concha.

    No primeiro dia de curso, enquanto esperava a chegadado instrutor, reparei em alguns dos meus futuros colegas. Muitosdeles tinham um ar um pouco emproado, se bem que todos elesrondavam os vinte e cinco a trinta anos. A primeira sesso foiinteressante. Fizeram-se as apresentaes em que cada um falouum pouco de si. Depois nos foi avisado que cada um de ns iriafazer uma apresentao filmada. Engoli em seco. No tinha lido o

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    programa do curso, mas tinha certa lgica e poderia ser um desa-fio interessante. No dia da apresentao o meu corao pulava eeu tinha as mos frias, cheias de suor.

    Depois de efetuadas todas as apresentaes do grupo,comeou-se a visualizao. Fiquei extremamente surpreendidacom a minha apresentao, pois apesar de ter me sentido assimto nervosa, transparecia tranquilidade e at algum sentimentode humor. Dentro do grupo comeou a se formar um clima deunidade. Uma noite algum sugeriu irmos todos tomar um cafe-zinho depois da aula e assim fomos.

    Gostei muito da tua apresentao Sandra Leva jeito! Disse Aurora, uma colega com a qual j tinha alguma confiana.

    Obrigada Estava mesmo muito nervosa. u s mesmo da Figueira? Sim, sempre vivi aqui Estou h pouco tempo, mas no conheo nada H

    alguma discoteca porreta para sair? Sim Vrias. Aqui as pessoas gostam da noite. Mas sin-

    ceramente no costumo sair. Por qu? No tenho oportunidade Ah Ento temos que sair a uma noite! Alis, ser

    uma boa sairmos todos na prxima sexta-feira! E virou-se parao resto do pessoal. Ei, na sexta-feira poderamos combinar umjantar! No temos curso! E depois amos para a noite!

    Pensei que esta Aurora era uma mulher muito desenvolta.Ela era de Lisboa, mas tinha se mudado h pouco tempo para c.Notava-se que no estava habituada a estar sozinha e que ansiavafazer amigos. Aqui estava uma possvel nova amiga. Porm a suaproposta no teve muitos adeptos, uns estavam ocupados e ou-tros iam de fim de semana. Ela no desistiu e combinou com ospoucos que concordaram em sair.

    Nessa sexta-feira me produzi ao limite e fui com eles aorestaurante. ramos apenas cinco, mas todos muito animados.Alm de mim e da Aurora apareceram mais dois rapazes e umamoa. Os rapazes no eram muito bonitos, mas o que perdiam

    em beleza tinham em simpatia. Um deles era Augusto, bona-cheiro, muito extrovertido e exuberante, inventava inmerashistrias somente para nos entreter. Era gordo, louro e de olhosverdes. Fumava cigarrilhas e tinha o curso de engenharia eletro-tcnica. O outro chamava-se Eduardo, tambm muito falador,mas menos exuberante que Augusto. Era alto, moreno, com olhosde trao oriental. Quando sorria toda a sua face acompanhavao movimento. A rapariga chamava-se Susana, magrssima, comum ar de enjoadinha, mas muito simptica, se bem que um pou-co calada. Comeamos o jantar um pouco intimidados uns com

    os outros, pois no nos conhecamos bem. Mas, aos poucos, ecom a ajuda de um pouco de vinho tinto, o ambiente comeou adesanuviar e se tornou um jantar muito divertido. Fiquei junto aAurora, que praticamente me contou a sua vida toda. Fez toda asua infncia na zona de Sacavm, estudou marketing e trabalhoualgum tempo como delegada de informao mdica, porm foradispensada. Atualmente estava na Figueira, pois tinha tido umaproposta para trabalhar numa cadeia de hotis, o que lhe permi-tia viajar muito. Apesar de no ganhar tanto como delegada deinformao mdica gostava mais, pois lhe permitia alargar maisos horizontes, conhecer mais pessoas e stios. Aurora tinha a vita-lidade de uma mulher de vinte e cinco anos, com a vida toda pelafrente. J no vivia com os pais, conseguia pagar as suas contas eno estava presa a namorados. A noite arrastou-se at as sete damanh, quando os rapazes decidiram dar um mergulho no mar.

    Cheguei a casa sorridente e deitei-me, dormindo que nem umapedra. No dia seguinte acordei com o telefonema de Aurora parairmos tomar um caf. Levei Ringo e Aurora enamorou-se peloanimal. Mexia-lhe imenso no focinho e falava-lhe como se elefosse um beb. Conversamos muito e ao final da tarde decidimosir ao video-locadora alugar um filme. Sentamo-nos no sof paraassistir A Ilha com Leonardo DiCaprio.

    No sei como que as mulheres gostam deste cara girinho, mas tambm No nada de especial! Disse Aurora.

    Ah Eu gosto, acho que um bom ator!oca o telefone. Atendi. Do outro lado era Carlos.

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    Ol Est em casa? Perguntou. Sim Podamos jantar juntos! No sei Respondi. O que se passa? Est to fria! J no nos vimos h tanto

    tempo! No por culpa minha! Exclamei.O silncio instalou-se e s o ouvia respirar. Se quiseres aparece por aqui,por volta das nove.

    Disse eu.

    Est bem Desligou o telefone.Depois do telefonema, devo ter ficado com uma cara dife-

    rente e Aurora notou. Aconteceu alguma coisa? Perguntou. um assunto que tenho que resolver hoje. Respondi. Homens ! Mas tem namorado? Mais ou menosEla sorriu e disse que no tinha nada a ver com isso, sen-

    tando-se e ligando o DVD.O filme foi muito interessante. Era a histria de um rapaz

    que descobria uma ilha paradisaca, contada de uma forma ab-solutamente fantstica. Passados alguns minutos de Aurora sair,Carlos chegou a minha casa. Sentamo-nos no sof e olhamos um

    para o outro. Est mais magra! Reparou. No! Menti. De fato, por esta altura estava um es-

    queleto pesando 39 quilos. Mas quando me olhava ao espelho sconseguia ver banhas. Eu sabia que estava doente, mas no queriaadmitir.

    Como tem passado? Perguntou. Bem Queres jantar? No, j jantei No me deste um beijo Passa-se alguma coisa?

    Por dentro estava agoniada, senti um aperto no peito, mastinha que dizer:

    Quero terminar Eu j suspeitava Mas, por qu? No s tu Sou eu! No me venhas com essa conversa de chacha! Disse

    ele, indignado. Estamos muito longe As relaes distncia no

    resultam! Mas eu j te fiz a proposta! Que mais queres?

    Eu gosto de ti! Mas acho que no me quero comprome-ter assim Se ao menos vivssemos na mesma cidade

    em outro? No, no tem nada a ver Mas podamos ficar amigosCarlos levantou-se e disse que isso no era para ele. Se eu o

    queria, tinha de ser como namorado ou marido e no como amigo. Ento, sendo assim Disse eu friamente. Voc que sabe! Respondeu de forma rude, saindo

    porta fora.Depois de ele sair, senti-me pior. Eu gostava dele, mas ha-

    via qualquer coisa que me impedia de lhe dizer e demonstrar.Algo mais forte que eu e nem eu prpria o controlava. alvez meapetecesse fazer um pouco de novela, talvez no meu ntimo tinhaesperana de que Pedro me telefonasse, mas sabia que isso eraimprovvel. Corri at varanda e gritei para Carlos:

    No v embora. Venha c Vamos falar!Ele olhou para cima e disse que no. Eu agarrei nos meus

    sapatos e desci a escada a correr descala. Quando cheguei naportaria, sa para a rua, mas j no fui a tempo, ele tinha idoembora. Voltei para cima sentindo-me vazia. Pensava que aoterminar esta relao me sentiria aliviada, pois poderia agoraexperimentar mais, mas no queria. elefonei-lhe, mas ele noatendeu, e com razo! Eu tinha me armado em parva. Passei oresto da noite deitada no sof a chorar. No dia seguinte acordeicom os olhos muito inchados e sa para correr com Ringo. Fomosat ao parque onde eu tinha conhecido Carlos. Sentei-me na es-

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    perana de v-lo passear com o seu co. Mas as horas correram eele no apareceu. Depois do almoo passei pelo seu apartamen-to, mas ele no estava l. Fiquei destroada. Quando cheguei emcasa, fui assistir televiso e comi tudo o que tinha mo. Come-cei por fazer pipocas. Quando acabei com as pipocas, comi umsorvete, uma caixa de bombons e um pacote de batatas fritas.No fim, vomitei tudo. Sentia-me um trapo. Como fora estpida!Ele gostava de mim! Eu que o repudiara sem razo! elefoneipara Pedro.

    Ol Pedro, tudo bem! Disse eu.

    Quem fala? Sou eu, a Sandra que conheceste no Vero! Ah! Sim Ento, tudo bem? Est em Coimbra? Sim, cheguei agora. Podamos ir tomar um caf! Hoje no d! enho muito que fazer!Fiquei desiludida com a resposta. Fui apenas mais uma

    e enganei-me ao pensar que ele poderia ter algum interesse emmim. Desliguei e fiquei prostrada no sof deixando as lgrimasbrotarem dos meus olhos como se fossem chuva intensa. Na se-gunda-feira fui trabalhar com esforo. Sentia-me exausta mental-mente, pois tinha passado a noite em claro. Ao final da tarde, fuiao ginsio, mas s corri quinze minutos e desisti. Fui para casafaltei formao e deixei-me ficar toda a noite no sof.

    Na tera-feira faltei a tudo, ao trabalho, ao ginsio e for-mao. Fiquei novamente no sof a comer. Na quarta-feira, fizum grande esforo para ir trabalhar e para ir formao. Assimque chegou ao intervalo, Aurora veio falar comigo perguntandoo que tinha se passado para faltar dois dias seguidos formao.Contei-lhe que tinha acabado com o meu pseudo-namorado esentia-me muito mal, pois ainda gostava dele. Aurora tentou meconfortar, mas pouco mais podia fazer seno dizer que com otempo tudo passa. A seguir, formao fomos tomar um caf eeu desabafei. Ali estava eu a falar sobre os meus problemas maisntimos com uma pessoa que conhecia h menos de um ms.

    Aurora era realmente especial. Ouviu-me, sem proferir juzos devalor e sem olhar para o relgio.

    O ms de Outubro passou e com ele a formao. No fiqueinada arrependida de t-lo ter feito, pois agora tinha uma ami-ga, uma amiga valiosa. Ela tanto era muito divertida, como sabiaouvir as minhas lamentaes. Eu tambm ouvia as dela e assimficvamos quites. Por vezes, parecamos o muro das lamentaes,outras vezes parecamos duas adolescentes muito divertidas.Dessa formao tambm ficou o Augusto, o Eduardo e a Su-sana. Mas no tinha com nenhum deles o grau de intimidade

    que tinha com Aurora.Combinvamos muitos cafs durante a semana e tornamo-

    -nos um grupo bastante coeso. No entanto, aos fins de semana, anica que ficava na Figueira era Aurora. No incio de Novembro,combinei com ela um passeio at ao Palcio do Gelo, em Viseu,para patinarmos. Lembrei-me de Mariana, a minha amiga de Ve-ro e decidi telefonar-lhe. Combinei me encontrar com ela junto pista do gelo. Apresentei-a para Aurora e fomos as trs patinar.Foi extremamente divertido, rimos muito e ao final fomos todasbeber um caf e conversar. No incio elas estavam um pouco t-midas, mas Aurora deu a volta e comeou a desbobinar as suashistrias. Foi uma tarde bem legal.

    Como o meu aniversrio estava perto, decidi convidarMariana para comemorar. Este ano estava determinada em terum aniversrio completo: com amigos, jantar e farra. Convidei a

    minha prima de Lisboa, mas ela recusou o convite, pois tinha afilha mais nova doente. Convidei a Aurora, a Mariana, o Augusto,o Eduardo e a Susana para jantarem em minha casa no dia dosmeus anos. Enquanto preparava o jantar antes deles chegarem otelefone tocou. Era Carlos.

    Parabns. Disse. Obrigada Carlos Respondi. So trinta e um No ? verdade! Quer vir aqui? Posso ir Mas s agora que convida? Voc disse que no podamos ser amigos! Retorqui.

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    E voc desceu as escadas descala Como que sabe? Perguntei, um pouco admirada. Eu vi Mas isso agora no interessa Est bem. At j!Quando desliguei o telefone, parecia uma adolescente. Pu-

    lei, literalmente, de alegria. Esta era o melhor presente que pode-ria receber: ter Carlos de volta.

    Os meus convidados foram aparecendo um a um, excetu-ando a Mariana, que havia dormido em minha casa. Acho queera a primeira vez que fazia um jantar em casa para amigos e por

    isso sentia-me muito nervosa. Queria que tudo fosse perfeito: adecorao da mesa, a msica ambiente, as luzes, a conversa e a co-mida. Para minha admirao, todos apareceram pontualmente,incluindo Carlos. Quando ele entrou, senti um rebolio na barrigae percebi o quanto ainda gostava dele.

    oma, trouxe um presente para voc! Disse, enquantome dava um beijo na cara.

    Obrigada Mas no era preciso! Abre! V se gosta!Abri e era uma echarpe preta, muito bonita. Fiquei encan-

    tada com a sua ateno e dei-lhe um beijo na boca, sem querer.Nesta altura, entra Augusto na cozinha e ri.

    V, deixem de poucas-vergonhas e tragam mais comidapara a mesa Estou cheio de fome!

    Durante o jantar a conversa comeou a ficar um pouco

    picante, principalmente entre a Mariana e o Augusto. Notava-seque ele havia ficado embasbacado com tanta beleza numa mulhere ela respondia-lhe a todas as provocaes de uma forma elegan-te. Enquanto jantvamos, o telefone tocou, era a minha prima deLisboa para desejar-me os parabns. Desta vez, o meu anivers-rio estava sendo o mximo. Depois de comermos, fomos at umbar. A noite acabou cedo com uma promessa de Carlos de metelefonar no dia seguinte. Quando retornvamos a casa, Marianaperguntou-me onde tinha conhecido aquelas pessoas, pois eramrealmente muito divertidos. Ao deitar-me, sorria de orelha a ore-lha e abracei Ringo. Foi uma noite fabulosa, nada comparvel aos

    anos anteriores. udo estava diferente, pois agora tinha amigos.No eram amigos muito prximos, pois os conhecia h poucotempo, mas tinham sido fabulosos e divertidos. E pensar que hpessoas que sempre viveram assim, tomando o fato de ter amigoscomo garantido! Se pelo menos eu pudesse voltar atrs e corrigira minha falta de jeito na adolescncia, provavelmente agora teriamuito mais pessoas na minha vida.

    Provavelmente teria tido muito mais experincias, teria vi-vido muito mais, pois sozinha no se vive, sobrevive. Parecia queos trinta anos que haveria vivido no tinham sido, em nada, com-

    parveis ao que eu tinha experimentado neste ano que se passou.Eu tinha sado de uma solido total. Parecia um sonho!No dia seguint