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Tradução: Jorge Viveiros de Castro Alex Bellos 2 a edição revista e ampliada

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Tradução:Jorge Viveiros de Castro

Alex Bellos

2a edição revista e ampliada

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Para Ella

Título original:Futebol: The Brazilian Way of Life

Tradução autorizada da terceira edição inglesa, publicada em 2014 por Bloomsbury, de Londres, Inglaterra

Copyright © 2002, 2014, Alex Bellos

Copyright da edição em língua portuguesa © 2014:Jorge Zahar Editor Ltda.

rua Marquês de S. Vicente 99 – 1o | 22451-041 Rio de Janeiro, RJtel (21) 2529-4750 | fax (21) 2529-4787

[email protected] | www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.A reprodução não autorizada desta publicação, no todo

ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Grafia atualizada respeitando o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

1a edição: 2003

Tradução do prefácio, posfácio e das atualizações: Cristiano BotafogoProjeto gráfico e diagramação: Victoria Rabello

Capa: Sérgio CampanteIlustração da capa: Aldyr Garcia Schlee

CIP-Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Bellos, Alex, 1969-B386f Futebol: o Brasil em Campo / Alex Bellos; tradução Jorge Viveiros de Cas- 2.ed. tro. – 2.ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

il.Tradução de: Futebol: the brazilian way of lifeISBN 978-85-378-1212-9

1. Futebol – Brasil – História. I. Título. CDD: 796.334

14-10265 CDU: 796.332

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AMÉRICA DO SUL

COLÔMBIABogotá

VENEZUELACaracas

GUIANAGeorgetown

SURINAMEParamaribo

GUIANA FRANCESACaiena

BRASILBrasília

PARAGUAIAssunção

ARGENTINABuenos Aires

URUGUAIMontevidéu

CHILE Santiago

RIO AMAZONAS

BOLÍVIALa Paz

PERULima

EQUADORQuito

LINHA DO EQUADOR

TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO

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Prefácio por Sócrates Brasileiro

Fico absolutamente encantado – em todos os sentidos da palavra – com a paixão. É ela que nos guia pelo desconhecido, como um líder experiente; mares revoltos não nos assustam se nós os encaramos com a loucura do amor. Em nenhum país as pessoas amam e se apaixonam tanto quanto no meu. Estamos sempre cercados por exageros, felicidade, espontaneidade e criatividade. A esperança que temos estampada em nossos rostos é marca registrada até de quem nunca recebeu nada da sociedade. Acreditamos devotamente no mundo novo e na bela humanidade que sabemos que vamos construir, sem mordaças a sequestrar nossa liberdade nem chicotes a nos ameaçar. Sem a ignorância que nos levaria ao estupor de um casulo vazio.

Nosso povo que nasceu escravo se liberta a cada dia com uma voz que ressoa pelo ar em busca da verdade. Da sua verdade. Aquela que sustenta a força de uma cultura inamovível; e inamovível pois vem da alma, da aura, do sorriso. Uma cultura na qual brancos e indígenas, negros e pobres, imigrantes e jovens podem deliciar-se nos prazeres da vida. E que prazeres! Um povo que sabe o que quer, mesmo que não saiba bem como obtê-lo. Ou sabe?

As respostas que procuramos demandam cuidado e atenção especiais.Somos um povo de mil faces e gestos. Um povo que luta para preservar a

própria história contra tudo e todos, contra qualquer evidência e perspectiva. Um povo sagaz, vão e feliz que faz bom uso de suas maravilhas naturais com a naturalidade de quem não tem com o que se preocupar. Um povo que ama tudo que o cerca e que sabe como extrair, de cada segundo, a sabedoria de uma vida inteira. E um povo que ama o futebol.

O futebol é um esporte construído sobre a espontaneidade e o discernimen-to, o luxo e a liberdade, e creio que um esporte que faz parte do nosso genoma mais primitivo, assim como a dança. Mas o futebol deveria ser considerado um tipo de dança. Uma dose de paz.

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8 • Futebol: o Brasil em campo

Alex Bellos, tendo a paciência de um sábio e a elegante curiosidade de um cientista, nos revela, com clareza irrefutável, nossa face e nossa alma. Como num “teatro da vida” – no qual assistimos e discutimos nosso cotidiano, mas sem nos envolver em sua banalidade –, nosso encantado e encantador neobrasileiro viaja pela imensidão do nosso país para descobrir quem somos e por que somos o que somos. E isso ele consegue, com grande juízo e rara sensibilidade.

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Introdução

O futebol chegou ao Brasil em 1894. O “violento esporte bretão” saiu-se ines-peradamente bem. Em algumas décadas seria o símbolo mais forte da identi-dade brasileira. A seleção canarinho, como todos sabemos, venceu mais Copas do Mundo que qualquer outra. O país ainda produziu Pelé, o melhor jogador de todos os tempos. Mais do que isso, os brasileiros inventaram um estilo exu-berante e requintado que estabeleceu um padrão inatingível para o resto do mundo. Os britânicos o chamam de “beautiful game”. Os brasileiros de “fute-bol-arte”. Qualquer que seja o termo escolhido, nada no esporte internacional tem o mesmo apelo.

Cheguei ao Brasil em 1998. Também não me saí mal. Tornei-me um cor- respondente estrangeiro. Era um emprego que sempre cobicei, e o Brasil, jor-nalisticamente falando, é irresistível. O país é enorme, variado e cheio de cores. Entre seus 170 milhões de habitantes há mais negros que em qualquer outro país exceto a Nigéria, mais japoneses que em qualquer lugar fora do Japão, bem como 350 mil indígenas, inclusive uma dúzia de tribos ainda não contatadas. O Brasil é o maior produtor mundial de suco de laranja, café e açúcar. É também uma nação industrial, curiosamente um dos principais fabricantes de aviões do mundo, e tem uma herança artística impressionante, especialmente na música e na dança.

E, claro, é o país do futebol.Logo que cheguei fui ver um jogo da seleção. Era no Maracanã, o templo

do futebol brasileiro – e portanto do futebol mundial. Quando os jogadores entraram em campo nós pulamos e gritamos. O barulho era como uma tem-pestade elétrica, um coro crescente de rojões, batuques e cantos sincopados. Cristalizando o que eu já sabia; que o caso de amor com o futebol brasileiro é muito mais que com o “beautiful game”. Amamos o espetáculo. Amamos seus torcedores, tão exuberantemente alegres. Amamos suas estrelas e seus apeli- dos – como se fossem amigos pessoais. Amamos sua seleção porque repre-

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12 • Futebol: o Brasil em campo

senta uma harmonia racial utópica. Amamos suas consagradas camisas ama- relo-ouro.

Amamos o Brasiiiiiiiiiil.Como um bom torcedor, interessei-me imediatamente pelos campeona -

tos locais. Lia as páginas esportivas, escolhi o meu time e passei a frequentar os estádios. Acompanhar o futebol talvez seja o meio mais eficiente de se integrar na sociedade brasileira.

Como jornalista, fui ficando cada vez mais fascinado com o modo pelo qual o futebol influencia o estilo de vida. E se o futebol reflete a cultura, o que acho que faz, então o que no Brasil torna seus jogadores e seus torcedores tão... bem... brasileiros?

É disto que este livro trata.Em primeiro lugar eu queria saber como um jogo britânico trazido para

cá há pouco mais de um século pôde modelar com tanta força o destino de uma nação tropical. Como algo assim aparentemente singelo como um espor-te de equipe tornou-se o maior fator de unificação do quinto maior país do mundo? Enfim, o que significa viver neste “país do futebol”?

Se o futebol é o esporte mais popular do mundo, e se o Brasil é a nação mais bem-sucedida neste campo, as consequências desta reputação devem ser particulares e de longo alcance. Nenhum outro país é marcado por um único esporte, creio, na mesma medida que o Brasil pelo futebol.

Levei um ano pesquisando. Voei, por dentro das fronteiras do país, o equi-valente à circunferência da Terra. Entrevistei centenas de pessoas. Primeiro, os suspeitos de sempre: jogadores e ex-jogadores, dirigentes de clubes, árbitros, olheiros, jornalistas, historiadores e torcedores. Depois, quando realmente quis investigar as entranhas do país: padres, políticos, travestis, músicos, juízes, antropólogos, tribos indígenas e rainhas da beleza. Também entrevistei um homem que vive de fazer embaixadinhas, astros de rodeio que jogam futebol com bois, um torcedor de aparência tão peculiar que vende espaço para anúncios em sua camiseta, e descobri um plano secreto envolvendo Sócrates e o coronel líbio Muamar al-Kadafi.

Eu não estava interessado em “fatos”, como resultados ou escalações. No Brasil os fatos não têm tanta importância; é um país construído por histórias, mitos e boatos. O que se escreve não é – ainda – tão aceito como o que se diz (um dos costumes do país que mais enfurece, especialmente se você é um jornalista). Eu estava interessado na vida das pessoas e nos episódios que contavam.

O resultado, espero, é um retrato contemporâneo do maior país da América Latina visto através de sua paixão pelo futebol.

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13Introdução •

O Brasil é o país onde os agentes funerários oferecem caixões com o escu-do dos clubes, onde plataformas marítimas de petróleo são equipadas com campos de futebol-soçaite, e onde um clube de futebol pode ser um trampolim para um cargo parlamentar.

Comecei minha pesquisa em meados de 2000, exatamente meio século depois da Copa do Mundo realizada no Brasil e trinta anos após o Brasil ter conquistado, de modo tão espetacular, seu terceiro título mundial. Era um ponto de partida conveniente para uma reflexão sobre o legado do “futebol-arte”.

Não por minha culpa, em algumas semanas o futebol brasileiro estava mergulhando em sua maior crise de todos os tempos. A seleção nacional per-deu uma sequência de jogos e o Congresso iniciou duas amplas investigações sobre o esporte.

A situação ficou cada vez pior. O Brasil continuou perdendo e os congres-sistas estavam jogando luzes sobre um submundo corrupto e asqueroso. Por um momento o impensável – que o Brasil perdesse a classificação para a Copa do Mundo de 2002 – era uma possibilidade real.

Entendo a crise como um reflexo de tensões mais gerais. Desde os anos 1950, quando Pelé começou a jogar, o Brasil transformou-se de um país maci-çamente rural e analfabeto em outro urbano e letrado. Passou por duas déca-das de ditadura e está aprendendo, às vezes com desconforto, como criar uma nova sociedade.

Entretanto, o mundo mudou. O futebol também. Porém, mais do que nunca, o que permanece é a mística das camisas amarelo-ouro.

Acompanhei as investigações parlamentares de perto. Viajei a Brasília para as audiências. Estive lá quando Ronaldo foi convocado a prestar depoimento. Estava ali para explicar aos congressistas por que o Brasil tinha sido apenas vice-campeão na Copa de 1998.

“Há muitas verdades”, disse o jogador a seus interlocutores. Declarou que daria “sua verdade” e que esperava que lhes agradasse. Mas se era ou não a “verdade verdadeira” – bem, era com eles.

Logo anotei isto em meu bloco. Achei que era o comentário mais invo-luntariamente perspicaz que qualquer jogador jamais havia feito.

O Brasil tem muitas “verdades”. Este livro é minha busca pela “verdade verdadeira” do futebol brasileiro. Espero que lhe agrade.

Alex BellosRio de Janeiro, novembro de 2001

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C a p í t u l o u m

O jogo no fim do mundo

De sua janela no vilarejo de Toftir, Marcelo Marcolino olha para uma encosta coberta de neve sob uma névoa sombria. Ele reclama que é sempre a mesma coisa, que o vazio gelado nunca é amenizado por um arco-íris ou céu claro. Lá fora, o vento gelado é implacável. As ruas estão desertas. Mas tudo bem, Marcelo não gosta de sair de casa; passa a maior parte do dia assistindo tv via satélite em línguas que não entende.

Marcelo sempre quis ser jogador. Era seu sonho desde a infância em Copa-cabana. Talvez do Flamengo, seu time de coração no Rio de Janeiro. Ou mesmo de um dos rivais, como o Fluminense, onde seu pai chegou a jogar. Nunca imaginou que acabaria exercendo seu ofício no severo Atlântico Norte, onde a temperatura média no verão é quase dez graus mais baixa que a do inverno brasileiro. Para onde ele certa vez viajou para uma partida num barco de pesca.

As Ilhas Faroe ficam a meio caminho entre a Escócia e a Islândia. Provavel-mente foram descobertas pelo monge irlandês St Brendan, que navegou por ali no início do século vi. St Brendan estava à procura da Hy-Brazil, a mítica Ilha dos Abençoados, que segundo alguns estudiosos teria originado o nome Brasil. Um milênio e meio depois as Faroe foram descobertas por viajantes tropicais vindo na direção contrária. Eles encontraram um outro tipo de paraíso.

Marcelo ouviu falar nas Faroe pela primeira vez quando a proposta do b68 de Toftir surgiu. Foi tirar o passaporte no consulado dinamarquês no Rio de Janeiro. Disseram-lhe para levar um casaco. Não foi o suficiente. Chegando a Copenhagen para trocar de avião, sentiu sua primeira rajada de ar gelado. “Meu Deus”, pensou, “quero voltar para casa.” O b68 foi buscá-lo no aeroporto da Ilha Vágar, no oeste do arquipélago, único lugar com espaço plano suficiente para caber uma pista de aterrissagem. Marcelo foi então levado a Toftir, o que envolve uma travessia de balsa e mais uma hora de carro ao longo dos contor-nos acidentados da ilha. Percebeu que o cenário sem árvores das Faroe estava coberto de branco. Era a primeira vez que via neve.

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16 • Futebol: o Brasil em campo

Mesmo para os padrões locais, Toftir é um lugar pequeno e remoto. A população é de 1.000 habitantes – aproximadamente vinte vezes menor que a da capital, Tórshavn. Toftir é um povoado de algumas centenas de casas ao longo de uma estrada costeira fustigada pelo vento. As casas são uns cubos arrumados com telhados bem dispostos. Toftir não tem cinemas, bares nem restaurantes. Possui um mercado de pesca, uma fábrica de pescado e uma igre- ja. E um clube de futebol com três brasileiros.

Quando cheguei à casa de Marcelo, na hora do almoço, ele estava dormin-do. Agora, dez minutos depois, está de pé, andando agitado com a energia de uma criança hiperativa. “Esta casa é minha prisão”, diz. “É difícil. Estou acos-tumado com outra cultura: praia, cerveja, mulheres. Aqui as pessoas não têm vida. Você não sai de casa.”

Marcelo tem 29 anos, e tem pinta de jogador. Seu cabelo era raspado mas ele deixou que crescesse alguns milímetros para esquentar. Sua pele negra está mais clara do que costuma ser no Brasil, consequência dos dias sem sol em Toftir. Ele tem um porte elegante e fala olhando para baixo, balançando os braços e estufando o peito. Possui um olhar altivo e gosta do som da própria voz. Sua exuberância calorosa parece não ter diminuído com a inclemência da nova vizinhança.

Pergunto se ele sai nos fins de semana.“Nunca mais”, responde. “Leva uma hora de ônibus para chegar até Tór-

shavn, e lá de qualquer modo não tem muito o que fazer. A gente era con - vidado para as festas, mas as festas aqui parecem mais um velório.”

Percebe que foi além da conta com as críticas. Fica mais calmo e muda o tom de voz.

“Mas estou feliz. Não tenho do que reclamar. Estou aqui porque sou um profissional e porque tenho a oportunidade de fazer algum dinheiro. Eu nunca estaria ganhando a mesma coisa no Brasil.”

O b68 treina apenas duas horas por dia. Pela manhã seu atacante interna-cional trabalha no mercado de pesca de Toftir puxando cestas carregadas de bacalhau e arenque dos pequenos barcos para o embarcadouro. Não é uma atividade obrigatória, mas é fortemente encorajada pelo presidente do b68. Não é para menos. O presidente do clube é o responsável pelo descarregamento de peixe no mercado de Toftir. Há muito peixe nos mares. Ele precisa de todas as mãos que puder arranjar.

Marcelo, que não é o tipo de homem talhado para o trabalho pesado, tenta fazer o mínimo possível. Ele me diz que seu papel ali é marcar gols. Gols

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17O jogo no fim do mundo •

brasileiros, de classe. Ele pode estar nas Ilhas Faroe, mas não perdeu o senso de orgulho nacional.

De repente ele desaparece para trazer um troféu de prata de seu quarto. Vem mostrá-lo orgulhosamente: “É de Melhor Atacante na Liga Faroense 2000. Na última temporada nosso artilheiro fez dezesseis gols. Marquei quinze. Mas ele fez um monte de pênalti. Sou muito melhor, só que ele é amigo do treinador.”

Marcelo gosta de ser famoso, ainda que para pouca gente. “Aqui sou o rei”, diz. “Ninguém faz o que faço.”

Ele também sabe que está vivendo seu sonho, apesar da realidade cinzenta. Todo brasileiro sonha em jogar na Europa.

“Quando volto ao Rio as pessoas me tratam de outro modo”, gaba-se. “É como se eu fosse da realeza. As pessoas veem que você é um cara importante. Ninguém ali do morro jogou na Europa. Se você diz que joga no Bonsucesso as pessoas sacaneiam, como se o time não fosse de nada. Os brasileiros respeitam mais se você está jogando na Europa. O pessoal vê com outros olhos.”

Faz uma pausa e acrescenta: “Vou poder contar aos meus netos que fui alguém.”

A menos que você seja um aficcionado por geografia ou um importador de bacalhau, não há muitas razões para se dar conta da existência das Ilhas Faroe, uma área autônoma da Dinamarca com uma população de 47 mil habitantes. As ilhas distantes têm uma das menores ligas de futebol da Europa e a equipe nacional é uma das mais fracas do continente. Uma vitória de 1x0 contra Lu-xemburgo provocou euforia nacional.

Encontro-me com Niclas Davidsen, presidente do b68. Ele tem a aura bi-dimensional de um papelão recortado. Suas mãos estão sempre nos bolsos por causa do frio. Quando fala, é num sussurro, sem movimento aparente dos lá - bios. Sua compleição avermelhada, esculpida pelo vento, só é contrabalançada pelo calor de sua barba ruiva e dos claros olhos azuis. Ele me convida para sua casa. Sentamos na sala, que tem uma foto do Pão de Açúcar na parede.

Niclas conta que o b68 é um clube pioneiro. Coloca um vídeo para me mostrar por quê. A história começa em 12 de setembro de 1990, uma data que, conforme trombeteia o locutor, “viverá para sempre na memória dos faroenses”. As Ilhas Faroe, disputando sua primeira partida internacional na Suécia, ven-ceu a Áustria por 1x0. Quando a equipe retornou, os jogadores foram recebi-dos como heróis, em cenas que lembravam mais “as ruas da América do Sul do que o tranquilo Atlântico Norte”. Niclas se mostra hipnotizado, embora já deva ter assistido ao vídeo mais de cem vezes.

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18 • Futebol: o Brasil em campo

As Faroe não podiam jogar em casa por não possuir um local que se adap-tasse às exigências internacionais. Então Niclas levantou 2 milhões de dólares para investir em melhorias no campo do b68. Foi uma tarefa complicada. Toftir não tinha nenhuma área plana. Os engenheiros precisaram de cinquenta tone-ladas de explosivos para demolir a saliência rochosa que se erguia por trás do vilarejo. Durante um ano os operários trabalharam dez horas por dia, seis dias por semana, até que a remota Toftir ganhasse o estádio nacional das Faroe, com capacidade para oito vezes sua população.

O vídeo termina. Niclas olha para mim. Então, diz, tudo que o b68 precisava era de alguns bons jogadores.

A ajuda veio na pessoa de um amigo islandês, Páll Gudhlaugsson, que costumava treinar a seleção faroense. Páll ligou para Niclas e disse que estava viajando para o Rio para contratar alguns brasileiros. Será que Niclas gostaria de entrar no negócio?

Poucas coisas são capazes de esquentar as extremidades geladas de um torcedor faroense como a ideia de um brasileiro vestindo a camisa de seu clu-be. “Simbolicamente é muito forte ter brasileiros no time”, diz Niclas. “E Páll me contou que havia muitos brasileiros loucos para embarcar.” O preço do peixe estava nas alturas. O b68 tinha dinheiro no banco. Niclas ligou para seu amigo islandês e encomendou quatro.

ESCÓCIA

Ölafsfjördhur

KeflavíkREIKJAVÍK

ISLÂNDIA

TÖRSHAVN

Gøta

Toftir

Vágar

SANDOY

ILHASFAROE

CÍRCULO POLAR ÁRTICO

MAR DA NORUEGA

ILHAS FAROE

NORUEGA

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19O jogo no fi m do mundo •

Em março de 1999, Marcelo Marcolino, Messias Pereira, Marlon Jorge e Lúcio de Oliveira chegaram a Toft ir. Dois outros brasileiros viajaram com eles, contratados pelo gí, mais uma equipe mediana de outro vilarejo de mil habi-tantes, uma igreja e uma fábrica de pescado.

Eles não foram os únicos brasileiros exportados naquele ano. Em 1999 fo -ram realizadas mais de 650 transferências internacionais. Os jogadores se espa-lharam amplamente, ingressando em clubes não apenas das ligas mais disputa-das mas também, entre outras, nas da Armênia, Senegal, China e Jamaica. Em 2000 o êxodo continuou intenso, com transferências para sessenta e seis países, incluindo Líbano, Vietnã, Austrália e Haiti. Aproximadamente cinco mil brasi-leiros jogam profi ssionalmente no estrangeiro, de acordo com a Confederação Brasileira de Futebol. É quase quatro vezes mais que o número de diplomatas do país. Sob vários aspectos a diáspora futebolística é um serviço diplomático paralelo, pois, além de migrantes econômicos, os atletas são verdadeiros embai-xadores culturais. São fi guras públicas onde quer que apareçam, promovendo a herança futebolística de seu país.

Toft ir recebeu a legião brasileira com grande festa. Os alunos dos colégios rasparam seus cabelos louros para fi carem parecidos com os novos recrutas. Foram assunto de reportagens e entrevistas nos jornais e nas televisões locais. Porém as expectativas do b68 não foram atendidas de imediato. Jogar na neve não é a mesma coisa que jogar na areia. Os garotos do Brasil não se adaptaram. Lúcio se machucou e voltou para casa. O b68 terminou a temporada em sétimo lugar entre dez participantes.

Messias Pereira, Marlon Jorge, Marcelo Marcolino e Niclas Davidsen em seus uniformes do b68. Atrás deles, Toftir

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20 • Futebol: o Brasil em campo

Niclas insistiu. O time melhorou. Ficaram em terceiro no campeonato de 2000. Marcelo ganhou o troféu de melhor atacante e os contratos foram reno-vados para 2001.

Niclas admite que foi uma aposta. “Nós só conhecíamos os jogadores bra-sileiros pela televisão, como Pelé e a seleção”, ele diz, sério. “Mas não sabíamos se os que tínhamos contratado eram bons. Agora sabemos que sim. Especial-mente Marcelo.”

O terceiro lugar trouxe um prêmio cobiçado – a classificação para a Copa Intertoto da uefa. A Intertoto, disputada no verão, pode ser ridicularizada pelas nações mais fortes do futebol, mas para os clubes das margens da Europa trata-se do auge da glória internacional. Nenhuma equipe faroense jamais pas-sou da primeira rodada. Com três brasileiros, no entanto, talvez eles pudessem quebrar a escrita.

* * *

O despertador toca às 6 da manhã. Messias Pereira levanta e lê seus cinco sal-mos diários. A Bíblia ajuda sua solidão. Hoje é um grande dia. O b68 joga con - tra o b71. Poderia ser um duelo entre bombardeiros americanos ou complexos vitamínicos. A realidade é menos dramática: um jogo da copa faroense.

O b71 é de Sandoy, uma ilha que só é acessível de barco. Niclas nos leva cedo para a travessia matinal. A rota nos conduz através de uma nevasca, chuva torrencial e alguns momentos de um brilhante sol de gelo. A cada centena de metros o carro transpõe uma curva costeira em agulha e entramos numa con-dição climática completamente diferente.

Marcelo está contundido e ficou em casa. Os outros dois brasileiros – Messias e Marlon Jorge – aparentemente preferiam estar na mesma situação. No ferry boat, os dois sentam juntos, aconchegando-se para se aquecerem. Messias veste uma jaqueta jeans com um colarinho de pele falsa de ovelha. Marlon usa um casaco verde. Seus companheiros faroenses estão com o agasalho vermelho do b68 e conversam em voz alta no salão da cabine.

Messias, de 28 anos, é um homem tranquilo. Usa um cavanhaque que lhe dá um ar piedoso e distinto. Marlon, aos 24 anos, possui grossas rugas na testa. É o mais inteligente dos brasileiros, o único que aprendeu faroense o suficiente para algo mais que uma conversa monossilábica. Marlon vive com sua esposa brasileira, Angela, que deixou o emprego de trocadora em Copacabana para salgar bacalhau na fábrica de Toftir. Foi uma mudança que ela realizou de bom grado, já que gosta da posição de mulher de jogador de futebol.

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21O jogo no fim do mundo •

Hoje Marlon está visivelmente quieto. Ele fica muito pálido quando o ferry começa a jogar. Pede desculpas e desaparece no convés. Isso me dá a oportuni-dade de conversar a sós com Messias. “O futebol é minha vida”, ele diz. “É o que me sustenta. Tive sorte de ter chegado até aqui.” O ferry gelado agora está in - clinando para os lados. A chuva bate nos vidros.

“Mas por outro lado não tive tanta sorte, porque podia estar jogando num lugar melhor.”

Messias acredita que sua carreira tem mais futuro nas Faroe que no Brasil, onde ele e Marlon estavam jogando na segunda divisão carioca. Ele ganhava um salário mínimo por mês. Agora recebe algumas centenas de dólares, sem contar o trabalho nas docas. “Resolvi voltar nesta temporada porque aqui es-tou jogando na primeira divisão e ainda terei a oportunidade de participar da Copa Intertoto.”

A partida entre o b68 e o b71 é no fim do mundo. Ou assim parece. O lugar é inóspito e desolado. Estamos num vale cercado de paredes rochosas e nuvens de neve. Cerca de cinquenta espectadores compareceram. Está frio demais para ficar do lado de fora e eles assistem de dentro dos carros.

O jogo está moribundo como as cercanias. Marlon dá um passe inteligente que cria o primeiro gol do b68. Fora isso, os brasileiros não aparecem. Assim como ninguém mais. Messias joga de modo competente mas é substituído perto do final. Ele não gosta e sai irritado para o vestiário. “A pressão é enorme quando você é brasileiro. Você custou caro para o clube. Alguns jogadores do time erram mas nunca são responsabilizados. Quando cometemos os mesmos erros é diferente.”

O b68 ganha por 2x0. Eles me dizem que o tempo estava ameno. Uma vez o vento estava tão forte que o árbitro pediu aos jogadores que se agachassem no gramado para que não fossem atirados para fora do campo.

Durante a viagem de volta no ferry, tive a chance de conversar com os joga-dores faroenses do b68. Perguntei a Hans Fródhi Hansen, um zagueiro central que também joga na seleção, o que os brasileiros acrescentavam ao time. Ele é alto, tem o cabelo louro e liso e usa um gorro de lã do Liverpool fc.

Hansen primeiro descreve os brasileiros como pessoas muito positivas. Pergunto como sabe disso tendo em vista que eles não falam faroense muito bem. Ele pensa por um instante. “As poucas palavras que dizem são bastante positivas”, responde sorridente.

Hansen explica que o futebol faroense se baseia na força física. É bom contar com os brasileiros porque eles possuem um toque de mais qualidade e

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22 • Futebol: o Brasil em campo

melhor técnica. Mas acrescenta que eles não estão acostumados com o estilo faroense. Para ele a melhor coisa a respeito dos brasileiros é psicológica. “Quan-do você pensa no Brasil você pensa em samba, alegria e dança. Isso é muito bom para nós.”

Hansen, em seu inglês escandinavo perfeito, está expressando uma ver-dade esportiva universal: que o futebol brasileiro possui um apelo único. Isto vem desde 1938, ainda que a confirmação tenha chegado apenas com o triplo triunfo nas Copas do Mundo de 1958, 62 e 70. O brilhantismo dos brasileiros foi consagrado porque, além de ganhar, eles o fizeram com um elã incompa-rável. Em 1970, a vitória teve ainda o impulso da tv colorida, que imortalizou Pelé e as camisas amarelas sobre o fundo até então preto e branco do esporte mundial. O impacto foi tão devastador que – apesar de jamais terem jogado assim novamente – seu legado ainda se faz sentir no mundo inteiro. Mesmo no frio congelante das Ilhas Faroe.

Todo brasileiro é tocado pela mística do “futebol-arte”. A expressão “jogador brasileiro” é comparável a “chefe de cozinha francês” ou “monge tibetano”. A nacio-nalidade expressa uma autoridade, uma vocação inata para a profissão – qual - quer que seja a habilidade natural. Percebo que os jogadores faroenses não qualificam Marlon e Messias, ainda que gostem daquilo que representam. Per-gunto ao treinador, Joannes Jakobsen. Ele tenta ser diplomático: “Se os brasileiros tivessem chegado quinze anos atrás, eles seriam muito, muito melhores que nós. Mas somos um povo bastante orgulhoso e estamos nos aprimorando – espe-cialmente se você considerar como somos poucos. O futebol nas Faroe mudou.”

Indago de que modo. “Não estamos perdendo tanto quanto antes”, res-ponde.

Pergunto a Joannes se ele gostaria de contratar mais brasileiros. “Preferia comprar mais jogadores faroenses porque iria fortalecer nosso lado e enfra-quecer os oponentes. Também acho que é difícil para outras nacionalidades se adaptarem ao nosso modo de vida.”

E acrescenta: “Mas como pessoas são ótimos.”Enquanto rodamos de volta depois da travessia – no final de uma jornada de

doze horas –, pergunto a Marlon e Messias o que acham do nível dos jogadores faroenses. Ambos estão convencidos de que são superiores aos seus colegas de equipe – os faroenses apenas são ignorantes demais para perceber. De - pois que começam, não seguram as críticas. Os faroenses, dizem, não entendem de futebol. Para começar não rezam antes dos jogos. Não treinam táticas. E não oferecem bichos nas vitórias. “No Brasil ganhamos um dinheirinho por uma

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vitória e metade por um empate”, diz Marlon. “Aqui não ganhamos nada. Cadê o incentivo?”

Marlon acredita que se fosse faroense seria convocado para a seleção. Ele decide que é uma de suas ambições. “Disseram que se você joga cinco anos num país você se torna selecionável. Você tem que ter um objetivo. É o que tentarei alcançar.”

Se ele algum dia se naturalizar faroense, não será o primeiro de seus com-patriotas a ser convocado para uma seleção estrangeira. Brasileiros já jogaram pelo Japão, Bélgica e Tunísia. Recentemente, a Federação de Futebol Peruana pediu a Esídio, que é hiv-positivo, que se naturalizasse. Ele marcou trinta e sete gols pelo Universitário de Lima em 2000 – o maior número de gols marcados numa temporada na história do país.

Porém mais que a oportunidade de representar algumas rochas dinamar-quesas isoladas, a principal motivação de Marlon é o torneio Intertoto, que será disputado contra o clube belga Sporting Lokeren. Talvez alguns olheiros vejam a partida. Talvez ele consiga uma transferência para uma nação futebolística séria. Quanto mais pensa nisso, mais o jogo vai ficando importante.

“A ideia é ter uma grande atuação e depois partir para outra equipe que pague melhor.”

Pergunto a Niclas o que aconteceu com os dois brasileiros contratados pelo outro clube faroense, o gí. Ele conta que um deles voltou ao Brasil mas o outro, Robson, ainda vive em Gøta, onde fica o clube. Ele se oferece para me levar até lá.

Gøta, a vinte minutos de carro de Toftir, é ainda mais remota, mas a vi-zinhança é mais agradável. Fica no centro de uma pequena baía, cercada por ladeiras escarpadas.

Bato na porta de Robson. É nítida sua alegria em receber uma visita. Robson tem a cabeça chata e redonda com sobrancelhas grossas e pele escura. Suas características são típicas da Paraíba, um estado pequeno e pobre a dois mil quilômetros ao norte do Rio cujos habitantes locais são vítimas de um arraiga- do preconceito racial no Brasil. São vistos como gente simples da roça. Percebo que seus conterrâneos do b68 praticamente não mantêm contato com ele.

Robson me recebe na sala de estar. A casa é modesta e confortável. Na parede há um pôster em preto e branco de um homem nu embalando um bebê. Sobre a mesa de jantar há uma tigela de maçãs. Estão passando desenhos animados na tv colorida. Robson senta no sofá, vestido com um boné de baseball, suéter e calça de malha.