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coleção Política Externa Brasileira O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

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ção Política

Externa Brasileira

O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

ministério das relações exteriores

Ministro de Estado embaixador luiz alberto Figueiredo machado Secretário-Geral embaixador eduardo dos santos

Fundação alexandre de gusmão

Presidente embaixador José Vicente de sá Pimentel

Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais

Diretor embaixador sérgio eduardo moreira lima

Centro de História eDocumentação Diplomática

Diretor embaixador maurício e. Cortes Costa

Conselho Editorial da Fundação Alexandre de Gusmão

Presidente: embaixador José Vicente de sá Pimentel

Membros: embaixador ronaldo mota sardenberg embaixador Jorio dauster magalhães embaixador gonçalo de Barros Carvalho e mello mourão embaixador José Humberto de Brito Cruz ministro luís Felipe silvério Fortuna Professor Clodoaldo Bueno Professor Francisco Fernando monteoliva doratioto Professor José Flávio sombra saraiva

a Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa brasileira.

Organizadora: Daniela Arruda Benjamin

Brasília – 2013

O Sistema de Solução de Controvérsias da OMCUma perspectiva brasileira

S623 O sistema de solução de controvérsias da OMC : uma perspectiva brasileira / organizadora: Daniela Arruda Benjamin. – Brasília : FUNAG, 2013.

777 p. - (Coleção política externa brasileira) ISBN 978-85-7631-456-1

1. Comércio exterior. 2. Organização Mundial do Comércio (OMC). 2. Comércio exterior – solução de conflito – Brasil. 3. Organização Mundial do Comércio (OMC) – atuação. 4. Exportação. 5. Política comercial. 6. Economia internacional. I. Benjamin, Daniela Arruda. II. Série.

CDD 382

Direitos de publicação reservados àFundação Alexandre de GusmãoMinistério das Relações ExterioresEsplanada dos Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo70170-900 Brasília – DFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

Bibliotecária responsável: Ledir dos Santos Pereira, CRB-1/776 Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei nº 10.994, de 14/12/2004.

Equipe Técnica:Eliane Miranda PaivaFernanda Antunes SiqueiraGabriela Del Rio de RezendeGuilherme Lucas Rodrigues MonteiroJessé Nóbrega CardosoVanusa dos Santos Silva

Projeto Gráfico:Daniela Barbosa

Capa:Fotografia da inauguração da Sala Brasil na sede da OMC em Genebra, em 9 de setembro de 2013. © WTO/Studio Casagrande

Programação Visual e Diagramação:Gráfica e Editora Ideal

Impresso no Brasil 2013

as opiniões emitidas no presente trabalho representam pontos de vista pessoais dos autores e não têm, de forma nenhuma, caráter oficial, não estabelecendo, portanto, qualquer relação com a política exterior do governo brasileiro.

AgrAdecimentos

Gostaria, antes de mais nada, de expressar meus mais profundos e sinceros agradecimentos aos autores que contribuíram com a presente coletânea, por responderem,

prontamente e com a melhor disposição de compartilhar seus conhecimentos e experiência, à proposta. Sem suas ideias, interesse e dedicação, a iniciativa não teria se concretizado.

O livro tampouco teria sido possível, sem o esforço coletivo dos integrantes, passados e presentes, da Coordenação-Geral de Contenciosos e da equipe responsável pelo acompanhamento de contenciosos na Delegação do Brasil junto à OMC, em Genebra, que constituem a maioria dos autores dos artigos que se seguem. Seu profissionalismo, dedicação pessoal e espírito de equipe demonstrados ao longo dos anos se refletem não apenas nas páginas deste livro, mas, sobretudo, na exitosa atuação do Brasil no Sistema de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, que muito deve, igualmente, à capacidade de organização e à liderança dos colegas que me antecederam na Chefia da Coordenação:

- Embaixador Roberto Azevêdo (out/2001 – dez/2005) - Ministro Flavio Marega (jan/2006 – jun/2008) - Conselheiro Luciano Mazza (jun/2008 – maio/2010) - Conselheiro Celso de Tarso Pereira (abril/2010 –

março/2013)

Assim como eu, eles contaram sempre com a confiança e a orientação estratégica de seus superiores no Itamaraty, em particular do Subsecretário-Geral de Assuntos Econômicos e Financeiros, e do Diretor do Departamento Econômico, bem como com o apoio dos demais colegas da área econômica e dos postos no exterior envolvidos nos casos de que o Brasil participou. Esse esforço conjunto expressa com clareza a prioridade que o Ministério das Relações tem atribuído à diplomacia comercial e ao reforço do sistema multilateral de comércio.

Não poderia deixar de mencionar, igualmente, meu particular reconhecimento à valiosa contribuição da atual formação da CGC para a concretização do projeto – Secretários Valéria Mendes Costa, Rebecca Nicolich, Guilherme Lopes Leivas Leite, Chloe Rocha Young, Joaquim Maurício Fernandes de Morais e Leandro Rocha de Araujo – cujas ideias, comentários, críticas e sugestões foram fundamentais para a concepção e elaboração do livro. Agradeço também o apoio dos estagiários Husani Durans de Jesus e Larissa Sá Freire Militão que, sob a orientação do Secretário Leandro Rocha de Araujo, foi essencial para a revisão e compilação dos dados mencionados na presente publicação.

Finalmente, mas não menos importante, agradeço à Funag, na pessoa de seu presidente, por viabilizar a publicação e pelo permanente estímulo ao projeto.

Daniela Arruda Benjamin

ApresentAção

Ao longo das últimas décadas, a diplomacia comercial brasileira soube adaptar-se para enfrentar os desafios impostos por uma agenda econômica internacional cada

vez mais complexa. Aos diplomatas que atuam nesse campo, impõe-se que sejam capazes de conciliar conhecimento técnico aprofundado e visão de conjunto sobre os temas da agenda internacional. É preciso que esses profissionais da diplomacia cultivem constante capacidade de adaptação e mantenham-se permanentemente atualizados, a fim de que possam, por um lado, fazer o melhor uso possível das disciplinas comerciais de que hoje dispomos e, por outro, identificar novas iniciativas que permitam projetar, de forma dinâmica e responsável, os interesses econômicos e comerciais brasileiros.

Responder a esses desafios é uma das prioridades da atuação diplomática brasileira. A crise financeira internacional, cujos efeitos perduram desde 2008, e o impasse nas negociações da Rodada Doha levaram a um aumento considerável do número de contenciosos comerciais, em especial no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Agora como antes, a atuação do Brasil no mecanismo de solução de controvérsias da OMC tem permitido com que o País não apenas defenda

com proficiência e responsabilidade seus interesses econômico--comerciais fundamentais, mas também que contribua, de forma construtiva e frequentemente inovadora, para o debate jurídico sobre o alcance das disciplinas da Organização e, por essa via, para a consolidação das regras do sistema multilateral do comércio.

Em um momento crucial para a economia mundial, em que a Organização Mundial do Comércio continua a desempenhar papel central na promoção do desenvolvimento pela via do comércio, espero que este livro – cujos autores participaram diretamente do exercício da litigância em nome do Brasil na OMC – possa servir para promover uma compreensão mais ampla sobre os benefícios e desafios decorrentes de um maior engajamento brasileiro no sistema multilateral de comércio. Reflexão imprescindível para um País como o Brasil, comprometido com o reforço do multilateralismo e com o respeito ao sistema internacional fundado em regras.

Luiz Alberto Figueiredo MachadoMinistro de Estado das Relações Exteriores

sumário

Lista de Abreviatura 15

Prefácio 23

Roberto Carvalho de Azevêdo

Introdução 31

Daniela Arruda Benjamin

pArte i – o BrAsil e o sistemA de solução de controvérsiAs dA omc

Muito mais que a Embraer: os contenciosos Brasil-Canadá e o país que queremos ser 45

Daniel Roberto Pinto

O contencioso do algodão: o desafio da implementação 85

Luciano Mazza de Andrade

Solucionar controvérsias com resultados concretos: o caso dos subsídios do açúcar contra as CE 113

Christiane Aquino Bonomo

O contencioso sobre pneus reformados na OMC: uma importante vitória multilateral do Brasil 155

Flavio Marega

“European communities – customs classification of frozen boneless chicken cuts” 185

José Akcell Zavalla

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? O caso do suco de laranja 199

Valéria Mendes Costa

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual 225

Bruno Guerra Carneiro Leão

pArte ii – A ArticulAção com A sociedAde

O papel central do setor privado na atuação do Brasil no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC 251

Paulo Estivallet de Mesquita

O contencioso dos pneus reformados: articulação interinstitucional e diplomacia interna 265

Haroldo de Macedo Ribeiro e Bruno Guerra Carneiro Leão

O contencioso comercial Embraer-Bombardier 281

José Serrador Neto

O contencioso do algodão na OMC e a criação do IBA 313

Haroldo Rodrigues da Cunha e Vladimir Spindola

O contencioso do açúcar na OMC: Brasil, Austrália e Tailândia contra a União Europeia 335

Elisabete Torres Serodio

Os contenciosos sobre carne de frango 351

Ana T. Caetano

pArte iii – o sistemA de solução de controvérsiAs e o AlcAnce dos compromissos Assumidos no âmBito dA omc

O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC: para além dos contenciosos, a política externa 369

Carlos Márcio Cozendey

O Artigo XX do GATT 1994 e a persecução de objetivos não comerciais pelos Membros da OMC: um equilíbrio dinâmico 397

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

A jurisprudência recente do Órgão de Apelação sobre o Acordo TBT: os casos “EUA – Atum II” e “EUA – Cigarros de Cravo” 417

Pedro Henrique Fleider Wolanski

Avaliação de risco, princípio científico e políticas públicas dos governos no Acordo SPS 437

Guilherme Lopes Leivas Leite

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas 453

Leandro Rocha de Araujo

Medidas antidumping: jurisprudência no âmbito da OMC e autonomia decisória de seus Membros em tempos de crise econômica 483

Rebecca Nicolich

Limitação do “policy space” para a concessão de subsídios agrícolas: contribuição brasileira nos contenciosos do açúcar e do algodão 501

Guilherme Marquadt Bayer e Joaquim Maurício Fernandes de Morais

“Tobacco by any other name”: embalagens genéricas e uso da marca no âmbito do Acordo TRIPS 529

Chloe Rocha Young

Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC 547

Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

pArte iv – A efetividAde do sistemA de solução de controvérsiAs

A aplicação interna das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC na prática 573

Daniela Arruda Benjamin

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos 595

Celso de Tarso Pereira

A construção da retaliação brasileira no caso algodão: os desafios do pioneirismo 629

Luiz Fellipe Flores Schmidt

A resolução do contencioso Embraer-Bombardier: a revisão do entendimento setorial aeronáutico da OCDE 649

Marcus Vinicius Ramalho

“Enforcement” em TRIPS e no Mecanismo de Solução de Controvérsias: uma vitória dos países em desenvolvimento 669

Erika Watanabe

“The lady doth protest too much, methinks”: pedidos preliminares no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC 689

Chloe Rocha Young e Guilherme Lopes Leivas Leite

Por fim, algumas notas sobre a revisão do Sistema de Solução de Controvérsias da OMC 709

Daniela Arruda Benjamin

Considerações finais 731

Enio Cordeiro

Referências Bibliográficas 735

Anexos

Anexo I – Tabela de casos em que o Brasil participou como demandante 757

Anexo II – Tabela de casos em que o Brasil participou como demandado 760

Anexo III – Tabela de casos em que o Brasil participou como terceira parte 762

Anexo IV – Tabela de casos analisados no presente livro 771

15

listA de ABreviAturAs

ABIP Associação Brasileira da Indústria de Pneus Reformados

ABR Associação Brasileira de Reformadores

ABRAPA Associação Brasileira dos Produtores de Algodão

ACE Agência de Crédito à Exportação

ACP África, Caribe e Pacífico

ACTA Anti-Counterfeiting Trade Agreement

AD Acordo Antidumping

ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

AMS Medida Agregada de Apoio

ANIP Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos

ASMC/SCM Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias

AsA Acordo sobre Agricultura

Lista de Abreviaturas

16

ASU Entendimento Setorial sobre Créditos à Exportação de Aeronaves Civis/ Entendimento Setorial Aeronáutico

BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

BRICS Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul

CACEX Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil

CAMEX Câmara de Comércio Exterior

CCP Counter-Cyclical Payments

CF Constituição Federal

CGC Coordenação-Geral de Contenciosos

CIRR Commercial Interest Reference Rates

CSNU Conselho de Segurança das Nações Unidas

CTA Centro Técnico Aeroespacial

DAC Departamento de Aviação Civil

DECEX Departamento de Comércio Exterior

DENATRAN Departamento Nacional de Trânsito

DIPI Divisão de Propriedade Intelectual do MRE

DPAD Divisão de Política Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do MRE

DPI Direitos de Propriedade Intelectual

Lista de Abreviaturas

17

EDC Export Development Corporation

ESC /DSU Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Soluções de Controvérsias da OMC

EUA Estados Unidos da América

EXIM-BANK Export and Import Bank of the United States

FAB Força Aérea Brasileira

FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura

FBOMS Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais

FIESP Federação das Indústrias do Estado de São Paulo

GATT General Agreement on Tariffs and Trade/Acordo Geral de Tarifas e Comércio

GATS General Agreement on Trade in Services/Acordo sobre o Comércio de Serviços

GIPI Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual

GPA Acordo de Compras Governamentais

GSM General Sales Management

HS/SH Sistema Harmonizado de Codificação e Designação de Mercadorias

IBA Instituto Brasileiro do Algodão

ICSID/CIADI Centro Internacional de Solução de Controvérsias sobre Investimentos

Lista de Abreviaturas

18

INMETRO Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial

IPD Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento

ITA Instituto Tecnológico de Aeronáutica

ITAC Comissão Internacional de Comércio da África do Sul

JOCE Jornal Oficial das Comunidades Europeias

MMA Ministério do Meio Ambiente

MDIC Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio

MERCOSUL Mercado Comum do Sul

MF Ministério da Fazenda

MIT Massachusetts Institute of Technology

ML Marketing Loans

MRE Ministério das Relações Exteriores

MS Ministério da Saúde

MSC Mecanismo de Solução de Controvérsia

NAFTA Acordo de Livre-Comércio da América do Norte

NMF Cláusula da Nação Mais Favorecida

OA Órgão de Apelação

OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico

Lista de Abreviaturas

19

OCM Organização Comum de Mercados

OEA Organização dos Estados Americanos

OI Organizações Internacionais

OIE Organização Mundial para a Saúde Animal

OMA Organização Mundial de Aduanas

OMC/WTO Organização Mundial do Comércio

ONG Organizações Não Governamentais

ONU Organização das Nações Unidas

OSC/DSB Órgão de Solução de Controvérsias da OMC

PAC Política Agrícola Comum

PEDs Países em Desenvolvimento

PD Países Desenvolvidos

PIB Produto Interno Bruto

PPMs Métodos e processos de produção (PPMs)

PMDR Países de Menor Desenvolvimento Relativo

PROEX Programa de Apoio a Exportações

RPT Período de Tempo Razoável (para dar cumprimento às decisões do OSC)

RU Rodada Uruguai

SACU União Aduaneira da África Austral

SCGP Supplier Credit Guarantee Program

Lista de Abreviaturas

20

SBCE Seguradora Brasileira de Crédito à Exportação

SECEX Secretária de Comércio Exterior

SJDF Seção Judiciária do Distrito Federal

SITAR Sistema Integrado de Transporte Aéreo Regional

SPS Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da OMC

SSC Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

STF Supremo Tribunal Federal

STJ Superior Tribunal de Justiça

TBT Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio

TJCE Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias

TRIMS Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas a Comércio

TRIPS Acordo sobre Aspectos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio

UBABEF União Brasileira de Avicultura

UE/EU União Europeia

UNCTAD Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento

USDA Departamento de Agricultura dos Estados Unidos

USDOC Departamento de Comércio Norte- Americano

Lista de Abreviaturas

21

UNICA União da Indústria de Cana-de-Açúcar

USITC Comissão de Comércio Internacional dos Estados Unidos

USTR Representante dos Estados Unidos para o Comércio

23

prefácio

É com grande satisfação que vejo a publicação desta coletânea de artigos a respeito do Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC. O volume, em boa hora, narra

e analisa a experiência brasileira no sistema – com seus sucessos e desafios – bem como estuda a jurisprudência mais recente e importante do Órgão de Apelação.

Apesar de presente no sistema desde a fase inicial (casos “EUA – Gasolina”, “Brasil – Coco ralado”), os reais desafios criados para o Brasil se manifestaram de forma mais concreta em 1998, com o estabelecimento do primeiro painel movido pelo Canadá em razão dos subsídios à indústria aeronáutica brasileira, “Brazil – Export Financing Programme for Aircraft” (DS46), ao qual se seguiu painel aberto pelo Brasil por subsídios concedidos, por sua vez, pelo Canadá à sua própria indústria aeronáutica. Somadas a outros casos que o Brasil iniciou em defesa de interesses exportadores relevantes, essas disputas evidenciaram a imensa e concreta importância da área de controvérsias para o Brasil. Tratava-se de defender a viabilidade de indústrias ou setores nacionais inteiros, cuja sorte estava, em grande medida, atrelada à decisão a ser proferia por uma entidade multilateral.

Roberto Carvalho de Azevêdo

24

Nunca é demais ressaltar a complexidade do Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC. Baseado nas disciplinas substantivas (contidas nos covered agreements da OMC) e processuais (consolidadas no Entendimento sobre Solução de Controvérsias – ESC) acordadas na Rodada Uruguai, o sistema apresenta peculiaridades desafiadoras ao delegado brasileiro incumbido de defender o País. Para além do domínio da linguagem específica e própria do mundo do comércio internacional, o sistema tem marcadas escarpas a serem vencidas. As disciplinas multilaterais de comércio não guardam qualquer relação com as matérias habitualmente ministradas no ensino jurídico brasileiro e exigem, portanto, um longo esforço de familiarização e estudo.

O processo é singular, composto por extensos arrazoados escritos e apoiado em audiências que se revelam, por vezes, decisivas. Embora o processo seja técnico, costuma trazer em seu bojo uma dimensão política – variável conforme o caso – que precisa ser levada em conta nos diversos estágios de um caso: a decisão de iniciá-lo, os argumentos a serem apresentados, os passos que devem ou não ser adotados com vistas à implementação das decisões.

Não se trata de um litígio entre particulares, em que nada importa além da vitória no caso específico. Um país responsável deve sempre ponderar se a tese que defende em determinado caso não lhe será nociva em outro. Precisa, ainda, avaliar se a vitória será útil, não só do ponto de vista comercial, mas também político e diplomático. Há, portanto, um importante trabalho de avaliação, que ultrapassa considerações de viabilidade jurídica, na condução de uma controvérsia.

As peculiaridades e dificuldades próprias ao Mecanismo de Solução de Controvérsias evidenciaram a necessidade de dotar

Prefácio

25

o Itamaraty de estrutura habilitada para representar o Brasil no Sistema. Em 10 de outubro de 2001, foi criada a Coordenação--Geral de Contenciosos, da qual tive a honra de ser o primeiro Chefe. Começava assim, há 12 anos, uma trajetória de êxitos jurídicos, diplomáticos e institucionais. Digo institucionais porque, em 2001, a situação era quase dramática: o Brasil tinha muitos casos em andamento (em 2003, chegamos a ter 13, o mesmo número dos Estados Unidos), um grupo reduzidíssimo de diplomatas incumbidos da definição de estratégias, redação ou revisão de petições, da condução de audiências, da necessária e indispensável coordenação com as áreas pertinentes do Governo e com o setor privado. Hoje, é com grande felicidade que constato, ao ler os artigos que seguem, que o Brasil possui um grupo de funcionários que conhecem, de modo abrangente e profundo, o funcionamento do Mecanismo de Solução de Controvérsias. A Coordenação-Geral de Contenciosos, e os funcionários que nela trabalham ou trabalharam, são um ativo crítico para a execução da política comercial brasileira.

***

Constata-se a grande importância estratégica do Mecanismo de Solução de Controvérsias para o Brasil quando se avaliam os interesses concretos, comerciais ou de política pública, objeto de determinada controvérsia. Como o leitor constatará ao ler os artigos a respeito dos casos “EUA – Gasolina”, “Canadá – Aeronaves”, “Comunidades Europeias – Açúcar”, “EUA – Algodão” e “Comunidades Europeias – Frangos”, entre outros que não figuram nesta coletânea, o Sistema é uma ferramenta valiosíssima para a condução da política comercial e para a proteção dos interesses exportadores brasileiros. A atuação brasileira em “Brasil – Aeronaves” demonstra a importância

Roberto Carvalho de Azevêdo

26

de se poder contar com área estruturada para a defesa de um setor que, em vista de sua contribuição para a pesquisa de novas tecnologias e para a balança comercial, é estratégico para o desenvolvimento nacional. O caso “Brasil – Pneus”, marco da capacidade de articulação do Governo, representa inegável êxito na defesa da autonomia necessária à adoção de políticas voltadas à proteção de valores essenciais para a sociedade brasileira, como a saúde pública e o meio ambiente.

A relevância do Mecanismo de Solução de Controvérsias não se limita aos casos em que o Brasil atua como parte, seja reclamante ou reclamada. A função desempenhada pelos painéis e pelo Órgão de Apelação na interpretação dos Acordos representa, possivelmente, a atividade com maior repercussão sobre os interesses comerciais brasileiros no médio e longo prazo. Como determinado pelo Entendimento sobre Solução de Controvérsias, uma das funções do Sistema é esclarecer o conteúdo e oferecer previsibilidade à aplicação das disciplinas multilaterais de comércio. Muito embora as decisões do Órgão de Apelação não sejam marcadas pelo stare decisis, a jurisprudência dele emanada desempenha, na prática, papel determinante nas decisões futuras dos painéis e do próprio Órgão de Apelação. As contribuições a respeito dos Artigos III e XX do GATT 1994, do Acordo de TRIMS, do Acordo SPS e do Acordo TBT enfocam a construção jurisprudencial do Órgão de Apelação e demonstram sua importância para a interpretação e aplicação das disciplinas.

O protagonismo da jurisprudência é ainda maior nos dias de hoje, em que está paralisada a Rodada de Doha e, conse-quentemente, a evolução negocial das disciplinas multilaterais de comércio. Frequentemente, o Órgão de Apelação é chamado a interpretar trechos ambíguos, a solucionar aparentes contra-

Prefácio

27

dições, a oferecer soluções que garantam a efetiva aplicação dos Acordos, evitando o velado descumprimento das regras. A atuação do Órgão de Apelação nos casos sobre “zeroing” (um dos quais vencido pelo Brasil, relativo a direitos anti-dumping impostos pelos EUA sobre importações de suco de laranja brasileiro) é paradigma do papel que a jurisprudência vem desempenhando. Não se trata de conduta isenta de críti-cas: há Membros importantes que acusam o Órgão de Apelação de ativismo judicial e de invadir a esfera de liberdade de atua-ção supostamente garantida aos países pelas “ambiguidades construtivas” presentes nos covered agreements. É, contudo, inegável que a jurisprudência tem desempenhado papel deci-sivo, o que torna necessário acompanhar, vigiar e, na medida do possível, influenciar a construção da case law desenvolvida na OMC.

A centralidade da jurisprudência justifica a grande cautela, acima aludida, na adoção de posições e na construção de argumentos, visto que o resultado favorável em determinado caso tem o potencial de consagrar tese que, no futuro, pode ser contrária a outros interesses brasileiros. É relevantíssima, igualmente, a participação do Brasil em casos como terceira parte, cada vez mais frequente e ativa. Um dos principais usuários do Sistema em número de casos (114, até maio de 2013, seja como parte ou terceira parte), o Brasil goza de prestígio e de credibilidade, que se somam à capacidade operacional do Itamaraty, para oferecer contribuição substancial ao debate de questões jurídicas complexas e de grande repercussão para a estruturação de políticas governamentais. Ao ler os artigos dedicados à análise da jurisprudência, o leitor terá uma medida da importância das decisões do Órgão de Apelação para a

Roberto Carvalho de Azevêdo

28

definição do proibido e do permitido à luz das disciplinas multilaterais de comércio. É a jurisprudência que, hoje, reduz ou amplia o escopo de medidas conformes às regras multilaterais que os países em geral, e o Brasil em particular, podem adotar na implementação de suas políticas públicas.

***

O Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC lida com Estados soberanos. Não possui, portanto, instrumento semelhante ao que chamaríamos, no Brasil, de juízo de execução. O cumprimento das recomendações do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) depende de ato de vontade do Governo que tenha perdido a demanda. Essa vontade pode, por vezes, ser estimulada pelo país vencedor, ao qual se atribui, no caso de descumprimento, o direito de suspender concessões feitas ao demandado: trata-se da “retaliação”.

Como a prática tem demonstrado, não é trivial a decisão de retaliar um país estrangeiro por descumprimento de recomendações do OSC. Muitas vezes a retaliação é virtualmente impossível, seja em vista da inexistência de volume de comércio expressivo (caso das disputas aeronáuticas entre Brasil e Canadá), seja em razão de marcada assimetria nas relações comerciais. Há casos, por exemplo, em que o país vencedor importa do vencido bens essenciais, como alimentos e insumos produtivos, o que tornaria a retaliação um esforço penoso, além de possivelmente ineficaz. Ainda que o Mecanismo de Solução de Controvérsias seja a “Corte” mais eficaz entre seus pares no plano internacional, é na implementação que o sistema encontra e testa os seus limites de efetividade.

É na fase de implementação das decisões que, provavelmente, se destaca mais fortemente a dimensão política e diplomática do Mecanismo de Solução de Controvérsias.

Prefácio

29

A hábil conjugação dos esforços diplomáticos – alavancados pela legitimidade conferida por uma decisão multilateral – e políticos (estes marcados pela ameaça ou recurso à retaliação) pode revelar-se decisiva para evitar “vitórias de Pirro” e obter o cumprimento das decisões de interesse ofensivo do Brasil como parte demandante. É a avaliação política e diplomática precisa que permite ao País reconhecer pragmaticamente os limites de sua ação e a eles adequar suas expectativas.

O entendimento temporário alcançado entre Brasil e Estados Unidos em relação ao caso do algodão é, provavelmente, o maior exemplo, na história do sistema, do papel que a negociação diplomática pode desempenhar para evitar, ainda que de maneira não definitiva, o recurso à retaliação e o alcance da solução que melhor atenda aos interesses dos países e setores econômicos envolvidos. A aliança dos sólidos conhecimentos jurídicos com as habilidades diplomáticas tradicionais permitiu ao Itamaraty a obtenção de compensação anual de US$ 147 milhões (a maior da história da OMC) para os cotonicultores brasileiros e, por meio da cooperação internacional, benefícios para produtores de países africanos. A leitura dos artigos a respeito do caso do algodão explicitará o caráter necessariamente multidisciplinar de uma controvérsia de grande complexidade.

***

Um Estado Democrático de Direito tem necessário apreço ao cumprimento das leis e ao funcionamento das instituições. No plano internacional, o Brasil zela, portanto, pelo estrito cumprimento de suas obrigações internacionais. O respeito aos compromissos do País na área comercial deve, portanto, orientar a elaboração de políticas públicas. Para tanto, faz-se necessária a correta interpretação das disciplinas, à luz da letra dos tratados e da jurisprudência.

Roberto Carvalho de Azevêdo

30

A Coordenação-Geral de Contenciosos está habilitada a oferecer ao Itamaraty, e ao Governo em geral, toda a assessoria para que as medidas adotadas pelo Brasil estejam conformes às normas multilaterais. Frequentemente, determinados objetivos de política comercial podem ser alcançados nos estritos contornos da legalidade internacional, para o que se requer apenas mudanças pouco significativas no desenho de programas e políticas. É cada vez mais importante o papel da CGC como preventor de litígios na esfera multilateral e como órgão auxiliar do Governo na elaboração de medidas sólidas do ponto de vista do ordenamento do comércio internacional.

***

Concluo com a certeza de que o leitor encontrará, neste volume, valioso material para orientar a ação nos diversos campos que envolvem o comércio internacional: elaboração de políticas públicas, identificação de barreiras ilegais aos interesses exportadores brasileiros, proteção da indústria brasileira por meio dos mecanismos legítimos de comércio internacional, entre outros.

Ainda relativamente concentrada no Itamaraty, é de interesse do País que a expertise em comércio internacional e Solução de Controvérsias se dissemine o máximo possível no Governo e no setor privado. Este livro poderá contribuir decisivamente para o logro desse objetivo. É mais um esforço do Itamaraty para a difusão do conhecimento nessa área bastante especializada, que terá, tenho certeza, o mesmo êxito de iniciativas anteriores, como o programa de estágio na Missão do Brasil junto à OMC, que tive a honra e o privilégio de chefiar entre setembro de 2008 e agosto de 2013.

Roberto Carvalho de Azevêdo Junho de 2013

31

Em funcionamento desde 1º de janeiro de 1995, a Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada pelo Acordo de Marraqueche1 para desempenhar três funções

principais: monitorar o comércio internacional e as políticas comerciais dos seus Membros; servir de foro de negociações permanente que facilitasse o aperfeiçoamento das regras que pautam o sistema multilateral de comércio e facilitar, por meio de um mecanismo transparente e objetivo, a solução de controvérsias entre os Membros da Organização2. A presente coletânea centra-se no último desses pilares da OMC e busca oferecer, a partir da perspectiva brasileira, um panorama abrangente do papel desempenhado pelo Sistema de Solução de Controvérsia (SSC) para o fortalecimento da Organização e do sistema multilateral de comércio.

Reconhecido como das áreas mais dinâmicas da Organização, o SSC permitiu, ao longo dos anos, precisar o alcance dos Acordos

1 Ata Final que Incorpora aos Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT, assinada em Marraqueche, em 12 de abril de 1994 e incorporada ao Ordenamento Jurídico Brasileiro pelo Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994.

2 As funções da OMC incluem, ainda, auxílio técnico e de formação aos países em desenvolvimento e cooperação com outras organizações internacionais. Cf.: <http://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/what_we_do_e.htm>.

introdução

Daniela Arruda Benjamin

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que compõem o acervo normativo da OMC, contribuindo dessa forma para definir, de maneira objetiva, os compromissos assu-midos pelos Países no âmbito internacional. Parte da credibili-dade granjeada pela OMC desde sua criação se deve à qualidade e consistência da sua atuação nessa área. O funcionamento do SSC não só resultou na consolidação de uma efetiva instância jurisdicional no sentido dado por Carlos Santulli3, como contri-buiu, por meio dos sucessivos contenciosos4 iniciados ao ampa-ro do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Soluções de Controvérsias da OMC (ESC), para o paulatino aden-samento da juridicidade do sistema multilateral do comércio, na expressão do Professor Celso Lafer5.

Em que pese seu caráter inovador6, os procedimentos estabelecidos no ESC foram, em larga medida, inspirados na sistemática desenvolvida no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (em inglês, General Agreement on Tariffs and Trade – GATT)7. Embora o Acordo em si não contemple dispositivos sobre solução de controvérsias propriamente ditos, o mecanismo de consulta, previsto nos artigo XXII e XXIII,

3 Instância cuja função principal é “mettre fin à une differend par une décision obligatoire résultant de l’application du droit”. SANTULLI, Carlos – Droit du Contentieux Internacional, 2005, Librarie Général du Droit et Jurisprudence, EJA Paris, 2005, p. 4.

4 Até 14 de julho de 2013, foram formalizados 462 pedidos de consultas no âmbito do SSC. A maioria dessas consultas, no entanto, não evoluíram para a etapa de painel e apelação, tendo sido resolvidas ou desestimadas ainda nesse estágio preliminar do procedimento.

5 LAFER, Celso. A OMC e a Regulamentação do Comércio Internacional: Uma visão brasileira. Livraria do Advogado, 1998, p. 31.

6 Cf. Cartland, Depayre e Woznowsk. Segundo os autores, “the creation of the WTO dispute settlement system was in itself, an unprecedented, far-reaching innovation in international judicial relations”. In: CARTLAND, Michel, DEPAYRE Gérard e WOZNOWSK Jan. “Is Something Wrong in the WTO Dispute Settlement”. Journal of World Trade Law, vol. 46, n. 5, Oct 2012, p. 985.

7 Para uma perspectiva histórica da criação do SSC, ver SEIXAS CORREA, Luís Felipe. Os Primeiros Anos do Órgão de Apelação e do Sistema de Solução de Disputas na OMC. Uma Perspectiva Histórica. In: CELLI Junior Umberto, Yanovich Alan (org), 10 anos de OMC: Uma análise do Sistema de Solução de Controvérsias e Perspectivas. São Paulo: Ed. Aduaneiras, 2007, pp. 23-30.

Introdução

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gerou um conjunto significativo de práticas que foram sendo paulatinamente utilizadas, na busca de soluções negociadas ante eventuais divergências sobre a compatibilidade das medidas unilaterais adotadas pelos Partes Contratantes com o Acordo.

Inicialmente restrita a discussões bilaterais ou no âmbito do Conselho Geral, o tratamento das controvérsias do GATT foi progressivamente institucionalizado, mediante a constituição de grupos de trabalho para analisar o caso, que incluíam representantes das Partes Contratantes, incluindo as partes envolvidas no contencioso. Posteriormente, a partir de 1952, passaram a ser estabelecidos painéis ou Grupos Especiais8, conformados por especialistas na matéria em discussão que, atuando em capacidade própria e sem vinculação com as partes na controvérsia, eram encarregados de analisar o caso de forma neutra e objetiva, à luz das regras do Acordo, com vistas a apresentar recomendações às Partes Contratantes para a solução do litígio.

Apesar desses matizes legalistas – que geraram, já nessa época, uma incipiente jurisprudência sobre o alcance das disciplinas do GATT –, o caráter essencialmente político e diplomático do modelo era inquestionável. Tanto o estabelecimento do Grupo Especial quanto a adoção de suas recomendações estavam condicionados à aprovação de todas as Partes contratantes, inclusive a demandada, que sempre poderia, nesse caso, evitar a adoção de qualquer medida contrária a seus interesses. O próprio recurso aos artigos XXII e XXIII do GATT era limitado9.

8 A versão oficial do GATT em Português se refere a Grupos Especiais. A terminologia painéis (do termo “panels”, em inglês) é corrente e será usada indistintamente ao longo do livro.

9 Em 48 anos de GATT, 195 consultas, em uma média de 4,2 ao ano. Como assinalado acima, em 18 de anos de funcionamento do SSC, foram formalizados 462 pedidos de consulta, ou 25,5 casos ao ano.

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Concebido com o objetivo central de conferir maior segurança, solidez e previsibilidade às novas disciplinas adotadas na Rodada Uruguai10, o ESC contemplou inovações importantes em relação ao modelo do GATT. Além de precisar com maior detalhe as regras e procedimentos que deverão ser aplicados para solucionar as divergências que surjam entre os Membros na aplicação dos Acordos da OMC, com etapas11 e prazos predefinidos12, o ESC inverteu a regra do consenso, necessária na época do GATT para a instalação dos Grupos Especiais e para a adoção das recomendações. Na nova sistemática, encerrada a fase de consultas sem que tenha sido possível encontrar uma solução satisfatória para o caso, a constituição do Grupo Especial só poderá ser bloqueada se houver consenso de todos os Membros, incluindo o demandante, o que, na prática, resultou em um sistema de jurisdição quase compulsória. O mesmo

10 Segundo STEINBERG, Richard H. Judicial Law Making at WTO, a ênfase na maior legalização do sistema de solução de controvérsias era de interesse prioritário dos principais atores da Rodada Uruguai. Para os Estados Unidos, seria uma maneira de fomentar o cumprimento dos compromissos adicionais da Rodada impulsionados pelo país. Para outros países, uma maneira de tentar conter o unilateralismo das políticas norte-americanas ao amparo da Seção 301 do Trade Act of 1974, que facultava aos EUA recurso a medidas unilaterais de sanção comercial, sob o pretexto de que o sistema do GATT era frágil. Outra preocupação dos países foi tentar assegurar maior uniformidade aos procedimentos. Na época do GATT, diferentes acordos continham diferentes disposições na matéria. O ESC se aplica aos Acordos da OMC como todo, ainda que regras específicas ainda sejam aplicadas em determinadas circunstâncias nos termos do artigo 1.2 do ESC.

11 O procedimento contém quatro etapas principais: I – Consultas; II – Estabelecimento de Painéis Ad Hoc, compostos por especialistas para análise neutra e objetiva do caso; III – Etapa de Apelação; e IV – Fase de Implementação. O ESC também faculta às partes recurso a bons ofícios, conciliação e mediação (artigo 5º) e mesmo à arbitragem (artigo 25), como meio alternativo de solução de controvérsias, as quais têm sido pouco utilizadas. O sistema é administrado pelo Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), composto por representantes dos Governos de todos os Membros. Compete ao OSC decidir, por consenso negativo, sobre a abertura de painéis, início dos procedimentos jurisdicionais (painéis, OA, arbitragens e painéis de implementação), bem como sobre a adoção das recomendações dessas instâncias. O OSC também é responsável por supervisionar a implementação de suas decisões.

12 De acordo com o artigo 20 do ESC, salvo acordo em contrário das partes, o período entre o estabelecimento do painel e a adoção do Relatório não deveria, em princípio exceder a 9 meses. Em caso de apelação, o prazo é ampliado para 12 meses.

Introdução

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procedimento de consenso negativo se aplica para adoção dos Relatórios dos Grupos Especiais e para o recurso ao Órgão de Apelação (OA), outra inovação do SSC13.

A automaticidade do procedimento e a adoção sistemática das recomendações, somadas à frequente utilização do sistema pelos Membros, contribuíram para conferir ao mecanismo seu caráter jurisdicional atual. Na avaliação de Pascal Lamy:

Although still influenced by its origins, when it was

more of a quasi-judicial conciliation mechanism […]

the WTO dispute settlement system introduced a new

jurisdiction which ensures enforcement of rulings and

recommendations. At the same time, the procedures tend

to preserve the fundamental requirements of fair trial. It

is a compulsory jurisdiction that is broadly accessible to

Members, it decides according to law, the procedure for

adopting decisions is quasi automatic, rulings are made

by independent persons, and their implementations are

subject to continuous multilateral monitoring until fully

satisfaction of the complainant where a violation has

been found. Moreover, the Appellate Body functions are

more or less like a court of cassation, which hears only

matters of law14.

A qualidade e consistência das decisões adotadas, além disso, permitiram que o SSC se consolidasse muito rapidamente como uma das mais efetivas jurisdições internacionais existentes.

13 Instância permanente estabelecida com base no artigo 17 do ESC, o OA é integrado por sete profissionais com experiência na área da OMC, designados por um mandato de quatro anos, renováveis uma única vez. Tem por missão conhecer em apelação as questões de direito e interpretação jurídicas incluídas nos Relatórios dos Grupos Especiais. Embora não sejam obrigatórias, as apelações são frequentes na OMC.

14 LAMY, Pascal. “The Place of the WTO and its Law in the International Legal Order”. European Journal of International Law, vol. 17, n. 5, 2007, pp. 969-984, p. 97.

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Segundo Shany Yuval, o SSC exemplificaria um “novo tipo de judiciário internacional” que atua sob uma ótica particular. Além de promover os objetivos gerais dos regimes internacionais a que estão vinculados, essa nova geração de judiciário:

[…] by providing a variety of services – continuous

interpretation of the applicable legal norms, monitoring

compliance by other states parties authorizing the

application of sanctions against non compliers and

placing checks on powers of the regimes institutions

[…] help to maintain, under changing circumstances,

the political, economic and legal equilibrium that states

reasonably expected to hold among them when joining a

specific cooperation regime15.

A atuação do OA, em particular, foi fundamental para isso. Além do caráter permanente, que facilita a consistência das decisões, o Órgão atua de forma colegiada. Embora cada caso seja analisado por uma “Divisão” integrada por três dos sete membros do OA, antes da circulação do relatório, as conclusões são discutidas entre todos os membros do Órgão, o que garante maior solidez às decisões.

O reforço do caráter jurisdicional do mecanismo não significa, no entanto, que o componente político-diplomático que caracterizou o GATT tenha perdido espaço no âmbito do SSC. Ao contrário, sob muitos aspectos, o ESC privilegia a busca de uma solução negociada para as controvérsias que permita manter o equilíbrio geral de direito e obrigações entre os Membros16. Combina, dessa forma, elementos de flexibilidade

15 YUVAL, Shany. “No longer a Weak Department of Power? Reflection on the Emergence of a New International Judiciary”, EJIL (2009), vol. 20, n. 1, pp. 73-91, p. 82.

16 Outro aspecto interessante do SSC, também herdado do GATT, é que as disputas não se limitam a casos de violações dos acordos. Os Membros também estão habilitados a iniciar disputas nos casos em que não haja um descumprimento das normas, como as reclamações por “não

Introdução

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– próprios de sistemas de solução de conflito entre Estados – e de previsibilidade e segurança na aplicação das disciplinas do comércio internacional, necessários à consolidação de um efetivo sistema legal.

Vale lembrar que o ESC deixa claro que o recurso ao sistema de solução de controvérsias da OMC não pode “agregar ou diminuir direitos ou obrigações definidos nos acordos da OMC” (Artigo 3.2) ou implicar um exercício de law-making – reservado ao Membros. Não obstante, ao atuar de forma regular, interpretando, definindo o alcance das regras e esclarecendo ambiguidades, painéis e, particularmente, o OA têm contribuído para o desenvolvimento de um corpus juris consistente e, em um certo sentido, evolutivo. Embora, formalmente, as decisões adotadas no âmbito do SSC só vinculem as partes na controvérsia, na prática têm crescente valor e autoridade de precedente, reforçando o caráter jurisdicional do sistema e seu impacto sobre o comércio internacional na área de bens, serviços e propriedade intelectual.

A avaliação geral dos 18 anos de funcionamento do SSC sob essas premissas é claramente positiva. Temas de importância cen-tral para os países foram abordados nos diferentes contenciosos. As decisões adotadas são constantemente utilizadas como prece-dentes em outros casos e se tornam imprescindíveis para determi-nar o alcance de boa parte dos compromissos assumidos na OMC. Se, por um lado, os níveis de implementação das decisões podem ser considerados bastante satisfatórios17, por outro, vêm conferin-do crescente legitimidade ao mecanismo.

violação” ou as reclamações por “outras situações” sempre e quando uma medida adotada por outro Membro afete o equilíbrio de direitos e obrigações derivados dos Acordos. Cf PALMETER, D. e MAVOROIDIS, P. Dispute Settlement in the World Trade Organization, pp. 162-165. Na prática, contudo, são casos de difícil comprovação que, por essa razão, são raramente invocados. Os poucos casos de “não violação” iniciados não prosperaram.

17 Não há dados precisos sobre níveis de implementação, mas em geral, casos de descumprimento aberto são pontuais.

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Em que pesem seus méritos, o funcionamento do SSC não deixa de revelar algumas deficiências pontuais, que requerem atenção. A complexidade crescente dos casos submetidos ao meca-nismo tem afetado, com regularidade alarmante, a celeridade dos procedimentos, com consequente aumento dos custos envolvidos na preparação e condução dos contenciosos. Alguns aspectos pro-cedimentais requerem, igualmente, aperfeiçoamento e os remé-dios legais previstos no ESC para casos de descumprimento das decisões nem sempre são de fácil aplicação.

O SSC representa um desafio particular para os países em desenvolvimento, que ainda usam relativamente pouco o sistema. São frequentes as críticas de que o SSC na prática só beneficia países desenvolvidos, melhor capacitados, tanto em termos de recursos humanos quanto financeiros para utilizar o mecanismo na defesa de seus interesses. A longo prazo, isso pode ter impacto sobre a relevância política do sistema.

O Brasil, como se verá ao longo do livro, figura como exceção entre os países em desenvolvimento. Um dos pioneiros a utilizar o sistema, o País participou do primeiro contencioso iniciado ao amparo do ESC que ultrapassou a fase de consultas e chegou à etapa de apelação (caso “US – Gasoline”, DS4). No referido caso, Brasil e Venezuela questionaram a regulamentação norte-americana então vigente para gasolina18, que, segundo os demandantes, era discriminatória em relação ao produto importado e violava o princípio do tratamento nacional (Artigo III do GATT 1994), conferindo tratamento mais benéfico para a gasolina norte-americana.

18 Clear Air Act, de 1990, que determinava que em algumas regiões dos Estados Unidos somente poderia ser comercializado determinado tipo de gasolina, que supostamente reduziria emissão de poluentes no ar.

Introdução

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Em sua defesa, os EUA alegaram que, por seus objetivos ambientais, a medida estaria amparada pelas exceções do GATT 199419. Tanto o painel quando o Órgão de Apelação, no entanto, entenderam que a legislação norte-americana não satisfazia a todos os requisitos previstos no Artigo para justificar a exceção ao princípio do tratamento nacional. De acordo com o OA, embora a medida fosse qualificada como “relacionada à conservação de recursos exauríveis” (revertendo, nesse ponto, a posição do painel), ao estabelecer, de forma arbitrária, diferentes requisitos para a gasolina importada, a medida constituía uma discriminação injustificada e uma restrição disfarçada ao comércio internacional e, dessa forma, não poderia estar amparada pelo Artigo XX do GATT 1994 (que estabelece as exceções gerais ao princípio da não discriminação), sob pena de desvirtuar os objetivos do Acordo, que repousam em um delicado equilíbrio entre direitos e obrigações recíprocas20. Com isso, Brasil e Venezuela venceram o caso e, em 19/8/1997, os EUA anunciaram a mudança em sua legislação e o efetivo cumprimento das recomendações do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC).

A importância do caso, por sua natureza e pioneirismo, vai mais além do que seu resultado concreto. Demonstrou, de forma inequívoca, que o SSC poderia funcionar como previsto, e, sobretudo, que ele poderia ser utilizado a contento contra um país desenvolvido. Para o Brasil, além de representar a primeira de muitas vitórias, deixou claro que o SSC poderia ser um instrumento importante para a defesa dos interesses comerciais do País. A atuação brasileira no sistema tem sido crescente

19 Artigo XX(g) do GATT 1994: “medidas relacionadas à conservação de recursos naturais exauríveis, desde que adotadas em conjunção com restrições ao consumo e produção nacional”. Como no caso das outras exceções gerais previstas no Artigo XX, a exceção só se justifica se ele for aplicada de maneira a não constituir uma discriminação arbitrária e injustificada ou uma restrição disfarçada ao comércio.

20 A decisão no caso definiu, em grande medida, as bases para a interpretação do alcance do dispositivo que prevalecem até hoje.

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desde então, contabilizando, até meados de julho de 2013, participação em 115 contenciosos: 26, como demandante; 14 como demandado e 75 como terceira parte21. O Brasil ainda hoje é o país em desenvolvimento que mais acionou o mecanismo como parte demandante ou demandada atuando em casos envolvendo setores estratégicos.

A experiência dos primeiros casos demonstrou, igualmente, que para beneficiar-se de forma efetiva do sistema de solução de controvérsias, seria necessário um esforço interno de organização e preparação. Em outubro de 2001, no contexto das disputas entre Brasil e Canadá no setor aeronáutico, o Ministério das Relações Exteriores tomou a iniciativa de criar uma Coordenação-Geral de Contenciosos (CGC) com o objetivo de facilitar a participação do País no SSC. Atuando em estreita articulação com o setor privado brasileiro e outras áreas do Governo, a CGC é responsável, entre outros, pelo acompanhamento permanente dos casos em andamento, pela condução da função consultiva pré-contenciosa22 e, não menos importante, pelo monitoramento da implementação dos contenciosos dos quais o Brasil é parte.

As partes desse livro – organizado dentro do mesmo espírito de trabalho em equipe que têm pautado a participação brasileira no sistema de solução de controvérsias – foram pensados com a intenção de revisitar parte dessa densa e positiva atuação e contribuir, desse modo, para a reflexão sobre o papel do SSC para a definição do alcance dos compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito desse sistema.

21 Em função dos objetivos, o SSC permite que terceiros, com interesse nas questões suscitadas em controvérsias envolvendo outros países, acompanhem os procedimentos e emitam opiniões.

22 A decisão de iniciar um contencioso recai, em última instância, na Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), a quem compete avaliar, à luz dos interesses políticos e econômicos em jogo, a viabilidade jurídica do pleito e a conveniência de formalizar pedido de consulta na OMC.

Introdução

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Com esse objetivo, a Parte I analisa os principais contenciosos envolvendo o Brasil como parte, desde a criação da CGC, a partir da perspectiva dos representantes governamentais que atuaram nesses casos: motivações, principais desafios, argumentos apresentadas, ganhos e lições aprendidas. A Parte II, por sua vez, conta a história desses contenciosos do ângulo da articulação com o setor privado, que, desde o início, teve papel central na participação do Brasil no Sistema, como explica um dos artigos da Parte.

Na Parte III, o livro busca examinar “para além dos contenciosos”, na expressão de um dos autores, o papel do SSC na definição do alcance dos compromissos assumidos no âmbito da OMC, com base na análise da jurisprudência recente da OMC sobre questões sistêmicas importantes. Finalmente, a Parte IV concentra-se em algumas questões pontuais relacionadas à efetividade do SSC, a fim de contribuir para a reflexão futura sobre seu aprimoramento.

As poucas linhas desse volume não saberiam, por certo, apreender toda dimensão e importância da atuação brasileira no SSC. Alguns aspectos centrais do sistema multilateral de comércio relacionado à área de serviços e investimentos, por exemplo, ainda pouco testados no âmbito do sistema, foram tratados marginalmente e merecerão, sem dúvida, no futuro, atenção mais detalhada. Espera-se, contudo, que os trabalhos apresentados no presente volume – que dão uma pequena mostra do esforço de articulação e convergência realizados, a partir do MRE, como um todo, e da CGC em particular – contribuam para fortalecer a atuação brasileira no SSC e para estimular o debate interno sobre o tema, cuja importância para a inserção internacional do País é crescente.

Daniela Arruda BenjaminCoordenadora-Geral de Contenciosos

pArte io BrAsil e o sistemA de solução de controvérsiAs dA omc

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Bacharel em Administração de Empresas pela Universidade Candido Mendes. No Itamaraty desde 1999, trabalhou na Coordenação-Geral de Contenciosos até 2006, onde acompanhou os contenciosos Embraer-Bombardier, dos Subsídios ao Açúcar (União Europeia), das Salvaguardas ao Aço (EUA) e outros. Depois de passar por Washington e Porto Príncipe, chefia hoje o setor político da Embaixada do Brasil em Berna.

muito mAis que A emBrAer: os contenciosos

BrAsil-cAnAdá e o pAís que queremos ser

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1. introdução: As circunstânciAs

O jornalista Fernando Morais, em entrevista à revista Época, assim descreveu seu biografado Casimiro Mon-tenegro Filho, idealizador do Instituto de Tecnologia da

Aeronáutica (ITA):

...um tipo de brasileiro que não existe mais. Numa época

em que o Brasil, importava pinico - e isso não é uma

figura de retórica, eu sou de uma família pobre, com

nove irmãos, meu pai era bancário, no interior de Minas,

e lembro que a gente fazia xixi em privada importada

da Inglaterra - Montenegro sonhava com o país como

potência aeronáutica. E está aí a Embraer para mostrar

o resultado. Sem ITA não existiria Embraer. Não temos

mais esse tipo de visionários no Brasil. Infelizmente esse

tipo de gente não existe mais.1

Os leitores desta coletânea de artigos poderão, graças às contribuições de José Serrador Neto e Marcus Vinícius da Costa Ramalho, acompanhar com clareza a evolução do contencioso aeronáutico entre o Brasil e o Canadá, desde as primeiras consultas bilaterais até a fase de consecução de acordo setorial, passando pelas acirradas disputas na OMC. Nosso objetivo com este artigo é refletir sobre as causas que levaram dois países com

1 “A Voz do Biógrafo”, Revista Época, Edição 444, 17 de novembro de 2006.

relacionamento amigável e promissor a se engajarem em litígio que chegou a por em risco a vasta gama de interesses mútuos que se criaram ao longo de décadas. No auge do contencioso, no início da primeira década do século XXI, o Brasil era o sétimo principal destino dos investimentos externos do Canadá e seu principal mercado de exportação na América do Sul. A disputa com o Brasil punha em risco os esforços canadenses de estreitar laços comerciais com países em desenvolvimento e aprofundar relacionamentos bilaterais na América Latina de forma a contrabalançar a hegemonia dos EUA no continente.

A questão das consequências também suscita, a nosso ver, reflexões enriquecedoras. Ao final desse longo processo, que durou pouco mais de uma década (de 1996 a 2007), Brasil e Canadá eram cossignatários de um acordo setorial sobre créditos à exportação de aeronaves, e seus respectivos fabricantes, Embraer e Bombardier, voltavam a competir com base nos atrativos técnicos de seus produtos. Houve outros importantes impactos, porém, inclusive no âmbito do sistema multilateral de comércio, dentro e fora da OMC. Internamente, o Brasil soube extrair numerosas lições do processo, o que contribuiu para desenvolver estrutura negociadora criativa, abrangente e eficaz.

Ainda mais importante, porém, seriam as consequências do processo para a inserção internacional do Brasil. Se o País (e o conjunto dos países em desenvolvimento) nem sempre conseguiu, ao longo da Rodada Uruguai do GATT, impedir a consecução de acordos nocivos a seus interesses, passou a assumir, ao longo do período Embraer-Bombardier, papel de primeira grandeza nas negociações comerciais multilaterais. A eleição, em 2013, do Embaixador Roberto Azevêdo – não por acaso negociador-chefe nos contenciosos com o Canadá – para a Diretoria-Geral da OMC representa o reconhecimento de novo cenário negociador internacional.

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2. os protAgonistAs e seus interesses

2.1 – Brasil

Para se compreender plenamente a importância da Embraer para o Brasil, é necessário voltar às ultimas décadas de República Velha, quando o modelo agroexportador, após longo período de relativo declínio, cedeu de vez sob a pressão da crise de 1929 e da ruptura do arranjo entre São Paulo e Minas Gerais, chamado, significativamente, de “política do café com leite”. O café respondia então por cerca de 70% das exportações do Brasil que, por sua vez, abastecia 60% do mercado mundial. Dizia- -se então que o Brasil possuía uma “economia de sobremesa”, portanto vulnerável às flutuações da demanda internacional. O efeito da crise de 1929 foi devastador: as importações, de uma média de 5,4 milhões de toneladas de 1926 a 1930, caíram para 3,8 milhões entre 1931 e 1935, sem que se conseguisse frear o déficit nas contas externas. Cada vez mais, percebia-se que era necessária a ruptura com o processo histórico que fazia a economia brasileira passar de um ciclo a outro, tornando-a vulnerável a crises internacionais: pau-brasil, cana de açúcar, ouro, borracha, café. Mais uma vez, o modelo agroexportador se esgotava, desta vez com consequências socioeconômicas ainda mais graves. Era indispensável uma mudança de rumos. A “economia de sobremesa” deveria dar lugar a uma moderna economia industrial.2

Este processo já havia ensaiado seus primeiros passos durante a própria República Velha, especialmente a partir de 1914, quando a guerra na Europa interrompeu o fluxo de

2 PINTO, Daniel R. “Questão Militar e Envolvimento Brasileiro na Segunda Guerra Mundial”. Trabalho de conclusão de curso, Instituto Rio Branco, disciplina “História das Relações Internacionais do Brasil”, 2000. (Mimeo)

Muito mais que a Embraer: os contenciosos Brasil-Canadá e o país que queremos ser

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importações. As necessidades desta incipiente economia industrial chamava a atenção para as carências brasileiras no setor da educação. Não por acaso, uma das primeiras medidas do Governo Provisório, ainda em novembro de 1930, fora a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública.3

A crise da República Velha favoreceu a ideia do fortalecimento do Governo central, tanto para acabar com o poder excessivo de alguns estados e combater a “subversão”, como também para defender o País em cenário de crescentes tensões regionais e internacionais.

Paralelamente, o cenário político nacional, de descentralização administrativa com o poder nas mãos de oligarquias regionais, levava os descontentes, mais e mais, a defender a criação de Governo central forte e atuante, capaz de formular e defender o interesse nacional. Dois acontecimentos ilustravam, no entender de muitos, a necessidade de reforma: no plano interno, o episódio da Coluna Prestes, grupo de insurretos conseguiu escapar por três anos à perseguição das tropas federais; no plano externo, o fracasso em lograr assento permanente para o Brasil no Conselho da Liga das Nações. A situação estava propícia para declarações como a do Ministro da Marinha Protógenes Pereira Guimarães, que afirmava em 1932 que a voz de uma nação era respeitada “de acordo com os canhões que representa, quer isso agrade ou desagrade aos teóricos do pacifismo”.

Na década seguinte, a dificuldade em derrotar a Revolução Constitucionalista, em 1932, o contencioso entre Peru e Colômbia em torno de Letícia, em 1933-34, e a ascenção do nazismo só reforçaram essa percepção. Além disso, os obstáculos

3 Até então, os assuntos ligados à educação ficavam sob a alçada do Departamento Nacional do Ensino, subordinado ao Ministério da Justiça.

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para a obtenção de armas junto aos Estados Unidos “em virtude das reticências da opinião pública, do Congresso e de alguns países do subcontinente”4 convenceram os dirigentes que o Brasil devia desenvolver indústria militar própria.

Industrialização, educação, centralização, rearmamento: quatro objetivos que se cristalizariam ao longo da década de 1930. Não seria fácil: apesar da queda nas importações, o déficit nas contas externas se agravava, a ponto de o Brasil ter que suspender os pagamentos da dívida externa em 1938 e 1939. No entanto, ao fim da era Vargas, haviam-se obtido resultados concretos e visíveis – ainda que incompletos – em cada uma dessas quatro metas, respectivamente: a Companhia Siderúrgica Nacional e tantas outras grandes indústrias; um ensino público de reconhecida qualidade (e a criação da USP); o fim dos partidos regionais no cenário político; e a participação das Forças Armadas Brasileiras na Segunda Guerra Mundial. Essas quatro metas que o Brasil se impôs durante os anos 1930 estariam, ainda, na origem da criação da Embraer, décadas depois.

O impulso de modernização da Era Vargas teve forte impacto na aeronáutica brasileira. Desde o voo pioneiro de Santos Dumont, em 1906, registraram-se no Brasil diversas iniciativas isoladas para a fabricação ou montagem de aviões. Decorriam também da preocupação natural com a soberania e com a crise das divisas: entre 1927 e 1934, o Brasil havia importado mais de 550 aeronaves. Foi somente na década de 1930 que teve início alguma produção em pequena escala. Os resultados foram limitados, devido a fatores como: a dependência exclusiva

4 SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. O Brasil perante os Estados Unidos e o Eixo: O Processo de Envolvimento na Segunda Guerra Mundial. Trabalho preparado para o projeto de pesquisa coletiva “Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990)”, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do MRE e pelo Núcleo de Política Internacional e Comparada da USP. Página 47.

Muito mais que a Embraer: os contenciosos Brasil-Canadá e o país que queremos ser

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da demanda governamental, o restrito desenvolvimento científico e tecnológico, a concorrência da indústria dos países desenvolvidos, a falta de infraestrutura aeroportuária, a precariedade do parque industrial e a capacidade financeira limitada do empresariado.5

Apesar dos insucessos, foi durante o governo Vargas que tiveram início os primeiros esforços que culminariam na criação da Embraer, em 1969. Mencione-se, inicialmente, a criação da Força Aérea Brasileira (FAB), em 20 de janeiro de 1941. O primeiro titular da pasta, Salgado Filho, logo se convenceu da necessidade de a aeronáutica brasileira se manter a par dos avanços da tecnologia e criou a Diretoria Técnica da Aeronáutica, confiada ao Tenente-coronel Casimiro Montenegro Filho, recém-formado em engenharia aeronáutica pela Escola Técnica do Exército. A nova força dispunha de 428 aeronaves herdadas do Exército e da Marinha, todas já obsoletas em vista dos rápidos avanços tecnológicos realizados durante a década de 1930.6

Em 1943 e 1944, Montenegro visitou os EUA para conhecer bases aéreas e as instalações de manutenção da Força Aérea do país (USAF), em Wright Field, Ohio. Visitou também o Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde conheceu o professor Richard Harbert Smith, titular do Departamento Aeronáutico. Essas visitas e encontros inculcaram em Montenegro a convicção de que o Brasil necessitava de escola superior para a formação de engenheiros aeronáuticos. Seria necessário, ainda, formar engenheiros para as indústrias de apoio, que se formariam em torno da aviação brasileira.

5 FORJAZ, Maria Cecília Spina. “As Origens da Embraer”. In: Tempo Social, revista de sociologia da USP, v.17, n.1, junho de 2005, p. 295.

6 SANTOS, Reginaldo dos. “ITA: sixty years”, Editorial, Revista “J. Aerosp. Technol. Manag.”, Setembro-dezembro de 2010. Disponível em: <www.jatm.com.br>. Acesso em: 09/07/2013. Reginaldo dos Santos é reitor do ITA.

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Em agosto de 1945, estava concluído o plano para o Centro Tecnológico da Aeronáutica, inspirado no MIT e elaborado pelo professor Smith sob a orientação de Montenegro. Smith se estabeleceu no Brasil pouco depois. Em suas palestras no Brasil, o professor norteamericano, com muita percepção, procurou redirecionar nosso senso de orgulho nacional: “De nada serve discutir, no momento, a que país cabe a primazia na arte de voar. O mundo inteiro herdou tais descobertas e todas as coletividades têm igual direito a desenvolvê-las.” Smith em seguida alertou para o grave risco de ser sufocado no nascedouro o setor aeroespacial brasileiro. Naquela fase de rápida desmobilização após o fim da guerra, surgiam oportunidades para a aquisição de aeronaves militares a preços muito favoráveis. A esse respeito, sentenciou:

... creio que este país seguirá melhor política não

adquirindo material aeronáutico de guerra, senão para

as suas necessidades imediatas, mesmo que este lhe seja

oferecido de graça... Acredito, em resumo, que tal política

importará em nada mais do que trocar o futuro da

aviação do Brasil, como produtor independente de aviões

e operador de linhas aéreas internacionais, por um lote

obsoleto de aviões de guerra.7

Smith logo apresentou propostas concretas, que vinham ao encontro do sentimento de amplos setores das forças armadas e da sociedade, mas que adquiriam especial ressonância na boca de um acadêmico respeitado dos EUA:

O Brasil só poderá tornar-se independente das outras

nações competidoras no comércio aéreo pela criação

7 O título da conferência de Smith era “Brasil, futura potência aérea”. Longos trechos da palestra estão disponíveis em <www.cta.br/richard.php> (acesso em 09/07/2012).

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de escolas superiores nos campos da engenharia

aeronáutica, aerologia, comércio aéreo e fabricação de

aviões, e pela instalação, para essas especialidades, de

laboratórios próprios de alto padrão científico.

A partir daí, sob a orientação dessas instituições, o

Brasil deverá desenvolver e fabricar tipos de aviões

genuinamente brasileiros...8

Após anos de preparação, era criado o CTA em 1953. Este, inicialmente, seria constituído de duas unidades: o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e o Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento (IPD), o primeiro voltado à formação de alto nível de engenheiros aeronáuticos e o segundo, com o objetivo de estudar os problemas técnicos, econômicos e operacionais relacionados com a aeronáutica, cooperar com a indústria e buscar soluções adequadas às atividades da aviação nacional.9

Outras recomendações de Smith suscitaram mais resistência, inclusive na Aeronáutica: o futuro instituto deveria desfrutar de plena liberdade acadêmica e ser dirigido por um reitor civil, eleito pelos próprios professores. A administração de centro de ensino superior de alto padrão não podia estar sujeita a regras oriundas da disciplina militar; o mesmo se aplicava aos laboratórios e centros de pesquisa. Para Smith, “o reitor de uma escola como o ITA não poderá administrar pela autoridade e sim por consentimento”.10

Além disso, como era inevitável na implantação de um centro de tecnologia pioneiro num país atrasado como o Brasil

8 Ibid. Ver também: MORAIS, Fernando. Montenegro: As Aventuras do Marechal que fez uma Revolução nos Céus do Brasil. São Paulo, Planeta, 2006, pp. 119-120.

9 “História da EMBRAER”. Op.cit., página 11. Informações adicionais obtidas na página <www.cta.br>. Acesso em 09/07/2012.

10 MORAIS, op.cit., página 119.

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de meados do século XX, seria necessário recorrer a especialistas estrangeiros, com domínio do conhecimento do setor. O próprio Smith se tornaria o primeiro reitor do ITA11.

Optou-se pela instalação do CTA na região de São José dos Campos, a meio caminho entre o Rio de Janeiro, Distrito Federal na época, e a dinâmica metrópole de São Paulo. O impacto para a região – e o País – foi ainda mais positivo que o previsto. Como observa Maria Cecília Spina Forjaz:

Nos laboratórios isolados instalados no campus do CTA,

em São José dos Campos, iniciaram-se trabalhos pioneiros

de prospecção tecnológica e aplicação de novas técnicas,

estimulando o surgimento de pequenas indústrias, num

modelo de círculos concêntricos em que o núcleo opera

como matriz supridora de recursos humanos e suporte

laboratorial para os novos empreendedores. O ITA e o

CTA tornaram-se irradiadores de tecnologia, permitindo

sua fixação, e atuaram como suporte para a criação de

inúmeras empresas, em geral fundadas por “iteanos”,

das quais a mais importante viria a ser a Embraer.12

A origem da Embraer está diretamente ligada ao CTA. O golpe militar de 1964 parecia, inicialmente, por em risco os avanços realizados. Após ocupar a direção do CTA por longos períodos, Casimiro Montenegro foi afastado, em 1965, pelo então Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Eduardo Gomes. No entanto, a identificação entre Governo e Forças Armadas no período posterior à derrubada de João Goulart ofereceu respaldo político aos esforços em curso em São José dos Campos. Ainda

11 Segundo Fernando Morais, biógrafo de Casimiro Montenegro, falavam-se 20 idiomas diferentes quando o ITA foi montado (entrevista à revista Época, 18/11/2006). O primeiro reitor brasileiro do ITA foi Marco Antonio Cecchini (1960-1965).

12 Op. cit., p. 288.

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no ano de 1964, o Ministério da Aeronáutica encomendava ao CTA estudo sobre a viabilidade de ser criada no Brasil linha de produção para aeronaves de passageiros de médio porte. No ano seguinte, foi assinado o documento básico de aprovação do projeto do IPD-6504, o futuro Bandeirante, nome que já indicava a ambição de desbravar o território nacional, desta vez pelo ar. Grupo de técnicos civis e militares, sob a direção do então major-aviador Ozires Silva, debruçou-se sobre o projeto. A equipe de trabalho era composta majoritariamente por engenheiros brasileiros formados no ITA, e sua chefia estava a cargo do francês Max Holste. Em 22 de outubro de 1968, decolava pela primeira vez o Bandeirante, em voo de demonstração. Seu primeiro voo oficial se daria quatro dias depois.

Apesar dessa vitória, não surtiram efeito os esforços de Ozires Silva para convencer o empresariado brasileiro a criar uma empresa para a produção em série da aeronave. Finalmente, decidiu-se pela criação de empresa de capital misto, em que o Estado investiria US$ 10 milhões e controlaria 51% das ações. Em 19 de agosto de 1969, era criada a Empresa Brasileira de Aeronáutica – Embraer.

A dificuldade em convencer os industriais brasileiros talvez se possa atribuir a um ceticismo que persistia quanto à capacidade do País de produzir alta tecnologia de maneira sustentada. O próprio Holste, responsável pelo projeto vitorioso, acabaria deixando o Brasil em 1969, por não acreditar que os engenheiros nacionais poderiam produzir o Bandeirante em série. Se esperasse mais um pouco, o francês teria testemunhado in loco a verdadeira realização da visão de Casimiro Montenegro e Richard Harbert Smith: em 1973 eram entregues à FAB os três primeiros exemplares de série do Bandeirante. No mesmo ano, a Transbrasil adquiria seis unidades da aeronave. Era a primeira transportadora aérea do

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Brasil a adquirir aeronave 100% projetada e construída no País. Dois anos depois, o Departamento de Aviação Civil (DAC) criava o Sistema Integrado de Transporte Aéreo Regional (SITAR), com o fim de assegurar serviço aéreo a numerosas localidades do interior do Brasil. Todas as transportadoras aéreas regionais passaram a adquirir o Bandeirante.

A primeira exportação de Bandeirante para a Europa ocorreu em 1977, para a transportadora francesa Air Littoral. Foi também naquele ano que a Embraer iniciou sua participação no Salão Aeronáutico de Le Bourget, um dos dois principais eventos de demonstração da indústria. O mercado dos EUA foi conquistado no ano seguinte. Ao longo de 18 anos de produção contínua, foram fabricadas e entregues 500 aeronaves a clientes civis e militares em dezenas de países. Foi o Bandeirante, em suas diversas versões,13 que assegurou o renome internacional da Embraer.

A Embraer iniciou o desenvolvimento de jatos regionais ao final da década de 1980, quando ficava cada vez mais claro que o turboélice tinha seus dias contados. O projeto do EMB 145, iniciado em 1989, sofreu numerosos atrasos e ajustes devido à grave crise econômica brasileira e também do setor aeronáutico internacional. Durante o Governo Sarney (1985-1990), quatro planos econômicos fracassados reduziram drasticamente o orçamento público e limitaram a capacidade das Forças Armadas de adquirir novos equipamentos. A moratória dos pagamentos da dívida externa, em 1987, inviabilizou a aquisição de financiamentos no exterior. No ano seguinte, foram extintos programas federais de apoio a vendas e desenvolvimento de produtos. A Embraer viu-se então obrigada a recorrer a

13 Sem falar das versões militares, citem-se a executiva, aerofoto, laboratório, de sensoriamento remoto, ou especial para transporte regional, com 18 lugares.

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empréstimos bancários para financiar novos programas. O Governo Collor (1990-1992), por sua vez, defendia a redução do papel do Estado na economia e a privatização de empresas estatais.

No cenário internacional, dois golpes afetaram duramente a indústria aeronáutica. O fim da Guerra Fria levou a forte redução das despesas militares. Paralelamente, a invasão do Kuwait pelo Iraque e a Guerra do Golfo de 1991 acarretaram forte alta no preço dos combustíveis. A situação da Embraer se agravou então a tal ponto que já se falava, em 1991, em garantir a própria sobrevivência da empresa. Chegou-se finalmente à conclusão de que, depois dos esforços de saneamento e da demissão de numerosos empregados, a crise só poderia ser superada com a privatização. Outra corrente de opinião defendia, ainda, que se “aceitasse” a falência da Embraer e que se passasse a adquirir aeronaves no exterior. Falava-se muito, então, de “não reinventar a roda”.

Para superar as resistências à ideia – a maior parte dos oficiais da FAB e dos próprios empregados se opunha à desestatização – foi necessário adotar regras especiais. O Governo preservaria uma Golden Share, ação especial com direito de veto, e nenhuma empresa estrangeira do setor aeronáutico poderia participar do leilão. A privatização se consumou em dezembro de 1994, quando o controle acionário da empresa passou para um consórcio liderado pela Bozano.

A reestruturação foi dolorosa. A empresa, que chegou a contar com mais de 13.000 funcionários em 1989, reduziu sua equipe, entre 1995 e 1997 de 6.500 para 3.200.14 A dívida, de

14 As informações referentes a esta etapa foram extraídas da matéria “A segunda vida da Embraer”, Revista Exame, 11/02/1998.

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cerca de US$ 400 milhões no momento da privatização, subiu ainda mais, para US$ 600 milhões. No entanto, os resultados não tardaram: a produtividade por empregado passou de US$ 40.000 em 1994 para US$ 185.000 três anos depois.

O êxito da companhia nas novas condições de mercado se deveu, em grande parte, ao jato regional ERJ 145 (novo nome do EMB 145). Seu desenvolvimento, recorde-se, começou ainda na década de 1980, quando a empresa era estatal. A privatização, porém, proporcionou à empresa a agilidade necessária para concorrer em cenário em que a aviação comercial passava a representar fatia muito superior à militar. O primeiro voo do ERJ 145 ocorreu em agosto de 1995, e a primeira entrega se deu em dezembro do ano seguinte, para a ExpressJet Airlines, dos EUA. Até o final de 1997, o ERJ 145 perdeu apenas uma das mais de vinte concorrências de que participou.

Sem falar de seu aporte positivo à balança comercial, os resultados da Embraer tiveram imenso valor simbólico para o Brasil. Cada etapa do processo que culminou numa empresa aeronáutica brasileira capaz de competir no mercado internacional havia sido objeto de lutas e de frustrações. A criação do CTA e do ITA, o desenvolvimento de modelo de avião nacional, a produção de aeronaves em série, a capacidade de concorrer no mercado da aviação comercial, mais competitivo e menos rentável que o da aviação militar. Cada um desses desafios havia sido superado.

As conquistas da aeronave da Embraer se deram em detrimento da companhia canadense Bombardier, cujo jato regional, CRJ, fora lançado em 1992. Além de mais barato que o concorrente do Canadá (US$ 15,5 milhões contra US$ 18

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milhões), o ERJ 145 era até 10% mais econômico nos custos de voo, apesar de ser um pouco mais lento e de possuir autonomia um pouco inferior. Os financiamentos obtidos do BNDES asseguraram à Embraer a capacidade de competir com a Bombardier, que dispunha igualmente de facilidades do governo federal canadense e da província de Québec. No início de 1998, entre vendas efetivas e opções, a Embraer já somava 400 jatos, contra 560 da Bombardier, cujo produto havia sido lançado quatro anos antes.

Era este o cenário no momento em que, pela primeira vez, o Canadá pediu consultas ao Brasil no âmbito do Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC, em 1996, abrindo um contencioso comercial que se alastraria por anos.

2.2 Canadá

Colonizado desde o século XVII pelos franceses, o Canadá – especialmente a região em torno do rio São Lourenço, na atual província do Québec – passou para os ingleses em 1763, após a vitória destes na Guerra dos Sete Anos. Para se assegurar a lealdade dos colonos de língua francesa na época da Revolução Americana, a Inglaterra promulgou o Québec Act em 1774, que assegurava à população o direito à prática do catolicismo e ao uso da língua francesa. Ao longo do século XIX, a imigração aumentava mais e mais a proporção de falantes de inglês no território, que também se expandia até chegar ao Pacífico. A própria Montreal, no coração da província francófona, passou mais e mais a ser dominada pelos “anglos”. Na primeira parte do século XX, a área da cidade conhecida como Golden Square Mile (milha quadrada de ouro) concentrava, dizia-se, 70% de toda a riqueza do Canadá.

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No entanto, o poder econômico, mesmo na província do Québec, estava concentrado nas mãos dos anglófonos. O nacionalismo québécois avançou e, na década de 1970, leis como a que fazia do francês a única língua oficial da província alienaram a população anglófona e contribuíram para um êxodo que beneficiou principalmente Toronto, na província de Ontario, desde então maior e mais importante cidade do país. Em 1980, plebiscito sobre a possível independência do Québec registrou 60% de “não”. No entanto, novo referendo 15 anos depois deixava claro que as medidas adotadas pelo governo federal para atender os interesses da província não haviam bastado: desta vez a independência foi rejeitada por apenas 50,58% da população.

Segundo país mais extenso do mundo, depois da Rússia, e com grande parte de seu território coberto de gelo, o Canadá logo percebeu o papel estratégico que a aviação poderia desempenhar para a exploração de seus recursos. A fabricação de aeronaves teve início já em 1923, quando a Canadian Vickers foi contratada para construir oito hidraviões para a recém- -criada Força Aérea. Capaz de pousar em lagos e rios, o hidravião era a aeronave ideal para a exploração e o monitoramento das regiões remotas do país. A divisão aeroespacial da Canadian Vickers seria absorvida em 1944 pela Canadair. Em 1976, devido a problemas financeiros, a Canadair foi adquirida pelo governo federal. As tentativas de diversificar a produção não surtiram efeito para a superação da crise. Em 1986, no quadro de vasto programa de privatização, a Canadair foi vendida ao grupo Bombardier.

Fundada em 1941 e com sede em Montreal, a Bombardier especializava-se em material ferroviário e veículos de transporte sobre a neve. O segmento aeroespacial da empresa fortaleceu-se

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com a aquisição de empresas como a Learjet, de Havilland e outras, e hoje representa mais da metade do faturamento do grupo. Com mais de 70.000 empregados (cerca de metade no setor aeroespacial) e vendas de US$ 17,4 bilhões em 2012, a Bombardier é a 22ª maior empresa do Canadá em faturamento.15 Não tem, no entanto, o mesmo peso e significado para a economia canadense que a Embraer tem para a economia brasileira. Não tem, tampouco o mesmo valor simbólico. A nosso ver, porém, dois elementos ajudam a entender o empenho do governo canadense em brigar pela Bombardier na OMC, a ponto de colocar em risco numerosos outros interesses na sua relação com o Brasil. O primeiro fator é o fato de a Bombardier ser empresa do Québec. A empresa reveste-se de especial importância para a província francófona, ao representar o símbolo maior de sua modernidade e arrojo tecnológico, como que contradizendo longa fase de relativo declínio econômico em prol de Ontario e outras províncias anglófonas. Como se viu, no referendo de 1995, apenas um ano antes do pedido de consultas ao Brasil, apenas 50,58% da população québécoise havia rejeitado a independência plena. Qualquer impressão da parte do governo federal de frouxidão na defesa dos interesses do Québec seria prato cheio para os independentistas.

O segundo fator, ainda que menos importante que o primeiro, diz respeito ao desejo do próprio Canadá de figurar entre os maiores fabricantes mundiais de aeronaves.16 Não há dúvidas, porém, de que o empenho não teria sido o mesmo caso a empresa estivesse sediada fora do Québec. O Canadá, afinal, conta com numerosas empresas de grande porte nos setores

15 Dados disponíveis em: <http://www.theglobeandmail.com/globe-investor/markets/stocks/summary/?q=bbd.b-t>. Acesso em: 11/07/2013.

16 Embraer e Bombardier disputam o terceiro lugar mundial, atrás de Boeing e Airbus, fabricantes de aeronaves de grande porte.

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de tecnologia de ponta, energia, transportes e outros. O peso dos produtos industrializados é maior na pauta exportadora canadense que na brasileira. Além disso, a Embraer tem maior importância relativa: enquanto a empresa de São José dos Campos ocupa consistentemente os primeiros lugares entre os exportadores brasileiros, a Bombardier é superada em volume de exportações por várias empresas do setor industrial canadense.

3. o cenário: o gAtt e A omcCom uma melhor compreensão dos interesses em jogo de

parte a parte, importa, ainda, conhecer melhor a arena em que se desenrolou a disputa em torno da aviação civil.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, no quadro dos esforços de desenvolver a cooperação internacional na esfera econômica, surgiram planos de se estabelecer uma “Organização Internacional do Comércio” (OIC) nos moldes de instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Tratava-se de esforço para por em prática as lições dos anos anteriores, quando o protecionismo contribuiu para agravar o impacto da crise de 1929.

A primeira rodada de negociações teve início em 1946 e resultou em 45.000 concessões tarifárias com impacto sobre um quinto do volume de comércio mundial. As regras e concessões foram acordadas em 1947 e entraram em vigor em janeiro do ano seguinte: era o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês). Com as dificuldades de ratificação em várias legislaturas (caso dos EUA), não foi possível criar a OIC, e o GATT continuou como marco de referência multilateral para o comércio até 1995, quando finalmente começou a funcionar a OMC.

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Tanto o Brasil como o Canadá figuravam entre os 23 países signatários do acordo GATT 1947. Ao longo das décadas, e com o avanço do processo de descolonização, novos países foram aderindo ao sistema. Paralelamente, esforços para ampliar o escopo da liberalização comercial17 e para obter reduções mais ambiciosas de tarifas tiveram lugar no âmbito das oito “rodadas de negociação” realizadas entre 1947 e 1994.

Não há dúvidas que o GATT contribuiu para a realização das expectativas de seus fundadores. O comércio internacional cresceu a taxas consistentemente elevadas durante todo o período, em regra superiores aos índices de crescimento econômico dos países signatários. No entanto, o maior número de signatários do acordo, a crescente complexidade da economia internacional, bem como a simples intensificação do volume de comércio, acabaram pondo em evidência os limites do sistema. Em particular, o mecanismo de solução de controvérsias mostrava-se pouco eficaz, não prevendo penalidade para o país que violasse seus compromissos comerciais. Tanto a abertura de investigação como a adoção do relatório do painel deviam ser adotadas por consenso, o que permitia ao país demandado paralisar o sistema e, em caso de derrota, ignorar as decisões. É claro que, sob essas regras, os países em desenvolvimento ou de menor desenvolvimento relativo tendiam a ser mais prejudicados, conforme o velho provérbio libanês: “O elefante esbarra no passarinho: coitado do passarinho. O passarinho esbarra no elefante: coitado do passarinho.”

17 Em temas como antidumping, barreiras não tarifárias, barreiras técnicas ao comércio, subsídios e outros.

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Já não havia mais espaço para o ambiente negociador a portas fechadas do início do sistema, assim descrito por um negociador veterano: “Nada de advogados aqui. Nada de economistas aqui. E nada de imprensa aqui.”18

Realizada de 1986 a 1994, a chamada Rodada Uruguai (lançada em Punta del Este), após numerosos percalços, resultou na inclusão de novos setores nas disciplinas comerciais, como produtos agrícolas, serviços e propriedade intelectual, bem como numa ampla liberalização comercial que no entanto esbarrou em limites bem precisos, como se verá. Acima de tudo, o Acordo de Marraqueche de abril de 1994 resultou na criação da Organização Mundial do Comércio, desta vez dotada de mecanismo de solução de controvérsias mais institucionalizado, e com a previsão de penalidades para os países que descumprirem seus compromissos.

O Brasil, como indicado acima, esteve presente no sistema multilateral de comércio desde seus primórdios, em 1946-47. A atuação do País ao longo das quase cinco décadas de existência do GATT, porém, foi limitada, devido à carência de recursos e a outros fatores. Em particular, durante a Rodada Uruguai, quando a economia internacional havia atingido complexidade sem precedentes, o Brasil se ressentiu da ausência de centros de estudos e análise (os chamados think tanks), que tanto contribuíam para fundamentam as posições negociadoras dos países desenvolvidos. Note-se, ainda, que não havia consenso nem mesmo no âmbito do próprio Governo brasileiro quanto a algumas medidas em negociação, alguns setores advogando

18 “Keep the lawyers out. Keep the economists out. And keep the press out.” Palestra do Embaixador belga Paul Luyten, ex-representante do Mercado Comum Europeu junto ao GATT. Missão do Brasil junto à União Europeia, Bruxelas, maio de 2001.

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postura de firmeza ante os EUA, outros propondo atitude mais conciliatória, na expectativa de boa vontade no tratamento da questão da dívida externa.19 Nessas condições desfavoráveis, se o Brasil e as nações em desenvolvimento obtiveram vitórias importantes durante a última rodada de negociações do GATT, isso se deveu à alta qualidade e capacidade de articulação dos negociadores brasileiros.20

Apesar dos esforços do Brasil e de outras nações em desenvolvimento, a correlação de forças assegurou que o conjunto de acordos assinados em Marraqueche em 1994 ainda contivesse dispositivos que perpetuavam o desequilíbrio. O mais notório destes se verificou no âmbito do Acordo sobre Agricultura. No entanto, como observou José Serrador em seu artigo nesta coletânea, o próprio Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias, que seria foco das discussões durante os contenciosos Embraer-Bombardier, continha (e ainda contém) uma cláusula que, na prática, divide os membros da OMC em duas categorias. O Anexo I ao Acordo, que enumera exemplos de subsídios proibidos, estabelece importante ressalva no segundo parágrafo de sua alínea “k”, que se reproduz abaixo na íntegra para melhor compreensão:

19 O assunto é tratado por Feliciano de Sá GUIMARÃES: “A Rodada Uruguai do GATT (1986- -1994) e a Política Externa Brasileira: acordos assimétricos, coerção e coalizões”. Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais, Universidade Estadual de Campinas, 2005, pp. 40-41.

20 A combatividade do Embaixador Paulo Nogueira Batista, Representante Permanente do Brasil em Genebra de 1983 a 1987, foi tamanha que chegou a provocar ressentimentos. Clayton Yeutter, Representante de Comércio dos EUA (USTR) de 1985 a 1989, chegou a qualificar Batista com um epíteto impublicável. Ver: DRYDEN, Steve. The Trade Warriors: USTR and the American Crusade for Free Trade. Nova York, Oxford University Press U.S.A., 1995. Anos depois, negociadores brasileiros que haviam participado da Rodada Uruguai ainda se lembravam, com orgulho, do episódio.

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(k) A concessão pelo governo (ou por instituições

especiais controladas pelas autoridades do governo e/

ou agindo sob seu comando) de créditos à exportação

a taxas inferiores àquelas pelas quais o governo obtém

os recursos utilizados para estabelecer tais créditos

(ou que teriam de pagar se tomassem emprestado nos

mercados financeiros internacionais recursos com a

mesma maturação, nas mesmas condições creditícias

e na mesma moeda do crédito à exportação) ou o

pagamento pelo governo da totalidade ou de parte dos

custos em que incorrem exportadores ou instituições

financeiras quando obtêm créditos, na medida em que

sejam utilizados para garantir vantagem de monta nas

condições dos créditos à exportação.

Não obstante, se um Membro é parte de compromisso

internacional em matéria de créditos oficiais à

exportação do qual sejam partes pelo menos 12

Membros originais do presente Acordo em 1º

de janeiro de 1979 (ou de compromisso que tenha

substituído o primeiro e que tenha sido aceito por esses

Membros originais), ou se na prática um Membro aplica

as disposições relativas ao tipo de juros do compromisso

correspondente, uma prática adotada em matéria de

crédito à exportação que esteja em conformidade

com essas disposições não será considerada como

subsídio à exportação proibido pelo presente Acordo.

(grifos nossos.)

Tratava-se de alusão mal disfarçada ao Arranjo sobre Créditos à Exportação com Apoio Oficial da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o chamado “Consenso da OCDE”. Dessa forma, o segundo parágrafo da alínea “k” do Acordo sobre

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Subsídios da OMC conferia ao reduzido de países desenvolvidos membros de outra organização o poder de determinar prática válida para todos os demais integrantes da OMC.

De toda forma, muitas das disposições adotadas durante a Rodada Uruguai e incorporadas aos Acordos da OMC atendiam aos interesses do Brasil, como tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento e, é claro, o novo mecanismo de solução de controvérsias, mais efetivo e com previsão de penalidades pelo descumprimento.

O Brasil não tardou a fazer uso do novo mecanismo. Já em 1995, primeiro ano de funcionamento da OMC, o País aliou-se à Venezuela para questionar medidas dos EUA que discriminavam a gasolina importada.21 No ano seguinte, Venezuela e Brasil obtinham ganho de causa.

Este foi apenas o começo: da criação do novo Mecanismo, em 1995, até 2012, o Brasil participou de 106 contenciosos, 25 dos quais como demandante, 14 como demandado e 67 como terceira parte. O Brasil, sétimo país mais presente no Sistema de Solução de Controvérsias (depois de EUA, União Europeia, Japão, Canadá, China e Índia), é também o país em desenvolvimento que mais contenciosos iniciou.22 A participação expressiva como terceira parte merece destaque: por um lado, indica o interesse do País em se manter a par dos temas em discussão e de influir na formação de jurisprudência; por outro, reflete alocação de recursos para o sistema que contrasta com a participação mais modesta no passado.

21 United States — Standards for Reformulated and Conventional Gasoline. (WT/DS2 e WT/DS4) Ver: <http://www.wto.org/english/tratop_e/envir_e/edis07_e.htm>.

22 PEREIRA, Celso de Tarso, Valéria Mendes Rocha e Leandro Rocha de Araújo, “100 Casos na OMC: a experiência brasileira em solução de controvérsias”, Revista Política Externa, Mar/Abr/Mai 2012, página 122.

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Essa atuação intensa e sem precedentes do Brasil no sistema multilateral de comércio decorre, na verdade, não do contencioso da gasolina contra os EUA, apesar da vitória brasileira na disputa, mas de outro caso, em que o País figurou como demandado, e que se mostraria emblemático sob vários aspectos.

4. A disputA BrAsil-cAnAdá

4.1 Os contenciosos na OMC

Já em 1996, o Canadá solicitou consultas ao Brasil para verificar se a recém-privatizada Embraer, que vinha abocanhando significativa fatia de mercado em detrimento da canadense Bombardier, se beneficiara de subsídios à exportação proibidos no âmbito do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASCM), por meio do Programa de Financiamento às Exportações (PROEX). As consultas bilaterais, primeira etapa previsto no Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (DSU, na sigla em inglês), se estenderam por mais de dois anos, sem resultado.

Ao longo dessas conversações, o Brasil, por sua vez, logrou levantar informações suficientes para comprovar que o Canadá, ao contrário do que alegava:

• Subsidiava a Bombardier com fundos para pesquisa e desenvolvimento;

• Facilitava as exportações da empresa por meio de agência oficial de crédito, em condições duvidosas; e

• Respaldava vendas daquela empresa em países de maior risco, por meio de uma conta cujas operações eram sigilosas.

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Essas evidências permitiram, no momento em que o Canadá solicitou o estabelecimento de painel para julgar o PROEX, que o Brasil também fizesse o mesmo, para avaliar a conformidade de alguns programas canadenses com as disciplinas multilaterais de comércio.

O Brasil envolveu-se em três contenciosos com o Governo canadense na OMC:

• Brasil – Programa de Financiamento a Exportações de Aeronaves (DS46);

• Canadá – Medidas Relativas a Exportações de Aeronaves Civis (DS70);

• Canadá – Créditos à Exportação e Garantias de Empréstimos para Aeronaves Regionais (DS222).

Segue breve explanação sobre esses três contenciosos. Informações mais detalhadas estão disponíveis no artigo de José Serrador Neto, nesta coletânea, bem como na página da OMC dedicada a disputas comerciais: <www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/dispu_e.htm> (disponível também em francês e espanhol).

Brasil – Programa de Financiamento a Exportações de Aeronaves (DS46)

Após o fracasso das consultas bilaterais iniciadas em 1996, o Canadá solicitou a abertura de painel em julho de 1998. O painel concluiu que o PROEX não estava em conformidade com as normas da OMC. O Brasil recorreu, mas o Órgão de Apelação deu prazo até 18 de novembro de 1999, para o País efetuar mudanças no programa. Passada esta data, o Canadá questionou as alterações anunciadas pelo Brasil (PROEX II). O Órgão de Apelação considerou que estas não haviam sido suficientes para

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tornar o PROEX compatível com as disciplinas multilaterais. Em 6 de dezembro de 2000, introduziram-se novas mudanças no programa (PROEX III), mas o Canadá recorreu, por entender que a nova versão continuava infringindo as normas da OMC.

Face à determinação do Governo brasileiro de dar cumprimento integral aos contratos antigos – ou seja, de não retirar os subsídios relativos aos contratos anteriores a 18 de novembro de 1999 – o Governo canadense obteve da OMC autorização para aplicar retaliação (“suspensão de concessões e outras obrigações”, nos termos do DSU) até o montante anual de US$ 233 milhões.

Em fevereiro de 2001, o Órgão de Solução de Controvérsias aprovou o pedido canadense de estabelecimento de painel de implementação, com base no Artigo 21.523 do DSU, para avaliação da conformidade do PROEX III com as normas da OMC. Em agosto do mesmo ano, o Órgão adotou o relatório final do painel de implementação, que concluiu não ser o PROEX III necessariamente incompatível com os compromissos brasileiros na OMC.

Em síntese, o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC determinou que o PROEX poderia ser utilizado em duas situações distintas:

a) Quando o financiamento apoiado pela taxa de equalização obedecesse às condições então vigentes do “Consenso da OCDE”24. Por exemplo, a versão do Consenso em vigor

23 Em caso de discordância entre as partes quanto à conformidade com as normas da OMC de medidas adotadas por determinação de relatório de painel, o assunto será objeto dos mesmos procedimentos de solução de controvérsias, devendo ser submetido, sempre que possível, à apreciação do painel original. É o chamado processo de painel de implementação, ou Compliance Panel.

24 Ver seção III.

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em 2003 previa, entre outras disposições: 15 anos de prazo; máximo de 85% do valor da transação; taxa de juros fixa não inferior à CIRR25.

b) Quando o financiamento estendido resultasse em condições não mais favoráveis que as obtidas no mercado internacional em operação semelhante para o mesmo comprador (a transportadora aérea neste caso).

• Em financiamentos proporcionados por bancos brasileiros (BNDES, por exemplo), a taxa de juros líquida, prazos de financiamento e demais condições não podem ser mais favoráveis que as potencialmente encontradas no mercado internacional para a mesma operação.

• Quando o financiamento é estendido por banco estrangeiro em país de baixo custo de captação, existe a suposição de que os termos oferecidos são o que existe de mais favorável no mercado internacional. Assim, qualquer apoio do PROEX equalização a bancos estrangeiros deverá ser considerado inconsistente com as disciplinas da OMC.

Canadá – Medidas Relativas às Exportações de Aeronaves Civis (DS70)

O Brasil solicitou, em março de 1997, consultas sobre os financiamentos às exportações da Bombardier. As consultas formais estenderam-se até julho de 1998, quando foi estabelecido painel, em paralelo com o contencioso anterior. O painel concluiu que os programas Technology Partnerships Canada e Canada Account não se conformavam aos princípios

25 Commercial Interest Reference Rates, taxa de juros de referência estabelecida pela OCDE.

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do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias. As operações associadas à Export Development Corporation (EDC), também objeto das queixas brasileiras, não foram enquadradas como subsídios proibidos: apesar do extenso levantamento realizado, as evidências obtidas não foram suficientes para convencer o painel.

O Canadá recorreu, sem sucesso, e o Órgão de Apelação deu prazo até 18 de novembro de 1999 (como no contencioso DS46) para que o país efetuasse as devidas alterações nos programas julgados incompatíveis com o Acordo de Subsídios. As mudanças anunciadas pelo Canadá foram objeto de questionamento por parte do Governo brasileiro. O Órgão de Apelação considerou adequadas as mudanças introduzidas no Technology Partnerships Canada, mas insuficientes aquelas feitas no Canada Account.

Canadá – Créditos à Exportação e Garantias de Empréstimos para Aeronaves Regionais (DS222)

Em janeiro de 2001, o Governo canadense declarou publicamente que forneceria subsídios à Bombardier em vista de uma concorrência aberta pela empresa Air Wisconsin, dos EUA, com o suposto intuito de se equiparar ao preço supostamente “subsidiado” da Embraer. Em consequência, realizaram-se, no mês seguinte, a pedido do Brasil, consultas a respeito das operações associadas à Export Development Corporation (por meio dos programas EDC Canada Account e EDC Corporate Account) e ao programa Investissement Québec, no tocante ao financiamento às exportações de jatos regionais da Bombardier.

Com o resultado insatisfatório das consultas, estabeleceu--se, em março de 2001, o painel solicitado pelo Brasil para exame dos programas. O relatório final do painel, em vigor a partir de fevereiro de 2002, concluiu que as seguintes operações

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canadenses haviam recebido subsídios à exportação de forma incompatível com as normas da OMC:

• Financiamento com recursos do programa EDC Canada Account à Air Wisconsin (EUA), em maio de 2001, envolvendo a aquisição de 150 aviões (75 compras confirmadas e 75 opções), em total aproximado de US$ 3,36 bilhões26;

• Financiamento com recursos do mesmo programa à Air Nostrum (Espanha), em outubro de 1998, envolvendo a aquisição de 10 aviões (cinco compras confirmadas e cinco opções), num total aproximado de US$ 224 milhões;

• Financiamentos com recursos do programa EDC Corporate Account à Comair (EUA), em julho de 1996, agosto de 1997 e fevereiro de 1999, envolvendo a aquisição de 44 aviões, totalizando aproximadamente US$ 985,6 milhões.

O Canadá foi instado pelo painel a “retirar os subsídios identificados de imediato”, em prazo máximo de 90 dias a contar da data da adoção27 do relatório. O Canadá não recorreu, e o prazo para a retirada dos subsídios venceu em maio de 2002. Na primeira reunião do Órgão de Solução de Controvérsias após essa data, o Canadá deixou claro que não retiraria os subsídios. O Brasil solicitou então a suspensão de concessões e outras obrigações para com o Canadá no total de US$ 3,36 bilhões.28

O assunto foi levado a comissão de árbitros, cujo laudo final, em fevereiro de 2003, concedeu ao Brasil o direito de retaliar comercialmente o Canadá em até US$ 247,8 milhões,

26 Valor estimado de US$ 22,4 milhões por aeronave.27 Na linguagem da OMC, momento em que o relatório entra em vigor. 28 Por motivos sistêmicos, o Brasil optou por deixar de lado a retroatividade, ignorando, assim, as

aeronaves vendidas à Air Nostrum e à Comair.

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correspondente a US$ 3,933 milhões por aeronave canadense subsidiada. O Brasil, assim como o Canadá, optou por não fazer uso da autorização de retaliar.

As disputas entre Brasil e Canadá, com as respectivas ameaças de retaliação em aberto, além, é claro, da importância das questões em jogo, levaram a desgaste sem precedentes na relação bilateral. Episódio emblemático da animosidade de parte a parte ocorreu em 2001, quando o Canadá tomou a decisão arbitrária de suspender as importações de carne brasileira sob pretexto de não dispor de garantia de que o produto do País estivesse livre da doença da vaca louca.29 Claramente, era chegado o momento de buscar a superação das divergências e a retomada de relações sadias.

4.2 Negociações bilaterais

Em paralelo ao andamento do último contencioso (DS222), intensificaram-se, de parte a parte, gestões para a busca de solução mutuamente satisfatória da disputa. Em novembro de 2001, reuniram-se em São Paulo negociadores dos dois países. Seguiram-se mais duas reuniões, em Nova York, em fevereiro de 2002, e no Rio de Janeiro, em abril seguinte. Nessa terceira reunião, com a anuência canadense em estender o debate para além dos termos de financiamento, foi criado Grupo de Trabalho Técnico (GTT) bilateral, com a tarefa de analisar todos os elementos com impacto sobre as condições de concorrência e chegar a acordo sobre cenário mutuamente aceitável (o chamado level playing field). Na quinta reunião do Grupo de Trabalho, em maio de 2003, o Canadá apresentou minuta com elementos para entendimento bilateral. O Brasil apresentou sua contraproposta em junho seguinte.

29 Ver “Uma Guerra Louca”, Revista Isto É, 14/02/2001.

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Dentre as principais divergências entre os dois países na negociação, destaque-se a preferência canadense por acordo restrito à esfera do financiamento direto e pelo não disciplinamento de ações na esfera subfederal. Este último aspecto, na prática, retiraria do escopo do entendimento as políticas de apoio à exportação da província do Québec. O Brasil, por sua vez, defendia que a abrangência do acordo não fosse restrita aos financiamentos, mas também cobrisse garantias e outros instrumentos. Pleiteava, ainda, a proibição ou o disciplinamento de instrumentos oferecidos pelo governo de Québec.

As conversações bilaterais se estenderam até 2004, quando o processo negociador prosseguiria no âmbito da OCDE. Note--se que, à diferença do período anterior caracterizado pelos contenciosos, os negociadores de ambas as partes conseguiram manter ambiente de respeito mútuo e de boa fé. Havia claramente a percepção, de ambos os lados, que os interlocutores procuravam agir de forma construtiva.

4.3 Negociações na OCDE

As divergências de parte a parte só se harmonizariam no âmbito de negociação mais ampla, iniciada em 2004 sob os auspícios da OCDE, para a revisão do Entendimento Setorial sobre Créditos à Exportação para Aeronaves Civis.30 O convite para o Brasil participar das negociações recebeu apoio do Canadá, integrante da organização, que em repetidas ocasiões se prontificou inclusive a apoiar o ingresso do País na Organização. O Brasil aceitou o convite para tomar parte nas negociações,

30 Como se recorda, o Entendimento Setorial está coberto pelo segundo parágrafo da alínea “k” do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC: os termos e condições nele definidos são considerados permissíveis para a concessão de créditos à exportação.

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com a ressalva de que poderia se desligar do processo a qualquer tempo e que não se comprometeria de antemão com os termos de qualquer entendimento que não o incluísse entre os signatários. Dessa forma, o Brasil foi reconhecido como negociador pleno.

A equipe brasileira que participou das conversações foi coordenada pelo Itamaraty e contou com representantes dos Ministérios da Fazenda, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Seguradora Brasileira de Crédito à Exportação (SBCE). Os negociadores brasileiros consultaram regularmente, ao longo do processo, entidades do setor privado com atuação no setor de exportação de aeronaves, como fabricantes e instituições financeiras.

As negociações transcorreram entre 2004 e 2007. Em 30 de julho deste ano, era assinada a nova versão do Entendimento Setorial. Em reconhecimento ao papel essencial do Brasil nas negociações, bem como a adesão do País ao acordo, a cerimônia de assinatura teve lugar no Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro. Em seu discurso na ocasião, o Secretário-Geral da OCDE, Angel Gurría, comemorava o fato de que o novo entendimento era muito mais amplo que o anterior e que, à diferença daquele, incluía agora o Brasil.31

O Governo brasileiro, por sua vez, avaliou que o novo Entendimento representava “passo positivo e fundamental na evolução das práticas governamentais de crédito à exportação de aeronaves”. Dessa forma, foram atingidas metas preconizadas de longa data pelo Brasil:

31 “Aircraft Sector Understanding on Export Credits for Civil Aircraft – Remarks made by Angel Gurría during the Signing Ceremony in Brazil”. Disponível em: <www.oecd.org>. Acesso em: 7/7/2013.

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As novas disciplinas favorecem os objetivos de reduzir

os custos para os respectivos Tesouros Nacionais,

proporcionar condições equitativas de concorrência

e evitar que a competição entre os fabricantes seja

distorcida pelos termos e condições de financiamento

oferecidos pelos Governos. As regras negociadas buscam

assegurar, ainda, previsibilidade e transparência

na concessão de apoio oficial para a exportação de

aeronaves.32

O Entendimento Setorial sofreria nova e ampla revisão, concluída em 2011, novamente com a participação do Brasil. O tema das negociações no âmbito da OCDE recebe tratamento mais pormenorizado no artigo de Marcus Vinícius da Costa Ramalho, participante da delegação brasileira. Cabe agora refletir sobre essa longa trajetória e sobre as consequências de todo o processo iniciado com as consultas canadenses em 1996.

5. consequênciAs e reflexões

“Aquilo que não me destrói me fortalece”, escreveu Nietzsche.33 Ainda que muitas vezes questionada, e com razão, a máxima do filósofo alemão descreve com precisão o processo que o Brasil viveu de 1996, quando tiveram início as primeiras consultas pedidas pelo Canadá, a 2007, quando o País se tornou cossignatário de acordo plurilateral que consagrava muitas de suas posições sobre créditos oficiais à exportação.

Desde o início do processo, havia muito em jogo. A simples existência de uma empresa brasileira de construção de

32 “Entendimento setorial sobre créditos à exportação para aeronaves civis”. Ministério das Relações Exteriores, Nota à imprensa no 343, 30 de julho de 2007.

33 O Crepúsculo dos Ídolos (1888).

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aeronaves já representava o ponto culminante de décadas de lutas e frustrações, muitas das quais no seio da própria nação brasileira. Não custa lembrar a citação de Fernando Morais reproduzida no início deste trabalho: na época em que alguns visionários pensavam em fazer do Brasil um centro de alta tecnologia, o País não fabricava nem mesmo os produtos mais básicos do dia-a-dia. A criação do ITA e, anos depois, da Embraer, foram grandes conquistas que, como se viu, dependeram tanto do apoio decidido do Estado como do recurso a especialistas estrangeiros. Mais que qualquer indústria estrangeira implantada no Brasil, o ITA e a Embraer demonstravam que o País tinha plena capacidade de superar a chamada “economia de sobremesa” da República Velha e deixar para trás, de uma vez por todas, o tradicional ciclo histórico de dependência da exportação de recursos primários.

Na década de 1990, na euforia da “vitória do capitalismo”, e em reação por demais radical aos excessos do voluntarismo estatal de anos anteriores, voltou-se a falar em “cada país se dedicar a sua vocação natural”. Era o retorno à teoria das vantagens comparativas de David Ricardo: concentre-se em produzir bananas, eu produzirei automóveis, e ambos sairemos ganhando. (Não se recorda, é claro, que bananas são um produto muito mais fungível que automóveis, e que seu preço está muito mais sujeito a oscilações internacionais. Tampouco se recorda que a produção de automóveis, muito mais que a de bananas – ou de camisetas, ou de bolas de beisebol – cria ampla cadeia de valor que multiplica a riqueza pela economia como um todo.) Em lugar de examinar as complexas causas do fracasso da lei de informática de década de 1980, insistia-se que o Brasil não devia “reinventar a roda”. Deveria, portanto, entende-se, adquirir no exterior qualquer produto complexo demais para sua capacidade (intelectual?).

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Foi neste momento que se deu a privatização da Embraer. Diante da oposição de amplos setores, tanto da FAB como da sociedade como um todo, à desestatização, era essencial demonstrar que uma empresa brasileira privada teria plenas condições de competir nas acirradas condições de concorrência do mercado internacional. A Embraer, como se viu, soube superar este imenso desafio e chegou a abocanhar importante fatia de mercado de concorrente de um país com altíssimo grau de desenvolvimento.

Não era apenas o destino da empresa Embraer que estava em jogo nesse embate de mais de uma década. Como a longa e exaustiva primeira parte deste trabalho procurou demonstrar, era todo um ideário de nação que corria o risco de sofrer grave revés se não lográssemos nossa inserção bem-sucedida no sistema internacional de comércio para além dos produtos primários, da já mencionada “economia de sobremesa”. Além das divisas resultantes da exportação de produto de alta complexidade tecnológica, o Brasil se beneficiava de ganhos intangíveis do prestígio decorrente de sediar uma das quatro maiores fabricantes de aeronaves do mundo; apesar de impossível de mensurar, o ganho de imagem – qualidade, precisão, sofisticação – certamente trouxe benefícios para nossos vários produtos de exportação. Não há dúvidas, tampouco, que foi essa posição que valeu ao Brasil o convite para tomar parte como negociador pleno no âmbito da OCDE.

Tudo isso estava na balança a partir de 1996, quando o Canadá pediu consultas pela primeira vez. Os negociadores brasileiros, sob a condução do então Conselheiro e depois Ministro Roberto Azevêdo, do Itamaraty, agiram sob o peso dessa responsabilidade e estiveram à altura do interesse nacional. Com efeito, não havia alternativa realista a acordo com o Canadá. Em contraste com a pujança do Tesouro canadense, eram muito

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limitados os recursos que o Brasil poderia disponibilizar para o apoio à Embraer. Em guerra comercial, a derrota seria certa. Além disso, ignorar as decisões da OMC significaria deixar de lado toda a nossa história e tradição diplomáticas, voltadas para a solução pacífica de controvérsias e a defesa de uma ordem internacional com regras válidas para todos.

Para enfrentar essa batalha, o Brasil precisou reavaliar os mecanismos de sua participação nas negociações comerciais internacionais. O Itamaraty de imediato se coordenou com outros ministérios, com o BNDES, cujo programa PROEX era objeto do questionamento canadense, com a Seguradora Brasileira de Crédito à Exportação (SBCE), que proporcionava as garantias, com a própria Embraer e com a equipe de advogados dos EUA contratados por esta (Sidley Austin LLP, de Washington, D.C.). Com menor disponibilidade de recursos humanos altamente qualificados, e com menor experiência no jogo negociador do comércio internacional, o Brasil precisou tirar o melhor proveito dos recursos de que dispunha. E soube fazê-lo.

Foi durante este contencioso que se tomaram duas decisões de longo alcance. Em 2001, sob a gestão do Ministro Celso Lafer, o Itamaraty ampliou consideravelmente a lotação de diplomatas na área econômica e comercial, onde criou várias novas divisões, dentre as quais a Coordenação-Geral de Contenciosos (CGC). No ano seguinte, dava-se início a programa de formação para jovens advogados de escritórios brasileiros, de maneira a desenvolver no Brasil a experiência e o conhecimento necessários para prevalecer em disputas comerciais. Os advogados escolhidos passavam por programas de estágio na CGC, em Brasília, e na Missão do Brasil junto à OMC, em Genebra. O sucessor de Lafer, Celso Amorim, continuou a prestigiar a CGC e favoreceu a ampliação do programa para jovens advogados. Foi ainda neste

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período que, em parceria com a Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e sob a direção de Vera Thorstensen, negociadora experiente, traduziram-se para o português cursos referentes aos diversos acordos da OMC. A continuidade dessas políticas esclarecidas demonstra que, à diferença do que havia acontecido durante momentos da Rodada Uruguai, brasileiros de diferentes correntes políticas estavam unidos na percepção dos interesses comerciais do Brasil e no compromisso em defender estes interesses.

Graças, em grande parte, a essa estrutura fortalecida, o Brasil pôde exercer atuação de primeira grandeza nas negociações comerciais desde o início do novo milênio. Assim, coalizão de países articulada pelo Brasil obtinha importantes vitórias no sentido de conciliar as exigências do Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) com as necessidades de saúde pública. O Brasil pôde, ainda, organizar resistência eficaz, por meio do G20, a nova tentativa de conchavo que, a exemplo do que já havia ocorrido na Rodada Uruguai, procurava limitar o impacto da liberalização comercial sobre produtos agrícolas.

A eleição do agora Embaixador Roberto Azevêdo para a Direção-Geral da OMC, em 2013, reflete o prestígio ampliado do Brasil nas negociações comerciais. Destaque-se, ainda, que o Canadá, apesar de comprometido com o candidato de sua agremiação comercial (NAFTA), não bloqueou o consenso em torno do nome de Azevêdo, o que confirmou, mais uma vez, o reconhecimento do Brasil como interlocutor muitas vezes árduo, mas sempre leal.

E quanto à Embraer? Com sua capacidade de atuação no mercado internacional garantida graças ao processo iniciado com os contenciosos na OMC, a empresa brasileira continuou

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a progredir no mercado internacional, mantendo-se entre as quatro maiores fabricantes. Em matéria sobre o Salão Aeronáutico de Le Bourget, na França, o jornal canadense Financial Post de 17 de junho de 2013 destacou o lançamento pela fabricante brasileira da “nova geração de jatos regionais” e teceu numerosos elogios aos avanços tecnológicos das aeronaves brasileiras, desde já capazes de competir com a CSeries da Bombardier, ainda a ser lançada.34 Diante dos vários elogios ao desempenho da Embraer, passa quase despercebido o aspecto de longe mais importante do artigo: a menção exclusiva a aspectos técnicos das aeronaves, sem que se mencionassem uma única vez sequer as condições de financiamento. Dessa forma, o jogo passou a ser disputado no campo da tecnologia, e o Brasil demonstrou que, nesse terreno, está apto a concorrer. Como observaram Pereira et al,

o Brasil soube tirar sua lição do contencioso, ao perceber

que a defesa de importantes interesses nacionais poderia

passar pela análise de complexos temas do comércio

internacional no sistema de solução de controvérsias da

OMC. Nesse sistema, como se viu, não há espaço algum

para a improvisação e, por isso, foi necessária a busca de

uma estratégia de atuação condizente com a sofisticação

existente.35

O trabalho do Itamaraty nem sempre recebeu o grande reconhecimento que merecia. Ainda em 2002, no auge das disputas comerciais com o Canadá e após já ter obtido ganho de causa sobre os subsídios canadenses, o Itamaraty foi acusado por líder político nacional de não ser capaz nem mesmo de

34 “Canada’s Bombardier, Brazil’s Embraer face off at Paris Air Show”, Financial Post, 17 de junho de 2013.

35 PEREIRA et al., art.cit., p. 124.

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vender “empadinhas” no exterior.36 De fato, não é certo que haja estatísticas sobre a exportação de empadinhas desde que o Brasil reorganizou sua estrutura de atuação no comércio internacional. O que é certo é que o êxito atual da Embraer – e de muitas outras empresas – deve muito aos diplomatas e negociadores brasileiros.

Estava certo Fernando Morais – para retornar pela última vez à citação que abre este artigo – ao falar do gênio visionário daquele que queria transformar em potência aeronáutica um país que importava “até pinicos”. Está errado, porém, ao dizer que “esse tipo de gente não existe mais”. O mundo ficou mais complexo, o Brasil ficou muito mais complexo, é mais difícil atribuir méritos a talentos individuais. Não há dúvidas, porém, que as atuais vitórias do Brasil no difícil cenário negociador internacional, e os resultados alcançados pela Embraer e outras empresas brasileiras no competitivo mercado exportador, devem muito ao talento, ao engajamento e ao patriotismo desses brasileiros. Esse tipo de gente ainda existe. E os resultados estão aí para demonstrá-lo.

36 “Lafer defende ‘competência negociadora’ do Itamaraty”. O Estado de S. Paulo, 15 de setembro de 2002.

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Conselheiro da carreira diplomática. Foi Coordenador--Geral de Contenciosos do Itamaraty, em Brasília, e serviu na Representação Permanente do Brasil junto à ALADI e ao Mer-cosul, em Montevidéu, e na Embaixada brasileira em Londres. Tem Mestrado em Direito Europeu (LLM) pela London School of Economics (LSE) e defendeu tese sobre a institucionalidade do Mer-cosul no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco do Itama-raty. Atualmente é Chefe do Setor Econômico da Missão do Brasil junto à União Europeia.

o contencioso do Algodão: o desAfio dA implementAção

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1. introdução

Em 2004, a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (ABRAPA) lançou um livro denominado A Saga do Algodão1, no qual relata a história de conquistas dos

cotonicultores brasileiros, incluindo a vitória no painel original contra os subsídios norte-americanos. A expressão “saga”, com suas conotações grandiosas, parece apta a descrever não somente a trajetória dos produtores brasileiros, mas também o próprio contencioso na OMC, o qual, ao longo de oito anos e três procedimentos distintos, levou à condenação reiterada, por cinco vezes, dos subsídios concedidos pelos Estados Unidos a seus produtores de algodão e de outros produtos agrícolas.

Tratar do contencioso do algodão significa, antes de mais nada, tratar de um processo vitorioso para o Brasil. Significa tratar de uma vitória alicerçada sobre vontade política, engajamento do setor privado, investimentos expressivos e profissionalismo – diplomático, técnico e jurídico. Significa também discutir, entre outras questões, o que implica uma vitória no Mecanismo de Solução de Controvérsias (MSC) da OMC. Vencer pode significar “ganhar e não levar”. Pode ter um significado do ponto de vista político-diplomático, outro do ponto de vista jurídico e ainda um terceiro da perspectiva

1 COSTA, Sérgio Rodrigues & BUENO, Miguel Garcia. A saga do algodão: das primeiras lavouras à ação na OMC. Rio de Janeiro: Insight Engenharia, 2004.

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dos interesses econômicos envolvidos. Se, de um lado, o contencioso do algodão ilustra, como poucos casos, as virtudes do MSC da OMC e sua singularidade na constelação de sistemas internacionais de solução de controvérsias, não deixa de apontar para suas limitações – estruturais e talvez inevitáveis –, como os custos elevados de acesso e a incerteza quanto ao cumprimento das decisões dele emanadas.

Desde o início do caso, o Brasil sabia que a tradução de uma vitória jurídica em ganhos concretos para os produtores brasileiros de algodão, com o efetivo cumprimento das decisões originadas da OMC, não seria simples. Sabia-se que eventual desmantelamento dos subsídios ao algodão seria fruto de um processo custoso e gradual, e que a força política dos “lobbies” agrícolas dos EUA estaria sempre mobilizada para preservar as estruturas de apoio previstas há décadas na legislação norte-americana. Sabia-se, contudo, que tal empreitada somente poderia ter sucesso se levada a cabo de maneira decidida e consistente, valendo-se do melhor uso possível dos instrumentos jurídicos disponíveis no âmbito da OMC. O presente artigo procura apresentar as etapas cumpridas na “saga do algodão”, a partir dos resultados do painel original, e apontar os desafios enfrentados para se buscar a implementação das decisões adotadas ao longo do contencioso.

2. do pAinel originAl Ao pAinel de implementAção

Em março de 2005, depois de dois anos e meio desde o início do caso no MSC da OMC, com o pedido de consultas brasileiro, o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização adotou os relatórios do painel e do Órgão de Apelação (OA), que condenaram conjunto de subsídios norte-americanos à

O Contencioso do algodão: o desafio da implementação

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produção e à exportação de algodão2. Fechava-se o primeiro ciclo de um processo que continuaria nos anos seguintes e, na verdade, se estenderia até a atualidade.

O painel e o OA tiveram de lidar com um caso de complexidade sem precedentes em matéria agrícola, no qual, pela primeira vez na história do MSC e dos acordos da OMC, buscava-se comprovar não apenas a ilegalidade de subsídios norte-americanos específicos à exportação de produtos agrícolas, mas também a ilegalidade de subsídios agrícolas voltados à produção e entendidos como causadores da diminuição dos preços internacionais do algodão.

Em primeiro lugar, o Brasil obteve a condenação de três programas de subsídios dos EUA (“Marketing Loan” – ML, “Counter-Cyclical Payments” – CCPs e “Step 2”) que, no seu conjunto, foram condenados por violar as disciplinas do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC) da OMC com relação aos chamados “subsídios acionáveis”. Tais subsídios foram declarados ilegais não por suas características intrínsecas, mas por seus efeitos. De acordo com a terminologia do ASMC para subsídios acionáveis, foram considerados responsáveis por causar “efeitos adversos”. Mais especificamente, por causarem “prejuízo grave” aos interesses do Brasil, ao suprimirem de maneira significativa os preços internacionais do algodão3. No período coberto pelo painel (1999-2002), tais subsídios, pagos aos produtores em função da variação dos preços do produto (“price contingent”) somaram cerca de US$ 14 bilhões, com uma taxa média de subsidiação de quase 90% do valor da produção.

Em segundo lugar, o painel e o OA condenaram, separada-mente, o programa “Step 2” como subsídio proibido à exporta-

2 “Minutes of Meeting - Dispute Settlement Body”, de 21 de março de 2005 (WT/DSB/M/186).3 “Panel Report, US – Upland Cotton”, § 7.1416 e 8.1(g)(i).

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ção – ou seja, nos termos do ASMC, ilegal independentemente de seus efeitos –, por ser concedido em contrapartida à realiza-ção de exportações ou ao consumo do algodão produzido local-mente em detrimento do produto importado4.

Em terceiro lugar, o Brasil alcançou a condenação de três programas de garantias de crédito à exportação de produtos agrícolas (GSM-102, GSM-103 e SCGP), voltados a facilitar a obtenção de crédito por importadores de outros países para compra de algodão e outros produtos agrícolas dos EUA. Os três foram declarados subsídios proibidos, por não se sustentarem com as próprias taxas que cobravam de seus usuários e, assim, embutirem um custo líquido para o tesouro norte-americano5.

Dados os enormes desafios envolvidos, tanto de natureza prática, especialmente no tocante à comprovação de muitos dos aspectos factuais relacionados à operação dos subsídios, quanto jurídica, dada a novidade dos argumentos e pleitos brasileiros, a vitória do Brasil foi incontestável. O resultado teve, de imediato, vários benefícios. Esclareceu aspectos dos acordos de agricultura e sobre subsídios até então inexplorados, abrindo novas avenidas para o questionamento de subsídios agrícolas em outros casos; aumentou a visibilidade e contribuiu para minar ainda mais a legitimidade das políticas de subsidiação agrícola dos países desenvolvidos; e ajudou a fortalecer a posição negociadora do Brasil e outros países em desenvolvimento nas discussões da Rodada Doha da OMC.

Embora tais benefícios pudessem por si só serem considerados suficientes para justificar a abertura do caso e dos recursos humanos e financeiros nele investidos, o objetivo primeiro do contencioso, qual seja, o de obter a eliminação

4 Idem, § 7.749, 7.760-7.761 e 8.1(e); e § 7.1097-7.1098 e 8.1(f).5 Idem § 7.875, 7.881 e 8.1(d)(i).

O Contencioso do algodão: o desafio da implementação

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dos subsídios condenados ainda não tinha sido alcançado. Tais benefícios não traziam ganho direto aos produtores de algodão brasileiros, que continuariam sujeitos aos efeitos distorcivos dos subsídios agrícolas norte-americanos. Sem o fim dos subsídios, ficaria um sabor amargo de “ganhou, mas não levou”. A vitória brasileira encerrava um capítulo e abria outro, não menos complexo e não menos incerto. Naquele momento se iniciava um processo, que prossegue até os dias de hoje, de busca do cumprimento, por parte dos EUA, das decisões emanadas da OMC.

Com relação aos subsídios julgados proibidos (“Step 2” e as garantias de crédito à exportação), os EUA tinham até 1º de julho de 2005 para eliminá-los6. Já no tocante aos subsídios à produção, condenados em razão dos efeitos adversos por eles provocados, os EUA tinham prazo maior – até 21 de setembro de 2005 – para “retirar os subsídios ou remover seus efeitos adversos”7. Em um primeiro momento, o Governo norte- -americano deu passos positivos em direção ao cumprimento das decisões. Encaminhou uma proposta legislativa para revogação do programa “Step 2” e anunciou mudanças nos programas de garantias de crédito à exportação que poderiam implicar aumento nos prêmios por eles cobrados.

No entanto, expirados os prazos de implementação definidos pelo painel e pelo OA, ficou claro para o Brasil que não havia nenhuma medida adicional de cumprimento em gestação. Ao mesmo tempo, melhor compreendidos a natureza e o alcance das ações adotadas pelos EUA, não havia dúvidas de que se mostravam francamente insuficientes para assegurar

6 “Panel Report, US – Upland Cotton”, § 8.3 (b) e (c).7 Seis meses a contar da data da adoção do Relatório por parte do Órgão de Solução de

Controvérsias, conforme os artigos 7.8 e 7.9 do ASMC.

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o cumprimento das decisões do MSC. De um lado, no tocante aos subsídios acionáveis, a única medida de implementação adotada foi a eliminação do programa “Step 2”, efetivada a partir de 1º de agosto de 2006. No entanto, o “Step 2”, também condenado como subsídio proibido, correspondia tão somente a cerca de 20% do total dos subsídios pagos aos produtores de algodão. Os dois maiores programas de apoio interno, o ML e o CCPs, permaneciam intocados. De outro lado, com relação aos programas de garantias de crédito à exportação, o Governo norte-americano suspendeu os dois programas menos relevantes (GSM-103 e SCGP) e reajustou de modo pouco significativo a escala de prêmios cobrados dos usuários do programa GSM-102, que respondia por mais de 90% das garantias de crédito concedidas às exportações de algodão e de outros produtos agrícolas. Na visão brasileira, sem prejuízo de avaliação mais aprofundada que já estava em curso, era quase intuitivo concluir que as providências tomadas pelos EUA estavam distantes do que se esperaria para o pleno cumprimento das decisões adotadas no caso.

O descumprimento das determinações do MSC por parte dos EUA obrigou o Brasil a refletir sobre os passos a seguir. Depois de todo o investimento feito para obter os resultados alcançados, não restava alternativa senão manter a pressão, o que incluía continuar a recorrer aos instrumentos colocados à disposição pelo MSC a fim de buscar reverter a inércia norte-americana. Instrumento previsto para tal fim no Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Soluções de Controvérsias da OMC (ESC)8 é o da adoção de contramedidas ou retaliação, por meio da suspensão de direitos e obrigações

8 Anexo II do Acordo que estabeleceu a OMC.

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com relação ao Membro inadimplente9. No entanto, de acordo com o regime da OMC, a autorização para adotar contramedidas não somente está sujeita a um procedimento próprio de arbitragem como deve ser precedida pela certeza jurídica de que o descumprimento existe. Assim, em casos como o do algodão, em que os EUA tomaram medidas de implementação e alegaram ter dado cumprimento às decisões do painel e do OA, fazia-se necessário, por mais que a fragilidade dessa alegação parecesse óbvia ao Brasil, iniciar um “painel de implementação”, previsto no artigo 21.5 do ESC, para obtenção de nova decisão que confirmasse a persistência da situação de ilegalidade norte- -americana.

Isso significava, do ponto de vista processual, cumprir todas as etapas do MSC. Mais do que isso, do ponto de vista substantivo, implicava empreitada de complexidade, duração e custos semelhantes ao do caso original. Diante da inércia dos EUA, o Brasil se via obrigado a “dobrar sua aposta” e buscar nova condenação das políticas norte-americanas. Em grande medida, a complexidade inerente ao exercício dizia respeito à peculiaridade dos pleitos brasileiros, vitoriosos no painel original. No caso dos subsídios acionáveis, sua condenação se deu por ter o Brasil demonstrado seus “efeitos adversos”. Para tais subsídios, na ausência desses efeitos, não há, em princípio, ilegalidade. Do ponto de vista estritamente jurídico, os EUA não estavam obrigados e eliminar os subsídios; podiam “remover os efeitos adversos”10.

O Brasil se via defrontado, assim, com a necessidade de demonstrar que, a despeito da eliminação do programa

9 Artigo 22.10 “[...] o Membro outorgante ou mantenedor do subsídio deverá tomar as medidas adequadas

para remover os efeitos adversos ou eliminar o subsídio” – artigo 7.8 do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC.

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“Step 2”, os subsídios norte-americanos remanescentes – ML e CCPs – continuavam a causar prejuízo grave por meio da contenção significativa do aumento dos preços (significant price supression) internacionais do algodão. Com relação aos subsídios proibidos, o Brasil tinha de comprovar que os prêmios cobrados para concessão das garantias de crédito à exportação do programa GSM-102 continuavam a ser muito baixos, embutindo custo líquido para o tesouro dos EUA. Esse processo durou quase dois anos, desde o estabelecimento do painel de implementação, em setembro de 2006, até a adoção dos relatórios do painel e do OA, em junho de 2008.

Em vista da evidente falta de cumprimento dos EUA, havia, especialmente com relação aos subsídios acionáveis, certa frustração diante da necessidade de refazer os passos trilhados durante o painel original. No entanto, sem isso, seria impossível convencer o painel de implementação da persistência dos efeitos distorcivos dos subsídios e da situação de ilegalidade. A maneira mais segura de alcançar tal convencimento era demonstrar que fundamentalmente a mesma realidade factual que embasou as conclusões do painel original continuavam a prevalecer nos anos seguintes – 2003 a 2005 – àqueles cobertos pela decisão inicial. Para tanto, durante o processo de implementação, seguindo a linha argumentativa construída no painel original, o Brasil apoiou-se, entre outros, nos seguintes elementos: os EUA continuavam a ter influência substancial na formação dos preços internacionais do algodão, ao deterem cerca de 20% da produção mundial e 40% das exportações mundiais de algodão; os pagamentos sob os programas ML e CCPs feitos aos produtores norte-americanos continuavam muito elevados (taxa de subsidiação média de cerca de 50% do valor da produção nos anos-safra 2004 e 2005); havia uma diferença significativa entre os custos de produção e a renda obtida pelos produtores

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norte-americanos no mercado, a qual era coberta pelos subsídios; nesse contexto, o ML e o CCPs serviam para estabilizar a renda dos produtores, isolando-os dos sinais do mercado. Como consequência, os produtores norte-americanos produziam mais algodão do que o fariam sem os subsídios e exportavam grandes quantidades de algodão subsidiado, acarretando significativa contenção do aumento dos preços internacionais do produto11.

No painel original, o instrumento que se revelou de fundamental importância para ilustrar os efeitos dos subsídios, traduzindo em números a lógica descrita acima, foi o modelo econométrico de autoria do Professor Daniel Sumner, da Universidade da Califórnia, economista especializado em agricultura e com grande experiência na política agrícola dos EUA. Os resultados das análises de Sumner, apresentados pelo Brasil, ajudaram a sensibilizar os painelistas quanto ao real impacto dos subsídios. Durante o painel de implementação, o Brasil apresentou os resultados de análise atualizada por Sumner, com base em modelo econométrico revisado. Embora no ano-safra 2003, em função dos preços mais elevados do algodão no mercado internacional, os subsídios pagos tenham sido menores, ainda assim o modelo de Sumner indicou que, no período 2002-2005, na ausência dos dois programas remanescentes – ML e CCPs – os preços do algodão no mercado internacional seriam cerca de 9% mais elevados do que aqueles que efetivamente prevaleceram12.

A validade das análises de Sumner e sua comparação com estudos de outros autores também voltados a examinar os efeitos dos subsídios norte-americanos foram objeto de intensos debates entre as partes ao longo do painel de implementação.

11 “Panel Report, US – Upland Cotton – Article 21.5”, § 10.5, 10.6, 10.246 e seguintes.12 Idem, § 10.201.

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Os resultados variavam, a depender do enfoque e das premissas metodológicas adotadas. Todos tinham em comum, contudo, indicar que os subsídios afetavam negativamente os preços internacionais do algodão. Embora não bastasse ao painel determinar a existência de “contenção do aumento de preços” – sobre a qual não restavam dúvidas –, mas sim a de “contenção significativa do aumento de preços”, a convergência dos estudos apresentados ajudou a corroborar a credibilidade da análise do Professor Daniel Sumner13. Para chegar à determinação de que continuava a existir supressão significativa de preços, o painel de implementação também se apoiou na conclusão do painel original de que, para um produto homogêneo como o algodão, pequenas variações de preço podiam ser significativas, já que podiam ser suficientes para decidir a conclusão de uma transação14. Não se fazia necessário que o painel determinasse de quanto era a supressão identificada.

No caso dos subsídios proibidos, os EUA alegavam que a nova escala de prêmios do programa GSM-102 o tornava autofinanciável e, portanto, compatível com as regras do ASMC. Para demonstrar a falácia do argumento norte-americano, o Brasil teve que redobrar seus esforços em matéria de análise jurídica e econômica. Após o período coberto pelo painel original, a contabilidade do GSM-102 teve relativa melhora, tornando, dessa perspectiva estritamente atuarial, mais complexa a tarefa brasileira. No entanto, no entendimento do Brasil, não bastava olhar para as contas passadas do programa; as regras do ASMC exigiam que o programa fosse estruturalmente capaz de se financiar. A análise dependia, para o Brasil, da consideração

13 “Panel Report, US – Upland Cotton –Article 21.5”, § 10.251. 14 Idem, § 10.50.

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de elementos quantitativos e qualitativos15. Para demonstrar a validade de seus argumentos, o Brasil, entre outros elementos de prova, procurou comparar os prêmios do GSM-102 com aqueles cobrados por outros programas de garantias de crédito à exportação dos EUA, como aqueles mantidos pelo EXIM-BANK, assim como com os parâmetros de preços para tais programas estabelecidos pela OCDE, justamente com a finalidade de se evitar custos para os Governos16. Além disso, o Brasil contou com o apoio técnico do Professor Rangarajan Sundaram, da Universidade de Nova York, especialista, entre outros, em riscos de crédito e precificação de instrumentos financeiros. A participação do Professor Sundaram foi de grande importância para fortalecer ainda mais a credibilidade dos argumentos brasileiros de que não bastava ao GSM-102 eventualmente cobrir seus custos em anos passados por mero acaso. O valor dos prêmios deveria ser definido tecnicamente, de forma a assegurar a cobertura dos custos do programa em longo prazo.

Cerca de um ano e meio depois de iniciado o procedimento, e centenas de páginas depois, em petições e arrazoados técnicos e legais, o Brasil saiu novamente vencedor. O painel e o OA concluíram que as medidas adotadas pelos EUA eram insuficientes. Julgou-se, como pleiteado pelo Brasil, que os subsídios ML e CCPs continuavam a suprimir significativamente os preços internacionais do algodão e que o GSM-102 continuava a não ser autofinanciável (sua operação continuava a envolver custo líquido para o tesouro norte-americano)17. A conclusão era a de que os EUA prosseguiam, portanto, violando

15 Idem § 14.64 e seguintes.16 “Panel Report, US – Upland Cotton – Article 21.5”, § 10.90 e seguintes; “Appellate Body Report,

US – Upland Cotton –Article 21.5”, § 274 e seguintes.17 “Panel Report, US – Upland Cotton – Article 21.5”, § 15.1; “Appellate Body Report, US – Upland

Cotton –Article 21.5”, § 448.

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as regras da OMC, tanto no que se referia aos subsídios acionáveis quanto aos proibidos. Para alcançar esse resultado, cujo mérito parecia evidente para o Brasil desde o início, dado o pouco que havia sido feito pelos EUA em matéria de implementação, foi necessário engajar-se, com solidez técnica e jurídica, em um debate complexo e cheio de nuances. A opção adotada pelo Brasil foi sempre a de minimizar ao máximo os riscos e de procurar rebater, da maneira mais ampla possível, todo e qualquer argumento apresentado pelos EUA, por mais impertinente que pudesse parecer, de modo a dar aos julgadores – painel e OA – o maior número de elementos possível para que tivessem condições de chegar a suas decisões com segurança. Conquanto em casos menos “difíceis”, sobre temas em que a jurisprudência já estivesse assentada, tal enfoque pudesse ser menos necessário, era essencial no caso do algodão, diante da novidade e da complexidade que envolvia.

O desfecho da etapa de implementação elevava a quatro o número de vezes em que os subsídios dos EUA haviam sido julgados incompatíveis com as normas da OMC: duas vezes por painéis e duas pelo OA. Ao não deixar margem a dúvidas sobre a ilegalidade das medidas questionadas, seria de se esperar que os EUA, naquele momento, dessem novos passos para o cumprimento das decisões do caso. No entanto, mesmo antes da conclusão do procedimento, já se sabia que essa hipótese era remota, já que nova lei agrícola (“Farm Bill”) em discussão pelo Congresso norte-americano, e que viria a ser aprovada em maio de 2008, não modificava os subsídios condenados pelo MSC18. Além disso, observava-se a continuidade de altos níveis

18 “Food, Conservation, and Energy Act”, de 22 de maio de 2008.

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de utilização do GSM-102 para apoiar as exportações norte--americanas de algodão e outros produtos agrícolas19. Nesse contexto, a condenação pelo painel e pelo OA no procedimento de implementação cumpria, antes de mais nada, um papel procedimental de crucial importância: abria caminho para que o Brasil buscasse autorização para adotar medidas de retaliação contra os EUA. O Brasil teria de “dobrar a aposta”, mais uma vez.

3. AutorizAção pArA Adoção de contrAmedidAs

Ciente das perspectivas pouco favoráveis à pronta implementação por parte dos EUA, a equipe brasileira, mesmo antes da decisão final do OA sobre o mérito das medidas norte-americanas até então adotadas, já estava realizando estudos em preparação ao provável início de procedimento de arbitragem, ao amparo do artigo 22.6 do ESC, para obter autorização para adotar contramedidas com relação aos EUA. A eventual adoção de medidas de retaliação não seria, naturalmente, um objetivo em si mesmo. Serviria ao propósito de aumentar a pressão para levar os EUA a saírem de sua inércia e dar passos concretos para tornar suas políticas compatíveis com as regras da OMC.

Na avaliação brasileira, a eficácia de eventual retaliação como meio de pressão dependia, em grande medida, de ser o Brasil autorizado a adotar contramedidas não apenas na área de bens, com a imposição de tarifas aos produtos importados dos EUA, mas também na área de propriedade intelectual. A chamada “retaliação cruzada” – retaliação em área diversa daquela em que se deu a condenação – era vista como crucial

19 No ano fiscal 2008, as garantias oferecidas pelo GSM-102 somaram US$ 3,1 bilhões (<http://www.fas.usda.gov/excredits/Monthly/2008/08_09_30.pdf>).

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aos objetivos brasileiros, tendo em vista os desafios e a provável pouca efetividade da adoção de contramedidas somente na forma de elevação de tarifas. Com a exceção, possivelmente, de bens supérfluos e de luxo, era grande o risco de que o aumento de tarifas de importação causasse mais prejuízo ao Brasil que aos EUA, haja vista a pouca importância relativa do mercado brasileiro para os exportadores norte-americanos. Além disso, por essa mesma razão, percebia-se tal modalidade de retaliação como potencialmente ineficaz, uma vez que não afetaria interesses internos nos EUA suficientemente relevantes para servir de contraponto ao “lobby” agrícola. Por outro lado, dada a importância dos direitos de propriedade intelectual para setores-chave da economia norte-americana, como os de audiovisual e farmacêutico, medidas de retaliação que afetassem esses direitos poderiam criar mobilização interna nos EUA com poder suficiente junto ao Executivo e, principalmente, ao Congresso norte-americano, para enfrentar os interesses arraigados dos produtores agrícolas.

Entretanto, as dificuldades para que o Brasil conseguisse convencer os árbitros, dos pontos de vista técnico e jurídico, quanto à adequação da autorização de retaliação cruzada no caso do algodão, não eram pequenas. Os únicos precedentes existentes diziam respeito a contenciosos entre Equador e UE20 e entre Antígua e Barbuda e EUA21, demandantes, portanto, com economias infinitamente menores e menos diversificadas

20 “European Communities - Regime for the Importation, Sale and Distribution of Bananas – Recourse to Arbitration by the European Communities under Article 22.6 of the DSU - Decision of the Arbitrators” (WT/DS27/ARB/ECU).

21 “United States – Measures Affecting The Cross-Border Supply Of Gambling And Betting Services – Recourse to Arbitration by the United States under Article 22.6 of the DSU – Decision by the Arbitrator” (WT/DS285/ARB).

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que a brasileira. Seria muito mais desafiador para o Brasil, com base nos parâmetros do artigo 22.3 do ESC, demonstrar aos árbitros que seria “impraticável” ou “ineficaz” adotar contramedidas somente na área de bens22.

Sabia-se, em particular, que quanto mais elevado fosse o montante arbitrado, maiores as chances de que a retaliação cruzada fosse permitida. Caso o valor autorizado fosse relativamente menos significativo, seria mais difícil fazer prevalecer a tese de que o Brasil, dados o tamanho e a diversidade de sua economia, não estava em condições de retaliar na área de bens. Por sua vez, tal percepção gerava o receio de que os árbitros se sentissem tentados a arbitrar montantes de retaliação menos elevados, de modo a contornar a necessidade de autorizar a retaliação – sensível politicamente – em matéria de propriedade intelectual.

Para evitar tal desfecho, o Brasil, ademais de argumentar que o montante da retaliação não deveria, em nenhuma hipótese, ser determinante para a definição do tipo de retaliação a ser autorizada, procurou ir além dos precedentes existentes e buscou explorar ao máximo a margem de flexibilidade oferecida pelas regras especiais sobre contramedidas previstas no ASMC, as quais, no entendimento brasileiro, deveriam prevalecer sobre as regras do ESC23. Adicionalmente, como não poderia deixar de ser, o Brasil trabalhou sempre para obter o montante mais elevado possível de retaliação.

22 “Se a parte considera que é impraticável ou ineficaz suspender concessões ou outras obrigações relativas a outros setores abarcados pelo mesmo acordo abrangido, e que as circunstâncias são suficientemente graves, poderá procurar suspender concessões ou outras obrigações abarcadas por outro acordo abrangido” [artigo 22.3(c)].

23 Segundo o artigo 1.2 do ESC, “as regras e procedimentos especiais ou adicionais” em matéria de solução de controvérsias contidos em outros acordos da OMC deveriam prevalecer sobre as regras gerais do próprio Entendimento.

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Assim, o montante das contramedidas era duplamente importante. Primeiramente, para refletir a real magnitude dos subsídios e dos efeitos adversos por eles provocados. Em segundo lugar, para apoiar o objetivo de ver autorizada a retaliação cruzada na área de propriedade intelectual. Também no caso do montante das contramedidas, o Brasil procurou demonstrar que as regras específicas do ASMC ofereciam maior latitude para os árbitros que aquelas constantes do ESC. Além do contar com o apoio técnico dos Professores Sumner e Sundaram, estimou-se necessário envolver outro profissional que não tivesse trabalhado diretamente nas etapas anteriores do caso e pudesse, assim, ser percebido pelos árbitros como particularmente isento. Com esse objetivo, o Professor Kym Anderson, da Universidade de Adelaide, que desenvolveu, no Banco Mundial, amplo programa de pesquisa sobre os impactos dos subsídios agrícolas, foi integrado à equipe que atuou no procedimento arbitral.

No que se refere ao montante da retaliação, o Brasil, no caso dos subsídios proibidos, apresentou fórmula inovadora que capturava dois tipos de benefícios conferidos pelas garantias de crédito à exportação do programa GSM-102: o diferencial entre os prêmios cobrados pelas agências governamentais dos EUA e aqueles que seriam cobrados pelo mercado (ou seja, o tamanho do subsídio embutido no instrumento); e o valor das exportações de algodão e de outros produtos agrícolas viabilizadas pelas garantias do GSM-102 e que não teriam sido realizadas na sua ausência. Com base nessa fórmula, amparada por detalhada análise econômica, o Brasil solicitou aos árbitros autorização para adotar contramedidas anuais, tendo como referência o montante de garantias concedidas

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em cada período. Com base no ano-safra 2006, solicitou valor anual inicial de US$ 1,16 bilhão24e25.

No caso dos subsídios acionáveis, o Brasil utilizou o modelo econométrico do Professor Sumner, já aplicado durante o procedimento de implementação, para determinar o valor correspondente aos efeitos adversos causados pelos subsídios ML e CCPs. Diferentemente do que acontecera durante o painel original e o painel de implementação, procedimentos nos quais a quantificação precisa dos efeitos adversos não era essencial para se chegar à conclusão de que tais efeitos existiam, a determinação desse montante constituía objetivo precípuo da arbitragem.

Com relação aos subsídios acionáveis, o Brasil solicitou autorização para adotar contramedidas no valor de US$ 1,037 bilhão, montante que levava em conta dois tipos de prejuízos para os produtores de algodão decorrentes dos subsídios norte-americanos: aqueles relativos à perda de renda nas exportações de algodão concretizadas com preços internacionais mais baixos do que seriam se não fossem os subsídios; e aqueles relativos às exportações não efetivadas em função da concorrência desleal com o algodão norte-americano subsidiado. Como a natureza dos efeitos adversos provocados pelos subsídios dizia respeito ao mercado internacional de algodão de maneira geral, e não ao Brasil em particular, os valores apresentados pelo Brasil diziam respeito aos prejuízos globais causados pelos subsídios ML e

24 “Decision by the Arbitrator, US - Upland Cotton Arbitration under Article 22.6 of the DSU and Article 4.11 of the SCM Agreement”, § 4.123.

25 Ainda no tocante aos subsídios proibidos, o Brasil também solicitou autorização de retaliação no montante de US$ 350 milhões, a ser aplicada apenas uma única vez, em decorrência do atraso com que os EUA eliminaram o programa “Step 2”. Tal pleito não foi acatado pelos árbitros (idem, § 3.2).

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CCPs. Note-se que embora os cálculos brasileiros apontassem para prejuízos da ordem de US$ 3,34 bilhões, o Brasil limitou seu pedido a US$ 1,037 bilhão, por ser esse o valor estimado no documento apresentado pelo País na OMC, ainda em 2005, quando reservou seus direitos em matéria de retaliação, antes do início do procedimento de implementação26.

A fim de obter autorização para retaliação cruzada, o Brasil, além de explorar os conceitos específicos do ASMC que, a juízo da equipe brasileira, permitiriam aos árbitros desprender-se das amarras do artigo 22.3 do ESC, apresentou, de maneira criteriosa, argumentos para demonstrar que o caso também se enquadrava nos critérios legais desse último dispositivo. Na visão brasileira, seria “impraticável” ou “ineficaz” retaliar somente por meio do aumento de tarifas e as “circunstâncias” eram “suficientemente graves” para justificar a adoção de contramedidas com relação a compromissos contidos em um acordo diferente daquele em que ocorreu a violação.

O lado brasileiro apresentou argumentos e provas para demonstrar que, embora as importações do Brasil de produtos norte-americanos alcançassem bilhões de dólares, somente uma fração desse valor referia-se a bens supérfluos, sobre os quais seria possível, em tese, adotar contramedidas sem prejuízos maiores à economia nacional. Sobre outros produtos, o aumento de tarifas provocaria, entre outros impactos negativos, aumento dos custos de produção, incremento da inflação, custos elevados de transação para mudança de fornecedores e desestruturação na cadeia produtiva e de distribuição27. Nesse contexto, o Brasil

26 “Decision by the Arbitrator, US – Upland Cotton Arbitration under Article 22.6 of the DSU and Article 7.10 of the SCM Agreement”, § 4.120.

27 Idem, § 5.111 e 5.116 e seguintes. Também “Decision by the Arbitrator, US – Upland Cotton

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esforçou-se para sensibilizar os árbitros de que autorização limitada a bens implicaria nova penalização ao País, que se somaria aos prejuízos sofridos em decorrência dos subsídios norte-americanos.

Por ocasião da audiência perante os árbitros, procurou-se, por meio de intervenção de nosso Representante Permanente junto à OMC, Embaixador Roberto Azevêdo, além dos argu-mentos técnicos e jurídicos, transmitir mensagem política quanto aos riscos para o MSC e para o sistema multilateral de comércio se, em caso tão emblemático para todo o mundo em desenvolvimento, não fosse oferecido ao Brasil remédio efi-caz contra a inércia norte-americana. Tal mensagem revelava- -se especialmente oportuna diante dos argumentos dos EUA de que o Brasil teria direito a retaliação somente na área de bens e em um montante muito baixo ou correspondente a zero. Essa posição equivalia a dizer, ao contrário do que já haviam decidido dois painéis e o OA por duas vezes, que não existia subsídio proibido algum e que os efeitos causados pelos subsídios adversos eram negligenciáveis. Não cabia ao painel de arbitragem decidir de novo aquilo que já havia sido decidido em dois procedimentos seguidos. O Embaixador Azevêdo, que, como primeiro Chefe da Coordenação-Geral de Contenciosos (CGC) do Itamaraty, tinha estado à frente da vitória brasileira no caso original, expressou, em tom irônico, alívio pelo fato de seu crescimento profissional não ter dependido do cumpri-mento das decisões da OMC no contencioso do algodão28.

Arbitration under Article 22.6 of the DSU and Article 4.11 of the SCM Agreement”, mesmos parágrafos.

28 Durante o período de redação do presente artigo, o Embaixador Roberto Azevêdo foi eleito Diretor-Geral da OMC, para cumprir mandato com início em 1º de setembro de 2013.

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No tocante aos subsídios acionáveis, os árbitros29, depois de revisarem toda a literatura especializada com relação a cada um de seus componentes, adotaram o modelo de simulação e os parâmetros oferecidos pelo Brasil praticamente na íntegra30. Concluíram que os subsídios ML e CCPs, no ano-safra 2005, resultaram em redução do preço internacional do algodão de 9,38% e em prejuízos globais de US$ 2,9 bilhões31. No entanto, decidiram que o Brasil teria direito a um montante de retaliação correspondente somente à sua participação no mercado internacional de algodão, que era, naquele ano, de cerca de 5%. Com isso, o valor de retaliação a que o Brasil teria direito anualmente foi arbitrado em US$ 147,3 bilhões32.

Com relação aos subsídios proibidos, os árbitros consideraram que o montante das contramedidas deveria corresponder não ao tamanho dos subsídios, como defendido pelo Brasil, mas sim aos efeitos comerciais por eles provocados em termos de redução de preços e deslocamento de vendas. Apesar dessa correção conceitual, os árbitros acataram, com ajustes, a metodologia apresentada pelo Brasil, entendendo-a como adequada também para determinar o impacto comercial dos subsídios33. Ao tomarem essa decisão, serviram-se da flexibilidade oferecida pela noção de “contramedidas apropriadas” e recusaram como incorreto o argumento dos EUA

29 Note-se que, embora conduzidas pelos mesmos árbitros, foram realizadas, do ponto de vista formal, duas arbitragens, uma relativa aos subsídios proibidos e outra relativa aos subsídios acionáveis. As arbitragens tiveram seus procedimentos unificados, mas resultaram em duas decisões. Para fins práticos, este artigo refere-se às duas arbitragens como se fossem uma.

30 “Decision by the Arbitrator, US – Upland Cotton Arbitration under Article 22.6 of the DSU and Article 7.10 of the SCM Agreement”, § 4.120 e seguintes.

31 Idem, § 4.193.32 Idem, § 4.195.33 “Decision by the Arbitrator, US – Upland Cotton Arbitration under Article 22.6 of the DSU and

Article 4.11 of the SCM Agreement”, § 4.136, 4.192, 4.198 e 4.199.

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de que o montante da retaliação deveria equivaler tão somente ao valor do custo líquido para o Governo norte-americano na operação do programa GSM-10234.

No entanto, diferentemente do que pleiteou o Brasil, os árbitros concluíram, em sintonia com o que haviam decidido para os subsídios acionáveis, que somente os efeitos comerciais para o Brasil deveriam ser considerados na determinação do montante a ser autorizado. Com isso, concluíram que, com base nos dados relativos ao ano-fiscal 2006, a retaliação a que o Brasil teria direito seria de US$ 147,4 milhões. Entretanto, decidiram, conforme solicitado pelo lado brasileiro, que tal montante deveria ser atualizado anualmente, em função, entre outros elementos, do nível de utilização do programa GSM-102 no ano anterior35. Cálculos preliminares realizados pelo Governo brasileiro indicavam que, com base na fórmula aprovada pelos árbitros, as contramedidas para o ano de 2009 em relação aos subsídios proibidos seriam da ordem de US$ 670 milhões, números que refletiam o significativo incremento na utilização do GSM-102. Assim, em termos práticos, atualizado com os dados mais recentes então disponíveis (2008), o montante total de retaliação autorizado somava US$ 829 milhões, o segundo mais alto já obtido na história da OMC36.

No tocante ao pedido brasileiro para retaliação cruzada, os árbitros avaliaram que as regras específicas do ASMC não se aplicavam à questão e que, portanto, deveriam ser seguidos “os princípios e procedimentos” do artigo 22.3 do ESC37. Ao

34 Idem, § 4.154 e seguintes, 4.192 e 4.198.35 Idem, § 4.199 e seguintes, 4.278 e 4.279.36 “Communication from Brazil, US – Upland Cotton”, de 12 de março de 2010 (WT/DS267/43).37 “Decision by the Arbitrator, US – Upland Cotton Arbitration under Article 22.6 of the DSU

and Article 4.11 of the SCM Agreement” e “Decision by the Arbitrator, US – Upland Cotton Arbitration under Article 22.6 of the DSU and Article 7.10 of the SCM Agreement”, § 5.12 e seguintes e 5.33.

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examinarem se era “impraticável ou ineficaz” para o Brasil adotar contramedidas somente em bens, debruçaram-se sobre os números e a composição das importações brasileiras dos EUA. Concluíram que o Brasil teria condições práticas de aumentar tarifas ao menos sobre parte dos bens de consumo importados dos EUA, os quais totalizaram, em 2007, US$ 1,27 bilhão, de um total de importações de US$ 18,7 bilhões38. Concluíram, ainda, especialmente em função das características fortemente distorcivas e da longa duração dos subsídios norte-americanos, que “as circunstâncias eram sérias o suficiente” para justificar a retaliação cruzada39.

Com base nos dados comerciais de 2007, determinaram que até o montante de US$ 409,7 milhões o País deveria impor contramedidas somente na área de bens. Acima dessa espécie de “gatilho”, o Brasil poderia retaliar os EUA na área de propriedade intelectual40. Como o valor da retaliação brasileira variaria de ano a ano, em função da necessidade de atualização anual do montante correspondente aos subsídios proibidos, os árbitros consideraram importante também prever uma fórmula para atualização do “gatilho” relativo à retaliação cruzada. Foi dado ao Brasil o direito de aplicar a retaliação cruzada sempre que o total de contramedidas em determinado ano excedesse “gatilho” calculado anualmente com base na variação das importações brasileiras provenientes dos Estados Unidos41. Como resultado dessas decisões, para a uma eventual retaliação com base nos dados mais recentes disponíveis naquele momento (valor total

38 “Decision by the Arbitrator, US – Upland Cotton Arbitration under Article 22.6 of the DSU and Article 4.11 of the SCM Agreement” e “Decision by the Arbitrator, US – Upland Cotton Arbitration under Article 22.6 of the DSU and Article 7.10 of the SCM Agreement”, § 5.140 e seguintes.

39 Idem, § 5.212 e seguintes.40 Idem, § 5.183 e 5.201.41 Idem, § 5.230 e seguintes.

O Contencioso do algodão: o desafio da implementação

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de US$ 829 milhões), o “gatilho” atualizado seria de US$ 561 milhões, o que permitiria ao Brasil adotar contramedidas em propriedade intelectual no montante de US$ 268 milhões42.

Os objetivos que haviam sido estabelecidos pelo lado brasileiro para a arbitragem haviam sido alcançados: ainda que sujeita a variações anuais, os árbitros outorgaram ao Brasil o segundo maior valor de retaliação da história da OMC; além disso, observado o “gatilho” anual, parte dessa retaliação poderia ser feita com relação à propriedade intelectual. Assim, embora, na visão brasileira, a decisão não refletisse totalmente a magnitude dos subsídios e a gravidade de seus efeitos, o fazia de maneira suficiente para, dentro das limitações inerentes ao sistema, oferecer ao Brasil instrumento potencialmente efetivo para insistir em avanços no processo de implementação pelos EUA. O Brasil teria preferido, naturalmente, autorização incondicional para a retaliação cruzada. No entanto, sabia-se que as regras do ESC e os precedentes existentes tornavam remota tal possibilidade. Conhecidos os laudos, ouviram-se alguns questionamentos quanto ao significado da vitória brasileira. Apontava-se, em particular, para a diferença entre os valores solicitados e aqueles efetivamente autorizados. Tal leitura revela pouca familiaridade com o funcionamento do MSC e com as regras do ESC. Os valores solicitados não apenas constituem o teto máximo passível de autorização em uma determinada arbitragem de retaliação como refletem as interpretações mais favoráveis das regras e as premissas mais otimistas em relação a cada uma das inúmeras variáveis contidas nos modelos de simulação utilizados. Obviamente, seria irrealista supor que a visão brasileira pudesse prevalecer com relação a todos os pontos, técnicos e jurídicos. Os resultados alcançados mostram

42 “US – Upland Cotton – Communication from Brazil” (WT/DS267/43).

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que as teses brasileiras prevaleceram na grande maioria deles. Assim como nas etapas anteriores, o procedimento arbitral explicitou, uma vez mais, a singularidade do caso, no qual os resultados favoráveis estiveram associados às suas características específicas e foram viabilizados pela qualidade e pelo rigor da participação brasileira, que envolveu, nessa etapa, mais de dez profissionais, entre diplomatas, advogados, economistas e técnicos.

4. conclusão

As conclusões do procedimento arbitral coroaram as vitórias alcançadas anteriormente. As decisões representaram, na prática, uma quinta condenação aos subsídios norte- -americanos. Desta feita, contudo, o desfecho do processo não se resumia a “declarar o direito”; oferecia ferramentas mais apropriadas ao Brasil para pressionar os EUA a tornarem seus programas compatíveis com as normas multilaterais. Desse modo, abria perspectivas reais de que o Governo norte- -americano viesse a sair de sua inércia.

Do ponto de vista oficial, não parecia haver dúvida de que as vitórias anteriores tinham resultado em ganhos políticos, diplomáticos e mesmo jurídicos que justificavam amplamente os esforços realizados. O contencioso havia contribuído para escancarar as práticas de subsidiação agrícola dos países desenvolvidos e para minar possíveis argumentos quanto a sua legitimidade. Além disso, havia sido instrumental na mobilização dos países em desenvolvimento no contexto das negociações multilaterais na área agrícola – o algodão, por exemplo, passou a constituir tópico específico de discussão no contexto da Rodada Doha, impulsionado pelas demandas dos países produtores africanos do “Cotton 4”. Igualmente importante, o contencioso

O Contencioso do algodão: o desafio da implementação

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havia gerado jurisprudência que apontava os caminhos a seguir para futuros casos com características semelhantes. O setor privado brasileiro, que havia contribuído para financiar o contencioso, especialmente em sua primeira etapa, reconhecia esses benefícios.

Contudo, na ausência de ganhos mais tangíveis para o setor, que adviriam com a implementação efetiva pelos EUA, permaneceria a sensação de frustração e de dúvida quanto à eficácia do MSC da OMC. Nesse sentido, a autorização para retaliar, incluindo na área de propriedade intelectual, em parte dos valores autorizados, era fundamental para o objetivo de se buscar resultados concretos para os produtores brasileiros de algodão. Tais resultados foram por fim alcançados, quando, sob ameaça real e iminente de sofrer retaliação nas áreas de bens e propriedade intelectual, o Governo norte-americano, entre abril e junho de 2010, chegou a entendimentos com o Governo brasileiro para, entre outros compromissos, contribuir com US$ 147 milhões anuais para fundo em favor da cotonicultura brasileira e de ações de cooperação com países em desenvolvimento e promover modificações nos termos de funcionamento do programa GSM-10243.

O acordo alcançado com os EUA foi uma conquista muito significativa, que tem trazido benefícios diretos para o setor cotonicultor nacional. No entanto, há que se ter presente que os entendimentos alcançados, particularmente no que se refere aos subsídios acionáveis, constituíram compensação

43 Memorando de Entendimento entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América sobre um fundo de Assistência Técnica e Fortalecimento da Capacitação relativo ao Contencioso do Algodão (WT/DS267) na Organização Mundial do Comércio, de 20 de junho de 2010, e “Framework for a Mutually Agreed Solution to the Cotton Dispute in the World Trade Organization”, de 25 de junho de 2010 (“US – Upland Cotton – Joint Communication from Brazil and the United States” – WT/DS267/43).

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temporária, como permitido pelo ESC44, e não implicaram cumprimento das decisões da OMC ou solução definitiva para o caso. No momento da redação do presente artigo, o Congresso norte-americano continuava deliberando sobre a nova lei agrícola, cujas implicações para o contencioso do algodão terão de ser examinadas. A rigor, a despeito dos ganhos auferidos pelos produtores brasileiros, a questão do pleno cumprimento das decisões emanadas do contencioso, depois de mais de 10 anos do início do caso, em 2002, permanece em aberto. A “saga do algodão”, vitoriosa para o Brasil e para os cotonicultores brasileiros, ainda aguarda novos capítulos.

44 Artigo 22.1.

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1

1 Este texto é baseado em AQUINO, Christiane, O Regime de Açúcar das Comunidades Europeias e seus Efeitos sobre o Setor Açucareiro Brasileiro, Dissertação apresentada no Mestrado em Diplomacia do Instituto Rio Branco, 2005; e em AQUINO, Christiane; DANTAS, Adriana e KRAMER, Cynthia, “O Contencioso entre Brasil e Comunidades Europeias sobre Subsídios ao Açúcar (DS 266)”, in O Brasil e o Contencioso na OMC – Série GVLAW, Solução de Controvérsias Tomo I, capítulo 2, Ed. Saraiva, 2010.

Diplomata, formada em Direito pela Universidade Católica de Salvador, com MBA pela Universidade de Bridgeport, Connecticut, e mestrado em diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Concluiu cursos de especialização em política comercial da Organização Mundial do Comércio, em Genebra; da Harvard Kennedy School of Government, em Boston; e da Universidade de Georgetown, em Washington D.C. Atuou na Coordenação-Geral de Contenciosos do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e serviu na Embaixada do Brasil em Washington nas áreas de política comercial, finanças, agricultura e energia. Atualmente é Subchefe da Divisão de Cooperação Financeira do MRE.

solucionAr controvérsiAs com resultAdos concretos:

o cAso dos suBsídios do

AçúcAr contrA As ce Christiane Aquino Bonomo

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O Contencioso entre Brasil e Comunidades Europeias (CE) sobre subsídios ao açúcar (DS 266) é provavelmente a disputa brasileira que logrou obter os resultados mais

tangíveis no menor prazo de tempo, tanto do ponto de vista econômico quanto jurídico. De maior exportadora de açúcar refinado do mundo (com um dos maiores custos de produção), as CE passaram, como resultado do contencioso, a importadora líquida do produto. Mais de 6 milhões de toneladas de açúcar subsidiado foram retiradas do mercado internacional. Por conseguinte, a cotação da commodity, que estava defasada há décadas, elevou-se, reparando a renda de produtores mais eficientes, tais como brasileiros, australianos e tailandeses, codemandantes da disputa contra as CE na OMC.

Iniciada em setembro de 2002, com o pedido de consultas do Brasil (DS 266) e da Austrália (DS 265), ao qual se somou a Tailândia (DS 283), a disputa passou pelas fases de painel, apelação e arbitragem de prazo para implementação, cujo laudo foi emitido em outubro de 2005 e estabeleceu 22 de maio de 2006 como data limite para que as CE implementassem as recomendações do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC. Mesmo diante da forte pressão do lobby do setor, que organizou marchas com frota de tratores a Bruxelas, a Comissão Europeia implementou as mudanças necessárias paulatinamente. Com a reforma dos programas de subsídios, o novo regime açucareiro europeu entrou em vigor no dia 1º de julho de 2006 e sofreu ajustes importantes nos anos subsequentes.

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Ao contrário do contencioso do algodão, cujas consultas também foram iniciadas em 2002, a disputa contra os subsídios europeus ao açúcar constitui-se exemplo salutar de uso célere do sistema de solução de controvérsias multilateral com implementação efetiva das recomendações do OSC. Hoje, as CE importam em média 3,25 milhões de toneladas de açúcar ao ano e os países demandantes aumentaram significativamente suas exportações mundiais tanto em volume quanto em valor. Além da construção de sólida argumentação jurídica no OSC da OMC, a equipe de diplomatas, advogados e representantes do setor privado envolvidos na construção da tese brasileira da disputa também deflagraram forte campanha de esclarecimento junto à mídia, à sociedade civil (ONGs) e aos representantes de países da África, Caribe e Pacífico (ACP), titulares de acesso preferencial ao mercado europeu. Foi uma vitória conquistada dentro e fora da OMC com forte parceria entre Governo e setor privado.

1. os suBsídios europeus Ao AçúcAr

Em vigor desde 1968, a Organização Comum do Mercado (OCM)2 de Açúcar3 europeu previa diversos instrumentos de subsídio que causavam distorções tanto ao mercado europeu, isolando-o artificialmente do mercado internacional, quanto ao mercado internacional, deslocando exportações de países

2 As Organizações Comuns de Mercado (OCMs) foram instituídas no âmbito da Política Agrícola Comum (PAC). Constituem conjunto de políticas setoriais específicas, financiadas pelo Fundo Europeu de Orientação e de Garantia Agrícola, que rege a produção e a comercialização de produtos agrícolas, abrangendo setores como açúcar, cereais, ovos, carne de frango, frutas, vinho e produtos lácteos, entre outros. O objetivo central de cada OCM é intervir no mercado de modo a atingir determinados objetivos, como sistema de quotas de produção para adequar a oferta à demanda ou preços mínimos para assegurar os rendimentos dos agricultores europeus.

3 O Regulamento do Conselho Nº 1260/2001 era a principal fonte jurídica da OCM de açúcar. Ele regulava a aplicação de preços mínimos, quotas, reembolsos e outros mecanismos de apoio e esteve em vigor até 30 de junho de 2006.

Solucionar controvérsias com resultados concretos: o caso dos subsídios do açúcar contra as CE

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produtores mais competitivos. Entre os mecanismos utilizados, vale destacar garantia de preço mínimo para o açúcar e a beterraba4, quotas à produção, sistema interventor de compras5, altas alíquotas de importação e reembolso à exportação6. Bastaram cerca de duas décadas em operação para que as CE passassem de importadora à exportadora de açúcar. Esse resultado foi obtido mesmo com custos de produção estimados em cerca de US$ 660 por tonelada de açúcar refinado, em mercado internacional cuja cotação raramente passava de US$ 240 a tonelada. A política de subsídios europeus ao açúcar prejudicava países produtores mais competitivos, como o Brasil7, que apresentava custo de produção inferior a US$ 180 a tonelada8 e poderia ocupar maior espaço no mercado internacional. Nos anos 90, a OCM de açúcar chegou a ser alvo de questionamentos dentro do próprio bloco europeu9.

A base do sistema era o preço de intervenção, que funcionava como um preço mínimo garantido, criado para estabilizar o mercado interno de açúcar e assegurar a renda

4 Regulamento (CE) 1785/81, JOCE L 177 de 1º de julho de 1981. 5 Cada Estado-membro possui uma Agência de Intervenção que poderá comprar açúcar do

produtor que não conseguir vender o produto no mercado interno ao preço garantido.6 Regulamento Nº 1430.7 “Brazil is the world’s largest sugar exporter and it is generally considered to be the world’s lowest

cost producer”. Mitchell, Donald, Sugar policies opportunity for change, The World Bank policy research working paper nº. WPS 3222, 2004, p. 20. apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 82.

8 Esses números apresentavam certa variação. Para a UNICA (União Brasileira da Indústria de Cana-de-Açúcar), o custo médio de produção do açúcar de cana na região sudeste do Brasil girava em torno de US$ 130 a tonelada, já o relatório do Netherlands Economic Institute, Evaluation of the Common Organisation of the Markets in the Sugar Sector, encomendado pela Comissão Europeia, concluiu, na página 30, que “[...]the most efficient producers, such as Brazil, are able to produce raw sugar at US$150-200 per tonne”. O relatório do Agra-Europe, de Outubro de 1999 (October 29, 1999: M/11-12) considerou que “Brazilian sugar producers [...] have an estimated production costs of 95-110US$/t”. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 82.

9 Em 1991, auditoria abrangente do Tribunal de Contas das CE identificou diversos problemas na OCM do açúcar, com destaque para a situação de superabastecimento estrutural e para os elevados custos do regime: JOC 290 de 7 de novembro de 1991.

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do produtor10. Seu valor era fixado anualmente pelo Conselho Europeu de Ministros da Agricultura. Para o açúcar refinado, o valor determinado era de 631,9 ECU/t e, para o açúcar bruto, de 523,7ECU/t11. Esses valores correspondiam a cerca do triplo da cotação do produto no mercado internacional. Em tese, se o preço do açúcar no mercado interno ficasse abaixo do preço de intervenção, os produtores tinham a opção de oferecer o açúcar para as agências de intervenção que tinham a obrigação legal de comprar-lhes o estoque pelo preço garantido12, embora muito raramente fosse necessário efetivar esse instrumento já que o mercado operava artificialmente acima do preço garantido.

Outro instrumento fundamental do antigo sistema eram as quotas nacionais de produção intransferíveis (quotas “A” e “B”), cujos objetivos eram: incentivar e regular a quantidade da produção de açúcar em cada Estado-membro e no mercado comunitário como um todo; limitar o custo (potencial) das compras de intervenção e garantir a cada Estado-membro uma certa participação no mercado comunitário. As CE alocavam as quotas de produção aos Estados-membros que, por sua vez, alocavam sua quota nacional a produtores individuais. Cada Estado-membro deveria produzir açúcar dentro dos limites das quotas A e B, que compunham a chamada “quota máxima”. Essas quantidades correspondiam a uma quota de produção por

10 “European Communities-Export Subsidies on Sugar” (WT/DS266/R), p. 8.11 Nas áreas onde havia déficit ou uma pequena diferença entre oferta e demanda, o preço de

intervenção era acrescido de um prêmio. No Reino Unido, Irlanda, Portugal e Finlândia, o preço de intervenção era de 646,5 euros por tonelada, já na Espanha o preço de intervenção era de 648,8 euros por tonelada. LMC International, Review of Sugar Policies in Major Sugar Industries, Transparent and Non-Transparent or Indirect Policies, prepared for American Sugar Alliance, janeiro de 2003, p.25 e. “NEI Evaluation of the Common Organization of the Markets in the Sugar Sector”, 2000, p. 20-21. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit, p. 34.

12 Nota-se, contudo, que essa forma de compra ocorreu apenas uma vez em vinte e cinco anos porque os instrumentos previstos na OCM permitiam que o açúcar fosse vendido no mercado interno a preços muito acima do preço de intervenção. WT/DS266/R, p. 168.

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região para a qual a garantia de preço era quase total (quota A) e a uma outra quota para a qual a garantia de preço era parcial (quota B). Dessa maneira, o açúcar da quota A recebia preço de garantia mais alto que o açúcar da quota B.

Denominava-se açúcar “C” a produção que excedia as quantidades destinadas às quotas “A” e “B”. Esse excedente não poderia ser consumido no mercado interno europeu, devendo ser automaticamente exportado, sem subsídio direto, ou armazenado para ser computado na quota “A” do ano seguinte – no limite de 20%13.

Além das quotas de açúcar “A” e “B”, e do açúcar “C”, havia também a figura do açúcar “ACP”. O açúcar ACP correspondia ao açúcar bruto importado das ex-colônias europeias sob acordos preferenciais e ao preço garantido do mercado comunitário. Em território europeu, esse açúcar era refinado, acompanhando o padrão do comércio colonial. Como o açúcar dos tipos “A” e “B” era mais do que suficiente para abastecer o mercado interno europeu, o açúcar “ACP” era refinado e exportado com subsídios.

O setor exportador beneficiava-se dos reembolsos à exportação, um subsídio que cobria a diferença entre o preço doméstico (mais alto) e o preço internacional14. O montante era pago, majoritariamente, com fundos do orçamento comunitário, mas uma parte era arrecadada com as contribuições (levies) dos produtores e agricultores. Altas tarifas de importação, compostas por um valor fixo por tonelada e um adicional

13 Artigo 13 do Regulamento Nº 1260/2001 do conselho Europeu e Artigo 2º do Regulamento Nº 65/82 da Comissão Europeia.

14 “[...] The Union established a rebate on export sales, where in order to encourage disposal of the surpluses on world markets, the Union pays exporters the difference between the high Union price and the world price”. Trebilcock, Michael & Howse, Robert, The Regulation of International Trade, Second Edition, Routledge, 2000, apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 37.

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variável conforme a cotação internacional do açúcar15, ainda protegem o mercado e os preços internos.

As indústrias química, farmacêutica e alimentícia, que eram obrigadas a comprar o caro açúcar europeu, recebiam reembolsos à produção para reduzir custos com a matéria-prima e manter a competitividade. Havia ainda ajuda às refinarias de 29,20 euros por tonelada de açúcar refinado com base no açúcar bruto dos países ACP. A intenção desse mecanismo, criado em 1986, era igualar as condições de competição entre as refinarias de açúcar de cana bruto e as fábricas que produzem açúcar refinado de beterraba.

As CE vendiam, anualmente, cerca de 6 milhões de toneladas de açúcar16. Essa quantidade correspondia ao somatório das exportações dos quatro tipos de açúcar. As quotas A e B que ultrapassam o consumo interno eram exportadas com subsídios (reembolso à exportação). Era o chamado surplus sugar, com exportação média anual de 1,5 milhão de toneladas. O bloco exportava também cerca de 3 milhões de toneladas de açúcar C. Conforme explicado anteriormente, este era o açúcar produzido que excedia as quantidades predeterminadas das quotas A e B. Além disso, as CE exportavam quantidade equivalente a do açúcar importado pelos países ACP, cuja média era de 1,6 milhão de toneladas também com subsídios à exportação.

O Brasil não questionou na OMC o regime açucareiro europeu como um todo, mas, essencialmente, o fato de que a exportação subsidiada anual de açúcar pelas CE ultrapassava os compromissos de redução assumidos pelo bloco perante

15 Tarifa fixa de 419€ euros por tonelada de açúcar e tarifa adicional de 115€ por tonelada em 2003.16 Foram quase 7 milhões de toneladas na safra 2001-02, correspondendo a 40% das exportações

mundiais do produto. Fonte: F.O. Licht International, World Sugar Yearbook, 2003. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 83.

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a OMC e acarretava danos ao setor açucareiro brasileiro por meio da redução dos preços mundiais e do deslocamento das suas exportações em terceiros mercados. Não obstante, a fim de reduzir as exportações e cumprir com as determinações do OSC, as CE decidiram reformar todo o sistema de maneira a reduzir a produção e, consequentemente, controlar as exportações dentro dos limites da OMC.

Estudos dos anos 90 já demonstravam o que se viu na prática a partir de 2007: o fim dos subsídios europeus (ou a liberalização mundial do comércio de açúcar como um todo) aumentaria a cotação do açúcar no mercado internacional, diminuiria ou extinguiria as exportações europeias e elevaria as exportações brasileiras. Conforme ilustrado na tabela abaixo, os resultados dos estudos diferem quanto ao montante, mas todos apontavam na mesma direção.

Tabela 1 - Estudos do Impacto do Fim dos Subsídios Europeus ao Açúcar

Autores dos Estudos /Ano

Aumento do Preço do Açúcar no Mercado

Internacional

Diminuição das Exportações

Europeias

Aumento das Exportações

Brasileiras

Lord e Barry 1990 10 a 30% - -

Sheales et alli. 1999 41% 34% 23%

Borrell e Pearce 1999

38% 21% 15%

Dioa e Somwaru 2001

4,9% -

Mitchel, D. (World Bank) 2004

40%

34%. Aumento também das importações

europeias.

23%

Fonte: Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 87.

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2. o contencioso

O Brasil questionou o descumprimento dos limites de quantidade e de valor de exportação de açúcar contidos nos compromissos comunitários de redução de subsídios à exportação acordados ao fim da RU. O compromisso de redução de subsídios à exportação das CE ficou acordado em 499,1 milhões de euros e 1.273.500 toneladas de açúcar a partir de 200117. Esse limite era ultrapassado todo ano em decorrência de as CE não contabilizar as exportações de açúcar “C” e “ACP” por considerá-las “sem subsídio”.

O açúcar ACP entrava no mercado europeu sem incidência de tarifas e ao preço garantido de 523,7 euros por tonelada ao amparo do Protocolo de açúcar / Convenção de Lomé. As CE mantinham quota anual de importação de 1.304.700 toneladas de açúcar ACP, o qual passava por beneficiamento em refinarias europeias e era, finalmente, reexportado com subsídios. Esse montante de açúcar, contudo, não era computado pelas CE para efeito de redução dos subsídios à exportação, compromisso incorporado ao Acordo sobre Agricultura (AsA), em decorrência da interpretação da seguinte nota de rodapé inserida ao fim da sua tabela de compromisso de redução de subsídios: “does not include exports of sugar of ACP and Indian origin on which the Community is not making any reduction commitments. The average of export in the period 1986 to 1990 amounted to 1.6 million t”.

O Brasil argumentou que as CE estavam violando os Artigos 3, 8 e 9 do Acordo sobre Agricultura (AsA) ao ultrapassar seu compromisso de redução de subsídios à exportação. Citou que o AsA restringe a concessão de subsídios aos limites notificados

17 Schedule CXL: European Communities, Section II, Part IV Agricultural Products.

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e aos produtos que sejam objeto de compromissos de redução. Também questionou a legitimidade da referida nota de rodapé para isentar as CE de contabilizar os subsídios concedidos à exportação do açúcar ACP. Argumentou que um Membro da OMC não pode se eximir de suas obrigações por meio de artifício jurídico que contraria a própria finalidade do documento em que está inserido. Ilustrou seu argumento com jurisprudência18 na qual o OSC concluiu que um Membro, ao estabelecer seu quadro de compromissos e concessões, poderia incorporar “only acts yielding rights, not acts diminishing obligations”.

Quanto ao açúcar C, o Brasil recorreu à jurisprudência (caso Canada-Dairy19) para ilustrar que a palavra “pagamento” disposta no Artigo 9.1 (c) do AsA contempla não só remuneração monetária, mas também outras formas de pagamento (payment-in-kind), como, por exemplo, “receita descartada” (revenue forgone). A tese era a de que a venda da beterraba C20, destinada à produção do açúcar “C”, a preços que não cobriam os respectivos custos de produção, caracterizava a existência de pagamento (payment-in-kind). Nas vendas abaixo do custo de produção de beterraba C (que não possuía preço mínimo garantido) aos produtores/exportadores de açúcar C, o revenue forgone ocorria quando os produtores de beterraba C descartavam receita, ou transferiam renda, ao vendê-la para os produtores/exportadores de açúcar C abaixo dos custos de produção.

Assim, apesar de não receber subsídios diretos para exportação, a produção desse açúcar excedente tinha seus

18 Caso EC – Bananas, em que o OA citou o caso US – Sugar Headnote, ocorrido no âmbito do GATT. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 122.

19 Canada – Measures affecting the Importation of Milk and the Exportation of Dairy Products (WT/DS103/33 e WT/DS113/33).

20 Vale lembrar que o Regulamento No 1260/2001 estabelece três diferentes categorias de açúcar A, B e C, as quais são produzidas, respectivamente, da beterraba A, B e C.

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custos cobertos pelos subsídios concedidos ao açúcar produzido sob as quotas “A” e “B”, beneficiando-se pelo chamado efeito de transbordamento ou spill-over. Por meio do efeito spill-over, os benefícios concedidos ao açúcar dos tipos “A” e “B” eram suficientes para cobrir os custos fixos de produção do açúcar “C”, tornando-o rentável para exportação21. Brasil, Austrália e Tailândia alegaram que o apoio governamental destinado ao açúcar dos tipos A e B é que viabilizava, pelo efeito spill-over, o fornecimento de beterraba C abaixo dos custos de produção para os produtores de açúcar C e para o mercado internacional. Defenderam que, como o açúcar C não poderia ser consumido no mercado europeu e deveria ser exportado (ou no máximo estocado), qualquer forma de pagamento (subsídios indiretos ou receita descartada) que beneficiasse os produtores/exportadores de açúcar C seria destinada à exportação de um produto agrícola, ou seja, o açúcar C.

Por fim, os demandantes observaram que não havia produção exclusiva ou isolada de açúcar C nem cultivo avulso de beterraba C. O açúcar C só era produzido por empresas que recebiam alocação para produção do açúcar dos tipos A e B e a beterraba C só era cultivada pelo agricultor que tinha contrato de fornecimento das beterrabas A e B para a indústria de açúcar. Dessa maneira, alegaram que não seria rentável produzir açúcar C dissociado da produção e do sistema de apoio do açúcar dos tipos A e B, assim como parecia não ser lucrativo cultivar beterraba C sem a produção concomitante de beterrabas A e B.

21 A própria Corte de Auditores europeia reconheceu em seu relatório No. 20/2000 que: “EU sugar is clearly not competitive on the world market. Subsidies of the order of 75% of the EU intervention price are currently needed to enable the quota surplus to be sold. C sugar (production in excess of quotas), which receives no export refunds, can only be sold profitably at world market prices because the prices obtained for sales of quota sugar are sufficient to cover all fixed costs of the processing companies”. Court of Auditors, Special Report No. 20/2000, fevereiro de 2001, apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 33.

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Essa relação sugeria que uma parte dos custos de produção do açúcar C era coberta pelo apoio governamental auferido pelo açúcar de quota, tornando lucrativa a exportação de açúcar C ao preço do mercado internacional (em média três vezes mais baixo que o preço do mercado europeu), mesmo sem sistema de reembolso.

Haveria, portanto, com o sistema de subsídios cruzados, a conjunção dos três elementos necessários para aplicação do Artigo 9.1 (c) do AsA: a) que um pagamento seja feito (sustentação de preços, reembolso à exportação e todos os outros mecanismos de apoio auferidos pelo açúcar dos tipos A e B); b) para exportação de um produto agrícola (açúcar C que deve ser exportado por lei); c) e que esse pagamento seja financiado “by virtue of governmental action” (a regulamentação estabelecida pela própria Comissão Europeia, tal como o Regulamento do Conselho Europeu No. 1260/2001).

De acordo com os codemandantes, esse conjunto de medidas adotadas pelas CE ensejavam violações aos Artigos 3.3, 8, 9.1, 9.2, 10 e 11 do AsA e dos Artigos 3.1 e 3.2 do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC).

Preliminarmente, as CE tentaram sustentar que os pedidos não poderiam ser acatados pelo painel porque extrapolavam os termos de referência estabelecidos para a demanda.

Em seguida, argumentaram que os demandantes estariam impedidos, pelo princípio de Estoppel22, de levar essa demanda adiante porque, durante a RU, tiveram condições suficientes para impugnar a lista de compromissos negociada com as CE (inclusive a nota de rodapé) e não o fizeram.

22 Princípio de direito internacional pelo qual uma parte estaria impedida de invocar posições e argumentos contrários àqueles adotados anteriormente.

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As CE não negaram que o açúcar ACP era exportado com subsídios e avaliavam que tinham o direito de fazê-lo. Justificaram essa postura pela existência da nota de rodapé ao fim do seu quadro de compromissos. Segundo os europeus, essa nota de rodapé exclui o açúcar proveniente dos países ACP/Índia do cômputo geral de compromisso de redução de subsídios.

Na opinião das CE, a nota de rodapé confirmava que uma quantidade de açúcar exportada, equivalente ao montante importado pelos países ACP, não foi incluída nas quantidades e nos valores relatados pelas CE para o período-base (1986-1990) utilizado no cálculo do compromisso de redução de subsídios à exportação na RU. Além disso, argumentavam que, como essas exportações não foram incluídas no período base, também não deveriam ser computadas para efeito de cumprimento dos compromissos assumidos pelas CE ao fim da RU no AsA.

Dessa maneira, para as CE, a nota de rodapé dividiu seus compromissos em duas partes: (i) estabelecia limite em quantidade e em valor para o uso de subsídios à exportação, no caso os 499,1 milhões de euros e as 1.273.5 toneladas de açúcar e (ii) estabelecia um teto de 1.600.000 toneladas de açúcar equivalente à quantidade importada de açúcar dos países ACP que não fazia parte dos compromissos de redução de subsídios.

Com relação ao argumento de que qualquer forma de pagamento que beneficiasse os produtores/exportadores de açúcar C seria destinado à exportação (uma vez que o açúcar C não podia ser consumido no mercado europeu e deveria ser exportado, ou no máximo estocado), as CE se defenderam explicando que nenhum produtor era obrigado a exportar o açúcar C, pois poderia estocá-lo para entrar na quota A do ano posterior. Portanto, alegaram que se havia algum benefício das quotas A e B auferido pelos produtores de açúcar C, ele não

Solucionar controvérsias com resultados concretos: o caso dos subsídios do açúcar contra as CE

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dependia das exportações do açúcar C (“is not contigent upon the export of C sugar”).

Os resultados apresentados pelos estudos econométricos dos demandantes não foram refutados pelos europeus, que se restringiram a declarar que os custos de produção não eram importantes para a defesa das CE.

O painel decidiu determinar, primeiramente, o nível do compromisso de redução assumido pelas CE em sua lista para depois avaliar se houve violação desses compromissos.

A determinação do nível do compromisso observou quatro (4) etapas: primeiro, o painel considerou ser necessário estabelecer quais seriam as obrigações das CE em relação aos Artigos 3, 8 e 9 do AsA; em seguida, procurou buscar o que cada Membro da OMC poderia fazer em seu quadro de compromissos e como seu teor deveria ser interpretado; a terceira tarefa foi discutir a relação existente entre as obrigações das CE no que se refere aos Artigos 3, 8 e 9 do AsA e a nota de rodapé, com particular atenção para a possibilidade de conflito ou de interpretação harmoniosa entre ambas, e, finalmente, o painel examinou a natureza do compromisso, se existisse algum, no tocante à referida nota de rodapé.

Na primeira etapa, ao interpretar os Artigos 3 e 8 do AsA, o painel considerou que um Membro da OMC não poderia conceder subsídios à exportação que não estivessem em conformidade com o AsA e com seu próprio quadro de compromissos de redução de subsídios. Além disso, um Membro que decidisse exportar um produto elencado no seu quadro de reduções deveria observar os seguintes critérios: (i) os subsídios à exportação devem ser concedidos dentro da quantidade limitada pelo quadro de compromissos e (ii) a sua correspondente despesa deve estar dentro dos limites orçamentários impostos pela

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previsão de redução de subsídios estipulada em seu quadro de compromissos.

Portanto, todo e qualquer compromisso deveria estar expresso em termos de quantidade exportada e de dispêndio orçamentário, e um Membro não poderia fornecer subsídios à exportação que excedesse a previsão orçamentária ou a quantidade especificada em seu compromisso de redução de subsídios. Como a nota de rodapé apenas prevê uma limitação quantitativa (1,6 milhões de toneladas), a ausência do elemento orçamentário levaria a um conflito com as disposições do AsA.

Dessa maneira, o painel concluiu que, para o AsA, subsídios à exportação são apenas permitidos para produtos listados na Seção II, Parte IV do quadro de compromissos de cada Membro da OMC na quantidade e no valor especificados ou abaixo destes.

Na segunda etapa, o painel considerou fundamental interpretar o sentido da nota de rodapé inserida pelas CE em seu quadro de compromissos com base no Artigo 3.1 do AsA, que prescreve que o quadro de compromissos de cada Membro deve ser interpretado como parte integral do GATT 1994, e no princípio da efetiva interpretação do tratado (principle of effective treaty interpretation23). Decidiu, então, analisar o AsA e o quadro de compromissos em conjunto com a nota de rodapé.

Na etapa seguinte do exame da questão, o painel se debruçou sobre a compatibilidade entre as provisões do quadro de compromissos de redução de subsídios das CE e o AsA, tendo por base a jurisprudência de Direito Internacional absorvida pela OMC no que diz respeito a conflito de normas.

23 O ut res magis valeat quam pereat ou princípio da efetiva interpretação do tratado foi analisado no painel Japan-Alcoholic Beverage (DS8/DS10/DS11) da seguinte maneira: “a principle whereby all provisions of a treaty must be, to the extent possible, given their full meaning so that parties to such a treaty can enforce their rights and obligations effectively.” (grifo nosso). apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 122.

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Citou relatórios do Órgão de Apelação (OA24) para ilustrar que o entendimento da OMC é o de que só há conflito quando as normas são mutually exclusive. Assim, segundo a jurisprudência, Membros podem inserir notas para “esclarecer ou qualificar” uma concessão, mas não poderão reduzir obrigações assumidas, o que causaria um conflito de normas.

A última etapa do exame da questão voltou-se para a natureza do compromisso da nota de rodapé. Para tanto, o painel estabeleceu como ponto de partida os argumentos das próprias CE quanto ao significado da referida nota. Na sua defesa, as CE alegaram que a referência à nota de rodapé foi inserida ao lado da palavra “açúcar” no seu quadro de compromissos, por isso deveria ser aplicada a todo o conteúdo relacionado ao produto.

Com base no exame da própria defesa das CE, o painel observou que, durante o período de implementação do AsA, as CE não relataram, em suas notificações obrigatórias ao Comitê de Agricultura da OMC25, nem as quantidades nem os valores das exportações de açúcar ACP. Essa omissão de informações sugeriu para o painel que a prática das CE foi, na verdade, a de não tratar o açúcar ACP como um compromisso, o que contrariou suas próprias alegações. Se o açúcar ACP fazia parte do compromisso assumido, por que suas informações em termos de quantidade e valor não eram relatadas nas notificações? O painel concluiu que a nota de rodapé nunca havia sido tratada pelas CE, nem pelos outros Membros da OMC, nem pelo próprio

24 Relatório do OA nos contenciosos EC-Bananas III, parágrafo 154; EC-poultry, parágrafo 98 e Chile-Price Band System, parágrafo 272. Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 122.

25 Nas notificações G/AG/R/15 e G/AG/R/17 à OMC, as CE declararam que “As indicated in footnote 1 (...) the EC is not undertaking any reduction commitment on exports of ACP or Indian sugar. Consequently, any financial assistance is not reported to the WTO”. Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 124.

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Comitê de Agricultura como um efetivo compromisso. A nota de rodapé seria, na verdade, uma tentativa de reduzir e modificar as obrigações das CE materializadas nos Artigos 3, 8, 9.1 e 9.2 (b) (iv) do AsA. Em decorrência disso, os painelistas declararam que a nota de rodapé e as disposições sobre subsídios à exportação, previstas no AsA, são incompatíveis (mutually inconsistent).

Dessa forma, o painel concluiu que o conteúdo da nota de rodapé não tinha efeito legal e que seu teor não autorizava que uma quantidade adicional de 1,6 milhões de toneladas de açúcar subsidiado fosse exportada fora dos limites expressos nos compromissos. A nota tampouco modifica ou amplia os compromissos especificados na Seção II, Parte IV do quadro de compromissos das CE na quantidade de 1.273.500 toneladas de açúcar e no valor de 499,1 milhões de euros por ano.

Uma vez determinado o nível do compromisso europeu, o qual não era afetado pela referida nota de rodapé, o painel avaliou a existência de violação a esse compromisso.

No que se refere ao açúcar ACP, o painel observou que as CE não refutou o argumento dos codemandantes de que tal açúcar beneficiou-se de subsídios à exportação26. Outrossim, os dados e evidências apresentados demonstraram que o açúcar ACP foi exportado desde 1995 em quantidades que excediam o nível de redução, o que configurou violação aos Artigos 3º e 8º do AsA.

Em seguida, o painel analisou se as exportações de açúcar C foram subsidiadas nos termos do Artigo 9.1(c) do AsA. Crucial nesta análise foi a determinação da existência de “pagamento”, caracterizada pela venda da beterraba C abaixo dos custos de produção. Esta venda constituía revenue foregone, ou seja, uma das formas de pagamento condenada pelo AsA27.

26 Parágrafo 7.234 do relatório do painel WT/DS266/R.27 Parágrafos 7.269 e 7.270 do relatório do painel WT/DS266/R.

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O painel afirmou que o pagamento não precisaria depender da exportação (be contingent on the export), mas simplesmente, ser on the export, ou seja, destinar-se à exportação. Assim, como a beterraba C destinava-se à produção de açúcar C que, por sua vez, destinava-se à exportação, o pagamento decorrente da transferência de renda dos agricultores de beterraba C aos produtores/exportadores de açúcar C era feito para exportação de um produto agrícola nos termos do Artigo 9.1 (c) do AsA .

A existência de subsídio cruzado também foi apreciada na medida em que constitui “pagamento” sob a forma de transferência de recursos financeiros. O painel entendeu ser evidente que as medidas adotadas para administrar o mercado europeu permitiam a cobrança de preços elevados pela venda do açúcar A e B, o que permitia a recuperação dos custos de produção do açúcar C. Como havia uma só linha de produção para todos os tipos de açúcar (A, B e C), a transferência de recursos restava clara e viabilizava a exportação do açúcar C em preços inferiores aos custos de produção28.

A análise conduzida pelo painel amparou-se na interpretação do OA no caso Canada-Dairy, no qual houve necessidade de se demonstrar relação clara entre o financiamento dos pagamentos e a ação governamental para que ficasse estabelecido que o pagamento era realmente financiado por uma ação governamental. Ao examinar os elementos do sistema europeu de sustentação de preços e de quotas, os painelistas entenderam que havia tanto incentivos legais para que o agricultor e o produtor excedessem suas quotas, quanto controle governamental da oferta e dos preços no mercado interno. Esse esquema seria, portanto, “indispensável” para a transferência de recursos do consumidor (que paga o triplo da

28 Parágrafos 7.310 e 7.314 do relatório do painel WT/DS266/R.

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cotação no mercado internacional) e do contribuinte europeu para a produção de açúcar dos tipos A e B, a qual também transfere renda para o açúcar C. Assim sendo, a conclusão do painel foi de que os produtores de açúcar C recebem pagamentos para exportação financiados por várias ações governamentais, nos termos do Artigo 9.1 (c) do AsA.

Como as CE, que tinham o ônus da prova com relação a esse questionamento, não demonstraram que as exportações de açúcar C não recebiam subsídios29, e todos os elementos do Artigo 9.1 (c) estavam presentes, ficou evidente que o açúcar C recebia subsídios à exportação, apoio que não era computado nos compromissos de redução de subsídios no valor de $499,1 milhões € e na quantidade de 1.273.5 toneladas anualmente. Consequentemente, o painel decidiu que as CE também violaram os Artigos 3 e 8 do AsA ao exportar cerca de 3 milhões de toneladas anuais de açúcar C.

O painel, de acordo com o Artigo 19.1 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias (ESC), recomendou que as exportações comunitárias de açúcar passassem a respeitar as obrigações dos Artigos 3.3 e 8 do AsA e que as CE considerassem promover a diminuição da produção de açúcar, obedecendo à demanda doméstica e respeitando os compromissos internacionais relacionados à importação de açúcar, sobretudo com PEDs – em uma expressa referência aos acordos preferenciais com os países ACP30. Em linhas gerais, quanto ao mérito, o painel decidiu que:

29 Vale lembrar que nesse caso eram as CE que deveriam provar que não concediam subsídios porque o Artigo 10.3 do AsA reverte o ônus da prova. Ao invés de o demandante provar o que alega, cabe ao demandado (país exportador) comprovar que a quantidade exportada não recebia subsídios, ou seja, que cumpria suas obrigações e que não estava violando o acordo. Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 133.

30 Parágrafo 8.7 do relatório do painel WT/DS266/R.

Solucionar controvérsias com resultados concretos: o caso dos subsídios do açúcar contra as CE

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a) O Artigo 10.3 do AsA estabelece que, se um Membro da OMC exporta um produto agropecuário em quantidades que excedam o nível de compromisso, esse Membro será tratado como se tivesse outorgado subsídios às exportações incompatíveis com o regime da OMC, a menos que apresente provas adequadas que demonstrem o contrário31. No caso em questão, as CE não haviam demonstrado que as exportações de açúcar C e açúcar advindo dos países ACP estavam nos níveis de compromisso anuais acordados. Tampouco demonstraram que não estavam sendo subsidiados;

b) A nota de rodapé não tem efeito legal. O painel entendeu que os demandantes provaram, prima facie, que desde 1995 os europeus vinham exportando açúcar em quantidades acima do nível de compromisso;

c) As CE, através do seu regime de açúcar, haviam atuado de maneira incompatível com as suas obrigações, constantes do Artigo 3.3 e do Artigo 8 do AsA, ao outorgar subsídios à exportação (parágrafos 1(a) e 1(c) do Artigo 9 do AsA); e

d) Não se fazia necessário analisar a medida à luz do ASMC, pois as CE já estavam sendo condenadas à luz do AsA. Assim, o painel exerceu economia judicial em relação a esse aspecto.

O OA também concluiu que a nota de rodapé contrariava o AsA. Deixou claro que ela não aumenta ou modifica o compromisso assumido pelos europeus durante a RU. Portanto, as CE não poderiam subsidiar o montante que estava sendo subsidiado.

31 Parágrafo 8.2 do relatório do painel WT/DS266/R.

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Com relação aos subsídios à exportação, a discussão girou em torno da definição de pagamento. Em circunstâncias particulares da disputa, concluiu-se que havia o pagamento em forma de transferência financeira de recursos de receita mais alta, resultante de vendas do açúcar A e B, para a exportação do açúcar C. E isso contrariava os Artigos 9.1 (c), 3.3 e 8 do AsA.

Por fim, o OA afirmou não estar em posição de completar a análise com relação ao Artigo 3 do ASMC (subsídios proibidos) para o qual o painel havia exercido economia processual, mas apontou que se tratava de false judicial economy32. Eventual condenação das CE com base no ASMC permitiria fixação de prazo para a implementação da decisão, sem necessidade de se recorrer à arbitragem do Artigo 21.3 do ESC. Apesar de o AsA ser um acordo específico para tratar de produto agrícola, o ASMC, em seu Artigo 4.7, traz menção específica sobre a necessidade de retirada dos subsídios proibidos (Artigo 3) “sem demora”. Nesse caso, se não ocorrer a retirada imediata dos subsídios proibidos, e se não houver acordo sobre compensação, os demandantes podem pedir autorização para retaliar. Assim, uma condenação à luz do ASMC seria mais vantajosa para os demandantes do ponto de vista da implementação.

O açúcar era conhecido como uma das commodities mais protegidas do mundo33, cujo comércio envolvia grandes quantidades de subsídios à exportação, altas tarifas (tanto nas CE quanto nos EUA, entre outros mercados), importações

32 Parágrafos 329-335, do relatório do Órgão de Apelação WT/DS266/AB/R.33 Vaughan, Alexis, Sugar, trade and Europe: A discussion paper on the impact of European sugar

policies on poor countries, Sustain, The alliance for better food and farming, 2000; Pinazza & Alimandro, “Cana-de-Açúcar Alimento Bom e Doce, Agroanalysis - A revista de agronegócios da FGV - vol.23 abril/2003; Borrell and Pearce, Sugar: The Taste Test of Trade Liberalization, Centre for International Economics, 1999, apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit, p.64.

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preferenciais e quotas tarifárias, tornando seu preço extremamente volátil34. Há uma série de fatores que influenciam a cotação de uma commodity no mercado internacional, mas pode-se dizer que o principal é a quantidade ofertada. Estudos demonstraram a existência de forte relação entre a quantidade produzida (ofertada) de açúcar C comunitário e o preço do açúcar no mercado internacional. Quando a produção de açúcar C aumenta (e consequentemente suas exportações, já que o açúcar C não pode ser consumido no mercado doméstico das CE), o preço no mercado internacional tende a cair com o excesso de oferta. A própria Corte de Auditores (Court of Auditors) europeia35 observou que o aumento da exportação de açúcar C influenciava negativamente a cotação do açúcar no mercado internacional. Essa relação pode ser observada no gráfico36a seguir, onde fica clara a queda de preços no mercado internacional em face do aumento da produção de açúcar C, sobretudo nos anos de 1997 a 2001, e o aumento da cotação diante da diminuição na produção de açúcar C, em especial nos anos de 1993 a 1996.

34 Um estudo da UNCTAD revelou que o açúcar é a commodity cujos preços no mercado internacional eram mais voláteis. “(...) between 1980 and 1989 the price of sugar was the most volatile of all soft commodities”. UNCTAD – Commodity Year Book 1995 apud Netherlands Economic Institute (NEI), Evaluation of the common organisation of the market in the sugar sector, 2000, p.30”, apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 74.

35 “[…]and the world market price has been influenced by subsidized EU exports and high production of C sugar”. Court of Auditors Special Report No 20/2000, concerning the management of the common organization of the market for sugar, together with the Commission’s replies (pursuant to Article 248(4), second subparagraph, of the EC Treaty) (2001/C 50/01), apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., 76.

36 AQUINO, Christiane. O Regime de Açúcar das Comunidades Europeias e seus efeitos sobre o setor açucareiro brasileiro, p. 78, com dados dos estudos NEI e Eurostat.

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Fonte: Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 92

Da mesma maneira, o aumento, ao longo dos anos, do preço de intervenção do açúcar de quota europeu (A e B) – que também era exportado (com subsídios)37 quando ultrapassava os níveis de consumo do país-membro produtor – guardou relação com os preços do açúcar no mercado internacional. O aumento dos subsídios gerou um ciclo vicioso e perverso com consequências negativas para o mercado. Com a concessão de subsídios, a produção aumentou, gerando excesso de oferta. O excedente era exportado, o que, por sua vez, deprimia os preços. Esses efeitos sobre o mercado de açúcar foram reconhecidos pela Comissão Europeia38. Além disso, quanto maior o retorno

37 Cerca de 20% do açúcar de quota (A e B) é exportado com subsídios para países fora das CE. Netherlands Economic Institute (NEI), Evaluation of the common organisation of the market in the sugar sector, 2000, p.115.

38 “For some products (e.g. cereals 10%, butter 20%, whole milk powder 40%, beef 17%, sugar 17%, tobacco 9%) the EU export share in world trade is significant and increased exports due to price support puts downward pressure on world price levels”. Rainer, W., Economics of the Common Agricultural Policy, Directorate-General for Economic and Financial Affairs, European Commission, Economic Papers, August, 2004, apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit p. 79.

Gráfico 1: Cotação Internacional do Açúcar X Produção de Açúcar C nas CE

300

250

200

150

100

50

0

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003

4500

4000

3500

3000

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1000

500

0

Cotação média do açúcar refinado nomercado internacional (dólar/tonelada)

Produção de açúcar C (milhões detoneladas)

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do agricultor europeu com o cultivo de açúcar dos tipos A e B, maior era o seu incentivo para produzir açúcar C (excedente), cujos custos fixos eram cobertos pelos subsídios ao açúcar dos tipos A e B, tornando-o rentável para exportação.

O fato de que um produtor de altos custos como as CE39 tenha sido capaz não só de produzir para seu consumo doméstico, como também de exportar grandes quantidades de açúcar subsidiado ocasionou efeitos negativos sobre a cotação de açúcar no mercado internacional. O relatório encomendado pela própria Comissão Europeia sobre os efeitos da OCM de açúcar concluiu que sua estrutura de subsídios provocava instabilidade de preços e diminuía o número de parceiros comerciais no mercado internacional40. Além disso, o relatório concluiu que, na ausência do regime europeu de sustentação de preços, a cotação do açúcar do mercado internacional seria mais alta porque as CE não exportariam o produto, mas comprariam a maior parte da sua necessidade de consumo no mercado mundial41.

Estudos desenvolvidos por organizações internacionais demonstram que, sem os subsídios europeus ao açúcar, os preços internacionais do produto cresceriam significativamente. Para o Banco Mundial, a elevação dos preços seria da ordem de 40%42. A

39 “[…] sugar prices within the EC since 1984 have been two to three times higher than the world market price”. “When compared with refined cane sugar the EC is not competitive, with EC average production costs a factor 1.8 to 2.3 higher than major exporters of cane sugar”. Netherlands Economic Institute, Evaluation of the Common Organization of the Market in the Sugar Sector, 2000 P. 85 e P. 121. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit. p.79.

40 Netherlands Economic Institute, Evaluation of the Common Organization of the Market in the Sugar Sector, 2000 apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit. p.80.

41 “In the absence of the CMO Sugar (all other things equal), the world market price would be higher, because the EC would not export but buy most of its domestic consumption needs on the world market”. Ibid, p. 81 (grifo nosso).

42 “[…] the global welfare gains of removal of all trade protection are estimated to total as much as $4.7 billion a year. World sugar prices would increase by as much as 40 percent, while sugar prices in countries that heavily protect their markets would decline”. Mitchell, Donald, Sugar

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UNCTAD calculou que a cotação do açúcar se deprecia entre 5% e 17% em consequência das distorções introduzidas pelo regime das CE43. A Organização Não Governamental (ONG) Oxfam também elaborou relatório que demonstra os efeitos negativos do regime de açúcar comunitário para os PEDs. Segundo o relatório, os subsídios europeus não só depreciam o valor que esses países poderiam ganhar com suas exportações correntes, mas também diminui as chances de expansão para terceiros mercados, que compram o açúcar subsidiado europeu44.

As exportações europeias subsidiadas diminuem a renda dos produtores desses países não apenas por meio da depreciação da cotação do produto, mas também devido ao deslocamento das exportações de países competitivos em terceiros mercados. São países que têm na indústria açucareira um dos principais setores da economia, fonte significativa de renda e empregos.

Na opinião da Oxfam International, a OCM europeia de açúcar prejudicava os países pobres de quatro modos:

a) Restringia o acesso ao mercado europeu por meio de altas tarifas de importação ao açúcar refinado. Mesmo com acordos preferenciais com os países ACP para importação do açúcar bruto, o acesso real é muito limitado porque apenas 1545 das 77 ex-colônias beneficiam-se com os

policies opportunity for change, The World Bank policy research working paper, nº. WPS 3222, 2004, p. 2. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit. p. 81

43 UNCTAD, Prospects For The World Sugar Economy In The Light Of The Uruguay Round Agreements, 1996. apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 81.

44 “If there were no protectionist sugar regime in Europe, they [Brazil, Thailand and Australia] would meet a substantial part of the additional sugar demand in international markets. […] The EU regime reduces the export opportunities for these countries and depresses the prices they could get – resulting in diminished earnings of much-needed foreign exchange”. OXFAM INTERNATIONAL, The Great EU Sugar Scam. How Europe’s Sugar Regime is devastating livelihoods in the developing world. August 2002, p. 23. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 80.

45 Dentre os 77 países ACP, 19, em tese, poderiam beneficiar-se do sistema de preferências comunitário, a saber: Barbados, Belize, Congo, Costa do Marfim, Fiji, Guiana, Jamaica, Madagascar, Malaui, Ilhas Maurício, São Cristóvão e Nevis, Quênia, Suazilândia, Suriname, Tanzânia, Trinidad

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altos preços do mercado europeu e desses 15, apenas 3 são PMDRs (Madagascar, Malaui, e Tanzânia);

b) Subtraía terceiros mercados dos países pobres, e mais competitivos, exportadores de açúcar, ao promover artificialmente as exportações europeias por intermédio de subsídios. A quantidade de açúcar exportada pelas CE para os PMDRs em muito superava a quantidade importada, pelo bloco, originária dessa mesma categoria de países. Em 2001, a diferença foi de cerca de 12 (doze vezes). Foram importadas 72 mil toneladas de 4 PMDRs (Madagascar, Malaui, Tanzânia e Zâmbia46) e exportadas 854 mil toneladas para 39 PMDRs47. Dessa maneira, países competitivos na produção de açúcar, sejam PEDs como o Brasil, ou PMDRs, como o Moçambique48, poderiam ocupar o espaço dos seis milhões de toneladas anuais de açúcar, exportadas pelas CE acima dos seus compromissos na OMC. Países africanos, como Mauritânia, Argélia e Nigéria, que juntos importaram

e Tobago, Zâmbia, Zimbábue. Apesar de terem assinado o Protocolo inicial, Uganda, Quênia, Zâmbia e Suriname não obtiveram ou não renovaram quotas ao longo dos anos, ou ainda perderam o direito de tê-la por não conseguir preenchê-las em algum momento. Por isso, os efetivos beneficiários do Protocolo de açúcar, são, em verdade, apenas 15. Mitchell, Donald, Sugar policies opportunity for change, The World Bank policy research working paper, nº. WPS 3222, 2004, p.22. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit, p. 51.

46 A Zâmbia fez, inicialmente, parte do Protocolo de Açúcar, quando da assinatura da Convenção de Lomé em 1975, mas ao longo das sucessivas renovações não conseguiu preencher sua quota, perdendo-a, mas conseguiu fazer parte do Special Preference Sugar (SPS) exportando 13.876 toneladas ao ano (valor de 2001/2002). Dados da LMC, Review of Sugar Policies in Major Sugar Industries, Transparent and Non-Transparent or Indirect Policies, prepared for American Sugar Alliance, Janeiro de 2003, p. 30. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 91.

47 Oxfam International, The Great EU Sugar Scam. How Europe’s Sugar Regime is devastating livelihoods in the developing world. August 2002, p. 24, apud, F.O.Licht´s International Sugar and Sweetener Report, 2002. apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 91.

48 “Several LDCs, such as Mozambique, Malaui and Zambia, are among the lowest cost producers of sugar in the world but Europe’s regime destroys their ability to reap much of the potential benefits of that advantage”. Oxfam International, The Great EU Sugar Scam. How Europe’s Sugar Regime is devastating livelihoods in the developing world. August 2002, p. 23. apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 91.

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1,04 milhão de toneladas de açúcar europeu em 200149, poderiam ter comprado essa quantidade de vizinhos africanos cuja economia depende, significativamente, do setor açucareiro. Vale ressaltar que a produção de açúcar de beterraba nos países industrializados é altamente capital-intensiva. Dessa maneira, se a quantidade de açúcar que as CE exportam com subsídios fosse produzida em um PED, seria a custos mais baixos e com maior uso de mão de obra. Em média, a agricultura representa 34% do PIB e 69% dos empregos em países pobres, nas CE, corresponde a apenas 5,3% e 1,7% respectivamente50;

c) Impedia que os próprios países ACP agreguem valor ao seu açúcar, porque as CE não importam açúcar refinado, apenas na forma bruta51. Ao importar exclusivamente açúcar bruto das ex-colônias e bloquear as importações de açúcar refinado, as CE frustram as tentativas de desenvolvimento da indústria de refino em países pobres. A experiência em Moçambique é um bom exemplo52. Esse prejuízo torna-se injustificável quando

49 F.O. Licht International, World Sugar Yearbook, 2001. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 91.50 Eurostep Dossier on CAP & Coherence, European Solidarity Towards Equal Participation of

People, 199, p. 16. apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 91.51 Alguns países ACP tentaram desenvolver unidades para refino de açúcar para agregar valor ao

produto final a ser exportado, contudo, essas iniciativas não obtiveram resultado satisfatório em decorrência, entre outros fatores, das altas tarifas de proteção ao mercado comunitário e do deslocamento das exportações das ex-colônias em terceiros mercados “inundados” pelo excedente comunitário. Oxfam International, The Great EU Sugar Scam, 2002, p. 20. apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 92.

52 MOSSE, M. Interviews with Sugar Cane Workers in Mozambique, Oxfam International, 2002. apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 92. Moçambique possuía infraestrutura para refino de açúcar antes da guerra civil, terminada em 1992. Sua reabilitação, contudo, tem sido difícil em decorrência, entre outros fatores, da impossibilidade de exportar açúcar refinado para o mercado europeu, que só importa açúcar bruto. Mesmo se quisesse exportar na forma bruta, não poderia, porque apesar de ser um país ACP, não faz parte do Protocolo de Açúcar nem de qualquer outro esquema de exportação preferencial para as CE, única maneira de penetrar no

Solucionar controvérsias com resultados concretos: o caso dos subsídios do açúcar contra as CE

141

se verifica que o mercado internacional de açúcar para os países europeus é considerado residual pela própria Comissão Europeia, ou seja, de nenhuma importância para a economia dos Estados-membros53;

d) Depreciava os preços internacionais do produto54 e, como consequência, diminui a renda e a fonte de divisas geradas pelas exportações de açúcar dos países pobres e em desenvolvimento. Já em 1986, o Banco Mundial alertava que “as políticas açucareiras europeias causaram aos PEDs uma perda de receitas da ordem de US$ 7,4 bilhões e aumentaram, em cerca de 25%, a instabilidade dos preços55”.

Constata-se que a liberalização total do mercado de açúcar seria benéfica até mesmo para os países ACP que mais exportam para as CE, como as Ilhas Maurício ou Suazilândia. À primeira vista, com a diferença entre os altos preços do mercado europeu e os baixos preços do mercado internacional, a liberalização pareceria abater as economias desses países. Contudo, com a saída da média de seis milhões de toneladas exportadas anualmente pelas CE à custa de subsídios, sobraria mais espaço no mercado internacional para o açúcar dos países

mercado europeu, já que as tarifas consolidadas são muito altas. O setor açucareiro é o que mais emprega mão de obra em Moçambique. São 23 mil empregos diretos e de 8 a 10 mil indiretos. Se a indústria de açúcar refinado conseguisse se reabilitar, calcula-se que o número de empregos subiria para 40 mil. Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 92.

53 “[...] despite the relatively large percentage of exports, EC appears to treat the world sugar market as a residual market”. Netherlands Economic Institute (NEI), Evaluation of the common organization of the market in the sugar sector, 2000, página 36. Apud Cf. AQUINO, Christiane, op. cit., p. 92.

54 Com a retirada dos subsídios à exportação, o aumento do preço do açúcar no mercado internacional seria de 3.3% e com a retirada do apoio doméstico, de 1.6%. Dioa, X., Somwaru, A., and Roe, T., “A Global Analysis of Agricultural Trade Reform” in WTO Member Countries, Economic Development Center, Bulletin No. 01-1, University of Minnesota, 2001. apud Cf. Aquino, Christiane, op. cit., p. 93.

55 BANCO MUNDIAL, Relatório Sobre o Desenvolvimento Mundial 1986 – Crescimento e Políticas Agrícolas, 1986. Apud Cf. Aquino, Christiane, op. cit. p. 93.

Christiane Aquino Bonomo

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ACP. Como a liberalização elevaria os preços do açúcar em até 40%, compensaria as perdas em cerca de US$ 450 milhões para países com acesso preferencial56.

Antes do início da disputa na OMC, representantes dos países ACP encaminharam comunicações às Embaixadas brasileiras na Europa, na África e no Caribe que revelavam seu receio de que o questionamento do Brasil ao regime europeu de açúcar ameaçasse, de alguma maneira, suas exportações preferenciais para o mercado comunitário. Esse temor foi potencializado pelas declarações do então Comissário de Comércio europeu, Pascal Lamy, que, na ocasião, declarou: “(...) se o Brasil e a Austrália desestabilizarem o sistema europeu de subvenções, eles desestabilizarão o Protocolo de Açúcar57”.

Ciente da possibilidade de exploração política do contencioso, a chancelaria brasileira58 realizou gestões de esclarecimento junto às autoridades dos países ACP sobre o teor da demanda brasileira na OMC e convocou uma reunião com a presença de Ministros de Comércio dos países ACP em Brasília. Na oportunidade, o Governo brasileiro ressaltou que sua ação na OMC não buscava acesso ao mercado europeu, mas tão somente demandar o cumprimento das obrigações comunitárias para o setor açucareiro acordadas na RU e, consequentemente, não ameaçava os acordos preferenciais entre os países ACP e as CE.

Salientou também que reconhecia a importância da produção de açúcar para os países ACP, pois assinou na OMC

56 Mitchell, Donald, Sugar policies opportunity for change, The World Bank policy research working paper nº. WPS 3222, 2004, p. 2. Apud Cf. Aquino, Christiane, op. cit., p. 93.

57 Boletim Europeu de 08 de outubro de 2002. Apud Cf. Aquino, Christiane, op. cit. p. 126.58 O Governo brasileiro tratou de esclarecer o teor da sua demanda na OMC em pelo menos duas

oportunidades antes da abertura do painel. Primeiro em uma reunião realizada a convite do Secretariado dos países ACP em outubro de 2002 em Bruxelas e, em seguida, em um encontro em Brasília dos Ministros dos países ACP com o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, em fevereiro de 2003. Cf. Aquino, Christiane, op. cit. p. 128.

Solucionar controvérsias com resultados concretos: o caso dos subsídios do açúcar contra as CE

143

o waiver59 (renúncia de direitos) que autorizava o regime de preferências europeias em favor das ex-colônias europeias, abrindo exceção à regra de Nação Mais Favorecida (NMF)60. Ainda que contrariando parte dos interesses do setor sucroalcooleiro no Brasil, o Governo brasileiro considerou fundamental e estratégica, em termos políticos, a decisão de abrir mão da regra de NMF para possibilitar o acesso preferencial dos países ACP ao mercado europeu.

Apesar de ter assinado o waiver, o Brasil notou que, se as CE desejavam realmente promover um programa de ajuda ao desenvolvimento, deveriam fazê-lo com dinheiro do contribuinte europeu e não com o prejuízo causado pelo deslocamento de exportações competitivas de terceiros mercados, como as brasileiras. As CE poderiam importar o montante de açúcar que desejassem dos países ACP, refiná-lo e até mesmo exportá-lo com subsídios, mas dentro dos limites acordados na OMC. Dessa maneira, os compromissos europeus com o desenvolvimento de suas ex-colônias (assumidos por meio da Convenção de Lomé) estariam limitados às quantidades estabelecidas previamente no âmbito multilateral, deixando uma fatia do mercado aberta às exportações de países com maior competitividade na produção de açúcar, como o Brasil.

Após a adoção dos relatórios do Órgão de Apelação e do painel em 19 de maio de 2005, começou a contar o prazo razoável de tempo para as CE implementarem as recomendações do OSC. Assim, as partes do contencioso iniciaram negociações

59 O mecanismo de solicitação de waiver, que poderá ser concedido pela Conferência Ministerial da OMC em circunstâncias excepcionais, está descrito no Artigo IX.3 do Acordo de Marraqueche que estabelece a OMC.

60 O princípio da Nação Mais Favorecida (ou Most Favorable Nation) foi proposto para assegurar comércio não discriminatório entre os países e é um dos pilares do sistema GATT/OMC. Com base nele, qualquer vantagem atribuída a determinado Membro da OMC deve ser automaticamente atribuída aos outros Membros.

Christiane Aquino Bonomo

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com vistas a acordar a extensão de tal prazo. Como não houve acordo, as partes precisaram lançar mão da arbitragem prevista no Artigo 21.3 do ESC. O árbitro escolhido, A. V. Ganesan61, reuniu-se com as partes em 10 de outubro de 2005.

As CE pleitearam prazo de 19 meses e 12 dias62 para a plena implementação. O Brasil e os outros codemandantes sustentaram que a legislação europeia atual permitia o pleno cumprimento das recomendações do OSC em questão de semanas e pleiteou prazo razoável de seis meses e seis dias, ou seja, até 25 de novembro de 2005. O laudo arbitral foi emitido em 28 de outubro de 2005 e concedeu 12 meses e três dias, contados a partir da adoção do relatório de apelação, para que as CE implementassem as recomendações do OSC. Dessa maneira, ficou estipulado que as CE deveriam acomodar sua legislação com o fito de respeitar os limites quantitativos e orçamentários de subsídios à exportação de açúcar até 22 de maio de 2006.

Em 22 de junho de 2005, portanto algum tempo antes de expirar o prazo razoável para implementação, a então Comissária de Agricultura das CE, Mariann Fischer-Boel, apresentou projeto de reforma do regime açucareiro. Na reunião do OSC de 19 de junho de 2006, as CE afirmaram que, com a aprovação da reforma do regime europeu de açúcar e a consequente entrada em vigor dos novos regulamentos que reestruturariam o mercado europeu a partir de julho de 2006, as recomendações do OSC seriam implementadas e as CE deixariam de ser exportadora líquida e passariam a ser importadora líquida de açúcar nos próximos anos. Adicionalmente, as CE declararam que entrou em vigor no dia

61 Presidente da divisão do OA que examinou o caso.62 Todos os prazos contam a partir de 19 de maio de 2005, data da adoção pelo OSC dos relatórios

do contencioso.

Solucionar controvérsias com resultados concretos: o caso dos subsídios do açúcar contra as CE

145

seguinte ao fim do RPT, em 23 de maio de 2006, o Regulamento Nº 769/2006, que suspendeu a apresentação de pedidos de licença à exportação de açúcar C.

Essa medida, tomada em conjunto com a reforma do regime açucareiro europeu, daria conta, na visão das CE, das recomendações do OSC. Como os codemandantes dispunham apenas de previsões do funcionamento do regime e do comportamento do mercado europeu diante das novas regras aprovadas pelas CE, sobretudo no que diz respeito ao controle das exportações subsidiadas, preferiram resguardar seus direitos de retaliação por intermédio de um acordo de sequencing, adotado pelo OSC também em 19 de junho de 200663. Esse acordo assegurou que as partes envolvidas na disputa só passariam à eventual fase de retaliação após conclusão de painel de revisão (Artigo 21.5 do ESC).

O novo regime açucareiro europeu, em vigor desde 1º de julho de 2006, fez referências à necessidade de respeito às recomendações do OSC no contencioso do açúcar, ao tratar dos limites quantitativos/orçamentários de subsídios nos seguintes termos: “taking into account the commitments of the Community resulting from agreements concluded in accordance with Article 300 of the Treaty”64, “within the limits set by the EC’s commitments in the WTO”65; “in order to ensure compliance by the Community with its international commitments with regard to C sugar”66; “taking into account the commitments subscribed by Community within the WTO framework”67.

63 O formato do acordo já vinha sendo discutido entre as chancelarias dos codemandantes e representantes das CE semanas antes do fim do RPT.

64 Artigos 19.1; 19.3; 32 e 34 do Regulamento 318/2006. 65 Considerando 31 do Regulamento 318/2006.66 Considerando 43 e Artigo 44 (b) do Regulamento 318/2006.67 Considerando 13 do Regulamento Nº 967/2006.

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A nova estrutura do Regime Açucareiro Europeu foi moldada, sobretudo, pela edição de uma nova OCM de Açúcar – Regulamento Nº 318/2006, em substituição à anterior (Regulamento Nº 1260/2001). Trata-se do principal Regulamento aprovado pelas CE sobre a reforma do regime açucareiro europeu. O novo regime açucareiro europeu buscou igualar a soma da produção interna e das importações (ACP+EBA68) à demanda interna sob o preço de referência.

Os pontos mais importantes identificados para a implementação das recomendações do OSC são os seguintes: (i) Foi eliminada a proibição de vendas no mercado

interno do açúcar excedente (antigo açúcar C – Artigo 13 do regulamento anterior 1260/2001);

(ii) Foram criadas novas medidas para gerir esse açúcar excedente, agora chamado de açúcar extraquota (out-of- -quota sugar), conforme estabelecidas pelo Regulamento Nº 493/2006; e

A destinação do açúcar extraquota (Artigo12 do Regulamento Nº 318/2006), seria a seguinte: (i) Uso para processamento de certos produtos industriais

(açúcar industrial – Artigo 13 do Regulamento Nº 318/2006);

(ii) Carry-foward sem limite de quantidade, no todo ou em parte, para o ano seguinte (Artigo 14 do Regulamento Nº 318/2006); e

(iii) Abastecimento de regiões periféricas (outermost regions), conforme prevê o Regulamento Nº 247/2006).

(iv) Exportação, dentro dos limites da OMC69.

68 Importações preferenciais no âmbito do Protocolo de açúcar (Acordo de Cotonou) e da iniciativa “Everything But Arms” que busca liberalizar o acesso (livre de quotas e tarifas) dos produtos oriundos de PMDRs ao mercado europeu até 2010.

69 Artigo 12d do Regulamento Nº 318/2006.

Solucionar controvérsias com resultados concretos: o caso dos subsídios do açúcar contra as CE

147

No que respeita ao montante excedente (surplus amount) previsto no Artigo 15 do Regulamento Nº 318/2006:

(i) ficou estabelecida taxa adicional sobre açúcar extraquota que não cabe nas 3 categorias acima referidas porque não foi utilizado pela indústria, não foi carried-forward para o ano seguinte, mas foi retirado do mercado ou estocado pelo próprio produtor;

(ii) essa taxa deve ser suficientemente alta para impedir acumulação (Artigo 15.2 do Regulamento 318/2006); e

(iii) montante da taxa dependia de regra de implementação (Artigo 40.c e d), a qual foi adotada pelo Regulamento Nº 967/2006, que fixou a taxa em US$ 500 por tonelada70.

Com relação ao controle das exportações, o Regulamento Nº 318/2006 estabelece:

(i) em seu Artigo 32, reembolsos (refunds) dentro dos limites acordados; e

(ii) em seu Artigo 34, observância dos limites de volume assegurados com base nas licenças de exportação emitidas para os períodos de referência (“ensured on the basis of the export licences issued for the reference periods”).

O Regulamento Nº 951/2006 também dispõe sobre o controle das exportações e, em seu Artigo 9º, limita a emissão de licenças à exportação à quantidade e ao valor estipulados nos compromissos de redução de subsídios assumidos pelas CE perante a OMC. Porém, o mecanismo escolhido para tanto não é automático, tampouco uniforme. O referido Artigo outorga

70 Artigo 3.1 do Regulamento da Comissão Nº 967/2006.

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à Comissão Europeia a discricionariedade para: a) fixar uma porcentagem de aceitação dos pedidos; b) rejeitar os pedidos para os quais ainda não foram emitidos certificados de exportação; ou c) suspender a apresentação de pedidos por cinco dias úteis; ou, ainda, em caso de necessidade, d) suspender por mais tempo, de acordo com o procedimento previsto na Decisão 199/468/EC, que envolve o Comitê de Gestão do Açúcar, o Conselho Europeu e a Comissão Europeia. As três hipóteses só poderiam ser tomadas em caso de “risco de superação dos compromissos orçamentários ou quantitativos de exportação de açúcar”.

Ademais, o Artigo 19 do Regulamento Nº 967/2006 trata dos certificados de exportação para açúcar extraquota. Há referência aos “limites quantitativos à exportação sem restituições” e referência ao procedimento do Artigo 39 do Regulamento Nº 318/2006, o qual demanda decisão do Comitê de Gestão do Açúcar, do Conselho Europeu e da própria Comissão para aprovação das exportações. Na prática, as exportações de açúcar extraquota estão suspensas. Apenas em caso de a Comissão encaminhar proposta para o Comitê de gestão nesse sentido é que as mesmas poderiam ser permitidas. Há referência, contudo, na legislação para que as exportações de açúcar extraquota sejam contabilizadas para efeito de respeito aos limites da OMC.

Cada Estado-membro deverá comunicar à Comissão até o dia 15 de cada mês as quantidades de certificados de licença à exportação, o montante de açúcar a ser exportado em cada pedido e o montante da restituição à exportação (subsídios) correspondente.

Para o Brasil e os outros codemandantes, o aspecto mais importante da reforma do regime europeu de açúcar é o controle das exportações das CE em níveis compatíveis com

Solucionar controvérsias com resultados concretos: o caso dos subsídios do açúcar contra as CE

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seus compromissos. Nesse contexto, é de notória importância o funcionamento dos instrumentos elencados nos Artigos 9º do Regulamento Nº 951/2006 e 19 do Regulamento Nº 967/2006, que tratam, respectivamente, do controle quantitativo e orçamentário das exportações europeias de açúcar, descritos acima na seção 4.3.1 “Controle das Exportações”.

Em outubro de 2006, representantes dos três países codemandantes e das CE reuniram-se na sede da Comissão Europeia, em Bruxelas, para discutir os principais elementos do novo regime açucareiro europeu e monitorar seus efeitos. As diferenças mais significativas apontadas pela Comissão em comparação ao regime anterior foram: (a) o fim do açúcar C e da obrigatoriedade de que o açúcar fora de quota seja exportado; (b) a redução da produção de açúcar fora da quota (designado como out-of-quota ou non quota sugar); (c) a destinação do açúcar fora da quota prioritariamente ao mercado interno; e (d) a possibilidade de exportação desse açúcar fora da quota somente dentro dos limites da OMC e apenas após decisão formal da Comissão que fixe os volumes passíveis de exportação (Decisão 1999/468/EC, referida nos Artigos 12.d e 39 do Regulamento 318/2006).

Esse mecanismo é bastante distinto do adotado para as exportações de quota sugar, que se mantém inalterado na nova legislação. Pelo sistema vigente, para o açúcar dentro da quota, a Comissão realiza licitações quinzenais (tendering system), após discussão, no âmbito do Comitê de Administração do regime, dos volumes de pedidos de exportação com subsídios (refunds) que serão aceitos. Um sistema complementar permite a emissão de licenças fora do mecanismo de licitações, mas com vantagens inferiores para os exportadores, sendo, por isso, menos utilizado (seriam cerca de 10% das licenças). Assim, a Comissão assegurou os codemandantes que, atingidos os

Christiane Aquino Bonomo

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limites da OMC poderia facilmente controlar as exportações subsidiadas por meio da não abertura de novas licitações e, se necessário, suspensão da emissão de licenças para evitar redirecionamento dos pedidos para o mecanismo complementar. Os representantes europeus declararam que o açúcar excedente será destinado prioritariamente ao mercado interno (uso industrial, outermost regions – cerca de 70 mil toneladas anuais – ou carry-forward voluntário para a quota do ano seguinte) e a possibilidade de exportá-lo só poderá ser utilizada em caso de decisão da Comissão autorizando a exportação dentro de limites quantitativos dos compromissos comunitários assumidos na OMC. Ou seja, a Comissão declarou explicitamente que essa exportação, conforme determinado pelo OSC, será contada no limite de subsídios consolidado na OMC.

Não haveria previsão de autorizar exportações de açúcar fora da quota. O açúcar fora de quota que não fosse objeto de uma das opções mencionadas (uso industrial, outermost regions, carry forward ou exportação, se autorizada), será considerado açúcar excedente (surplus sugar) e estará sujeito a pagamento de taxa proibitiva de 500 € por tonelada, seção 4.3.10.

Como ao fim de cada mês, cada Estado-membro deverá comunicar a quantidade de açúcar efetivamente exportada em conformidade com os Artigos 18 do Regulamento Nº 951/2006 e 8 do Regulamento Nº 1291/2000, a Comissão não pôde mais alegar não saber quanto açúcar foi exportado e quantas licenças à exportação já foram emitidas71. De fato, de 23 de maio (data da entrada em vigor do Regulamento que suspende a exportação

71 Ver adicionalmente Artigo 17 do Regulamento Nº 951/2006, que deve ser lido em conjunto com o Artigo 33 do Regulamento Nº 318/2006.

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de açúcar C72) a setembro de 200673, as CE exportaram 440 mil toneladas de açúcar. Com a manutenção dessa média mensal, as CE passaram a, definitivamente, respeitar o limite de 1.273.500 toneladas/ano.

A disputa na OMC mostrou resultados satisfatórios aos Governos e setores privados dos países envolvidos. As reuniões periódicas entre codemandantes e representantes da Comissão Europeia (DG-Agri e DG-comércio) após a reforma do regime europeu de açúcar foram muito importantes para desenvolver relação de confiança mútua entre os codemandantes e as CE e para coleta de informações mais detalhadas sobre os estoques europeus de açúcar e o funcionamento do novo regime. Ao passo que as exportações europeias começaram a recuar, as exportações brasileiras iniciaram processo de expansão, sobretudo para os países do Oriente Médio. Como se pode notar da análise da tabela e do gráfico abaixo, as exportações brasileiras de açúcar e o preço médio do produto no mercado internacional têm subido consideravelmente desde o bem-sucedido desfecho do contencioso na OMC:

72 Regulamento da Comissão Europeia Nº 769/2006. 73 Dados apresentados pela Comissão Europeia por ocasião da reunião de outubro de 2006 com

os codemandantes em Bruxelas. Fonte: Coordenação-Geral de Contenciosos, Ministério das Relações Exteriores.

Christiane Aquino Bonomo

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Tabela 2: Exportações Brasileiras de Açúcar (toneladas e preço)

AnoAçúcar Variação (%) Preço Médio

Mil US$ Toneladas Valor Quant. US$/t Var. (%)

2006 6.166.960 18.870.133 57,4% 4,0% 327 51,3%

2007 5.100.437 19.358.900 -17,3% 2,6% 263 -19,4%

2008 5.482.965 19.472.458 7,5% 0,6% 282 6,9%

2009 8.377.818 24.294.090 52,8% 24,8% 345 22,5%

2010 12.761.683 27.999.821 52,3% 15,3% 456 32,2%

2011 14.940.115 25.356.973 17,1% -9,4% 589 29,3%

2012 12.844.868 24.342.295 -14,0% -4,0% 528 -10,4%

Fonte: Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. http://www.agricultura.

gov.br/internacional/indicadores-e-estatisticas/informes-de-produtos

Diante das novas circunstâncias com a retirada do excesso de açúcar subsidiado europeu do mercado internacional, o setor açucareiro brasileiro vem se beneficiando de preços mais altos no mercado internacional74 e de acesso a novos mercados. Entre

74 Agregue-se que parte do aumento dos preços do açúcar no mercado internacional decorre da sua vinculação aos mercados de etanol (consequentemente petróleo) e outras commodities energéticas utilizadas para a elaboração do produto, como o milho.

Gráfico 2: Exportações Brasileiras de Açúcar (toneladas e preço)

30.000.000

25.000.000

20.000.000

15.000.000

10.000.000

5.000.000

0

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Solucionar controvérsias com resultados concretos: o caso dos subsídios do açúcar contra as CE

153

2006 e 2012, as exportações brasileiras de açúcar expandiram em média 6 milhões de toneladas, alcançando quase 28 milhões de toneladas em 2010 e cotação recorde média de US$ 589 por tonelada em 2011.

155

Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e no Curso de Preparação à Carreira Diplomática do Instituto Rio Branco em Brasília. Iniciou a carreira diplomática na Divisão de Programas de Promoção Comercial do Itamaraty. Serviu como Secretário na Embaixada em Riad, na Delegação Permanente em Genebra e na Delegação Permanente junto à ALADI em Montevidéu. Subchefe da Divisão do Mercosul e da Divisão de Política Financeira do Itamaraty. Negociador de serviços e compras governamentais na OMC, Mercosul e ALCA. Foi Conselheiro na Embaixada em Washington e Chefe do Setor de Política Comercial, e Coordenador-Geral de Contenciosos do Itamaraty. Atualmente é

Ministro-Conselheiro na Embaixada em Londres, respondendo pelos Setores Comercial, Econômico e Financeiro.

o contencioso soBre pneus reformAdos nA omc:

umA importAnte vitóriA multilAterAl do BrAsil

Flavio Marega

157

1. introdução

Em 20 de junho de 2005, a União Europeia (UE) solicitou ao Brasil a realização de consultas para questionar as medidas brasileiras de proibição à importação de pneus

reformados1. O assunto foi levado à consideração da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), que, em 13 de dezembro de 2005, à luz dos fatos analisados, decidiu que eventual contencioso movido pela UE contra o Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre aquela proibição deveria ser defendida com base exclusivamente nos argumentos ambientais e de saúde pública.

Recorde-se que, desde o início dos anos 1990, o Brasil proibia a importação, tanto de pneus usados (inclusive carcaças utilizadas para reforma no País), como de pneus reformados. A exceção da abertura à importação de pneus remoldados provenientes do Mercosul, em 2004, decorreu da necessidade de o Brasil cumprir decisão do sistema de solução de controvérsias do bloco regional, em que o Uruguai questionara a proibição brasileira. No entanto, jamais houve qualquer modificação na convicção das autoridades de comércio exterior, ambientais e de saúde pública do Brasil de que tal restrição à importação é de interesse fundamental para a população brasileira. Nada mais

1 Os pneus reformados se subdividem em remoldados, recauchutados e recapados, segundo a quantidade de material novo agregado à carcaça do pneu no processo de reforma.

Flavio Marega

158

natural, portanto, que a CAMEX tenha decidido promover na OMC a defesa do direito de o Brasil manter tal proibição, por razões ambientais e de saúde pública, em face do questionamento da UE.

Em 17 de novembro de 2005, a União Europeia solicitou o estabelecimento de painel arbitral, no âmbito do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, para questionar as medidas brasileiras de proibição à importação de pneus reformados2. Ressalte-se que a proibição à importação de pneus usados, também em vigência no Brasil, não foi questionada pela UE e, portanto, não fez parte dessa disputa comercial na OMC3. Desde o estabelecimento do painel, em 20 de janeiro de 2006, foram percorridas todas as etapas do contencioso até a implementação pelo Brasil da decisão da OMC, conforme se demonstrará ao longo deste artigo.

Durante o contencioso, a UE apresentou o argumento central de que a proibição do Brasil à importação de pneus reformados constituía uma barreira ao comércio e se revestia de caráter protecionista da indústria nacional, não encontrando, portanto, respaldo legal nas normas multilaterais. Em sua defesa, o Brasil reconheceu que a proibição à importação de pneus reformados de fato era uma barreira ao comércio, mas invocou a exceção prevista no Artigo XX (b) do GATT 1994, dispositivo que faculta aos Membros da OMC a possibilidade de restringir o comércio com a adoção de medidas “necessárias para proteger a saúde e vida humana, animal ou vegetal”.

2 Brasil – Medidas Relativas à Importação de Pneus Reformados (DS332).3 As medidas questionadas pela UE foram: Decreto 4.592/2003, Decreto 3.919/2001, Decreto

3.179/1999, Portaria SECEX 14/2004, Portaria SECEX 17/2003, Portaria SECEX 2/2002, Portaria SECEX 8/2000, Portaria Interministerial MICT 3/1995, Portaria MICT 370/1994, Portaria DECEX 18/1992, Portaria IBAMA 138-N/1992, Portaria DECEX 8/1991, Resolução CONAMA 235/1998, Resolução CONAMA 23/1996, Leis 12.114/2004 e 12.381/2005 do Estado do Rio Grande do Sul e Decisão 22/2000 do Mercosul.

O contencioso sobre pneus reformados na OMC: uma importante vitória multilateral do Brasil

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A argumentação central da defesa apresentada pelo Brasil para justificar essa exceção perante a OMC (proibição à importação de pneus reformados) foi relativamente simples. Quando comparados com pneus novos, os pneus reformados são necessariamente produtos de ciclo de vida mais curto, gerados a partir das carcaças de pneus usados. Ademais: i) pneus de carros de passeio só podem ser reformados uma vez; ii) a importação de pneus reformados introduz no território nacional produtos em seu último ciclo de vida; iii) ao chegarem ao fim de sua vida útil, os pneus reformados importados aceleram o acúmulo de resíduos de borracha (pneu inservível) no Brasil; iv) o acúmulo, o transporte e a destinação de resíduos de pneus representam riscos graves à saúde pública e ao meio ambiente do País. O Brasil alegou, ainda, que a produção de pneus reformados no País era louvável, o que de fato vinha ocorrendo desde a década de 1950, desde que utilizadas como matéria-prima carcaças encontradas no território nacional. A importação de pneus reformados, ao contrário, introduzia no Brasil quantidades consideráveis e altamente indesejáveis de resíduos de borracha vulcanizada, material de manuseio extremamente complexo e difícil4.

Os resíduos de borracha vulcanizada apresentam caracte-rísticas singulares, a começar pela inviabilidade técnica e eco-nômica de serem reciclados grandes volumes, o que os distin-gue de outras importantes correntes de resíduos como vidro, metal e papel5. A geração adicional de resíduos de pneus decor-rente da importação de pneus reformados, portanto, mostrava--se incompatível com a capacidade de o Brasil assegurar-lhes

4 Somente em 2005, o Brasil tinha importado 10.5 milhões de pneus usados ao amparo de medidas liminares concedidas pela Justiça Federal, sendo a maior parte dessas importações proveniente da União Europeia.

5 À época do contencioso, estimava-se que eram gerados 40 milhões de pneus usados por ano no Brasil.

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destinação apropriada do ponto de vista ambiental e sanitário. A acumulação de grandes quantidades de resíduos de pneus configura grave ameaça ao meio ambiente e à saúde pública, sendo que a importação de pneus reformados acelerava artifi-cialmente a geração de tais resíduos no território brasileiro, já que só podem ser reformados uma vez, conforme mencionado. No entendimento do Brasil, portanto, esse comércio deveria so-frer restrições.

É necessário destacar, ainda, que para obter essa importante vitória ambiental e de saúde pública no contencioso dos pneus reformados, o Brasil teve que passar por rigorosos testes estabelecidos pela jurisprudência do Órgão de Apelação da OMC, quando se invoca a exceção do Artigo XX (Exceções Gerais). Isso em decorrência do fato de que a relação entre comércio e proteção do meio ambiente e da saúde pública – questão central na controvérsia dos pneus reformados – sempre despertou grande interesse dos Membros da OMC e de suas sociedades, mesmo antes da fundação daquela Organização, na época do GATT 1947. Assim, o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) enfrenta o desafio constante de buscar equilibrar de forma adequada os diversos interesses existentes em matéria ambiental e de saúde pública no âmbito do sistema multilateral de comércio.

Desde o início do caso, o Itamaraty coordenou os esforços da defesa brasileira no contencioso, em estreita e contínua colaboração com os órgãos governamentais com competência interna sobre as matérias objeto da disputa comercial (Casa Civil da Presidência da República, Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Desenvolvimento, Advocacia-Geral da União). Assim, o Governo brasileiro, amparado em sólida argumentação factual e jurídica, procurou demonstrar que a proibição à importação de pneus reformados

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era uma medida necessária à proteção do meio ambiente e da saúde pública, aplicada de forma consistente com as normas da OMC.

Como a argumentação brasileira perante o painel enfatizou essa necessidade de impedir a geração adicional e desnecessária de resíduos de pneus em território nacional, um dos pontos sensíveis para o Brasil nesse contencioso da OMC, embora não fizesse parte da demanda europeia, referia-se justamente à existência de importações de pneus usados, realizadas por meio de medidas liminares concedidas pela Justiça Federal. O Brasil procurou demonstrar ao longo da disputa que as liminares eram excepcionais, não representando a posição do Governo brasileiro – ou mesmo do Poder Judiciário nacional – e não afetando a eficácia da legislação brasileira de proibição da importação de pneus reformados e usados.

Outro tema que mereceu grande atenção na defesa brasileira, conforme acima mencionado, relacionava-se ao questionamento da UE quanto à abertura do mercado brasileiro aos pneus remoldados provenientes do Mercosul. O Brasil apontou, a respeito, que o tratamento específico conferido às exportações originadas dos países do Mercosul era fruto de decisão adotada pelo mecanismo de solução de controvérsias do bloco, encontrando-se plenamente justificado pelos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no processo de integração regional e pelas regras multilaterais relativas à conformação de Uniões Aduaneiras.

2. A disputA – pAinel

Após a solicitação da abertura da disputa pela UE, em 17 de novembro de 2005, o painel foi definitivamente estabelecido pelo Conselho Geral da OMC, em 20 de janeiro de 2006, sendo

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composto dos seguintes árbitros: Mitsuo Matsushita (Japão), Presidente, e Donald M. McRae (Canadá) e Chang-Fa Lo (Coreia do Sul).

A UE apresentou sua primeira petição, em 27 de abril de 2006, e o Brasil entregou sua primeira peça de defesa em 8 de junho. A primeira audiência com o painel ocorreu em Genebra, nos dias 5, 6 e 7 de julho. A delegação brasileira nessa primeira audiência contou, inclusive, com a ilustre presença da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em procedimento pouco comum nos tribunais da OMC, o que denotou a importância atribuída pelo Brasil à causa. Em 11 de agosto, Brasil e UE entregaram simultaneamente as suas segundas petições e, em 4 de setembro, realizou-se a segunda audiência com o painel.

2.1 A tese da UE

A União Europeia alegou que as medidas brasileiras que restringiam a importação de pneus reformados tinham caráter protecionista e feriam os Artigos I:1 (Tratamento NMF) ao discriminar os parceiros comerciais em favor do Mercosul, III:4 (Tratamento Nacional), visto que as liminares obtidas na justiça brasileira para importação de pneus usados favoreciam a indústria de reforma no Brasil, e XI:1 (Proibição a Restrições Quantitativas) e XIII:1 (Administração Não Discriminatória de Restrições Quantitativas) do GATT 1994.

2.1.1 Parte factual

As partes factuais das petições europeias foram dedicadas a três objetivos principais: a) diferenciar os pneus reformados dos pneus usados; b) equiparar os pneus reformados aos pneus novos; e c) apresentar a reforma de pneus como prática benéfica ao meio ambiente.

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Em relação ao primeiro objetivo, a UE apresentou, entre outros, o argumento de que no Sistema Harmonizado (HS) pneus reformados e pneus usados estão classificados em linhas tarifárias distintas. Ainda no que tange à distinção entre reformados e usados, os europeus mencionavam o fato de que os pneus reformados são produtos novos, mas não pneus novos, ao passo que os pneus usados são resíduos.

Para alcançar o segundo objetivo, a UE dedicou boa parte de sua primeira petição a discutir a durabilidade e a segurança dos pneus reformados, provavelmente persuadida de que este seria um dos principais pontos a serem explorados pelo Brasil. Para ilustrar a confiabilidade do produto, os europeus referiam--se, inclusive, ao uso de pneus reformados em aviões.

O Brasil, estrategicamente, não contestou a durabilidade e a segurança dos pneus reformados, de forma que a UE adotou nova linha de argumentação a partir da segunda petição, passando a concentrar seus esforços em demonstrar que os pneus usados no Brasil não podiam ser reformados e que haveria diversas alternativas ambientalmente adequadas para gestão adequada dos resíduos de pneus.

Ao defender a reforma como atividade ambientalmente correta, seu terceiro objetivo, a UE apresentou os dados que já eram previsíveis, tais como milhões de litros de petróleo e toneladas de borracha que são economizados anualmente devido às atividades de reforma. A UE, entretanto, não mencionou o fato de que todos esses benefícios eram apropriados exclusivamente pelo exportador de pneus reformados, já que para o importador restava apenas o pesado ônus de ter que lidar com quantidades adicionais de resíduos de pneus em seu território (no caso o Brasil), uma vez que os pneus reformados importados não poderiam ser reformados pela segunda vez.

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2.1.2 Parte jurídica

Os argumentos jurídicos das petições europeias tentaram demonstrar que as medidas brasileiras violavam as regras da OMC, além de procurarem rebater as defesas que o Brasil apresentou. Neste ponto, o cerne da tese europeia foi a alegação de que a importação de pneus usados, mesmo que para fins de reforma, neutralizava qualquer contribuição que o banimento das importações de reformados pudesse trazer para a proteção do meio ambiente e da saúde pública nacionais. A UE reforçou esse ponto alegando que os pneus usados disponíveis no território brasileiro não eram passíveis de reforma em função dos maus hábitos dos brasileiros, ao conduzir veículos, e das precárias condições das estradas e ruas nacionais, o que estaria por trás do enorme volume de carcaças importadas por meio de liminares por reformadores brasileiros.

A questão da “reformabilidade” dos pneus usados nacionais, portanto, passou a ser juridicamente fundamental visto que, do ponto de vista ambiental e de saúde pública, um pneu reformado importado e um pneu reformado domesticamente, a partir de carcaça importada, eram equivalentes. Isso descaracterizaria a eficácia da norma questionada, fazendo com que o Brasil falhasse no “teste da necessidade”, um dos parâmetros que guiaram os árbitros da OMC, ao analisarem uma defesa ao amparo do Artigo XX (b) do GATT 1994.

Outro ponto crítico, já anteriormente mencionado, referiu-se à abertura do mercado brasileiro aos pneus remoldados provenientes do Mercosul. A UE alegou que tal abertura era discriminação injustificável e arbitrária, capaz de descaracterizar a legitimidade da medida brasileira como providência de caráter ambiental.

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As perguntas formuladas pelos árbitros, tanto na primeira, como na segunda audiência, sugeriam que eles, por um lado, compreendiam a dimensão ambiental e de saúde pública relacionada aos resíduos de pneus gerados em território nacional, mas, por outro lado, identificavam algumas fragilidades da nossa defesa no quesito da contribuição das medidas para atingir seu objetivo.

2.2. A tese brasileira

Nas petições e pronunciamentos, o Brasil sustentou que: a) a importação de pneus reformados acelerava a geração de resíduos no país importador, uma vez que pneus já submetidos a um processo de reforma não poderiam ser reformados uma segunda vez; b) a acumulação de grandes quantidades de resíduos de pneus representava grave ameaça ao meio ambiente e à saúde pública; c) a proibição à importação de pneus usados e reformados era a única medida capaz de impedir a geração de quantidades de resíduos de pneus, além do mínimo necessário para atender as necessidades do País.

2.2.1 Parte factual

As petições do Brasil durante a etapa do painel ampararam-se na apresentação de dezenas de anexos, que demonstravam os malefícios do acúmulo de pneus em matéria de danos ao meio ambiente e à saúde pública. Munido de evidências científicas, produzidas em sua grande maioria pelas entidades ambientais e de saúde pública dos EUA e da UE, o Brasil logrou demonstrar em sua defesa que as medidas de restrição às importações se destinavam a evitar que se reproduzisse em território nacional a grave crise na gestão de pneus usados que existia – e ainda existe – nos EUA e Europa. À época do contencioso, estimava--se que os Estados Unidos tinham entre 2 e 3 bilhões de pneus

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inservíveis entulhados em aterros, empilhados ou espalhados ao ar livre no país. A UE apresentava números semelhantes em seu território. Além disso, quase 1 bilhão de pneus alcançavam o fim de sua vida útil anualmente, em todo o mundo, sendo dessa forma descartados. No caso do Brasil, estimava-se existirem 100 milhões de pneus inservíveis espalhados pelo País, além de outros 40 milhões que eram gerados anualmente em território nacional, conforme anteriormente dito. Esses números assustadores demonstram, portanto, que os resíduos de pneus são um problema não só do Brasil, mas de todos os países, em escala mundial.

O Brasil demonstrou que os pneus são produtos especiais, concebidos para serem duráveis e resistentes, ao mesmo tempo em que sua composição é feita de substâncias extremamente combustíveis e poluentes. Devido ao volume e às características especiais dos resíduos de pneus, sua gestão é extremamente difícil. O tratamento desse tipo de resíduo é caro, envolve riscos ambientais e não garante sua total eliminação. Assim, argumentou o Brasil, os países desenvolvidos estimulavam exportações de pneus usados e reformados, como forma de reduzir o volume de resíduos de pneus gerados em seus territórios. De fato, exportações de pneus usados e reformados não somente era uma alternativa válida para a destinação final de resíduos de pneus, como essa “opção” também aparecia em estatísticas oficiais, ao lado de outras formas alternativas para a destinação final, como reciclagem, recuperação de energia ou aterragem.

O Brasil demonstrou que: i) não havia métodos seguros, adequados e econômicos para a destinação de grandes volumes de resíduos de pneus; ii) aterros ou armazenamento de pneus em pilhas não eram método nem seguro, nem ambientalmente sustentável; iii) a recuperação energética através da incineração e cogestão em fornos de cimenteiras e instalações semelhantes

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sempre produzia emissões de toxinas e substâncias cancerígenas, prejudiciais ao meio ambiente e à saúde pública. Com relação à reciclagem, o Brasil elucidou que todas as opções de reciclagem e reutilização eram limitadas, de alto custo, e frequentemente ineficazes. E mesmo que todas essas opções fossem adotadas conjuntamente, o que de fato já ocorria no Brasil, elas não eram capazes de eliminar os problemas ocasionados pelo acúmulo inevitável de pneus.

O Brasil demonstrou, ainda, que a problemática de pneus usados acumulados ao ar livre também constituía preocupação central para as autoridades de saúde pública no Brasil. Em primeiro lugar, comprovou que o comércio de pneus – e em especial de pneus usados – era uma das principais causas da disseminação de doenças em território nacional. Isso porque os pneus descartados no ambiente são o habitat ideal para mosquitos transmissores de doenças graves, como dengue e febre amarela. Outros riscos à saúde humana derivam, por exemplo, da contaminação do solo e do ar resultante dos frequentes incêndios que ocorrem nos locais de armazenamento de pneus.

2.2.2. Parte jurídica

Na parte jurídica, o Brasil alegou que: a) as restrições à importação de pneus reformados eram justificadas pelo Artigo XX (b) do GATT, por serem as medidas necessárias à proteção do meio ambiente e da saúde pública; b) a abertura ao Mercosul não representava discriminação injustificável ou arbitrária, visto que a proibição fora originalmente estabelecida erga omnes, e só depois da decisão do mecanismo de solução de controvérsias regional ocorreu a abertura para o Mercosul; c) a liberação das importações de pneus remoldados provenientes do Mercosul não feria o princípio da “Nação Mais Favorecida” porque o bloco regional constituía uma União Aduaneira.

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Para justificar a proibição de importação de pneus reformados com base no Artigo XX(b) do GATT, a medida brasileira deveria passar pelos seguintes testes que foram sendo estabelecidos pelo Órgão de Apelação em disputas anteriores nas quais o referido artigo foi invocado:

i) comprovação da existência de riscos a serem evitados (1º teste);

ii) adequação da medida ao objetivo da política pública (2º teste);

iii) demonstração da necessidade da medida (3º teste), o que implica comprovação da:

• importância do objetivo almejado;

• contribuição da medida para alcançar esse objetivo;

• inexistência de alternativas menos restritivas ao comércio;

iv) comprovação de que a medida não constitui discrimi-nação arbitrária/injustificável ou restrição disfarçada ao comércio internacional (4º teste).

A respeito, recorde-se que até o contencioso dos pneus apenas um caso fora plenamente justificado pelo Art. XX, na disputa dos EUA contra a UE sobre a proibição da importação de produtos contendo amianto6.

Com o objetivo de superar a principal fragilidade da defesa brasileira, qual seja, as importações de usados por meio de liminares, o Brasil adotou duas estratégias: a) tentar persuadir o painel de que essas liminares eram cada vez menos numerosas e que, em pouco tempo, essa “brecha” seria fechada, seja por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, seja pela consolidação

6 European Communities – Measures Affecting Asbestos and Products Containing Asbestos (DS 135).

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da jurisprudência favorável ao Governo brasileiro no nível do Tribunais Regionais Federais; e b) demonstrar por meio de estudo econômico que, mesmo enfraquecida pelas importação de usados, a proibição das importações de reformados contribuía com a política de proteção ao meio ambiente e à saúde pública, ao evidenciar que quantidades adicionais de pneus e resíduos de borracha deixaram de ingressar no Brasil.

2.3. Relatório do painel

Conforme anteriormente mencionado, ao passar por rigorosos testes estabelecidos pela própria jurisprudência da OMC, que foram criados ao longo dos anos justamente para dificultar que a exceção prevista no Artigo XX do GATT 1994 fosse utilizada para impor restrições arbitrárias e injustificadas ao comércio internacional, o Brasil logrou superar todas as etapas, sendo que o painel assim decidiu:

1º Teste:

A. Comprovação da existência de riscos à saúde e ao meio ambiente (acúmulo).

• O painel concluiu que o acúmulo de resíduos de pneus favorece a propagação de doenças transmitidas por mosquitos e acarreta riscos de incêndios nocivos à saúde e ao meio ambiente;

• O painel considerou, ainda, que nem mesmo a adoção das melhores técnicas de gestão de resíduos de pneus é suficiente para eliminar essas ameaças.

B. Comprovação da existência de riscos à saúde e ao meio ambiente (transporte).

• O painel concluiu que doenças transmitidas por mosquitos são disseminadas por intermédio do transporte de resíduos de pneus;

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• O painel reconheceu que o transporte de resíduos de pneus para instalações onde se processa a destinação final dos mesmos representa, por si só, um risco à saúde.

C. Comprovação da existência de riscos à saúde e ao meio ambiente (destinação).

• O painel concluiu que os métodos aptos a destinar grandes volumes de resíduos de pneus, como o depósito em aterro e a queima em cimenteiras, causam riscos à saúde e ao meio ambiente;

• O painel constatou, ainda, que alternativas de destinação consideradas menos perigosas (e. g. uso de resíduos de pneus na engenharia civil e confecção de objetos de borracha), além de serem incapazes de destinar volumes significativos de resíduos, podem trazer igualmente ameaças à saúde e ao meio ambiente;

• O painel reconheceu, portanto, que a UE não identificou qualquer alternativa de destinação de pneus que não implicasse riscos ao meio ambiente e à saúde humana.

2º Teste:

A. Adequação da medida ao objetivo da política.

• O painel reconheceu que o Brasil visou proteger a saúde pública e o meio ambiente ao adotar a proibição de importação de pneus reformados;

• O painel concluiu que a proibição de importação de pneus reformados é parte da política brasileira de proteção à saúde pública e ao meio ambiente.

3º Teste:

A. Demonstração da necessidade da proibição (importância e contribuição).

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• O painel concluiu que a proibição de importação de pneus reformados é necessária porque:

- O objetivo de proteger a saúde e a vida humana de doenças letais, como dengue, febre amarela e malária, é vital e de máxima importância;

- A medida reduz a exposição da população brasileira aos riscos oriundos do acúmulo, transporte e destinação de resíduos de borracha.

B. Demonstração da necessidade da proibição (vida útil e “reformabilidade”).

• O painel constatou que todos os tipos de pneus reformados (isto é, para veículos de passeio, ônibus, caminhões, aeronaves) têm, por definição, vida útil menor que a de pneus novos;

• O painel reconheceu, também, que os pneus usados no Brasil servem para a reforma e, mais que isso, têm sido reformados em grande quantidade, contribuindo, assim, para a redução do número de carcaças geradas no País.

C. Demonstração da necessidade da proibição (inexistência de alternativas à proibição).

• O painel concluiu que esquemas de coleta e destinação de pneus, como os instituídos pela Resolução CONAMA 258/1999 e pelo Programa “Paraná Rodando Limpo”, não constituem alternativas à proibição de importações porque não eliminam os riscos associados ao transporte e à destinação final de resíduos de pneus.

4º Teste:

A. Aplicação da medida (exclusão do Mercosul)

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• O painel decidiu que a exclusão do Mercosul da proibição de importação de pneus remoldados não constitui discriminação arbitrária/injustificável ou restrição disfarçada ao comércio porque:

• O Brasil abriu seu mercado aos sócios de integração apenas para cumprir decisão de tribunal internacional;

• Pequenos volumes de pneus remoldados entram no território nacional em função dessa abertura.

B. Aplicação da medida (importações de pneus usados por meio de liminares)

• O painel reconheceu os esforços do Governo brasileiro para impedir as importações de pneus usados autorizadas por medidas judiciais;

• O painel considerou, no entanto, que as importações de carcaças constituem discriminação injustificada uma vez que prejudicam significativamente o objetivo do Brasil de proteger o meio ambiente e a saúde pública contra os malefícios do acúmulo, transporte e destinação de resíduos de pneus;

• O painel concluiu, ainda, que as importações de carcaças como matéria-prima para o setor brasileiro de reforma constituem restrição disfarçada ao comércio internacional, na medida em que beneficiam esse em detrimento dos exportadores europeus de pneus reformados.

Conclusão geral do painel

Em síntese, o painel decidiu que a proibição de importação de pneus reformados era necessária à proteção do meio ambiente e da saúde pública no Brasil, mas que, para ser mantida, deveria: i) ser aplicada em conjunto com a proibição plena das importações

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de carcaças; ii) ser acompanhada de limitação das importações de pneus remoldados do Mercosul nos níveis correntes (164 mil pneus, em 2006).

As Partes do contencioso tiveram até o dia 13 de agosto de 2006 para apelarem da decisão do painel. Diante do conteúdo amplamente favorável às posições apresentadas pelo País, o Brasil anunciou sua intenção de não recorrer ao Órgão de Apelação. Já a UE, ao contrário, anunciou que recorreria à apelação, levando a disputa para a etapa seguinte do caso.

3. A disputA – ApelAção

À luz das decisões do painel acima descritas, a UE decidiu levar o contencioso à etapa de apelação, em 3 de setembro de 2007, questionando diversas conclusões estabelecidas pelos árbitros. Após a submissão das respectivas petições, a audiência da apelação realizou-se em 15 e 16 de outubro de 2007, quando os participantes e terceiras partes pronunciaram-se oralmente. Os árbitros presentes à audiência de apelação foram Abi-Saab (Egito), Presidente, Luiz Olavo Batista (Brasil) e Yasuhei Taniguchi (Japão). O relatório do Órgão de Apelação (OA) da OMC foi divulgado em 3 de dezembro de 2007 e manteve as principais determinações do painel, que acolheram amplamente os argumentos ambientais e de saúde pública apresentados pelo Brasil. O OA reforçou o entendimento do painel de que a proibição de importação de pneus reformados adotada pelo Brasil era medida necessária à proteção da saúde humana e do meio ambiente, uma vez que produzia contribuição real e efetiva para esse objetivo.

O OA também concordou com o painel no sentido de que a proibição de importação de pneus reformados só poderia ser mantida caso o Brasil eliminasse as importações de pneus

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usados, viabilizadas pelas autorizações judiciais (liminares) obtidas por reformadores nacionais. Na visão do Órgão de Apelação, a situação à época, em que reformadores nacionais tinham acesso a carcaças importadas, configurava discriminação injustificável e arbitrária, além de restrição disfarçada ao comércio internacional.

No que se refere à permissão dada pelo Brasil para as importações de pneus remoldados provenientes do Mercosul, o OA reverteu o entendimento do painel de que essa abertura não constituiria nem discriminação arbitrária ou injustificável, nem restrição disfarçada ao comércio internacional, em função dos pequenos volumes de pneus remoldados importados dos parceiros de integração. Segundo o OA, as quantidades importadas não eram critério relevante para a definição da natureza injustificável ou arbitrária de uma discriminação no contexto do caput do Artigo XX do GATT 1994.

Assim, para dar cumprimento às determinações do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, o Brasil deveria: (a) eliminar as importações de pneus usados; e (b) tornar o tratamento das importações de pneus remoldados provenientes do Mercosul justificável à luz do caput do Artigo XX. Caso não adotasse medidas capazes de atender a essas duas condições, o Brasil deveria abrir seu mercado às importações de pneus reformados provenientes de todo o mundo ou sofrer retaliações comerciais da UE.

Com o objetivo de atender à primeira condição supramencionada, em 22 de setembro de 2006, o Presidente da República encaminhou ao Supremo Tribunal Federal, por intermédio da Advocacia-Geral da União, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 101), que pleiteava a cassação de todas as autorizações judiciais (decisões interlocutórias, sentenças e acórdãos) concedidas a

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reformadores nacionais para a importação de pneus usados. A relatora do processo foi a Ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha. Ainda sobre o tema das importações de pneus usados, a Casa Civil da Presidência da República e os demais órgãos envolvidos na matéria analisou a necessidade de apresentar Medida Provisória que elevasse ao status de lei ordinária a proibição das importações de pneus usados e reformados.

Quanto às importações de pneus remoldados do Mercosul, a solução encontrada por ocasião da circulação do relatório do painel – a imposição de quotas – não mais atendia aos parâmetros estabelecidos pelo OMC. Em função dos termos do relatório do OA, portanto, seria necessário também fechar o mercado brasileiro para as importações de pneus remoldados do Mercosul ou adotar política regional comum sobre resíduos de pneus que envolvesse a proibição de importações de pneus usados e reformados extrazona por todos os Estados-partes do bloco. Mesmo esta segunda rota de implementação, no entanto, poderia ser considerada insuficiente, em eventual Painel de Revisão (Artigo 21.5 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias), para atender aos critérios estabelecidos pelo Órgão de Apelação.

3.1. Questionamentos da UE e principais conclusões do Órgão de Apelação

3.1.1. Teste da Necessidade

A. Contribuição (Interpretação Jurídica)

Argumento comunitário: O painel empregou interpretação jurídica incorreta ao analisar a contribuição da medida brasileira para o objetivo perseguido, uma vez que analisou apenas a “contribuição potencial” da medida, ao invés de verificar quantitativamente seu impacto real.

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Conclusão do Órgão de Apelação: O painel adotou a correta interpretação das normas e precedentes relevantes. Quantificação não é pré-requisito para a análise da contribuição da medida. A proibição de importação é elemento-chave da estratégia abrangente adotada pelo Brasil para lidar com resíduos de pneus.

B. Alternativas (Interpretação Jurídica)

Argumento comunitário: O painel empregou interpretação jurídica incorreta ao definir o conceito de “alternativa” à proibição de importação, restringindo-se a analisar as medidas de não geração (inspeções veiculares periódicas, proibição de importação de pneus usados, compras governamentais de pneus reformados) e ignorando medidas relacionadas à gestão de resíduos.

Conclusão do Órgão de Apelação: A interpretação jurídica do painel sobre o conceito de “alternativa” foi correta, uma vez que parte da definição adequada do objetivo perseguido (“reduzir ao máximo possível os riscos associados ao acúmulo de pneus”). Além disso, o painel analisou tanto as medidas de não geração quanto as de gestão indicadas pelas CE.

C. Análise dos Fatores Relevantes (Interpretação Jurídica):

Argumento comunitário: O painel cometeu erro jurídico ao não sopesar (“weighing and balancing”) os diversos fatores relevantes do teste da necessidade (importância do objetivo; contribuição; restrição ao comércio; existência de alternativas).

Conclusão do Órgão de Apelação: O painel levou em conta todos os fatores relevantes e empreendeu análise qualitativa de seu peso relativo, atingindo a conclusão acertada de que a medida brasileira é necessária.

D. Contribuição (Análise Objetiva dos Fatos – Artigo 11 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias)

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Argumento comunitário: O painel distorceu ou ignorou provas relacionadas à contribuição da medida ao objetivo de proteger a saúde e o meio ambiente, em particular aquelas referentes à reformabilidade dos pneus usados no Brasil.

Conclusão do Órgão de Apelação: O painel baseou-se nas provas constantes dos autos e realizou análise criteriosa dessas provas. A medida brasileira produzia contribuição real e significa-tiva para a proteção do meio ambiente e da saúde pública.

E. Alternativas (Análise Objetiva dos Fatos – Artigo 11 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias)

Argumento comunitário: O painel distorceu ou ignorou provas relativas aos métodos de destinação final de pneus, em especial o coprocessamento em cimenteiras.

Conclusão do Órgão de Apelação: O painel analisou de forma cuidadosa e adequada os diversos métodos de destinação final de pneus (aterro, estocagem em pilhas, incineração em cimenteiras e recuperação de material) sugeridos pelas CE como “alternativas” à proibição de importação. A análise objetiva das provas levou o painel a concluir corretamente que os métodos sugeridos não constituíam “alternativas razoáveis” porque eles próprios apresentavam riscos à saúde e ao meio ambiente. Além disso, os métodos de destinação menos nocivos à saúde e ao meio ambiente apresentavam custos proibitivos.

3.1.2. Caput do Artigo XX

A. Importações de Pneus Remoldados do Mercosul

Argumento comunitário: O painel cometeu erro jurídico ao determinar que as importações de pneus remoldados provenientes do Mercosul não constituíam nem discriminação arbitrária e injustificável, nem restrição disfarçada ao comércio internacional.

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Conclusão do Órgão de Apelação: O painel errou ao considerar a pequena quantidade de pneus remoldados importados pelo Brasil do Mercosul como fato relevante para a análise do caput do Artigo XX. As importações provenientes dos sócios de integração constituíam discriminação arbitrária ou injustificável, além de restrição disfarçada ao comércio internacional.

B. Pneus Usados Importados com Base em Autorizações Judiciais

Argumento comunitário: O painel cometeu erro jurídico ao determinar que as importações de pneus usados, por meio de liminares, para utilização como matéria-prima pelos reformadores brasileiros não constituíam discriminação arbitrária e que constituíam discriminação injustificável e restrição disfarçada ao comércio internacional somente na medida em que os elevados volumes importados comprometessem significativamente os objetivos da medida brasileira questionada.

Conclusão do Órgão de Apelação: O painel errou ao considerar em sua análise a quantidade de pneus usados importados como fato relevante para a análise do caput do Artigo XX. As importações de pneus usados viabilizadas por medidas judiciais constituíam discriminação arbitrária ou injustificável, além de restrição disfarçada ao comércio internacional, independentemente de seu volume.

3.1.3. A exceção do Mercosul e as alegadas violações dos Artigos I e XIII do GATT 1994

O OA não analisou as alegadas violações aos artigos acima uma vez que o pedido comunitário de revisão da economia processual exercida pelo painel foi condicionado à manutenção das suas determinações quanto à compatibilidade da exceção para o Mercosul com o caput do Artigo XX.

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Os relatórios do painel e do OA foram adotados na reunião do Órgão de Solução de Controvérsias de 17 de dezembro de 2007.

4. A disputA – implementAção

Em 15 de janeiro de 2008, o Brasil informou à OMC que pretendia dar cumprimento às recomendações do Órgão de Solução de Controvérsias, mas que, em virtude da complexidade da matéria, precisaria do “período razoável de tempo” previsto pelo Artigo 21.3(c) do Entendimento sobre Solução de Controvérsias para corrigir a aplicação da proibição de importação de pneus reformados.

Esgotadas as possibilidades de se chegar a um “período razoável de tempo” de comum acordo entre as partes, em 18 de junho de 2008, a UE iniciou o procedimento arbitral, acionando o Diretor-Geral da OMC, que escolheu o árbitro Yasuhei Tanigushi. O Brasil apresentou sua petição em 9 de julho de 2008, na qual solicitara 21 meses para a implementação do resultado do contencioso. A UE apresentou sua petição dia 18 de julho, na qual alegara que seria impossível o Brasil cumprir a decisão da OMC por ação judicial, defendendo que o País simplesmente deveria revogar as medidas que proibiam a importação de pneus remoldados. Após a audiência entre as partes, ocorrida em Genebra, em 5 de agosto de 2008, o árbitro Yasuhei Tanigushi determinou que o Brasil teria 12 meses para implementar a decisão da OMC, recordando-se que esse período passara a ser contado a partir da adoção dos relatórios do painel e do OA, em 17 de dezembro de 2007. Ou seja, o Brasil deveria cumprir as determinações da OMC até 17 de dezembro de 2008.

Flavio Marega

180

Recorde-se que para dar cumprimento às determinações do OA, conforme anteriormente mencionado, o Brasil deveria: (a) eliminar as importações de pneus usados, autorizadas por decisões judiciais; e (b) tornar o tratamento das importações de pneus remoldados provenientes do Mercosul compatível com o caput do Artigo XX do GATT 1994, eliminando o tratamento discriminatório.

Com relação às importações de pneus usados, em 22 de setembro de 2006, conforme anteriormente mencionado, o Presidente da República encaminhara ao Supremo Tribunal Federal (STF), por intermédio da Advocacia-Geral da União, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 101 (ADPF No. 101), que pleiteava a cassação de todas as autorizações judiciais (decisões interlocutórias, sentenças e acórdãos) concedidas a reformadores nacionais para a importação de pneus usados. O argumento central da ADPF No. 101 foi de que os direitos previstos no Artigo 2257 da Constituição Federal se sobrepunham aos direitos estabelecidos no Artigo 1708 da Carta Magna, que garantia o direito à livre-iniciativa, argumento principal da indústria de reforma no Brasil para a obtenção das medidas liminares junto à Justiça Federal. A ADPF No. 101 tramitou no STF até a decisão final adotada em Sessão Plenária, de 24 de junho de 2009.

7 Dispõe o Art. 225 da Constituição Federal de 1988, “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, cabendo especificamente ao Poder Público, a teor do disposto no seu § 1º, V, “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;”.

8 O Art. 170 da Constituição Federal garante “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.

O contencioso sobre pneus reformados na OMC: uma importante vitória multilateral do Brasil

181

Naquela data, o STF decidiu dar parcial provimento à ADPF Nº 101, que teve como relatora a Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha. O provimento parcial decorreu do fato de que a Relatora não acatou o pedido da ADPF No. 101 que incluía as decisões já com trânsito em julgado. Assim, opinou:

A procedência parcial foi no sentido de declarar válidas

as normas proibitivas; declarar inconstitucionais,

com efeitos ex tunc, as interpretações, incluídas as

judicialmente acolhidas, que afastavam a aplicação

daquelas normas, excluindo desta incidência – e, por

isso, a procedência é parcial – os efeitos pretéritos e

exauridos das decisões com trânsito em julgado, no que

já cumpridos em seu objeto9.

Após a decisão na Sessão Plenária do Supremo Tribunal Federal e a publicação do respectivo Acórdão, no Diário Oficial da União, o Departamento de Comércio Exterior (DECEX) foi automaticamente notificado da decisão, parando de expedir as Licenças de Importação (LIs); e as importações de pneus reformados e usados cessaram de vez. Como o Órgão de Apelação da OMC havia identificado nesta brecha legal a inconsistência na aplicação da proibição de importações de pneus usados (e reformados) pelo Brasil, o fim da emissão de LIs representou o cumprimento final pelo País da decisão multilateral. Com efeito, em pronunciamento efetuado na reunião do Órgão de Solução de Controvérsias, ocorrida em 25 de setembro de 2009, o Brasil comunicou aos demais Membros da OMC que havia cumprido com as decisões do Órgão de Apelação ao proibir em caráter definitivo as importações de pneus usados.

9 Supremo Tribunal Federal. Plenário. ADPF No. 101. Inteiro Teor, p. 217.

Flavio Marega

182

5. conclusão

O contencioso sobre pneus reformados na OMC representou importante vitória multilateral para o Brasil, nesse delicado equilíbrio da relação entre comércio e proteção do meio ambiente e da saúde pública. No início da disputa dava-se como certo que o Brasil não lograria demonstrar à OMC as razões que levaram o País a proibir a importação de pneus usados (e reformados). Assim, a argumentação algo simplista da União Europeia de que a proibição das importações não passava de medida protecionista da indústria local parecia imbatível e irrefutável. Mas o Brasil logrou comprovar, ao longo do contencioso, que pneus são produtos especiais e complexos, de difícil destinação, e que, portanto, a proibição das importações de pneus usados (e reformados) se enquadrava em políticas públicas coerentes, concebidas pelo Governo brasileiro ao longo de décadas; e felizmente adotadas em tempo de evitar que se repetisse em território nacional alarmante acúmulo de pneus e seus resíduos que existe no mundo desenvolvido atualmente.

Assim, do ponto de vista ambiental, o Brasil logrou demonstrar na OMC que os pneus são produtos concebidos para terem longa duração e alta resistência. Ademais, sua composição é feita de substâncias extremamente combustíveis e poluentes, o que acaba por gerar grande volume de resíduos que se tornam indesejáveis ao fim da vida útil. Por sua vez, esse grande volume gerado, somando-se às características especiais inerentes aos resíduos de pneus, resultam em uma gestão extremamente difícil, que envolve altos custos, riscos ambientais e que ainda assim não garantem a total eliminação. A União Europeia tentou identificar alternativas de destinação dos pneus usados, que segundo seu argumento eliminariam a necessidade da proibição de importações. Mas o Brasil logrou desmontar, uma a uma, as

O contencioso sobre pneus reformados na OMC: uma importante vitória multilateral do Brasil

183

alternativas apresentadas pela União Europeia, e comprovar que a proibição das importações tinha por objetivo central evitar o aumento do passivo ambiental no País.

Do ponto de vista da saúde pública, o Brasil demonstrou também que os pneus representam há muito tempo uma preocupação central para as autoridades de saúde no Brasil, País de clima tropical e grande dimensão territorial. Assim, logrou-se comprovar na disputa que o comércio de pneus – e em especial de pneus usados e reformados – é uma das principais causas da disseminação de doenças no mundo. No caso do Brasil, demonstrou-se que pneus descartados no ambiente são o habitat ideal para mosquitos transmissores de doenças graves como a dengue, febre amarela e malária. Outros riscos à saúde humana derivam, ainda, da contaminação do solo e do ar, resultante dos frequentes incêndios que ocorrem nos locais de armazenamento de pneus. Assim, também no que concerne a saúde pública, a proibição das importações de pneus usados (e reformados) tinha por objetivo central evitar que o acúmulo em território nacional de pneus, em seu último ciclo de vida, aumentasse a disseminação de doenças.

O contencioso dos pneus reformados contribuirá, ainda, para definir o escopo de aplicação das regras da OMC sobre o comércio de bens usados (e remanufaturados), área que até o presente constitui zona cinzenta no sistema multilateral de comércio. Recorde-se que o Brasil sempre proibiu a importação de bens usados, o que inclui as importações de pneus. Assim, enquanto para a União Europeia o pneu remoldado era um produto novo, mas não um pneu novo, o Brasil defendeu de forma coerente durante o contencioso que sua legislação de comércio exterior sempre tratou os pneus reformados como bens usados. E daí surgiu a linha mestra da argumentação brasileira no contencioso de que, ao introduzir em território nacional um

Flavio Marega

184

produto usado, ainda que reformado, mas não passível de nova reforma, o Brasil estaria aumentando o seu passivo ambiental e de saúde pública, dadas as características complexas dos pneus e de sua complicada destinação, conforme demonstrado neste artigo.

Dessa forma, a vitória do Brasil na OMC contribuirá também para se estabelecer uma linha divisória entre comércio de produtos novos e produtos usados (remanufaturados) no âmbito das regras multilaterais. Isso porque, caso tivesse o Brasil sido derrotado, o contencioso dos pneus reformados poderia ter representado o respaldo para uma futura avalanche de produtos usados que, ao atingirem sua vida útil nos países desenvolvidos, seriam direcionados aos países em desenvolvimento. Assim, depois de passar por um processo de remanufatura, uma ampla gama de bens de consumo (automóveis, computadores, celulares, televisores etc.) poderia vir a ser destinada aos países em desenvolvimento, transferindo para estes o pesado ônus da destinação final em seus territórios.

O contencioso dos pneus reformados certamente entrará para a história da OMC não só como um caso bem-sucedido de invocação da exceção do Artigo XX (b) do GATT 1994 na proteção do meio ambiente e da saúde pública, em que as várias etapas estabelecidas pela jurisprudência do Órgão de Apelação foram todas vencidas. O contencioso dos pneus reformados será lembrando principalmente como um caso emblemático em que as políticas públicas podem – e devem – levar em conta os interesses nacionais dos Membros da OMC, ao mesmo tempo em que respeitam as regras multilaterais de comércio.

185

Bacharel em Direito, formado em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco, trabalhou na Coordenação-Geral de Contenciosos do Ministério das Relações Exteriores e serviu na Delegação do Brasil em Genebra e na Embaixada do Brasil na Haia. Atualmente chefia a Divisão de Acesso a Mercados do Itamaraty.

“europeAn communities – customs clAssificAtion

of frozen Boneless chicken cuts”

José Akcell Zavala

187

O contencioso “European Communities – Customs Classification of Frozen Boneless Chicken Cuts”, levado ao Órgão de Solução de Controvérsias pelo Brasil e pela

Tailândia em 2003, permitiu esclarecer e dar solução a uma divergência sobre a classificação aduaneira, pela UE, de cortes de frango desossados, salgados e congelados, com impacto direto sobre o tratamento tarifário concedido a esse produto no cronograma de desgravação comunitário. Adicionalmente, o recurso à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 pelo painel constituiu oportunidade para avaliar seu alcance e atualidade como instrumento para a interpretação de textos internacionais. O contencioso também suscitou questões relativas às atribuições e competência da OMC e da Organização Mundial de Aduanas (OMA).

Em julho de 2002, por força do Regulamento EC nº 1223/2002, as administrações aduaneiras dos países-membros da UE receberam a determinação de classificar as importações de cortes de frango desossados, salgados e congelados sob a linha tarifária 0207.41.10, correspondente a frango congelado, e não mais sob o item 0210.90.20 (carne salgada). O Regulamento EC nº 1223/2002 alterou prática uniforme de classificação que remontava ao final da Rodada Uruguai, e teve o efeito prático de aumentar a tarifa de importação de 15,4% ad valorem, vigente para o item 0210.90.20, para 102,4 euros por tonelada, mais

José Akcell Zavala

188

uma salvaguarda especial ao amparo do Artigo 5 do Acordo de Agricultura. À época, a tarifa específica de 102,4 euros por tonelada, consolidada para o item 0207.41.10, correspondia, em média, a equivalente ad valorem de aproximadamente 75%, levando em conta o preço praticado no mercado internacional.

O produto objeto da reclassificação consistia em cortes de peito de frango sem osso destinados não ao consumidor final, mas à indústria alimentícia europeia de alimentos processados. Segundo o setor exportador brasileiro, a adição de sal teria sido uma demanda dos importadores comunitários, em particular de países do Norte europeu, não produtores de frango, e teria motivações técnicas. De acordo com os importadores, a carne salgada permitiria melhor conservação das características físicas do produto após os processos de congelamento e descongelamento, em particular o seu peso, do que a carne in natura. De acordo com os exportadores, o sal amenizaria o efeito chamado “drip loss”, ou de perda de líquidos, observado após o descongelamento da carne.

O Brasil e a Tailândia, principais exportadores do produto para o mercado comunitário, entenderam que o Regulamento EC nº 1223/2002 e medidas subsequentes tinham o efeito de conferir tratamento menos favorável ao produto em questão, e que as medidas comunitárias resultavam na imposição de imposto de importação superior àquele inscrito no cronograma de desgravação tarifária da UE perante a OMC. Assim, em seus pedidos de estabelecimento de painel em setembro e outubro de 2003, respectivamente, Brasil e Tailândia indicaram que a UE havia violado os compromissos inscritos nos Artigos II:1(a) e II:1(b) do GATT 1994:

“European communities – customs classification of frozen boneless chicken cuts”

189

ARTIGO II

LISTAS DE CONCESSÕES

1. (a) Cada Parte Contratante concederá às outras Partes Contratantes, em matéria comercial, tratamento não menos favorável do que o previsto na parte apropriada da lista correspondente, anexa ao presente Acordo.

(b) Os produtos das Partes Contratantes, ao entrarem no território de outra Parte Contratante, ficarão isentos dos direitos aduaneiros ordinários que ultrapassarem os direitos fixados na Parte I da lista das concessões feitas por esta Parte Contratante, observados os termos, condições ou requisitos constantes da mesma lista. Esses produtos também ficarão isentos dos direitos ou encargos de qualquer natureza, exigidos por ocasião da importação ou que com a mesma se relacionem, e que ultrapassem os direitos ou encargos em vigor na data do presente Acordo ou os que, como consequência direta e obrigatória da legislação vigente no país importador, na referida data, tenham de ser aplicados ulteriormente.

Em sua defesa, a União Europeia alegou que a medida de reclassificação aduaneira apenas esclarecia o entendimento de que a qualificação do produto como “salgado”, e sua consequente classificação na posição tarifária 0210, correspondente a carne salgada, seca, defumada ou em salmoura, exigiria que o salgamento houvesse sido feito com o objetivo de “preservação a longo prazo”, isto é, por tempo que excedesse o período necessário para o transporte até seu destino, sem o auxílio de outros meios de conservação como o congelamento. Para a UE, se a salga não atendesse ao critério da preservação, o produto deveria ser classificado na posição 0207, relativa à carne de aves in natura, resfriada ou congelada.

José Akcell Zavala

190

Após deliberação preliminar sobre o “produto em questão”, conceito alheio ao Entendimento relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias, mas que segue, via de regra, a definição dada pelas “medidas em questão”, o painel debruçou-se sobre a natureza dos “cortes de frango desossados e congelados que tenham sido impregnados profunda e homogeneamente com teor de sal entre 1,2% e 3%”, a fim de determinar: (i) o tratamento conferido ao produto no cronograma de desgravação da UE; (ii) o tratamento conferido ao produto pelas medidas em questão; e (iii) se as medidas em questão conferiam tratamento menos favorável ao produto em questão, e se as medidas comunitárias resultavam na imposição de imposto de importação superior àquele inscrito no cronograma de desgravação tarifária da UE perante a OMC. Para tanto, o painel recorreu aos Artigos 31 e 32 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969:

Interpretação de Tratados

Artigo 31

Regra Geral de Interpretação

1. Um tratado deve ser interpretado de boa-fé segundo o

sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu

contexto e à luz de seu objetivo e finalidade.

2. Para os fins de interpretação de um tratado, o contexto

compreenderá, além do texto, seu preâmbulo e anexos:

a) qualquer acordo relativo ao tratado e feito entre todas

as partes em conexão com a conclusão do tratado;

b) qualquer instrumento estabelecido por uma ou

várias partes em conexão com a conclusão do tratado e

“European communities – customs classification of frozen boneless chicken cuts”

191

aceito pelas outras partes como instrumento relativo ao

tratado.

3. Serão levados em consideração, juntamente com o

contexto:

a) qualquer acordo posterior entre as partes relativo

à interpretação do tratado ou à aplicação de suas

disposições;

b) qualquer prática seguida posteriormente na aplicação

do tratado, pela qual se estabeleça o acordo das partes

relativo à sua interpretação;

c) quaisquer regras pertinentes de Direito Internacional

aplicáveis às relações entre as partes.

4. Um termo será entendido em sentido especial se

estiver estabelecido que essa era a intenção das partes.

Artigo 32

Meios Suplementares de Interpretação

Pode-se recorrer a meios suplementares de interpretação,

inclusive aos trabalhos preparatórios do tratado e às

circunstâncias de sua conclusão, a fim de confirmar

o sentido resultante da aplicação do artigo 31 ou

de determinar o sentido quando a interpretação, de

conformidade com o artigo 31:

a) deixa o sentido ambíguo ou obscuro; ou

b) conduz a um resultado que é manifestamente absurdo

ou desarrazoado.

José Akcell Zavala

192

Seguindo os parâmetros da Convenção de Viena, o painel interpretou os termos da posição 0210 do cronograma de desgravação da UE, em especial a palavra “salgado”, à luz de seu significado ordinário, de seu contexto, à luz do objeto e propósito do tratado e pelo uso de meios suplementares de interpretação. Antes de proceder à análise, o painel decidiu que a interpretação deveria ser feita sobre o texto da lista de concessões comunitária “no momento de sua conclusão”, isto é, ao final da Rodada Uruguai, em 1994.

No que tange ao significado ordinário do termo “salgado”, o painel concluiu que, a partir de definições de dicionários e do uso corriqueiro do termo, “salgar” significaria condimentar, preparar, adicionar sabor, curar ou preservar, mas que não havia nada que indicasse que o salgamento deveria ter o fim exclusivo de preservação da carne. Concluiu preliminarmente, em concordância com os demandantes, que nada no significado ordinário da palavra “salgado” indicaria que o produto em questão não pudesse ser incluído na concessão da posição 0210.

A seguir, o painel considerou o contexto, isto é, os demais termos constantes da posição 0210, como “seco”, “defumado” e “em salmoura”, assim como a estrutura do Capítulo 2 do cronograma comunitário e outros termos. Concluiu que o texto do Capítulo, considerado como contexto, não oferecia esclarecimentos adicionais ao significado ordinário de “salgado”. O mesmo aconteceu quando da análise, ainda quanto ao contexto, do Sistema Harmonizado de Codificação e Designação de Mercadorias, bem como de listas de concessões de outros membros da OMC.

O painel chegou à mesma conclusão após analisar o que denominou “contexto factual”, conceito que não consta da Convenção de Viena, e que foi objeto de apelação pela UE. Ao

“European communities – customs classification of frozen boneless chicken cuts”

193

deliberar sobre o assunto, o Órgão de Apelação reconheceu não existir qualquer referência a “contexto factual” como requisito analítico independente no Artigo 31 da Convenção, mas concluiu que o painel não errou ao considerar elementos como o sabor, a textura e outras qualidades físicas do produto, incluindo sua preservação, na análise do contexto.

No que tange à análise sobre “objeto e propósito”, o painel observou que a “falta de clareza associada à aplicação do critério de preservação de longo prazo com relação à concessão da posição 0210” iria de encontro à noção de resguardar a segurança e previsibilidade dos arranjos tarifários concluídos ao amparo do Acordo da OMC e do GATT 1994. Esta conclusão do painel foi mantida pelo Órgão de Apelação.

Ao longo da análise do Sistema Harmonizado, das suas notas explicativas e da evolução histórica de suas diferentes versões desde 1988, bem como da Nomenclatura Aduaneira de Bruxelas de 1950 e a de Genebra (1931), observou-se que o requisito do salgamento profundo e homogêneo da carne em todas as suas partes fora introduzido de modo a diferenciar o salgamento propriamente dito de prática de transporte comum em países europeus consistente em espargir com sal a superfície de carregamentos de carne in natura por períodos curtos, por exemplo, no comércio entre países fronteiriços. Não foi encontrada referência, naqueles instrumentos, a qualquer vínculo entre o salgamento “profundo e homogêneo” de carnes e sua preservação.

Mesmo assim, diante da tese europeia de que o salgamento responderia exclusivamente à finalidade de preservação, uma linha de argumentação contemplada pelos demandantes consistiu em determinar, na prática, qual seria o teor de sal necessário para preservar o produto sem o auxílio de

José Akcell Zavala

194

meios adicionais de conservação, como o resfriamento ou o congelamento. A busca de uma resposta encontrou duas dificuldades: o que constituiria “preservação de longo prazo”, e quais seriam os efeitos do sal – reversíveis ou não – sobre a carne de aves.

A referência à “preservação de longo prazo” fora apresen-tada pela UE numa conexão vaga ao “tempo de transporte” sem especificar a sua duração ou meio – aéreo, marítimo ou terres-tre – e sem indicação de distâncias a serem percorridas. Seria necessário assumir, assim, que o “tempo de transporte” poderia compreender dias, semanas ou mesmo meses.

Quanto aos efeitos do salgamento, a indústria apresentou estudos que indicavam que, diferentemente das carnes bovina, suína e de peixe, o teor de sal necessário para a preservação da carne de aves a temperatura ambiente mudaria as características físicas do produto ao ponto de torná-lo não apto para consumo humano, mesmo após dessalga, e que, nesse caso, o produto não poderia ser classificado na posição 0210 em virtude da Nota “a” do Capítulo 2 do Sistema Harmonizado: “This Chapter does not cover: (a) Products of the kinds described in headings 0201 to 0208 or 0210, unfit or unsuitable for human consumption”.

Na análise dos meios suplementares de interpretação de acordo com o Artigo 32 da Convenção de Viena, em especial as “circunstâncias da conclusão” tais como a legislação comunitária, decisões judiciais e prática prévia à finalização da Rodada Uruguai, o painel confirmou suas conclusões preliminares no sentido de que nada indicaria que o produto em questão não pudesse ser incluído na concessão da posição 0210.

Ao concluir que o produto em questão estava coberto pela concessão da posição 0210 do cronograma de desgravação da UE e que o produto faria jus ao tratamento tarifário correspondente

“European communities – customs classification of frozen boneless chicken cuts”

195

para tal posição, o painel determinou que a UE violava o disposto no Artigo II:1(a) e (b) do GATT 1994, uma vez que os produtos objeto do contencioso não estavam recebendo tal tratamento. O Órgão de Apelação manteve, com algumas modificações quanto ao arrazoado, todas as conclusões do painel.

Uma vez que o contencioso versava sobre questões relativas à classificação aduaneira de mercadorias, a OMA foi consultada, mas limitou-se inicialmente a descrever os procedimentos constantes do Artigo 10 da Convenção do Sistema Harmonizado, relativos a solução de controvérsias. Posteriormente, a OMA opinou que a posição 0207 ofereceria uma descrição mais específica por se referir à carne de aves. Por outro lado, também admitiu a possibilidade de que a posição 0210 fosse considerada mais específica se considerado o processo ao qual a carne é submetida (salga).

Independentemente do conteúdo da resposta da OMA, o painel esclareceu que a consulta feita ao amparo do Artigo 13.1 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias, que autoriza painéis a procurar informações que considerarem relevantes para a resolução da questão, não o eximia da responsabilidade de chegar a uma determinação sobre a matéria apresentada pelas partes, por força do Artigo 11:

Função dos Grupos Especiais

A função de um grupo especial é auxiliar o OSC a

desempenhar as obrigações que lhe são atribuídas

por este Entendimento e pelos acordos abrangidos.

Consequentemente, um grupo especial deverá fazer uma

avaliação objetiva do assunto que lhe seja submetido,

incluindo uma avaliação objetiva dos fatos, da

aplicabilidade e concordância com os acordos abrangidos

pertinentes, e formular conclusões que auxiliem o OSC

José Akcell Zavala

196

a fazer recomendações ou emitir decisões previstas

nos acordos abrangidos. Os grupos especiais deverão

regularmente realizar consultas com as partes envolvidas

na controvérsia e propiciar-lhes oportunidade para

encontrar solução mutuamente satisfatória.

Além da obrigação formal, inscrita no artigo citado, de “formular conclusões que auxiliem o Órgão de Solução de Controvérsias a fazer recomendações ou emitir decisões previstas nos acordos abrangidos”, a natureza da questão levada ao painel não permitiria a sua resolução apenas com recurso à OMA. Se bem é verdade que o contencioso girou em torno da classificação aduaneira do produto sob exame, a reclamação dos demandantes referiu-se ao tratamento tarifário conferido pela UE vis-à-vis os compromissos inscritos em seu cronograma de desgravação, questão de responsabilidade da OMC.

No que tange a medidas para a implementação dos resultados do contencioso, após a adoção, pelo Órgão de Solução de Controvérsias, dos relatórios do painel e do Órgão de Apelação, a UE solicitou um período razoável de tempo para trazer suas medidas de volta à conformidade com os Acordos da OMC. Durante esse período, a UE buscou, junto à OMA, uma interpretação da posição 0210 do Sistema Harmonizado que desse margem a seu entendimento de que, para ser classificada naquela posição, a salga da carne deveria acontecer exclusivamente para fins de preservação, empreitada na qual não obteve sucesso.

Como medida de implementação ao final do período razoável de tempo que lhe foi outorgado para cumprir com as determinações do Órgão de Solução de Controvérsias, a UE determinou a classificação do produto “cortes de frango desossados e congelados que tenham sido impregnados profunda

“European communities – customs classification of frozen boneless chicken cuts”

197

e homogeneamente com teor de sal entre 1,2% e 3%” de volta à posição 0210, conforme havia sido sua prática entre 1996 e 2002, e iniciou procedimentos ao amparo do Artigo XXVIII do GATT 1994 de forma a modificar a concessão tarifária.

Em termos práticos, se bem a UE cumpriu formalmente com a implementação das recomendações do painel e do Órgão de Apelação, reconhecendo que a decisão de mudar a classificação aduaneira teve o efeito de conferir tratamento menos favorável ao produto em questão do que aquele estabelecido em seus compromissos tarifários ao final da Rodada Uruguai, a renegociação da tarifa para a posição 0210, mesmo em troca de compensações, evidenciou o interesse de manter a elevação da proteção tarifária introduzida pelas medidas objeto do contencioso, frustrando, assim, as expectativas dos exportadores de frango do Brasil e da Tailândia, bem como dos próprios consumidores europeus, quanto à resolução da disputa.

Sem prejuízo de considerações de ordem prática sobre o desfecho do contencioso, cumpre ressaltar que o caso “European Communities – Customs Classification of Frozen Boneless Chicken Cuts” continua a ser, do ponto de vista do histórico de contenciosos na OMC, e quase dez anos após o seu início, um exemplo relevante do uso da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 como instrumento de interpretação por um painel. O contencioso teve, ainda, o mérito de lançar luz sobre a questão da possível superposição de competências e atribuições entre organizações internacionais.

199

Diplomata, na Coordenação-Geral de Contenciosos do Ministério das Relações Exteriores desde 2008. Formada em Ciências Políticas pelo Institut d’Études Politiques de Paris e, em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Trabalhou como advogada no escritório Pinheiro Neto Advogados (1999-2004).

A lAsting resolution to the “zeroing”

controversy? o cAso do suco de lArAnjA

Valéria Mendes Costa

201

1. introdução

O contencioso do suco de laranja teve início em 27 de novembro de 2008, quando o Brasil solicitou consultas aos Estados Unidos (EUA) no âmbito do

mecanismo de solução de controvérsias da OMC, questionando o uso da metodologia de cálculo conhecida como “zeroing” em procedimentos antidumping nos EUA sobre o suco de laranja brasileiro. Por meio dessa metodologia de cálculo, o Departamento de Comércio americano (USDOC) desconsidera do cálculo da margem de dumping as operações de venda em que o valor de exportação de determinado produto é superior ao seu valor normal no mercado doméstico do país exportador. Como essas transações são ignoradas, elas não compensam aquelas em que o preço de exportação está eventualmente abaixo do valor normal, o que resulta em margem de dumping inflada, i. e. maior do que ela seria se todas as vendas do produto tivessem sido levadas em conta no cálculo. Para o Brasil, o “zeroing” era incompatível com as regras do GATT e do Acordo Antidumping da OMC, na medida em que não considerava no cálculo da margem de dumping todas as vendas do produto, violava a regra da comparação justa e acabava resultando na cobrança de direitos antidumping maiores.

Quando o Brasil solicitou as consultas, o questionamento da legalidade do “zeroing” com as regras multilaterais de comércio já não era assunto novo na OMC. O primeiro caso

Valéria Mendes Costa

202

entre a Índia e a Comunidade Europeia (DS141) data de 2001. Na época do contencioso com o Brasil, 7 disputas já tinham sido abertas contra os EUA por 6 diferentes Membros1, e em cada caso julgado até então o “zeroing” tinha sido condenado. Desde então, outros contenciosos foram abertos, totalizando nada menos do que 12 casos movidos por 9 diferentes Membros2. Por que, então, depois de anos de questionamentos e de condenação do “zeroing”, os EUA ainda continuavam a aplicá-lo? A resposta a essa pergunta está na interpretação dada pelos americanos ao conceito de dumping, que eles consideram uma prática que pode ser aferida transação a transação.

Para entender exatamente o que isso significa, bem como o que foi discutido no contencioso do suco de laranja, será abordado inicialmente neste artigo como funcionam os procedimentos antidumping nos EUA, como as margens de dumping são calculadas e o que é o “zeroing”. Em seguida, serão apresentadas as principais queixas do Brasil, a defesa americana e as principais conclusões do painel no contencioso do suco de laranja (DS382). Em um terceiro momento, tratar- -se-á da implementação das recomendações do painel pelos EUA e do término do contencioso, para, enfim, concluir com alguns comentários gerais sobre a relevância do caso.

2. os procedimentos Antidumping nos euA, o cálculo dA mArgem de dumping e o “zeroing”

Os procedimentos antidumping nos EUA são divididos em “fases” separadas: uma fase investigatória inicial (“original

1 DS264 (Canadá), DS294 e DS350 (Comunidade Europeia), DS322 (Japão), DS335 (Equador), DS343 (Tailândia), DS344 (México), DS382 (Brasil).

2 Além dos casos acima, também foram abertos o DS383 (Tailândia), o DS402 e o DS420 (Coreia), o DS404 e o DS429 (Vietnã) e o DS422 (China).

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

203

investigation”), em que o USDOC determina a existência de dumping; e, se requerida, uma fase de revisões administrativas anuais (“annual administrative reviews”) em que se determina o montante atualizado de direitos antidumping que deve ser pago pela importação de determinada mercadoria. Além disso, cinco anos após a publicação da ordem antidumping, e a cada cinco anos depois disso, se a ordem não for revogada, o USDOC e a “U. S. International Trade Commission” (USITC) conduzem as chamadas “sunset reviews” (revisões de final de período) para avaliar se a revogação da ordem antidumping não levará à volta do dumping e do dano material. Como as “sunset reviews” não foram objeto do contencioso, elas não serão tratadas neste artigo.

Nas investigações originais, avalia-se pela primeira vez se determinado produto está sendo vendido no país importador a preço menor do que o praticado no mercado doméstico do país exportador. Os produtos são classificados por “modelos ou tipos”. Se o USDOC determinar que o preço das exportações está abaixo do valor normal (dumping) e se constatar que há dano material à indústria nacional em razão disso o USDOC publica ordem antidumping estabelecendo os direitos que devem ser pagos na forma de depósito no momento da importação. Esse depósito deve ser feito para todas as importações futuras provenientes do exportador investigado.

Mais especificamente, a margem de dumping é determinada por meio de uma comparação entre a média ponderada anual do preço de todas as exportações com a média ponderada anual do valor normal de todas as vendas domésticas para cada “modelo ou tipo”. Há três possíveis resultados para essa comparação: o valor normal pode exceder o preço de exportação, caso em

Valéria Mendes Costa

204

que haverá diferença positiva de preço; o preço de exportação pode exceder o valor normal, caso em que a diferença de preço é negativa; ou, finalmente, ambos os preços podem coincidir, caso em que a diferença de preço será zero.

Na segunda etapa do cálculo, o USDOC agrega os resultados dessas comparações para calcular uma margem de dumping geral para o produto e para o exportador. Ao agregar os valores, no entanto, o USDOC apenas considera os resultados positivos – aqueles em que o preço de exportação estava abaixo do valor normal. Os resultados negativos – aqueles em que o preço de exportação era superior ao valor normal – são desconsiderados, zerados (daí o nome de “zeroing” para essa prática), não sendo computados no cálculo geral da margem de dumping.

As revisões administrativas, por sua vez, ocorrem a cada doze meses, se requeridas por qualquer exportador, importador ou produtor doméstico, e cobrem as importações feitas nos doze meses precedentes. Elas servem a dois propósitos: primeiro, estabelecem as margens de dumping para cada exportador, margem essa que será o valor de referência do novo depósito a ser feito para as importações futuras até a próxima revisão; e segundo, estabelecem a tarifa específica a ser efetivamente cobrada sobre as importações que ocorreram no período da revisão. Se a tarifa final for maior que o depósito feito no momento da importação, o importador tem de pagar a diferença. Se for menor, recebe reembolso. Portanto, as revisões administrativas estabelecem os depósitos futuros, bem como atualizam os direitos em relação às exportações passadas, ocorridas no período coberto pela revisão.

Ambos os cálculos acima são feitos com o uso do “zeroing”. A diferença em relação às investigações originais é que, nas

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

205

revisões administrativas, cada transação de exportação é comparada com a média ponderada do valor normal. No entanto, e da mesma forma, o USDOC apenas considera os resultados positivos dessas comparações, atribuindo valor zero aos resultados negativos.

Como resultado do uso do “zeroing”, a margem de dumping fica sobre-estimada, na medida em que as transações acima do valor normal (resultados negativos) não podem compensar as transações eventualmente abaixo do valor normal (resultados positivos), que são os únicos considerados no cálculo.

3. o contencioso do suco de lArAnjA (ds382)

3.1. As medidas questionadas

O Brasil questionou três medidas americanas: o uso do “zeroing” (i) na primeira e (ii) na segunda revisões administrativas, e (iii) o uso contínuo do “zeroing” em procedimentos antidumping sucessivos relativos ao suco de laranja brasileiro. A investigação original também foi objeto de consultas do Brasil, mas não foi questionada como medida separada. Sua inclusão deu-se somente para que ficasse caracterizado o uso contínuo do “zeroing”.

Após objeções preliminares levantadas pelos Estados Unidos, sem sucesso, no tocante à análise de mérito, o Brasil alegou que o uso do “zeroing” nas duas revisões administrativas violava (i) os artigos 9.3 do Acordo Antidumping e VI:2 do GATT 1994, bem como o artigo 2.4 do Acordo Antidumping. Alegou também que o uso contínuo do “zeroing” era per se uma violação (ii) dos artigos 9.3 do Acordo Antidumping e VI:2 do GATT 1994 e do artigo 2.4.2 do do Acordo Antidumping. Cada pleito acima será brevemente analisado a seguir.

Valéria Mendes Costa

206

3.2. Os argumentos das partes e as decisões do painel em relação às revisões administrativas

3.2.1 Uso do “zeroing” nas revisões administrativas – Violação dos Artigos 9.3 do Acordo Antidum-ping e VI:2 do GATT 1994 e 2.4 do Acordo Anti-dumping

3.2.1.1 Argumentos das partes no tocante aos Artigos 9.3 do Acordo Antidumping e VI:2 do GATT 1994

O Brasil defendeu que o “zeroing” viola os artigos VI:2 do GATT 1994 e 9.3 do Acordo Antidumping, porque implica em cobrança de direitos acima da margem de dumping, o que é vedado por esses artigos. Para entender por que isso ocorre, o Brasil voltou-se para a definição de dumping.

No entendimento brasileiro, o dumping deve ser calculado para o “produto como um todo” e não apenas em transações individuais, uma vez que o artigo VI:1 do GATT estabelece que o dumping ocorre quando “produtos de um país são introduzidos no comércio de outro país abaixo do valor normal dos produtos”. Consistente com essa definição de dumping, o próprio artigo VI:2 prevê a cobrança de direitos antidumping em relação ao “produto com dumping” (“dumped product”) de forma a compensar ou prevenir os efeitos danosos do dumping. Essa definição do GATT é transferida para o Acordo Antidumping pelo artigo 2.1 que determina que “um produto é considerado como ‘dumpeado’ (...) se o preço de exportação do produto exportado de um país ao outro é menor do que o preço do produto similar quando destinado para consumo no país exportador”. Os artigos mencionados tratam, portanto, de “produto” e não de exportações individuais.

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

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A premissa de que o dumping deve ser calculado para o “produto como um todo” também encontra respaldo no fato de o dumping dizer respeito ao comportamento do exportador e do produtor estrangeiro, já que são eles que definem o preço de exportação e o valor normal, e não ao comportamento do importador. Os artigos 2.1 do Acordo Antidumping e VI:1 do GATT 1994 são claros nesse sentido ao determinarem que o dumping ocorre quando um produto é “introduzido no comércio de outro país” a um preço de exportação menor que o valor normal praticado no país exportador. Outros artigos do Acordo Antidumping (2.2, 2.3, 5.8, 6.10, 8.1, 9.4 e 9.5) também confirmam esse argumento, no entendimento brasileiro.

O Brasil, ademais, alegou que o Órgão de Apelação (OA) já havia dito que o Acordo Antidumping e o GATT 1994 não estavam “preocupados” com o dumping per se, mas com o dumping que causa prejuízo ou ameaça de prejuízo à indústria doméstica. Nesse sentido, a determinação de dano, por exemplo, deve ser feita pela autoridade investigadora com base em exame objetivo tanto do volume das exportações como do efeito dessas exportações nos preços da indústria doméstica e no consequente impacto dessas importações nos produtores domésticos do produto em questão (artigo 3.1 do Acordo Antidumping). Disso decorre que o volume das transações deve ser considerado e que o dano não pode ser encontrado em relação a exportações individuais, mas apenas para todas as exportações do produto (o “produto como um todo”).

Tendo em vista as características do dumping descritas acima, a margem de dumping, que é apenas uma medida do dumping, também deve ser calculada para o “produto como um todo”, i. e., considerando-se todas as exportações do produto e não somente aquelas com preço de exportação efetivamente abaixo do valor normal. A margem de dumping funciona como

Valéria Mendes Costa

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teto que não pode ser ultrapassado quando os direitos são cobrados.

Ora, os EUA, ao ignorarem as comparações negativas em que o preço de exportação está acima do valor normal, não calculam a margem de dumping e os direitos finais levando em conta todas as exportações (o “produto como um todo”). O resultado é uma margem de dumping sobre-estimada pela exclusão do valor de várias transações do cálculo, o que acarreta cobrança de direitos antidumping em montante superior a aqueles que deveriam ser pagos caso todas as vendas feitas em determinado período de tempo fossem consideradas.

Em suma, embora a autoridade investigadora possa fazer múltiplas comparações entre o preço de exportação e o valor normal usando “modelos ou tipos” do produto, os resultados dessas comparações no subnível do “modelo ou tipo” não são margens de dumping. Esses resultados refletem apenas cálculos intermediários que devem ser todos agregados para se chegar à margem de dumping do produto, e os direitos antidumping cobrados não devem exceder a margem assim calculada.

Os EUA defenderam-se afirmando, em primeiro lugar, que não havia uma proibição geral de “zeroing” no Acordo Antidumping. Para os americanos, o OA havia proibido o “zeroing” somente em investigações originais, quando o método de comparação entre média ponderada do preço de exportação e média ponderada do valor normal era utilizado. Isso porque o artigo 2.4.2 do Acordo Antidumping explicitamente requer que “todas as exportações comparáveis” (“all comparable export transactions”) sejam levadas em conta ao determinar a margem de dumping utilizando esse método específico de comparação.

Em segundo lugar, os EUA afirmaram que os pleitos do Brasil não encontravam respaldo nos textos legais. Nem o artigo VI:2

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

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do GATT 1994, nem os artigos 2.1 ou 9.3 do Acordo Antidumping determinam que “dumping” e “margem de dumping” devem ser calculados agregando-se todas as exportações do produto. Ao contrário, as palavras “product as a whole” não aparecem em lugar algum no Acordo Antidumping e a palavra “produto” no artigo 2.1 admite significado “transaction-specific”, afinal os produtos são sempre introduzidos no país importador por meio de transações individuais. Para os americanos, o fato de o dumping ser uma prática do exportador também não impede que ele seja encontrado em apenas algumas transações. Uma margem de dumping determinada com base nas ações do exportador com relação a uma transação individual não é menos “exporter-specific” do que aquela calculada com base em múltiplas transações daquele mesmo exportador.

Os EUA também argumentaram que o Acordo Antidumping permitiria acomodar não somente a interpretação dada pelo Brasil ao conceito de dumping (“for the product as a whole”), mas também a interpretação americana desse conceito (“transaction-specific”). Isso porque o artigo 17.6(ii) do Acordo Antidumping abre a possibilidade de os painéis admitirem mais de uma interpretação permitida (“permissible interpretation”) de determinado conceito, sendo que as ações da autoridade investigadora, quando baseadas nessa interpretação permitida, devem ser consideradas compatíveis com o aquele acordo.

Nesse ponto específico, o Brasil defendeu que a possibilidade aberta pelo artigo 17.6(ii) do Acordo Antidumping não vai ao ponto de permitir duas interpretações “rivais” e mutuamente excludentes e que, de toda forma, o OA já havia se pronunciado em casos anteriores no sentido de que a única interpretação permitida dos conceitos de “dumping” e “margem de dumping” é aquela que considera “o produto como um todo”.

Valéria Mendes Costa

210

Além dos pontos acima mencionados, e de outros argumentos para justificar a definição “transaction-specific” de dumping, os EUA alegaram, ainda, que o “zeroing” só seria incompatível com o artigo 9.3 do Acordo Antidumping se efetivamente resultasse na cobrança de direitos antidumping acima da margem de dumping.

No tocante a esse argumento específico, os EUA tentaram defender que o uso do “zeroing” não configurava violação do artigo 9.3 do Acordo Antidumping se não houvesse impacto nos direitos cobrados. A violação existiria se direitos antidumping fossem cobrados acima da margem de dumping. Se não há cobrança de direitos porque a margem é de minimis, por exemplo, não se poderia falar em cobrança de direitos acima da margem de dumping.

O Brasil contra-argumentou, com base no contencioso “US – Zeroing (Japan)”3, que o mero uso do “zeroing” já era suficiente para configurar violação do artigo 9.3 independen-temente de seu impacto nos direitos cobrados. Também demons-trou que o “zeroing” teve, de fato, impacto na margem calculada para uma das empresas na primeira revisão administrativa, pois, ainda que tenha sido de minimis, teria sido zero caso o “zeroing” não tivesse sido utilizado. O mesmo ocorreu em rela-ção aos direitos cobrados da outra empresa na segunda revisão administrativa. Ademais, o “zeroing” teve impacto real para as empresas que não puderam requerer a revogação da ordem antidumping. No sistema americano, se um exportador tem margem de dumping zero por três anos consecutivos ele pode requerer o término da ordem antidumping. Ora, como o “ze-roing” foi utilizado nas duas revisões administrativas das duas empresas afetadas, essas empresas perderam a possibilidade de requerer a revogação da ordem antidumping.

3 Relatório do painel de 21.5 – US – Zeroing (Japan), para. 7.162.

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

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3.2.1.2 Argumentos das partes no tocante ao Artigo 2.4 do Acordo Antidumping

O Brasil também alegou no decorrer do contencioso que o uso do “zeroing” nas revisões administrativas é incompatível com o artigo 2.4 do Acordo Antidumping, independentemente do impacto que o “zeroing” pode ter causado nos direitos cobrados.

A primeira frase desse artigo determina que “[a] fair comparison shall be made between the export price and the normal value”. O restante do artigo estabelece os ajustes que devem ser feitos no preço de exportação e no valor normal de forma a que eles possam ser comparados (os preços têm de ser analisados no mesmo nível de comércio, em relação a vendas efetuadas na mesma época, com ajustes de impostos etc.).

Para o Brasil, o foco dessa primeira frase estava na comparação entre o preço de exportação e o valor normal, que deve ser “fair”. Dito de outra forma, o requisito de “fairness” contido nesse artigo diz respeito não somente à obrigação da autoridade investigadora de selecionar e ajustar preços de forma a que sejam comparáveis, mas também, e sobretudo, à “comparação em si”. E uma comparação justa é aquela que não é parcial ou enviesada. Como o “zeroing” necessariamente exclui resultados negativos, ele não é uma metodologia imparcial. O Brasil apoiou-se no OA que já havia se pronunciado no sentido de que “there is an inherent bias in a zeroing methodogy”4 e que a metodologia de “zeroing” “cannot be described as impartial, even-handed, or unbiased”5.

4 Relatório do Órgão de Apelação, U.S. – Corrosion-Resistant Steel Sunset Review, para. 135.5 Relatório do Órgão de Apelação, U.S. – Zeroing (Japan), para. 146.

Valéria Mendes Costa

212

Para os EUA, no entanto, a obrigação de “fairness” contida no artigo 2.4 dizia respeito somente à obrigação da autoridade investigadora de selecionar as transações e de efetuar os ajustes necessários nos preços para que pudessem ser comparados.

3.2.1.3 Decisão do painel quanto ao conceito de “dumping”

Como o painel bem reconheceu:

the fundamental question that lies at the heart of Brazil’s

claims is the following: how does the AD Agreement

define the notion of “dumping”? Is Brazil correct in

submitting that “dumping” is a concept that relates to

an exporter’s overall pricing behaviour that Members

are only entitled to measure with respect to the “product

as a whole”? Or does the AD Agreement, as the United

States argues, permit both this and a transaction-

specific conception of “dumping”?6.

Para responder às perguntas acima, o painel analisou o conceito de dumping nos artigos mencionados pelo Brasil e pelos EUA e concluiu que “the text alone” desses artigos não resolvia a questão sobre se o dumping deve ser medido para “o produto como um todo” ou “transação a transação”. Segundo o painel:

[...] the language of Article 2.1 of the AD Agreement and

Article VI:1 of the GATT 1994 is drafted in such general

terms that render both provisions potentially capable

of capturing either of the two conceptions of “dumping”

advanced by the parties.

6 Relatório do painel, para. 7.88

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

213

O painel também analisou o contexto em que aqueles artigos estavam inseridos, bem como o objeto e propósito do Acordo Antidumping e decidiu que não havia nada nos textos legais que respaldasse a tese de que o dumping deveria ser calculado para “o produto como um todo”. Embora os artigos mencionados pudessem fazer referência ao “produto”, à margem de dumping “individual” etc., nenhum deles explicava como “a” margem de dumping deveria ser calculada – se por meio da agregação de todas as comparações ou somente das comparações em que o valor normal excedesse o preço de exportação.

Quanto ao argumento brasileiro de que o dumping era um conceito relativo ao exportador, o painel concordou com o Brasil, mas afirmou que:

[…] this tells us little about how to make a determination

of “dumping”, and in particular, whether the focus of

such a determination should be an individual exporter’s

overall pricing behaviour in respect of the “product as a

whole” or an exporter’s princing behaviour considered on

a transaction-specific basis7.

Em suma, os painelistas não encontraram nenhum argumento que justificasse uma definição única de “dumping” para “o produto como um todo”. No entanto, relembrando que o OA já havia decidido que essa deveria ser a única interpretação permitida do conceito de dumping8, os painelistas seguiram a jurisprudência e acabaram por decidir que o “dumping can only be determined for the product as whole, and not individual transactions”9.

7 Relatório do painel, para. 7.102.8 Relatório do painel (DS382), para. 7.130 a 7.134.9 Relatório do painel (DS382), para. 7.135.

Valéria Mendes Costa

214

Tendo decidido dessa forma no tocante ao conceito de dumping, e entendendo que o “zeroing” ocorre no processo de comparação dos preços dos produtos, os painelistas optaram por analisar, primeiro, a alegação de violação do artigo 2.4 do Acordo Antidumping.

3.2.1.4 Decisão do painel sobre o Artigo 2.4 do Acordo Antidumping

Nesse particular, o painel decidiu que a obrigação da autoridade investigadora de efetuar uma “comparação justa” entre o preço de exportação e o valor normal vai além da seleção dos preços e dos ajustes que devem ser feitos para assegurar que os preços sejam comparáveis. O que deve ser “justo” é a comparação em si.

Como a agregação dos resultados intermediários pelo USDOC faz parte do processo de comparação do preço de exportação e do valor normal, ela também deve ser “justa”. Para o painel, um método de comparação (“zeroing”) que ignora determinadas transações, que, se levadas em conta, resultariam em uma margem de dumping menor, deveria ser considerado “injusto” e, portanto, incompatível com o artigo 2.4, independentemente do montante final de direitos cobrados. Como bem ressaltou o painel, “the obligation under Article 2.4 is focused on the ‘comparison’ between export price and normal value, not its impact. In other words, it is the nature of the ‘comparison’ itself, and not the results of that comparison, that is disciplined under Article 2.4”10.

Tendo em vista essa decisão, os painelistas consideraram, para efeitos de resolução da disputa, que não seria necessário julgar as alegações de violação dos artigos VI:2 do GATT 1994

10 Relatório do painel (DS382), para. 7.156.

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

215

e 9.3 do Acordo Antidumping. Exerceram, então, economia processual em relação a esses artigos.

3.2.2 O uso contínuo do “zeroing” viola os Artigos 9.3 do Acordo Antidumping e VI:2 do GATT 1994 e o Artigo 2.4.2 do Acordo Antidumping.

3.2.2.1 Argumentos das partes

A outra medida americana questionada pelo Brasil foi o uso contínuo do “zeroing” nos procedimentos antidumping sucessivos relativos à ordem antidumping sobre o suco de laranja brasileiro. O Brasil comprovou que o “zeroing” não somente havia sido utilizado na investigação original, nas duas revisões administrativas completadas até então e no resultado preliminar da terceira revisão ainda em andamento, mas também que ele continuaria a ser usado nos cálculos finais da terceira revisão, pois, a menos que houvesse uma mudança na legislação americana, o USDOC continuaria a interpretar o dumping como um conceito “transaction-specific”, o que significa que continuaria a desprezar os resultados intermediários das comparações em que o preço de exportação estivesse acima do valor normal. Nesse particular, o Brasil demonstrou, por meio de declarações da autoridade investigadora americana constantes de memorandos oficiais, que a política a respeito do “zeroing” permanecia inalterada apesar das inúmeras decisões na OMC contrárias àquela prática.

Para o Brasil, essa “string of connected and sequential determinations” tomadas com o uso do “zeroing” configurava “conduta em andamento” passível de ser questionada na OMC. Ela era incompatível com o artigo 2.4.2, porque esse artigo exige que “all comparable export transactions” sejam levadas em conta no cálculo da margem de dumping em investigações

Valéria Mendes Costa

216

originais e era incompatível com os artigos 9.3 e 2.4 do Acordo Antidumping e VI:2 do GATT 1994 pelas mesmas razões levantadas pelo Brasil no tocante às revisões administrativas.

Os EUA alegaram que o Brasil não havia conseguido comprovar o uso do “zeroing” em número suficiente de procedimentos de forma que se configurasse “uso contínuo”. Na investigação original, alegaram que o “zeroing” não tinha tido impacto algum, pois não havia resultados intermediários negativos que pudessem ser agregados, já que todas as transações estavam abaixo do valor normal. No tocante às revisões, voltaram a alegar a falta de impacto nos direitos cobrados até então e que não se poderia afirmar que o “zeroing” continuaria a ser usado no futuro. O Brasil, portanto, não havia conseguido comprovar a existência da medida.

Com base na jurisprudência do contencioso “US – Continued Zeroing (DS350)”, em que medida muito semelhante tinha sido julgada, o Brasil defendeu-se, afirmando que o “zeroing” tinha sido utilizado “sem interrupção, em diferentes tipos de procedimentos ao longo de um período de tempo estendido”11. Não havia tido “fragmentação” no seu uso, pois o USDOC havia recorrido à prática “em todas as oportunidades disponíveis”12. O fato de o “zeroing” não ter de fato operado na investigação original não prejudicava o argumento brasileiro, pois o País não estava questionando o impacto do “zeroing” nos resultados, mas seu “uso” em procedimentos sucessivos.

3.2.2.2 Decisão do painel

O painel decidiu, em primeiro lugar, que o Brasil havia comprovado a existência da medida (o uso do “zeroing” em

11 Segunda petição do Brasil, para. 29.12 Segunda petição do Brasil, para. 31.

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

217

procedimentos antidumping sucessivos). Com relação à investigação original, o painel concluiu que:

(...) the fact that the particular circumstances of the

original investigation were such that the “zeroing”

instruction did not function to remove any negative

export price to normal value comparisons does not

invalidate Brazil’s claim, because it is the very existence

of the “zeroing” instruction in the computer programmes

used to calculate the relevant margins of dumping,

independent of its application, that is the subject of

Brazil’s complaint13.

Com relação ao uso do “zeroing” na terceira revisão administrativa, o painel notou que o Brasil não havia questionado o resultado dessa revisão. O Brasil a havia incluído nos seus argumentos ao longo do contencioso somente como prova de que o “zeroing” continuava a ser utilizado pelos EUA. Portanto, o painel negou o pedido americano de que a terceira revisão fosse excluída dos termos de referência do painel e decidiu que o Brasil havia conseguido comprovar o “uso contínuo” do “zeroing” em diferentes procedimentos antidumping sucessivos (investigação original, primeira, segunda e terceira revisões administrativas). O painel compreendeu que o Brasil estava trazendo para julgamento justamente uma prática contínua, consistente, de uso do “zeroing” independentemente da aplicação e do impacto dessa metodologia de cálculo em fases individuais.

Quanto às violações apontadas pelo Brasil, o painel já havia decidido que o “zeroing” nas revisões administrativas era incompatível com o artigo 2.4 do Acordo Antidumping.

13 Relatório do Painel, para. 7.185.

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De acordo com o painel, decorria necessariamente que o uso contínuo do “zeroing” também era incompatível com esse mesmo dispositivo. O painel exerceu economia processual em relação aos demais pleitos do Brasil.

Em suma, o painel decidiu que os EUA haviam violado a obrigação de efetuar uma comparação justa, prevista no artigo 2.4 do Acordo Antidumping, tanto no que diz respeito às duas revisões administrativas, como no tocante à medida do uso contínuo.

Como as partes não apelaram da decisão do painel, o relatório foi adotado, e Brasil e EUA acordaram que este último teria nove meses para cumprir com as recomendações do Órgão de Soluções de Controvérsias, prazo que expiraria em 17 de março de 2012.

4. A implementAção dAs recomendAções do pAinel e o fim do contencioso

Durante o período de implementação, dois eventos determinaram o rumo do contencioso do suco de laranja: (i) os EUA assinaram acordos com União Europeia (UE) e Japão, pondo fim às disputas que esses países moviam contra os EUA na OMC14, e (ii) o USDOC publicou nova legislação, revendo os procedimentos para o cálculo das margens de dumping em revisões administrativas.

Pelos acordos assinados com UE e Japão, em 6/2/2012, os EUA comprometeram-se a não mais utilizar o “zeroing” nos cálculos da margem de dumping e dos direitos antidumping em revisões administrativas futuras. Em troca, europeus e japoneses abandonaram seus respectivos contenciosos contra os EUA na OMC.

14 DS294 e DS350 (UE) e DS322 (Japão).

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

219

O ponto a ressaltar desses acordos é que o “zeroing” deixou de ser aplicado apenas nos cálculos futuros. Nos procedimentos antidumping passados que ainda não tinham sido concluídos, porque os direitos finais ainda não tinham sido cobrados por motivo de suspensão judicial da cobrança, o “zeroing” não foi abandonado. Em outras palavras, o “zeroing” aplicado nessas revisões passadas continuou a produzir efeitos, já que os direitos antidumping respectivos foram calculados e cobrados com o uso dessa prática.

Esse desfecho alcançado com UE e Japão vai na contramão da jurisprudência da OMC sobre o assunto, que tem sido no sentido de que, findo o período de implementação, qualquer cobrança de direito antidumping, mesmo relativa a revisões administrativas passadas, deve ser feita sem o uso do “zeroing”. Não se sabe por que a UE e o Japão aceitaram esse resultado, se por mero pragmatismo, após anos de contencioso na OMC, ou por alguma outra razão.

Na esteira desses acordos, em 13/2, o USDOC publicou nova legislação, sobre o uso do “zeroing” em revisões administrativas. Pela nova regra, que refletia os acordos com UE e Japão, o “zeroing” não seria mais utilizado nos cálculos da margem de dumping e dos direitos antidumping em revisões administrativas cujos resultados preliminares forem publicados a partir de 16 de abril de 2012.

Observa-se, então, que a medida de implementação adotada pelos EUA teve efeito única e exclusivamente prospectivo, já que os EUA deixaram de aplicar o “zeroing” apenas nas revisões futuras. Os EUA não aceitaram recalcular, sem o “zeroing”, os direitos antidumping ainda não cobrados relativos a revisões passadas que ainda estavam pendentes de conclusão por causa de processos judiciais nos EUA.

Valéria Mendes Costa

220

Embora o Brasil tenha defendido, com base na jurisprudência do OA, que as ações de cobrança são medidas de implementação e, portanto, para serem compatíveis com as regras da OMC não podem dizer respeito a direitos antidumping calculados com o “zeroing”, e pudesse optar por questionar a medida de implementação adotada pelos EUA em um painel de implementação (previsto no artigo 21.5 do ESC), o Brasil decidiu não abrir o referido painel de imediato. Optou por assinar um acordo de “sequencing”, pelo qual se reservou o direito de abrir um painel de implementação em momento futuro. Neste acordo, Brasil e EUA também se comprometeram a conversar antes do final de 2012 com vistas a encontrar uma solução para o contencioso.

Nesse sentido, em 14 de fevereiro de 2013, Brasil e EUA informaram ao Órgão de Solução de Controvérsias que haviam encontrado uma Solução Mutuamente Satisfatória para o contencioso do suco de laranja, decidindo encerrá-lo15.

5. comentários finAis

Como foi dito no começo deste artigo, o contencioso do suco de laranja não foi o único a questionar a prática do “zeroing”. Sete disputas já tinham sido abertas contra os EUA quando o Brasil iniciou seu caso, e outras seguiram após o contencioso do suco de laranja. Esse número expressivo de disputas ao longo de quase uma década envolvendo o mesmo assunto pode ser explicado pela obstinação com que os EUA defenderam sua interpretação do conceito de dumping. Essa obstinação, por sua vez, foi, de certa forma, “alimentada” pelas decisões dos painéis nos contenciosos relativos ao “zeroing”.

15 Documento WT/DS382/12.

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

221

É interessante notar que em todos os casos julgados até o contencioso do suco de laranja, com exceção de um16, os painelistas entenderam que o “zeroing” nas revisões administrativas era uma prática permitida pelo Acordo Antidumping. Foi apenas na fase de apelação daqueles contenciosos que o OA reverteu as decisões dos painéis, condenando o “zeroing”.

No caso do suco de laranja, o “zeroing” foi condenando já na fase de painel. Essa condenação, no entanto, não se deu por convicção dos painelistas de que o “zeroing” violava as regras multilaterais de comércio. Pelo contrário. Como se procurou demonstrar neste artigo, os painelistas não conseguiram encontrar uma definição única de dumping que excluísse a tese americana de que o dumping podia ser aferido transação a transação. Também não encontraram uma proibição geral dessa prática nos textos legais. No entanto, os painelistas condenaram o uso do “zeroing” em deferência à jurisprudência do OA. Como reconheceram os painelistas:

[i]nevitably, irrespective of the position taken by those

(and any future) panels on the definition of “dumping”,

the Appellate Body will decide the matter by following

its previous rulings.

Em razão disso, os painelistas:

believe[d] that, on balance, [their] function under Article

11 of the DSU, and the integrity and effectiveness of the

WTO dispute settlement system, are best served in the

present instance by following the Appellate Body.

Portanto, o primeiro ponto a ressaltar é que o “zeroing” continua sendo uma prática controvertida na OMC. Os

16 US – Continued Zeroing (EC) (DS350).

Valéria Mendes Costa

222

painelistas tendem a concordar com as teses americanas, enquanto o OA, não.

Apesar disso, e esse é um segundo ponto a ressaltar, o uso do “zeroing” foi definitivamente condenado pelos Membros da OMC. Como todos os relatórios do OA nos contenciosos envolvendo o “zeroing” foram adotados, pode-se afirmar que os Membros da OMC revalidaram as decisões daquele órgão. Nesse sentido, o contencioso do suco de laranja contribuiu para reforçar o papel do OA como instância decisora final e para reafirmar o princípio de que, embora as decisões dos painéis e do OA só valham para as partes da disputa, essas decisões devem ser seguidas sempre que possível em nome da segurança e previsibilidade do sistema de solução de controvérsias da OMC.

O contencioso do suco de laranja também fez avançar a jurisprudência a respeito do “zeroing”. Por um lado, firmou-se o entendimento de que o uso sucessivo e contínuo dessa prática configurava uma medida incompatível com os acordos da OMC17. Como consequência dessa condenação, os Membros da OMC não precisam mais questionar os procedimentos antidumping individualmente, e os EUA não podem mais furtar-se de incluir nas suas obrigações de implementação o procedimento antidumping condenado sob a alegação de que a medida não está mais em vigor. Por outro lado, também se avançou no entendimento de que o “zeroing” é incompatível com o artigo 2.4 do Acordo Antidumping independentemente de seu impacto na margem de dumping e no montante final dos direitos cobrados. O mero uso do “zeroing” viola a obrigação de efetuar uma comparação justa entre o preço de exportação e o valor normal do produto no mercado doméstico.

17 Essa medida foi questionada e condenada pela primeira vez no contencioso “US – Continued Zeroing” (EC)(DS350).

A lasting resolution to the “zeroing” controversy? o caso do suco de laranja

223

De um ponto de vista mais prático, o contencioso do suco de laranja incentivou os EUA a mudarem sua legislação a respeito do “zeroing”. Embora a mudança tenha sido apenas prospectiva, já que não corrigiu os efeitos do uso do “zeroing” em revisões administrativas passadas, ela representou uma importante mudança de atitude dos EUA que, após décadas de uso do “zeroing”, decidiram finalmente abandoná-lo em revisões administrativas futuras.

Por fim, o contencioso do suco de laranja também contribuiu positivamente para o encerramento da ordem antidumping sobre o suco de laranja nos EUA. Referida ordem, em vigor desde 2006, foi revogada pela ITC em março de 2012, e, em consequência, todos os direitos antidumping pagos a partir de março de 2011 foram reembolsados aos exportadores brasileiros.

Em suma, a prática do “zeroing” em investigações originais e em revisões antidumping parece estar abolida. Contudo, quem pensa que a saga do “zeroing” está definitivamente terminada pode ficar frustrado. O sistema de solução de controvérsias da OMC ainda não se pronunciou sobre a legalidade do uso do “zeroing” em situações de “targeted dumping”, ou seja, em situações em que o dumping é direcionado a algumas regiões, compradores ou épocas do ano específicas. A própria legislação americana deixou aberta essa “janela”.

Esperemos que não seja necessária mais uma década de contenciosos a esse respeito para que os Membros da OMC consigam disciplinar o eventual uso do “zeroing” nessas situações.

225

Nascido no Recife, em 28 de fevereiro de 1980, é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2009), mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco (2005) e graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2003). Desde julho de 2003, é diplomata do Ministério das Relações Exteriores. Atuou na área de solução de controvérsia na Coordenação-Geral de Contenciosos em Brasília, de 2005 a 2008, e na Delegação do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) em Genebra, de 2008 a 2011. Atualmente, serve na Embaixada do Brasil em Assunção.

o contencioso dos medicAmentos genéricos:

liBerdAde de trânsito e propriedAde intelectuAl

Bruno Guerra Carneiro Leão

227

1. introdução

Em dezembro de 2008, autoridades aduaneiras dos Países Baixos retiveram, no aeroporto de Amsterdam, carga contendo 500 quilos de Losartan Potassium,

princípio ativo utilizado na fabricação de medicamentos contra hipertensão arterial. Tratava-se de bem em trânsito da Índia para o Brasil, em transação comercial entre empresa indiana exportadora e empresa brasileira importadora.

A decisão das autoridades aduaneiras foi motivada por requerimento das empresas detentoras dos direitos de patente do Losartan Potassium nos Países Baixos. O pedido baseou- -se em alegação de violação dos direitos patentários dessas empresas nos Países Baixos e encaminhado em conformidade com o Regulamento 1383/2003 do Conselho Europeu (Council Regulation), de 22 de julho de 2003. O referido Regulamento dispõe sobre “customs actions against goods suspected of infringing intellectual property rights and the measures to be taken against goods found to have infringed such rights”.

O Losartan Potassium não é protegido por patente no Brasil ou na Índia. A carga apreendida nos Países Baixos foi liberada com a condição de retornar à origem (Índia), em janeiro de 2009, após 36 dias de retenção pelas autoridades holandesas. O caso foi o primeiro envolvendo medicamentos destinados ao Brasil, mas vários outros episódios de apreensão de medicamentos genéricos em trânsito foram registrados no período.

Bruno Guerra Carneiro Leão

228

Brasil e Índia manifestaram preocupação à União Europeia (UE) e, como o tema não foi resolvido, pediram consultas ao amparo do Entendimento sobre Solução de Controvérsias (DSU) em maio de 2010. As consultas foram realizadas em duas rodadas, nos meses de julho e setembro do mesmo ano. A troca de informações viabilizada pelas consultas permitiu que Brasil e Índia, de um lado, e UE, de outro, compreendessem as respectivas preocupações, ainda que não tenha havido, pela parte europeia, reconhecimento de violação das disciplinas multilaterais pela apreensão de medicamentos genéricos em trânsito.

Diante da inexistência de novas apreensões, os codemandantes não solicitaram a abertura de painel para examinar a compatibilidade das medidas europeias com os acordos multilaterais. O episódio suscita, no entanto, interessantes reflexões sobre a relação entre o princípio da liberdade de trânsito e a proteção aos direitos de propriedade intelectual no âmbito das disciplinas da OMC. Este artigo explora essa relação da perspectiva jurídica, sem fazer referência direta ao contencioso entre Brasil, Índia e União Europeia sobre o tema.

2. A liBerdAde de trânsito no gAtt 1994O Artigo V do GATT 1994 (intitulado “Liberdade de

Trânsito”) é redigido nos seguintes termos em sua versão original em inglês:

1. Goods (including baggage), and also vessels and

other means of transport, shall be deemed to be in transit

across the territory of a contracting party when the passage

across such territory, with or without trans-shipment,

warehousing, breaking bulk, or change in the mode of

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual

229

transport, is only a portion of a complete journey beginning

and terminating beyond the frontier of the contracting

party across whose territory the traffic passes. Traffic of

this nature is termed in this article “traffic in transit”.

2. There shall be freedom of transit through the

territory of each contracting party, via the routes

most convenient for international transit, for traffic

in transit to or from the territory of other contracting

parties. No distinction shall be made which is based on

the flag of vessels, the place of origin, departure, entry,

exit or destination, or on any circumstances relating to

the ownership of goods, of vessels or of other means of

transport.

3. Any contracting party may require that traffic in

transit through its territory be entered at the proper

custom house, but, except in cases of failure to comply

with applicable customs laws and regulations, such traffic

coming from or going to the territory of other contracting

parties shall not be subject to any unnecessary delays or

restrictions and shall be exempt from customs duties

and from all transit duties or other charges imposed

in respect of transit, except charges for transportation

or those commensurate with administrative expenses

entailed by transit or with the cost of services rendered.

4. All charges and regulations imposed by contracting

parties on traffic in transit to or from the territories of

other contracting parties shall be reasonable, having

regard to the conditions of the traffic.

[…]

Bruno Guerra Carneiro Leão

230

7. The provisions of this Article shall not apply to

the operation of aircraft in transit, but shall apply to air

transit of goods (including baggage).

As obrigações mais relevantes para o presente exercício são as que se encontram nos parágrafos 2º e 3º do Artigo V do GATT 1994 e poderiam ser resumidas da seguinte forma: “os Membros não devem obstar o livre tráfego de bens em trânsito mediante a imposição de atrasos ou restrições desnecessárias”.

O princípio geral do Artigo V, portanto, é o da liberdade de trânsito. Esta, no entanto, não é irrestrita. Há duas situações, previstas no parágrafo 3º, em que os Membros podem impor limites a essa liberdade: no caso de descumprimento de leis e regulamentos aduaneiros aplicáveis e no caso da imposição de atrasos ou restrições necessários.

Em caso de obstrução à liberdade e ao trânsito, e não havendo descumprimento das mencionadas normas aduaneiras, é necessário examinar se a obstrução à liberdade de trânsito corresponde à imposição de “unnecessary delay or restriction” no sentido do parágrafo 3º do Artigo V.

Existe ampla jurisprudência do mecanismo de solução de controvérsias da OMC relacionada ao termo “necessidade”, no contexto do “teste de necessidade” aplicado a vários contenciosos em que o Artigo XX do GATT 1994 ou o Artigo XIV do GATS foram invocados. A análise desse teste pode, portanto, ser relevante para o exame da “necessidade” da imposição de atrasos ou restrições no sentido do Artigo V.

Vale notar, contudo, que, no contexto do Artigo XX, trata-se de determinar se uma medida é necessária para alcançar determinado objetivo, como por exemplo a proteção da saúde ou o cumprimento de leis e regulamentos internos compatíveis

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual

231

com o GATT 1994. Ademais, as cláusulas do Artigo XX são normalmente invocadas pela parte reclamada, que procura se valer de uma “exceção de defesa”, para justificar medida que, de outra forma, seria incompatível com o GATT 1994. O ônus da prova da necessidade, nesse caso, é da parte reclamada.

No Artigo V, por outro lado, a questão das “unnecessary delays or restrictions” não aparece no contexto de uma exceção de defesa, como é o caso do Artigo XX. Nessas condições, caberia à parte demandante o ônus de mostrar que as medidas questionadas efetivamente constituem “unnecessary delays or restrictions”. Além disso, o Artigo V não especifica qualquer objetivo à luz do qual poderia ser julgada a necessidade da imposição de atrasos ou restrições. Caberia ao intérprete responder à pergunta: “atrasos ou restrições desnecessárias para quê?”. Uma resposta possível seria: desnecessárias para o desempenho normal das funções aduaneiras ao lidar com o tráfego de bens em trânsito. Outra opção seria vincular a ideia de (des)necessidade a quaisquer outros objetivos legítimos, tais como aqueles listados nos Artigos XX e XXI do GATT.

Nesse ponto, o principal argumento de uma parte demandada poderia ser o de que, ao aplicar regulamentos e formalidades ao trânsito de bens que não são destinados ao seu território, não cabe às autoridades aduaneiras impor atrasos ou restrições adicionais aos que seriam esperados do exercício normal de suas funções com o objetivo de assegurar a observância de direitos de propriedade intelectual estabelecidos naquele território. Como será examinado mais adiante, direitos de propriedade intelectual são de natureza territorial. Nessa linha, seria improvável que os direitos de um titular no país de trânsito pudessem ser violados pela existência de comércio cuja origem e destino situam-se fora das fronteiras daquele país.

Bruno Guerra Carneiro Leão

232

O artigo 28 de TRIPS confere ao detentor de uma patente os direitos exclusivos de “making, using, offering for sale, selling or importing for these purposes”, além dos direitos de “assign, or transfer by succession, the patent and to conclude licensing contracts”. Esses direitos compõem o conjunto clássico de direitos que as legislações nacionais preveem, de maneira geral, para os titulares de patente. Uma carga de medicamentos que não se destine ao mercado do país de trânsito não implicaria risco de alguém, sem a autorização dos detentores da patente, “produzir, usar, colocar à venda ou importar” o princípio ativo na jurisdição desse país.

Nessas condições, qualquer procedimento aduaneiro que represente atraso ou restrição sobre o trânsito de bens com o propósito de averiguar violações de direitos de propriedade intelectual no país de trânsito seria, por definição, desnecessário no sentido do Artigo V. No entanto, isso é precisamente o que fizeram as autoridades holandesas no caso da retenção do Losartan importado pelo Brasil, e não parecia ser outro o propósito do Regulamento 1383/2003, na medida em que se aplica a bens em trânsito.

3. A liBerdAde de trânsito e o Acordo trips

Os Artigos 51 e 52 do TRIPS estão inseridos na Parte III – relativa à observância de direitos de propriedade intelectual (DPI), Seção IV – concernente a requisitos especiais para medidas de fronteira –, do Acordo. A posição do Artigo 51 na “geografia” do TRIPS é importante aspecto contextual a ser levado em conta na análise da admissibilidade de restrições à liberdade de trânsito com fundamento na proteção de DPI.

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual

233

O Acordo TRIPS estabelece, em geral, padrões mínimos (ou “pisos”) para o nível de proteção legal a ser conferido aos titulares de DPI. Em função dessa característica, é comum enxergar violações do Acordo associadas à proteção deficiente dos DPI, mas não o contrário. Ocorre que os dispositivos da Seção IV da Parte III estipulam, além de padrões mínimos, certos limites para a definição de medidas de observância aplicadas “na fronteira”. Esses limites, ou requisitos, correspondem a “tetos” para o nível de proteção que os Membros podem conferir aos detentores de DPI.

Existem dispositivos em outras seções do TRIPS cujo objetivo é matizar a proteção à PI. Esses dispositivos visam a permitir que os Membros possam perseguir objetivos de política pública legítimos, mesmo quando esses afetam DPI amparados pelo TRIPS, e têm a natureza de exceções ou de flexibilidades – são exemplos os Artigos 8º, 13, 17 e 30 e o parágrafo 5º do Artigo 41. Essas exceções e flexibilidades podem servir como meio de defesa para um Membro acusado de violar determinada obrigação de proteção legal ou de observância (“enforcement”). Elas também têm valor para a interpretação de compromissos substantivos, que não podem negar a sua aplicabilidade sob pena de infringir o “princípio da eficácia”. Não parece ser juridicamente viável, no entanto, caracterizar exceções ou flexibilidades como dispositivos violados por medida de outro Membro. Disso decorre a dificuldade de se construir um caso com base em alegada violação prima facie de provisões do TRIPS que conferem aos Membros a flexibilidade, o direito ou a autoridade para se afastarem de certas obrigações de proteção com vistas a promover objetivos legítimos.

Em contraste, no caso da Seção 4 da Parte III, os Membros parecem ter ido mais longe de que no restante do TRIPS

Bruno Guerra Carneiro Leão

234

para impedir que a proteção exacerbada de DPI afete outros interesses legítimos (neste caso, a liberdade de comércio1). Essa Seção estabelece obrigações (“shall”) para os Membros na forma de requisitos destinados a evitar que medidas de observância aplicadas na fronteira prejudiquem, de forma injustificada, o proprietário da carga ou o importador. Tais requisitos estão presentes: na primeira frase do Artigo 52; nas primeiras frases dos parágrafos 1 e 2 do Artigo 53; na primeira e segunda frases do Artigo 55; no Artigo 56; na segunda frase do Artigo 57; e na alínea (b) do Artigo 58.

Esse comentário introdutório tem como propósito destacar que a liberdade de comércio – da qual a liberdade de trânsito é com-ponente indissociável – recebeu dos negociadores do TRIPS especial deferência. Nesse sentido, é lícito defender que os dispositivos do TRIPS e, em especial, da Seção 4 de sua Parte III, devem ser lidos de maneira a preservar o objetivo dos negociadores de evitar que medidas de fronteira levem à perturbação injustificada do comércio internacional.

O Artigo 51 do TRIPS determina que os Membros adotem procedimentos para habilitar os titulares de direitos de autor e de marcas a requerem a suspensão, pelas autoridades aduaneiras, da liberação para livre circulação de mercadorias importadas suspeitas de infringirem tais direitos. A segunda frase do Artigo 51 estipula que, para outros tipos de DPI, os Membros podem (“may”) aplicar os procedimentos em questão. A nota de rodapé 13 dispõe, a seu turno, que: “It is understood that there shall be no obligation to apply such procedures [...] to goods in transit”.

Ao ler esses dispositivos, a primeira inferência que se pode fazer é que, ao esclarecer que os Membros não estão obrigados

1 Outro dispositivo da Parte III do TRIPS que contém obrigação de finalidade semelhante é a última frase do Artigo 41.1.

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual

235

a estender os procedimentos do Artigo 51 a bens em trânsito, a nota de rodapé tampouco proíbe essa extensão. Mais que isso, a interpretação sistemática da nota 13 levaria à conclusão de que a linguagem utilizada autoriza, indiretamente, a aplicação dos referidos procedimentos a bens em trânsito2. Em passagens da própria Seção 4 em que desejaram proibir algo (como na segunda frase do parágrafo 59), os negociadores valeram-se de linguagem taxativa: “the authorities shall not (...)”.

Em primeiro lugar, isso significa que o Membro demandante dificilmente poderia estabelecer uma violação prima facie do Artigo 51, conforme esclarecido pela nota de rodapé 13. Em segundo lugar, é certo que em contencioso envolvendo outras disciplinas, como o Artigo 52 do TRIPS ou o Artigo V:3 do GATT 1994, a parte demandada buscaria amparo na interpretação da nota de rodapé 13 para demonstrar que a retenção de bens em trânsito, por suspeita de violação de direitos de propriedade intelectual, é justificável (a ponto de ser implicitamente admitida pelo TRIPS), e que, portanto, não pode ser considerada desnecessária no contexto do Artigo V:3 do GATT e deve ser presumida necessária nos termos do Artigo XX(d) do mesmo acordo3.

Nesse quadro, caberia ao demandante propor a leitura da nota de rodapé 13 que, por um lado, não ampare a legislação e a prática de retenção de mercadorias em trânsito com base em alegada infração a DPI no país de trânsito e que, por outro, atente ao princípio da eficácia e não desconsidere os termos da nota.

2 O relatório do Painel no contencioso China – PI (DS362), em sua nota de rodapé 214, comenta que “footnote 13 to TRIPS Agreement sets out an option but contains no contingent obligation. However, footnote 13 limits the scope of the obligation in the first sentence of Article 51 rather than providing for an optional extension”. Trata-se do primeiro reconhecimento, no Mecanismo de Solução de Controvérsias, que a nota de rodapé 13 estabelece uma opção – o que se depreende do próprio texto da nota – não uma proibição.

3 Este argumento será analisado em maiores detalhes na seção subsequente.

Bruno Guerra Carneiro Leão

236

Para esse exercício, é fundamental lembrar que a Seção 4 destina-se, precipuamente, às situações de importação, para livre circulação, de mercadorias suspeitas de infringir direitos de PI. Isso deriva do próprio rol de direitos conferidos pelo TRIPS aos titulares de PI. No caso das patentes, por exemplo, esses direitos se traduzem na exclusividade para: (i) produzir; (ii) vender; ou (iii) importar os produtos patenteados.

Pode-se descartar, de plano, que o trânsito de mercadorias possa afetar os dois primeiros direitos. Quanto ao direito de proibir a importação de produto patenteado por terceiro não autorizado, é preciso conduzir um exercício interpretativo mais sofisticado. A primeira questão a responder é se o conceito de importação envolve, necessariamente, a noção de ulterior comercialização do produto importado no mercado do país em questão ou se, ao contrário, é possível falar em importação nos casos de trânsito de bens.

O sentido lexical das palavras “importação” e “importar” não são particularmente reveladores. O Shorter Oxford English Dictionnary traz as seguintes entradas para esses verbetes:

Importation – 1. The action of importing goods from

abroad.

Import – 2. To bring in (goods or merchandise) from a

foreign country, in international commerce.

Apesar de ser um dos conceitos fundamentais para o comércio internacional, o substantivo “importação”, ou o verbo “importar”, tampouco foram definidos por painéis ou pelo Órgão de Apelação. Diante da falta de respaldo nas fontes autorizadas para se descortinar o significado ordinário dessas palavras, é preciso recorrer ao contexto e ao propósito dos dispositivos relevantes para se chegar a uma resposta satisfatória.

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual

237

Uma definição aparentemente plausível seria a de que a importação é o ato por meio do qual um bem entra fisicamente no território de um Membro, nele incluídos o espaço aéreo e o mar territorial. Embora razoável do ponto de vista de outros ramos do direito internacional público (como o Direito do Mar), essa interpretação acarretaria dificuldades para o Direito do Comércio Internacional. Para ilustrar, basta pensar no Artigo II do GATT 1994, um dos pilares fundamentais do sistema multilateral desde a sua criação.

Diversas obrigações constituídas pelo Artigo II do GATT 1994 referem-se ao momento da importação. Se o “conceito geográfico” de importação devesse prevalecer, as provisões relativas à imposição e cobrança de direitos aduaneiros – juntamente com várias outras referentes a “medidas de fronteira” nos acordos da OMC – seriam convertidas em letra morta, dada a impossibilidade de se exercer os direitos, ou cumprir as obrigações, ali contidos no momento exato da entrada de mercadorias nos territórios dos Membros. Deve-se concluir, assim, que esse conceito não é aplicável ao Direito do Comércio Internacional.

A alternativa é caracterizar a importação (para efeitos do Direito da OMC) como ato que se completa quando a autoridade aduaneira libera um bem para sua introdução no mercado do país importador. É manifesta a intenção dos negociadores do GATT 1947, por exemplo, de utilizarem-se desse conceito de importação quando formularam o Artigo II do Acordo. Por extensão, o mesmo conceito se deveria aplicar a outros dispositivos dos Acordos da OMC referentes a medidas de fronteira, a exemplo daqueles contidos na Seção 4 da Parte III do TRIPS4.

4 Esse conceito de importação é utilizado também pela Corte de Justiça das Comunidades Europeias: “‘Importing’ within the meaning of Article 5(3)(c) of the Directive [89/104] and Article 9(2)(c) of the Regulation [1383/2003], which the trade mark proprietor may oppose in sofar as it entails

Bruno Guerra Carneiro Leão

238

Com isso, pode-se voltar à questão inicial. O direito de proibir a importação, por terceiro não autorizado, de produtos protegidos por patentes não deve conferir ao detentor de DPI a faculdade de impedir o trânsito da mercadoria, uma vez que essa não será importada no sentido relevante para o Direito do Comércio Internacional.

Dessa conclusão relativa ao direito patrimonial substantivo do titular do DPI deve derivar conclusão correspondente sobre os procedimentos de observância previstos pela Seção 4 da Parte III do TRIPS. Se o detentor de uma patente, por exemplo, não tem qualquer de seus direitos patrimoniais substantivos afetados pelo trânsito de um bem que, se efetivamente importado, desrespeitaria a patente, também não teria qualquer legitimidade o titular para requerer que a autoridade aduaneira apreendesse a mercadoria em trânsito. Tampouco seria razoável concluir que a autoridade aduaneira seja autorizada a agir de ofício e reter uma carga em trânsito com base na suspeita, ou mesmo da certeza, de que os produtos nela contidos violariam um DPI se importados.

Essa tese tem como vulnerabilidade tornar pouco coerente, à primeira impressão, a linguagem da nota de rodapé 13. Seria preciso, portanto, vislumbrar situações em que os parâmetros descritos acima fossem conciliados com o uso, em alguma modalidade, dos procedimentos do Artigo 51 para bens em trânsito.

‘using [the mark] in the course of trade’ within the meaning of Article 5(1) of the Directive and Article 9(1) of the Regulation, therefore requires introduction of those goods into the Community for the purposes of putting them on the market therein”. “The putting on the market in the Community of goods coming from a third country is subject to their release for free circulation within the meaning of Article 24 EC”. “Entry of non-Community goods for customs procedures such as external transit or customs warehousing is distinguishable from placing them under the customs procedure of release for free circulation, which, pursuant to the first paragraph of Article 79 of the Customs Code, confers on non-Community goods the customs status of Community goods”. (Caso Class International, parágrafos 34, 35 e 36, grifos nossos).

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual

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É possível imaginar ao menos duas situações aptas a dar sentido à nota de rodapé 13, que poderiam configurar hipóteses razoáveis de interferência das autoridades competentes no trânsito de bens, inclusive com base em considerações relativas à proteção de DPI. Em primeiro lugar, pareceria justificável uma norma que previsse a detenção de bens em trânsito a pedido de titular de DPI no país de destino final da carga. Esse procedimento poderia ensejar dificuldades de ordem prática, a começar pela possibilidade de que agentes aduaneiros se vejam compelidos a analisar a legislação de outro país para determinar se o pleito do detentor do DPI afetado apresentou elementos suficientes para caracterizar a suspeita de desrespeito a seu direito5. Essas dificuldades práticas não podem, no entanto, ser colocadas em patamar superior às significativas implicações de ordem sistêmica que um conceito de país de importação diferente daquele defendido nesta seção acarretaria.

A outra hipótese de aplicação aparentemente razoável dos procedimentos do Artigo 51 a bens em trânsito seria a suspensão de liberação de carga que apresente risco de introdução fraudulenta no mercado do país de trânsito (o que caracterizaria um “falso trânsito”). A própria Corte de Justiça das Comunidades Europeias adotou entendimento de que

5 Essa hipótese de aplicação dos procedimentos previstos pelo Artigo 51 do TRIPS a bens em trânsito não é tão exótica quanto se pode imaginar à primeira vista. Ao passo que autoridades administrativas, como agentes aduaneiros, não estão, em regra, habilitados a aplicar o direito de outro país, as autoridades judiciais têm competência para tanto. Essa competência emerge, principalmente, quando se verifica o chamado “fato anormal”, ou seja, aquele em relação ao qual os direitos positivos de dois Estados (com jurisdição sobre tema) conferem tratamento distinto. O Direito Internacional Privado busca resolver esse conflito por meio de uma norma jurídica especial, a “regra de conexão”. Este comentário serve apenas para ilustrar que não é inusitada a aplicação do direito estrangeiro por uma corte nacional. Na hipótese mencionada neste parágrafo, sequer seria necessário recorrer ao Direito Internacional Privado (uma vez que inexistiria “fato anormal” propriamente dito), mas bastaria que o direito interno determinasse que o direito a ser aplicado pela autoridade judicial ao examinar pedido de suspensão de liberação de bem em trânsito é aquele do país de destino final das mercadorias.

Bruno Guerra Carneiro Leão

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a Resolução do Conselho 1383/2003 deve ser interpretada restritivamente, de forma a ser aplicada a bens em trânsito somente se demonstrado (pelo titular do DPI) o risco de internalização dos referidos bens no mercado em questão. Talvez mais que a hipótese analisada no parágrafo anterior, essa modalidade de aplicação dos procedimentos de suspensão de liberação a bens em trânsito demonstra que é possível interpretar a nota de rodapé 13 de forma a, simultaneamente, respeitar a sua linguagem e respaldar o conceito de “importação” compatível com o Direito do Comércio Internacional.

Neste ponto, é preciso lembrar que esses comentários não têm relevância “ofensiva” no contexto do Artigo 51 do TRIPS. Uma vez que esse Artigo não traz limites para a atuação da aduana, não se poderia caracterizar violação prima facie de qualquer de seus dispositivos por uma norma, ou por um ato administrativo, que estendesse indevidamente os procedimentos nele previstos a bens em trânsito. A importância das conclusões alinhadas acima é, em primeiro lugar, de caráter “defensivo”, ou seja, servem para refutar eventual tese de que violar a liberdade de trânsito no contexto de suspeita de infração a DPI é necessário, seja nos termos do Artigo V:3, seja nos termos do Artigo XX(d) do GATT 1994. Em segundo lugar, as reflexões sobre o conceito de importação na disciplina multilateral de comércio são relevantes para questionamento das medidas comunitárias à luz do Artigo 52 do TRIPS.

O tema da “necessidade” de restrições à liberdade de trânsito com fundamento na proteção de DPI pode ser analisado à luz (i) tanto do caso prima facie que se precisaria estabelecer com base no Artigo V:3 do GATT, (ii) quanto da “defesa afirmativa” ao amparo do Artigo XX(d) do mesmo Acordo. É útil voltar ao tema para esclarecer as possíveis implicações para os “testes de necessidade” sob o GATT – Artigos V:3 e XX(d) – da conclusão

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual

241

de que há duas hipóteses em que seria razoável interferir na liberdade de trânsito por considerações relativas a DPI.

Ao responder ao argumento de que a apreensão de bens em trânsito para proteger DPI viola o Artigo V:3 do GATT ao levar a atrasos ou restrições desnecessárias ao trânsito de bens, uma parte demandada poderiam alegar: (i) que os atrasos e/ou restrições provocados por essas medidas não são desnecessários nos termos do Artigo V:3; e (ii) que, mesmo que julgadas incompatíveis com o Artigo V:3, as medidas são justificadas pelo Artigo XX(d) do GATT por serem necessárias para assegurar o cumprimento de normas, compatíveis com o GATT, relacionadas à proteção de DPI. Para respaldar as duas alegações, o demandado poderia recorrer ao exposto pelo Artigo 51 do TRIPS, conforme esclarecido por sua nota de rodapé 13.

Poderia ser apresentada, em primeiro lugar, a tese de que medidas que refletem o disposto no TRIPS (em particular na Parte III, relativa a “enforcement”) não podem ser consideradas “desnecessárias”, quer nos termos do Artigo V:3, quer nos termos do alínea (d) do Artigo XX. Mais especificamente, com relação ao teste da necessidade da alínea (d), poderia sustentar-se que é de se presumir a “contribuição” de uma medida que implementa os procedimentos previstos pelo Artigo 51 para a observância de DPI, dada a própria localização do referido Artigo na Parte do TRIPS dedicada à observância. Mesmo que não fosse reconhecida essa alegada presunção, poderiam ser facilitada a tarefa de demonstrar a “necessidade” dessas medidas caso se estabelecesse que as mesmas de fato refletem os procedimentos previstos (implicitamente para bens em trânsito) pelo Artigo 51.

Subsidiária ou alternativamente, poderia alegar-se que o objetivo da medida é combater o “falso trânsito”, em linha com a interpretação de sua Corte de Justiça das Comunidades

Bruno Guerra Carneiro Leão

242

Europeias. Nesse cenário, caberia argumentar que a medida questionada contribui para prevenir a internalização fraudulenta de bens em violação de DPI vigentes na jurisdição do Membro demandado.

Em reação a essas teses, poder-se-ia apresentar as seguintes ponderações:

(A) A compatibilidade com o TRIPS não cria presunção de compatibilidade de uma medida com os demais acordos da OMC. Quando os negociadores desejaram estabelecer esse tipo de vinculação entre distintos acordos, assim dispuseram claramente6. Para rebater a alegação de violação do Artigo V:3 do GATT, não basta à parte demandada invocar a compatibilidade de suas medidas com o TRIPS. Normas “TRIPS-consistent” ou “TRIPS-plus” são compatíveis com a disciplina multilateral se não violam obrigações contidas em outros acordos (e jamais apesar de violarem essas obrigações);

(B) A nota de rodapé 13 serve para ilustrar que os procedimentos do Artigo 51 podem ser estendidos a bens em trânsito, mas não justifica, em si, quaisquer modalidades de aplicação desses procedimentos a tais bens. O simples fato de a aplicação dos procedimentos do Artigo 51 não ser obrigatória a bens em trânsito sugere o entendimento de que tais procedimentos não se fazem efetivamente necessários para assegurar o cumprimento de normas destinadas a proteger

6 Dois exemplos disso são a Nota Interpretativa Geral ao Anexo 1A, que determina em caso de conflito entre o GATT e algum dos outros acordos sobre comércio de bens, prevalecessem os acordos específicos, e o Artigo 2.4 do Acordo SPS, que dispõe serem presumidas justificadas pelo Artigo XX(b) as medidas compatíveis com o Acordo SPS.

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual

243

DPI. Conforme explicado anteriormente, poderia ser considerada justificável (e até necessária) medida que previsse a suspensão da liberação de bens em trânsito mediante demonstração de risco de internalização dos mesmos, em fraude não só às normas de proteção à PI, mas também a normas referentes à ordem tributária e a padrões sanitários, por exemplo. A medida restritiva da liberdade de trânsito deve revelar esses objetivos legítimos, tanto na linguagem empregada, quanto na sua operação prática;

(C) Ainda que a parte demandada sustente que suas medidas somente são aplicáveis a bens em trânsito quando demonstrado risco de internalização dos mesmos em seu mercado, poderiam ser identificadas medidas alternativas menos incompatíveis com as disciplinas multilaterais e capazes de contribuir de forma equivalente para o objetivo perseguido (prevenir a internalização de mercadorias em trânsito e a consequente violação a DPI). É possível que medidas horizontais para assegurar a observância de normas tributárias ou sanitárias, por exemplo, sejam capazes de substituir medidas relativas à proteção de DPI com maior eficácia e menor prejuízo à liberdade de trânsito.

O fato de haver hipóteses válidas de aplicação dos procedimentos do Artigo 51 do TRIPS a bens em trânsito não torna inviável a demonstração de que medidas restritivas violam o Artigo V do GATT e que não são justificadas pelo Artigo XX(d) do mesmo Acordo.

Por sua vez, o Artigo 41.1, última frase, do Acordo TRIPS dispõe: “[t]hese procedures shall be applied in such a manner as to

Bruno Guerra Carneiro Leão

244

avoid the creation of barriers to legitimate trade and to provide for safeguards against their abuse”. Conforme exposto anteriormente, o trânsito de bens não corresponde a importação e, portanto, não afronta qualquer DPI de que desfrute um particular no país de trânsito. Regra geral, portanto, uma medida que limite a liberdade de trânsito para proteger DPI no país de trânsito tenderá a ser uma medida aplicada de forma a criar de barreira ao comércio legítimo, violatória do Artigo 41.1, última frase, do TRIPS.

A primeira frase do Artigo 52 diz:

“Any right holder initiating the procedures under Article

51 shall be required to provide adequate evidence to

satisfy the competent authorities that, under the laws

of the country of importation, there is prima facie an

infringement of the right holder’s intellectual property

right and to supply a sufficiently detailed description

of the goods to make them readily recognizable by the

customs authorities”.

Esse Artigo contém uma das raras obrigações (“shall”) para os Membros no sentido de que se limite, ou condicione, a ação do titular de DPI. Mais uma vez, é preciso lembrar que essas obrigações foram claramente concebidas para serem aplicadas a situações de importação de bens, e não para trânsito. Como visto na seção anterior, no entanto, a nota de rodapé 13 sugere a possibilidade de que os procedimentos previstos no Artigo 51 sejam estendidos a bens em trânsito. A questão que se coloca, tendo-se como parâmetro o Artigo 52, é que interpretação da obrigação nele contida torna a aplicação do dispositivo a bens em trânsito compatível com seu objeto e propósito.

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual

245

A finalidade do Artigo 52 é proteger a liberdade de comércio, em geral, e os interesses do proprietário da carga e do importador, em especial, contra pedidos infundados de suspensão de liberação para livre circulação (o que, na concepção defendida anteriormente, configura a importação). Para promover esse objetivo, o artigo determina que o requerente consubstancie com provas adequadas a alegação de que os bens em questão infringem DPI do requerente de acordo com o “país de importação”. Na situação ordinária (de efetiva importação), o “país de importação” é aquele da autoridade aduaneira para quem é dirigido o pedido de suspensão de liberação dos bens. No caso de bens em trânsito, no entanto, a questão é menos óbvia.

Com base nas ponderações da seção anterior, seria possível concluir que o “país de importação” a que se refere o Artigo 52 não é aquele da autoridade aduaneira, já que o seu país é apenas o de trânsito. A mesma leitura levaria à constatação de que o “país de importação” é aquele para onde se destinam os bens. É o país onde se processará o desembaraço aduaneiro, a liberação da carga para livre circulação e, portanto, a introdução dos bens no mercado. É nesse país onde se manifestarão os efeitos econômicos da importação e onde poderiam emergir violações a direitos patrimoniais associados aos bens importados.

A possibilidade de que a autoridade competente (administrativa ou judicial) tenha que examinar a razoabilidade da alegação de violação do suposto detentor do DPI à luz das normas pertinentes de outro país não é estranha ao direito internacional e, menos ainda, ao regime internacional de propriedade intelectual. O Artigo 5(2) da Convenção de Berna dispõe, no trecho relevante: “the extent of protection, as well as the means of redress afforded to the author to protect his rights,

Bruno Guerra Carneiro Leão

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shall be governed exclusively by the laws of the country where protection is claimed”. O país onde é reclamada a proteção é tipicamente o país do tribunal a que é dirigido o pleito. Entretanto, quando a violação ocorre em país distinto daquele do tribunal, de acordo com os princípios consagrados do direito internacional privado7, o direito substantivo aplicável (referente à “extent of protection”) é o do país da violação, ainda que lei processual (referente aos “means of reddress”) seja a lex fori.

Essa interpretação se coaduna com a finalidade do Artigo 52 de prevenir abusos por parte de supostos detentores de DPI. Na hipótese de bens em trânsito, não há prejuízo que possa sofrer o titular de direito vigente apenas no país de trânsito. Por essa razão, a expressão “país de importação” deve ser interpretada como significando, nos casos de trânsito, o país para onde se destinam, em última instância, os bens.

Mais uma vez, essa interpretação não torna impossível estender os procedimentos do Artigo 51 a bens em trânsito. Seria compatível com o Artigo 52 do TRIPS uma norma que conferisse ao titular de uma patente a faculdade de requerer a uma autoridade judicial a apreensão de mercadoria em trânsito no país “X”, suspeita de violar sua patente, com fundamento em seus direitos de exclusividade no país de destino “Y”. Essa operação corresponderia à antecipação de medida que o titular do direito poderia recorrer por ocasião da importação dos bens (no país de destino).

Em suma, seria razoável defender que o “direito do país de importação” a que se refere o Artigo 52 do TRIPS é, nos casos de trânsito, o do país para onde se destinam os bens em

7 Ver GERVAIS, Daniel. “The TRIPS Agreement – Drafting History and Analysis”, p. 74.

O contencioso dos medicamentos genéricos: liberdade de trânsito e propriedade intelectual

247

trânsito. Violaria, portanto, o referido dispositivo legislação que determinasse a aplicação de outro direito como parâmetro para a demonstração prima facie de infração a DPI a que está obrigado a conduzir o requerente da suspensão de liberação para livre circulação.

4. conclusão

A análise das disciplinas multilaterais de comércio leva a concluir pela viabilidade de questionamento no Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC de norma que restrinja a liberdade de trânsito com base na suposta proteção de direito de propriedade intelectual válido apenas no país de trânsito. Os fundamentos para esse questionamento poderiam ser os Artigos V:2 e V:3 do GATT 1994 e os Artigos 41.1 e 52 do TRIPS.

Para prevalecer em eventual contencioso, contudo, a parte demandante deveria ser capaz de persuadir os painelistas e, possivelmente, o Órgão de Apelação a adotarem interpretações pouco óbvias, mas defensáveis, de conceitos fundamentais da disciplina multilateral, a começar pelo de “importação”.

pArte iiA ArticulAção com A sociedAde

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Embaixador, ingressou na carreira diplomática em 1984 e é atualmente o Diretor do Departamento Econômico do Ministério das Relações Exteriores. Serviu em Roma/FAO, Santiago e na Delegação Permanente junto à OMC em Genebra. Pós-Graduado em Administração pela École Nationale d’Administration (Paris). Engenheiro Agrônomo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

o pApel centrAl do setor privAdo nA AtuAção do BrAsil

no sistemA de solução de controvérsiAs dA omc

Paulo Estivallet de Mesquita

253

Uma das características centrais do mecanismo de solução de controvérsias da OMC é seu caráter estatal: apenas os Membros podem participar dos casos como

demandantes ou demandados. As regras da OMC têm impacto, no entanto, sobre políticas públicas que vão muito além das medidas tradicionalmente associadas à regulação do comércio nas fronteiras e afetam, por conseguinte interesses privados legítimos.

Trata-se de um sistema que favorece o pragmatismo, em que a atuação é determinada em função da expectativa de resultados práticos. É verdade que são frequentemente invocados “interesses sistêmicos”, que se situariam no plano abstrato da defesa do sistema multilateral de comércio, de suas regras e da aderência por todos os Membros às mesmas. Se se tratasse apenas de defender o sistema, no entanto, seria necessário participar em todos os painéis, ou a participação refletiria um padrão aleatório. Na verdade, contudo, as chamadas preocupações sistêmicas são invocadas quando não há impacto imediato sobre o comércio ou sobre determinadas políticas domésticas, mas em geral é fácil discernir um interesse potencial.

Os Governos podem atuar, no dia a dia, com base em “fatos estilizados” que refletem sua percepção das vantagens, reveladas ou não, do país, a legislação existente, etc. Na prática, no entanto, assim como na formulação de posições negociadoras, a busca de modificações nas práticas e políticas

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de outros países requer estreita coordenação com o setor privado empresarial e, crescentemente, com as organizações representativas da sociedade civil. É essa coordenação que permite definir prioridades, objetivos e limites. Isto coloca para o Governo, de maneira mais aguda, a necessidade de conhecer, interpretar, articular e defender os interesses do setor privado e da sociedade civil.

1. o setor privAdo BrAsileiro e o sistemA multilAterAl de comércio

Para que a coordenação entre Governo e sociedade funcione, é indispensável que haja diálogo entre as partes. Por sua vez, para que o diálogo seja profícuo, é necessário – além de abertura mútua para entender o ponto de vista do outro lado – um grau razoável de conhecimento técnico sobre o contexto – no caso, sobre a OMC e seu mecanismo de solução de controvérsias.

Esse conhecimento ainda é notoriamente escasso no setor empresarial de muitos países em desenvolvimento. Seria razoável esperar que o mesmo se desse no Brasil em vista do padrão de integração do país no comércio internacional. Embora fosse um dos 23 signatários originais do GATT, uma vez superado o momento de abundância de divisas gerado pela Segunda Guerra Mundial, a economia brasileira voltou-se prioritariamente para o mercado interno. Em contraste com o que aconteceu na maior parte do mundo – entre 1950 e 2000, a relação entre o comércio internacional de manufaturas e a produção industrial global triplicou –, o grau de abertura comercial do Brasil – medido pela relação entre a soma das exportações e importações e o PIB – permaneceu praticamente constante, em torno de 16%.

Essa trajetória não resultou apenas de opções de política doméstica. A preponderância dos EUA e sua disposição para

O papel central do setor privado na atuação do Brasil no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

255

acomodar os interesses dos aliados europeus acabaram resultando em seletividade contrária aos interesses dos países em desenvolvimento. A impossibilidade de obterem a liberalização nos mercados de seu interesse – como a agricultura e os têxteis – e o pessimismo em relação à contribuição do comércio exterior para o desenvolvimento levaram os países em desenvolvimento a concentrarem esforços na obtenção de tratamento especial e diferenciado, que consistia, na maioria das vezes, em isenções totais ou parciais em relação às regras. Com esse policy space, os PEDs puderam explorar até o limite as políticas de substituições de importações. No fundo, era um sistema de “duas velocidades”, em que os países desenvolvidos tinham mais obrigações, mas também mais benefícios, do que os países em desenvolvimento.

Em consequência, o GATT era relativamente pouco conhecido no Brasil. Na academia, no Governo e nas empresas, o comércio internacional era um tema para poucos – menos em função da complexidade e mais da escassa relevância prática.

Essa situação começou a mudar, no entanto, com a abertura comercial a partir do final dos anos 80. O Brasil fez, no período 1988-1993, uma mudança radical na sua política comercial. A tarifa média passou de 32,2% em 1990 para 14,2% em 1993, pouco acima da média atual de 11,7%. Se levarmos em consideração a substancial redução nas barreiras não tarifárias, a liberalização é ainda mais significativa. O comércio exterior deixou de ser uma atividade excepcional e tornou-se um elemento do cálculo das empresas.

A mudança de orientação foi consolidada, na primeira metade dos anos 90, com a criação do Mercosul e o ingresso na OMC, que impuseram, pela primeira vez, disciplinas efetivas à condução da política comercial pelo Governo. Limitações

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discricionárias às importações, como o recurso à “gaveta da CACEX”, deixaram de existir. Os produtores domésticos viram--se confrontados, pela primeira vez em décadas, com efetiva concorrência das mercadorias importadas.

A criação da OMC, além disso, acabou com os regimes segmentados do GATT e deu, finalmente, uma base jurídica mais sólida para o comércio internacional multilateral. A extinção das derrogações históricas, a obrigatoriedade de subscrição de todos os acordos por todos os Membros, a instituição de um mecanismo compulsório de solução de controvérsias constituem um conjunto de mudanças de grande alcance, que transformaram a face do sistema de comércio multilateral.

O setor privado brasileiro adaptou-se com notável rapidez aos novos tempos. Se no passado o caminho para buscar proteção era quase exclusivamente político, nos anos 90 tornou--se necessário conhecer as novas regras, suas possibilidades e limites. A indústria têxtil, por exemplo, passara anos questionando as restrições impostas pelo Acordo Multifibras. Com a adoção do Acordo sobre Têxteis e Vestuário da OMC, no entanto, o Brasil tornou-se o primeiro usuário das “salvaguardas transitórias” previstas no Acordo. Foi o instrumento encontrado para enfrentar um processo que viu a eliminação de cerca de dois terços dos postos de trabalho, redução de 20% nas importações e aumento de mais de 300% nas importações de produtos têxteis. O processo de aprendizado não se limitou às grandes empresas ou às entidades empresariais mais poderosas: a Associação Gaúcha dos Produtores de Pêssegos, por exemplo, em curto espaço de tempo habilitou-se a utilizar de forma competente os instrumentos de defesa comercial, como antidumping, direitos compensatórios e salvaguardas.

O papel central do setor privado na atuação do Brasil no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

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O setor privado habilitou-se, assim, a acompanhar as modificações que ocorreram na estrutura governamental e a interagir com o Governo para a defesa de seus interesses na OMC. Os ministérios mais diretamente envolvidos no comércio internacional adequaram suas estruturas, capacitaram recursos humanos e aprimoraram a coordenação interministerial e com o setor privado, em particular após a criação da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) em 1995.

2. A ArticulAção com o setor privAdo e As controvérsiAs nA omc: Aspectos gerAis

Como mencionado acima, o mecanismo de solução de controvérsias é estatal: apenas os Membros da OMC têm locus standi para iniciar e participar de um painel. Poderia ser diferente: diversos mecanismos judiciais internacionais atribuem o direito de petição a pessoas físicas e jurídicas de direito privado. É o caso, notadamente, de algumas convenções internacionais de direitos humanos. Um precedente no campo econômico é o do Centro Internacional de Solução de Controvérsias sobre Investimentos (ICSID, na sigla em inglês), de 1965, que prevê a arbitragem vinculante – e irrevogável – entre investidores privados e Estados.

A experiência do ICSID talvez seja suficiente para justificar a opção por um sistema exclusivamente estatal. Os custos relacionados a uma arbitragem no ICSID são proibitivos para os pequenos Estados, o que abre a possibilidade de uma forma de “assédio legal”. Não é difícil imaginar o mesmo acontecendo na OMC.

Note-se que a predominância dos interesses comerciais na decisão de iniciar um contencioso constitui um elemento de progressividade no sistema de solução de controvérsias. Havia

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o temor, no início da operação do sistema, de que o mesmo pudesse servir preponderantemente para impor a observância das regras aos países menos poderosos. Na prática, o que se verifica é que todos os países são vulneráveis a questionamentos no sistema, mas o interesse econômico faz com que o grau de tolerância com violações seja inversamente proporcional à dimensão do mercado. Esse elemento compensa parcialmente o fato de que, em sentido contrário, o efeito dissuasório da retaliação como sanção é diretamente proporcional ao poder econômico.

A possibilidade de assédio por exércitos de advogados de multinacionais não é, nesse sentido, uma ameaça apenas para os países em desenvolvimento. O recurso ao sistema é movido por interesses comerciais concretos, que são proporcionais ao tamanho dos mercados. É natural, assim, que os EUA, a União Europeia e a China sejam os maiores usuários – na medida em que têm o maior número de empresas exportadoras –, mas também os principais alvos das disputas. Mesmo burocracias poderosas podem ser assoberbadas por um número relativamente modesto de disputas simultâneas. Também não interessaria aos grandes, por conseguinte, franquear aos atores privados o acesso direto ao mecanismo.

Se todos os custos do contencioso fossem absorvidos pelo Estado, no entanto, interessaria ao setor privado questionar todas as práticas restritivas nos mercados de exportação, mesmo que a probabilidade de sucesso seja pequena. Isso poderia resultar em um aumento excessivo do número de contenciosos, com implicações políticas e econômicas consideráveis. O Estado, que terá que ponderar se a expectância de ganhos com a abertura de mercados compensa os custos financeiros e de reputação em caso de derrota, tenderá a ser mais conservador na decisão de iniciar contenciosos.

O papel central do setor privado na atuação do Brasil no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

259

Além desse aspecto de acesso ao mecanismo, também em termos substantivos é de esperar que o Estado exerça influência moderadora sobre os interesses privados. Estes têm, com frequência, perspectivas conflitantes, ou mesmo contraditórias. Os setores mais competitivos querem regras efetivas e interpretações estritas das normas; outros desejam amplo espaço para subsídios, defesa comercial e a adoção de parâmetros novos para enfrentar fatores de aumento de custos ou a flutuação do câmbio. O Estado precisa considerar se o interesse imediato na eliminação de uma barreira não colocará em risco as próprias políticas. Em tese, o fato de que nenhuma medida é “ilegal” sem uma decisão nesse sentido do Órgão de Solução de Controvérsias permite que um Membro questione medidas semelhantes ou equivalentes às suas. Seria, no entanto, imprudente gerar jurisprudência que possa ser utilizada contra ele próprio. A ponderação das implicações é mais delicada em um país como o Brasil, com economia diversificada, do que em países menores e mais especializados. Nestes, a necessidade de coerência é menor. Há países que são extremamente ofensivos em relação a produtos industriais e completamente refratários à abertura dos mercados agrícolas. O Brasil, por sua vez, tem que conciliar interesses ofensivos e defensivos tanto na área agrícola como na industrial.

Outro elemento moderador decorre da possibilidade de que a abertura de um painel estimule a parte reclamada a também dar início a um contencioso contra o reclamante. O Entendimento sobre Solução de Controvérsias estipula que o mecanismo de solução de controvérsias “não deve ser utilizado ou considerado como um ato conflituoso”, e que “reclamações e contrarreclamações em relação a questões distintas não devem ser vinculadas”. Na prática, no entanto, verifica-se um razoável

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grau de coincidência cronológica entre essas reclamações e contrarreclamações supostamente desvinculadas. Em parte, isso se compreende em função da percepção de “nós contra eles” com que o público frequentemente vê as disputas.

A perspectiva do próprio setor privado, no entanto, também deve ser matizada. Os interesses das empresas multinacionais não podem, por definição, serem equiparados aos interesses nacionais. No mercado brasileiro, alguns setores com forte participação do capital estrangeiro recebem proteção tarifária e não tarifária acima da média. Nesse caso, é lícito supor que os países de origem têm um interesse maior na liberalização do mercado brasileiro do que as matrizes das empresas. Nesse caso, é o setor privado que exerce efeito moderador sobre o Estado. O mesmo deve ocorrer no Brasil na medida em que avance a transnacionalização das empresas brasileiras.

Mesmo não tendo locus standi, no entanto, o setor privado tem um papel central na atuação brasileira no sistema de solução de controvérsias da OMC, não apenas na identificação de demandas pontuais como na própria preparação e condução dos casos. Um dos elementos de articulação entre setor privado e Governo consiste na contratação, por parte do setor privado, de assessoria jurídica especializada. A participação nos contenciosos requer uma equipe dedicada de profissionais altamente qualificados. O Governo brasileiro já demonstrou dispor de quadros à altura do desafio e mantém, no Itamaraty, em bases permanentes, uma equipe especializada em matéria de contenciosos. O ritmo de atividade flutua, no entanto, em função das demandas do setor privado e das iniciativas de outros países. Não faz sentido, do ponto de vista da gestão de recursos, atribuir a uma equipe de dimensões fixas a condução

O papel central do setor privado na atuação do Brasil no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

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integral de todas as tarefas associadas ao contencioso. O raciocínio é semelhante ao de uma grande empresa que mantém um departamento jurídico próprio, mas que recorre à assessoria em casos específicos ou em determinados períodos.

O pedido para que o setor privado forneça assessoria legal ajuda, além disso, a reduzir o estímulo à abertura de questionamentos frívolos ou com pequena probabilidade de sucesso, na medida em que permite internalizar os custos do contencioso para os principais beneficiários. Além disso, apresenta a vantagem, do ponto de vista político, de permitir o compartilhamento parcial da responsabilidade com a condução do caso. Embora a autoridade na condução do contencioso e, por conseguinte, a responsabilidade final, caiba ao Estado, a assessoria de um escritório qualificado pode ser extremamente útil para a coleta e apresentação de dados e para a elaboração da argumentação jurídica.

Por outro lado, essa condição não deve ser absoluta; caso contrário, apenas os setores com mais recursos teriam acesso ao sistema. Em princípio, os setores que são exportadores significativos dispõem de recursos e são bem organizados, mas essa não é uma regra invariável.

As considerações acima são válidas tanto para contenciosos ofensivos como defensivos. De maneira geral, no entanto, os primeiros tendem a visar interesses comerciais de empresas ou setores específicos, ao passo que os segundo podem ter como alvo medidas mais gerais. O caso iniciado pelo Canadá contra os subsídios à indústria aeronáutica brasileira parece constituir um exemplo extremo, em que a defesa das políticas nacionais podia ser vinculada a uma empresa específica. É possível, no entanto, que no futuro haja casos com implicações concentradas em determinadas setores.

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3. A ArticulAção com A sociedAde civil

Os acordos comerciais tradicionais funcionavam, na expressão de Habermas, como “cortinas nas fronteiras”, reguladas para permitir apenas os fluxos desejados. Normas que antes eram consideradas como domínio reservado do Estado nacional, como regulamentos técnicos ou sanitários, interferem, no entanto, nas atividades econômicas em outras jurisdições. Os acordos da OMC estabelecem parâmetros para a produção dessas normas, com o objetivo precípuo de evitar que sejam utilizadas como “restrições disfarçadas” ao comércio. É necessário, no entanto, contrabalançar a facilitação das transações internacionais com as prioridades políticas domésticas. A liberdade para impor restrições ao comércio como condição para a eficácia de regulamentos domésticos “não comerciais” é muitas vezes colocada em termos de oposição entre processos decisórios democráticos e órgãos internacionais não eleitos.

De maneira geral, o interesse das ONGs reflete a perspectiva de que as regras da OMC limitam a autonomia dos Estados para proteger o meio ambiente, a saúde pública ou políticas de desenvolvimento. Havia uma preocupação, quando o sistema foi estabelecido, com a possibilidade de que as ONGs ambientalistas, por exemplo, fossem instrumentalizadas para ajudar a restringir as exportações dos países em desenvolvimento. Muitas ONGs mantêm vínculos estreitos com os sindicatos trabalhistas em setores refratários à concorrência estrangeira.

Seria excessivo, no entanto, presumir que todas as ONGs sejam contrárias à liberalização do comércio. Assim como é possível encontrar empresas e associações produtivas a favor e

O papel central do setor privado na atuação do Brasil no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

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contra o comércio, também há ONGs interessadas na expansão das exportações dos países em desenvolvimento como parte da promoção do desenvolvimento. Uma das distorções mais flagrantes da economia mundial são os volumes de subsídios concedidos aos produtores agrícolas nos países desenvolvidos. No caso do comércio agrícola, a liberalização – entendida como redução dos subsídios distorcivos – deveria levar, em muitos casos, à redução do comércio internacional e ao aumento da produção local na África, por exemplo. Na área de propriedade intelectual, o Acordo TRIPS incorporou, pela primeira vez, padrões substantivos de propriedade intelectual em um acordo comercial multilateral. Como disse Bhagwati, tratava-se de tornar a OMC uma agência de coleta de royalties, assumindo uma função que nada tinha a ver com a liberalização do comércio. Nessas áreas, existe convergência entre as posições do Brasil e as de algumas ONGs. Em alguns casos, a capacidade de articulação e de propaganda no plano internacional dessas ONGs revelou-se extremamente útil.

4. A experiênciA BrAsileirA

O histórico do Brasil em contenciosos na OMC ilustra todos os elementos e considerações mencionados acima. O Brasil é um dos países mais ativos no sistema, com participação muito acima de sua parcela do comércio internacional. O país iniciou um dos primeiros casos na OMC, que questionava normas ambientais aplicáveis à gasolina e a refinarias de petróleo nos EUA. A tomada de decisão foi facilitada pelo fato de que o principal interessado era a Petrobras, empresa estatal que tem o Ministro da Fazenda como Presidente do Conselho de Administração.

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Ao longo dos anos, o país acumulou experiência em grande número de casos, em circunstâncias variadas. Alguns casos mais emblemáticos são relatados neste livro por diplomatas com experiência direta nos mesmos. Esse registro é importante como contribuição para o contínuo aperfeiçoamento das modalidades de articulação entre o Estado e os atores da sociedade, de maneira a assegurar a melhor defesa dos interesses brasileiros na OMC.

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Haroldo de Macedo Ribeiro, nascido em Belo Horizonte, em 14 de julho de 1962, é graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1984) e em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco (1992). Serviu nas Missões do Brasil junto à União Europeia (1997-2000), à ALADI e ao Mercosul (2000-2003) e à Organização Mundial do Comércio (2008-2011). Atuou nas áreas de integração regional, solução de controvérsias e negociações econômicas multilaterais. Atualmente, é assessor para temas econômicos e jurídicos do Ministro de Estado das Relações Exteriores.

Bruno Guerra Carneiro Leão, nascido no Recife, em 28 de fevereiro de 1980, é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2009), mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco (2005) e graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2003). Desde julho de 2003, é diplomata do Ministério das Relações Exteriores. Atuou na área de solução de

o contencioso dos pneus reformAdos: ArticulAção

interinstitucionAl e diplomAciA internA

Haroldo de Macedo Ribeiro Bruno Guerra Carneiro Leão

Bruno Guerra Carneiro Leão

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controvérsia na Coordenação-Geral de Contenciosos em Brasília, de 2005 a 2008, e na Delegação do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) em Genebra, de 2008 a 2011. Atualmente, serve na Embaixada do Brasil em Assunção.

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1. introdução

Este artigo tem por objetivo registrar o processo de articu-lação interinstitucional, conduzido pela Coordenação- -Geral de Contenciosos (CGC) do Itamaraty, que foi um

dos pilares do resultado amplamente favorável ao Brasil em sua defesa do questionamento movido pela União Europeia (UE), no âmbito do Mecanismo de Solução de Controvérsias (MSC) da Organização Mundial do Comércio (OMC), contra a proibição de importações de pneus reformados1. O foco do texto não são os aspectos jurídicos do contencioso, mas sim a interação entre numerosos atores governamentais e não governa-mentais que, coordenados pela CGC, contribuíram para uma importante vitória da diplomacia brasileira2.

Embora todos os contenciosos envolvam, em maior ou menor grau, importante esforço de “diplomacia interna”, o contencioso dos pneus reformados foi emblemático nesse sentido, o que se explica pela multiplicidade de atores com

1 Há três tipos de reforma de pneus: a remoldagem, a recauchutagem e a recapagem. No primeiro tipo, toda a camada externa de borracha do pneu é raspada e substituída por nova camada de borracha vulcanizada. No segundo tipo, são substituídos a banda de rodagem e os “ombros” do pneu. No terceiro, apenas a banda de rodagem é substituída. O contencioso tratou dos três tipos de reforma, para todos os tipos de veículos.

2 Para um detalhamento dos aspectos jurídicos do contencioso, vide supra o artigo “O Contencioso sobre Pneus Reformados na OMC: Uma Importante Vitória Multilateral do Brasil”, de Flavio Marega.

Haroldo de Macedo RibeiroBruno Guerra Carneiro Leão

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interesse sobre o objeto da controvérsia. Assim, o estudo do caso a partir dessa perspectiva permite que se conheça uma importante dimensão do trabalho da diplomacia brasileira no MSC.

Nas seções seguintes, após breve apresentação do caso e de seus antecedentes, será descrita e comentada, por afinidade temática, a participação das várias instituições que foram envolvidas na sua condução. Ao final, algumas conclusões gerais serão formuladas.

2. o contencioso dos pneus reformAdos e seus Antecedentes

Em 20 de junho de 2005, a UE (então Comunidades Europeias) solicitou consultas ao Brasil ao amparo do Entendimento de Solução de Controvérsias (DSU) sobre a adoção de medidas que afetavam suas exportações de pneus reformados para o mercado brasileiro. Em 17 de novembro do mesmo ano, a UE formulou seu pedido de estabelecimento de painel, que foi autorizado pelo Órgão de Solução de Controvérsias em 20 de janeiro de 2006. A pedido da UE, o Diretor-Geral da OMC compôs o painel em 16 de março, que foi presidido pelo ex- -membro do Órgão de Apelação, Mitsuo Matsushita, e integrado por Donald McRae e Chang-Fa Lo.

O contencioso tratou fundamentalmente da proibição de importações de pneus reformados adotadas pelo Brasil – além de, secundariamente, medidas acessórias como as multas aplicáveis pelo desrespeito à proibição, a exceção para pneus reformados provenientes dos sócios do Mercosul e as decisões judiciais que autorizavam alguns reformadores brasileiros a importar pneus usados como matéria-prima.

O contencioso dos pneus reformados: articulação interinstitucional e diplomacia interna

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A defesa do Brasil baseou-se no fato de que pneus reformados geram resíduos de borracha mais rapidamente que pneus novos. Apesar de não serem, em si, resíduos perigosos, as carcaças de pneus contêm diversos elementos tóxicos em sua composição que o são. Dispersas no meio ambiente, as carcaças apresentam o risco de se tornarem abrigo para mosquitos como o da dengue, de liberarem seus componentes tóxicos ou de serem queimadas de forma descontrolada, o que além de emitir metais pesados provoca reações químicas geradoras de dioxinas. A coleta das carcaças é difícil e custosa, dada sua alta razão volume/peso. Quando armazenadas, as carcaças apresentam riscos de incêndios espontâneos, cujo controle é muito difícil. Para concluir o quadro, não há “destinação” disponível que seja simultaneamente neutra para o meio ambiente e economicamente viável para a eliminação de milhões de carcaças por ano.

Normas técnicas adotadas tanto no Brasil quanto na UE permitem apenas um processo de reforma para pneus de carro de passeio e limitam a três ou quatro as reformas de pneus para caminhões e ônibus. Com um ciclo de utilização potencial a menos, pneus reformados geram resíduos de borracha mais cedo que pneus novos. Como pneus são um bem insubstituível, das quatro fontes de pneus existentes (pneus novos nacionais, pneus novos importados, pneus reformados nacionais e pneus reformados importados), a única que pode ser restringida de forma coerente com os objetivos ambientais são os pneus reformados importados. Pneus novos importados e pneus novos nacionais têm o mesmo número de potenciais ciclos de utilização, daí a importação de pneus novos ser permitida no Brasil. A reforma de carcaças presentes no território nacional,

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conquanto não elimine definitivamente os resíduos de borracha das carcaças, posterga a necessidade de destiná-los, de forma que a proibição da reforma dessas carcaças seria contraproducente como medida de gestão dos resíduos de borracha. A margem que tem o Estado para reduzir a geração de tais resíduos é exatamente a proibição das importações de pneus reformados. Ao serem importados, pneus reformados substituem parte das outras três fontes do produto e cumprem apenas seu último ciclo de utilização antes de virarem resíduo, acelerando, assim, a formação do passivo ambiental do país.

A proibição das importações de pneus reformados foi consolidada por meio da Portaria SECEX 08/2000 – que depois seria renovada por outros atos normativos infralegais da SECEX. No ano seguinte, o Uruguai questionou a medida brasileira para uma das espécies de pneus reformados, os remoldados. Tribunal ad hoc do Mercosul considerou que a proibição feria as regras comerciais do bloco. Em obediência a essa decisão, o Governo brasileiro suspendeu a proibição para os países do Mercosul. Em paralelo, juízes singulares e alguns tribunais concederam autorizações para que reformadores brasileiros importassem pneus usados para uso como matéria--prima. Essas medidas – a exceção para o Mercosul e as decisões judiciais – não faziam parte da concepção original da política pública em que se inseria a proibição de importações de pneus usados, inclusive reformados, mas, uma vez tendo sido adotadas, foram também examinadas no contencioso.

O painel concluiu que a proibição de importações era necessária para a proteção da saúde e do meio ambiente no Brasil, mas que vinha sendo aplicada de maneira discriminatória, em função das medidas judiciais que permitiam a reformadores

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nacionais produzir pneus reformados com carcaças importadas. Provocado pela UE, o Órgão de Apelação (OA) confirmou o entendimento do painel de que a medida era necessária e limitou-se a reformular os fundamentos pelos quais a aplicação da medida seria discriminatória, para incluir, além das medidas judiciais, a exceção para o Mercosul.

Em 25 de setembro de 2009, o Brasil reportou ao Órgão de Solução de Controvérsias que havia cumprido as recomendações do painel e do OA por ele adotadas em 17 de dezembro de 2007, o que envolveu a eliminação da exceção para o Mercosul e a suspensão das decisões judiciais por medida do Supremo Tribunal Federal. O objetivo das medidas questionadas não foi, assim, abandonado, mas, ao contrário, fortalecido pelas ações de implementação promovidas pelo Brasil.

3. um desAfio AmBientAl e de sAúde púBlicA

O cerne do contencioso dos pneus reformados foi o debate, entre Brasil e UE, sobre os impactos ambientais e sanitários do acúmulo de resíduos de pneus. Nesse contexto, um dos principais eixos da articulação interinstitucional conduzida pela CGC foi o diálogo com diferentes atores governamentais e não governamentais com interesse e conhecimento técnico sobre a questão.

Dentro do próprio MRE, esse fator implicou perma-nente coordenação com a Divisão de Política Ambiental e Desenvolvimento Sustentável (DPAD), atualmente subdividida em Coordenação-Geral de Desenvolvimento Sustentável e Divisão de Clima, Ozônio e Segurança Química, além de grande mobilização da rede de Postos no exterior, que contribuiu,

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em sucessivas oportunidades, com informações sobre prá-ticas regulatórias locais e sobre gestão do passivo ambiental relacionado aos pneus. Na Esplanada, os parceiros prioritá-rios da CGC nesse tema foram o Ministério do Meio Ambiente (MMA), o IBAMA, o Ministério da Saúde (MS), o Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior (MDIC), o INMETRO e o DENATRAN.

O envolvimento desses atores no contencioso se deu em vários níveis e de diferentes formas. O caso do Ministério do Meio Ambiente é o mais ilustrativo. A própria ideia de que a proibição de importações de pneus reformados tinha importante fundamentação ambiental foi transmitida à equipe da CGC por funcionários do MMA em reunião de coordenação interministerial anterior ao próprio pedido de consultas da UE. Em suma, a tese (vitoriosa) do Brasil nasceu não de uma estratégia para vencer uma disputa judicial, mas sim do conhecimento “de campo” dos funcionários governamentais envolvidos diretamente com os problemas do acúmulo e gestão de resíduos de pneus. Procedeu do MMA, e foi confirmada pelo INMETRO, a informação de que pneus não podem ser reformados indefinidamente e que os pneus de automóveis só podem ser reformados uma vez – acelerando, assim, a formação do passivo ambiental. Da mesma forma, coube ao MMA e ao IBAMA esclarecer que as chamadas “destinações ambientalmente adequadas” de pneus correspondiam não a opções de impacto ambiental nulo, mas sim ao “mais fraco entre dois venenos”, na metáfora de que se valeu o Brasil para demonstrar a delicadeza do tema ao painel. Quando o assunto são resíduos de pneus, melhor incinerá-los em cimenteiras ou depositá-los em estoques controlados ou aterros, com os

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problemas reais gerados por essas medidas, do que deixá-lo expostos a céu aberto, onde dengue, incêndios (acidentais ou criminosos) e outros riscos os transformam em ameaças ainda maiores.

Assim como na etapa preparatória do contencioso, o MMA esteve engajado ativamente no curso dos procedimentos em Genebra, especialmente na etapa de painel, em que são apresentados os aspectos factuais, e as provas correspondentes, do caso. Em gesto sem precedentes na história do mecanismo de solução de controvérsias da OMC, a própria Ministra do Meio Ambiente à época, Marina Silva, deslocou-se à sede da OMC para fazer depoimento sobre a importância da medida questionada pela UE para a política ambiental do Brasil. Assim como a Ministra Marina Silva, manifestaram-se na ocasião altos funcionários do MMA, do IBAMA e do MS.

O papel do MS foi também de central importância para a construção de um caso não apenas factualmente correto e tecnicamente sólido, mas também politicamente impactante. Os números da epidemia de dengue no Brasil e a estreita relação entre a proliferação do mosquito Aedes aegypti e a existência pneus descartados no ambiente foram uns dos fatores que levaram os painelistas a reconhecer que o problema representado pelos resíduos de pneus é real e grave, com riscos à saúde e à vida da população brasileira.

Outras instituições governamentais que prestaram relevantes informações para o caso, e que participaram de todo o processo de coordenação interministerial, foram o DENATRAN e o INMETRO. Um dos argumentos apresentados pela UE perante o painel foi o de que as estradas brasileiras eram tão ruins que os pneus no Brasil eram danificados, no seu primeiro ciclo de uso, ao ponto de não serem “reformáveis” – o que eliminaria a lógica

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de que a importação de pneus reformados, no seu segundo ciclo, reduziria, no caso de automóveis de passeio, a vida útil total de um pneu em 50%, duplicando, assim, a velocidade da formação do passivo ambiental correspondente. Declarações de reformadores interessados em obter fonte barata e abundante de matéria-prima para sua atividade, em notícias de jornal e no Judiciário, davam sustentação a essa tese.

Esse argumento foi, em parte, respondido por dados do DENATRAN de que ampla maioria dos veículos de passeio no Brasil transita quase que exclusivamente nas grandes metrópoles, que não correspondiam aos locais onde estavam as estradas esburacadas invocadas pela UE. O INMETRO, por sua vez, forneceu importantes informações técnicas sobre os processos de reforma de pneus e dados não apenas sobre a “reformabilidade” dos pneus usados em território nacional, mas também sobre a durabilidade relativa dos pneus reformados em contraste com os pneus novos.

Foi um parceiro do setor privado, no entanto, aquele que deu os meios para que o Brasil demonstrasse de maneira inapelável a falácia da “irreformabilidade” dos pneus novos usados no Brasil. Dados fornecidos pela Associação Brasileira de Reformadores (a ABR) apresentados ao painel mostravam que o número de pneus reformados no Brasil, inclusive de automóveis de passeio, superava em milhões o número de carcaças importadas para reforma. A diferença só poderia, evidentemente, ser explicada pela reforma de pneus novos que tiveram seu primeiro ciclo de uso no Brasil. Com isso, caiu por terra um dos pilares do caso europeu.

O setor empresarial foi consultado ao longo de todo o processo, o que incluiu não apenas a já mencionada ABR, mas

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também a outra associação de reformadores, a ABIP (Associação Brasileira da Indústria de Pneus Reformados), e a entidade de representação dos fabricantes e importadores de pneus novos, a ANIP (Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos). Essa interação foi determinante para que o Governo tivesse plena clareza da complexidade dos interesses comerciais afetados pelas medidas questionadas e pela atuação do Brasil no contencioso.

Ainda no que concerne à interface entre o Itamaraty e o setor privado, merece grande destaque a colaboração entre a Delegação Permanente do Brasil em Genebra, a CGC e alguns dos principais escritórios de advocacia do Brasil. No contexto do programa de estágio de jovens advogados que se iniciava em Genebra e, em vários casos, se estendia para um período em Brasília, um grupo de brilhantes profissionais desses escritórios colaborou, em caráter voluntário, com a preparação da defesa do Brasil e apoiou a condução do processo, inclusive nas audiências que se realizaram na sede da OMC.

No caso da coordenação intra-MRE, mostrou-se particu-larmente efetiva a atuação conjunta nas negociações em torno de propostas promovidas pela UE na Convenção da Basileia sobre Resíduos Sólidos, que, ao invés de combater, buscavam legitimar o comércio internacional de pneus usados e refor-mados.

Por fim, a sociedade civil organizada esteve, também ao longo de todo o processo, ao lado do Brasil em defesa da causa ambiental. Entidades como o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS), a Conectas e a Humane Society mantiveram permanente e produtivo diálogo com o Governo e forneceram informações importantes sobre a experiência internacional na gestão dos riscos ambientais associados aos

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resíduos de pneus, que foram inclusive apensadas a petições do Brasil para o painel. Além dessas organizações, acadêmicos das áreas de engenharia explicaram detalhes das reações químicas que ocorrem em cimenteiras e na pavimentação de estradas com asfalto-borracha e resultam na formação de dioxinas.

Somadas, essas contribuições permitiram à CGC transmitir ao painel e ao Órgão de Apelação da OMC um quadro realista, preciso e impactante, permitindo ao mecanismo de solução de controvérsias produzir uma decisão justa, que desmistifica a ideia de que a OMC é uma organização insensível às preocupações não comerciais de seus Membros.

4. interesses internos divergentes, implementAção complexA e diplomAciA internA

Toda a articulação interministerial e os valiosos insumos recebidos dos agentes não governamentais seriam em vão se, adotados os relatórios do painel e do Órgão de Apelação, o Brasil não estivesse em condições de ajustar as medidas questionadas pela UE no que se refere à importação de pneus usados, por força de medidas judiciais, e à exceção para o Mercosul. Corrigir esses dois “defeitos” da medida brasileira, considerada “necessária” pelo painel e pelo Órgão de Apelação, foi um desafio significativo, sobretudo em função de divergência de interesses sobre a matéria no Brasil.

Ao passo que todo o Governo e representantes da sociedade civil organizada estavam empenhados em preservar a política pública de que a proibição de importações de pneus reformados é parte, alguns grupos empresariais atuaram historicamente em sentido contrário, orientados pela preferência de importar carcaças para reformar no Brasil – ao invés de recolhê-las no

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território nacional, com maior custo, por um lado, e com impacto ambiental positivo, por outro. Essa atuação manifestou-se em três vertentes paralelas: mobilização de parlamentares em favor de projeto de lei para liberalizar a importação de pneus usados; ações judiciais para obtenção de autorizações individuais com base no princípio constitucional da livre iniciativa; e deslocamento de unidades reformadoras para países vizinhos do Mercosul, que permitiam a importação de carcaças para, com base na exceção aberta ao bloco, exportar pneus reformados desses países para o Brasil.

Para conter e, sobretudo com o resultado do contencioso, reverter os esforços desses grupos empresariais, foi necessário estreito esforço de coordenação entre a CGC e diferentes órgãos governamentais, especialmente a Casa Civil da Presidência da República e a Advocacia-Geral da União (AGU). Internamente, no Itamaraty, as participações da Assessoria para Assuntos Federativos e Parlamentares (AFEPA), no que se refere ao diálogo com o Congresso Nacional, e da Divisão de Mercosul (DMC), para o tema da exceção para o Mercosul, foram fundamentais.

A Subchefia de Acompanhamento de Políticas Governa-mentais da Casa Civil foi a entidade crucial para que se pudes-se fazer chegar aos parlamentares a clara noção de que a libera- lização das importações de pneus usados implicaria derrota do Brasil no contencioso contra a UE (já que toda a lógica da proi-bição de importações de pneus reformados seria solapada) e, mais gravemente, um retrocesso em matéria de políticas públi-cas na área de saúde pública e meio ambiente.

A articulação com a AGU e com a Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil foi, por sua vez, instrumental para que a questão das autorizações judiciais fosse superada, por meio

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da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 101, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade das medidas judiciais que autorizavam as importações de pneus usados e reformados. No marco da ADPF 101, inclusive, o STF realizou aquela que foi, à época, apenas a segunda audiência pública de sua história, o que denota a sensibilidade do tema e a atenção que a ele dedicaram os principais atores envolvidos, muito especialmente o STF.

No caso da exceção para o Mercosul, negociações em torno de uma política comum de resíduos de pneus, que permitisse o fluxo interno de pneus usados, mas proibisse todas as importações extrabloco, foram conduzidas pela DMC. A proposta encontrou resistências, sobretudo do Paraguai, mas o esforço negociador demonstrou aos sócios do Brasil que o país esgotou todas as alternativas antes de eliminar a exceção para o Mercosul, com fundamento nos argumentos ambientais que prevaleceram na OMC.

5. conclusão

O Brasil é um dos mais frequentes e vitoriosos usuários do sistema de solução de controvérsias da OMC. Os resultados obtidos em casos de imenso significado econômico-comercial – como “Embraer-Bombardier”, “Algodão”, “Açúcar”, “Frango Salgado” – despertaram no público mais amplo, nele incluídos tanto atores governamentais além do MRE, quanto acadêmicos, advogados e ONGs, o interesse por conhecer e participar de forma cada vez mais ativa nesses procedimentos; por um lado, tão áridos tecnicamente e, por outro, de tamanho impacto para o comércio internacional e para a liberdade regulatória dos Membros.

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O caso dos pneus reformados foi o primeiro em que o Brasil teve questionado o seu direito de restringir o comércio de bens em função de preocupações não comerciais. O fato de que todos os setores do Governo e os atores privados relevantes estivessem atentos e habilitados a contribuir para a elaboração e condução da defesa do Brasil foi um fator decisivo para que, ao final de mais de quatro anos de controvérsia, a Delegação do Brasil junto à OMC possa ter informado ao Órgão de Solução de Controvérsias que o país completara as modificações nas medidas questionadas e, com isso, implementara as recomendações adotadas pelo Órgão – não apenas preservando a sua política conservacionista, mas fortalecendo-a.

O caso assinala a importância do diálogo permanente entre as diferentes áreas do Governo e entre estas e os atores não governamentais, de forma que o enorme desafio que é vencer disputas jurídicas internacionais, muito frequentemente em enfrentamentos assimétricos contra potências como os EUA e a UE, não seja um desafio solitário da CGC ou mesmo do MRE. Os contenciosos na OMC envolvem interesses empresariais de centenas de milhões de dólares ou interesses não comerciais de valor inestimável, como no caso dos pneus reformados. A vitória ou a derrota nessas controvérsias nunca são apenas da diplomacia brasileira; nada mais natural, portanto, que a condução desses processos seja sempre um exercício coletivo, em que o MRE possa beneficiar-se da colaboração das outras áreas do Governo, do setor privado e da sociedade civil organizada.

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1

1 Registro meu agradecimento às inúmeras contribuições da equipe Embraer e dos diplomatas do Ministério das Relações Exteriores, que sempre defenderam com reconhecida competência técnica os temas de interesse nacional e em particular os do setor aeronáutico brasileiro.

o contencioso comerciAl emBrAer-BomBArdier

José Serrador Netoo

Engenheiro de Produção, formado pela Pontifícia Univer-sidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), pós-graduado em Direito Internacional e das Relações Econômicas do Comércio pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. Ingressou na Embraer em 2000, como assessor da Vice-Presidência de Relações Externas e, desde então, vem desenvolvendo funções ligadas a esta área. Sua trajetória profissional inclui passagens pela área de Relações Externas e Comércio Internacional da Xerox do Brasil, Arthur Andersen Business Consulting e

José Serrador Neto

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publicações na área de Políticas de Comércio Exterior. No ano de 2008, foi indicado como um dos representantes brasi-leiros para o Global Leadership Seminar, programa de política internacional da Universidade de Georgetown, em Washington DC. Atualmente, é Diretor de Relações Externas da Embraer.

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1. introdução

Dado seu impacto inquestionável em geração de renda e divisas, desenvolvimento tecnológico e defesa nacional, o setor aeroespacial é considerado como

estratégico e os poucos países que detêm o domínio completo de seu ciclo de produção têm declaradamente investido recursos públicos expressivos no setor como forma de dinamizar o seu desenvolvimento.

É neste contexto que o contencioso comercial entre Brasil e Canadá no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC) deve ser analisado, talvez como o mais emblemático litígio internacional do qual o Brasil participou em organismos multilaterais2.

O contencioso opôs a empresa brasileira Embraer, privada, estabelecida em 1969 como um projeto bem-sucedido do Estado Brasileiro, à canadense Bombardier, principal fabricante mundial de jatos regionais até então, hoje com negócios em aviação executiva, transportes terrestres e veículos de recreação – além da aviação comercial. À época, a empresa canadense era monopolista no mercado internacional de

2 Por contencioso comercial refiro-me às 3 (três) disputas comerciais envolvendo Brasil e Canadá na OMC, a saber: Brazil – Export Financing Programme for Aircraft (DS46), Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft (DS70), e Canada – Export Credits and Loan Guarantees for Regional Aircraft (DS222). Ao citar alguma disputa em particular, será feita menção expressa ao longo deste artigo.

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jatos regionais, enquanto a brasileira era a firma entrante, buscando se estabelecer neste segmento altamente competitivo e caracterizado por substanciais barreiras à entrada de novos concorrentes.

A história do contencioso se confunde com a própria história de recuperação da empresa brasileira, privatizada na década de 1990, em um momento em que se encontrava em situação financeira de extrema dificuldade. À época da privatização – em dezembro de 1993 – a empresa detinha como principais ativos sua capacidade tecnológica e industrial, além de um projeto inacabado de jato de porte regional de 50 lugares. Este projeto – o ERJ-145 – foi o produto que permitiu a retomada das vendas da empresa e sua recuperação financeira. Em 1996, o ERJ-145 entrou em operação, em uma importante venda efetuada para a empresa norte-americana Continental Express, subsidiária regional da empresa Continental Airlines. Além de verdadeiro marco na recuperação da Embraer, esta operação de venda foi, em grande medida, o elemento que deflagrou o litígio com o Canadá.

2. A fAse de consultAs

O contencioso comercial Brasil-Canadá se iniciou formalmente em 18 de junho de 1996 com o pedido de consultas do Canadá ao Brasil, em função de um programa específico de apoio às exportações da indústria brasileira – o Programa de Financiamento às Exportações (PROEX)3. Segundo o Canadá, esse programa violaria – em sua modalidade de equalização de

3 Brazil – Export Financing Programme for Aircraft, documento WT/DS46/1, de 21 de junho de 1996.

O contencioso comercial Embraer-Bombardier

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taxas de juros – os compromissos assumidos pelo Brasil na OMC e em especial as disposições do seu Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASCM).

O PROEX era então no Brasil o único instrumento de apoio financeiro às exportações brasileiras e a acusação feita pelo Canadá atribuía ao programa a competitividade das exportações de aeronaves comerciais da Embraer, quando utilizado. Na visão do Canadá, na ausência do instrumento de apoio ao financiamento representado pelo PROEX, pedidos firmes obtidos pela empresa brasileira não teriam sido confirmados.

Como primeiro passo num litígio internacional tendo como foro a OMC, consultas foram realizadas entre Brasil e Canadá em junho de 1996 a respeito do PROEX, mas nenhuma solução mutuamente satisfatória foi alcançada. Em 16 de setembro de 1996, o Canadá formalmente solicitou o estabelecimento do painel no âmbito do Órgão de Soluções de Controvérsias (OSC) da OMC4, o segundo passo requerido pela OMC a um país que questiona as práticas comerciais de outro.

Em função de erro procedimental nesse pedido, o início do litígio atrasou e nesse ínterim, ambos os governos concordaram em negociar ao longo dos meses subsequentes do ano de 1996.

Enquanto o Canadá questionava o PROEX, a Embraer acumulava fortes indícios de que a Bombardier estava sendo subsidiada pelo governo canadense. Com isso, reuniu e analisou informações públicas disponíveis e encaminhou esses dados aos diplomatas do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e à Missão do Brasil junto à OMC.

4 Brazil – Export Financing Programme for Aircraft, documento WT/DS46/2, de 17 de setembro de 1996.

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Tais informações foram suficientes para que, em 10 de março de 1997, o governo brasileiro também decidisse requerer consultas formais a respeito dos programas de apoio identificados pela Embraer no Canadá5. Naquele momento, e baseado nas informações públicas disponíveis, o governo brasileiro questionou diferentes programas de apoio canadenses:

1. Contribuição financeira por meio da Export Development Corporation, incluindo financiamento direto, garantias de crédito e financiamento da parcela equity;

2. Contribuição financeira por meio do programa Canada Account, incluindo linhas de financiamento com taxas de juros zero ou abaixo das praticadas pelo mercado para compradores de aeronaves regionais do Canadá;

3. Aportes de capital para o investimento na área industrial pelo governo federal e a província de Quebec;

4. Contribuição financeira através da entidade Société de Développement Industriel du Québec (SDI); e

5. Contribuição financeira para o desenvolvimento de novos programas, por intermédio do Technology Partnership Canada (TPC), bem como do Defense Industry Productivity Program (DIPP), seu predecessor – dentre outros.

Vale ainda destacar que naquele momento – em 1997 – a OMC, assim como seus tratados multilaterais negociados no âmbito da Rodada Uruguai (1986-1994), tinha menos de 3 anos de existência. Pouco se conhecia sobre o funcionamento do ASCM e seu nebuloso Anexo I6, importado das discussões da Rodada Tóquio de Negociações do antigo GATT (1973-1979),

5 Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft, documento WT/DS70/1, de 14 de março de 1997.

6 Lista Ilustrativa de Subsídios à Exportação.

O contencioso comercial Embraer-Bombardier

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o qual ilustrava 12 formas de subsídios à exportação, forma de apoio considerada como ilegal pelo Acordo. Somente o litígio entre Brasil e Canadá, onde o tema foi extensivamente discutido, viria a permitir uma melhor compreensão do funcionamento deste Tratado por governos, pela comunidade jurídica e pelo setor empresarial.

O pedido de consultas solicitado pelo Brasil em 1997 equiparou Brasil e Canadá do ponto de vista jurídico na OMC. Apesar de a situação ter ficado inalterada por quase todo o restante do ano, ao final de 1997 a Bombardier repentinamente substituiu a Embraer pela empresa americana Raytheon, como subcontratada em um programa da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em que a empresa canadense era a contratada principal. Este movimento, às margens de um litígio na OMC, ocorreu pouco antes da cúpula de chefes de estado entre o Presidente Fernando Henrique Cardoso e o primeiro- -ministro canadense Jean Chrétien e naturalmente influenciou o encontro das autoridades.

Buscando resolver a disputa no plano diplomático, o presidente brasileiro e o primeiro-ministro canadense nomearam enviados especiais, que visitaram as empresas e os órgãos governamentais competentes em ambos os países. A recomendação foi que Brasil e Canadá negociassem um tratado bilateral contendo rotinas de monitoramento, relatórios e verificação. Ao final, não se chegou a um acordo.

Naquele momento, o maior obstáculo à negociação do tratado bilateral era a insistência canadense em afirmar que todos os seus programas se encontravam em conformidade com os requisitos da OMC. O Brasil estava disposto a considerar modificações no PROEX, mas somente no contexto de um acordo que também implementasse mudanças nos programas do Canadá, que se recusava terminantemente a fazê-lo.

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Com o fracasso da fase de consultas, em 10 de julho de 1998, o Canadá solicitou a OMC o estabelecimento de um painel para avaliar a conformidade do PROEX com a normativa internacional7. O Brasil fez movimento semelhante, questionando o TPC, o Canada Account e a EDC, além de alguns programas em âmbito provincial citados anteriormente8. A fase de estabelecimento de painel é a fase no litígio na OMC imediatamente posterior ao pedido de consultas e já representa o início formal do processo litigioso.

Nos meses restantes de 1998, os painelistas foram selecionados, e em novembro e dezembro de 1998 foram realizadas audiências com as partes. Em 14 de abril de 1999, os membros dos Painéis apresentaram seus relatórios, concluindo que ambos os países mantinham subsídios em violação ao ASCM. Chegou-se à conclusão de que o PROEX era um subsídio à exportação, bem como o TPC e o Canada Account9.

3. o primeiro ciclo de contenciosos

3.1. O caso original contra o PROEX

É importante observar que o Brasil sempre notificou à OMC o programa PROEX como um subsídio à exportação. Por outro lado, o Canadá nunca havia feito qualquer notificação àquela organização a respeito dos programas questionados.

7 Brazil – Export Financing Programme for Aircraft, documento WT/DS46/5, de 13 de julho de 1998.

8 Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft, documento WT/DS70/2, de 13 de julho de 1998.

9 Os relatórios do painel original são: Brazil – Export Financing Programme for Aircraft, WT/DS46/R (14 April 1999) e Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft, WT/DS70/R (14 April 1999).

O contencioso comercial Embraer-Bombardier

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Em suas notificações sobre o PROEX, o Brasil sempre argumentara que o PROEX estava em conformidade com o Acordo, pois o Artigo 27 do ASCM permite aos países em desenvolvimento a concessão de subsídios por um período de oito anos a partir de sua entrada em vigor, em 1º de janeiro de 1995.

O problema dessa argumentação estava no requisito adicional do Artigo 27 de que os incentivos concedidos fossem declinantes no tempo, ou seja, que os valores efetivamente desembolsados reduzissem ano após ano, o que não ocorreu. Os valores alocados nos orçamentos anuais do PROEX eram declinantes, porém os valores efetivamente desembolsados pelo Programa não o eram.

Além disso, ao longo do litígio Brasil-Canadá no setor aeronáutico, uma disposição específica do ASCM – item (k) do Anexo I do Acordo – adquiriu relevância central, ficando conhecida como “O Item (k) e o Porto Seguro da OCDE”.

Como já mencionado, o ASCM inclui, em seu Anexo I, uma lista ilustrativa de subsídios à exportação, forma de apoio considerada como proibida pelo ASCM. Se a forma de apoio estiver listada no Anexo I, é considerada um subsídio proibido. Se analisarmos o item (k) do Anexo I, ele está descrito da seguinte forma:

(k) A concessão pelo governo (ou por instituições

especiais controladas pelas autoridades do governo e/

ou agindo sob seu comando) de créditos à exportação

a taxas inferiores àquelas pelas quais o governo obtém

os recursos utilizados para estabelecer tais créditos

(ou que teriam de pagar se tomassem emprestado nos

mercados financeiros internacionais recursos com a

José Serrador Neto

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mesma maturação, nas mesmas condições creditícias

e na mesma moeda do crédito à exportação) ou o

pagamento pelo governo da totalidade ou de parte dos

custos em que incorrem exportadores ou instituições

financeiras quando obtêm créditos, na medida em que

sejam utilizados para garantir vantagem de monta nas

condições dos créditos à exportação.

Não obstante, se um Membro é parte de compromisso

internacional em matéria de créditos oficiais à

exportação do qual sejam partes pelo menos 12 Membros

originais do presente Acordo em 1º de janeiro de 1979

(ou de compromisso que tenha substituído o primeiro e

que tenha sido aceito por esses Membros originais), ou

se na prática um Membro aplica as disposições relativas

ao tipo de juros do compromisso correspondente, uma

prática adotada em matéria de crédito à exportação que

esteja em conformidade com essas disposições não será

considerada como subsídio à exportação proibido pelo

presente Acordo.

O primeiro parágrafo relaciona, como exemplo de subsídio proibido à exportação, “o pagamento por [governos] da totalidade ou de parte dos custos em que incorrem os exportadores ou instituições financeiras quando obtém créditos (…)”. Neste aspecto, o PROEX poderia ser considerado proibido pelo Item (k), pois é um pagamento, pelo governo brasileiro, de parte ou totalidade dos custos do exportador ou instituições financeiras na obtenção de crédito. Além disso, o item (k) inclui um condicionante para o subsídio ser considerado proibido, “desde que eles sejam usados para obter uma vantagem de monta no campo das condições de crédito à exportação”.

O contencioso comercial Embraer-Bombardier

291

A linha de argumentação brasileira, conhecida como a contrario era desenvolvida segundo a lógica de que se esses pagamentos não fossem utilizados para obter uma vantagem de monta em crédito à exportação, eles não poderiam ser considerados subsídios proibidos.

Ainda na fase de painel, o Canadá contestou dois aspectos da linha de argumentação brasileira: a tese do a contrario e a ideia de que o PROEX não era utilizado para obter vantagem de monta. Após análise, o painel concordou com o Canadá sobre a questão da vantagem de monta, não tendo se pronunciado a respeito da argumentação a contrario.

O raciocínio do painel sobre a questão da vantagem de monta foi, na avaliação brasileira, falho e o Brasil decidiu apelar junto ao Órgão de Apelação. Após a fase de painel, caso um país não concorde com os resultados, pode apelar junto ao Órgão de Apelação, instância máxima de um litígio na OMC.

Embora o Órgão de Apelação tenha confirmado o resultado do painel, ele o fez de forma diferente e mais favorável ao Brasil10. De acordo com o painel, a vantagem de monta do PROEX existia porque a taxa líquida de juros para o tomador em qualquer transação em particular era sempre mais baixa, com o PROEX, do que seria sem ele. O Órgão de Apelação aprofundou a linha de argumentação do painel e concluiu que o mercado era a referência adequada para se determinar se o PROEX proporcionava ou não uma vantagem de monta.

Em outras palavras, não se tratava de testar se um tomador está mais bem servido com o PROEX do que o mesmo tomador

10 Brazil – Export Financing Programme for Aircraft, documento WT/DS46/AB/R, de 02 de agosto de 1999.

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estaria, na mesma transação, sem o PROEX. Trata-se de testar se a taxa líquida de juros, com apoio do PROEX, é inferior à que o tomador do empréstimo poderia obter no mercado privado bancário.

Além disso, em seu relatório, o Órgão de Apelação fez menção à taxa Commercial Interest Reference Rate (CIRR), estabelecida pela Organização para Cooperação e Desenvol-vimento Econômico (OCDE), como uma taxa referencial de mercado. Naquele momento, o importante do processo de apelação foi a definição de que o PROEX não era estrutural-mente ilegal, mas deveria ser modificado para adequar-se a um padrão de referência de mercado.

3.2. O caso original contra o Canadá11

No primeiro caso contra o Canadá, o Brasil questionou três dos principais programas daquele país: TPC, Canada Account e EDC, além de outros programas provinciais. Sobre a égide do TPC, o Canadá concedia empréstimos, a juros baixos, à sua indústria aeronáutica e foi possível comprovar que mais de US$ 250 milhões haviam sido desembolsados para o desenvolvimento do jato de 70 assentos da Bombardier, nos anos anteriores ao litígio.

Da mesma forma que os empréstimos da Airbus na União Europeia, os empréstimos canadenses só eram pagos a partir do momento em que o jato se comprovava comercialmente viável, forma de apoio conhecida no jargão da indústria como Launch Aid ou Royalty Based Financing. Assim, o governo canadense assumia o risco de desenvolvimento do programa, já que o

11 Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft (DS70).

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pagamento do empréstimo estava condicionado ao sucesso de suas vendas. Essa natureza de operação, posteriormente condenada na OMC no contencioso Boeing-Airbus, demonstrou se tratar claramente de um subsídio, pois proporcionava ao fabricante condições de financiamento melhores que as disponíveis no mercado privado. Além disso, tratava-se de um subsídio específico à exportação, pois 100% dos jatos regionais produzidos no Canadá haviam sido exportados no ano de 1998.

O painel concordou com a argumentação brasileira de que o TPC constituía, de fato, um subsídio à exportação12. Concordou ainda com a argumentação Brasileira de que o Canada Account era um subsídio proibido por ser vinculado ao desempenho exportador.

É importante destacar que o Canada Account, era uma espécie de fundo usado pelo primeiro-ministro do Canadá para subsidiar determinadas operações de exportação, de maneira discricionária e em casos especiais. Esses subsídios não eram transparentes no orçamento federal e jamais eram divulgados. O Canadá admitiu que exportações de aeronaves haviam sido incentivadas por meio desse programa e o processo litigioso demonstrou que o Canadá o utilizava para elevar a competitividade do financiamento oficial quando muitas aeronaves estava sendo vendidas. O programa era utilizado de forma que parte do financiamento não era pago pelo cliente, mas pelo governo canadense. A intensidade dos incentivos, medida posteriormente durante o processo de arbitragem, chegava, em algumas circunstâncias, a quase 20% do valor da aeronave.

12 Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft, documento WT/DS70/R, de 14 de abril de 1999.

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Sobre o EDC, um grande debate ao longo dos painéis sempre esteve relacionado com a transparência da instituição. Por ocasião da consulta feita pelo governo brasileiro em 1997, o Canadá anunciou a formação de uma subsidiária da EDC conhecida como Exinvest, que tinha como objetivo principal apoiar as exportações de aeronaves canadenses. Através de uma sofisticada estrutura acionária entre o governo canadense, a Exinvest e a Bombardier, os pagamentos da empresa aérea teriam de ser suficientes para pagar somente uma parte do financiamento contratado. Estava claro que essa estrutura não estava em conformidade com o ASCM, e isso motivou o pedido de consultas brasileiro sobre a transparência do esquema e da própria EDC. O Canadá reconheceu claramente a solidez da argumentação do Brasil e a força das provas apresentadas. A Exinvest, e todo o esquema a ela associado, foram desativados.

Sobre a transparência da atuação da EDC, esta instituição, embora uma entidade governamental, sempre agiu como banco privado. Detalhes das suas transações sempre foram tratados como confidenciais, até mesmo para o Parlamento Canadense, e esse tema foi alvo de sucessivos questionamentos pelo Governo Brasileiro. Apesar disso, em uma decisão bastante controversa, o painel aceitou a alegação de confidencialidade de informações por parte do Governo Canadense.

Sobre o TPC, os painelistas concordaram com o Brasil e o Canadá decidiu apelar do relatório do painel ao Órgão de Apelação (OA) da OMC. Após análise criteriosa, o OA confirmou o resultado do painel numa decisão amplamente favorável ao Brasil – o TPC era um subsídio proibido por ser vinculado ao desempenho exportador13.

13 Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft, documento WT/DS70/AB/R, de 2 de agosto de 1999.

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Sobre a transparência do EDC, o Brasil decidiu apelar ao Órgão de Apelação, mas este, impedido de reabrir a questão do ponto de vista factual14, chegou a sugerir que o Brasil reapresentasse a sua queixa contra o Canadá15.

3.3. A fase de implementação: os painéis do Artigo 21.5

Após a adoção do relatório do OA, cabe aos países em desacordo com as normas da OMC alterarem seus instrumentos de apoio com vistas a adequá-los à normativa internacional vigente. O problema é que nem sempre esse processo é simples ou transparente. Nesse sentido, a OMC prevê ainda a chamada fase de implementação, na qual os países discutem se as recomendações e decisões do OSC foram cumpridas. Essa fase é conhecida no jargão técnico como Artigo 21.5 ou painel de implementação e prevê a possibilidade de apelação caso as partes envolvidas – ou uma delas – considere que há discordância com as decisões do painel.

Após a circulação dos relatórios do Órgão de Apelação, adotadas no dia 20 de agosto de 1999, foi concedido um prazo de 90 dias para que o Brasil e o Canadá corrigissem seus programas de incentivo.

O Canadá anunciou suas medidas quanto ao TPC e ao Canada Account. O Brasil anunciou que havia estabelecido um limite mínimo para o PROEX à mesma taxa do Título da Dívida

14 De acordo com o Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC) da OMC, o OA não teria a possibilidade de reverter decisões de cunho factual, de exclusiva responsabilidade do Painel, mas apenas as conclusões e decisões jurídicas do Painel.

15 Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft, documento WT/DS70/AB/R, de 2 de agosto de 1999.

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Pública, de 10 anos, dos Estados Unidos (“10-year United States Treasury Bond”) mais 20 basis points – uma referência que passou a ser conhecida como “T-Bill plus 20”.

Quando essas providências foram anunciadas, ambos os países argumentaram que o outro não havia feito o suficiente para eliminar os aspectos proibidos dos seus subsídios, e os membros do painel original foram convocados novamente, em conformidade com o Artigo 21.5, para decidir se as providências tomadas pelo Brasil e pelo Canadá haviam sido suficientes. Iniciava-se o painel de implementação (Artigo 21.5) do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC) da OMC. O ESC é o conjunto de regras e procedimentos pelos quais um litígio se desenvolve na OMC.

Em 9 de maio de 2000, os Painéis do Artigo 21.5 do ESC apresentaram seus relatórios, que concluíram que as providências tomadas pelo Brasil para modificar o PROEX não haviam sido suficientes, que o Canadá não havia modificado o Canada Account de maneira adequada, mas que as modificações feitas no TPC haviam sido apropriadas16. O Brasil apelou sobre o PROEX, mas o Canadá não apelou no caso do Canada Account.

O painel do Artigo 21.5 do ESC sobre o Brasil concluiu que o novo limite mínimo para o PROEX – “T-Bill + 20” – ainda proporcionava uma vantagem de monta. O Órgão de Apelação concordou com o painel, argumentando que o Brasil usava uma taxa inferior à CIRR da OCDE e que caberia ao país provar

16 Brazil – Export Financing Programme for Aircraft – Recourse by Canada to Article 21.5 of the DSU, documento WT/DS46/R/W, de 9 de maio de 2000; Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft – Recourse by Brazil to Article 21.5 of the DSU, documento WT/DS70/RW, de 9 de maio de 2000).

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que essa taxa inferior a CIRR estaria em conformidade com as práticas de mercado17. Na realidade, o resultado prático disso é que o Brasil ainda poderia estabelecer o PROEX à taxa da OCDE (CIRR), e até mesmo a uma taxa inferior a CIRR, desde que comprovasse ser aquela a taxa referencial de mercado.

Em relação ao painel do Artigo 21.5 do ESC envolvendo o Canadá, o TPC foi considerado um subsídio, de facto, à exportação. Isso significa que a legislação do programa não se aplicava exclusivamente às exportações (de jure), mas que na prática (de facto), a indústria aeronáutica recebia o TPC somente porque exportava seus produtos. Esse resultado somente foi possível porque os diplomatas brasileiros conseguiram comprovar, com numerosas evidências, que o TPC era na realidade, um subsídio à exportação. Provas incluíram, por exemplo, declarações de funcionários do governo canadense e parlamentares, formulários de enquadramento no programa, regulamentos que regiam o programa e até um estudo que comprovava que 100 % dos jatos regionais produzidos pela Bombardier eram exportados.

Após a condenação canadense, o Canadá fez mudanças de redação nos formulários e informações solicitadas aos exportadores no âmbito do TPC, argumentando que o programa estava reformulado. O Brasil apelou dessa conclusão, argumentado que a questão fundamental não era se o Canadá tinha tratado dos aspectos administrativos do programa citado pelo painel, mas se o TPC, após terem sido feitas mudanças no programa, encontrava-se ou não em conformidade com as normas da OMC. O Órgão de Apelação concordou com esse argumento do Brasil, mas ao final decidiu reverter a decisão

17 Brazil – Export Financing Programme for Aircraft – Recourse by Canada to Article 21.5 of the DSU, documento WT/DS46/AB/RW, de 21 de julho de 2000.

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do painel sobre o TPC18. O TPC não foi mais considerado um subsídio vinculado de fato às exportações.

Assim, chegou-se ao final dos processos de implementação com a seguinte situação: de um lado o PROEX, com um limite mínimo de “T-Bill+20” ainda era visto como um programa que proporcionava uma vantagem de monta e do outro lado, o TPC havia sido corrigido pelo Canadá, diferentemente do Canada Account, considerado ilegal perante as normas. No caso do PROEX, vale ressaltar que a OMC considerou insuficientes as provas apresentadas pelo Brasil para evidenciar que o mercado se encontrava no nível “T-Bill+20”, apesar de todos os modelos econométricos apresentados.

3.4. A retaliação

A fase conhecida como retaliação – no jargão técnico a “suspensão de concessões ou de outras obrigações” – ocorre no caso das recomendações e decisões não serem implementadas dentro de prazo razoável. Nesses casos, é passada à etapa de mensuração do dano causado ao outro país em função dessa não adequação à normativa internacional.

Após a conclusão da fase do Artigo 21.5 do ESC, o Canadá solicitou ao OSC autorização para suspender concessões ou outras obrigações com relação ao Brasil por causa do PROEX. O Brasil, por sua vez, não solicitou autorização para aplicar sanções contra o Canadá por causa do Canada Account nesse momento, fato que ocorre numa fase subsequente da história dos litígios.

O valor de retaliação solicitada pelo Canadá foi de 700 milhões de dólares canadenses por ano. Os mediadores reduziram esse valor pela metade, estipulando um valor de 344,2 milhões de dólares canadenses por um período de 5 anos. À cotação da época

18 Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft – Recourse by Brazil to Article 21.5 of the DSU, documento WT/DS70/AB/RW, de 21 de julho de 2000.

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isso significava aproximadamente 234 milhões de dólares norte-americanos por ano19.

É importante destacar que a retaliação está relacionada com o que ficou conhecido como “aeronaves não entregues”. A questão das aeronaves não entregues surgiu na disputa em função da forma pela qual as vendas são realizadas na indústria aeronáutica. Dado o alto grau de customização, as aeronaves são fabricadas sob encomenda e são entregues às empresas aéreas após certo tempo, frequentemente no decorrer de vários anos. Os detalhes essenciais da transação, técnicos, comerciais ou financeiros são determinados por ocasião do pedido, e não quando o avião é entregue, muitos meses ou anos depois. Portanto, uma concorrência é vencida ou perdida no momento da encomenda e não no da entrega.

Ao longo do processo de negociação com as companhias aéreas, normalmente o fabricante solicita o apoio do PROEX. Essa solicitação contém os detalhes da transação. Se o enquadramento no PROEX é aprovado, emite-se um termo de compromisso, assegurando a concessão do instrumento de apoio. Esse compromisso tem, obviamente, efeito imediato sobre a transação. Na avaliação do governo brasileiro, esse deveria ser considerado o momento em que o apoio oficial era concedido, pois ficava estabelecido o compromisso do Estado Brasileiro sobre a concessão do apoio ao longo de todo o cronograma de entregas de aeronaves elegíveis no enquadramento.

Apesar dessa argumentação, os árbitros da OMC concluíram que o PROEX seria concedido no momento da exportação de cada aeronave porque nesse momento são outorgadas as autorizações

19 Brazil – Export Financing Programme for Aircraft – Recourse to Arbitration by Brazil Under Article 22.6 of the DSU and Article 4.11 of the SCM Agreement, documento WT/DS46/ARB, de 28 de agosto de 2000.

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de pagamento do PROEX por meio da emissão das chamadas NTN-I20 (títulos NTN-I). Com isso, entraram no cálculo do montante de retaliação todas as “aeronaves não entregues”, ou seja, aeronaves que haviam sido vendidas com o compromisso do programa PROEX e cujas entregas ocorreriam posteriormente à data da arbitragem. Essa conclusão é que justifica o valor elevado da retaliação autorizada pelos árbitros. Naquele momento, a alternativa que se oferecia ao Governo Brasileiro era alterar as condições dos contratos de financiamento já assinados ou enfrentar o processo de retaliação.

É ponto comum que, neste aspecto, o governo agiu de forma correta fazendo questão de honrar esses compromissos. Entidades privadas, incluindo a Embraer, clientes e instituições financeiras, tanto no Brasil quanto no exterior, haviam agido de boa-fé no que diz respeito a esses contratos e a decisão do governo em honrá-los preservou a reputação, tanto do Brasil quanto da Embraer, nos mercados internacionais.

4. o segundo ciclo de contenciosos

4.1. O segundo caso contra o PROEX e o “Porto Seguro” da OCDE21

A OCDE é um organismo plurilateral formado por 34 países, majoritariamente desenvolvidos e cuja sede fica em Paris. Os Estados Unidos, Canadá, União Europeia e Japão são países-

20 NTN-I são as Notas do Tesouro Nacional da série I, utilizadas para o programa PROEX- -Equalização.

21 Muito embora tratemos desse questionamento como o segundo caso contra o PROEX, tecnicamente trata-se do segundo recurso ao Artigo 21.5 do ESC feito pelo Canadá na disputa Brazil – Export Financing Programme for Aircraft (DS46).

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-membros. A OCDE tem um papel importante nessa disputa porque, com o PROEX III22, o Brasil estabeleceu a CIRR como piso para o PROEX.

A CIRR é uma taxa estabelecida mensalmente pela OCDE para a moeda de cada país-membro. Ela é baseada no custo financeiro do país da moeda em questão. Basicamente, a CIRR corresponde a 1% – ou 100 basis points – acima do custo dos fundos para o governo, em determinada moeda. Portanto, a CIRR para o dólar americano é, aproximadamente, T-Bill mais 100.

De acordo com o PROEX III, o apoio não poderia ser usado para fazer com que a taxa líquida de juros para o tomador ficasse abaixo da CIRR. Isso colocou o Brasil inteiramente em conformidade com os requisitos da OMC. O Canadá discordou, e iniciou a última sequência de painéis questionando o PROEX III na OMC23.

Como a CIRR é uma taxa baseada no mercado, o programa PROEX com o piso de CIRR, não apresentava benefício segundo a definição do ASCM. É importante relembrar que, conforme a decisão do Órgão de Apelação no caso original contra o PROEX, o mercado privado era a melhor forma de testar a existência de um componente de subsídio no instrumento de apoio financeiro. Portanto, na avaliação brasileira, o PROEX baseado na CIRR nem chega a ser um subsídio, conforme o ASCM. Assim, o PROEX III não conferia uma vantagem de monta, de acordo com o primeiro parágrafo do item (k) do Acordo.

Além disso, o segundo parágrafo do item (k) menciona uma excepcionalidade especial, o chamado “Porto Seguro” da OCDE.

22 O PROEX III é a terceira adequação do programa que inclui a taxa referencial CIRR como piso da taxa líquida de juros do programa.

23 Brazil – Export Financing Programme for Aircraft – Second Recourse by Canada to Article 21.5 of the DSU, documento WT/DS46/26, de 22 de janeiro de 2001.

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O parágrafo excetua da lista de subsídios proibidos uma situação específica em que o país aplica as “disposições relativas ao tipo de juros” de um “compromisso internacional em matéria de créditos oficiais à exportação do qual sejam partes pelo menos 12 Membros originais do presente Acordo em 1º de janeiro de 1979”.

Analisando esse parágrafo, pode-se concluir que o “compromisso internacional” a que ele se refere é o acordo da OCDE intitulado Acordo Referente às Diretrizes para os Créditos às Exportações com Apoio Oficial e que as “disposições de juros” a que faz menção é justamente a taxa CIRR, o novo piso do PROEX III.

Com relação à utilização do “Porto Seguro” da OCDE – parâmetro definido em tratado do qual o Brasil não participa e por organização a que o Brasil não pertence – como referência para o piso do PROEX III, há que se reconhecer que esta foi uma decisão não trivial para o Governo Brasileiro mas que se revelaria adequada e correta posteriormente.

Há, além disso, importante discussão teórica em relação à versão do Acordo da OCDE que se refere o ASCM. O Acordo da OCDE foi assinado em 1978, e sofreu várias alterações ao longo dos anos. Em 1995, com o surgimento da OMC, a versão de 1992 do Acordo estava em vigor, mas já em 1998 a OCDE introduziu novas modificações no Acordo, sempre sem a participação do Brasil e já sob a vigência dos Acordos da Rodada Uruguai. Isso levantou uma discussão “sistêmica” sobre o suposto mandato que a OMC conferiria, por meio do item (k) do Anexo I do ASCM à OCDE, para regulamentar aspectos relacionados ao ASCM.

Foi nesse contexto que o painel do PROEX III se desenvolveu e, em 26 de julho de 2001, o OSC da OMC concluiu que o PROEX estava em total conformidade com a normativa internacional

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vigente, rejeitando as queixas canadenses, no que constituiu talvez uma das mais emblemáticas vitórias da diplomacia brasileira24. O painel concluiu que o programa PROEX não conferia benefício ao exportador, ao se limitar a oferecer as condições disponíveis no mercado.

Alternativamente, o painel concluiu que, além de sua utilização em condições de mercado, o PROEX ainda poderia ser utilizado nas chamadas condições do “Porto Seguro” da OCDE, ou seja, taxa de juros CIRR, prazo de financiamento máximo de 10 anos e 85% do valor do bem financiado. Em 23 de agosto de 2001, o OSC da OMC adotou o relatório final confirmando o PROEX III como um instrumento 100% em conformidade com as regras da OMC.

4.2. O segundo caso contra o Canadá25

No final de 2000, Embraer e Bombardier disputavam uma emblemática venda a uma empresa aérea regional nos Estados Unidos, a Air Wisconsin. Tratava-se de uma venda de grande porte – 75 pedidos firmes mais 75 opções de compra, um contrato de mais de três bilhões de dólares.

Em janeiro de 2001, o ministro da Indústria do Canadá, Brian Tobin, convocou uma entrevista coletiva na qual anunciou que o Canadá subvencionaria a Bombardier na medida em que fosse necessário para que a empresa conseguisse ganhar o contrato com a Air Wisconsin. Disse que o Canadá usaria o Canada Account, a EDC e o apoio financeiro da Província de Quebec. Afirmou ainda que o Canadá estaria oferecendo tais

24 Brazil – Export Financing Programme for Aircraft – Second Recourse by Canada to Article 21.5 of the DSU, documento WT/DS46/RW/2, de 26 de julho de 2001.

25 Canada – Export Credits and Loan Guarantees for Regional Aircraft (DS222).

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subsídios para supostamente equiparar-se à oferta brasileira26. Dado o vulto de subsídios oferecidos pelo Governo Canadense, a Bombardier logrou conquistar o contrato de venda para a empresa Air Wisconsin.

Em consequência disso, realizaram-se, no mês seguinte, a pedido do Brasil, consultas a respeito das operações associadas à Export Development Corporation (por meio dos programas EDC Canada Account e EDC Corporate Account) e ao programa Investissement Québec, no tocante ao financiamento às exportações de jatos regionais da Bombardier.

Não tendo sido atingido resultado satisfatório nas consultas, estabeleceu-se, em 12 de março de 2001, o painel solicitado pelo Brasil para exame dos programas acima mencionados. O relatório final do painel, divulgado em 28 de janeiro de 2002 e adotado em 19 de fevereiro do mesmo ano, concluiu que as seguintes operações canadenses haviam recebido subsídios à exportação de forma incompatível com as normas da OMC27:

• Financiamento com recursos do programa EDC Canada Account à Air Wisconsin (EUA), em maio de 2001, envolvendo a aquisição de 150 aviões (75 compras confirmadas e 75 opções), em um total aproximado de US$ 3,36 bilhões;

• Financiamento com recursos do mesmo programa à Air Nostrum (Espanha), em outubro de 1998, envolvendo a aquisição de 10 aviões (cinco compras confirmadas e cinco opções), em um total aproximado de US$ 224 milhões;

26 Vale registrar que naquele momento a proposta da Embraer sequer incluía questões de financiamento e o apoio do programa PROEX não havia sido requerido pela empresa.

27 Canada – Export Credits and Loan Guarantees for Regional Aircraft, documento WT/DS222/R, de 28 de janeiro de 2002.

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• Financiamentos com recursos do programa EDC Corporate Account à Comair (EUA), em julho de 1996, agosto de 1997 e fevereiro de 1999, envolvendo a aquisição de 44 aviões, totalizando aproximadamente US$ 985,6 milhões.

O Canadá foi instado pelo painel a “retirar os subsídios identificados sem demora”, num prazo máximo de 90 dias a contar da data da adoção do relatório. O Canadá não apelou dos resultados do painel e o prazo para a retirada dos subsídios expirou em 20 de maio de 2002.

Na reunião do OSC realizada em maio de 2002, o Canadá comunicou que não tomaria qualquer medida para a retirada dos subsídios. No mês seguinte, o Brasil solicitou autorização ao OSC para adotar “contramedidas apropriadas” contra o Canadá, no valor de US$ 3,36 bilhões, montante estimado dos prejuízos totais da Embraer em função dos subsídios canadenses. O Canadá discordou do montante e o assunto foi encaminhado à arbitragem. O laudo da arbitragem foi entregue em 23 de dezembro de 2002 e concedeu ao Brasil o direito de retaliar comercialmente o Canadá em até US$ 247,8 milhões28. Para calcular esse valor, os árbitros estipularam o valor de US$ 3,277 milhões por aeronave canadense subsidiada – superior aos subsídios fornecidos por aeronave pelo Brasil – acrescido de 20% pelo fato do Canadá ter declarado que não iria retirar os subsídios condenados.

Os árbitros aplicaram a pena à venda de apenas 63 aeronaves da Bombardier, em contraponto aos 199 aviões questionados pelo Brasil. Além disso, os árbitros utilizaram, para o cálculo,

28 Canada – Export Credits and Loan Guarantees for Regional Aircraft – Recourse to Arbitration by Canada under Article 22.6 of the DSU and Article 4.11 of the SCM Agreement, documento WT/DS222/ARB, de 17 de fevereiro de 2003.

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o custo dos subsídios canadenses, e não os prejuízos totais causados à Embraer, como havia pleiteado o Brasil.

A longa série de contenciosos bilaterais enfrentados pelo Brasil no setor aeronáutico deixa importantes lições e produziu efeitos tangíveis. Apesar do não exercício da chamada retaliação comercial (suspensão de concessões e outras obrigações), os litígios no âmbito do OSC da OMC reduziram o grau de intervenção governamental e derivaram em um processo que, no ambiente plurilateral da OCDE, gerou condições crescentemente equânimes de competição entre os países com atuação no setor.

5. dAs trAtAtivAs BilAterAis às negociAções do Asu nA ocde

Com a conclusão dos Painéis na OMC, Brasil e Canadá mantiveram conversações bilaterais entre o final de 2001 e meados de 2005 com vistas a encontrar solução mutuamente satisfatória para as diferenças entre os dois países. Em novembro de 2001, reuniram-se em São Paulo negociadores brasileiros e canadenses. Seguiram-se mais duas reuniões, em Nova York (fevereiro de 2002), e no Rio de Janeiro (abril de 2002). Nessa terceira reunião, foi criado Grupo de Trabalho Técnico (GTT) bilateral, ao qual se atribuiu a tarefa de analisar todos os elementos com impacto sobre as condições de concorrência entre as duas empresas. O GTT reuniu-se diversas vezes até que, em maio de 2003, em Nova York, deu início às discussões sobre as bases concretas do que poderia constituir o texto de um acordo entre os dois países. O Canadá, inicialmente reticente em buscar um entendimento com o Brasil, retornava às mesas de negociação após ter enfrentado a derrota no âmbito da OMC. Um conceito sempre presente no processo foi o de se buscar

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o chamado level playing field, ou seja condições equânimes de competição entre os países em termos de apoio oficial.

Além disso, o desafio das negociações bilaterais residia em definir quão amplo seria o tratado e que variáveis seriam parametrizadas na busca das condições equânimes de competição entre as partes. O objetivo fundamental seria estabelecer parâmetros econômicos com o objetivo de minimizar a variável financiamento nos processos de aquisição de aeronaves dos dois participantes. O problema é que, em um mercado altamente concentrado como o de jatos regionais, ficava patente durante as negociações o caráter “perde-ganha com resultante zero” de tudo o que se discutia, ou seja, os trade-offs necessários a qualquer negociação estavam ausentes.

Após dois anos de intensas negociações bilaterais lideradas pelos governos e acompanhadas de perto pelo setor privado, minutas de entendimentos e conversas sem avanços substanciais entre os dois governos, Brasil e Canadá decidiram interromper as negociações. Além das dificuldades próprias de uma negociação bilateral de cunho setorial, surgia um fato novo no cenário plurilateral: o novo entendimento setorial de aeronaves civis da OCDE (ASU – Aircraft Sector Understanding) iniciava seu processo de revisão. Assim, diante da dificuldade de avanços no plano bilateral e das novas oportunidades apresentadas no plano plurilateral, o Brasil decidiu, na qualidade de convidado para as negociações do Entendimento Setorial Aeronáutico da OCDE, participar das negociações para a revisão do acordo.

O País entrou no processo como negociador pleno, mas com direito a deixar as negociações caso avaliasse tal decisão conveniente a qualquer momento. E aproveitou a oportunidade que se lhe oferecia. Mobilizou, sob a competente coordenação

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do Itamaraty, uma equipe de negociadores reunindo representantes do Ministério da Fazenda (MF), Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Seguradora Brasileira de Crédito à Exportação (SBCE). Participou ativamente das negociações, formulou propostas concretas inclusive naquelas áreas de elevado conteúdo técnico e influenciou intensa e diretamente os resultados das negociações. Posicionou-se como rule-maker no cenário internacional num terreno em que esse papel vinha sendo desempenhado exclusivamente por poucos países desenvolvidos.

Como resultado dessa atuação, em 30 de julho de 2007 foi assinado, no Rio de Janeiro, o Entendimento Setorial sobre Créditos à Exportação de Aeronaves Civis, em ato que formalizou a conclusão de mais de dois anos de difíceis negociações levadas a cabo no âmbito da OCDE.

O instrumento inclui disciplinas relativas a prazos de pagamento, taxas de juros e prêmios de risco das operações, tornando os termos e condições de financiamento mais compatíveis com os riscos das operações, das empresas nelas envolvidas e parâmetros de mercado. Os signatários do Entendimento se comprometem a não oferecer, em apoio às exportações de aeronaves, termos e condições mais favoráveis do que aquelas negociadas no acordo.

Em suma, pode-se afirmar que o acordo contribuirá para reduzir as distorções competitivas derivadas da capacidade diferenciada dos países para utilizar fundos públicos em apoio às exportações de aeronaves civis. Para esse setor, tal evolução significa que pelo menos parte expressiva das distorções até então vigentes nas regras multilaterais aplicáveis à concessão

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de créditos oficiais à exportação será eliminada, ao se caminhar, a partir do novo Entendimento, para o estabelecimento de um level playing field neste campo. As negociações setoriais da OCDE não se encerraram com a assinatura do Entendimento em 2007, mas continuaram evoluindo, tendo suas regras e disciplinas passado por importante revisão e aperfeiçoamento em 2011.

Ao mesmo tempo em que se reconhece a relevância desse acordo no plano político e econômico, é importante destacar que o acordo celebrado somente foi possível depois que Brasil e Canadá passaram por um longo e desgastante processo jurídico no âmbito da OMC. Isso fez com que, independentemente da aplicação de medidas retaliatórias, os países voltassem às mesas de negociação.

Além disso, o processo na OMC fez com que os níveis de subsídios praticados (proibidos ou não) fossem reduzidos dos dois lados. Ou seja, os contenciosos, ao gerar uma dinâmica de retaliações comerciais, produziram o efeito indireto de tornar os dois países mais rigorosos com suas indústrias no processo de concessão de apoio oficial.

6. conclusões e perspectivAs

A disputa aeronáutica Brasil-Canadá no âmbito da OMC e as negociações setoriais na esfera da OCDE se desenvolveram em um ambiente marcado por intensa competição entre os principais países produtores – que conferem às suas indústrias alto valor econômico e estratégico.

Na atualidade, apenas Brasil, Canadá, Estados Unidos e União Europeia têm indústrias capazes de prospectar mercados, especificar, projetar, fabricar, certificar e prover os serviços

José Serrador Neto

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aos clientes. Japão, Rússia, China e México são países com aspirações a se tornarem atores relevantes no setor, porém ainda se encontram em patamares de desenvolvimento tecnológico bem inferior aos países supracitados.

Sobre as ajudas de Estado, mesmo os países com indústrias aeronáuticas consolidadas continuam a apoiar de forma intensa o desenvolvimento de novas aeronaves civis e militares com vistas à manutenção de suas posições relativas neste mercado. A União Europeia e os Estados Unidos são exemplos inequívocos dessa atuação, em especial no que se refere a aeronaves comerciais de grande porte.

Alguns exemplos desse apoio incluem os incentivos para o desenvolvimento da aeronave Airbus A380, o superjumbo de mais de 500 lugares lançado há alguns anos, e os programas norte-americanos de desenvolvimento tecnológico da Boeing com a NASA (agência espacial norte-americana) e o Pentágono, com impactos comprovados no programa 787 Dreamliner.

Foram justamente esses incentivos que deflagraram o contencioso comercial conhecido como Boeing-Airbus29, um dos mais longos, custosos e complexos contenciosos da história da OMC. Os resultados desse litígio comprovaram, em sua fase de painel, que tanto os Estados Unidos quanto a União Europeia se utilizaram de apoios governamentais em violação às regras da OMC para o desenvolvimento e lançamento de novas aeronaves.

No caso de Japão, Canadá, China e Rússia, a intensidade do apoio estatal não é inferior, podendo-se citar como exemplo

29 Por contencioso comercial Boeing-Airbus refiro-me às disputas European Communities and Certain Member States – Measures Affecting Trade in Large Civil Aircraft (DS316) e United States – Measures Affecting Trade in Large Civil Aircraft (DS353).

O contencioso comercial Embraer-Bombardier

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a nova aeronave canadense sendo desenvolvida – o programa C-Series. Este programa deverá receber um bilhão de dólares americanos de apoio oficial para seu desenvolvimento, por meio de parcerias com os governos do Canadá, Reino Unido e China. No caso do Japão, estima-se que o programa Mitsubishi Regional Jet, jato comercial de 70-90 assentos, receberá do Ministério da Economia, Indústria e Comércio Japonês (METI – Ministry of Economy, Trade and Industry) um terço do custo de desenvolvimento, estimado em cerca de dois bilhões de dólares americanos.

Como no setor aeronáutico, grande parte do comércio é efetuado sem que haja barreiras tarifárias entre os países tanto em bens acabados, quanto nos insumos produtivos (partes e peças de aeronaves), a discussão normativa do setor gira em torno das regras de comércio na área de subsídios. São elas que disciplinam o papel dos países no apoio às suas indústrias em termos de incentivos fiscais, linhas de financiamento para os clientes, subvenção econômica, apoio para pesquisa e desenvolvimento, treinamento e capacitação, dentre outros.

É fundamental, portanto, a compreensão de quão relevante torna-se nesse contexto o único acordo que disciplina essas questões no plano multilateral, o chamado Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASCM) da OMC. As negociações da OCDE são muito importantes, mas as disciplinas negociadas não se aplicam a dois novos entrantes no mercado internacional de aeronaves – China e Rússia – dois países adeptos do capitalismo de Estado e das políticas industriais pouco transparentes.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a variável estratégica ligada aos temas multilaterais tratados na OMC e OCDE somente

José Serrador Neto

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crescerá no setor aeronáutico. A experiência brasileira de atuação coordenada do setor privado com as esferas de governo, a coordenação intragovernamental e a capacidade técnica de formular propostas substantivas – fundamentais para o sucesso obtido pelo Brasil ao longo de 15 anos de litígios e negociações no âmbito do sistema multilateral de comércio – continuarão a funcionar como os principais ativos do país para enfrentar os desafios que se apresentarão na esfera internacional para o setor aeronáutico brasileiro.

E não faltarão desafios para o Brasil. Ao final dos contenciosos Boeing-Airbus fica patente a necessidade de que se reúnam as condições necessárias para negociações com vistas a um novo entendimento setorial, para regular as chamadas ajudas de Estado para o lançamento de novos produtos (subsídios à Pesquisa e Desenvolvimento). No atual contexto competitivo, tal entendimento requereria a presença, não só dos atores já consolidados no setor, mas também dos novos entrantes, em especial Japão, China e Rússia.

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Haroldo Rodrigues da Cunha é Engenheiro Agrônomo, formado pela Escola de Agronomia da UFG, com especialização em Administração Rural na FAEPE-UFLA. Produtor de algodão e soja em Turvelândia-GO, presidiu a Associação Goiana dos Produtores de Algodão - AGOPA de 2004 a 2008. Foi presidente da ABRAPA - Associação Brasileira dos Produtores de Algodão, de maio de 2008 a dezembro de 2010, período em que também esteve à frente do Conselho de Ética do Algodão. É Conselheiro da ABRAPA e faz parte do Conselho Superior do Agronegócio e do Departamento de Agronegócio-DEAGRO da FIESP. Atualmente é o Presidente Executivo do Instituto Brasileiro do Algodão, cargo que exerce desde setembro de 2010.

Vladimir Spíndola é Advogado e sócio do escritório Spíndola Palmeira Advogados. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Conselheiro e representante em Brasília do Movimento de Defesa da Advocacia.

o contencioso do Algodão nA omc e

A criAção do iBAHaroldo Rodrigues da Cunha

Vladimir Spindola

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A disputa do algodão na OMC é um case de sucesso, não só pelos resultados concretos advindos da vitória na OMC, como a criação do Instituto Brasileiro do

Algodão – IBA, mas também pelas outras implicações que o caso trouxe. O contencioso foi um dos maiores e mais importantes processos a questionar os abusivos subsídios agrícolas praticados pelos países ricos e foi um marco importante para a criação e fortalecimento do G20. Além disso, deu visibilidade para a diplomacia brasileira, que conduziu o contencioso de maneira exemplar e abriu um importante debate na sociedade sobre a legitimidade e os impactos de programas de subsídios bilionários, destinados a uma parcela ínfima da população, nos países desenvolvidos. Sem a menor sombra de dúvidas, esse caso será um marco não só na cotonicultura, mas em toda agricultura, no que diz respeito ao comércio multilateral de produtos agrícolas, podendo impactar na ordem econômica mundial num futuro não muito distante.

O início do contencioso se deu no ano de 2001, ainda no Governo FHC, quando o Ministro Pratini de Moraes e sua equipe, liderada pelo Pedro Camargo Neto e com forte atuação do Lino Colsera, decidiram estudar o cenário internacional, com o objetivo de adotar medidas de defesa do acesso do Brasil a esses mercados e contestar os subsídios internacionais, que tanto impactavam commodities brasileiras importantes, como o algodão, soja, carne, açúcar, dentre outros. Por uma série de circunstâncias, o foco foi dado ao açúcar e ao algodão.

Haroldo Rodrigues da CunhaVladimir Spindola

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No caso do algodão, o Ministro convocou a Associação Brasileira de Produtores de Algodão (ABRAPA), então recentemente criada, para saber dos produtores o que eles pensavam da estratégia do Governo. Após uma séria de reuniões, a ABRAPA decidiu apoiar a decisão do Governo Federal de questionar os subsídios dados ao algodão americano. A ABRAPA aceitou o desafio de custear o processo, assim como contratar os advogados que fariam a defesa da posição brasileira.

O setor vivia tempos difíceis, com preços internacionais extremamente baixos. No período contestado, o algodão chegou a valer US$ 0,29 por libra peso, ante uma média histórica de US$ 0,70. Em 2001, o valor dos subsídios americanos equivaleu a 130% do valor de toda produção de algodão daquele país. Estudos mostraram que sem os subsídios ao algodão, a produção americana cairia 29%, suas exportações reduziriam em 41% e os preços internacionais subiriam 12,5 %.

Em outubro de 2002 começaram as consultas informais e em fevereiro de 2003 a ação foi formalizada na OMC. A ABRAPA passou a atuar de forma bastante ativa, sendo que um dos primeiros desafios era exatamente contratar um escritório de advocacia com experiência e competência para cuidar da ação. Vários escritórios foram contatados e apesar da pressão de alguns setores para contratar essa ou aquela banca, a ABRAPA se decidiu pela contratação da Sidley Austin Brown &Wood LLP de Genebra, que havia atuado no caso da Embraer contra a canadense Bombardier. Juntou-se ao time um grande econometrista, da Universidade da Califórnia, o Dr. Daniel Sumner.

Um papel importantíssimo que coube à ABRAPA foi articulação do apoio de vários ministérios à causa sugerida pelo Ministério da Agricultura. Essa era uma missão difícil pois ali

O contencioso do algodão na OMC e a criação do IBA

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se propunha questionar a maior potência econômica mundial. Além disso, cabia à associação a busca por informações e dados da produção de algodão brasileira e sua evolução, demandados pelos advogados e econometristas, visando provar os graves prejuízos sofridos pela cotonicultura brasileira em função do programa de subsídios norte-americano.

Os produtores foram convidados a enviar à ABRAPA seus testemunhos, atestando a dificuldade sofrida em função dos preços internacionais extremamente pressionados e contribuíram de forma surpreendente. A associação registrou dezenas de depoimentos, de produtores que haviam até mesmo deixado a atividade em função da baixa remuneração da produção de algodão. Num segundo momento, um produtor e um representante da cadeia foram à Genebra para explicar o arranjo da cadeia do algodão e os impactos sofridos não só pelo setor produtivo, mas também por toda a cadeia têxtil brasileira.

Portanto, a atuação do setor produtivo de algodão do Brasil, por intermédio da ABRAPA não se deu apenas sob o ponto de vista financeiro, mas também pela atuação direta no caso, buscando as informações necessárias para o trabalho dos profissionais encarregados de municiar a diplomacia brasileira com informações consistentes do real prejuízo que a cotonicultura do país vinha sofrendo.

Em 2004 a OMC deu a primeira decisão favorável ao Brasil. Em procedimento de solução de controvérsias processado no âmbito da OMC, o painel e o Órgão de Apelação consideraram algumas medidas norte-americanas incompatíveis com o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC (ASMC) e com o Acordo sobre Agricultura da OMC. A conclusão da OMC foi que os EUA concederam créditos e apoio anticíclico à cultura do algodão, que fizeram o país se tornar o maior exportador,

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com aproximadamente 30% do comércio mundial, e o terceiro maior produtor mundial, atrás apenas de China e Índia. Em 21 de março de 2005, o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) adotou o relatório do Órgão de Apelação e o relatório do painel, tal como modificado pelo relatório do Órgão de Apelação. As recomendações e decisões do OSC estabeleceram que os EUA: (i) deveriam remover os efeitos nocivos de certos subsídios ou deveriam retirar tais subsídios no prazo de seis meses contados da adoção dos relatórios; (ii) deveriam tornar suas medidas compatíveis com o Acordo sobre Agricultura; e (iii) deveriam retirar os subsídios proibidos sem demora. Sem qualquer movimento por parte do governo norte-americano, os prazos para cumprimento das recomendações do OSC venceram em 1º de julho e em 21 de setembro de 2005.

Em 4 de julho e em 6 de outubro de 2005, o governo bra-sileiro solicitou ao OSC autorização para adotar contramedidas. Tendo em vista que os norte-americanos rechaçaram as solicita-ções brasileiras, a questão foi remetida à arbitragem. Em 18 de agosto e em 7 de dezembro de 2005, os procedimentos de arbi-tragem foram suspensos. Em 18 de agosto de 2006, o Brasil soli-citou o estabelecimento de um painel de implementação. Em 18 de dezembro de 2007, o relatório do painel de implementação foi circulado aos Membros da OMC, o qual considerou que os EUA não deram cumprimento às recomendações do OSC e que continuaram a agir de maneira incompatível com as regras do ASMC e do Acordo sobre Agricultura da OMC. Em decorrência da inércia dos norte-americanos, em junho de 2008, o relató-rio do Órgão de Apelação da OMC confirmou as conclusões do painel de implementação e o OSC adotou o relatório do Órgão de Apelação e o relatório do painel de implementação, tal como modificado pelo relatório do Órgão de Apelação. Por fim, em 25

O contencioso do algodão na OMC e a criação do IBA

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de agosto de 2008, o Brasil solicitou a retomada dos procedi-mentos de arbitragem.

Ao órgão de arbitragem da OMC, o Brasil justificou e requereu o direito de retaliar os EUA em US$ 2,5 bilhões, não somente em produtos americanos que fossem exportados ao País, mas também na quebra de patentes e na suspensão de serviços. Afinal, essa forma inovadora de retaliação seria a única que conseguiria forçar os norte-americanos a mudar seu comportamento. E, por sua vez, os norte-americanos se defenderam dizendo que a sanção deveria ser de, no máximo, US$ 30 milhões, pouco mais de 1% do que os brasileiros solicitaram. Argumentavam que os seus programas já teriam sido modificados, como no caso das garantias de crédito.

A essa altura, no início de 2009, o altíssimo nível de complexidade da disputa do algodão na OMC envolvia aspectos como: (i) a eleição de Barack Obama como presidente dos EUA e aproximação política e estratégica do Presidente Lula; (ii) o auge da grave crise econômica pela qual os EUA atravessavam; (iii) o iminente fracasso das negociações na tentativa de concluir a Rodada Doha, cuja negociação final necessária e principal envolvia o delicado tema dos subsídios à agricultura; (iv) a sensibilidade e o desgaste natural do processo de retaliação contra um importante e poderoso parceiro comercial os EUA; (v) as suscetibilidades que seriam afetadas internamente no Brasil pela imposição de medidas, em um processo de retaliação comercial, que certamente contrariariam diversos interesses públicos e privados; (vi) e, não menos importante que todos os outros aspectos, a fase final da disputa do algodão na OMC envolvia a própria credibilidade e legitimidade da OMC, já que se os EUA podem descumprir as regras internacionais da OMC e podem seguir sem punição, a própria OMC é que passaria a ser contestada.

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O Brasil, contudo, sempre esteve aberto à busca de uma solução negociada para o contencioso. Em março de 2009, a ABRAPA, esteve com o Embaixador do Brasil na OMC em Genebra, Roberto Azevêdo com o objetivo de aprofundar os entendimentos que vinham sendo mantidos com o governo brasileiro e desta forma estar sempre alinhada com a condução do caso. A ABRAPA sempre esteve ao lado do Governo, no sentido de oferecer a legítima e imprescindível colaboração do setor cotonicultor brasileiro. Para a ABRAPA, sempre foi importante deixar claro ao governo brasileiro qual era o seu posicionamento oficial e a sua visão de longo prazo e revelar seu interesse e sua disposição para se engajar em um eventual e sensível processo de retaliação. Mais do que isso, a ABRAPA sempre reforçou a posição de que o setor continuava buscando e defendendo a eliminação ou a substancial redução dos subsídios; e em benefício direto para o setor. Isso significava, primeiramente, a adequação os programas de subsídios americanos às determinações da OMC, mas significava também que, caso houvesse uma negociação entre os Governos, os benefícios deveriam ser do setor produtor de algodão.

Ali nascia a semente do que veio a se tornar, hoje, o Instituto Brasileiro do Algodão (IBA). Após a realização de diversas audiências com representantes do governo brasileiro no Itamaraty, e em outros ministérios, além de diversos contatos com a representação diplomática de Genebra, pouco mais de um mês depois, a ABRAPA voltou à cidade suíça para discutir a questão com o Embaixador do Brasil na OMC e sua equipe. Naquele momento a ABRAPA foi questionada sobre o que seria importante para o setor, caso o governo dos Estados Unidos tivesse a intenção de negociar uma alternativa para

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encerrar o caso. Foi quando a ideia da criação de um Fundo para o desenvolvimento da cotonicultura brasileira começou a ser delineada.

Quanto ao processo do algodão perante a OMC, a expectativa, nesse momento, era aguardar a divulgação dos laudos arbitrais sobre a retaliação, prevista para ocorrer no dia 30 de junho de 2009. Às vésperas, a Diretoria da ABRAPA foi informada que tal prazo seria postergado para o dia 14 de agosto de 2009. Em meados de agosto, houve nova prorrogação da data prevista, ficando a divulgação dos laudos arbitrais sobre a retaliação adiada para 31 de agosto de 2009.

Na data marcada, em 31 de agosto de 2009, a OMC autorizou o governo brasileiro a retaliar os EUA. O valor mínimo, resultado dos subsídios ilegais concedidos (calculados de acordo com os números relativos ao ano-base 2006), foi de pouco menos de US$ 300 milhões. Porém, considerando que nos últimos anos os subsídios norte-americanos cresceram muito, estimou-se que o valor calculado sobre o ano-base 2009 alcançaria US$ 830 milhões.

A decisão da OMC autorizou sanções que representam o segundo maior valor absoluto da história da entidade até então, além de permitir ao Brasil aplicar parte da retaliação de forma cruzada, sobre serviços e propriedade intelectual. Desde 1995, quando foi criada, a OMC só autorizou quatro retaliações cruzadas. Normalmente, no meio do caminho os países acabam negociando, cedendo.

A decisão que autorizou o Brasil a aplicar contramedidas também nas áreas de serviços e propriedade intelectual estava fundamentada no fato de que, neste caso, não seria “praticável” ou “efetivo” adotar contramedidas apenas na área de bens, e de que “as circunstâncias são suficientemente sérias” para justificar

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contramedidas em outras áreas. Pelas regras estabelecidas na histórica decisão da OMC, após atingir o valor previsto para retaliação de bens (o “gatilho”), o Brasil poderia implementar sanções sobre direitos de propriedade intelectual e sobre a importação de serviços.

A decisão da OMC, bastante comemorada tanto pelo governo brasileiro como pela Diretoria da ABRAPA, nunca teve a finalidade de indenizar os cotonicultores brasileiros pelos prejuízos causados ao longo dos anos que se passaram, em razão dos elevados subsídios ilegais concedidos aos produtores de algodão norte-americanos. A decisão da OMC, ao contrário, deve ser compreendida como medida legal e legítima de “pressão” para que os EUA eliminem os subsídios considerados ilegais. E a retaliação, embora não desejável, nesse contexto, seria o único instrumento legal disponível para “forçar” o governo norte-americano a cumprir a decisão.

Retaliar no comércio de bens significa “afetar” as exportações de produtos norte-americanos para o Brasil. Ou seja, caberia ao governo brasileiro o exame criterioso na eleição dos produtos que teriam aumento do Imposto de Importação, acima do limite acordado na OMC, somente para a origem norte-americana, de forma a prejudicar o menos possível o consumidor brasileiro. Retaliar em propriedade intelectual, que causa mais impacto e era precisamente o maior temor dos norte-americanos, significa deixar de pagar direitos nessa área, como por exemplo, em direitos de patentes de produtos farmacêuticos, de softwares de informática ou em direitos sobre músicas e filmes.

Colocar em prática a retaliação era sabidamente, desde o início, tarefa difícil, mas factível. Arquitetar e executar um programa de retaliação é uma aventura complexa e que poucos países experimentaram. Daí porque o total apoio e dedicação da

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ABRAPA, numa bem-sucedida parceria com o governo brasileiro, se mostrava essencial. Era importante que os setores da sociedade potencialmente impactados pelas contramedidas, não rechaçassem o Governo Brasileiro. Neste momento, a unidade de discurso e de total apoio ao Governo Brasileiro por parte da ABRAPA, foi fundamental. Se essa era a única alternativa dada ao país vitorioso num contencioso na OMC, onde o perdedor se recusava a adotar as determinações do órgão máximo de regulação do comércio internacional, o Brasil não poderia deixar de fazer valer seus direitos, sobretudo em um caso de tão grande relevância e repercussão mundial. A ABRAPA articulou com diversas instituições públicas e privadas, o apoio à decisão do Governo brasileiro de seguir às últimas consequências, que seria a retaliação, caso o governo norte-americano não tomasse nenhuma medida.

De imediato, a Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) criou, em setembro de 2009, um grupo técnico de trabalho para estudar a retaliação que o governo brasileiro poderia impor aos EUA. Com a decisão da OMC, o governo brasileiro anunciou que iria elaborar uma lista de bens, serviços e patentes norte-americanas que estariam sujeitos a sanções.

E logo a Diretoria da ABRAPA estreitou o seu relacionamento com os integrantes do Conselho de Ministros da CAMEX. Em diversas ocasiões, a Diretoria da ABRAPA reiterou o compromisso do governo brasileiro de buscar compensar o setor cotonicultor, maior prejudicado pelos ilegais subsídios norte-americanos, caso houvesse espaço para uma negociação com os Estados Unidos.

À época da decisão da OMC, como o Brasil não dispunha de uma lei que lhe permitia impor sanções comerciais na área de direitos de propriedade intelectual, era necessário superar essa

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barreira interna. Diante disso, o governo brasileiro concluiu uma minuta de medida provisória, havia meses sob estudo por um grupo técnico interministerial, sobre a aplicação de retaliações a países estrangeiros na área de propriedade intelectual.

Finalmente, nos termos das decisões arbitrais de 31 de agosto de 2009, contidas nos documentos WT/DS267/ARB/1 e WT/DS267/ARB/2 da OMC, o Brasil foi autorizado pelo OSC, em 19 de novembro de 2009, a adotar contramedidas não apenas na área de bens, mas também nas áreas de serviços e propriedade intelectual.

Como não houve qualquer espécie de oferta ou procura por negociação por parte de autoridades do governo norte-americano, o Brasil iniciou o processo de retaliação, mesmo preferindo evitá-lo, ciente de que o processo poderia atingir, ainda que indiretamente, a cadeia produtiva nacional.

Vale destacar que essa foi a primeira vez que o Brasil se valeu de seu direito de impor sanções a um parceiro comercial. Digno de destaque, também, o fato de que a retaliação na área de propriedade intelectual, além de inédita, seria emblemática por atingir uma área sensível dos EUA e de outros países desenvolvidos.

Ainda no início de novembro de 2009, a CAMEX publicou a resolução nº 74, instaurando procedimento de consultas públicas relativa à Lista Preliminar de 222 bens de consumo e insumos que poderiam estar sujeitos à aplicação de contramedidas em decorrência do não cumprimento, por parte dos EUA, das decisões e recomendações adotadas pelo OSC da OMC no contexto do contencioso do algodão. A Lista Preliminar de retaliação era no valor de US$ 2,7 bilhões. Mas essa Lista

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tinha o propósito de, ao final do processo de depuração, ouvidos os interessados que se quisessem se manifestar, alcançar uma retaliação de US$ 560 milhões ao ano.

A previsão era de que até março de 2010, a CAMEX selecionaria os produtos norte-americanos que teriam uma nova alíquota do Imposto de Importação. A depuração da Lista, pelo governo, levou em consideração a preocupação de, ao selecionar um produto, não causar prejuízos à produção e ao consumo interno. A intenção era incluir na lista final somente os bens que tivessem outros fornecedores, além dos EUA, e oferecessem condições similares de preço e qualidade.

Nesse contexto, um dos efeitos naturais e esperados de um processo de retaliação era a atração de potenciais interesses e setores que seriam lesados com a eventual imposição da medida pelo governo brasileiro.

E esse papel fundamental coube à Diretoria da ABRAPA, que conquistou importantes aliados no Brasil e nos EUA para que eles legitimamente pressionassem o governo e o Congresso norte-americano a entender a necessidade de colocar a política agrícola do algodão dentro dos limites dos subsídios acordados na OMC, ou, alternativamente, pressionassem o governo a buscar um acordo com o governo brasileiro.

Foram diversas as reuniões realizadas entre a Diretoria da ABRAPA e representantes da coalizão formada pelas seguintes entidades: Brazil-US Business Council, US Chamber of Commerce, National Association of Manufacturers, Council of the Americas, Business Round Table, National Foreign Trade Council e AmCham Brasil.

A Diretoria da ABRAPA também participou de importantes reuniões com a Diretoria e com o Presidente da FIESP, e de entidades de classe representantes de outros setores,

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tanto para alinhar o discurso do setor privado brasileiro e o interesse na retaliação como elemento de pressão, como para reiterar o legítimo interesse de que, qualquer solução que fosse eventualmente negociada, deveria compensar o setor cotonicultor, já que sempre foi o maior prejudicado pelos ilegais subsídios norte-americanos.

À época, não faltavam setores interessados em se beneficiar dos eventuais ganhos que um eventual acordo poderia proporcionar, caso assim se ajustassem ambos os governos. E o papel desenvolvido pela Diretoria da ABRAPA sempre foi firme no sentido de que a ABRAPA, e por consequência, os produtores de algodão, era a legítima interessada no caso de um eventual acordo e de que o setor cotonicultor brasileiro deveria ser o principal favorecido. Lembrando que nunca o governo brasileiro prometeu à Diretoria da ABRAPA qualquer tipo de compensação sem um respaldo legal, lógico, coerente e transparente.

Nesse ponto, deve ser ressaltada pela Diretoria da ABRAPA sua satisfação com a enorme transparência conferida pelo governo brasileiro durante o processo de retaliação. Transparência esta, inclusive, que foi reconhecida internacionalmente como um exemplo a ser seguido por todos os países em processos semelhantes.

Dando seguimento ao processo de retaliação, o governo brasileiro fez publicar a Medida Provisória (MP) nº 482, de 10 de fevereiro de 2010, a qual dispunha sobre medidas de suspensão de concessões ou outras obrigações do País relativas aos direitos de propriedade intelectual e outros, em casos de descumprimento de obrigações do Acordo Constitutivo da OMC.

Logo após a publicação da MP 482/2010, o ministro das Relações Exteriores, chanceler Celso Amorim, afirmou que o

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Brasil ainda acreditava na possibilidade de novas negociações com o governo norte-americano e justificou que o Brasil estava recorrendo a um instrumento criado justamente pelos países ricos, como os próprios EUA, acrescentando o fato de que o Brasil não poderia se curvar. A MP significava, em outras palavras, o ultimato para que as autoridades norte-americanas acatassem a decisão da OMC e colocassem fim aos subsídios ilegais ao algodão.

A essa altura do processo de retaliação, diversos representantes do setor privado norte-americano faziam pressão junto ao seu governo para que fossem tomadas atitudes concretas, seja no sentido de cumprirem as determinações da OMC, seja no sentido de fazerem algum tipo de proposta ao governo brasileiro para evitar a retaliação.

Considerando, portanto, os desdobramentos possíveis do cenário então existente, a Diretoria da ABRAPA intensificou as audiências com diversas autoridades brasileiras responsáveis pela condução do processo de retaliação e responsáveis por uma eventual negociação com o governo dos EUA. E nessas ocasiões, a criação de um fundo foi profunda e reservadamente discutida.

A proposta era a criação de um instituto privado, com a finalidade de gerir e aplicar os recursos recebidos pelo governo dos EUA como parte de um eventual acordo para suspensão temporária da retaliação autorizada pelo OSC da OMC no contencioso do algodão. Os recursos seriam destinados a programas relacionados ao desenvolvimento e fortalecimento da cotonicultura brasileira, tendo a gestão do instituto compartilhada entre o setor privado e o governo brasileiro, visando dar transparência, publicidade e credibilidade com relação aos programas desenvolvidos.

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Em março de 2010, a CAMEX editou duas resoluções visando dar seguimento ao processo de retaliação. A primeira, a resolução nº 15, de 5 de março, tinha o objetivo de tornar pública a lista de mercadorias que teriam a alíquota do Imposto de Importação majorada pelo período de 365 dias, quando originárias dos EUA. E a segunda, a resolução nº 16, de 12 de março, tinha o objetivo adicional de instaurar, nos termos da MP 482/2010, procedimento de consulta pública sobre as medidas de suspensão de concessões ou obrigações do País relativas aos direitos de propriedade intelectual e outros, em relação aos EUA, em decorrência do não cumprimento das decisões e recomendações adotadas pelo OSC da OMC.

A resolução CAMEX nº 16/2010, que tratava da execução da retaliação em propriedade intelectual, fixou prazo de 20 dias para os interessados se manifestarem e previu que seus efeitos entrariam em vigor na data de sua publicação, que ocorreu no dia 15 de março.

Em seguida, a CAMEX editou a resolução nº 19, de 5 de abril de 2010, estabelecendo que os efeitos da resolução CAMEX nº 15/2010 entrariam em vigor no dia 22 de abril de 2010.

Diante da iminência da colocação em prática pelo governo brasileiro da retaliação autorizada pela OMC, o governo norte- -americano enviou representantes ao Brasil para discutirem uma solução alternativa que suspendesse a retaliação. Poucos dias antes da data prevista para a elevação das tarifas sobre produtos norte-americanos, que seria o início efetivo da retaliação, os representantes do governo dos EUA apresentaram propostas compensatórias sérias e consideradas satisfatórias pelo governo brasileiro.

Como a mudança na Lei agrícola americana só pode ser realizada pelo Congresso e a Lei vigente à época deveria vigorar

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até 2012, os Estados Unidos propuseram uma suspensão temporária do processo de retaliação por parte do Brasil, até que a lei agrícola subsequente fosse promulgada. Dentre várias medidas negociadas, destaca-se a criação de um Fundo para o setor do algodão, com repasses anuais de US$ 147,3 milhões, durante a vigência do Memorando. Os recursos do Fundo deveriam ser aplicados em atividades de Assistência Técnica e capacitação, excluindo a pesquisa, no Brasil e em países acordados entre os dois governos, dentro de um programa de cooperação internacional.

  Uma das exigências das autoridades negociadoras dos EUA era que os recursos não fossem utilizados em pesquisa, pois há uma lei norte-americana que veda a utilização dos recursos dessa fonte para tal finalidade. Assim, foi acordado que os recursos fossem destinados: ao controle, mitigação e erradicação de pragas e doenças; à aplicação de tecnologia pós-colheita; à compra e uso de bens de capital; à promoção do uso do algodão; à adoção de cultivares; à observância das leis trabalhistas; ao treinamento e instrução de trabalhadores e empregadores; a serviços de informação de mercado; à gestão e conservação de recursos naturais; à aplicação de tecnologias para melhoria da qualidade do algodão; à aplicação de métodos para melhoria dos serviços de gradação e classificação; a serviços de extensão relacionados aos itens anteriores; à cooperação internacional nas atividades indicadas nos itens anteriores relativas ao setor cotonicultor de países da África Subsaariana, de países-membros ou associados ao Mercosul, no Haiti, ou em quaisquer outros países em desenvolvimento desde que haja prévio acordado; a outras atividades que venham a ser autorizadas nos termos do acordo celebrado entre os governos; e ao custeio de despesas administrativas razoáveis correlatas.

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O Memorando de Entendimentos entre Brasil e Estados Unidos, assinado em início de abril, estabelecia que o Brasil deveria publicar no Diário Oficial da União, até o dia 22 daquele mês (resolução Camex 20), que o Brasil suspenderia a retaliação por 60 dias, prazo aquele, para que os dois governos negociassem as bases de um acordo para encerrar o contencioso.

Embora os governos tivessem chegado a um entendimento importante, que representava uma solução para o caso, o fato era que nos 60 dias seguintes Brasil e EUA ainda deveriam trabalhar conjuntamente em um entendimento mutuamente satisfatório que fornecesse um arcabouço para alcançar uma solução mutuamente acordada para o contencioso do Algodão. Afinal, em não havendo entendimento, o Brasil ainda poderia retaliar os norte-americanos, uma vez que tinha apenas suspendido o início do seu processo de retaliação. As negociações entre representantes dos governos prosseguiram.

Enquanto isso, o processo de constituição do IBA, conduzido pela Diretoria da ABRAPA e articulado juntamente com representantes do governo brasileiro, prosseguia, de modo rápido, pois independentemente da efetivação do Acordo- -Quadro, a entidade que receberia os recursos do Fundo teria direito a U$34 milhões.

Com a publicação da Lei nº 12.249, de 11 de junho de 2010, o governo brasileiro providenciou a necessária autorização legal, que lhe permitia indicar os seus membros para integrarem o Conselho Gestor do IBA.

Finalmente, tendo em vista a conclusão entre o Brasil e os EUA do Acordo-Quadro para uma Solução Mutuamente Acordada para o Contencioso do Algodão na Organização Mundial do Comércio (WT/DS267), a CAMEX editou a resolução nº 43, de 17 de junho de 2010, para suspender a Resolução nº 15/2010

O contencioso do algodão na OMC e a criação do IBA

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(retaliação em bens) e suspender o procedimento iniciado pela Resolução nº 16/2010 (retaliação em direitos de propriedade intelectual).

Em face da previsão do art. 136 da Lei nº 12.249/10, a CAMEX indicou os seus representantes, titulares e suplentes, para o Conselho Gestor e para o Conselho Fiscal do IBA.

A ABRAPA e suas afiliadas sempre tiveram a firme convicção de que a vitória obtida em favor dos produtores brasileiros de algodão foi significativa. Mas também sabiam que o trabalho não terminava ali. Com a criação do Instituto Brasileiro do Algodão, caberia agora aos produtores de algodão do Brasil e suas Associações, fazer bom uso dos recursos disponibilizados, de modo a construir um cenário melhor para a cotonicultura brasileira.

Embora a criação do IBA tenha sido em meados de 2010, seu funcionamento efetivo se deu a partir de 2011. Apesar de ser uma associação civil de direito privado, sem fins lucrativos, o IBA tem uma característica ímpar por ter no seu Conselho Gestor representantes do Governo e dos produtores de algodão. Essa gestão compartilhada entre público e privado, aliada a todas as exigências de publicidade da atuação do instituto, das estruturas de controle rigorosas e de todos os demais requisitos definidos no Memorando de Entendimentos entre Brasil e Estados Unidos, fez com que o ano de 2011 fosse todo dedicado ao estabelecimento do Modelo de Governança e das regras de funcionamento do instituto, fundamentais para a transparência na gestão dos Projetos desenvolvidos com o suporte financeiro do IBA.

Apesar de terem sido aprovados dois projetos ainda em 2011, a partir de 2012 o instituto recebe já um grande número de projetos. Em meados de 2013 já haviam sido aprovados 54.

Haroldo Rodrigues da CunhaVladimir Spindola

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Alguns desses projetos já estão concluídos, mas a grande maioria encontra-se em plena execução. São projetos relacionados a quase todas as atividades autorizadas no Memorando.

Dentre os projetos, vale destacar o grande número de projetos em Capacitação, treinamento e instrução de produtores e trabalhadores e Controle e Mitigação de Pragas e Doenças, além de outros ligados à observância de leis trabalhistas, gestão e conservação de recursos naturais, compra e uso de bens de capital, melhoria do sistema de classificação do algodão, adoção de cultivares, serviço de informação de mercado e melhoria da qualidade do algodão.

Em relação à cooperação internacional, há dois grandes projetos em execução, coordenados pelo Ministério das Relações Exteriores juntamente com a Agência Brasileira de Cooperação. Um desses projetos está sendo desenvolvido na África, tendo o PNUD como entidade executora e o outro na América do Sul, sob tutela da FAO.

Até junho de 2013 haviam sido desembolsados mais de R$ 135 milhões, de um total de quase R$ 200 milhões, valor total dos projetos até então aprovados, com desembolsos previstos até 2017.

Considerando que o grande fluxo de projetos começou a ser aprovado a partir do segundo trimestre de 2012, após pouco mais de um ano, é possível notar o grande impacto da presença do Instituto para o setor cotonicultor.

O setor do algodão, assim como todos os envolvidos neste grande projeto, está comprometido a fazer com que os recursos existentes no IBA possam gerar desenvolvimento e contribuir de forma significativa para o crescimento sustentável da cotonicultura brasileira e da cotonicultura dos países onde a

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cooperação brasileira se fizer presente. O importante é fazer com que essa história de sucesso tenha continuidade, com a mesma determinação, seriedade e competência que sempre permearam todas as ações iniciadas há mais de dez anos.

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Economista, pós-graduada em Engenharia de Produção. Atuou como Secretária-Adjunta da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic); Diretora do Departamento de Negociações Internacionais da Secex/Mdic; Professora do Curso de Relações Internacionais do IBMEC/RJ; Secretária de Relações Internacionais do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Consultora da União da Indústria de Cana-de- -Açúcar (Unica) para o contencioso do açúcar na OMC; Assessora do Departamento de Abastecimento e Preços do Ministério da Fazenda; Diretora do Departamento do Álcool e do Açúcar do

o contencioso do AçúcAr nA orgAnizAção mundiAl

do comércio: BrAsil, AustráliA e tAilândiA

contrA A união europeiA

Elisabete Torres Serodio

Elisabete Torres Serodio

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Ministério da Indústria, Comércio e Turismo; e Coordenadora de Planejamento, Programação e Orçamento do Instituto do Açúcar e do Álcool. Atualmente é Coordenadora Especial de Comércio Exterior da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Governo de Minas Gerais.

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No jogo do comércio internacional, por muito tempo os países industrializados impuseram seus interesses. Essa regra jamais havia sido questionada com eficácia

antes de 2002, muito provavelmente pela falta de organização e pelo pouco envolvimento dos que eram, por isso, prejudicados. Mas, naquele ano, teve início a queda de uma série de tabus do comércio global, depois que um grupo de países emergentes se uniu para a defesa de seus interesses. O Brasil foi protagonista daquele momento histórico, ao enfrentar, na Organização Mundial do Comércio (OMC), as subvenções da Europa e dos Estados Unidos para mercados de produtos agroindustriais, respectivamente o do açúcar e o do algodão.

No caso do açúcar, no final de 2002 o governo brasileiro, depois de ouvir os argumentos e apelos de produtores e exportadores associados à União da Indústria de Cana-de-Açúcar – Unica – decidiu pedir à OMC consultas com a União Europeia sobre o seu regime oficial de regulação do mercado do produto que, no entender dos privados, causava distorções ao comércio, deprimia preços internacionais e feria dispositivos de Acordos da Organização. Os subsídios às exportações concedidos pela União Europeia, alegadamente em excesso, estariam afetando os interesses da nossa agroindústria açucareira, de longe a mais eficiente e competitiva no quadro mundial.

A Unica buscou todas as formas de fortalecer a posição do país numa possível disputa com os europeus, tendo inclusive atuado na linha de frente para a criação da Global Sugar Alliance

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for Sugar Trade Reform and Liberalisation, organização que facilitou as relações entre setor privado e governos envolvidos com o tema. A entidade também contratou um especialista sênior em assuntos da agroindústria para atuar como consultora de seu Conselho Deliberativo. Contratou, ainda, um escritório de advocacia sediado em Washington, DC, e com representação em Genebra, Suíça, dedicado aos assuntos da OMC, bem como uma empresa de consultoria brasileira, que se responsabilizou pela elaboração do estudo econométrico cujos resultados permitiram comprovar a veracidade do que estava sendo alegado.

Na Global Sugar Alliance, a entidade logrou contar com o apoio de Austrália e Tailândia para um possível contencioso contra os europeus na matéria. O empenho, a determinação e a clareza dos argumentos da Unica, apoiados por australianos e tailandeses, terminaram por convencer o governo brasileiro de que era possível questionar o modelo europeu de subsídios para o produto na OMC.

A Unica foi constituída em 1997 por produtores de açúcar e de álcool responsáveis por significativa parcela da produção nacional, em momento no qual o Estado se afastava cada vez mais da indústria sucroalcooleira, da qual cuidara continuadamente desde 1933, tempo em que impunha quotas de produção e de comercialização, fixava preços, exercia o monopólio das exportações, regulava e arbitrava as relações entre industriais e fornecedores de matéria-prima, entre outras ações.

Em 1988, a nova Constituição mandou que, para a iniciativa privada, o planejamento do Estado deixasse de ser determinante e passasse a ser, apenas, indicativo. Dava-se início, então, a fortes movimentos de distanciamento do setor público das atividades dos particulares.

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A entidade surgiu da necessidade de organização de parte importante do setor privado que se dedica à agroindústria sucroalcooleira no Brasil, e que, a partir de então, deveria seguir apenas guiada pelos sinais do mercado. Como tal, tem propugnado pela expansão dos mercados de álcool e açúcar, em diversas frentes. Para tanto, sempre apoiou as iniciativas governamentais pela derrubada das barreiras protecionistas no campo externo. No mesmo contexto, a Unica tem estado atenta aos mecanismos disponíveis de defesa comercial e daí ter-se unido ao governo brasileiro para que fosse apresentado ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, em 2002, um dos mais interessantes cases de que a Organização já tomou conhecimento: a reclamação do Brasil, secundado por Austrália e Tailândia, contra o regime para o açúcar adotado pela União Europeia.

Para o açúcar, a Unica defende a adoção de medidas que levem à ampliação do mercado mundial, como a redução das medidas de apoio interno e à eliminação de subsídios à exportação praticados por outros países. Assim, participa ativamente de organizações internacionais privadas que lutam pela liberação desse mercado, além de acompanhar com atenção as negociações do governo brasileiro com os outros países- -membros da OMC.

A OMC resultou da última Rodada encerrada de negociações multilaterais do GATT, iniciada em 1986 e finalizada em 1994: a Rodada Uruguai.

Os estudos patrocinados pela Unica tiveram em conta que, ao fim da Rodada Uruguai – cujos principais resultados foram: (a) a criação da própria OMC, (b) o GATT-94 – que tem entre os seus Acordos o que trata de disciplinas sobre Agricultura, e (c) a criação do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização –, a União Europeia viu-se obrigada a reduzir os subsídios que vinha oferecendo às exportações de açúcar, de

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modo a limitá-los, a partir de 1º de janeiro de 2001, ao volume anual de até 1.273.500 toneladas de produto e ao dispêndio total de até 499,1 milhões € a cada ano. Os registros da OMC, no entanto, mostravam que o Bloco vinha exportando, desde então, açúcar refinado em volumes muito superiores, correspondentes a todos os que excediam as necessidades de consumo do mercado interno europeu.

Segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), em 2000-2001, quando a produção europeia alcançou 18,5 milhões de toneladas, as exportações do açúcar comunitário ultrapassaram 6,5 milhões de toneladas. Em 2001--2002, por conta de quebra de safra e de consequente produção local da ordem de 16,2 milhões de toneladas, as exportações locais caíram para 4 milhões de toneladas. Em 2002-2003, no entanto, a recuperação ainda parcial das áreas plantadas com beterraba já permitiria à UE produzir 17,6 milhões de toneladas, com excedente exportável avaliado em 4,8 milhões de toneladas.

A questão que a Unica levou ao governo em 2002 resumia-se a que o Bloco europeu não estava limitando as suas exportações subsidiadas aos compromissos que assumiu na OMC, mas que, contrariando o que ainda lhe é permitido, todo o açúcar que colocava no mercado internacional se beneficiava de subsídios ilegais, diretos ou indiretos.

Era de notar que diversos elementos do regime açucareiro da UE atuavam para criar distorções que afetavam o mercado internacional do produto de maneira negativa, como por exemplo:

(a) Proteção do mercado doméstico:

Tarifas elevadas de importação, salvaguardas especiais e preços mínimos de entrada, para proteção dos preços altos do mercado doméstico;

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(b) Incentivos à produção:

Subsídios à produção para consumo interno dentro de quotas preestabelecidas (as chamadas quotas “A” e “B”);

Mecanismo de compra do produto das quotas A e B a “preços de intervenção”; e

(c) Incentivos à exportação:

Estímulos à exportação dos excedentes de produção de cada ano agrícola (o “açúcar C”);

Subsídios diretos à exportação de quantidade preestabe-lecida de açúcar; e

Subsídios diretos à exportação de volume equivalente ao açúcar importado em condições preferenciais de alguns países da África, Caribe e Pacífico (os ACP) – cerca de 1,6 milhão de toneladas – sem amparo nos compromissos de redução de subsídios à exportação assumidos pelo Bloco na OMC.

Os subsídios concedidos ao setor açucareiro europeu a partir da entrada em vigor da Organização Comum do Mercado (OCM) do Açúcar, em 1968, parte da Política Agrícola Comum, transformaram a União Europeia, em apenas 10 anos, de importadora a exportadora líquida do produto. Em 1976, as importações líquidas do Bloco ainda chegavam a 209 mil toneladas. Já no ano seguinte, atingiam-se exportações líquidas de 966 mil toneladas. A UE mantinha-se entre os maiores exportadores do produto, desde então.

O primeiro ponto da reclamação de Brasil, Austrália e Tailândia dizia respeito à declarada exportação subsidiada, a cada ano, de volume de açúcar refinado correspondente ao açúcar cru importado pela EU com preferências das ex- -colônias europeias da África, do Caribe e do Pacífico (ACP) e da Índia. Essas importações têm origem histórica e servem

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para o abastecimento de refinarias autônomas europeias que processam açúcar cru de cana para transformá-lo em açúcar branco (refinado).

A importação com a preferência (sem tarifas) dada aos países ACP e à Índia pela União Europeia só se tornara possível por contar com a licença de todos os demais países-membros da OMC, inclusive com a do Brasil. Isso, porque a primeira cláusula do GATT-94 manda que toda e qualquer vantagem comercial concedida por um membro da OMC a outro (ou a outros) seja estendida a todos os demais (a chamada “Cláusula da Nação Mais Favorecida – NMF”). A licença, no entanto, limita-se às importações preferenciais. Mas, a União Europeia entendia-se com o direito adicional de exportar, com subsídios diretos, açúcar em volume correspondente ao que importava em tal condição, alegando tratar-se da mera reexportação do açúcar com origem nos ACP e na Índia, depois de refinado. Na verdade, o açúcar importado em condições preferenciais era consumido nos países que o importavam e, em contrapartida, a Comunidade exportava com subsídios quantidade equivalente de açúcar produzido no seu próprio território. Com isso, o limite das exportações anuais de açúcar diretamente subsidiadas elevava--se para cerca de 2,6 milhões de toneladas (1.273.500 toneladas autorizadas pela OMC e 1.300.000 toneladas correspondentes ao açúcar preferencial importado).

Quanto ao restante do açúcar que exportava – quota C − a Comunidade dizia tratar-se de produto que não recebia qualquer subsídio. Esse, entretanto, foi o segundo ponto do questionamento dos governos brasileiro, australiano e tailandês. Brasil, Austrália e Tailândia declaravam que o açúcar C era indiretamente beneficiado pelas garantias de preços oferecidas aos açúcares A e B.

O contencioso do açúcar na Organização Mundial do Comércio: Brasil, Austrália e Tailândia contra a União Europeia

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O volume de açúcar produzido na UE objeto de apoio ao preço de mercado doméstico sempre foi limitado por quotas nacionais de produção. De acordo com a Organização Comum de Mercado para açúcar, desde 1968 cada país-membro teve a obrigação de comprar açúcar produzido a partir de beterraba ou cana colhida no seu território, dentro dos limites das quotas A e B, que compunham a chamada “quota máxima de produção autorizada”. Qualquer volume fabricado acima da “quota máxima” passava automaticamente a constituir o chamado “açúcar C”, que não recebia apoio de preço direto ou garantia de compra no mercado doméstico. Não havia restrições à produção de açúcar C, mas era proibido vendê-lo no território comunitário no ano em que fosse produzido. O açúcar C tinha de ser exportado antes de 31 de dezembro de cada ano ou passaria a contar como parte da quota máxima do ano seguinte.

A argumentação dos reclamantes para esse segundo ponto sustentou-se em grande parte na jurisprudência do caso Canada – Dairy1. Naquele contencioso, para determinar se em um mercado doméstico controlado ocorre “pagamento” pelo produto exportado (resultado de “transbordamento” (spillover) do subsídio destinado ao produto comercializado no mercado interno), o Órgão de Apelação da OMC aplicou o seguinte teste: um produtor economicamente racional produziria o bem exportado exclusivamente em função do preço de exportação que receberia? Os árbitros concluíram que só haveria produção para exportação se o preço recebido cobrisse o custo médio total de produção e não apenas o custo marginal de produção do bem exportado. No caso do regime do açúcar da UE, o açúcar C era exportado a preço inferior ao seu custo médio total de produção.

1 Canada – Measures affecting the Importation of Milk and the Exportation of Dairy Products (DS103, DS113).

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Os reclamantes afirmavam que produtores de açúcar do Bloco cobriam seus custos fixos graças ao elevado preço de intervenção que recebiam pelo açúcar das quotas A e B. Em consequência, podiam exportar açúcar C sempre que o preço internacional superasse o custo marginal de produção (custo variável), ainda que esse preço estivesse abaixo do custo total (fixo mais variável) de produção. O argumento foi exaustivamente demonstrado no estudo econométrico encomendado pela Unica.

Na busca por informações sobre o regime europeu que confirmassem as suas alegações, a Unica tomou conhecimento de avaliação do Netherlands Economic Institute(NEI)2, em estudo contratado pela própria Comissão Europeia. Segundo os estudiosos, os custos variáveis de produção de açúcar de beterraba na Europa situavam-se ao redor de 58€ por tonelada. A fonte informava, também, que o exportador de açúcar C pagava aos produtores de beterraba (seus fornecedores de matéria-prima) cerca de 60% do preço que recebiam pelo açúcar no mercado livre mundial. Assim, se o açúcar C fosse exportado por qualquer preço que ultrapassasse 145€ por tonelada, os custos variáveis da indústria estariam cobertos3.

Além disso, o Netherlands Economic Institute (NEI) informava, referindo-se aos compromissos da UE junto à OMC, que: “The quantity limits for subsidised sugar exports do neither include the export of a quantity of sugar equivalent to the preferential imports from ACP countries, India, Brazil and Cuba, nor sugar exported as food aid (in total about 1.6 million tonnes per year)”.

2 Evaluation of the Common Organization of the Markets in the Sugar Sector – September, 2000.3 Com 60% do preço, os industriais pagavam a beterraba. Os 40% restantes serviam para cobrir os

custos variáveis. Como 40% de 145 € são 58€, a esse preço os exportadores de açúcar C cobriam os custos variáveis estimados pelo NEI. A preços superiores, como os praticados no mercado externo, a diferença era margem positiva para os exportadores.

O contencioso do açúcar na Organização Mundial do Comércio: Brasil, Austrália e Tailândia contra a União Europeia

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O Netherlands Economic Institute (NEI) informava, também, que as diferenças de custos de produção entre os dos países produtores de açúcar de cana de menores custos e os dos países produtores de açúcar de beterraba de menores custos chegaram, na média dos anos 90, a 60%, em benefício dos primeiros. A diferença de custos entre os dos maiores exportadores de açúcar de beterraba (entre eles a União Europeia) e os dos maiores exportadores de açúcar de cana (entre eles o Brasil), em igual período, foi de 80% na média, em benefício dos segundos. Diferenças similares já eram observadas nos anos 80. Segundo a mesma fonte, custos de produção de açúcar branco da ordem de US$ 230 por tonelada eram os geralmente aceitos como aqueles abaixo dos quais a competitividade no mercado internacional ficava assegurada. Importantes produtores de açúcar de cana, como o Brasil e a Austrália, chegam a apresentar custos médios de US$ 150/tonelada, quando operam em grandes propriedades agrícolas e em indústrias capazes de processar acima de dez mil toneladas de cana/dia. Avaliação divulgada pela Agra-Europe (29 de outubro de 1999) dava conta de que os produtores brasileiros localizados no seu Centro-Sul tinham custos que podiam ser estimados entre US$ 95 e US$ 110 por tonelada. A fonte também afirmava que os custos de produção de açúcar da União Europeia eram cerca de quatro a seis vezes superiores aos do Brasil, em 1999.

Segundo as informações do NEI – e tendo-se em conta que a própria UE declarava não ter compromisso de redução para os subsídios às exportações de açúcar com origem nos ACP e na Índia –, as exportações de açúcar subsidiadas pela União Europeia podiam ultrapassar em mais de 1,6 milhão de toneladas o volume comprometido na OMC.

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O maior concorrente do açúcar branco brasileiro no mercado livre mundial era o açúcar branco da União Europeia. Os exportadores europeus, além dos subsídios que alcançam parte significativa de suas exportações, valiam-se do benefício do frete de retorno: todos os países que importavam açúcar da UE exportavam para o mercado comum europeu.

O regime europeu para açúcar, em cada um dos seus fundamentos, era francamente prejudicial ao produto brasileiro. Nas diversas áreas produtoras, observavam-se custos de produção de açúcar de beterraba substancialmente superiores aos custos de produção de açúcar de cana. As diferenças de custos não decorrem de maior ou menor grau de eficiência entre produtores, mas são inerentes ao próprio processo de fabricação do açúcar, a partir de uma ou de outra matéria-prima.

Brasil, Austrália e Tailândia entendiam, por tudo isso, que as exportações do açúcar C eram “financiadas em virtude de ação governamental”, o que acarretava violação ao Acordo sobre Agricultura da OMC.

Em síntese, os três países questionavam, basicamente, dois elementos do regime comunitário do açúcar: a exportação do “açúcar C” com subsídios indiretos e a exportação, com subsídios diretos, de volume de produto que correspondia ao açúcar originário dos países ACP e da Índia. Como exportador competitivo de açúcar branco, o Brasil via o mercado internacional contraído em quantidade que segundo a empresa de consultoria alemã F. O. Licht em 2005/06 ultrapassou os 7,2 milhões de toneladas, número que não levava em conta a redução do acesso ao importante mercado comunitário. O açúcar brasileiro participava com apenas 1,4% das importações totais da Comunidade Europeia, enquanto as dos países ACP representavam 94%.

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Sabe-se que, no âmbito multilateral, uma diferença surge, normalmente, quando um país adota política comercial ou toma medida que, na opinião de outro membro, infringe as disposições da OMC ou constitui descumprimento das obrigações assumidas.

O caso da iniciativa do Brasil, contestando o regime comunitário europeu para açúcar, assim como o caso, também da iniciativa do Brasil, contestando o regime estadunidense para o algodão, tornou-se emblemático para a diplomacia brasileira. Pela primeira vez um país em desenvolvimento desafiava, ao mesmo tempo, os dois grandes gigantes – os Estados Unidos e a União Europeia – respectivamente nas suas práticas para o algodão e o açúcar. E ambas as vitórias da diplomacia brasileira foram vistas como um divisor de águas no sistema multilateral do comércio, principalmente por envolver, pela primeira vez, produtos da agricultura de tão grande interesse no comércio internacional.

Para o açúcar, as consultas informais − primeira etapa do processo de solução de controvérsias na OMC − entre as partes foram realizadas na última semana de novembro de 2002. Inscreveram como terceiras partes interessadas Barbados, Belize, Côte d’Ivoire, Fiji, Guiana, Jamaica, Quênia, Madagascar, Malaui, St. Kitts and Nevis, Zimbábue, entre os países ACP. Participaram também Canadá, Colômbia e Índia. A expressiva participação de delegações dos países ACP deixava clara a estratégia europeia de tentar mudar o foco da questão, desviando-o da incompatibilidade de seu regime açucareiro com as regras da OMC para a “ajuda ao desenvolvimento” das ex-colônias, com o que procurava justificar a concessão das preferências comerciais.

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As pouco convincentes respostas dadas pelos europeus às perguntas dos reclamantes, durante tais consultas, evidenciou a base frágil em que se assentava a Organização Comum do Mercado para o setor com relação às regras da OMC.

Os governos reclamantes não ficaram satisfeitos com as respostas da União Europeia, restando prosseguir no caso e buscar solução para a controvérsia. Afinal, os subsídios concedidos pela UE às exportações de açúcar em 2000/01 tiveram o valor médio de 417,80/tm €, representando cerca do dobro do valor do produto no mercado internacional, ainda assim 20% inferior ao de 1999/00.

O interesse dos produtores e exportadores brasileiros de açúcar não esteve, ao menos nesse caso e por esse meio, em discutir o auxílio que a União Europeia decidiu dar às suas ex- -colônias ACP e à Índia. A União Europeia produz, basicamente, açúcar de beterraba. No processo de alargamento, no entanto, o Bloco incorporou países que já importavam açúcar cru de cana para o suprimento de suas refinarias. Assim, apesar de ser autossuficiente na produção de açúcar, a UE importava porque:

(a) decidiu manter em funcionamento as refinarias que operam a partir do açúcar de cana;

(b) decidiu apoiar as suas ex-colônias “por meio de comércio e não de meras doações”.

A justificativa podia ser encontrada, com facilidade, nos discursos europeus.

Em julho de 2003, os governos dos três países reclamantes solicitaram ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC o estabelecimento de painel que arbitrasse sobre a questão, à luz dos Acordos de Agricultura e de Subsídios e Medidas Compensatórias da Organização. O painel, aberto na OMC

O contencioso do açúcar na Organização Mundial do Comércio: Brasil, Austrália e Tailândia contra a União Europeia

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contra a União Europeia depois da fase de consultas, viria a condenar de forma clara e substantiva os dois elementos do regime açucareiro europeu que os três países – Brasil, Austrália e Tailândia − haviam questionado.

Para grande satisfação dos reclamantes, o painel concluiu que:

1) havia evidências suficientes de que a União Europeia vinha fornecendo subsídios à exportação de açúcar C e de açúcar ACP/Índia, desde 1995;

2) a UE não demonstrou que as exportações de açúcar acima dos limites indicados em seus compromissos de redução ocorriam sem o auxílio de subsídios;

3) em consequência, o regime de açúcar da UE levava o Bloco a violar suas obrigações sob o Acordo de Agricultura.

Como resultado, o painel recomendou que a União Europeia tomasse as medidas necessárias para tornar o seu regime açucareiro compatível com suas obrigações a respeito de subsídios à exportação sob o Acordo de Agricultura.

Assim como no contencioso do algodão, as conclusões do painel sobre açúcar constituíram passo importante rumo ao fim das distorções no comércio agrícola mundial e fizeram ressaltar a importância de assegurar a plena integração da agricultura às disciplinas da OMC.

Valendo-se da normativa vigente, a União Europeia iniciou procedimentos de apelação no processo de solução de controvérsias, em janeiro de 2005.

Em abril do mesmo ano, foi divulgado o relatório do Órgão de Apelação (OA) da OMC, última instância no processo de solução de controvérsias da OMC e, como tal, irrecorrível.

Elisabete Torres Serodio

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A decisão veio a consolidar a base jurídica que fundamentou os questionamentos de Brasil, Austrália e Tailândia sobre os subsídios europeus ao açúcar. O OA confirmou a condenação clara e substantiva do painel aos dois elementos do regime açucareiro europeu que haviam sido questionados.

O OA acatou, ainda, a contra-apelação do Brasil, que sustentou ter o painel incorrido em “economia processual injustificada” ao se recusar a examinar as queixas feitas também sob o Acordo de Subsídios. A decisão não apenas demonstrou a solidez da argumentação brasileira, como também trouxe importantes ganhos para o sistema multilateral de comércio, na medida em que confirmou o entendimento de que subsídios agrícolas devem se conformar não apenas às disciplinas do Acordo de Agricultura, mas também às do Acordo de Subsídios da OMC, mais rigorosas para subsídios à exportação.

O OA, por fim, também recomendou que a União Europeia tomasse as medidas necessárias para tornar seu regime açucareiro compatível com suas obrigações sob o Acordo de Agricultura.

O resultado do caso representou importante vitória para o Brasil e recompensou a estreita e profícua cooperação entre o Governo, representado pelo seu Ministério das Relações Exteriores, mais precisamente por sua Coordenação-Geral de Contenciosos, e o setor açucareiro brasileiro, liderado pela Unica.

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Mestre em Direito (LL.M, 1997) pela Universidade de Georgetown, Washington, D.C., e Bacharel em Direito (LL.B, 1995) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Sócia e Coordenadora da Área de Comércio Exterior do Escritório Veirano Advogados (desde 2001). Desenvolveu consultoria e contencioso no âmbito local, regional e multilateral. Trabalha com casos de defesa comercial (dumping, anticircunvenção, subsídios e salvaguarda) no Brasil e em outros países, dando suporte a produtores e exportadores estrangeiros, importadores e indústrias domésticas. De 1997 a 2001, atuou

os contenciosos soBre cArne de frAngo

Ana T. Caetano

Ana T. Caetano

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nos Departamentos de Comércio Internacional e Direito Internacional da Organização dos Estados Americanos (OEA) e também como consultora de comércio exterior no reputado escritório O’Melveny & Myers LLP, em Washington, D.C.

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Foi James Bacchus quem primeiro observou que o Brasil leva frango muito a sério. É verdade. Dos atuais 26 casos em que o Brasil foi parte reclamante no Órgão de Solução

de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do Comércio (OMC), 4 trataram de frango. Isto é, o frango foi objeto de disputa em 15% dos casos que o Brasil levou à OMC. A frequência das reclamações brasileiras de frango explica-se pela relevância do produto para o Brasil e o mundo.

O Brasil é o terceiro país no ranking dos principais produtores mundiais de carne de frango, ficando atrás somente dos Estados Unidos da América (EUA) e da China. Juntos esses três países representam 52% da produção mundial de carne de frango. Em 2012, o Brasil produziu 12,6 milhões de toneladas de carne de frango, sendo que, aproximadamente, 31% foi destinado à exportação. No ranking dos principais exportadores de carne de frango, o país figura como número 1 e ocupa esta posição desde 2004. Atrás do Brasil estão os EUA e a União Europeia. Essas três origens são responsáveis por 80% da exportação mundial de carne de frango. Em 2012, o país exportou quase quatro milhões de toneladas para mais de 150 países, do Afeganistão ao Zimbábue.

O sucesso exportador do setor é fruto de uma combinação de fatores, entre eles, recursos naturais, disponibilidade de grãos, produção integrada, status sanitário e investimento em tecnologia. Além, é claro, do contínuo investimento para o

Ana T. Caetano

354

apropriado cumprimento das exigências de mercados para onde exporta, como os elevados padrões de controle sanitário e de bem-estar e saúde animal da Europa, as exigências culturais e religiosas da Arábia Saudita e os cortes e produtos específicos do Japão.

A demanda global por carne de frango é crescente, resultado, em especial, do aumento das populações, do Produto Interno Bruto (PIB), da taxa de urbanização, da classe média e do consumo de proteína dos países emergentes.

No Brasil, o setor gera quase quatro milhões de empregos diretos, indiretos e fruto do efeito renda.

Esses números impressionam e oferecem uma noção preliminar da importância comercial, econômica e social deste setor para o Brasil e o mundo, justificando a defesa desses interesses na OMC. Dos 4 contenciosos brasileiros de frango, eu tive o privilégio de representar os interesses da avicultura brasileira em três:

• Argentina – Definitive Anti-Dumping Duties on Poultry from Brazil (DS241);

• EC – Customs Classification of Frozen Boneless Chicken Cuts (DS269);

• South Africa – Anti-Dumping Duties on Frozen Meat of Fowls from Brazil (DS439).

Este artigo é o meu relato e impressão desses casos.

1. ArgentinA – definitive Anti-dumping duties on poultry from BrAzil (ds241)

Apesar do pedido de consultas deste contencioso na OMC ter sido realizado em novembro de 2001, esta disputa comercial começou no ano anterior, em julho de 2000, com a aplicação de

Os contenciosos sobre carne de frango

355

direito antidumping definitivo por parte da Argentina sobre as importações de frango originárias do Brasil. Por considerar que o direito definitivo e os procedimentos adotados na investigação não foram compatíveis com a normativa do Mercosul relativa à investigação e aplicação de direitos antidumping entre os Estados-Partes, o Brasil levou sua reclamação ao mecanismo de solução de controvérsias do Mercosul, sendo constituído, em janeiro de 2001, Tribunal Arbitral Ad Hoc para tratar desta demanda. Após quatro meses de sua constituição, o Tribunal proferiu laudo concluindo não existir norma específica no Mercosul que regulamentasse o procedimento e a aplicação de medida antidumping dentro do Mercosul (intrazona) e que a apreciação do Tribunal não poderia ser uma revisão detalhada de cada elemento processual e nem a verificação do cumprimento da norma antidumping argentina.

O fato de o Tribunal Arbitral ter se esquivado de analisar as falhas processuais e de substância da investigação argentina causou enorme frustração no setor avícola nacional que, insatisfeito, solicitou ao governo brasileiro que a demanda seguisse para a OMC.

Aproximadamente cincomeses após a decisão do Tribunal Arbitral, o Brasil acionou o mecanismo de solução de controvérsias da OMC e solicitou consultas com a Argentina. O pedido de consultas do Brasil, e posteriormente o pedido de estabelecimento de painel, traduzia a insatisfação do setor e indicava o entendimento brasileiro de que quase todos os artigos do Acordo Antidumping da OMC haviam sido violados pela autoridade argentina.

Embora este contencioso tenha tratado de violações a quase todos os artigos do Acordo Antidumping, o maior legado e contribuição deste caso refere-se à relação jurídica, comercial e

Ana T. Caetano

356

política entre o Brasil e a Argentina e o entendimento do alcance dos mecanismos de solução de controvérsias do Mercosul e da OMC.

Este ponto foi evidenciado pela questão preliminar trazida pela Argentina envolvendo os princípios de boa-fé e estoppel. Em síntese, a Argentina alegou que o Brasil não teria agido de boa-fé ao trazer a demanda no Mercosul e, tendo perdido neste fórum, iniciado uma demanda na OMC contra a mesma medida.

Ao analisar se o Brasil agiu ou não de boa-fé, o painel avaliou duas condições. A primeira, se o Brasil violou dispositivo substantivo de um Acordo da OMC. A segunda, se teria havido “algo mais” do que mera violação, necessário para configurar má-fé por parte do Brasil. Como a Argentina não alegou que o Brasil violou dispositivo legal de Acordo coberto pela OMC, o painel constatou não existir base para concluir que o Brasil havia violado o princípio da boa-fé.

Quanto à questão de estoppel, o painel considerou que o Brasil não emitiu declaração clara e inequívoca de que, ao levar a demanda para o mecanismo de soluções de controvérsias do Mercosul, estaria abrindo mão de recorrer ao mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Para o painel, estoppel só poderia resultar do consentimento expresso ou, em circunstâncias excepcionais, implícito da parte reclamante. O painel considerou não haver evidências nos autos de declaração expressa, por parte do Brasil, de que o mesmo não recorreria à OMC em relação a medidas previamente reclamadas no Mercosul. Tampouco encontrou o painel evidências acerca de consentimento implícito. O painel inclusive mencionou que o Protocolo de Brasília não impunha restrições ao direito do Brasil de recorrer subsequentemente à OMC em relação à mesma medida.

Os contenciosos sobre carne de frango

357

Cabe registrar que o painel observou e reconheceu a existência do Protocolo de Olivos, que dispõe que, uma vez decidido o fórum (entre Mercosul ou OMC), a parte não poderá trazer caso subsequente sobre o mesmo assunto no outro fórum. Vejamos a linguagem do Protocolo de Olivos.

Artigo 1

Âmbito de aplicação

1. As controvérsias que surjam entre os Estados

Partes sobre a interpretação, a aplicação ou o não

cumprimento do Tratado de Assunção, do Protocolo de

Ouro Preto, dos protocolos e acordos celebrados no marco

do Tratado de Assunção, das Decisões do Conselho do

Mercado Comum, das Resoluções do Grupo Mercado

Comum e das Diretrizes da Comissão de Comércio

do MERCOSUL serão submetidas aos procedimentos

estabelecidos no presente Protocolo.

2. As controvérsias compreendidas no âmbito de

aplicação do presente Protocolo, que possam também

ser submetidas ao sistema de solução de controvérsias

da Organização Mundial do Comércio ou de outros

esquemas preferenciais de comércio de que sejam parte

individualmente os Estados Partes do MERCOSUL,

poderão submeter-se a um ou outro foro, à escolha da

parte demandante. Sem prejuízo disso, as partes na

controvérsia poderão, de comum acordo, definir o foro.

Uma vez iniciado um procedimento de solução de

controvérsias de acordo com o parágrafo anterior,

nenhuma das partes poderá recorrer a mecanismos de

Ana T. Caetano

358

solução de controvérsias estabelecidos nos outros foros

com relação a um mesmo objeto, definido nos termos do

artigo 14 deste Protocolo. (grifo nosso)

No entanto, o painel bem apontou que o Protocolo de Olivos foi assinado em fevereiro de 2002 e que não havia, na época, entrado em vigor. De toda forma, o painel apontou que o Protocolo de Olivos não se aplicava a uma disputa já decidida sob o Protocolo de Brasília. Na verdade, o fato de os Estados--Partes do Mercosul entenderem necessária a introdução do Protocolo de Olivos sugeria o reconhecimento que, na ausência do Protocolo de Olivos, um procedimento perante o mecanismo de soluções de controvérsias do Mercosul poderia ser seguido de um procedimento de solução da controvérsias na OMC com relação à mesma medida.

Diante dessas e outras ponderações, o painel declinou o pedido da Argentina para não examinar e concluir sobre as violações alegadas pelo Brasil em razão de procedimento prévio no Mercosul em relação à mesma medida.

Das 41 alegações de violação trazidas pelo Brasil ao OSC, o painel entendeu que a Argentina agiu de forma inconsistente em 20 alegações e que não agiu de forma inconsistente em 8 alegações. O painel entendeu também não ser necessária a análise e conclusão relativa a 13 alegações. Por fim, recomendou a revogação da medida antidumping aplicada por meio da Resolução ME n° 574/200.

A especial e delicada relação política e comercial entre o Brasil e a Argentina permeou esta disputa e contribuiu para que o contencioso ficasse restrito à fase de painel. O resultado positivo para o setor foi a retirada do direito antidumping aplicado às importações de frango do Brasil e a retomada do mercado argentino.

Os contenciosos sobre carne de frango

359

2. ec – customs clAssificAtion of frozen Boneless chicken cuts (ds269)

De todos os contenciosos de frango do Brasil, este talvez tenha sido o maior e mais relevante por ter percorrido todas as etapas do mecanismo de solução de controvérsias e tratado do significativo comércio de frango entre Brasil e União Europeia. Vale registrar que a União Europeia já havia sido vitoriosa em contencioso prévio com o Brasil envolvendo frango. Além disso, esta reclamação brasileira foi feita com base em uma única violação, a do artigo II do GATT 1994. Portanto, o risco neste caso era muito maior, especialmente considerando que, no caso anterior de frango, o Brasil havia feito 41 reclamações de violação. Este caso era tudo ou nada.

Este contencioso também tratou da delicada relação e alcance das atribuições de duas importantes Organizações: a OMC e a Organização Mundial de Aduanas (OMA). Como a disputa centrava na definição da classificação tarifária do produto frango salgado (posição 0210) e se a União Europeia havia violado compromisso de concessão tarifária na OMC referente a esse produto, havia necessidade de se buscar informação e aconselhamento técnico da OMA sobre a definição e o tipo de produto classificado sob a posição 0210. No entanto, a disputa era claramente de competência da OMC, e não da OMA, pois tratava de violação ao Artigo II do GATT 1994 (concessão tarifária). Vale o registro da elegância do painel, que utilizou o artigo 11 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias (ESC) para explicar que não abriria mão de suas responsabilidades perante o OSC, fosse para a OMA ou qualquer outra entidade.

Ana T. Caetano

360

Por fim, e não menos importante, este caso serviu, e serve até hoje, de exemplo do uso dos artigos 31 e 32 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (Convenção de Viena) como instrumento de interpretação de dispositivos de Acordos da OMC.

Mas, afinal, o que foi o caso do “frango salgado”?

A essência da disputa foi o questionamento por parte do Brasil de medidas da União Europeia relativas ao corte de frango salgado e congelado, que mudaram a classificação e o tratamento tarifário do produto. O novo tratamento tarifário passou a ser menos favorável do que havia sido acordado pela União Europeia em sua Lista de Concessão Tarifária na OMC (Lista LXXX), em franca violação aos artigos II:1 (a) e II: 1(b) do GATT 1994.

Através do Regulamento CE no. 1223/2002 e da Decisão CE 2003/97/CE (medidas comunitárias), a União Europeia modificou a classificação tarifária do corte de frango salgado e congelado, antes classificado na posição 0210.90.20 e sujeito a uma tarifa ad valorem de 15.4%, para a posição 0207.14.10 sujeito a um direito específico de 102.4 € /100 kg/net e à salvaguarda especial do artigo 5 do Acordo de Agricultura. As medidas comunitárias indicavam que a inclusão de 1.2 a 3% de sal na carne de frango não era suficiente para qualificar o produto como salgado da posição 0210, pois este teor de sal seria insuficiente para conservar o produto. Consequentemente, a carne salgada com este teor e, posteriormente, congelada teria que ser classificada na posição 0207.14.10, visto ser o congelamento o “verdadeiro” meio de conservação do produto. Para a Europa, o fator determinante na classificação do produto era o meio de conservação do mesmo.

Os contenciosos sobre carne de frango

361

Este não era o entendimento do Brasil.

A questão, então, era decidir se o termo “salgado” da posição 0210 da Lista LXXX – que tinha sido elaborada com base na nomenclatura do Sistema Harmonizado (OMA) – poderia ser definido exclusivamente em virtude do efeito de conservação que o sal promoveria sobre as carnes desta posição.

Para tanto, o painel, e posteriormente o Órgão de Apelação, aplicou as regras de interpretação dos artigos 31 e 32 da Convenção de Viena, considerando o sentido comum atribuível aos termos de um tratado, seu contexto, práticas subsequentes, objetivo e finalidade, trabalhos preparatórios de um tratado e as circunstâncias acerca de sua conclusão.

Ao aplicar o sentido comum atribuível ao termo “salgado”, o painel entendeu que o significado do termo era mais abrangente que o sentido de preservação, podendo também significar a mera adição, tratamento ou tempero com sal. Na análise de contexto, o painel recorreu ao texto da posição 0210 da Lista LXXX, o Sistema Harmonizado e a Lista de Concessão de outros Membros da OMC, chegando à conclusão de que os termos da posição 0210, a estrutura e demais partes e termos da Lista LXXX, e as Notas Explicativas e Regras Gerais do Sistema Harmonizado não indicavam que a concessão era necessariamente caracterizada pela noção de preservação de longo prazo. O painel concluiu também que a pratica consistente, de 1996 a 2002, de classificação do “frango salgado e congelado” sob a posição 0210 por parte da União Europeia consistia em “prática subsequente” e confirmava a noção de que o produto estava coberto pela posição 0201 da Lista LXXX. É importante destacar que esta análise do painel foi revertida na apelação. Por fim, o painel considerou que uma interpretação do termo “salgado” que incluísse o critério de preservação de longo

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prazo poderia minar o objetivo e a finalidade de segurança e previsibilidade, que estão no coração do GATT 1994 e do Acordo da OMC.

Para confirmar sua avaliação preliminar, o painel utilizou os meios suplementares de interpretação. Em especial, o painel considerou a lei e a prática de classificação europeia antes de 15 de abril de 1994 (quando a Lista LXXX teria sido adotada). O interessante nesta avaliação foi o entendimento do painel de que os Membros da OMC poderiam ter conhecimento de um caso julgado na União Europeia em maio de 1993 quando a Lista LXXX estava sendo concluída, qualificando este julga-mento como uma “circunstância de conclusão” da Lista LXXX (meio suplementar de interpretação do artigo 32 da Convenção de Viena).

Este entendimento não afetou a conclusão do painel de que os meios suplementares de interpretação confirmavam a conclusão preliminar de que o termo “salgado” da posição 0210 da Lista LXXX incluía o corte de frango salgado, com teor de 1.2 a 3% de sal, e congelado.

Com base nessa interpretação, o painel declarou que este produto estava autorizado a receber tratamento tarifário acordado à posição 0210 e que o produto, de fato, não estava recebendo este tratamento em decorrência das medidas comunitárias, em clara violação aos artigos II:1(a) e II:1(b) do GATT 1994.

Em junho de 2005, a União Europeia apelou da decisão do painel e, em setembro do mesmo ano, o Órgão de Apelação confirmou a conclusão do painel de que o frango salgado e congelado estava coberto pela posição 0210 da Lista LXXX, e que as medidas comunitárias conferiam tratamento tarifário

Os contenciosos sobre carne de frango

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menos benéfico ao produto que o acordado. O relatório do Órgão de Apelação foi adotado no dia 27 de setembro de 2005.

Em novembro de 2005, o Brasil solicitou arbitragem sob o artigo 21.3(c) do ESC para que fosse determinado prazo razoável para que a União Europeia pudesse trazer as medidas comunitárias em acordo com suas obrigações na OMC. O árbitro escolhido de comum acordo entre as partes foi James Bacchus, que seguia a saga do frango desde o caso DS69 (1998). O laudo arbitral foi circulado em fevereiro de 2006, estipulando nove meses, da adoção do relatório do Órgão de Apelação, como tempo razoável para implementação por parte da União Europeia. Isto é, até o dia 27 de junho de 2006.

No entanto, no dia 15 de junho de 2006, a União Europeia notificou sua intenção de modificar determinadas concessões tarifárias da Lista LXXX. Em particular, informou sua intenção de substituir com quotas tarifárias as concessões sob as posições 0210.90.20 (frango salgado), 1602.31 e 1602.32.19 de sua Lista de Concessões.

Com esse movimento, a União Europeia evadiu o cumpri-mento da recomendação do OSC com relação ao contencioso do “frango salgado”. Embora o desdobramento do caso não tenha sido o esperado pelo setor, vale registrar o engajamento do Brasil nas negociações sob o artigo XXVIII e o sucesso, dentro daquele con-texto e realidade, do volume negociado da quota tarifária para as importações originárias do Brasil.

3. south AfricA – Anti-dumping duties on frozen meAt of fowls from BrAzil (ds439)

No dia 24 de junho de 2011, a International Trade Administration Commission of South Africa (ITAC), autoridade

Ana T. Caetano

364

investigadora de dumping na África do Sul, iniciou investigação para averiguar a existência de dumping nas exportações brasileiras de frango inteiro e de cortes desossados de frango congelados e respectivo dano à indústria doméstica da Southern African Customs Union (SACU). O setor exportador brasileiro, junto com o governo, se engajou na investigação oferecendo tempestivamente dados, informações e argumentos ao longo do processo.

No entanto, em 10 de fevereiro de 2012, as autoridades alfandegárias sul-africanas aplicaram medidas antidumping provisórias sobre as importações de frango inteiro e de cortes desossados de frango congelados provenientes do Brasil. A aplicação das medidas provisórias teria duração máxima de 6 meses.

Tendo participado, cooperado e acompanhado ativamente a investigação, o setor exportador entendeu que a determina-ção preliminar, que fundamentou a aplicação dos direitos pro-visórios, possuía gravíssimas violações às normas do Acordo Antidumping da OMC, e teria efeito negativo sobre o comércio de frango com a África do Sul e a percepção dos demais desti-nos de exportação do frango brasileiro. A UBABEF, então, en-caminhou cartas aos Ministros de Estado do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) e das Relações Exteriores (MRE), apontando as diversas violações e solicitando o apoio e o questionamento dessas infrações na OMC, mesmo antes do término da investigação.

No dia 21 de junho de 2012, o Brasil solicitou consulta com a África do Sul relativa à determinação preliminar e aplicação dos direitos provisórios. O número elevado de violações aos artigos do Acordo Antidumping listado no pedido de consultas já adiantava o grau e a seriedade da demanda brasileira e a clara

Os contenciosos sobre carne de frango

365

determinação de se alcançar, na fase de consulta, uma solução mutuamente satisfatória antes do término da investigação de dumping sul-africana e de eventual pedido de estabelecimento de painel na OMC.

As consultas entre Brasil e África do Sul ocorreram em Genebra no dia 26 de julho de 2012. No dia 10 de agosto de 2012 o prazo de aplicação das medidas antidumping provisórias caducou sem a publicação de uma determinação final ou expli-cação por parte da autoridade sul-africana.

Considerado que a investigação sul-africana havia iniciado em 24 de julho de 2011 e que a autoridade investigadora havia prorrogado o procedimento por um prazo adicional de seis meses, o prazo final para o término da investigação seria dia 24 de dezembro de 2012. No entanto, nenhuma publicação no Diário Oficial sul-africano ou pronunciamento por parte das autoridades correspondentes foi feito no dia 24 de dezembro, ou nos dias subsequentes.

No dia 8 de março de 2013, mais de dois meses após o fim do prazo da investigação de dumping, a ITAC publicou uma determinação final concluindo pela existência de dumping, dano e nexo causal, recomendando ao Ministro de Comércio e Indústria da África do Sul a aplicação de direitos antidumping definitivos.

O Ministro, entretanto, rejeitou a recomendação da ITAC considerando, entre outras questões, o aumento das importações de diversos países (e não só do Brasil), a necessidade de uma resposta mais abrangente para a indústria doméstica lidar com a intensa competição, e, como parte de uma estratégia mais abrangente, a necessidade de uma investigação acerca do nível apropriado da tarifa de nação mais favorecida aplicável para atender às dificuldades enfrentadas pela indústria doméstica.

Ana T. Caetano

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No dia 12 de abril de 2013, a ITAC publicou no Diário Oficial da África do Sul a abertura de prazo para consulta pública rela-tiva ao pedido da indústria doméstica de aumento do imposto de importação, até o teto consolidado na OMC, sobre as impor-tações de carne de frango congelada das posições 0207.12.20, 0207.12.90, 0207.14.10, 0207.14.20 e 0207.14.90.

Embora este contencioso tenha ficado restrito à etapa de consultas, é válido o seguinte registro. A diligente reação do Brasil de questionar violações referentes à aplicação de uma me-dida provisória, o que preveniu a aplicação de uma medida defi-nitiva e a evolução do contencioso no OSC da OMC. Igualmente importante foi a não hesitação e a disposição do Brasil de ques-tionar um país africano e também pertencente ao grupo de paí-ses emergente denominado BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o que nunca tinha ocorrido antes.

Por fim, fica o meu registro de que a relação do governo brasileiro nos contenciosos de frango trazidos pelo Brasil na OMC tem sido de parceria e confiança com o setor privado na defesa e proteção dos interesses da avicultura brasileira.

pArte iiio sistemA de solução de controvérsiAs e o AlcAnce dos compromissos Assumidos no âmBito dA omc

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Formado em Ciências Econômicas (UFRJ) e no Curso de Preparação à Carreira Diplomática do Instituto Rio Branco em Brasília. Mestre em Relações Internacionais pela UnB. Diplomata de carreira, atuou na Divisão de Política Comercial, na Missão Permanente do Brasil em Genebra, na Delegação junto à ALADI e na Missão brasileira junto à União Européia. Chefiou a Divisão do Mercosul e o Departamento Econômico do Ministério das Relações Exteriores. Foi painelista no sistema de solução de controvérsias do GATT no caso United States – taxes on automobiles e da OMC no caso United States – Import Prohibition of Certain Shrimp and Shrimp Products (shrimp-turtle). Atualmente é Secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda.

o sistemA de solução de controvérsiAs dA omc:

pArA Além dos contenciosos, A políticA externA

Carlos Márcio Cozendey

1

1 Artigo atualizado a junho de 2013. Registro meu agradecimento aos colegas da Coordenação- -Geral de Contenciosos do Itamaraty: Flávio Marega, Luciano Mazza de Andrade, Bruno Guerra Carneiro Leão, Christiane Silva Aquino, Marcus Vinícius da Costa Ramalho, Fernando Cavalcanti Jr., Leandro Rocha de Araujo e Husani Durans, que contribuíram para a discussão das principais ideias expressas no artigo, com parte da pesquisa, com comentários e revisão.

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Desde a entrada em vigor do Entendimento relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias2 da Organização Mundial do Comércio

(OMC), em 1995, o Brasil tomou parte, como demandante ou demandado, em 40 dos 462 contenciosos iniciados na OMC até junho de 2013, atrás apenas de Estados Unidos, União Europeia (UE), Canadá, China e Índia.

Esse esforço resultou em ganhos significativos em contenciosos que envolveram setores exportadores brasileiros dinâmicos, como o aeronáutico (Embraer X Bombardier); o siderúrgico (Emenda Byrd e salvaguardas americanas sobre certos produtos siderúrgicos); o de algodão (subsídios americanos à cotonicultura); o de açúcar (subsídios à exportação concedidos pela UE); o de frango salgado (reclassificação tarifária feita pela UE); o de suco de laranja (taxa de equalização americana); e o de bananas (arbitragem sobre regime de tarifa única europeu), entre outros.

A evidência mostra, portanto, que a política externa brasileira tem feito do sistema de solução de controvérsias da OMC um pilar importante de sua ação na área comercial, de forma coerente com sua tradição de privilegiar a solução pacífica de controvérsias e o multilateralismo. A presença do Brasil no sistema multilateral de solução de controvérsias comerciais precede o estabelecimento da OMC e vem dos primeiros tempos

2 Incorporado ao direito brasileiro pelo Decreto 1355/1994.

Carlos Márcio Cozendey

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do GATT3. Já em 1949, um Grupo de Trabalho examinava os impostos internos brasileiros para verificar sua compatibilidade com o artigo III do Acordo Geral.

Quando interesses comerciais brasileiros são afetados por medidas adotadas por outros Membros da OMC, o Brasil não tem hesitado em recorrer ao sistema se essas medidas desres-peitam as regras multilaterais de comércio. No outro sentido, o sistema fornece uma via não conflitual para a defesa contra alegações de descumprimento dessas regras pelo país. O siste-ma permite ainda que o Brasil, na posição de terceira parte in-teressada, participe de controvérsias envolvendo outros países. A participação como terceira parte pode decorrer tanto de um interesse comercial no tema em exame, quanto do interesse dito “sistêmico”, ou seja, pela relevância do tema para o funciona-mento do sistema multilateral de comércio. É uma participação que permite o acompanhamento da discussão legal e a manifes-tação de opinião sobre o caso em exame. Não é uma ação isenta de consequências políticas. Ao contrário, ao envolver posicio-namento sobre o tema, implica em geral algum grau de apoio a uma das partes em disputa.

O sistema de solução de controvérsias da OMC fornece um canal seguro para as disputas comerciais e ajuda a evitar, dessa forma, que esses desacordos transbordem as questões específicas e contaminem outros aspectos dos relacionamentos bilaterais4. O recurso ao sistema não deixa, porém, jamais de ser

3 O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT na sigla em inglês) foi o acordo “provisório” assinado em 1947 sob o qual se desenvolveu o sistema multilateral de comércio até a criação da OMC em 1994. O GATT 1994, adaptado do GATT 1947, é um dos acordos da OMC e estabelece as regras gerais para o comércio de bens.

4 Um dos poucos casos em que o Brasil esteve envolvido em que se verificou “transbordamento” foi o contencioso com o Canadá sobre aeronaves, que afetou conversas exploratórias sobre eventual negociação de Acordo de Livre-Comércio Mercosul-Canadá (Brasil como demandante nos casos DS 70, DS 71 e DS 222, Canadá como demandante no caso DS 46).

O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC: para além dos contenciosos, a política externa

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um ato político e de ser entendido como tal. É, portanto, decisão que precisa ser tomada tendo em mente o contexto global do relacionamento bilateral, o tema de que se trate, e a conjuntura multilateral. É, mais do que um ato jurídico, um pleno ato de diplomacia.

O presente artigo não descreverá o funcionamento do sistema de solução de controvérsias da OMC5, nem discorrerá sobre os casos que envolveram o Brasil6, mas procurará apresentar algumas reflexões sobre o significado do sistema, na forma que assumiu na passagem do GATT para a OMC, e sobre sua relação com a política externa brasileira para a área comercial.

1. pArA Além do gAtt, A omcO sistema de solução de controvérsias do GATT evoluiu

gradualmente de forma consuetudinária a partir das poucas indicações contidas nos seus artigos XXII e XXIII, que se revelaram, não obstante, de grande alcance, tanto do ponto de vista dos procedimentos quanto da substância do sistema. Estão ali os elementos básicos de um sistema em etapas (etapa bilateral de consultas, seguida de etapa multilateral) controlado pelos signatários (na linguagem do GATT, as “partes contratantes” ou, quando agindo coletivamente, as “PARTES CONTRATANTES”, em maiúsculas). Ali também a explicitação da natureza contratual do acordo: na noção de que a violação

5 Apresentação sucinta das diferentes fases do procedimento do sistema pode ser encontrada em inglês no sítio da OMC: <http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/dispu_e.htm> ou em português no sítio da Coordenação-Geral de Contenciosos (CGC) do Itamaraty: <http://www.itamaraty.gov.br/cgc>.

6 Documentos e petições relacionados aos principais casos envolvendo o Brasil podem ser encontrados na página da Coordenação-Geral de Contenciosos do Itamaraty (CGC), em: <http://www.itamaraty.gov.br/cgc>.

Carlos Márcio Cozendey

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das obrigações poderia levar à retirada de concessões para o reequilíbrio de direitos e obrigações, ou na noção de que há casos em que, mesmo sem violação das regras, esse equilíbrio pode ser rompido e deve ser reestabelecido (“non violation complaints”).

Ao longo dos anos, o sistema do GATT evoluiu da preferência pelo exame da controvérsia por grupos de trabalho compostos por representantes das próprias partes contratantes à preferência pela convocação de um grupo especial (panel7) composto de três especialistas em política comercial versados nas regras do GATT, que funcionasse como instância neutra encarregada de fazer recomendações às PARTES CONTRATANTES sobre a disputa. Essas recomendações constituíam-se de exame da medida contestada à luz das regras do GATT e na solicitação de que o país considerado faltoso colocasse sua legislação ou prática em linha com suas obrigações. As partes contratantes do GATT foram, assim, desenvolvendo um sistema de arbitragem sui generis, que não seguia os trâmites clássicos da arbitragem do direito internacional público, nem da arbitragem privada.

Como eram as PARTES CONTRATANTES quem aprovavam as recomendações e desenvolveu-se no GATT a prática de tomar as decisões por consenso, era preciso que os países envolvidos na controvérsia concordassem com o resultado da recomendação para que ela se tornasse efetiva. Os países derrotados, em consequência, valiam-se amplamente da prerrogativa de bloquear ou postergar a constituição dos painéis ou a adoção de seus relatórios.

7 Em função da ampla utilização da denominação inglesa, tem sido mais utilizada em português a denominação “painel” do que a tradução original do francês ou espanhol “grupo especial”. Esses termos serão utilizados indistintamente no artigo, assim como o termo “painelista” para designar os membros do grupo especial.

O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC: para além dos contenciosos, a política externa

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Durante a Rodada Uruguai de negociações comerciais multilaterais8 (1986-1994), entre os diversos temas negociados, o sistema de solução de controvérsias foi codificado e reformado. Uma das modificações centrais foi a inversão da regra do consenso (consenso negativo), ou seja, seria necessário o consenso dos Membros (agora assim designados na OMC) não mais para aprovar a constituição de um painel ou seu relatório, mas para rejeitá-los. Uma segunda modificação decisiva foi a criação de um Órgão de Apelação ao qual podem recorrer as partes na controvérsia para buscar alterar a análise jurídica realizada pelo painel. A inversão do consenso se aplica também à aprovação do relatório do Órgão de Apelação.

A inversão do consenso, se é verdade que mantém a chancela política dos resultados, retira dos membros o controle do processo e de seus resultados. A existência de um Órgão de Apelação cria tendência à maior uniformização dos resultados e ao reforço da jurisprudência. A conjunção dos dois elementos faz com que o sistema se torne nitidamente mais jurisdicional e previsível, com redução (mas não eliminação) dos espaços de negociação no interior do procedimento. Os resultados mais perceptíveis dessas mudanças na natureza do sistema foram o aumento significativo do número de casos9 e o maior respeito aos resultados dos contenciosos pelas partes envolvidas.

8 As negociações no GATT, e agora na OMC, tradicionalmente se realizam por “rodadas” de negociação que recebem na maior parte dos casos o nome da cidade ou país em que foram realizadas ou iniciadas.

9 Entre o primeiro relatório adotado pelas PARTES CONTRATANTES, em 24 de agosto de 1948, e o último, em 30 de outubro de 1995, pouco mais de 100 painéis foram concluídos sob o GATT. Em contraste, quase 250 relatórios de painéis ou do Órgão de Apelação foram adotados pelo OSC nos primeiros15 anos de existência da OMC.

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2. jurisprudênciA: pArA Além dA teoriA, A práticA

Embora os grupos especiais e o Órgão de Apelação não estejam obrigados a seguir as interpretações ou o método de análise das disciplinas da OMC utilizados em casos anteriormente equacionados no âmbito do sistema, sob o GATT 1947 os relatórios dos grupos especiais já se apoiavam amplamente no raciocínio jurídico desenvolvido pelos predecessores. Uma jurisprudência pragmática foi aos poucos estabelecendo métodos de análise de certos artigos-chave do Acordo Geral e criando “testes” para avaliar as medidas contestadas à luz do texto das disciplinas.

A criação do Órgão de Apelação (OA) reforçou o compo-nente jurisprudencial do sistema. Em primeiro lugar, a perma-nência no tempo de um número relativamente pequeno de ár-bitros que julgam as controvérsias em segunda instância leva a uma maior convergência das interpretações, seja pela reiterada intervenção do mesmo árbitro, seja pela deferência aos cole-gas10. Em segundo lugar, cria-se, na prática, uma hierarquia de jurisprudências, onde as manifestações do OA ganham status superior. Com efeito, as tentativas de painéis de reverter as metodologias e interpretações avalizadas pelo OA dificilmente alcançam sucesso e, sabedores disso, os painelistas procuram seguir ou justificar-se por referência a decisões da instância superior. Tanto nas alegações dos membros da OMC quanto na interpretação dos relatórios dos painéis, o argumento de auto-ridade é amplamente utilizado (“o Órgão de Apelação já decidiu no caso X que...”).

10 O OA é formado por 7 árbitros escolhidos pelos Membros da OMC para mandatos de quatro anos preenchidos de forma escalonada, ou seja, não são todos substituídos ao mesmo tempo.

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3. pArA Além dA solução de controvérsiAs, A negociAção

O reforço da jurisprudência leva o sistema em geral, e o OA, em particular, a ter um papel crescentemente importante na conformação das regras. Ao contrário de sistemas jurídi-cos nacionais com produção normativa constante, o sistema multilateral de comércio produz normas esporadicamente, de forma concentrada em torno das rodadas de negociação. Entre uma rodada e outra, as lacunas normativas eventualmente identificadas ou criadas pela evolução das práticas governa-mentais e privadas fornecem amplo campo para interpreta-ções de painéis e do Órgão de Apelação que estendam ou, na prática, complementem, as intenções atribuídas à negociação original.

Em outros casos, o espaço para a intervenção de painéis e Órgão de Apelação é criado pela própria natureza consensual do processo decisório e negociador na OMC. Como as decisões são tomadas por consenso e não por votação, muitas vezes a ambiguidade e a omissão são utilizadas como forma de permitir o acordo. Se, dessa forma, preserva-se maior liberdade ao legislador e ao aplicador das normas no nível nacional, a falta de clareza aumenta, em contrapartida, o espaço para ação interpretativa de painéis e do Órgão de Apelação.

Em certos casos, a ausência de negociação de regras específicas obriga a certa adaptação de normas criadas com preocupações claramente diferentes. É, por exemplo, o caso da utilização do literal (g) do artigo XX, Exceções Gerais11, como justificativa para adoção de medidas contrárias às regras por motivos de proteção do meio ambiente. O dispositivo,

11 “(g) relating to the conservation of exhaustible natural resources if such measures are made effective in conjunction with restrictions on domestic production or consumption”.

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claramente concebido para permitir restrições ao comércio de recursos naturais não renováveis (notadamente minérios) em situações de controle da oferta, tem sido uma das bases para permitir a imposição de restrições comerciais para a proteção do meio ambiente, preocupação bem menos presente quando da negociação do Acordo Geral ao final da década de 1940.

Ainda no antigo GATT, o sistema de solução de contro-vérsias já tinha impacto sobre a negociação de novas regras. Um caso claro foi o resultado da negociação do Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas a Comércio – TRIMS. Enquanto os países em desenvolvimento em geral resistiram na Rodada Uruguai a qualquer nova disciplina nessa área, tendo em vista a ampla utilização de medidas que criam exigências aos investidores como instrumento de industrialização, os paí-ses desenvolvidos buscavam disciplinas restritivas amplas para diversos tipos de medidas. Ao final, o acordo alcançado limitou--se a proibir as medidas baseadas na exigência de desempenho de exportação e na exigência de conteúdo local, proibições que traduzem interpretação de certos dispositivos dos Artigos XI e III do Acordo Geral que já haviam sido consagradas por reco-mendações de painéis sob o sistema de solução de controvérsias (em particular o relatório do caso “Canadá – Administration of the Foreign Investment Review Act”, de 1985).

Com mais regras e uma dimensão jurisprudencial mais forte, o sistema da OMC tende a um padrão ainda mais relevante de influência sobre as negociações. Se em alguns casos, o consenso pode formar-se em torno de uma interpretação consagrada pelo Órgão de Apelação, facilitando a conformação de uma nova regra, a própria força adquirida pela jurisprudência pode desestimular a consolidação em texto normativo, na medida em que a interpretação em questão se tenha firmado e venha sendo respeitada pelos legisladores nacionais.

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Em outros casos, ao contrário, se uma interpretação consagrada no sistema de solução de controvérsias não vem sendo respeitada, haverá estímulo para que Membros interessados proponham sua consolidação normativa. Ao mesmo tempo, com o fortalecimento da jurisprudência, a única alternativa em caso de discordância com uma interpretação passa a ser, na prática, a modificação da norma que tenha dado origem à interpretação contestada. É, por exemplo, a origem da proposta norte-americana sobre o instituto do “zeroing”12 nas discussões sobre o Acordo Antidumping. Nesses casos, é claro que os que defendem a interpretação do Órgão de Apelação utilizarão amplamente a jurisprudência como argumento negociador. Assim, o sistema de solução de controvérsias passa a ser tanto fonte de iniciativas de negociação, quanto fonte de poder de barganha no contexto das negociações.

Passa, ao mesmo tempo, a entrar nos cálculos do negociador a opção de não acordar uma nova regra e confiar que os resultados do sistema de solução de controvérsias lhe serão favoráveis (ou manterão resultados passados já favoráveis). Propostas de novas disciplinas são avaliadas à luz das interpretações avalizadas pelo Órgão de Solução de Controvérsias, sendo por vezes preferível não modificar as disciplinas existentes a fazê-lo com risco de perder os resultados já alcançados na jurisprudência. Sendo o sistema relativamente rápido e uniforme, a interação entre solução de controvérsias e produção normativa tende a ser mais intensa do que nos sistemas jurídicos nacionais.

12 O dumping é a venda de um produto num mercado importador a preço mais baixo do que no mercado doméstico do país exportador. O país importador, caso constate a prática de dumping por um exportador estrangeiro e comprove que esse dumping causa dano à indústria doméstica, pode impor um direito antidumping às importações em questão para corrigir a situação, após investigação que comprove dumping, dano e relação causal entre ambos. O “zeroing” é uma metodologia empregada para cálculo da margem de dumping e consiste em desconsiderar, ou seja, “zerar”, as transações em que não há dumping na importação de um produto sob investigação quando do cálculo da margem de dumping, o que infla a margem de dumping calculada.

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4. mAis normAs, mAis contenciosos

A expansão do escopo de temas cobertos pelas disciplinas multilaterais de comércio recebe um primeiro grande impulso com a Rodada Tóquio, nos anos 70. Nesse momento, tendo as Rodadas anteriores reduzido significativamente a proteção tarifária para bens industriais nos países desenvolvidos, as atenções voltam-se para as medidas não tarifárias e terminam sendo negociados conjuntos de normas temáticas reunidas em acordos independentes do Acordo Geral, como os Acordos Antidumping, sobre Barreiras Técnicas, sobre Valoração Aduaneira, sobre Licenças de Importação, etc. A Rodada Uruguai ampliou novamente o escopo da legislação multilateral, intro-duzindo novas regras no campo dos serviços, dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio e das medi-das de investimento relacionadas ao comércio, ao mesmo tempo em que expandiu as disciplinas em áreas tradicionais, como subsídios ou aplicação de salvaguardas, e trouxe a agricultura e o comércio de produtos têxteis para fora do campo das exceções. Essas diversas disciplinas passaram a compor, sob o guarda--chuva da OMC, um único sistema normativo, sujeito a um mecanismo de solução de controvérsias integrado.

Uma vez que há mais regras, os parâmetros a que se têm de ajustar as medidas nacionais com impacto na política comercial crescem em número e complexidade, aumentando a probabilidade de que certas medidas não estejam conformes a alguma das disciplinas (e a possibilidade de que sejam questionadas à luz dessas disciplinas, o que não é o mesmo...). Assim, o vertiginoso aumento do número de casos de solução de controvérsias na OMC em comparação com o GATT (vide nota 10) resulta tanto da reformulação do sistema de solução de controvérsias, quanto da ampliação do escopo, número e complexidade das disciplinas.

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5. BrAsil: pArA Além dA desconfiAnçA, o investimento

Como os demais países em desenvolvimento, o Brasil encontrava-se na Rodada Uruguai em face de duas linhas possíveis principais de atuação no que se refere às negociações de reforma do sistema de solução de controvérsias do GATT. A primeira tomava como ponto de partida o fato de que o sistema é, em última instância, garantido pelo instituto da retaliação (“retirada de concessões equivalentes”). Haveria, em decorrência, uma assimetria intrínseca no sistema em decorrência do poder retaliatório muito superior das grandes potências comerciais. Dessa forma, maiores automatismo e jurisdicionalização do sistema criariam constrangimentos poderosos a eventuais descumprimentos das normas por parte dos países de menor peso comercial, enquanto os países maiores pouco teriam a temer.

Uma segunda visão enfatizava o fato de que, justamente por deterem as potências comerciais maior poder retaliatório, o jogo de poder era desfavorável aos países em desenvolvimento. De acordo com essa visão, fortalecer o sistema de solução de controvérsias consistiria em conter a tentação da ação unilateral por parte das potências comerciais e em impor-lhes a limitação da lei. Confiava-se em que, mesmo num sistema internacional “anárquico”, a deferência às regras por parte dos mais poderosos é fundamental para a manutenção dos benefícios de um regime internacional estabelecido com base em regras multilateralmente acordadas.

A posição brasileira oscilou ao longo da Rodada Uruguai, mas, diante dos riscos de uma ação crescentemente ofensiva e unilateral dos EUA ao amparo da chamada Seção 301 de sua legislação comercial, terminou por fixar-se no objetivo de construção de um sistema de solução de controvérsias que fosse

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capaz de submeter a legislação comercial norte-americana a um controle multilateral. A despeito dos riscos de que sua legislação fosse escrutinada pelo sistema, os EUA consideravam essencial, para que pudessem aceitar que a Seção 301 fosse “domada” pelo sistema multilateral, que os aspectos de automaticidade da constituição de grupos especiais e da adoção de relatórios, bem como o desenvolvimento desimpedido da possibilidade de retaliação (por meio, por exemplo, da introdução de arbitragem para determinação do tamanho da retaliação) fossem consagrados, como no final o foram. Em negociação de que o Brasil participou diretamente, o mecanismo de retaliações foi disciplinado no que se refere às retaliações cruzadas (por exemplo, retaliar no comércio de bens contra uma violação de regra de propriedade intelectual) e a prevalência do sistema sobre a ação unilateral explicitamente afirmada13.

Uma vez concluída a negociação e modificado o sistema, com a entrada em vigor do Acordo sobre a OMC, em 1995, o Brasil passou a utilizar-se decididamente de seus instrumentos. Com efeito, já no segundo caso14 suscitado na nova organização, que deu origem ao primeiro painel da OMC e ao primeiro relatório do Órgão de Apelação, o Brasil se apresentava como demandante e alcançava sua primeira “vitória” no novo sistema. Ao longo da história da OMC, o Brasil tem mantido constante confiança no mecanismo de solução de controvérsias e tem procurado valorizá-lo, certo de que se trata de peça-chave do sistema multilateral de comércio.

Isso significa, como demandante, utilizar o sistema em todas suas dimensões: procurar resolver o problema por meio de

13 Ver artigo 23 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias da OMC14 Caso “Estados Unidos – Padrões para gasolina reformulada e convencional”. A rigor a demanda

do Brasil é a quarta (DS4), mas foi unificada com a da Venezuela, a segunda a ser apresentada na vigência da OMC (DS2).

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consultas, solicitar um painel, defender o resultado ou solicitar modificações junto ao Órgão de Apelação, realizar pressões pela implementação dos resultados, solicitar painel para contestar falta de implementação de resultados, buscar autorização para retaliar e mostrar-se disposto a implementar retaliação em busca do cumprimento pela outra parte das recomendações do Órgão de Solução de Controvérsias. Como demandado, esgotadas as etapas de defesa, em caso de derrota, implementar os resultados.

A importância do sistema de solução de controvérsias da OMC para o Brasil está também relacionada com o crescimento da relevância do comércio exterior, tanto no que diz respeito ao crescimento das exportações e aumento de sua participação no PIB, quanto no que se refere à maior exposição da produção nacional às importações. Embora intensa, a atuação do Brasil no sistema de solução de controvérsias pode ser caracterizada como responsável. O acionamento do sistema como demandante foi, na quase totalidade dos casos, guiada pela existência de um problema comercial concreto e queixas específicas trazidas ao governo por algum setor. Em alguns casos, sobretudo quando da participação como terceira parte, esteve presente uma dimensão “sistêmica”, ou seja, preocupação com as consequências de possíveis interpretações que poderiam resultar da controvérsia e correspondente decisão de procurar participar da discussão. Não houve, porém, utilização do sistema como arma política, como forma de pressão bilateral com outros fins ou como “retaliação” a controvérsia aberta pela outra parte15.

15 Apenas no caso “Estados Unidos – Lei de Patentes dos EUA” (DS224) chegou-se perto da situação de retaliação a controvérsia iniciada por outro Membro (“Brasil – Medidas Referentes à Proteção Patentária” – DS199), mas os casos foram resolvidos por negociação, com a retirada das reclamações recíprocas.

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Essa última hipótese poderia parecer aplicar-se à controvérsia recíproca entre Brasil e Canadá sobre aeronaves, em que cada parte abriu controvérsia contra a outra sob a alegação de concessão de subsídios ilegais. Tratava-se, entretanto, de disputa comercial com interesses concretos e específicos que constituíam um conjunto interligado. Ao ser trazido para o sistema de solução de controvérsias da OMC por uma das partes, tornou-se necessário tratá-lo em todas as dimensões nesse contexto, o que gerou demandas de parte a parte16 que percorreram todo o ciclo do sistema.

Ao alcançar a fase de retaliação por falta de implementação de certos aspectos das recomendações aprovadas pelo Órgão de Apelação por ambas as partes, a controvérsia expôs a dificuldade de execução do remédio de última instância previsto pelo sistema. “Reequilibrar direitos e obrigações” por meio da retirada de concessões implica afetar o comércio, reduzi-lo, o que não só vai contra os objetivos do sistema multilateral de comércio, como fere interesses importadores estabelecidos no país que retira as concessões. Sendo o Brasil uma potência média no comércio internacional17 e a corrente de comércio com o Canadá relativamente pequena em comparação com outros parceiros comerciais, buscou-se, sem sucesso, a alternativa da negociação de compensações, ou seja, outorga de concessões adicionais em pagamento pelo descumprimento normativo. Sem abdicar de seus direitos de retaliação, o Brasil procurou, assim, uma solução que levasse a benefícios adicionais para ambas as partes.

16 Brasil como demandante nos casos DS 70, DS 71 e DS 222, Canadá como demandante no caso DS 46.

17 Em 2011, segundo a OMC, 22º exportador, com 1,4% das exportações mundiais, e 21º importador, com 1,28% das importações mundiais.

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O impasse terminou por ter desdobramentos em foro externo à OMC, com o convite ao Brasil para participar da revisão do Entendimento Setorial da OCDE sobre Créditos à Exportação para Aeronaves Civis. Nesse contexto, com participação ativa de Brasil e Canadá, o entendimento foi estendido para harmonizar as condições de competição financeira no comércio de aeronaves de médio porte, resolvendo alguns dos elementos principais das controvérsias levadas à OMC.

A atuação do Brasil em defesa de seus interesses comerciais não tem sofrido qualquer tipo de contenção em decorrência de eventual temor em ser demandado no sistema da OMC. Não há preocupação de que uma atuação muito ativa no marco do sistema pudesse atrair processos contra o país com o objetivo de baixar-lhe o perfil, o que, de resto, não se coaduna com as características normais do sistema, fortemente pragmático e centrado em casos em que o interesse comercial concreto é a motivação principal. Dessa forma, ainda que a participação no sistema não deixe nunca de ser um ato de política diplomática, e suas consequências tenham que ser medidas também a essa luz, os elementos principais levados em consideração na decisão de iniciar uma demanda têm sido a dimensão dos prejuízos comerciais e a avaliação do caso à luz das regras da OMC.

Por outro lado, a legislação brasileira guarda coerência com as regras multilaterais e o Acordo da OMC tem força de lei no ordenamento jurídico interno, o que reduz as vulnerabilidades no sistema de solução de controvérsias e se reflete no baixo número de controvérsias contra o Brasil que resultaram em necessidade de modificar de alguma forma a legislação (três medidas, questionadas em seis controvérsias18). Para manter

18 Aeronaves (DS 46), em que foi preciso modificar o PROEX, setor automotivo (DS51, 52, 65 e 81) e importação de pneus reformados (DS 332).

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esse quadro, é preciso que os formuladores de medidas com impacto na política comercial estejam conscientes das obrigações internacionais do Brasil.

Dos 26 casos iniciados como demandante pelo Brasil19, 11 referem-se a medidas de defesa comercial, que representam, igualmente, 4 dos 14 casos em que o Brasil participou como demandado. A proeminência dos casos de defesa comercial está em linha com a utilização geral do sistema, o que indica tanto que a defesa comercial se tornou o instrumento de proteção preferencial das administrações, quanto que o grau de discricionariedade permitido pelas regras nessa área é bastante amplo e as regras existentes não regulam com clareza a utilização dos instrumentos.

Nos 26 casos como demandante, o Brasil obteve ganho de causa total 12 vezes, parcial 2 vezes e o problema foi resolvido favoravelmente ao Brasil, sem que o processo alcançasse a fase de relatório do painel, em outros 8 casos. Apenas 4 casos iniciados foram descontinuados e em nenhum caso as teses do Brasil foram totalmente rejeitadas. Como demandado (14 casos), obteve-se ganho de causa total em 1 caso, parcial em 2 casos e o Brasil foi derrotado e teve que modificar substantivamente sua medida em 1 caso. Os 4 casos relativos a uma mesma medida no setor automotivo foram resolvidos por negociação de quotas de importação isentas da medida e 6 casos iniciados contra o Brasil não foram adiante e se restringiram à fase de consultas.

A capacidade de participação exitosa no sistema não é evidente para os países em desenvolvimento, tendo em vista os custos da participação, que envolve razoável mobilização de recursos humanos especializados e, em geral, contratação

19 Não incluindo o caso de bananas contra a UE, em que o Brasil participou como demandante de arbitragem ao amparo do waiver que regia as preferências concedidas pela UE aos países ACP.

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de auxílio externo à administração governamental como forma de complementar e refinar a análise factual, econômica e jurídica. Nesse sentido, o Itamaraty reestruturou-se no início da década de 2000 com a criação de unidade dedicada à participação no sistema de solução de controvérsias e ampliação do número de diplomatas envolvidos tanto na Secretaria de Estado quanto na Missão em Genebra. Ao mesmo tempo, não hesitou em recorrer a auxílio externo oferecido por setores afetados ou contratado com recursos próprios. Finalmente, tem procurado disseminar a temática e participar da formação de advogados e técnicos governamentais de diversos ministérios, consciente de que a posição do Brasil se reforça com um maior conhecimento das regras da OMC por aqueles que assessoram empresas na identificação e formulação de seus interesses e pelos responsáveis pela formulação e implementação da política comercial brasileira.

O Brasil tem ainda procurado desenvolver atividades de assistência técnica a outros países na área das disciplinas da OMC e da solução de controvérsias, com a realização de cursos e seminários com a participação de países latino-americanos e africanos.

6. pArA Além dos cAsos, o sistemA

O perfil ativo do Brasil no sistema trouxe, além dos ganhos comerciais concretos, elementos de prestígio que se traduzem em maior poder de barganha no contexto da OMC e em ganhos políticos importantes. O Brasil tornou-se respeitado por sua capacidade de acionar com sucesso o sistema de solução de controvérsias e, dessa forma, participar da conformação jurisprudencial do sistema multilateral de comércio. O Brasil passou assim a ser reconhecido como capaz de articular seus

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interesses e traduzi-los em formulações jurídicas, com impacto inegável sobre sua influência na negociação de novas regras. A capacidade de contestar medidas e práticas dos grandes parceiros comerciais, por outro lado, ressalta a independência e reforça a imagem do Brasil como ator internacional relevante.

Assim, o Brasil tem podido defender a integridade dos acordos da OMC e contribuído para a prevalência de um sistema internacional baseado em regras. Ao mesmo tempo, dispõe da capacidade de utilizar o desenvolvimento jurisprudencial da normativa como opção de ação. Os ganhos jurisprudenciais resultantes, por exemplo, da solução de controvérsias do algodão contra os EUA foram uma referência básica nas discussões sobre subsídios domésticos e sobre créditos à exportação no contexto das negociações agrícolas da Rodada Doha20.

Ainda que a retaliação seja um remédio amargo, é preciso estar preparado para utilizá-la e enfrentar todas as suas con-sequências políticas e econômicas, para que o sistema man-tenha sua credibilidade. No caso dos subsídios ao algodão, o descumprimento, por parte dos EUA, das recomendações do Órgão de Solução de Controvérsias por mais de quatro anos, sem indicação de movimento nessa direção, levou o Brasil a iniciar a adoção de medidas de retaliação. A alternativa seria admitir que as medidas ilegais à luz da normativa da OMC podem ser mantidas sem nenhum tipo de consequências negativas, o que terminaria por desestimular o recurso ao sistema de solução de controvérsias da Organização. Nesse caso, o Brasil mais uma vez esteve na vanguarda da utiliza-ção do sistema ao solicitar, e obter, autorização para aplicar a

20 Rodada de negociações comerciais multilaterais lançada em Doha, Qatar, em 2001, e ainda não concluída. Também denominada Agenda de Doha para o Desenvolvimento, seu mandato estabelece um lugar-chave para as negociações sobre subsídios à agricultura no conjunto da negociação.

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chamada retaliação cruzada, ou seja, retaliar um descumpri-mento numa área, no caso o comércio de bens, com medidas nas outras áreas cobertas pela OMC (serviços e propriedade intelectual). O Governo brasileiro chegou a formular as medi-das específicas a serem adotadas como retaliação e retaliação cruzada e aprovar parte delas para implementação. Setores potencialmente afetados nos EUA, como o dos exportadores de trigo e cosméticos, se mobilizaram em pressões sobre o Executivo e o Congresso norte-americano, enquanto a pers-pectiva de implementação da retaliação cruzada com afeta-ção de direitos na área de propriedade intelectual abriria um precedente altamente indesejável da perspectiva dos EUA. Da perspectiva do sistema, a aplicação da retaliação cruzada demonstraria a viabilidade da utilização de um mecanismo importante para os países de menor poder de retaliação comer-cial, contribuindo para o equilíbrio do sistema. Negociação de última hora terminou por suspender a retaliação por um período prolongado em troca de uma compensação simultânea que envol-veu pagamento monetário em favor de instituto criado em con-junto pelo governo e produtores de algodão brasileiros. A questão não está resolvida e a retaliação segue como possibilidade21.

7. pArA Além do entendimento soBre solução de controvérsiAs, que perspectivAs?

Em paralelo às negociações da Rodada Doha, ocorreram, de forma discreta, discussões sobre eventuais modificações do sistema de solução de controvérsias da OMC. A despeito da existência de algumas propostas que implicariam mudanças importantes no sistema, inclusive quanto a sua natureza, a

21 Ver artigo de Luciano Mazza sobre o contencioso do algodão na presente obra.

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maioria das propostas que parecia possuir capacidade de reunir consenso se limitava à codificação da prática atual em áreas não explicitamente definidas no atual Entendimento sobre Solução de Controvérsias. Assim, mesmo que o processo, por ora interrompido, fosse retomado, a curto e médio prazos as tendências decisivas para o futuro do sistema não serão definidas na mesa de negociações.

Com quase vinte anos de existência, o sistema de solução de controvérsias da OMC pode ser considerado um sucesso. Numerosos casos foram resolvidos sem a necessidade de alcançar a fase de painel, demonstrando que, apesar da maior jurisdicionalidade, o sistema não perdeu a capacidade de criar espaços de negociação. É claro que o êxito de tais negociações se deve em boa parte à percepção de que o sistema funciona e de que, portanto, diante de posição frágil à luz das disciplinas multilaterais, melhor corrigir a situação de forma controlada por meio da negociação do que sujeitar-se a recomendações cujo escopo e conteúdo podem ir além do esperado. Ao mesmo tempo, pressões sem base nas regras podem ser resistidas, confiando que o sistema não corroborará interesses das grandes potências comerciais desprovidos de apoio nas normas da OMC.

Os níveis de cumprimento das recomendações resultantes dos painéis e do Órgão de Apelação são em geral satisfatórios. Cerca de metade desses casos envolvem temas de implementa-ção administrativa, boa parte relacionada a temas de defesa co-mercial, enquanto a outra metade envolve temas que requerem ação legislativa, algumas de interesse direto para o Brasil, como o caso dos subsídios ao algodão. Mesmo no caso dos EUA, po-rém, deve-se notar que algumas modificações legislativas im-portantes, como as resultantes do caso do tratamento tributário para “Foreign Sales Corporations”, movido pelas Comunidades

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Europeias22, foram realizadas, ao passo que o país tem mantido a postura de aceitar os resultados dos procedimentos de solução de controvérsias e prometer sua implementação. Ao mesmo tempo, os EUA têm mantido o compromisso de não adotar sanções em decorrência de divergências comerciais sem autorização decor-rente do sistema de solução de controvérsias da OMC, respeitan-do uma das barganhas centrais da Rodada Uruguai.

Sendo os Estados Unidos o ator mais frequente nas contro-vérsias examinadas pela OMC, como demandante ou deman-dado23, a postura que adotem os EUA em relação ao sistema de solução de controvérsias do organismo a médio e longo prazos será determinante para a manutenção de sua credibilidade.

Interessante notar, entretanto, a diferença em relação à outra principal potência comercial, a União Europeia, que mantém o multilateralismo como elemento estrutural de seu discurso de política comercial e tem procurado dar implementação mais expedita às recomendações que lhe são desfavoráveis. Criação ela própria de um sistema de regras negociadas e gerente de um edifício normativo interestatal, a Comissão Europeia, e a União Europeia em geral, veem na prevalência do sistema multilateral de comércio uma fonte de sua legitimidade e o fortalecimento de sua capacidade de atuação. Ao mesmo tempo, por não dispor de coesão interna similar a um Estado, a União Europeia utiliza melhor seus fatores de poder num ambiente regulado por regras explícitas do que num cenário onde prevaleçam os elementos anárquicos do sistema internacional. Na União Europeia, o

22 Até 30 de novembro de 2009, a União Europeia era formalmente designada na OMC como Comunidades Europeias, em razão das atribuições legais inerentes à institucionalidade europeia anterior ao Tratado de Lisboa, que entrou em vigor em 1º de dezembro de 2009. Somente após essa data a União Europeia adquiriu personalidade jurídica internacional própria.

23 São 224 casos, 105 como demandante, 119 como demandado.

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sistema internacional e o papel que nele possam representar os países que a constituem são uma justificativa de sua própria existência.

Já os EUA, onde a legitimidade é fundamentalmente de base interna, as demandas locais podem contrapor-se com maior peso às obrigações negociadas internacionalmente, enquanto os fatores de poder disponíveis permitem, ao contrário da maioria dos países, que efetivamente se imponham. Isso ocorre mesmo quando o parceiro afetado é uma das outras grandes potências comerciais, a União Europeia ou a China. Em mais de um caso, mesmo com a aplicação de retaliação no marco do sistema de solução de controvérsias da OMC pelas Comunidades Europeias, manteve-se durante longo período a situação de descumprimento das recomendações aprovadas pelo Órgão de Solução de Controvérsias por parte dos Estados Unidos. No caso da chamada Emenda Byrd, por exemplo, as CE, o Canadá e o Japão aplicaram retaliação desde meados de 2005, sob a forma de elevação de níveis tarifários de produtos de interesse exportador dos EUA, sem que tenha havido implementação completa das recomendações aprovadas pelo Órgão de Solução de Controvérsias24.

Por mais que, na arquitetura do sistema de solução de controvérsias da OMC, a retaliação seja a garantia de última instância, na prática é a credibilidade que impulsiona seu bom funcionamento. Enquanto a retaliação é de difícil aplicação e age contra a expansão do comércio, quanto maior a credibilidade do sistema, mais difícil ignorá-lo e desrespeitá-lo.

24 Pela Emenda Byrd os recursos apurados na aplicação de direitos antidumping são transferidos ao setor doméstico alegadamente afetado. Após a implementação da retaliação o Congresso norte-americano aprovou modificação da legislação que, entretanto, manteve a prática para os casos em curso.

O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC: para além dos contenciosos, a política externa

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Um outro fator deverá ter grande impacto no desenvolvi-mento futuro do sistema de solução de controvérsias da OMC: a emergência da China como potência comercial. Uma maior participação no comércio mundial já leva naturalmente a um maior número de casos como demandante ou demandado, como o demonstra a constatação de que os Membros que participa-ram do maior número de controvérsias na OMC até hoje são os EUA25 e a UE26, constituindo também o par mais frequente27. No caso da China, outros fatores se agregam a esse elemento estrutural. Por um lado, a China ascendeu rapidamente à con-dição de potência comercial poucos anos após sua entrada na OMC, ainda sob o efeito de regras especiais negociadas para sua acessão. Ainda não se completou sua adaptação a todos os compromissos, ao passo que os prazos previstos no protocolo de acessão para exceções temporárias e tratamentos especiais vão vencendo. Por outro lado, o país possui um sistema eco-nômico que ainda preserva em muitas áreas as marcas de uma transição recente para disciplinas de economia de mercado, o que pode levar a conflitos com as normas da OMC. Ao mesmo tempo, a rapidez da emergência chinesa vem acirrando, nos par-ceiros comerciais, as pressões para levar a China ao sistema de solução de controvérsias a fim de combater práticas vistas como fonte de vantagens desleais em favor dos exportadores chineses ou como restrições indevidas aos bens e serviços destinados ao mercado chinês.

Com efeito, após uma trégua inicial nos primeiros anos da entrada na OMC, o número de casos envolvendo a China tem aumentado rapidamente. Até o momento, a China iniciou como

25 São 105 casos como demandante, 119 como demandado.26 São 88 casos como demandante, 74 como demandado. 27 São 51 casos, sendo 32 da UE contra os EUA e 19 no sentido inverso.

Carlos Márcio Cozendey

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demandante onze casos (oito contra os EUA e três contra a UE), enquanto foi demandada em trinta e um, sendo três contro-vérsias abertas em 2006 por CE, EUA e Canadá sobre o mesmo tema (autopeças), quatro em 2007 (duas sobre as mesmas me-didas), cinco em 2008 (três sobre medidas que afetam fornece-dores de serviços de informações financeiras), quatro em 2009 (três sobre restrições à exportação de matérias-primas), quatro em 2010 (2 deles sobre medidas antidumping, 1 sobre o GATS e o outro sobre medida de proteção para a produção de ener-gia eólica), duas em 2011 (sobre medidas antidumping), sete em 2012 (com destaque para 3 sobre restrições à exportação de matérias-primas, alegadamente contrariando compromissos específicos do protocolo de acessão) e 1 em 2013 (sobre me-dida antidumping). Os EUA iniciaram quinze dos trinta e um casos. Como se vê, um painel amplo, que mescla questionamen-tos em diversas áreas, alguns deles referentes a compromissos do protocolo de acessão que buscavam modificar políticas tra-dicionalmente utilizadas pela China para o desenvolvimento de suas indústrias. Objeto de um número crescente de demandas, o comportamento da China em sua atuação nos procedimentos e quanto a sua postura frente ao cumprimento de resultados eventualmente desfavoráveis, terá importante impacto sobre o funcionamento e credibilidade do sistema. Nesse contexto, em atuação estratégica, a China logrou ao fim de 2007 ver aprovada a nomeação de um nacional para o Órgão de Apelação.

O reverso da medalha é que o sistema de solução de controvérsias da OMC pode ser um importante amortecedor para as tensões criadas pela rápida expansão comercial chinesa e para os embates quase inevitáveis entre EUA, UE e China. Ele tenderia a manter e ampliar, portanto, seu papel central no funcionamento do sistema multilateral de comércio.

O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC: para além dos contenciosos, a política externa

395

8. em Breve conclusão

O sistema de solução de controvérsias da OMC tem conseguido em linhas gerais cumprir sua função, dentro das limitações inerentes a um sistema internacional de Estados soberanos. A ultima ratio das retaliações, sobre a qual repousa o sistema, é suplantada na prática pelo valor da credibilidade e legitimidade de que goza. Há um movimento de alimentação mútua entre o sistema de solução de controvérsias da OMC e a relevância da própria Organização. Nesse sentido, a paralisação da Rodada Doha de negociações lança uma grande interrogação sobre a capacidade do sistema de continuar a funcionar sem fricções, amparado pelo respeito à autoridade da OMC. Diante da permanência do impasse nas negociações, muitos analistas consideram que a OMC pode perder a capacidade de seguir atualizando seu patrimônio normativo e recolher-se ao papel de tribunal do comércio mundial. Mas tampouco esse é um papel assegurado. Os regimes internacionais funcionam mais por aceitação mútua do que por imposição. Se, diante de uma perda de credibilidade da OMC, o sistema tiver que se amparar com maior frequência na aplicação de retaliações, o conjunto das regras multilaterais deixaria de funcionar com regularidade.

Com um comércio exterior bem distribuído entre as diferentes regiões geográficas, a manutenção de um centro fortalecido em face da explosão de acordos preferenciais é crucial para o Brasil. A preservação de um núcleo comercial multilateral operativo, ainda que numa conformação inevitavelmente multipreferencial, é um interesse teórico, mas uma necessidade decorrente da estrutura da economia brasileira e de sua inserção internacional. Nesse contexto, o sistema de solução de controvérsias da OMC é estratégico para a política comercial brasileira. O Brasil tem conseguido, por meio da mobilização

Carlos Márcio Cozendey

396

de recursos humanos e materiais, da articulação com o setor privado, do treinamento de advogados e técnicos de órgãos governamentais e de outras iniciativas, assegurar utilização desimpedida e participação sempre eficiente no sistema de solução de controvérsias da OMC.

Ademais da importância sistêmica, porém, a solução de controvérsias na OMC é sempre uma questão comercial que envolve interesses concretos, com impactos na balança comercial e de serviços ou em políticas desenvolvidas pelo país. É, portanto, necessária uma preparação atenta dos casos de que o Brasil participa e, no momento da negociação de novas disciplinas, o exame das soluções propostas e das ambiguidades às vezes necessárias para gerar consensos sob a perspectiva de uma potencial solução de controvérsias futura. Há pouco e cada vez menos espaço na diplomacia comercial para declarações genéricas de intenções e imprecisão de compromissos.

A crise econômica global que se arrasta desde 2008 e as mudanças estruturais da economia global têm colocado novos desafios à política comercial brasileira, que não cabe analisar neste artigo. Mas vale lembrar que o ambiente de medidas inusitadas de política econômica adotadas para combater a crise, tem trazido tensões à política econômica em geral, e à política comercial em particular. Nesse quadro, o patrimônio acumulado pelo Brasil no sistema de solução de controvérsias é um trunfo que cabe preservar.

397

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Per-nambuco (2003) e Mestre em Diplomacia, na área de concentra-ção de Direito Internacional, pelo Instituto Rio Branco (2012). Foi Procurador do Estado de Pernambuco de janeiro de 2005 a agosto de 2009, atuando na área de contenciosos cíveis. Desde agosto de 2009, é diplomata do Ministério das Relações Exte-riores. Atuou na Coordenação-Geral de Contenciosos, unidade responsável pela condução da participação do Brasil nos con-tenciosos da Organização Mundial do Comércio (OMC), entre 2010 e 2013 e, atualmente, é assessor na Secretaria-Geral das Relações Exteriores.

o Artigo xx do gAtt 1994 e A persecução de

oBjetivos não comerciAis pelos memBros dA omc:

um equilíBrio dinâmico

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

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1. introdução: pArA Além dA liBerAlizAção do comércio

Quando se pensa no papel da Organização Mundial do Comércio (OMC) enquanto instituição, a primeira ideia que vem à mente é a promoção da liberalização

do comércio de bens e de serviços entre seus Membros. Essa impressão, em princípio, é correta: a OMC serve, efetivamente, como o foro multilateral por excelência para as negociações, para o monitoramento e para a solução de controvérsias em matéria de acesso a mercados para bens e serviços comercializados entre seus Membros.

No entanto, o primeiro parágrafo do preâmbulo do Acordo Estabelecendo a Organização Mundial do Comércio (Brasil, 1994), conhecido como o Acordo da OMC, que funciona como acordo “guarda-chuva” para toda a estrutura jurídica da OMC, indica que há mais na disciplina multilateral do comércio do que sugere uma primeira análise. Ao menos no plano conceitual, a busca do objetivo de liberalização comercial na OMC não deve ser considerada como um fim em si mesmo, mas, sim, como um meio para a consecução de objetivos de pleno emprego e de desenvolvimento sustentável, entre outros:

The Parties to this Agreement,

Recognizing that their relations in the field of trade and

economic endeavour should be conducted with a view to

raising standards of living, ensuring full employment

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

400

and a large and steadily growing volume of real income

and effective demand, and expanding the production of

and trade in goods and services, while allowing for the

optimal use of the world’s resources in accordance with

the objective of sustainable development, seeking both

to protect and preserve the environment and to enhance

the means for doing so in a manner consistent with

their respective needs and concerns at different levels of

economic development. (Brasil, 1994).

O reconhecimento de tantos objetivos distintos pro-duz inegáveis impactos sobre a interpretação dos Acordos Abrangidos (Covered Agreements) da OMC. Como reconheci-do pelo Órgão de Apelação (OA) em casos como EC – Tariff Preferences (WTO, 2004, § 95), o preâmbulo do Acordo da OMC é um instrumento fundamental para a interpretação das obrigações contidas nos Acordos Abrangidos da Organização. No caso China – Raw Materials, por exemplo, o OA afirmou expressamente que “based on this language [of the Preamble], we understand the WTO Agreement, as a whole, to reflect the balance struck by WTO Members between trade and non-tra-de-related concerns” (WTO, 2012, § 306).

Desse modo, ao interpretar obrigações como a não discriminação entre países (princípio da Nação Mais Favorecida), o tratamento nacional e a proibição de restrições quantitativas, todas constantes do Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas (GATT 19941), por exemplo, é preciso ter em conta a

1 Nos termos do seu Artigo 1, o GATT 1994 corresponde ao GATT 1947, conforme retificado, emendado ou modificado pelos termos dos instrumentos legais que tenham entrado de vigor antes da data de entrada em vigor do Acordo da OMC, acrescido: (i) dos protocolos e certificados relativos a concessões tarifarias, (ii) dos protocolos de acessão; (iii) das decisões sobre derrogações concedidas sob o Artigo XXVIII do GATT 1947 e ainda em vigor na data de entrada em vigor do Acordo da OMC; (iv) de outras decisões das PARTES CONTRATANTES do GATT 1947; (v) dos entendimentos aprovados durante a vigência do GATT 1947 (Entendimento

O Artigo XX do GATT 1994 e a persecução de objetivos não comerciais pelos Membros da OMC: um equilíbrio dinâmico

401

multiplicidade de objetivos que os Membros pretendem alcançar por meio do livre-comércio.

2. oBjetivos comerciAis e não comerciAis: o equilíBrio por meio dA exceção

É inegável, entretanto, que a persecução de todos os objetivos elencados no preâmbulo acima colacionado pode levar a situações de conflito entre prioridades: no caso de uma medida de caráter ambiental que tenha impacto sobre o comércio de bens, o que deve prevalecer? A preservação do meio ambiente? Ou a liberalização comercial?

Sobre o tema, Debra P. Steger, uma das primeiras autoras a analisar sistematicamente a relação entre o comércio internacional e políticas públicas não comerciais, recorda que a preocupação com o equilíbrio entre esses objetivos estava presente entre os negociadores desde a redação do GATT 1947:

[…] Clearly, the original negotiators of the GATT in

the postwar period were acutely aware of the need to

balance the competing objectives of freer trade and

other important public policies. As some of the authors

in this collection have noted, indeed, the subjects

covered in the draft Charter of the International Trade

Organization were more extensive than those in the

GATT, which finally resulted from those negotiations,

sobre a interpretação do Artigo II 1(b) do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994; Entendimento sobre a interpretação do Artigo XVII do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994; Entendimento sobre as disposições sobre Balanço de Pagamentos do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio; Entendimento sobre a interpretação do Artigo XXIV do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994; Entendimento a Respeito de Derrogações de Obrigações sob o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994; Entendimento sobre a interpretação do Artigo XXVIII do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994); e (vi) do Protocolo de Marraqueche ao GATT 1994. O Art. II.4 do Acordo da OMC esclarece ainda que o GATT 1994 é juridicamente distinto do GATT 1947.

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

402

and included areas such as labor rights and restrictive

business practices. The negotiators in the late 1940s

were obviously thinking of a wide range of economic

policies that they believed were intrinsically linked to

trade. Despite what the negotiators had discussed and

drafted, the political result was a pared-back GATT

with its commitments to bind and reduce tariffs, the

core principles of most-favored-nation (MFN) and

national treatment, and other obligations intended to

prevent contracting parties from reneging on their tariff

bindings2.

A autora conclui em seguida que o resultado final da busca desse equilíbrio no GATT 1947 foi obtido por meio das exceções às obrigações contidas no acordo, sobretudo nas exceções gerais inscritas no Art. XX:

A critical part of that early bargain, and one that has

stood the test of time, was the general exceptions set out

in Article XX of the GATT 19473.

Nesse mesmo sentido, Lindroos e Mehling concluem que a OMC, ao dirimir contenciosos comerciais no âmbito de seu Sistema de Solução de Controvérsias (SSC), tem admitido até mesmo a validade de normas externas ao sistema multilateral de comércio que busquem objetivos para além da abertura comercial, mas sempre pela via de exceção às obrigações dos Acordos Abrangidos (2008, p. 265).

Por essas razões, o Art. XX do GATT 1994, ao disciplinar as exceções gerais à disciplina sobre o comércio de bens e ao estabelecer em que circunstâncias, e sob que condições, um

2 STEGER Debra, 2002, p. 141.3 Idem, p. 141

O Artigo XX do GATT 1994 e a persecução de objetivos não comerciais pelos Membros da OMC: um equilíbrio dinâmico

403

Membro pode adotar medidas incompatíveis com as obrigações inseridas no próprio acordo, surge como ponto de partida indispensável para a análise do espaço normativo concedido à consecução de objetivos não comerciais pelos Membros da OMC. A análise desse dispositivo também se demonstra relevante pelo fato das demais exceções gerais previstas em outros Acordos Abrangidos, como no caso do Art. XIV do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS), terem sido elaboradas à sua imagem e semelhança.

No caso do Art. XX do GATT 1994, as circunstâncias, ou hipóteses de exceção, são representadas pelas alíneas do dispositivo, ao passo que as condições são estipuladas em seu caput, que dispõe:

Subject to the requirement that such measures are not

applied in a manner which would constitute a means

of arbitrary or unjustifiable discrimination between

countries where the same conditions prevail, or a

disguised restriction on international trade, nothing

in this Agreement shall be construed to prevent the

adoption or enforcement by any contracting party of

measures.

Como mencionado, as hipóteses em que a disciplina do GATT 1994 poderia ser afastada, atendidas as condições do caput, estão determinadas de modo taxativo nas alíneas (a) a (j), que vão desde medidas necessárias à proteção da moralidade pública até medidas essenciais para a aquisição ou distribuição de produtos sujeitos a uma deficiência de oferta geral ou local. Dentre as dez hipóteses elencadas, têm sido de particular importância para a formação de jurisprudência da OMC: a alínea (b), que trata de medidas necessárias à proteção

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

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da vida e da saúde humana, animal e vegetal; e a alínea (g), que trata de medidas relativas à conservação de recursos naturais exauríveis.

A ideia principal que permeia todos os Acordos Abrangidos da OMC é a de que os Membros, ao aderirem ao sistema multilateral de comércio, negociam entre si compensações mutuamente vantajosas. Ao abrir seu mercado doméstico aos demais Membros, um país obtém em retorno concessões equivalentes, de modo que haja um equilíbrio entre as obrigações assumidas e as vantagens obtidas.

Desse modo, nota-se que as exceções às obrigações assumidas pelos Membros da OMC constituem assunto de alta sensibilidade: se, por um lado, a adesão aos acordos da Organização não significa uma completa renúncia à liberdade de adotar políticas não comerciais, como explicitado pelo preâmbulo do Acordo da OMC, permitir o uso indiscriminado ou abusivo dessas exceções poderia levar ao desequilíbrio entre os direitos e as obrigações assumidas pelos Membros.

Ciente desse delicado dilema, a jurisprudência da OMC, desde os primeiros casos julgados pelo Órgão de Apelação (OA) de seu SSC, buscou disciplinar o uso das exceções gerais do Art. XX do GATT 1994, em consonância com a necessidade de manutenção do equilíbrio entre a liberdade para adoção de políticas de natureza não comerciais mantida pelos Membros e as obrigações assumidas em termos de liberalização comercial e de acesso a mercados.

Uma primeira restrição ao espaço para políticas não comerciais que sejam, em princípio, incompatíveis com as obrigações do GATT 1994, está relacionada com a própria natureza do Art. XX enquanto cláusula de exceção. Estabeleceu--se na jurisprudência, desde a prática do GATT 1947, que, ao

O Artigo XX do GATT 1994 e a persecução de objetivos não comerciais pelos Membros da OMC: um equilíbrio dinâmico

405

invocar cláusulas de exceção como o Art. XX em defesa de uma determinada medida no contexto de um contencioso, o Membro questionado atrairia para si o ônus de provar que essa medida se enquadraria nas hipóteses e cumpriria as condições exigidas pelo citado dispositivo.

Sobre o tema, assim se pronunciou o OA no caso “US – Wool Shirts and Blouses”:

India has argued that it is “customary GATT practice”

that the party invoking a provision which is identified as

an exception must offer proof that the conditions set out

in that provision are met. We acknowledge that several

GATT 1947 and WTO panels have required such proof of

a party invoking a defence, such as those found in Article

XX21 or Article XI:2(c)(i), to a claim of violation of a GATT

obligation, such as those found in Articles I:1, II:1, III or

XI:1. Articles XX and XI:(2)(c)(i) are limited exceptions

from obligations under certain other provisions of the

GATT 1994, not positive rules establishing obligations

in themselves. They are in the nature of affirmative

defences. It is only reasonable that the burden of

establishing such a defence should rest on the party

asserting it4. (grifos acrescidos).

Isso significa que, caso o Membro demandado que invoca o Art. XX não consiga apresentar provas que convençam o painel ou o OA de que sua medida efetivamente se adapta às exigências do dispositivo, sua defesa não prevalecerá, ao passo em que, quanto às alegações de violação da disciplina do GATT 1994, cabe ao demandante produzir a prova necessária ao convencimento dos julgadores.

4 Relatório do OA para 46.

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

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Tendo em vista a usual e crescente complexidade das questões submetidas à análise em contenciosos dirimidos perante o SSC da OMC, essa inversão do ônus da prova já significa per se uma restrição ao uso das exceções para justificar medidas incompatíveis com as obrigações do GATT 1994. E esse é apenas o primeiro dos obstáculos que o Membro que invoca o Art. XX do GATT em defesa de suas medidas tem que enfrentar.

3. os “testes” contidos no Art. xx do gAtt 1994 e A exigênciA de políticAs não comerciAis “genuínAs”

A jurisprudência do SSC da OMC, sobretudo de seu OA, estabelecida e desenvolvida caso após caso, findou por criar um parâmetro bem definido – e de alta complexidade – para a análise de medidas supostamente adotadas sob as exceções previstas no Art. XX do GATT 1994. Definiu-se, por exemplo, que essa análise é, em sua essência, um teste em duas etapas (“a two-tiered test”): primeiramente, é necessário comprovar que a medida questionada se ajuste a uma das hipóteses previstas nas alíneas do Art. XX; só em caso positivo é que se avança para a segunda etapa, na qual a medida “provisoriamente justificada” (provisionally justified) sob uma das alíneas será avaliada à luz do caput do dispositivo5. Posteriormente, esse entendimento foi confirmado em vários casos julgados pelo OA, como “US –

5 Ver, nesse sentido, a decisão no OA no caso US – Gasoline: “Having concluded, in the preceding section, that the baseline establishment rules of the Gasoline Rule fall within the terms of Article XX(g), we come to the question of whether those rules also meet the requirements of the chapeau of Article XX. In order that the justifying protection of Article XX may be extended to it, the measure at issue must not only come under one or another of the particular exceptions – paragraphs (a) to (j) – listed under Article XX; it must also satisfy the requirements imposed by the opening clauses of Article XX. The analysis is, in other words, two-tiered: first, provisional justification by reason of characterization of the measure under XX(g); second, further appraisal of the same measure under the introductory clauses of Article XX”. (Relatório do OA § 58) (grifos acrescidos).

O Artigo XX do GATT 1994 e a persecução de objetivos não comerciais pelos Membros da OMC: um equilíbrio dinâmico

407

Shrimp” (WTO, 1998, §§ 118-120), “Brazil – Retreaded Tyres” (WTO, 2007, § 139) e “China – Raw Materials” (WTO, 2012, § 354).

Iniciando a análise das alíneas do Art. XX do GATT 1994, surge uma questão preliminar: tendo em vista que algumas de referem a medidas “necessárias à” (“necessary to”) consecução de algum objetivo não comercial, como é o caso das alíneas (a), (b) e (d), ao passo que outras fazem menção a medidas “relativas à” (“relating to”) consecução dessa espécie de objetivos, como no caso das alíneas (c), (e) e (g), seria correto interpretar sob um mesmo parâmetro essas diferentes hipóteses de exceção?

Essa questão obteve resposta logo no primeiro caso apreciado pelo OA, “US – Gasoline”. Ao utilizar-se dos princípios de interpretação inseridos na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (Brasil, 2009), em especial em seus Arts. 31 a 32, o OA que entendeu existir um parâmetro de análise próprio para cada uma das expressões introdutórias nas alíneas do Art. XX do GATT 1994, definidos à luz do grau de conexão entre a medida em análise e do objetivo ou da política estatal almejado com a medida:

It does not seem reasonable to suppose that the WTO

Members intended to require, in respect of each and

every category, the same kind or degree of connection

or relationship between the measure under appraisal

and the state interest or policy sought to be promoted

or realized.6

Assim, consolidou-se o entendimento de que, para cada exigência formulada nas alíneas do Art. XX do GATT 1994, um parâmetro interpretativo próprio deveria ser estabelecido. Nesse

6 Relatório do OA § 45.

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

408

sentido, a expressão “relating to”, constante da alínea (g) do Art. XX, por exemplo, restou entendida como uma exigência de que a medida esteja “primordialmente voltada para” (“primarilly aimed at”) a consecução do objetivo não comercial, condição que acarreta a necessidade de se demonstrar a existência de uma “relação genuína” (“genuine relationship”) entre a medida ou a política adotada e os objetivos não comerciais almejados.

Os requisitos para a adequação de uma medida ao requisito “relating to” da alínea (g) do Art. XX do GATT 1994 foram objeto de interessante resumo no relatório do painel do caso China – Raw Materials:

The Appellate Body in US – Gasoline ruled that a

measure was ‘relate[d] to’ conservation if there was a

substantial relationship between the export measures

and conservation, and “that a measure must be ‘primarily

aimed at’ the conservation of exhaustible natural resources

in order to fall within the scope of Article XX(g)”. It further

added that a measure that is ‘merely incidentally or

inadvertently’ aimed at conservation cannot meet the

requirement of ‘relating to’ in Article XX(g). It noted

that the phrase ‘primarily aimed at’ was ‘not designed as

a simple litmus test for inclusion or exclusion from Article

XX(g)’. In US – Shrimp, the Appellate Body accepted that

sub-paragraph (g) referred to measures ‘primarily aimed

at’ conservation; it also described this relationship as ‘a

close and genuine relationship of ends and means’ that

requires an examination of the relationship between

the general structure and design of a measure and the

policy goal it purports to serve7 (grifos acrescidos).

7 Relatório do painel § 7.370.

O Artigo XX do GATT 1994 e a persecução de objetivos não comerciais pelos Membros da OMC: um equilíbrio dinâmico

409

Já a expressão “necessary to”, contida, por exemplo, na alínea (b) do Art. XX do GATT 1994, foi interpretada como significando a resultante da análise de três fatores: (i) a importância relativa do objetivo não comercial da medida em relação à restrição causada ao comércio de bens; (ii) a contribuição efetivamente proporcionada pela medida para a consecução do objetivo não comercial almejado; e (iii) a existência de medidas alternativas menos restritivas ao comércio que poderiam proporcionar contribuição equivalente à consecução do objetivo não comercial almejado8.

Note-se que, também em relação à alínea (b) do Art. XX do GATT, a jurisprudência do OA evoluiu no sentido de exigir uma relação genuína entre a medida adotada e os objetivos não comerciais almejados com a sua adoção:

At this stage, it may be useful to recapitulate our views on

the issue of whether the Import Ban is necessary within

the meaning of Article XX(b) of the GATT 1994. This

issue illustrates the tensions that may exist between,

on the one hand, international trade and, on the other

hand, public health and environmental concerns arising

from the handling of waste generated by a product at the

end of its useful life. In this respect, the fundamental

principle is the right that WTO Members have to

determine the level of protection that they consider

8 Ver, nesse sentido, o seguinte trecho do relatório do OA no caso Brazil – Retreaded Tyres: “We begin our analysis by recalling that, in order to determine whether a measure is ‘necessary’ within the meaning of Article XX(b) of the GATT 1994, a panel must consider the relevant factors, particularly the importance of the interests or values at stake, the extent of the contribution to the achievement of the measure’s objective, and its trade restrictiveness. If this analysis yields a preliminary conclusion that the measure is necessary, this result must be confirmed by comparing the measure with possible alternatives, which may be less trade restrictive while providing an equivalent contribution to the achievement of the objective. This comparison should be carried out in the light of the importance of the interests or values at stake. It is through this process that a panel determines whether a measure is necessary”. Relatório do OA § 178.

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

410

appropriate in a given context. Another key element of

the analysis of the necessity of a measure under Article

XX(b) is the contribution it brings to the achievement

of its objective. A contribution exists when there is a

genuine relationship of ends and means between the

objective pursued and the measure at issue9. (grifos

acrescidos)

Por fim, caso a medida consiga superar os requisitos para adequação a uma das alíneas do Art. XX do GATT 1994, a análise avançará para a segunda etapa do teste, na qual o Membro demandado terá que demonstrar a compatibilidade da medida com as condições constantes do caput do citado dispositivo, que exigem que a medida não seja aplicada de modo a: (i) causar uma discriminação injustificada ou arbitrária entre países nos quais as mesmas condições prevaleçam; ou (ii) constituir uma “restrição disfarçada” (“disguised restriction”) ao comércio internacional. Nos termos descritos pelo OA no caso Brazil – Retreaded Tyres, a função do caput do Art. XX é, em essência, a de impedir abuso ou má-fé na utilização das exceções gerais à disciplina do GATT 1994:

Through these requirements, the chapeau serves to

ensure that Members’ rights to avail themselves of

exceptions are exercised in good faith to protect interests

considered legitimate under Article XX, not as a means

to circumvent one Member’s obligations towards other

WTO Members. (WTO, 2007, § 215).

Diante de tantos requisitos, não é de se estranhar que, de todos os casos em que o Art. XX foi invocado como justificativa para uma violação a obrigações do GATT 1994, em apenas um

9 Relatório do OA (…), WTO, 2007, § 210.

O Artigo XX do GATT 1994 e a persecução de objetivos não comerciais pelos Membros da OMC: um equilíbrio dinâmico

411

contencioso dirimido no âmbito do SSC da OMC (EC – Asbestos) o Membro demandado (no caso, a União Europeia) tenha conseguido comprovar a adequação da medida questionada com todas as condições exigidas pelo dispositivo de exceção (tanto as de uma das alíneas quanto as do caput).

Ao fim, o que a análise da jurisprudência sobre os requisitos para adequação de uma medida ao Art. XX do GATT 1994 revela é uma clara preocupação em preservar o equilíbrio entre as obrigações assumidas pelos Membros e sua liberdade para adotar políticas com objetivos não comerciais. O exame dos contenciosos sobre o tema julgados no âmbito do SSC da OMC comprova que apenas políticas não comerciais efetivamente coerentes com seus objetivos e executadas de modo não discriminatório e não arbitrário são capazes de ser justificadas sob as exceções do Art. XX do GATT 1994, tarefa que se tem demonstrado insuperável para medidas protecionistas “disfarçadas” de políticas ambientais ou de proteção à saúde, por exemplo.

Assim, é correto afirmar que as necessárias garantias contra medidas não comerciais de natureza protecionista estão inseridas no próprio texto do Art. XX do GATT 1994, em linha com o objetivo de liberalização comercial inerente à OMC. Mas isso significaria que, na prática, o sistema multilateral de comércio não confere espaço adequado para a persecução de objetivos não comerciais pelos seus Membros?

4. conclusão: A construção de um equilíBrio dinâmico

Apesar da existência de críticas quanto a pouca permeabi-lidade da OMC a preocupações e objetivos não comerciais em

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

412

parte da imprensa especializada e no meio acadêmico10, é im-portante ressaltar que essa visão advém sobretudo da análise do resultado de contenciosos dirimidos no SSC da Organização. É preciso ter presente, no entanto, que os casos que são levados a julgamento perante painéis ou o OA são, em verdade, aqueles mais controversos, nos quais há uma aparência mais evidente de violação da disciplina multilateral de comércio. Se uma ques-tão comercial entre dois Membros da OMC chega até a fase de contencioso, é porque efetivamente se está diante de um caso complexo e/ou politicamente sensível.

Em casos menos complexos ou menos sensíveis do ponto de vista político, as partes, em regra, conseguem chegar a um consenso e solucionar a questão sem levar o assunto a um painel ou ao OA, fazendo uso, em suas negociações, da disciplina inserida nos próprios Acordos Abrangidos. Logo, o resultado dos casos julgados no SSC da OMC não consegue captar inteiramente o grau de abertura a políticas não comerciais existente na OMC.

Vale notar que, mesmo no âmbito dos contenciosos apreciados por painéis e pelo OA, há uma clara e expressa preocupação em assegurar o espaço para a persecução de objetivos para além da liberalização do comércio internacional pelos Membros da OMC. Sobre o tema, é interessante a leitura da parte final do relatório do OA no caso “US – Shrimp”, no qual há uma digressão que tenta esclarecer o alcance de suas

10 Ver, por exemplo, o seguinte trecho do artigo Global Governance and the WTO, de Andrew T. Guzman: “The impact of the trading regime is also felt in areas that are not subject to any specific WTO regulation. For example, environmental policy, human rights, labor, and competition policy are not directly within the jurisdiction of the WTO, but in each of these areas trade and the trading system have influenced policymaking. The influence of WTO obligations on non-trade issues has generated cries of protest from many quarters. Critics argue that the WTO remains a trade institution at heart, and that its forays into what were traditionally considered non-trade areas have caused the non-trade values at stake to be ignored in favor of trade concerns. Thus, the argument goes, the tremendous power of the organization, combined with its efforts to influence policies in non-trade areas, has elevated trade at the expense of other issues.” (Guzman, 2004, p. 304).

O Artigo XX do GATT 1994 e a persecução de objetivos não comerciais pelos Membros da OMC: um equilíbrio dinâmico

413

conclusões em relação à liberdade dos Membros da OMC para adotar políticas com objetivos não comerciais:

In reaching these conclusions, we wish to underscore

what we have not decided in this appeal. We have not

decided that the protection and preservation of the

environment is of no significance to the Members of

the WTO. Clearly, it is. We have not decided that the

sovereign nations that are Members of the WTO cannot

adopt effective measures to protect endangered species,

such as sea turtles. Clearly, they can and should. And

we have not decided that sovereign states should not

act together bilaterally, plurilaterally or multilaterally,

either within the WTO or in other international fora, to

protect endangered species or to otherwise protect the

environment. Clearly, they should and do11. (sublinhados

mantidos)

Essa preocupação em garantir o exato e legítimo espaço para execução de políticas não comerciais pelos Membros da OMC, ressalte-se, remonta ao caso “US – Gasoline”, o primeiro a ser apreciado por um painel e pelo OA após o estabelecimento do SSC da Organização. Naquele contencioso, as questões envolvidas na demanda proporcionaram ao OA uma oportunidade de julgar a medida de equilíbrio entre a persecução de objetivos ambientais e as obrigações de liberalização comercial.

Nesse sentido, merece especial destaque a passagem do relatório em que o OA destaca que, ao rejeitar a tese dos EUA de que as medidas questionadas no caso eram necessárias à preservação do “ar puro”, a sua decisão não significava que os países-membros da OMC não teriam autonomia para adotar

11 Relatório do OA, §185.

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

414

medidas de controle da poluição do ar ou de proteção ao meio ambiente, uma vez que o Art. XX do GATT 1994 contém cláusulas que permitem a defesa de importantes interesses estatais, dentre os quais está a proteção da saúde humana, assim como a conservação de recursos naturais exauríveis:

It is of some importance that the Appellate Body point

out what this does not mean. It does not mean, or imply,

that the ability of any WTO Member to take measures

to control air pollution or, more generally, to protect the

environment, is at issue. That would be to ignore the

fact that Article XX of the General Agreement contains

provisions designed to permit important state interests

– including the protection of human health, as well as

the conservation of exhaustible natural resources – to

find expression. The provisions of Article XX were not

changed as a result of the Uruguay Round of Multilateral

Trade Negotiations. Indeed, in the preamble to the

WTO Agreement and in the Decision on Trade and

Environment, there is specific acknowledgement to be

found about the importance of coordinating policies

on trade and the environment. WTO Members have

a large measure of autonomy to determine their

own policies on the environment (including its

relationship with trade), their environmental

objectives and the environmental legislation they

enact and implement. So far as concerns the WTO,

that autonomy is circumscribed only by the need to

respect the requirements of the General Agreement

and the other covered agreements12. (grifos acrescidos,

nota de rodapé omitida)

12 Relatório do OA, § 78.

O Artigo XX do GATT 1994 e a persecução de objetivos não comerciais pelos Membros da OMC: um equilíbrio dinâmico

415

Da análise do trecho acima destacado, percebe-se a construção jurisprudencial de um parâmetro concreto de equilíbrio entre o espaço para adoção de políticas não comerciais e a necessidade de preservar as obrigações de liberalização comercial assumidas pelos Membros da OMC: a medida de autonomia para a busca de objetivos não comerciais é dada pela própria disciplina das exceções do Art. XX do GATT 1994 e dos dispositivos de mesma natureza constantes dos demais Acordos Abrangidos. Trata-se, assim, de uma autonomia limitada, mas, ao mesmo tempo garantida pela própria disciplina multilateral de comércio.

Ademais, a construção do significado dos requisitos do Art. XX do GATT 1994 pelo OA evidencia que o sistema multilateral de comércio não adota balizas fixas ou rígidas sobre o limite da autonomia dos Membros para objetivos não comerciais. Ao avaliar fatores como a importância relativa do objetivo perseguido, a contribuição efetiva da medida para a consecução desse objetivo e a existência de medidas alternativas menos restritivas ao comércio, a jurisprudência da OMC demonstra que a medida exata para equilibrar objetivos não comerciais e comerciais no sistema multilateral de comércio deve ser delimitada caso a caso, dependendo das circunstâncias específicas que envolvem a política não comercial em questão, seus impactos sobre o comércio internacional e o seu modo de execução. Sobre a natureza desse equilíbrio, é paradigmática a seguinte passagem do OA no caso “US – Shrimp”:

The task of interpreting and applying the chapeau

is, hence, essentially the delicate one of locating and

marking out a line of equilibrium between the right of a

Member to invoke an exception under Article XX and the

rights of the other Members under varying substantive

Fernando Antônio Wanderley Cavalcanti Jr.

416

provisions (e.g., Article XI) of the GATT 1994, so that

neither of the competing rights will cancel out the other

and thereby distort and nullify or impair the balance

of rights and obligations constructed by the Members

themselves in that Agreement. The location of the line

of equilibrium, as expressed in the chapeau, is not

fixed and unchanging; the line moves as the kind

and the shape of the measures at stake vary and as

the facts making up specific cases differ13. (grifos

acrescidos).

Com base nessas considerações, é possível concluir pela existência de um equilíbrio dinâmico entre objetivos não comerciais e comerciais na OMC, operado por meio das condicionantes inseridas nos dispositivos de exceção dos Acordos Abrangidos, e em consonância como a jurisprudência acumulada pelos painéis e pelo OA ao longo dos diversos contenciosos dirimidos no SSC da Organização.

O exemplo mais eloquente desse equilíbrio dinâmico pode ser encontrado justamente na construção jurisprudencial em torno do Art. XX do GATT 1994, dispositivo fundamental na estrutura do sistema multilateral de comércio.

13 Relatório do AO, § 159.

417

Bacharel em Direito pela USP e diplomata desde 2007. Foi Assistente da Divisão de Acesso a Mercados (DACESS) do Ministério das Relações Exteriores entre 2009 e 2011. Atualmente, serve na Missão do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio e outras Organizações Econômicas em Genebra, onde lida com Solução de Controvérsias.

A jurisprudênciA recente do órgão de ApelAção soBre o Acordo tBt: os cAsos

“euA – Atum ii” e “euA – cigArros de crAvo”

Pedro Henrique Fleider Wolanski

419

1. introdução

É crescente a percepção da perda relativa de importância das tarifas aduaneiras como instrumento de política comercial. As sucessivas rodadas de liberalização

comercial empreendidas desde 19471 reduziram as tarifas nos países desenvolvidos a níveis quase insignificantes2e3. Nos países em desenvolvimento, ainda conservam importância,

1 No âmbito do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) foram realizadas oito Rodadas de Negociação, quais sejam: Rodada Genebra (1947); Rodada Annecy (1949); Rodada Torquay (1950); Rodada Genebra (1956); Rodada Dillon (1960-61); Rodada Kennedy (1962-67); Rodada Tóquio (1973-79); e Rodada Uruguai (1986-94) – informação disponível no sítio eletrônico do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=369 (consulta realizada em julho de 2013).

2 Em 1947, a média das tarifas aplicadas sobre bens por países desenvolvidos era de 40%. Ao final da Rodada Uruguai, em 1994, a média das tarifas aplicadas por países desenvolvidos caiu para menos de 5% – informação disponível no sítio eletrônico da Organização Mundial do Comércio, <http://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/fact5_e.htm> (consulta realizada em julho de 2013).

3 Mitsuo Matsushita, Thomas J. Schoenbaum e Petros C. Mavroidis explicam que nas seis primeiras Rodadas de Negociação realizadas no contexto do GATT, o tema predominante foi a busca por reduções tarifárias, enquanto nas duas últimas, tais discussões foram acompanhadas por uma série de acordos que buscaram reduzir barreiras ditas não tarifárias. Para os autores, as oito rodadas do GATT lograram obter resultados satisfatórios, seja pela substancial redução das tarifas, seja pela celebração de acordos voltados à progressiva redução de barreiras não tarifárias – “Despite its birth defects, the GATT served as the basis for eight ‘rounds’ of multilateral trade negotiations. These rounds were held periodically to reduce tariffs and other barriers to international trade and were increasingly complex and ambitious. All were successful. The principal accomplishment of the GATT was its success in reducing tariffs and other trade barriers on a worldwide basis (…). The objectives of the early GATT negotiating rounds were primarily to reduce tariffs. Non-tariff barriers later emerged as a vital concern as well. The objectives of the Tokyo and Uruguay Rounds were primarily to reduce non-tariff-barriers.” (The World Trade Organization, 2nd edition, Oxford University Press, 2006, pp. 5-6).

Pedro Henrique Fleider Wolanski

420

mas já é contemplada sua redução gradual, que, aliás, estaria em curso caso houvesse sido concluída a Rodada Doha. Outras medidas governamentais adquirem maior importância, como as chamadas “barreiras não tarifárias” ao comércio internacional. Trata-se, grosso modo, de medidas de caráter não tributário, e que especificam características a serem seguidas pelos produtos, para que possam ser comercializados em determinado território. Adiante se discutirão com maior profundidade as definições pertinentes.

Dada a importância dessa espécie de medida, é natural que seja cada vez mais central o papel desempenhado pelas disciplinas multilaterais de comércio que regem as chamadas barreiras não tarifárias: o Acordo de Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT) e o Acordo de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS). Vale notar, neste ponto, que barreiras comerciais, tarifárias ou não, podem ser lícitas. Uma tarifa pode ser imposta, desde que esteja dentro do limite consolidado por determinado país em seus compromissos. Um regulamento técnico pode ser legitimamente aplicado a determinado produto, respeitadas as disciplinas do Acordo TBT.

Muito embora questões relacionadas ao Acordo TBT já tenham sido suscitadas em disputas levadas ao Órgão se Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC), suas obrigações centrais, como a de não discriminação (Artigo 2.1), e o dito teste de necessidade (Artigo 2.2), bem como a aplicação do Acordo TBT a medidas baseadas em métodos e processos de produção não relacionados às características do produto e a interpretação do caráter mandatório de regulamentos técnicos, eram temas que não tinham sido elucidados pela jurisprudência.

A jurisprudência recente do Órgão de Apelação sobre o Acordo TBT: os casos “EUA – Atum II” e “EUA – Cigarros de Cravo”

421

Este artigo tratará, à luz das disciplinas da OMC, a jurisprudência recente do Órgão de Apelação (OA) nos casos “Estados Unidos – Atum II” e “Estados Unidos – Cigarros de Cravo”4, nos quais o Brasil atuou como terceira parte. Pela análise desses casos, serão discutidos o “âmbito de incidência normativa” do Acordo TBT, a distinção entre padrões e regulamentos técnicos e as relações entre os Artigos 2.1 e 2.2 do Acordo TBT.

2. escopo do Acordo tBtO escopo normativo do Acordo TBT é determinado de

maneira residual em relação ao Acordo SPS5. O Artigo 1.5 do Acordo TBT determina que: “The provisions of this Agreement do not apply to sanitary and phytosanitary measures as defined in Annex A of the Agreement on the Application of Sanitary and Phytosanitary Measures”.

Muito embora não haja dispositivo que determine afirma-tivamente as medidas cobertas pelo Acordo, suas disciplinas

4 Unites States – Measures Concerning the Importation, Marketing and Sale of Tuna and Tuna Products, WT/DS381 (US – Tuna II) e United States – Measures Affecting the Production and Sale of Clove Cigarettes, WT/DS406 (US – Clove Cigarettes).

5 Sobre a aplicação residual do Acordo TBT, Michael Koebele explica: “Art. 1.5 declares the TBT Agreement inapplicable to sanitary and phytosanitary measures. The provision is complemented by Art. 1.4 SPS which states that ‘[n]othing in the [SPS] Agreement shall affect the rights of Members under the [TBT Agreement] with respect to measures not within the scope of this [SPS] Agreement’. Accordingly, the small category of technical barriers to trade which constitute sanitary or phytosanitary measures is subject to the legal regime of the SPS Agreement, not that of the TBT Agreement. In this regard, one should remember that the SPS Agreement is an innovation of the Uruguay Round and only one Standards Code for all kinds of technical barriers has existed since the Tokyo Round. Accordingly, insofar as SPS measures are product-related specifications and, therefore, technical regulations or conformity assessment procedures, the SPS Agreement, as a special tool for the regulation of a very narrow but special category of technical barriers to trade, is lex specialis to the TBT Agreement.” (Commentaries on the Agreement on Technical Barriers to Trade, in WTO – Technical Barriers and SPS Measures, Edited by Rudiger Wolfrum, Peter-Tobias Stoll and Anja Seibert-Fohr, Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law, 2007, p. 185).

Pedro Henrique Fleider Wolanski

422

aplicam-se a regulamentos técnicos, padrões e procedimentos de avaliação da conformidade. A aplicabilidade do Acordo TBT a es-sas medidas pode ser depreendida do Artigo 1.6, que estabelece:

All references in this Agreement to technical regulations,

standards and conformity assessment procedures shall

be construed to include any amendments thereto and any

additions to the rules or the product coverage thereof, except

amendments and additions of an insignificant nature.

Visto que o Acordo TBT aplica-se a regulamentos técnicos, padrões e procedimentos de avaliação da conformidade, a extensão de seu escopo dependerá da interpretação que se dê à definição dessas medidas, contida no Anexo I do Acordo. As obrigações mais substantivas do Acordo e com impacto mais evidente no comércio internacional referem-se aos regulamentos técnicos, dado o seu caráter mandatório6.

Nos termos do Acordo TBT, um regulamento técnico é:

Document which lays down product characteristics

or their related processes and production methods,

including the applicable administrative provisions, with

which compliance is mandatory. It may also include or

deal exclusively with terminology, symbols, packaging,

marking or labeling requirements as they apply to a

product, process or production method. (grifou-se).

Na essência, qualquer legislação que, de maneira obrigatória, determine as características de um produto, de sua

6 Johannes Norpoth afirma que “[t]he TBT Agreement deals specifically with NTBs in form of technical regulations, standards and conformity assessment procedures. It sets forth more stringent disciplines with regard to technical regulations than with regard to standards – the former being mandatory, the latter, voluntary measures.” (grifou-se) NORPROTH Johannes Mysteries of the TBT Agreement Resolved? Lessons to Learn for Climate Policies and Developing Country Exporters from Recent TBT Disputes, Journal of World Trade, Vol. 47, No. 3, 2013.

A jurisprudência recente do Órgão de Apelação sobre o Acordo TBT: os casos “EUA – Atum II” e “EUA – Cigarros de Cravo”

423

rotulagem ou de seus processos e métodos de produção7, será considerada um regulamento técnico no sentido do Acordo TBT e, portanto, sujeita às suas disciplinas. No caso “União Europeia – Amianto”, o Órgão de Apelação estabeleceu “three-tier test” para identificar um regulamento técnico: (i) deve ser aplicável a um grupo identificável de produtos8; (ii) tem de estabelecer uma ou mais características dos produtos9; e (iii) o cumprimento com as características deve ser obrigatório10.

Firmada a jurisprudência de “União Europeia – Amianto”, não houve maior controvérsia a respeito dos dois primeiros elementos de um regulamento técnico: a aplicabilidade a grupo determinado de produtos e a determinação de uma, algumas ou todas as suas características. O caráter mandatório da medida, porém, deu azo a discussões. O mesmo pode ser dito em relação acerca da extensão do escopo do Acordo TBT a métodos e processos de produção não relacionados às características do produto final.

3. medidAs de cumprimento mAndAtório ou voluntário

Registre-se que é justamente o caráter mandatório que distingue um regulamento técnico de um padrão, este último definido de maneira muito semelhante a um regulamento

7 A extensão do escopo do Acordo TBT a métodos e processos de produção não relacionados às características do produto é ainda hoje objeto de debates. Em seu relatório no caso “Estados Unidos – Atum”, o Órgão de Apelação, ainda que de forma indireta, parece ter resolvido a questão da aplicação do Acordo TBT a especificações baseadas em métodos e processos de produção não relacionados às características do produto em esquemas de rotulagem. Não está claro, contudo, se o mesmo poderia ser dito em relação a medidas que, muito embora relacionadas a métodos e processos de produção não relacionados às características do produto, não estão associadas a esquemas de rotulagem.

8 Appellate Body Report, European Communities – Measures Affecting Asbestos and Asbestos-Containing Products, WT/DS135/AB/R, para. 70.

9 Idem, para. 67-68. 10 Idem, para. 68.

Pedro Henrique Fleider Wolanski

424

técnico, com a marcante diferença de que padrões são de obediência voluntária11:

Document approved by a recognized body, that provides,

for common and repeated use, rules, guidelines or

characteristics for products or related processes and

production methods, with which compliance is not

mandatory. It may also include or deal exclusively with

terminology, symbols, packaging, marking or labelling

requirements as they apply to a product, process or

production method. (grifou-se).

A determinação do caráter mandatório ou voluntário da medida é, portanto, essencial para distinguir um regulamento técnico de um padrão. Mais ainda, para determinar as regras do Acordo TBT aplicáveis a certa medida. Na hipótese de ser considerada um regulamento técnico, a medida estará sujeita às disciplinas contidas nos Artigos 2, 3, 5 do Acordo. Se for um padrão, ele estará sujeito ao Artigo 4, que veicula medidas de caráter essencialmente recomendatório12. Na prática, quanto mais extensiva for a interpretação de “mandatory compliance”, maior será o número de medidas abarcadas pelo conceito

11 “The TBT Agreement deals specifically with NTBs in form of technical regulations, standards and conformity assessment procedures. It sets forth more stringent disciplines with regard to technical regulations than with regard to standards – the former being mandatory, the latter, voluntary measures.” NORPOTH Johannes Norpoth op.cit pp. 575-600).

12 “The legal characterization of the measure at issue was a fiercely debated preliminary issue that caught the attention of WTO scholars for its possible implications. The definitions of ‘technical regulation’ and ‘standard’ contained respectively in Annex 1.1 and 1.2 to the TBT Agreement differ to the extent that technical regulations are documents laying down product characteristics with which compliance is mandatory, whereas compliance with standards is not. Technical regulations are subjected inter alia to the obligations of Articles 2.1 and 2.2 of the TBT Agreement, whereas standards have to confirm with the different requirements of Article 4 and, in particular, of Annex 3 to the TBT Agreement, the ‘Code of Good Practice for the Preparation, Adoption and Application of Standards’” (Enrico Partiti, The Appellate Body Report in “US – Tuna II” and Its Impact on Eco-Labelling and Standardization, Legal Issues of Economic Integration 40, No. 1, 2013, pp. 73-94).

A jurisprudência recente do Órgão de Apelação sobre o Acordo TBT: os casos “EUA – Atum II” e “EUA – Cigarros de Cravo”

425

de regulamento técnico e, portanto, maior o universo de aplicabilidade das obrigações de não discriminação, tratamento nacional e transparência, entre outras, contidas no Artigo 2 do Acordo TBT.

A qualificação de uma medida como mandatória ou voluntária foi debatida no caso “Estados Unidos – Atum II”13. Tratava-se de esquema de rotulagem de produtos de atum como “dolphin-safe”, ou seja, produtos manufaturados a partir de atum pescado de maneira não deletéria ao bem estar dos golfinhos. Vale notar que, muito embora a medida tenha sido prolatada pelo Governo norte-americano, a aposição do rótulo “dolphin-safe” não era obrigatória para que os produtos de atum pudessem ser comercializados nos Estados Unidos.

Com base na possibilidade de que produtos de atum poderiam ser comercializados sem o rótulo “dolphin-safe”, os Estados Unidos sustentaram que a medida não era de cumprimento obrigatório e, portanto, não configurava um regulamento técnico e não estava, portanto, sujeito às obrigações contidas no Artigo 2 do Acordo TBT. O México, reclamante no caso, alegou que o rótulo “dolphin-safe”, apesar de não ser obrigatório, em tese, para acessar o mercado norte--americano, representava vantagem competitiva importante: as preferências do consumidor norte-americano, refletidas nas políticas de compra dos distribuidores e varejistas, tornava o rótulo essencial para a comercialização de produtos de atum nos Estados Unidos.

O OA reconheceu que tanto regulamentos técnicos quanto padrões podem determinar requisitos para a obtenção de determinado rótulo, os quais podem ser de cumprimento

13 United States – Measures Concerning the Importation, Marketing and Sale of Tuna and Tuna Products, WT/DS381.

Pedro Henrique Fleider Wolanski

426

obrigatório para a aposição lícita do rótulo (e verificado pelo governo ou por entidade certificadora, conforme o caso14). A necessidade de cumprir requisitos para obtenção de um rótulo não seria, portanto, suficiente para determinar o caráter “mandatório” de um esquema de rotulagem. Para o Órgão de Apelação, é necessário avaliar outros aspectos da medida: (i) se consta de lei ou regulamento governamental; (ii) se prescreve ou proíbe determinada conduta; (iii) se estabelece requisitos específicos cujo cumprimento seria a única forma de alcançar determinado fim; e (iv) a natureza do fim envolvido15.

Na análise do caso concreto, o OA afastou o argumento norte-americano de que a medida não seria um regulamento técnico pelo fato de que a aposição do rótulo não seria condição de acesso ao mercado dos Estados Unidos. Não haveria, na definição de regulamento técnico, qualquer menção aos termos “market” ou “territory” de um Membro, ou de que o termo “mandatório” se referiria a acesso a mercado. O simples fato de que a aposição do rótulo não é essencial à comercialização não seria suficiente para afastar a caracterização da medida como regulamento técnico16.

O OA recordou, ainda, que o esquema de rotulagem contestado era o único que permitia ao fabricante incluir indicação “dolphin-safe”, e até mesmo dos termos “dolphin”, “porpoises” ou “marine mammals” no rótulo de produtos de atum. Atentou ao fato de que a utilização de qualquer um desses termos em rótulos de produtos que não atendessem às condições estabelecidas na medida consistiria violação per se à legislação

14 Appellate Body Report, United States – Measures Concerning the Importation, Marketing and Sale of Tuna and Tuna Products, WT/DS381/AB/R, para. 195.

15 Idem, para. 397-399.16 Idem, para. 196 e 198.

A jurisprudência recente do Órgão de Apelação sobre o Acordo TBT: os casos “EUA – Atum II” e “EUA – Cigarros de Cravo”

427

americana17. Para o OA, essa prerrogativa de “exclusividade” de que goza o esquema de rotulagem norte-americano seria indício significativo de que a medida configuraria um regulamento técnico18. Possivelmente, a existência de esquemas alternativos de rotulagem permitiria descaracterizar o esquema “dolphin-safe” como regulamento técnico.

A ponderação dos quatro fatores elencados pelo OA informará a determinação, pelos painéis, a respeito do caráter voluntário ou mandatório de determinada medida e, portanto, será decisiva para qualificá-la como regulamento técnico ou padrão. Note-se que não foi atribuído peso decisivo a nenhum dos quatro fatores, e a determinação será feita caso a caso e com resultados relativamente incertos, ao menos até que haja evolução normativa ou jurisprudencial. Apesar de não trazer respostas definitivas, a jurisprudência elaborada pelo OA no caso “Estados Unidos – Atum II” é positiva para o sistema multilateral de comércio, em geral, e para o Brasil, em particular.

Essencialmente, a decisão permite que medidas com rele- vantes impactos sobre a posição competitiva de produtos importados, como esquemas de rotulagem, sejam consideradas regulamentos técnicos, apesar de o cumprimento das especifica-ções não ser condição essencial de acesso a determinado mercado.

A relevância da decisão é tanto maior quanto mais decisivas para o comportamento do consumidor são as informações de rotulagem. Dados a respeito de questões ambientais ou laborais, por exemplo, podem ser determinantes para o êxito ou fracasso de determinado produto em alguns mercados, especialmente os de países desenvolvidos, nos quais o Brasil tem marcado interesse exportador.

17 Idem, para. 195.18 Idem.

Pedro Henrique Fleider Wolanski

428

À luz do caráter decisivo dessas informações para o êxito comercial de determinado produto, parece interessar ao Brasil que essas disciplinas de rotulagem – uma vez sob o escopo do Acordo TBT – sejam, na medida do possível, qualificadas como regulamentos técnicos e não como padrões, pois os primeiros estão sujeitos às obrigações de tratamento nacional, nação mais favorecida e de não criar obstáculos desnecessários ao comércio internacional.

4. Acordo tBt e métodos e processos de produção não relAcionAdos às cArActerísticAs do produto

Métodos e processos de produção (PPMs) determinam como produtos são produzidos. Podem ser divididos em duas categorias, a depender de sua influência no produto final: métodos e processos de produção relacionados às características do produto (pr-PPM), os quais afetam o produto final; métodos e processos de produção que não guardam relação com as características do produto (npr-PPM), os quais, não influem na qualidade do produto final19. Não há dúvida de que a primeira categoria insere-se no escopo do Acordo TBT, girando a controvérsia em torno da segunda categoria de processos e métodos de produção.

Com base na redação do Anexo I.1, que traz a definição de regulamento técnico, parte da produção doutrinária já defendia que o Acordo TBT poderia ser aplicado a npr-PPMs, desde que relacionados a esquemas de rotulagem20. A justificativa residiria

19 Enrico Partiti, op.cit. pp. 78.20 Utilizando as discussões havidas quando da elaboração do Acordo TBT, Enrico Partiti explica que parte

da doutrina defende que o Acordo TBT estaria, em todo e qualquer caso, restrito a métodos e processos de produção relacionados às características do produto final – “Opponents to the inclusion of npr-PPMs based their view on the negotiating history of the TBT Agreement, which shows a rather clear inclination by negotiators to exclude npr-PPMs from the Agreement” (Idem, p. 79).

A jurisprudência recente do Órgão de Apelação sobre o Acordo TBT: os casos “EUA – Atum II” e “EUA – Cigarros de Cravo”

429

no fato de o termo “related” não ter sido reproduzido na parte final da redação do Anexo I.1, a qual prevê que regulamentos técnicos incluem, por exemplo, esquemas de rotulagem “as they apply” a métodos e processos de produção21.

Mesmo que de forma indireta, porque não foi objeto de recurso pelas Partes, no caso “Estados Unidos – Atum II”, o Órgão de Apelação teve de lidar com a questão da possível inclusão de npr-PPMs no escopo do Acordo TBT, quando aplicados a esquemas de rotulagem. No único parágrafo do relatório voltado ao tema, o Órgão de Apelação parece concluir que regulamentos técnicos, no sentido do Anexo I.1 do Acordo TBT, podem estabelecer todo e qualquer tipo de requisito para a obtenção de determinado rótulo, inclusive npr-PPMs:

Annex 1.1 to the TBT Agreement further states that

a technical regulation may include or “deal exclusively

with terminology, symbols, packaging, marking or

labeling requirements as they apply to a product, process

or production method”. Regarding the meaning of the

notion of ‘labeling requirements’, we note that the word

‘requirement’ means ‘a condition which must be complied

with’. The term ‘labeling requirements’ thus refers to

provisions that set out criteria or conditions to be

fulfilled in order to use a particular label22. (grifou-se).

21 “[…] note that in the last sentence of the definitions of technical regulations and standards, it is stated that technical regulations and standards also include measures that are concerned with ‘terminology, symbols, packaging, marking or labeling requirements as they apply to a product, process or production method’. Therefore, while there may be uncertainty and debate about whether technical regulations standards or conformity assessment procedures relating to npr-PPMs in general fall within the scope of application of the TBT Agreement, it is clear that ‘labeling requirements’ relating to npr-PPMs are TBT measures within the meaning of Annex 1 to the TBT Agreement and thus fall within the scope of application of the TBT Agreement” (Peter van den Bossche, The Law and Policy of the World Trade Organization, p. 808).

22 Appellate Body Report, United States – Measures Concerning the Importation, Marketing and Sale of Tuna and Tuna Products, WT/DS381/AB/R, para. 186.

Pedro Henrique Fleider Wolanski

430

Chama atenção o fato de o OA não ter feito expressa menção a métodos e processos de produção, ou a qualquer uma de suas categorias, limitando-se a fazer referência a critérios e condições que devem ser observados para a obtenção de determinado rótulo.

Ainda que não se tenha decidido expressamente se medidas que tratem de processos e métodos de produção sem repercussão no produto final podem ser consideradas regulamentos técnicos, o caso “Estados Unidos – Atum II” parece revelar tendência do Órgão de Apelação de reconhecer que disciplinas de rotulagem relacionadas àqueles processos estão sob o escopo do Acordo TBT23.

Consequência direta das conclusões do OA na disputa em referência diz respeito à verificação da conformidade de esquemas de rotulagem, como o contestado pelo México, às regras do sistema multilateral de comércio: uma vez sob o escopo do Acordo TBT, tais esquemas deverão ser analisados à luz das obrigações nos Artigos 2.1 e 2.2, por exemplo.

Nota também deve ser feita ao espaço que a jurisprudência elaborada pelo OA no caso “Estados Unidos – Atum II” abre para debates acerca da extensão do escopo do Acordo a todo e qualquer regulamento técnico relacionada a npr-PPMs. A discussão ganha maior relevância à medida que políticas governamentais relacionadas a npr-PPMs ganham cada vez mais destaque no cenário internacional, sobretudo à luz dos objetivos declarados de tutela ao meio ambiente, proteção ao consumidor e direitos laborais.

23 Prática estabelecida sob o Comitê TBT requer a notificação de todo e qualquer esquema de rotulagem estabelecido pelos Membros, independentemente de seu objeto (TBT Committee, Decisions and Recommendations Adopted by the Committee since Jan. 1, 1995 – Note by the Secretariat, G/TBT/1/Rev.7, Nov. 28, 2000, sec. III:10).

A jurisprudência recente do Órgão de Apelação sobre o Acordo TBT: os casos “EUA – Atum II” e “EUA – Cigarros de Cravo”

431

5. os Artigos 2.1 e 2.2 do Acordo tBtO Artigo 2.124 do Acordo TBT determina que os Membros

observem, no que toca a regulamentos técnicos, os princípios de nação mais favorecida e tratamento nacional. Este último vem expresso por meio da obrigação de tratar os produtos importados de maneira não menos favorável que os produtos de origem doméstica. Trata-se de dispositivo que incorpora, em grande medida, o Artigo III:425 do GATT 1994, sob cuja égide foi elaborado farto acervo jurisprudencial a respeito da obrigação de tratamento nacional.

Os Artigos 2.1 do Acordo TBT e III:4 do GATT têm aplicação cumulativa a regulamentos técnicos: o último impõe a obrigação de tratamento nacional a todas as leis e regulamentos, conceitos em que se inserem os regulamentos técnicos, especificamente disciplinados pelo Acordo TBT26.

Por tratar de regulamentos técnicos de modo específico, em Acordo que não contém as exceções clássicas do GATT 1994 (Artigo XX), o OA esclareceu que a obrigação de tratamento nacional contida no Artigo 2.1 do Acordo TBT deve ser interpretada à luz do contexto do dispositivo, que incluí o Artigo 2.227 do Acordo e seu preâmbulo. O Artigo 2.2

24 “Members shall ensure that in respect of technical regulations, products imported from the territory of any Member shall be accorded treatment no less favourable than that accorded to like products of national origin and to like products originating in any other country”.

25 “The products of the territory of any contracting party imported into the territory of any other contracting party shall be accorded treatment no less favorable than that accorded to like products of national origin in respect of all laws, regulations and requirements affecting their internal sale, offering for sale, purchase, transportation, distribution or use”.

26 Appellate Body Report, United States – Measures Affecting the Production and Sale of Clove Cigarettes, WT/DS406/AB/R, para. 100.

27 “Members shall ensure that technical regulations are not prepared, adopted or applied with a view to or with the effect of creating unnecessary obstacles to international trade. For this purpose, technical regulations shall not be more trade-restrictive than necessary to fulfil a legitimate objective, taking account of the risks non-fulfilment would create. Such legitimate objectives are, inter alia: national security requirements; the prevention of deceptive practices; protection of human health or safety, animal or plant life or health, or the environment. In

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reconhece, implicitamente, o direito de os Membros adotarem regulamentos técnicos necessários ao alcance de objetivos legítimos, entre os quais se incluem, entre outros, segurança nacional, prevenção de práticas enganosas, proteção da saúde e da segurança humanas e do meio ambiente.

A aplicação conjunta dos artigos 2.1 e 2.2 pode levar a situações de tensão entre os dispositivos: aquelas em que se revele necessário discriminar entre produtos importados e domésticos para assegurar a proteção de objetivos legítimos, explicitamente mencionados ou não no Artigo 2.2. No âmbito do GATT, não se verifica a mesma tensão normativa em relação a medidas qualificáveis como regulamentos técnicos, porque a obrigação de tratamento nacional contida no Artigo III possui exceções expressas, veiculadas pelos Artigos XX e XXI.

O OA teve de enfrentar a questão, pela primeira vez, no caso “Estados Unidos – Cigarros de Cravo”. Tratou-se de disputa na qual a Indonésia contestava a proibição, pelos Estados Unidos, da importação e fabricação de cigarros de cravo em território norte-americano. Para os Estados Unidos, a medida se justificaria pelo forte apelo que os referidos tabacos exerceriam sobre os jovens, o que facilitaria a iniciação ao fumo. À luz dos incontroversos efeitos deletérios do tabaco sobre a saúde humana, a medida seria, portanto, necessária à proteção da saúde pública, objetivo legítimo expressamente mencionado no Artigo 2.2 do Acordo TBT. Para a Indonésia, a medida seria mais restritiva que o necessário, por haver alternativas mais eficazes e menos restritivas ao comércio internacional para alcançar o mesmo objetivo, e porque não haveria qualquer comprovação da contribuição da medida ao objetivo declarado. Importante

assessing such risks, relevant elements of consideration are, inter alia: available scientific and technical information, related processing technology or intended end-uses of products”.

A jurisprudência recente do Órgão de Apelação sobre o Acordo TBT: os casos “EUA – Atum II” e “EUA – Cigarros de Cravo”

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notar ainda que, muito embora a legislação banisse os cigarros de cravo, não estabelecia a proibição de cigarros mentolados, que, segundo a Indonésia, teriam características semelhantes às dos cigarros de cravo.

A possível tensão entre os Artigos 2.1 e 2.2 do Acordo TBT foi analisada pelo OA em “Estados Unidos – Cigarros de Cravo”. Reconheceu que a quinta e a sexta cláusulas preambulares do Acordo estabelecem dois objetivos que precisam ser harmonizados: (i) assegurar que regulamentos técnicos, padrões e procedimentos de avaliação de conformidade não criem obstáculos desnecessários ao comércio internacional; e (ii) garantir aos países a possibilidade de adotarem as medidas necessárias para assegurar a qualidade de suas exportações, a proteção da saúde e da vida humana, animal e vegetal, do meio ambiente, e a prevenção de práticas enganosas, desde que as referidas medidas não sejam aplicadas de maneira que configure uma discriminação arbitrária ou injustificável entre países nos quais predominem as mesmas condições, ou uma restrição disfarçada ao comércio internacional.

Para o OA, a sexta cláusula preambular, que reconhece o direito de os Membros regulamentarem o comércio com vistas ao alcance de objetivos legítimos, serve de contraponto ao objetivo de liberalização comercial expresso na quinta28. Esse balanço não seria, em princípio, distinto daquele estabelecido entre a obrigação de tratamento nacional e as exceções gerais contidas, respectivamente, nos Artigos III e XX do GATT 199429.

À luz do balanço acima aludido, o OA procedeu à análise das relações entre os Artigos 2.1 e 2.2 do Acordo TBT. Esclareceu

28 Appellate Body Report, United States – Measures Affecting the Production and Sale of Clove Cigarettes, WT/DS406/AB/R, para. 95.

29 Idem, para. 96.

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que regulamentos técnicos são medidas que, por sua própria natureza, estabelecem distinções entre produtos. Logo, não se pode concluir que qualquer distinção estabelecida entre produtos poderia configurar violação à obrigação de tratamento nacional30. O contexto do Artigo 2.2 do Acordo TBT sugere que obstáculos ao comércio internacional são permitidos, desde que não sejam desnecessários, ou seja, mais restritivos que o necessário para alcançar um objetivo legítimo. Com efeito, concluir que o Artigo 2.1 veda qualquer obstáculo ao comércio internacional implicaria privar o Artigo 2.2 de seu efeito útil31. Logo, não se deve interpretar o Artigo 2.1 como proibitivo de qualquer efeito deletério sobre a posição competitiva de produtos importados em relação a seus similares domésticos. Esses efeitos podem ser admitidos, desde que advindos exclusivamente de uma “distinção regulatória legítima”32.

Logo, a obrigação de outorgar “tratamento não menos favorável” aos produtos importados, presente no Artigo 2.1, deve ser interpretada como vedação à discriminação, de fato ou de direito, contra aqueles produtos, sem, contudo, impedir a ocorrência de efeitos deletérios sobre as oportunidades competitivas daqueles produtos, desde que oriundas exclusivamente de uma distinção regulatória legítima. Essa, por sua vez, seria uma distinção necessária (“not more trade restrictive than necesary”) para alcançar um objetivo legítimo e aplicada conforme os ditames da sexta cláusula preambular do Acordo TBT.

No caso “Estados Unidos – Atum II”, o OA teve oportunidade de oferecer esclarecimentos a respeito da aplicação dos Artigos

30 Idem, para. 169.31 Idem, para. 171.32 Idem, para. 174.

A jurisprudência recente do Órgão de Apelação sobre o Acordo TBT: os casos “EUA – Atum II” e “EUA – Cigarros de Cravo”

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2.1 e 2.2 do Acordo TBT. Tendo em vista que Artigo 2.2 do Acordo TBT não configura uma exceção, como o Artigo XX do GATT, havia dúvidas a respeito da alocação do ônus da prova em casos de medidas cujos efeitos deletérios sobre a posição competitiva de produtos importados seriam oriundos exclusivamente de distinções regulatórias legítimas.

O OA recapitulou a regra geral de distribuição do ônus da prova, pela qual este cabe à parte que alega determinada violação ou apresenta defesa afirmativa33, e recordou que, estabelecido um prima facie case pelo reclamante, cabe ao reclamado o ônus de rebatê-lo. No caso dos Artigos 2.1 e 2.2 do Acordo TBT, cabe ao reclamante, inicialmente, provar que o tratamento outorgado a produtos importados é menos favorável que o outorgado a produtos domésticos similares. Caso seja bem-sucedido, cabe ao reclamante provar que os efeitos deletérios sobre a posição competitiva de produtos importados decorrem exclusivamente de uma distinção regulatória legítima34.

6. conclusões

A jurisprudência recentemente elaborada pelo OA nos casos “Estados Unidos – Atum II” e “Estados Unidos – Cigarros de Cravo” logrou, em certa medida, esclarecer disposições relevantes do Acordo TBT.

O OA, ainda que não explicitamente, parece concluir pela inclusão de npr-PPMs no escopo do Acordo TBT quando relacionados a esquemas de rotulagem.

33 Appellate Body Report, United Sstates – Measures Affecting Imports of Woven Wool Shirts and Blouses from India, WT/DS33/AB/R, para. 323-335.

34 Appellate Body Report, United States – Measures Concerning the Importation, Marketing and Sale f Tuna Products, WT/DS381/AB/R, para. 216.

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Trata-se de decisão cuja repercussão não é clara para os interesses brasileiros. Fora do escopo do Acordo TBT, esquemas de rotulagem baseados em npr-PPMs estariam, provavelmente, disciplinados pelo Artigo III do GATT 1994. Caso resultassem, portanto, em prejuízo à posição competitiva de produtos importados, seriam, provavelmente, considerados incompatíveis de facto com aquele dispositivo. Eventualmente, poderiam encontrar amparo nas exceções dos Artigos XX e XXI do GATT, cujas hipóteses são numerus clausus35.

Caso estejam efetivamente sob o escopo do Acordo TBT, esquemas de rotulagem baseados em npr-PPMs poderão ter seus efeitos deletérios sobre a posição competitiva de importados justificados por distinções regulatórias legítimas. Os objetivos perseguidos por essas distinções são apenas exemplificados pelo Artigo 2.2 do Acordo TBT. O Acordo TBT parece, portanto, abrir mais espaço que o regime do GATT 1994 para a elaboração de esquemas de rotulagem baseados em npr-PPMs.

Ao se debruçar sobre o caráter mandatório previsto no Anexo I.1 do Acordo TBT e estabelecer uma linha sobre o que constitui um regulamento técnico e o que pode ser definido como padrão, o Órgão de Apelação afastou a noção de que a possibilidade de acesso a determinado mercado, sem determinado rótulo, seria suficiente para descaracterizar o esquema de rotulagem como regulamento técnico. Trata-se de desdobramento aparentemente positivo, na medida em que evitará, provavelmente, a circunvenção das obrigações aplicáveis a regulamentos técnicos por meio do “disfarce” de medidas como padrões.

35 Ver sobre o Artigo XX o artigo de Fernando Antonio Wanderley Cavalcanti Jr, incluído no presente livro.

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Diplomata. Formado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e pela UPPA (França), é mestre em diplomacia pelo Instituto Rio Branco (IRBr), Prêmio Lafayette de Carvalho e Silva, Medalha de Bronze. Atualmente, está lotado na Coorde-nação-Geral de Contenciosos (CGC) e é Professor-Assistente da disciplina de Direito Internacional Público no IRBr.

AvAliAção de risco, princípio científico e

políticAs púBlicAs dos governos no Acordo sps

Guilherme Lopes Leivas Leite

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Medidas sanitárias que afetam o comércio remontam à Idade Média. O conceito moderno de quarentena pode ser relacionado ao governo do porto de Ragusa (hoje

Dubrovnik, Croácia), em 1377, para prevenir a peste bubônica1. A “trentina” – trinta dias de isolação – era imposta a navios de regiões suspeitas de infecção, antes de aportar, e a “quarentena” – quarenta dias de isolação – para viajantes terrestres. Os períodos de isolamento não tinham apenas finalidades de saúde pública, mas também se justificavam por necessidades econômicas, uma vez que as redes de comércio tinham de ser protegidas da Peste.

Essa inter-relação entre saúde pública e comércio internacional, atualmente, está expressa no Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (Acordo SPS, na sigla em inglês). A crescente liberalização comercial ocorrida ao longo das rodadas do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) coincidiu com um maior ativismo regulatório dos Estados2. Embora essas medidas correspondessem, por via de regra, a objetivos legítimos de proteção da saúde humana, animal e vegetal, poderiam ser utilizadas como barreiras ao comércio em substituição às tarifas que estavam sendo paulatinamente

1 GESINI, Gian Franco; YACOUBA, Magdi H.; CONTI, Andrea A., “The concept of quarantine in history: from plague to SARS”. Journal of Infection, Filadélfia: Elsevier. 2004, n. 49, p. 258.

2 GRUSZCZYNSKI, Lukasz, “Science in the Process of Risk Regulation under the WTO Agreement on Sanitary and Phitosanitary Measures”. German Law Journal, 2006, vol. 7, no. 4.

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reduzidas. O GATT já trazia como exceção geral a possibilidade de se adotarem medidas para a proteção da saúde humana, animal ou vegetal (Artigo XX(b)), mas não havia regras claras a respeito dessas medidas. O equilíbrio entre a proteção à saúde e a manutenção dos fluxos econômicos foi alcançada no Acordo SPS3.

O espaço de atuação dos Estados no Acordo SPS tem características próprias, dada a especificidade do tema. Por um lado, os Estados podem estabelecer o nível de proteção que julguem adequado e, em princípio, não estão obrigados a modificá-los4. Por outro, a discricionariedade dos Estados está condicionada a justificativas científicas, diferentemente de exceções presentes em outros acordos, de caráter mais político. Esse critério científico torna-se mais complexo dada a obrigação constante no Artigo 5º, que determina uma obrigação de avaliação de risco (“risk assessment”), uma análise de probabilidade em relação a dados científicos. Sob esse pano de fundo, painéis e o Órgão de Apelação arbitram juridicamente em casos de conflito entre discricionariedade política, dados científicos e análises de risco de determinada doença.

A relação entre espaço de atuação dos Estados e dos efeitos ao comércio em relação às questões sanitárias é mediada, portanto, pela ideia de risco. A sociedade moderna é uma sociedade de risco. A sociedade de risco, segundo Ulrich Beck5, tem uma “maneira sistemática de lidar com os perigos e inseguranças induzidos e introduzidos pela própria modernização.” Esses perigos são

3 O preâmbulo do Acordo determina, em seu parágrafo primeiro que: “[…] nenhum Membro deve ser impedido de adotar ou aplicar medidas necessárias à proteção da vida ou da saúde humana, animal ou vegetal, desde que tais medidas não sejam aplicadas de modo a constituir discriminação arbitrária ou injustificável entre Membros em situações em que prevaleçam as mesmas condições, ou uma restrição velada ao comércio internacional.

4 Vide parágrafo 6º do preâmbulo, Artigo 3.3 e nota de rodapé 2, e Artigo 5.6, nota de rodapé 3.5 Ulrich Beck. Risk Society, Towards a New Modernity. London: Sage Publications, 1992, p. 260.

Avaliação de risco, princípio científico e políticas públicas dos governos no Acordo SPS

441

quantificados e tornam-se “riscos”, a partir dos quais se tomam decisões a respeito de determinada política pública. Temas de regulação da saúde internacional passam a ser analisados em termos científicos, que aperfeiçoam as avaliações de ameaças de doenças transmissíveis entre os países. Essas características estão refletidas no Acordo SPS.

Assim, o objetivo do presente artigo é analisar esses diferentes elementos que caracterizam e condicionam a atuação dos Estados em questões de controle sanitário e a interpretação dos órgãos adjudicatórios da OMC a respeito do tema, a fim de delinear aqueles que são os dois principais objetivos do acordo, nas palavras do Embaixador Carlos Márcio Cozendey, “garantir a prerrogativa estatal de estabelecer, soberanamente, arcabouço legal voltado à proteção sanitária e inocuidade alimentar em seu território [...] e remover barreiras injustificadas ao comércio internacional, reduzindo a margem de atuação discricionária dos Estados”6.

1. nível ApropriAdo de proteção

O Anexo A do Acordo SPS define o nível adequado de proteção sanitária ou fitossanitária como “o nível de proteção que um Membro julgue adequado para estabelecer uma medida sanitária ou fitossanitária para proteger a vida ou saúde humana, animal ou vegetal em seu território.” Pode-se notar, pela própria definição, que cabe ao Membro decidir qual nível é adequado para a proteção para um determinado objetivo legítimo. Por essa lógica, diferentes Estados podem, para uma mesma questão sanitária, aplicar diferentes níveis de proteção,

6 SILVA, Orlando M. da; COZENDEY, Carlos Márcio. Notificações aos acordos de barreiras técnicas (TBT) e sanitárias (SPS) da OMC: transparência comercial ou barreiras não tarifárias?. Viçosa: UFV, 2010. 240, p. 12

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sem que isso constitua uma violação do Acordo SPS. Pressupõe--se, dessa forma, uma heterogeneidade de abordagens nacionais a respeito dessas medidas dentro da autonomia dos Estados7.

O nível de proteção, muitas vezes, sequer é declarado anteriormente pelo Membro que impõe a medida e precisa ser inferido ex post facto, no momento em que se questiona a medida. Essa sistemática gera, de acordo com Jeffery Atik8, uma circularidade perniciosa: uma medida pode até ser questionada como deletéria ao comércio internacional, mas o nível de proteção escolhido para a medida terá presunção de ser apropriado para aquela medida.

As limitações ao estabelecimento do nível apropriado de proteção não estão relacionados diretamente ao mérito da decisão, mas que: (1) as medidas SPS tenham base científica (Artigo 2.2 do Acordo SPS); (2) que uma análise de risco seja conduzida para medidas que fujam de standards internacionais (Artigo 3.3 do Acordo SPS); (3) e que Membros usem a medida menos restritiva ao comércio, dado determinado nível de proteção escolhido pelo Membro (Artigo 5.6). Trata-se mais de um controle de meios que de fins.

A presunção de adequação do nível apropriado de proteção torna muito difícil o controle dos níveis eles mesmos, apenas permitem algum controle relativo aos seus efeitos comerciais. A principal restrição à atribuição do nível de proteção encontra-se no Artigo 5.5 do Acordo SPS:

5. Com vistas a se alcançar consistência na aplicação

do conceito do nível adequado de proteção sanitária e

fitossanitária contra riscos à vida ou saúde humana

7 ATIK, Jeffery. On the Efficiency of Health Measures and the ‘Appropriate Level of Protection’ in PREVOST, Denise; VAN CALSTER, Geert. Londres: Elgar, 2012, p. 4.

8 Idem, p. 5.

Avaliação de risco, princípio científico e políticas públicas dos governos no Acordo SPS

443

ou à vida ou saúde animal, cada Membro evitará

distinções arbitrárias ou injustificáveis nos níveis

que considera apropriados em diferentes situações, se

tais distinções resultam em discriminação ou em uma

restrição velada ao comércio internacional. Os Membros

auxiliarão o Comitê, de acordo com os parágrafos 1, 2

e 3 do Artigo 12, a elaborar diretrizes para disseminar

a implementação prática desta disposição. Ao elaborar

as diretrizes, o Comitê levará em consideração todos os

fatores pertinentes, inclusive o caráter excepcional dos

riscos à saúde humana aos quais indivíduos se expõem

voluntariamente.

O artigo determina regras semelhantes àquelas presentes no caput das exceções gerais do GATT, mas tem características próprias que não permitem a aplicação direta da jurisprudência do GATT ao dispositivo9. Esse artigo relaciona-se com o Artigo 2.3 do Acordo SPS, que estabelece regra geral de que medidas SPS não constituam barreiras veladas ao comércio10.

No Caso EC – Hormones, estabeleceu-se um teste em três partes para analisar a violação de uma medida, conforme o disposto no Artigo 5.511. O primeiro elemento determina que o Membro tenha adotado níveis próprios de proteção contra riscos à vida ou à saúde humana em diversas situações diferentes, porém comparáveis, “as distinções”. O segundo elemento é que os níveis de proteção constituam uma diferença arbitrária ou

9 O Órgão de Apelação em EC – Hormones afirmou que “[...] in view of the structural differences between the standards of the chapeau of Article XX of the GATT 1994 and the elements of Article 5.5 of the SPS Agreement, the reasoning in our Report in United States – Gasoline , quoted by the Panel, cannot be casually imported into a case involving Article 5.5 of the SPS Agreement.

10 O Artigo 2.3 prescreve: Os Membros garantirão que suas medidas sanitárias e fitossanitárias não farão discriminação arbitrária ou injustificada entre os Membros nos casos em que prevalecerem condições idênticas ou similares, incluindo entre seu próprio território e o de outros Membros. As medidas sanitárias e fitossanitárias não serão aplicadas de forma a constituir restrição velada ao comércio internacional.

11 EC – Hormones, Relatório do Órgão de Apelação, parágrafo 214.

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injustificável, e o terceiro, que a medida constitua uma restrição ao comércio internacional.

No caso Austrália – Salmon, a Austrália tinha uma florescente produção de salmonídeos em aquicultura e havia imposto uma proibição de importação de salmão fresco, congelado ou resfriado para o consumo humano, justificando-se na necessidade de impedir que patógenos exógenos pudessem contaminar a produção australiana. A lista incluía 24 doenças, algumas não endêmicas no salmão canadense. Embora a restrição visasse à sanidade animal, tratava-se, no fim das contas, de um interesse comercial de proteção da aquicultura australiana.

O Canadá questionou as diferentes situações que a Austrália impunha em relação ao seu nível adequado de proteção. Enquanto a Austrália proibia a importação de Salmão, não proibia a importação de outros peixes para consumo humano que também apresentavam as doenças que salmões apresentavam e de peixes ornamentais e para utilizar como iscas, que também poderiam hospedar as doenças listadas.

A decisão do Órgão de Apelação (OA12) foi no sentido de que, enquanto os níveis de proteção para o salmão eram muito altos ou conservadores, os aplicados para peixes ornamentais ou para uso em iscas era muito baixo, o que constituía um tratamento arbitrário e injustificado. Essa constatação de níveis diferentes de tratamento pode ser considerado um “sinal de alerta” para que se constate uma barreira velada ao comércio13, mas não equivale a ela, embora a Austrália tenha sido condenada.

12 Australia – Salmon, Relatório do Órgão de Apelação, parágrafo 158.13 O Órgão de Apelação, no caso EC – Hormones, afirmou que: “the arbitrary or unjustifiable

character of differences in levels of protection [...] may in practical effect operate as a ‘warning’ signal that the implementing measure in its application might be a discriminatory measure or might be a restriction on international trade disguised as an SPS measure for the protection of human life or health”.

Avaliação de risco, princípio científico e políticas públicas dos governos no Acordo SPS

445

O teste de compatibilidade de um nível de proteção com as regras do Artigo 5.5 é bastante restrito. No caso EC – Hormones, a União Europeia impunha restrições ao uso de hormônios sintéticos e naturais à carne vendida em seu território, mas comportava certas exceções. O OA14 entendeu que a permissão do uso de dois tipos de hormônio, olaquindox e carbadox, se tratava de uma discriminação arbitrária e injustificada, mas que, uma vez que a medida europeia se aplicava tanto a produtos domésticos e importados e tinha a intenção geral de não colocar no mercado produtos com tratamento de hormônios, não consistia em uma barreira velada ao comércio internacional.

Ao contrário dos requisitos do caput do Artigo XX do GATT, é preciso que os três elementos estejam presentes para que haja uma violação do Artigo 5.5, enquanto para as exceções gerais, é preciso que todos os elementos estejam presentes para que não haja violação. Ademais, enquanto os requisitos constantes no caput do Artigo XX correspondem à aplicação da medida, os requisitos do Artigo 5.5 se dão apenas em relação a seus efeitos15, em vez da medida ou de sua aplicação. O Acordo SPS, portanto, apenas protege os efeitos comerciais de determinada medida, ainda que ela tenha inconsistência interna.

Ademais, a obrigação constante no Artigo 5.5 reflete o princípio da não discriminação em relação a medidas SPS adotadas por um Membro, mas não o nível de restrição em si. Um Membro pode aumentar os níveis de proteção de maneira transversal para cumprir com as obrigações do Acordo. É possível, portanto, que um Membro possa aumentar seu nível de proteção, restringindo mais as trocas comerciais, para que passe a cumprir com as regras da OMC.

14 EC – Hormones, Relatório do Órgão de Apelação, para. 23515 ATIK, 2012, p.10

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No caso contra a Austrália, o Canadá foi exitoso em apresentar um argumento do “elo mais fraco16”, ou seja, a medida é tão eficaz quanto à medida menos efetiva (ou a inexistência de uma medida) adotada por aquele Membro, e a medida aplicada com um nível de proteção mais elevado torna-se ineficiente. O cumprimento da Austrália, no entanto, não necessariamente foi conducente a maior liberalização econômica. Embora tenha flexibilizado o acesso ao salmão canadense e, assim, arrefecido os ânimos dos demandantes, restringiu significativamente o acesso de peixes ornamentais e iscas, de modo a remover a incongruência de seu nível apropriado de proteção.

Pode-se concluir que a margem de discricionariedade sobre o nível de proteção previsto no Acordo SPS é bastante amplo. Os Membros são livres para estabelecerem os níveis que entendem ser mais adequados. Para que uma medida constitua uma violação, precisa cumprir com os três elementos presentes no Artigo 5.5: níveis diferentes em situações comparáveis, discriminação arbitrária e injustificada e consequências deletérias ao comércio internacional. Ainda assim, mesmo que haja uma condenação, o cumprimento da medida pode se dar por meio de um aumento dos níveis de proteção, que elimine a discriminação: um aumento, portanto, da restrição comercial, em vez de maiores fluxos comerciais.

2. Análise de risco e BAse científicA

Não obstante a margem de discricionariedade dada aos Estados em razão da livre atribuição do nível de proteção à saúde, as medidas são condicionadas por bases científicas e

16 ATIK, Jeffery. The Weakest Link – Demonstrating the Inconsistency of ‘Appropriate Levels of Protection’ in Australia-Salmon. Risk Analysis. Vol. 24, n. 2, Wiley, 2004, p. 15.

Avaliação de risco, princípio científico e políticas públicas dos governos no Acordo SPS

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pela aplicação de análise de risco para justificá-las. O Acordo SPS atribui a princípios científicos a base das medidas sanitárias e fitossanitárias (conforme Artigo 2.2). Standards internacionais gozam de presunção de cientificidade, portanto, de compatibilidade com as normas do Acordo (Artigo 3.2 do Acordo SPS). Estados que queiram divergir de standards internacionais têm de conduzir uma análise de risco que deve, necessariamente, levar em consideração provas científicas para avaliar a adequação da medida (Artigo 5.2).

A avaliação de risco, segundo o Anexo A do Acordo SPS é definido como:

4. Avaliação de Risco – A avaliação da possibilidade

de entrada, estabelecimento ou disseminação de uma

praga ou doença no território de Membro importador, em

conformidade com as medidas sanitárias e fitossanitárias

que possam ser aplicadas, e das potenciais consequências

biológicas e econômicas ou a avaliação do potencial

existente, no que se refere a efeitos adversos à saúde

humana ou animal, resultante da presença de aditivos

contaminantes, toxinas ou organismos patogênicos em

alimentos bebidas ou ração animal.

A avaliação de risco, tal qual a decisão sobre o nível adequado de proteção, é determinada pelo Estado, e não é tarefa dos órgãos adjudicatórios se substituir aos Estados e refazer a análise17. No entanto, o painel tem de analisar, conforme os Artigos 2.2 e 5 do Acordo SPS, tanto a existência de bases científicas como a aplicação dos princípios científicos pelas autoridades políticas que adotaram a medida em questão.

17 EC – Hormones, Relatório do Órgão de Apelação, para. 117.

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Parece adequado, a princípio, atribuir à ciência, um conjunto de informações supostamente apolítica e neutra18, papel importante no julgamento do mérito de medidas SPS dentro do mandato restrito da OMC, atribuindo a “prerrogativa ao Membro e não do painel ou OA”19 de decidir a proteção à saúde. Efetivamente, a jurisprudência de casos que trataram de medidas SPS deu significativa importância a princípios científicos para sua decisão. Nesse sentido, a análise de risco é permeada pelas bases científicas que justificam a opção a respeito de um nível de proteção escolhido por um Membro.

A obrigação de se conduzir análise de risco, conforme o OA no caso EC – Hormones20, não estabelece uma obrigação procedimental de se elaborar uma análise de risco específica para cada medida a ser adotada por determinado Membro. Este pode se basear em avaliações de risco feitas por outros Membros, caso contrário, haveria um peso desproporcional a Membros que adotassem as medidas, particularmente, países em desenvolvimento21.

A questão que se põe, então, é a de saber como os órgãos adjudicatórios da OMC realizam a análise de compatibilidade da avaliação. O painel no caso EC – Hormones deu preferência a uma comparação da causalidade entre as conclusões científicas dos estudos apresentados pela União Europeia e a medida, em vez de analisar o entendimento das autoridades políticas dos estudos na aplicação da medida, o que retirava significativamente a

18 PEEL, Jacqueline. Risk Regulation Under the WTO SPS Agreement: Science as an International Normative Yardstick. Nova York: NYU School of Law, 2004, p. 54.

19 Australia – Salmon, Relatório do Órgão de Apelação, para. 199.20 EC – Hormones, Relatório do Órgão de Apelação, para. 189.21 Idem, para. 129.

Avaliação de risco, princípio científico e políticas públicas dos governos no Acordo SPS

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margem de manobra dos Estados em adotar medidas. O OA matizou a decisão do painel, incluindo também considerações econômicas e políticas22.

Haveria um processo integrado entre ciência e política que se inter-relacionariam no processo de avaliação de risco, que pareceria levar a crer que considerações científicas e políticas teriam peso igual. A jurisprudência posterior, no entanto, demonstra que as considerações científicas dominam a análise da avaliação de risco23, enquanto as políticas dominam a escolha do nível apropriado de proteção (conforme visto acima).

No caso Japan – Apples, a análise do mérito consistiu justamente em constatar a existência de “evidências científicas suficientes” para justificar a adoção de uma quarentena imposta pelo Japão a maçãs norte-americanas. A “suficiência” diz respeito à relação entre as informações científicas disponíveis e a medida adotada, para que haja uma relação objetiva e racional entre ambas24. O painel25, assim, procedeu a uma análise de causalidade (“uma relação racional ou objetiva entre a medida SPS e evidências científicas”26) com fundamentos científicos, entre estudos epidemiológicos apresentados pelo Japão como base de sua medida e a própria eficácia dessas medidas, entendendo, finalmente, que não havia base para tal.

22 Idem, para. 193.23 GRUSZCZYNSKI, 2006, p. 380.24 O OA em Japan – Agricultural Products II entendeu que essa relação se dá para constatar:

“Whether there is a rational relationship between an SPS measure and the scientific evidence is to be determined on a case-by-case basis and will depend upon the particular circumstances of the case, including the characteristics of the measure at issue and the quality and quantity of the scientific evidence”.

25 Japan – Apples, Relatório do painel, para. 8.168.26 “[…] a rational or objective relationship between the SPS measure and the scientific evidence

[…]”, Japan - Agricultural Products II, Relatório do Órgão de Apelação.

Guilherme Lopes Leivas Leite

450

O órgão adjudicatório desenvolveu um papel de aplicador de critérios científicos de última instância, mas com critérios de causalidade próprios decidindo, por si só, o que constituiria uma prova científica27.

Pode-se, portanto, entender que a decisão determina que o critério principal para a existência do risco é científico, ainda que condicionado pelo painel, em se tratando de uma controvérsia. Pode-se concluir também, a contrario, que a inexistência de informações suficientes não pode dar ensejo a uma medida cujo risco não possa ser explicado cientificamente.

O Artigo 5.7 traz o princípio da precaução, quando não há conhecimento científico disponível:

7. Nos casos em que a evidência científica for

insuficiente, um Membro pode provisoriamente adotar

medidas sanitárias ou fitossanitárias com base em

informação pertinente que esteja disponível, incluindo-

se informação oriunda de organizações internacionais

relevantes, assim como de medidas sanitárias ou

fitossanitárias aplicadas por outros Membros. Em tais

circunstâncias, os Membros buscarão obter a informação

adicional necessária para uma avaliação mais objetiva

de riscos e revisarão em consequência a medida sanitária

ou fitossanitária em um prazo razoável.

Cabe destacar de que a precaução do Artigo 5.7 é em relação à disponibilidade de informações científicas, e não em relação à incerteza quanto aos danos, conforme o Órgão de Apelação em Japan – Apples “se o conjunto de evidências

27 Japan – Apples, Relatório do Painel, para. 8.99.

Avaliação de risco, princípio científico e políticas públicas dos governos no Acordo SPS

451

científicas disponíveis não permite, em termos quantitativos ou qualitativos, o desempenho de uma avaliação de riscos adequada, como exigida no Artigo 5.1 e definida no Anexo A28”.

Os riscos, portanto, têm de estarem baseados em fundamentos científicos. Precisam ser determinados, e não apenas fruto “[d]a incerteza que teoricamente sempre existe, uma vez que a ciência nunca consegue providenciar certeza absoluta que uma dada substancia nunca terá efeitos adversos à saúde”29 (tradução livre).

O Acordo SPS, em vez de restringir as possibilidades de policy space dos Estados em seu próprio corpo normativo, condiciona a atuação dos Membros que queiram adotar medidas SPS mais restritivas a fundamentos científicos. Essa circunstância, por um lado, dá maior margem de atuação aos Estados, pois não estão limitados a priori por rol taxativo de medidas permitidas, por outro, estão condicionado à produção cientifica existente.

3. conclusão Pode-se dizer que o Acordo SPS dá margem de

discricionariedade ao Estado para decidir a respeito do risco aceitável para uma determinada medida, mas a condiciona a evidências científicas suficientes para estabelecer uma relação clara e objetiva entre a medida e o nível de proteção desejado. Jacqueline Peel30 caracteriza essa proeminência dos princípios

28 Japan – Apples, Relatório do Órgão de Apelação, para. 179: “if the body of available scientific evidence does not allow, in quantitative or qualitative terms, the performance of an adequate assessment of risks as required under Article 5.1 and as defined in Annex A to the SPS Agreement”.

29 Idem, para. 186, vide também Australia – Salmon, no original: “uncertainty that theoretically always remains since science can never provide absolute certainty that a given substance will not ever have adverse health effects”. relatório do Órgão de Apelação, para. 125.

30 PEEL, 2004, p. 87.

Guilherme Lopes Leivas Leite

452

científicos atribuindo à ciência o epíteto de “pedra de toque” (“yardstick”) normativo para a regulação de risco no Acordo SPS.

Em última instância, um Membro que discorde da aplicação de bases científicas que estejam em desacordo com o nível desejado de proteção, dada a importância do tema, pode acabar por descumprir a decisão do painel, como foi o caso da União Europeia em relação à proibição da venda de carne com hormônios. No entanto, o Acordo, após decisões que definiram a aplicação das regras sobre a avaliação de risco e dos princípios científicos, foi pouco invocado em disputas no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC. Dos 40 casos que invocaram seus dispositivos, 10 foram a painel, ainda que medidas sanitárias não tenham diminuído ao longo do tempo. Os contenciosos mais recentes sobre o tema, em geral, tratam de violações mais evidentes às regras SPS.

Parece, portanto, haver certa tendência dos Membros em evitar discutir, no âmbito dos órgãos adjudicatórios da OMC o delicado equilíbrio entre o comércio e a proteção à saúde hu-mana, animal e vegetal. Os debates sobre análises de risco e princípios científicos têm ocorrido principalmente no âmbito de organismos internacionais que estabelecem padrões, como a Organização Mundial para a Saúde Animal (OIE) e o Codex Alimentarius, no âmbito da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), ou por via diplomática. Isso não significa dizer, contudo, que a análise de riscos, media-dos por princípios científicos, tenha sido afastada definitiva-mente da OMC, apenas que ainda há certa reserva em que essa aplicação seja mediada pelos órgãos adjudicatórios da OMC.

453

Diplomata, na Coordenação-Geral de Contenciosos do Ministério das Relações Exteriores desde 2011. Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Internacional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em Direito pela UFMG. Atuou no escritório Pinheiro Neto Advogados (2005-2008) e no Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais – ICONE (2003-2005).

o cAso “energiA renovável” nA omc: um precedente

soBre os limites pArA A Adoção de políticAs púBlicAs

Leandro Rocha de Araujo

455

1. introdução

A criação do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, em inglês), em 1947, teve como um de seus objetivos primordiais reduzir o grau de discriminação nas relações

comerciais entre as Partes Contratantes, permitindo maior previsibilidade e estabilidade nas suas relações comerciais. O GATT 1947, contudo, já previa algumas exceções à regra da não discriminação, com o intuito de conferir espaço suficiente para que os países pudessem promover políticas relacionadas a seus interesses legítimos e soberanos, como a utilização de instrumentos como compras governamentais para a promoção dos seus objetivos.

Ao final da Rodada Uruguai do GATT, em 1994, foram firmados diversos acordos multilaterais, na área de bens, serviços e propriedade intelectual, os quais criaram disciplinas restritivas à policy space para esses setores, reduzindo ainda mais o espaço para a formulação de políticas públicas pelos Membros da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em razão da elevada sensibilidade entre o princípio basilar de não discriminação e o direito soberano à promoção dos interesses legítimos nacionais, essa relação ainda está em conformação. O sistema de solução de controvérsias da OMC (SSC) tem tido papel primordial na definição do escopo das disciplinas atualmente em vigor, por meio da interpretação dos painéis e do Órgão de Apelação (OA).

Leandro Rocha de Araujo

456

Recentemente, uma disputa na OMC foi emblemática para delinear o grau de liberdade dos Membros para a elaboração de políticas públicas com objetivos de desenvolvimento: o caso “Canada – Renewable Energy” (DS412-426). O presente artigo examinará, a partir das decisões do painel e do OA nesse caso, quais foram os limites estabelecidos para a adoção de políticas de incentivo pelos Membros da OMC na área de energia renovável, tendo em vista a análise de sua compatibilidade com as disciplinas do GATT 19941, do Acordo sobre Medidas de Investimento relacionadas ao Comércio (Acordo TRIMs) e do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC). Cabe destacar que essa disputa certamente constitui importante precedente, não somente na área de energia renovável, mas também para o desenvolvimento de políticas públicas nas mais diversas áreas.

2. o cAso “cAnAdA – renewABle energy” (ds412-426): Aspectos gerAis

O caso “Canada – Renewable Energy” foi uma disputa iniciada no âmbito do sistema de solução de controvérsias da OMC, originalmente apresentada pelo Japão contra o Canadá (DS412)2 em setembro de 2010. A União Europeia (UE) apresentou pedido de consultas sobre caso semelhante pouco tempo depois (DS426)3, razão pela qual as partes concordaram

1 Ao final da Rodada Uruguai, foi aprovado o GATT 1994, que incorporou as disposições do GATT 1947, além de outros protocolos, decisões e entendimentos, conforme previsto em seu Artigo 1º.

2 Caso denominado “Canada – Certain Measures affecting the Renewable Energy Generation Sector” (DS412), iniciado pelo Japão em 13.9.2010.

3 Caso denominado “Canada – Measures relating to the Feed-In Tariff Program”, iniciado pela UE em 11.8.2011.

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

457

em ter os mesmos árbitros para decidir ambos os casos, com vistas a conferir uniformidade à decisão4.

Nos dois casos (DS412 e DS426), os demandantes ques-tionaram a compatibilidade de alguns programas de incentivo à produção de energia renovável promovidos pela Província de Ontário (Canadá) com alguns dos acordos multilaterais da OMC. Mais especificamente, estava em discussão a necessi-dade de cumprimento de certas exigências de conteúdo local5 como condição para participação nos programas canadenses. Nesse contexto, a policy space demandada pelo Canadá estaria relacionada à possibilidade de adoção de políticas públicas que tinham por objetivo estimular o desenvolvimento de tecnologia nacional no setor de energia renovável, promovendo também a criação de mais empregos domésticos6. Tanto o painel quanto o Órgão de Apelação manifestaram-se a respeito desse caso, ten-do o relatório final do painel sido circulado em 19.12.2012 e o do OA em 6.5.2013. Esses relatórios foram adotados pelo Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) em 24.5.2013.

4 Depois dos casos iniciados pelo Japão e pela UE contra o Canadá (DS412 e DS426), duas outras disputas envolvendo medidas e pedidos similares foram iniciadas no âmbito do sistema de solução de controvérsias da OMC, a seguir: (i) DS452 (European Union and certain Member States – Certain Measures Affecting the Renewable Energy Generation Sector), iniciada pela China; and (ii) DS456 (India – Certain Measures Relating to Solar Cells and Solar Modules), iniciada pelos EUA. Ambas as disputas estão atualmente na fase de consultas.

5 A exigência de conteúdo local pode ser definida como uma medida segundo a qual os agentes econômicos se tornam elegíveis para um tratamento específico que confira uma vantagem ou benefício, tais como tarifas mais baixas ou programas de subsídios, desde que seja utilizado um percentual mínimo de insumos/bens produzidos internamente em relação ao valor total. Em um relatório preparado pela Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO, em inglês), disciplinas de conteúdo local são definidas como “essentially a government policy which requires that a certain amount of inputs (by value or quantity) in a given industrial output be of domestic origin. […] Economic penalties, such as payment of a high tariff rate on all intermediate imports, are imposed for failure to comply.” (UNIDO, 1986, pp. 2-3).

6 Essas medidas teriam por objetivo a criação de mais empregos locais. Arunabha Ghosh e Himani Gangania afirmaram que “the Ontario Energy Minister defended the provisions [related to local content] on the grounds that they were necessary to create jobs: ‘[W]e will [stand up] against anybody outside of Ontario that wants to threaten our efforts to create jobs’”, (Ghosh; Gangani, 2012, p. 37).

Leandro Rocha de Araujo

458

2.1. As medidas em questão e os pedidos

As medidas em questão no presente caso estão relacionadas com a política estabelecida pela Província de Ontário denominada “Feed-In Tariff Program” (Programa FIT) para certos tipos de projetos de geração de energia solar fotovoltaica e energia eólica. Eles consistiam em três tipos de medidas: (i) o Programa FIT, para instalações localizadas em Ontário que gerassem eletricidade exclusivamente a partir de fontes de energia renovável; (ii) os Contratos individuais FIT para fontes eólica ou solar fotovoltaica (para projetos com capacidade de produção de energia elétrica superior a 10 KW); e (iii) os Contratos individuais MicroFIT para fonte solar fotovoltaica7 (para projetos com capacidade para produzir até 10 KW de energia elétrica).

Por meio do Programa FIT, formalmente lançado em 2009, o Governo do Ontário e suas agências pagavam um preço garantido – superior ao preço de mercado de energia elétrica – por KWh de energia elétrica (de fontes eólicas e solares) entregue ao sistema de energia elétrica de Ontário, baseado em contratos de 20 anos ou 40 anos firmados com a Autoridade de Energia de Ontário. No entanto, para participar desses programas, o produtor de energia renovável deveria utilizar um nível mínimo de equipamentos produzidos domesticamente, o que indicava a exigência de conteúdo local mínimo para a geração de eletricidade8.

Em razão das exigências de conteúdo local no Programa FIT e nos Contratos FIT e MicroFIT, os demandantes alegaram que o Canadá estava agindo de maneira incompatível com o

7 OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 2.1, pp. 4-5.8 OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.7, p. 31.

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

459

Artigo III.4 do GATT 1994, com o Artigo 2.1 do Acordo TRIMs e com os Artigos 3.1.(b) e 3.2 do ASMC. Essas disciplinas têm por finalidade restringir a utilização de certas medidas pelos Membros da OMC, limitando o espaço para a elaboração de políticas públicas. Dessa forma, a seção seguinte examinará cada uma das disciplinas mencionadas, uma vez que elas foram o objeto de análise dos órgãos adjudicatórios da OMC no presente caso.

2.2. Disciplinas multilaterais em questão (GATT 1994, TRIMs, ASMC)

O Artigo III do GATT 1994 estabelece o princípio do tratamento nacional, que proíbe aos Membros a adoção, para os produtos importados, de impostos ou outros encargos internos superiores aos aplicados aos produtos nacionais, com o intuito de proteger a produção nacional (Artigos III:1 e III:2)9. Além disso, o Artigo III:4 determina que os produtos importados serão submetidos a um tratamento não menos favorável que o concedido a produtos similares de origem nacional, no que diz respeito a todas as leis, regulamentos e exigências que afetem a sua venda interna, oferta para venda, compra, transporte, distribuição ou utilização. Assim, os Membros não estão autorizados a conferir tratamento menos benéfico para os produtos importados somente com base em sua origem.

Se, por um lado, o Artigo III do GATT 1994 estabelece importante restrição ao desenvolvimento de políticas que poderiam conferir tratamento mais benéfico aos produtos domésticos, por outro, o Artigo III:8(a) do GATT 1994, que se refere a compras governamentais, estabelece uma importante exceção ao princípio do tratamento nacional. Ao permitir

9 OMC, 1999, p. 427.

Leandro Rocha de Araujo

460

maior margem de discricionariedade aos Membros para a adoção de políticas públicas quando da realização de compras governamentais, esse dispositivo informa que o princípio do tratamento nacional – e as limitações à policy space dele decorrentes – não devem se aplicar às compras realizadas por agências governamentais, de produtos que sejam adquiridos para fins governamentais e que não tenham em vista a sua revenda comercial ou a sua utilização na produção de bens para venda comercial10.

O Acordo TRIMs estabeleceu também balizas à adoção de políticas públicas pelos Membros, sobretudo aquelas que se caracterizam como medidas que afetam o investimento e que estejam relacionadas ao comércio. Nos termos do Artigo 2.1 desse Acordo, nenhum Membro aplicará qualquer medida de investimento relacionada ao comércio que seja incompatível com as disposições do Artigo III (tratamento nacional) ou do artigo XI (eliminação das restrições quantitativas) do GATT 1994. Portanto, uma medida de investimento relacionada ao comércio (trade-related investment measure – TRIM) que não respeite o princípio do tratamento nacional não será considerada compatível com o Acordo TRIMs.

Nesse sentido, o Anexo do Acordo TRIMs apresenta uma lista ilustrativa de medidas que não são compatíveis com a obrigação de tratamento nacional. Por exemplo, o Anexo 1(a) estabelece que medidas de investimento que sejam incompatíveis com a obrigação de tratamento nacional do Artigo III:4 do GATT

10 GATT 1994, Artigo 3.8(a): “The provisions of this Article shall not apply to laws, regulations or requirements governing the procurement by governmental agencies of products purchased for governmental purposes and not with a view to commercial resale or with a view to use in the production of goods for commercial sale”. Ressalte-se que, até o presente caso, esse Artigo ainda não havia sido interpretado no âmbito do sistema de solução de controvérsias do GATT ou da OMC e, por isso, não havia definição clara quanto ao seu escopo.

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

461

1994 são, entre outras, aquelas “obrigatórias ou aplicáveis com base na legislação nacional ou em decisões administrativas, ou cujo cumprimento seja necessário11 para a obtenção de uma vantagem12” e que “exijam a compra ou o uso, por uma empresa, de produtos de origem nacional ou de qualquer fonte doméstica, quer especificado em termos de produtos específicos, quer em termos de volume ou valor dos produtos, ou em termos de uma proporção do volume ou valor de sua produção local”.

O ASMC, por sua vez, também estabelece regras que visam a limitar o espaço de políticas públicas dos Membros, ao estabelecer regras e condições para a concessão de contribuições financeiras, pelos governos, aos agentes econômicos. Os Artigos 3.1(b) e 3.2 do ASMC proíbem subsídios que sejam vinculados ao uso de bens domésticos em detrimento de bens importados. Assim, os Membros não estão autorizados a conceder qualquer contribuição financeira que venha a conferir um benefício a empresas ou setores específicos, se esses subsídios estiverem vinculados ao uso de bens domésticos em detrimento dos importados.

Como esses subsídios são considerados proibidos pelo ASMC, nos termos do Artigo 3.2, o painel deverá recomendar

11 De acordo com o painel no caso Indonésia – Autos, “the wording of the Illustrative List of the TRIMs Agreement makes it clear that a simple advantage conditional on the use of domestic goods is considered to be a violation of Article 2 of the TRIMs Agreement even if the local content requirement is not binding as such.” (grifos do autor) (OMC, WT/DS54-55-59-64/R, para. 14.90, p. 345).

12 Ainda segundo o painel Indonésia – Autos, “[…] We do not consider that the matter before us in connection with Indonesia’s obligations under the TRIMs Agreement is the customs duty relief as such but rather the internal regulations, i.e. the provisions on purchase and use of domestic products, compliance with which is necessary to obtain an advantage, which advantage here is the customs duty relief. The lower duty rates are clearly ‘advantages’ in the meaning of the chapeau of the Illustrative List to the TRIMs Agreement and as such, we find that the Indonesian measures fall within the scope of Item 1 of the Illustrative List of TRIMs.” (grifos do autor). (OMC, WT/DS54-55-59-64/R, para. 14.89, p. 344).

Leandro Rocha de Araujo

462

que o Membro que confere esse tipo de subsídio elimine o programa sem demora, estabelecendo no relatório o prazo para essa eliminação. Foi exatamente o que ocorreu no caso “US – Upland Cotton” (DS267), em que o painel estabeleceu em seu relatório:

8.1 In light of the findings above, we conclude as follows:

[…]

(f) concerning section 1207(a) of the FSRI Act of

2002 providing for user marketing (Step 2) payments

to domestic users of upland cotton: it is an import

substitution subsidy prohibited by Articles 3.1(b) and

3.2 of the SCM Agreement;

[…]

8.3 In light of these conclusions:

[…]

(c) pursuant to Article 4.7 of the SCM Agreement,

we recommend that the United States withdraw the

prohibited subsidy in paragraph 8.1(f) above without

delay and, in any event, at the latest within six months

of the date of adoption of the Panel report by the Dispute

Settlement Body or 1 July 2005 (whichever is earlier);

[…]13.

13 OMC, WT/DS267/R, para. 8.3, pp. 347-350.

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

463

3. considerAções do pAinel e do órgão de ApelAção: escopo dAs limitAções Ao desenvolvimento de políticAs púBlicAs

Esta seção abordará os principais aspectos examinados pelo painel e pelo Órgão de Apelação no presente caso. Nesse contexto, serão examinados os seguintes pontos: (i) a sequência de análise dos Acordos em questão; (ii) a exceção do Artigo III:8(a) do GATT 1994; (iii) a aplicação do Anexo 1(a) do Acordo TRIMs; e (iv) a análise de benefício no ASMC.

3.1 A sequência de análise das disciplinas em questão

No caso “Canada – Renewable Energy”, o painel decidiu começar a sua análise pelas disposições do Acordo TRIMs14, por considerar que as medidas em questão adotadas pelo Canadá seriam medidas de investimento que afetavam o comércio (TRIMs), pois estabeleciam requisitos de conteúdo local em relação aos equipamentos de geração de energia renovável e componentes para participação no Programa FIT e nos Contratos FIT e microFIT15. Essa ordem de análise, embora questionada pelo Japão durante a fase de apelação16, sob a alegação de que

14 Diversas decisões de painéis anteriores, em casos em que o Acordo TRIMs também fora invocado, fizeram referência à ordem de análise dos Acordos da OMC. Em vários casos, os painéis conferiram prioridade de análise ao GATT 1994 em relação ao Acordo TRIMs, entre eles: (i) Turkey – Rice (DS334), Relatório do painel, para. 7.184; (ii) EC-Bananas III (DS27), Relatório do painel, paras. 7.185-7.186; (iii) Canada – Autos (DS139), Relatório do painel, paras. 10.63-10.64; e (iv) India – Autos (DS146), Relatório do painel, para. 7.157.

15 De acordo com o painel, “[...] the complainants assert, and Canada does not contest, that the measures at issue are trade-related investment measures affecting imports of renewable energy generation equipment and components” e “compared with the SCM Agreement and Article III:4 of the GATT 1994, it is the TRIMs Agreement that deals most directly, specifically and in detail, with the aspects of the FIT Programme, and the FIT and microFIT Contracts, that are at the centre of the complainants’ concerns.” (OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.70, pp. 347-350).

16 Perante o painel, tanto o Japão quanto a UE já haviam sustentado que o ASMC regularia as medidas em questão de forma mais específica e detalhada, razão pela qual eles solicitavam que o exame fosse iniciado por esse acordo. (OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.69, p. 52).

Leandro Rocha de Araujo

464

as disciplinas do ASMC deveriam ser examinadas em primeiro lugar por estabelecerem remédios distintos e mais expeditos17, foi mantida pelo OA, que afirmou não encontrar razão para modificar a decisão do painel:

[…] 5.8. Issues of sequencing may become relevant

to a logical consideration of claims under different

agreements. However, no such issues arise in this case.

The Panel examined the claims under Article III:4 of

the GATT 1994 and the TRIMs Agreement, and then

the claims under the SCM Agreement. Japan has not

indicated why commencing the analysis with the SCM

Agreement could lead to a different outcome than

commencing with the GATT 1994 and the TRIMs

Agreement, as the Panel in this case. We see no

obligation in this case to begin the analysis with

the claims under the SCM Agreement. Ultimately,

the decision in this case as to whether to commence the

analysis with the claims under the SCM Agreement or

those under the GATT 1994 and the TRIMs Agreement was within the Panel’s margin of discretion.18 (grifos

do autor)

Mesmo tendo iniciado a ordem de análise com o Artigo 2.1 do Acordo TRIMs (e, consequentemente, com a avaliação sobre eventual violação do Artigo III:4 do GATT 1994), o painel – e também o OA – não deixaram de examinar a aplicação das disciplinas do ASMC ao presente caso, uma vez que ambos os Acordos estabeleciam obrigações distintas e regulavam questões diversas. Esse entendimento já havia sido adotado no caso Indonesia – Autos (DS54-55-59-64), que destacou:

17 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.7, p. 85.18 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.8, p. 85.

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

465

14.53. […] In the present case, there are in fact two

different, albeit linked, aspects of the car programmes for

which the complainants have raised claims. Some claims

relate to the existence of local content requirements,

alleged to be in violation of the TRIMs Agreement,

and the other claims relate to the existence of

subsidies, alleged to cause serious prejudice within

the meaning of the SCM Agreement.

[…]

14.55. We find that there is no general conflict between

the SCM Agreement and the TRIMs Agreement.

Therefore, to the extent that the Indonesian car

programmes are TRIMs and subsidies, both the

TRIMs Agreement and the SCM Agreement are

applicable to this dispute19. (grifos do autor)

Com base na análise do painel no presente caso, é possível supor que, ainda que a ordem de análise fosse invertida e o exame do painel começasse pelo ASMC, as disciplinas do Acordo TRIMs também seriam objeto de consideração.

Contudo, tendo em vista a ordem de análise estabelecida no presente caso, com o exame do Acordo TRIMs em primeiro lugar, o painel passou então, em virtude do disposto no Artigo 2.1 desse Acordo, ao exame do Artigo III:4 do GATT 1994. Posteriormente, ele analisou os Artigos 3.1(b) e 3.2 do ASMC. Nesse contexto, o painel decidiu apresentar as seguintes perguntas: (i) poderia o Canadá justificar suas medidas com base no Artigo III:8(a) do GATT 1994?; e, caso fosse possível essa justificação, (ii) estariam as medidas canadenses questionadas abrangidas por essa exceção20?

19 OMC, WT/DS54-55-59-64/R, paras. 14.53-14.55, p. 335.20 OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.113, p. 63.

Leandro Rocha de Araujo

466

3.2. A exceção ao tratamento nacional em casos de compras governamentais: a abrangência do Artigo III:8(a) do GATT 1994

Para avaliar se o Artigo III:8(a) do GATT 1994 poderia ser alegado como justificativa para violação do Artigo 2.1 do Acordo TRIMs, o painel verificou que este dispositivo do Acordos TRIMs fazia referência às disciplinas do Artigo III do GATT 1994 e, com isso, abrangia também o Artigo III:8(a). Para o painel, qualquer compra governamental coberta pelo Artigo III:8(a) do GATT 1994 estaria excluída do escopo das obrigações gerais estabelecidas no Artigo III, incluindo o Artigo III:4 do GATT 199421. O Órgão de Apelação também manteve esse entendimento, ao afirmar que:

[…] There is little, if any, indication that the

provisions of the TRIMs Agreement were intended

to override rights recognized in the GATT, such

as the right provided in Article III:8(a). On the

contrary, several provisions of the TRIMs Agreement –

particularly the initial clause of Article 2.1, and Articles

3 and 4 – would seem to reflect reiterative attempts to

safeguard rights recognized in the GATT, rather than to

override them22. (grifos do autor)

Com isso, tanto o painel quanto o Órgão de Apelação garantiram importante espaço para a formulação de políticas públicas eventualmente discriminatórias executadas por

21 Com isso, o painel estabeleceu que “[…] where a particular TRIM involves the same kind of government procurement transactions described in Article III:8(a), it cannot be found to be inconsistent with the obligation in Article 2.1 of TRIMs Agreement.” (OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.118, p. 64).

22 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.32, p. 91.

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

467

meio de compras governamentais, desde que os requisitos do Artigo III:8(a) do GATT 1994 fossem observados. O Canadá argumentou que as medidas em questão estavam amparadas pela exceção prevista nesse artigo do GATT 1994 e, portanto, estavam devidamente justificadas. Com isso, não haveria violação do artigo III:4 do GATT 1994, bem como do Artigo 2.1 do Acordo TRIMs.

Ao analisar a exceção do Artigo III:8(a) do GATT 1994, o painel considerou três fatores23. Inicialmente, ele analisou se “as medidas questionadas poderiam ser caracterizadas como leis, regulamentos ou requisitos que regeriam compras”. A esse respeito, o painel considerou que os requisitos de conteúdo local nos Programas FIT e nos Contratos FIT e MicroFIT seriam uma exigência que regeria a aquisição de energia elétrica por parte da Autoridade de Energia de Ontário24. Em segundo lugar, o painel examinou se as medidas em questão envolveriam compras por agências governamentais. Ao fazer a sua análise, o painel entendeu que essa expressão deveria ser compreendida no sentido de “uma ação do governo para obter a posse sobre produtos por meio de algum tipo de pagamento”, o que também foi constatado pelo painel25.

Em terceiro lugar, o painel avaliou se eventuais compras teriam sido realizadas com o intuito de atender os “objetivos governamentais e não com vistas à revenda comercial ou à utilização na produção de bens para venda comercial”. O painel então definiu que a expressão “objetivos governamentais”26

23 OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.122, pp. 65-66.24 OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.127, p. 67.25 OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.136, p. 69.26 As partes na presente disputa tinham opiniões bastante distintas a respeito do que seriam “objetivos

governamentais”, conforme se verifica a seguir: “At one end of the spectrum, Canada proposes the broadest meaning of the parties, suggesting that a purchase for ‘governmental purposes’ may exist whenever a government purchases a product for a stated aim of the government. At the other

Leandro Rocha de Araujo

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deveria ser interpretada em justaposição com a expressão “e não com vistas à revenda comercial ou à utilização na produção de bens para venda comercial”. Com isso, o painel considerou que essa última parte do Artigo III:8(a) do GATT 1994 deveria reger a análise de toda a segunda parte do dispositivo.

Por meio dessa interpretação do painel, a expressão “objetivos governamentais” não recebeu definição própria, ficando vinculada a não ocorrência de revenda comercial ou de utilização na produção de bens para venda comercial. Se não ocorresse nenhuma dessas duas hipóteses previstas na parte final do dispositivo, estaria presente o “objetivo governamental”27. Por sua vez, se o painel tivesse adotado uma interpretação específica para a expressão “objetivos governamentais”, esse provavelmente se tornaria um requisito adicional a ser cumprido pelos Membros para que pudessem justificar suas políticas com base nessa exceção.

Como se sabe, diferentes governos podem ter diferentes objetivos. Portanto, a não definição pelo painel desse conceito conferiu maior margem aos Membros para desenvolver políticas públicas por meio de compras governamentais que visassem a promoção de seus objetivos. Talvez tenha sido a intenção do painel de não restringir esse conceito, para que os Membros tivessem a possibilidade de adotar a sua própria definição do que seriam “objetivos governamentais”, ampliando os limites da policy space para os Membros.

extreme, Japan advances the narrowest meaning, submitting that a purchase for ‘governmental purposes’ must be limited to purchases of products for governmental use, consumption or benefit. The European Union takes an intermediate position, proposing a meaning of ‘governmental purposes’ that refers to government purchases for governmental needs, which include both the purchase of goods consumed by the government itself and those necessary for a government’s provision of public services.” (OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.145, p. 72).

27 De acordo com o painel, “a purchase of goods for ‘governmental purposes’ cannot at the same time amount to a government purchase of goods ‘with a view to commercial resale’ under the terms of Article III:8(a).” (OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.145, p. 72).

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

469

Em relação à definição de “revenda comercial”, o painel entendeu que ela não teria o “lucro” necessariamente como um elemento fundamental, embora a existência desse fator pudesse caracterizá-la como comercial. Nesse contexto, o painel verificou que o Governo de Ontário teria tido lucros provenientes da venda de energia elétrica adquirida no âmbito do Programa FIT, razão pela qual o painel entendeu que a aquisição de energia elétrica pelo Governo de Ontário havia sido realizada com vistas à revenda comercial. Por essa razão, o painel considerou que essas medidas não estariam cobertas pelo Artigo III:8(a) do GATT 199428.

O OA, ao examinar as disciplinas do Artigo III:8(a), apresentou análise mais restritiva que a do painel. Em primeiro lugar, esse Órgão discordou do painel e afirmou que “objetivos governamentais” e “não com vistas à revenda comercial ou à utilização na produção de bens para venda comercial” seriam dois requisitos cumulativos, não devendo ser lidos em conjunto29. Além disso, afirmou que produtos adquiridos para objetivos governamentais, nos termos do Artigo o III:8(a) do GATT 1994, seriam aqueles consumidos pelo governo ou aqueles conferidos pelo governo aos destinatários no desempenho de suas funções públicas. O escopo dessas funções deverá ser determinado em uma análise caso a caso30.

28 OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.151, pp. 74-75.29 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.69, p. 100.30 Segundo o Órgão de Apelação, “[…] therefore, we are of the view that the phrase “products

purchased for governmental purposes” in Article III:8(a) refers to what is consumed by government or what is provided by government to recipients in the discharge of its public functions. The scope of these functions is to be determined on a case by case basis”. (OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.68, pp. 99-100). Essa também foi a interpretação sugerida pelo Brasil perante o painel e o Órgão de Apelação. Na audiência do Painel, o Brasil destacou que “[...] the ‘purpose of a government’ cannot be conceptually construed. It can only be assessed on a case-by-case basis, as it will vary according to the different roles that governments may come to play in different societies, which in turn may depend on the size of a given State in its economy and the degree of intervention exerted in practice in any given country.” (DS412-426,

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Nesse contexto, o OA citou um exemplo dessas funções públicas, apresentado durante a audiência, em que um hospital público adquire remédios e os fornece aos seus pacientes, o qual foi aceito por Canadá e UE31. Com isso, o OA restringiu mais o conceito de “objetivos governamentais”, determinando uma avaliação do caso concreto para certificar de que os produtos adquiridos foram consumidos pelo governo ou foram conferidos pelo governo aos destinatários no desempenho de suas funções públicas.

Essa interpretação, se por um lado reduz os limites para a adoção de políticas públicas pelos Membros da OMC, ao conferir conteúdo valorativo, ainda que variável (a depender do que venha a ser considerado como “desempenho de suas funções públicas”) ao conceito de objetivos governamentais, por outro, estabelece critérios para a utilização da exceção do Artigo III:8(a) do GATT 1994.

Contudo, na avaliação específica das medidas em questão à luz dos requisitos do dispositivo, o Órgão de Apelação considerou que a exceção estaria relacionada ao tratamento discriminatório decorrente de leis, regulamentos, ou requisitos regendo compras governamentais por agências governamentais de produtos adquiridos. Esses produtos adquiridos seriam os

Panel, Oral statement of Brazil, 28 March 2012, par. 3). Na petição de terceira parte perante o OA, o Brasil indicou que “[…] the appropriate analysis under Article III:8(a) of the GATT 1994 should thus compare the overall design, structure and architecture of a procurement program with the legal and regulatory framework of the responding Member, assessing whether the purchase of goods under scrutiny genuinely pertains to a governmental function in the specific sector of that Member’s economy, in light of the legitimate policy objectives within that State’s society” e, assim, concluiu que “[…] the assessment on whether a given purchase of goods is made for ‘governmental purposes’ and ‘not with a view for commercial resale’ should be done on a case-by-case basis, giving meaning and substance to all of the requirements of Article III:8(a), while avoiding interpretations that could allow the circumvention of the disciplines of National Treatment found in Article III of the GATT 1994.” (DS412-426, Appellate Body, Third Participant Submission of Brazil, 27 February 2013, par. 28).

31 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, nota de rodapé nº 514, p. 100.

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

471

produtos similares ou os que tivessem uma relação competitiva, tendo como referência os Artigos III e a Ad Note do Artigo III:2 do GATT 199432.

Enquanto o painel havia considerado ser suficiente uma “relação próxima” entre o produto supostamente discriminado (equipamentos de geração de energia eólica ou solar) e o produto adquirido na compra governamental (eletricidade), que poderia ser satisfeito com o fato de que os equipamentos de geração são necessários e usados para a produção de eletricidade, o Órgão de Apelação considerou que, para estar abrangido pela exceção do Artigo III:8(a) do GATT 1994, deveria haver uma relação competitiva entre o produto supostamente discriminado e o produto adquirido por meio da compra governamental.

Na avaliação dos programas canadenses, o Órgão considerou então que não havia uma relação competitiva entre os equipamentos para geração de energia eólica ou solar e a eletricidade e, por essa razão, concluiu que as medidas em questão não poderiam estar cobertas pelo Artigo III:8(a) do GATT 1994, nos seguintes termos:

5.79. [...] the product of foreign origin allegedly

being discriminated against must be in a competitive

relationship with the product purchased. In the case

before us, the product being procured is electricity,

whereas the product discriminated against for

reason of its origin is generation equipment. These

two products are not in a competitive relationship.

[…] Accordingly, the discrimination relating

to generation equipment contained in the FIT

Programme and Contracts is not covered by the

32 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.63, p. 98.

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derogation of Article III:8(a) of the GATT 1994. We

therefore reverse the Panel’s findings […] that the the

Minimum Required Domestic Content Levels of the FIT

Programme and related FIT and microFIT Contracts

are laws, regulations, or requirements governing the

procurement by governmental agencies of electricity

within the meaning of Article III:8(a) of the GATT

199433. (grifos do autor)

3.3. O escopo do Anexo 1(a) do Acordo TRIMs

Após considerar a inaplicabilidade da exceção do Artigo III:8(a) do GATT 1994 para a disputa atual, o painel analisou se as medidas em questão estariam abrangidas pelas disciplinas do Anexo 1(a) do Acordo TRIMs. O painel concluiu que os parâmetros de conteúdo local mínimo presentes nessas medidas exigiam a aquisição ou o uso de certa porcentagem de equipamentos e componentes originados domesticamente (em Ontário) para a geração de energia renovável.

Além disso, o painel considerou que essas exigências de con-teúdo local seriam uma condição necessária para a obtenção de uma vantagem, que, no caso, seria a possibilidade de receber o preço fixo garantido para cada KWh de eletricidade entregue ao sistema elétrico de Ontário. Portanto, a mera participação no programa FIT foi considerada como uma vantagem, nos termos do caput do parágrafo 1(a) da Lista Ilustrativa. Assim, o painel concluiu que tanto o Programa FIT quanto os Contratos FIT e MicroFIT seriam incompatíveis com o Artigo III:4 do GATT 1994 e, consequentemente, com o Artigo 2.1 do Acordo TRIMs, o que foi confirmado pelo Órgão de Apelação, nos termos a seguir:

33 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.79, p. 102.

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

473

5.85. In the light of four finding that the Minimum

Required Domestic Content Levels do not fall within the

ambit of Article III:8(a), and in the light of the fact that

Canada has not appealed the Panel’s finding that the FIT

Programme and Contracts are inconsistent with Article

III:4 of the GATT 1994 and Article 2.1 of the TRIMs

Agreement, the Panel’s conclusion, in paragraph 8.2 of

the Japan Panel Report and in paragraph 8.6 of the EU

Panel Report, that the Minimum Required Domestic

Content Levels prescribed under the FIT Programme

and related FIT and microFIT Contracts are inconsistent

with Article 2.1 of the TRIMs Agreement and Article

III:4 of the GATT 1994 stands34.

3.4. O conceito de benefício na avaliação sobre a existência de subsídio

O painel também avaliou as medidas em questão com base nos artigos 3.1(b) e 3.2 do ASMC. Assim, a primeira análise do painel foi a de que as medidas em questão poderiam ser consideradas como uma “contribuição financeira”, na forma de compras governamentais de bens, uma vez que o Governo de Ontário teria posse sobre a eletricidade gerada pelos participantes do programa e, assim, adquiria a eletricidade.

Em relação ao conceito de benefício, os dois demandantes alegaram que as medidas em questão concederiam uma vantagem aos participantes do programa porque: (i) garantiam que os geradores FIT e MicroFIT de energia receberiam um preço para a eletricidade que excederia o preço da eletricidade no mercado

34 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.85, p. 103.

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atacadista de eletricidade em Ontário ou, alternativamente, em qualquer uma das quatro jurisdições fora de Ontário (Alberta, Nova York, Nova Inglaterra, e região do Meio-Atlântico dos EUA); e (ii) o programa se destinava a facilitar o investimento privado na geração de energia renovável que o mercado atacadista em Ontário era incapaz de atrair35. O Canadá afirmou que o parâmetro (benchmark) apropriado de preço para a análise do benefício, no exame sobre a existência do subsídio, deveria ser encontrado no mercado de eletricidade produzida a partir de tecnologia eólica e solar, em razão dos diferentes custos associados a diferentes tecnologias.

Segundo o painel, haveria a existência de um benefício se fosse conferida uma vantagem ao destinatário. Essa vantagem deveria ser determinada pela comparação da situação do destinatário com e sem a contribuição financeira. No entanto, o painel não aceitou os parâmetros (benchmarks) propostos pelos demandantes, incluindo as alternativas sugeridas, ao afirmar que elas não seriam precisas o suficiente para permitir uma avaliação das condições do mercado de energia em Ontário. Um dos argumentos para sustentar esse entendimento foi o de que o mercado atacadista administrado de eletricidade não era um mercado competitivo e, por isso, ele não poderia ser usado como parâmetro. Com base nessa interpretação, o painel indiretamente indicou que apenas os mercados competitivos poderiam ser utilizados como parâmetro na análise do benefício, para os fins do ASMC.

Assim, a maioria do painel considerou que os demandantes não tinham demonstrado adequadamente que, na ausência

35 OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.255, p. 109.

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

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do Programa FIT, os geradores FIT deveriam operar em um mercado atacadista de eletricidade competitivo. Ao não acatar os argumentos dos demandantes sobre a existência de benefício, o painel concluiu, por maioria de votos, que as medidas em questão não constituíam um subsídio nos termos do ASMC. O painel, no entanto, recusou-se a indicar quais seriam os parâmetros apropriados para completar a análise do benefício36.

Houve, porém, uma opinião dissidente no painel quanto à análise sobre a existência do benefício. O painelista dissidente apresentou uma visão mais ampla do conceito de benchmark, indicando que não só os mercados competitivos deveriam ser usados como parâmetro, mas também os mercados imperfeitos, se fosse o caso37. Além disso, esse painelista sugeriu que o foco da análise de benefício estaria no mercado em questão, independentemente de suas características específicas ou imperfeições38. Com base nisso, o painelista dissidente concluiu que “ao trazer esses produtores de eletricidade menos eficientes e de alto custo para o mercado atacadista de eletricidade, quando

36 No entanto, o painel apresentou suas observações sobre como a questão do benefício poderia ter sido abordada pelos demandantes: “we are of the view that one approach to determining whether the challenged measures confer a benefit could be to compare the rate of return obtained by the FIT generators under the terms and conditions of the FIT and microFIT Contracts with the average cost of capital in Canada for projects having a comparable risk profile in the same period.” (OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 7.323, p. 135).

37 O painelista dissidente afirmou que “the fact that a competitive market might not exist in the absence of government intervention or that it may not achieve all of the objectives that a government would like it to achieve, does not mean it cannot be used for the purpose of conducting a benefit analysis.” (OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 9.6, p. 142).

38 De acordo com o Órgão de Apelação no caso Japan – DRAMs (Korea), “the terms of a financial transaction must be assessed against the terms that would result from unconstrained exchange in the relevant market. The relevant market may be more or less developed; it may be made up of many or few participants. [...] In some instances, the market may be more rudimentary. In other instances, it may be difficult to establish the relevant market and its results. But these informational constraints do not alter the basic framework from which the analysis should proceed. [...] There is but one standard — the market standard according to which rational investors act.” (OMC, WT/DS336/AB/R, para. 172, p. 60).

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de outra forma eles não estariam presentes, as compras de eletricidade, pelo Governo de Ontário, a partir de energia solar fotovoltaica e eólica, por meio do Programa FIT, claramente conferiram uma vantagem aos geradores FIT, nos termos do Artigo 1.1(b) do ASMC”39e40.

Ao decidir que apenas os mercados competitivos deveriam ser utilizados como referência para a análise do benefício, o painel deixou espaço suficiente para uma adoção mais ampla de políticas de apoio financeiro em mercados altamente regulados, como o mercado de eletricidade. O painelista dissidente, por sua vez, buscou apresentar interpretação alternativa, conferindo menor margem de manobra para os Membros em mercados altamente regulados.

O OA, contudo, decidiu modificar a ordem de análise estabelecida pelo painel, primeiro definindo qual seria o mercado relevante, para só então fazer a análise do benefício do Artigo 1.1(b) do ASMC. Nesse contexto, considerou que uma análise baseada no mercado em relação aos parâmetros de benefício não deveria impedir a avaliação de situações nas quais os governos intervêm para criar mercados que de outra forma não existiriam, como os mercados de eletricidade com oferta constante e confiável. Na análise do mercado relevante, o Órgão de Apelação afirmou que a atuação governamental em mercados regulados, como o de energia elétrica, não excluiria per se a

39 OMC, WT/DS412/R e WT/DS426/R, para. 9.23, p. 148.40 Segundo Marie Wilke, “experts suggested that if FIT programmes are ‘government procurement’,

as a consequence of the WTO law’s structure, they would be free to discriminate against ‘whoever they want’. However, the SCM Agreement can apply to government procurement if the payment is made ‘above market standards’. Otherwise, the SCM Agreement’s alternative (iii) regarding the ‘purchase of goods’ and ‘provisions of goods and services’ would be nullified to a large extent.” (Wilke, 2011, p. 12).

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

477

avaliação dos preços resultantes como preços de mercado para os fins da análise de benefício do Artigo 1.1(b) do ASMC41.

Para o OA, a definição governamental a respeito da combinação de fontes para o fornecimento de energia em Ontário deve moldar os mercados nos quais os geradores de eletricidade competem por meio de diferentes tecnologias. Diferenças importantes nos custos estruturais e operacionais no lado da oferta impediriam a existência de geração de energia eólica e solar, se não fosse pela combinação de fontes, estabelecida pelo governo, para a oferta de eletricidade proveniente de diferentes tecnologias de geração de energia42.

Ao discorrer sobre as externalidades positivas e negativas relacionadas a cada fonte de energia, o que contribui para a definição governamental sobre a combinação das fontes para o fornecimento de energia e é uma das razões para a intervenção governamental para a criação de mercados para a energia renovável, o OA indicou que a comparação entre os geradores de eletricidade de fontes renováveis e de fontes convencionais requer consideração dos custos associados à sua geração43. Nesse contexto, o OA sugeriu qual seria um parâmetro adequado, no presente caso, para a análise do benefício. Esse benchmark deveria levar em consideração a combinação de fontes para o

41 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.185, p. 127.42 Segundo o Órgão de Apelação, “[…] Had the Panel more thoroughly scrutinized supply-

side factors, it would have come to the conclusion that, even if demand-side factors weigh in favour of defining the relevant market as a single market for electricity generated from all sources of energy, supply-side factors suggest that important differences in cost structures and operating costs and characteristics among generating technologies prevent the very existence of windpower and solar PV generation, absent government definition of the energy supply-mix of electricity generation technologies. This, in turn, would have lead the Panel to conclude that the benefit comparison under Article 1.1(b) should not be conducted within the competitive wholesale electricity market as a whole, but within competitive markets for wind- and solar PV-generated electricity, which are created by the government definition of the energy supply-mix.” (OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.178, p. 125).

43 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.189, p. 127.

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fornecimento de energia estabelecida pelo Governo de Ontário, bem como conta as especificidades das tecnologias eólica e solar no contexto do mercado de energia em questão, conforme a seguir:

5.190. […] we believe that benefit benchmarks for Wind

– and solar PV- generated electricity should be found

in the markets for wind - and solar PV – generated

electricity that result from the supply-mix definition.

Thus, where the government has defined an energy

supply-mix that includes windpower and solar PV

electricity generation technologies, as in the present

disputes, a benchmark comparison for purposes

of a benefit analysis for windpower and solar PV

electricity generation should be with the terms and

conditions that would be available under market-

based conditions for each of these technologies,

taking the supply-mix as a given44.

O OA considerou que o painel havia errado ao não elaborar uma análise do benefício com base em um mercado estruturado na definição governamental da combinação das fontes para o fornecimento de energia, e em um benchmark localizado no mercado, o qual refletiria preços competitivos para geração de energia eólica e solar fotovoltaica, embora tivesse elementos para tanto45.

44 OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.190, p. 127-128.45 De acordo com o Órgão de Apelação, “[…] Panels also have broad fact-finding powers and

may seek information from any source. We do not think that the Panel should have limited its analysis to the proposed benefit approach, and/or to the benchmarks that were part of the complainants’ principal argument, in a situation where the evidence and the arguments presented by the complainants, and the arguments in response by Canada, may have allowed it to develop its own reasoning and to make findings based on a benchmark that took into account the government’s definition of the energy supply-mix. Provided the complainants had presented relevant evidence and arguments to make a prima facie case, it was for the Panel to

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

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O OA adotou uma posição intermediária entre a posição majoritária e a posição minoritária do painel. Por um lado, indicou haver um benchmark para fins da análise de benefício, mesmo em um mercado altamente regulado, como o mercado de energia elétrica. Por outro, qualificou esse benchmark, para adequá-lo às condições específicas do mercado relevante, tendo em vista as características da combinação das fontes para o fornecimento de energia em Ontário.

Em comparação com a decisão majoritária do painel, o OA apresentou interpretação que aponta a reduzir a discricionariedade aos Membros para atuar em mercados não competitivos, sem que esses programas pudessem ser considerados subsídios. Ao indicar ser possível construir um benchmark para a análise do benefício em mercados altamente regulados, levando-se em consideração as especificidades do mercado, o OA criou precedente importante, demonstrando que, na análise do caso concreto, poder-se-á determinar eventual parâmetro de referência em futuros casos.

4. conclusão

O presente trabalho analisou o precedente trazido pelo caso “Canada – Renewable Energy” na OMC, que examinou os limites, à luz das disciplinas multilaterais em vigor, para a formulação e execução de políticas públicas pelos Membros da organização. Conforme verificado, as regras existentes no Acordo TRIMs, no GATT 1994 e no ASMC estabelecem restrições para a adoção de

analyze the appropriate benchmark or proxy. We observe that arguments and evidence were presented before the Panel that could have been useful in identifying a benefit benchmark that took into account the Government of Ontario’s definition of the energy supply-mix, including wind- and solar PV-generated electricity”. (OMC, WT/DS412/AB/R e WT/DS426/AB/R, para. 5.215, p. 132).

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políticas que possam conferir tratamento menos favorável aos produtos importados. Com base nessa análise, tanto o painel quanto o OA apresentaram interpretações importantes sobre a possibilidade de os Membros adotarem medidas que possam ser consideradas discriminatórias nas compras governamentais de produtos para objetivos governamentais.

No que se refere ao Artigo III:8(a) do GATT 1994, o painel adotou posição mais flexível, sobretudo no que se refere ao escopo de “objetivos governamentais”, conceito que acabou não sendo definido, e ao caráter da relação entre o produto supostamente discriminado e o produto adquirido na compra governamental (uma “relação próxima” seria suficiente para o painel), conferindo maior possibilidade de utilização dessa exceção pelos Membros. O OA, por sua vez, promoveu interpretação mais restritiva desse dispositivo, conceituando a expressão “objetivos governamentais”, que seria um critério cumulativo em relação à parte final do dispositivo e, por isso, deveria ser interpretado caso a caso. Além disso, o OA conferiu conteúdo valorativo, ainda que variável (a depender do que venha a ser considerado como “desempenho de suas funções públicas” no caso concreto) ao conceito de “objetivos governamentais”, ao esclarecer o alcance da exceção do Artigo III:8(a) do GATT 1994.

Além disso, o OA também interpretou de maneira menos flexível a relação entre o produto supostamente discriminado e o produto adquirido na compra governamental, que deveria ser uma “relação competitiva”. Com isso, considerou não ser possível a utilização da referida exceção em relação aos programas canadenses, razão pela qual foi constatada a incompatibilidade das medidas em questão com o Artigo III:4 do GATT 1994, na análise das condições do Artigo 2.1 do Acordo TRIMs.

O caso “Energia Renovável” na OMC: um precedente sobre os limites para a adoção de políticas públicas

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Em relação ao conceito de benefício na avaliação sobre a existência do subsídio, verifica-se uma situação peculiar. O painel entendeu, por maioria, que os benchmarks apresentados pelos demandantes não serviriam como parâmetro de referência para mercados altamente regulados, como é o mercado de energia elétrica. Com base nessa interpretação, o painel deixou espaço suficiente para uma adoção mais ampla de políticas de apoio financeiro em mercados altamente regulados, como o mercado de eletricidade.

Por sua vez, a opinião dissidente entendeu que não só os mercados competitivos deveriam ser usados como parâmetro, mas também os mercados imperfeitos, se fosse o caso. Assim, considerou que benchmarks poderiam ser identificados também no mercado de energia. Para ele, as compras de eletricidade pelo Governo de Ontário, a partir de energia solar fotovoltaica e eólica, por meio do Programa FIT, conferiram uma vantagem aos beneficiários do programa. Nesse contexto, a opinião dissidente, se adotada, reduziria o espaço para que os Membros adotassem políticas de incentivo a determinados setores da economia.

O OA, em relação a este ponto, adotou posição intermediária, levando em conta as especificidades do mercado em questão. Assim, ele indicou que um benchmark nesse caso deveria levar em consideração a combinação de fontes para o fornecimento de energia estabelecida pelo Governo de Ontário, bem como conta as especificidades das tecnologias eólica e solar no contexto do mercado de energia em questão. Pode-se afirmar que também neste caso o Órgão de Apelação adotou interpretação mais restritiva que o painel, em relação à margem de policy space conferida aos Membros da OMC, buscando adequar o seu escopo, tanto quanto possível, aos limites do caso concreto.

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Como se verifica, o presente caso trouxe importante precedente para a análise da compatibilidade de políticas públicas à luz das regras do sistema multilateral de comércio. Ao estabelecer os parâmetros de análise mencionados acima, o painel e o Órgão de Apelação adotaram uma abordagem que delimita o espaço para os Membros formularem políticas públicas para a promoção dos seus objetivos governamentais em setores altamente regulados.

Finalmente, é importante mencionar que esse debate ainda não está terminado na OMC. A possibilidade de utilização do Artigo XX do GATT 1994 (exceções gerais) para justificar medidas discriminatórias, especialmente como violações do artigo III do GATT 1994 ou dos Acordos TRIMs e ASMC, não foi testada nesse caso e poderá ser invocada em outras disputas sobre o mesmo tipo de medidas no futuro. Assim, esse precedente é limitado em seu alcance e outras questões legais podem ser invocadas e desenvolvidas em outras disputas no futuro.

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Diplomata, atualmente é assessora na Coordenação-Geral de Contenciosos do Ministério das Relações Exteriores. Formada em farmácia, possui doutorado e mestrado em ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, bem como mestrado em diplomacia pelo Instituto Rio Branco em barreiras sanitárias ao comércio de alimentos. Foi subchefe da Divisão de Atos Internacionais do MRE de 2011 a 2013.

medidAs Antidumping: jurisprudênciA no âmBito dA omc e AutonomiA decisóriA de seus memBros em tempos

de crise econômicA

Rebecca Nicolich

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1. introdução

O recurso a medidas protecionistas em tempos de crise econômica não é novidade. Durante a Grande Depressão de 1929, países industrializados se envolveram em

uma disputa comercial acirrada, em que a imposição de amplos aumentos tarifários por um país acarretava a imediata retaliação pelos demais na mesma forma de tarifação generalizada. No contexto da crise econômica mundial de 2008, diferentemente, verificou-se que medidas protecionistas adotadas foram comedidas em comparação a 1929 e se limitaram a alguns setores, muitos dos quais já se beneficiavam historicamente de algum protecionismo comercial1. Ademais, no que tange a medidas dentro das fronteiras, houve amplo uso de subsídios domésticos, inclusive, de subsídios em massa ao setor de serviços, bem como de subsídios destinados a evitar a saída de plantas produtivas de grandes transnacionais do território2.

O último relatório da Organização Mundial do Comércio sobre medidas restritivas ao comércio aplicadas pelos países do G203 desde o início da crise corrobora essa percepção de que a maioria dos países-membros da Organização, até agora, resistiu a recorrer ao protecionismo generalizado. Foi estimado

1 RUDDY, 2010.2 HORLICK, Clarke, 2010.3 OMC, 2013.

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486

que essas medidas abarcariam cerca de 3,6% das importações mundiais de mercadorias e em torno de 4,6% do comércio das economias do G20, de maneira que o impacto comercial acumulado das restrições à importação implementadas pelas economias do G20 no comércio do próprio G20 seria de 0,2%. Esse comedimento para a aplicação de medidas protecionistas é atribuído aos compromissos assumidos pelos Estados ao aderirem à OMC, de maneira que a aplicação de medidas de defesa comercial está condicionada ao cumprimento de certos requisitos estabelecidos pelos acordos da Organização, que delimitam a autonomia decisória (policy space) de seus Membros na matéria.

Os textos da OMC preveem três tipos de medidas de defesa comercial: salvaguardas, direitos antidumping e medidas compensatórias. Contudo, para aplicar qualquer uma dessas medidas, é obrigatório que se conduza investigação prévia que demonstre a propriedade e a necessidade da sua aplicação, sempre respeitando os princípios do contraditório e da transparência, e tendo por base as regras estabelecidas nos respectivos acordos da OMC e nos procedimentos administrativos internos na matéria do Estado investigado4. Sequer compromissos voluntários ou medidas cautelares podem ser adotados sem que haja investigação preliminar que indique propriedade e necessidade.

4 No caso do Brasil, a Lei Nº 9.019, de 30 de março de 1995, atribuiu à Secretaria de Comércio Exterior (SECEX) a competência para conduzir de processos administrativos e emitir pareceres técnicos referentes à prática de dumping, a pedido da indústria doméstica ou, em circunstâncias excepcionais, de ofício, e à Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) a competência de decidir, com base no parecer da SECEX, sobre a fixação de direitos antidumping provisórios ou definitivos. No caso específico dos direitos antidumping, os procedimentos administrativos referentes à investigação e à aplicação dessas medidas foram detalhados pelo Decreto Nº 1.602, de 23 de agosto de 1995, consoante o próprio Acordo Antidumping, recentemente substituído pelo Decreto Nº 8.058, de 26 de julho de 2013.

Medidas antidumping: jurisprudência no âmbito da OMC e autonomia decisória de seus membros em tempos de crise econômica

487

O direito de aplicar medidas antidumping é reconhecido desde o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) de 1947, porém somente a partir da Rodada Kennedy foi negociado acordo vinculante apartado que estabelecia regras e critérios mais detalhados para aplicação dessas medidas. O Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do GATT 1994 (Acordo Antidumping), resultante dessas negociações, não determina, todavia, diversos aspectos técnicos relativos às investigações e é repleto de ambiguidades conciliatórias de negociação, de maneira que painéis e Órgão de Apelação (OA) da OMC têm atuado no sentido de esclarecer alguns de seus aspectos e de rechaçar interpretações “inerentemente injustas”, como a da prática do “zeroing”, já discutida em capítulos anteriores.

Neste artigo, será discutida a correlação entre evolução jurisprudencial no âmbito da OMC e redução da autonomia decisória dos Estados em medidas antidumping. Primeiramente, será feita breve recordação de algumas cláusulas polêmicas do Acordo Antidumping e da interpretação dada por decisões, particularmente, do OA. Após serão analisadas estatísticas referentes à notificação e ao questionamento de medidas antidumping aplicadas pelos Membros da OMC desde 1995.

2. o Acordo e A jurisprudênciA em Antidumping

Uma empresa que tem diversas linhas produtivas pode dividir seus custos entre os produtos de maneira a otimizar vendas e receitas. Produtos de luxo, por exemplo, apresentam baixa elasticidade de preço, ou seja, é possível aumentar seus preços até certo limite sem que se diminua a demanda na mesma proporção; ao passo que produtos populares conquistam mercado quanto mais barato forem. Vender certos produtos com preço abaixo do custo total e compensar esse custo nos preços

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de outro produto é uma estratégia empresarial corriqueira. No caso de produtos vendidos para mercados de diferentes países, semelhante diferenciação de preços pode ocorrer, inclusive, tendo em conta eventuais diferenças de demanda e de poder de mercado em cada país.

Quando se verifica esse tipo de diferenciação internacional de preço, isto é, os preços de produtos exportados a determinado país são inferiores ao valor normal, define-se essa situação como dumping. Nesses casos, se as exportações causarem ou ameaçarem causar dano à indústria local, os países afetados podem adotar medidas para protegerem-se da prática, considerada desleal. Dada, no entanto, a capacidade dessas ações gerarem efeitos adversos aos fluxos de comércio internacional, os acordos da OMC contemplam uma série de disciplinas, definidas no Acordo Antidumping (AD) que regulam as ações dos Membros contra o dumping5.

O primeiro passo para se adotar medidas antidumping é, portanto, averiguar se o dumping está ocorrendo, isto é, determinar o preço de exportação do produto e seu preço normal, e compará-los. Enquanto tende a ser mais fácil determinar preço de exportação, visto que esse valor é registrado em inúmeros documentos referentes a transações comerciais, estabelecer preço normal de produto não é tão simples, como no caso de preços domésticos de economias qualificadas como não sendo economias de mercado, em que existe a possibilidade de que sejam fixados pelo governo. Determinados esses dois conjuntos de valores, o AD exige que seja feita comparação justa entre eles.

É entendido, por exemplo, não ser justo comparar preços de apenas parte das transações, em vez de preços de todas

5 Vide, a respeito, HESS (2012, pp. 41-51), que recorda, ainda, equívocos que não deveriam fundamentar a adoção de medidas antidumping.

Medidas antidumping: jurisprudência no âmbito da OMC e autonomia decisória de seus membros em tempos de crise econômica

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as transações, sob o argumento de se tratar de amostragem estatística6. Tampouco é considerado justo o uso do método de cálculo do “zeroing”, seja para excluir transações de um produto com valor acima do preço normal do cálculo da margem de dumping, seja para excluir supostos modelos de um tipo de produto desse cálculo7, seja para excluir transações de certas regiões ou períodos por se distinguirem do resto (“targeted dumping”). Ademais, dumping não precisa ser a causa principal do dano, mas outros fatores precisam ser avaliados. Ao não separar e distinguir os efeitos de cada fator, não se considera haver base racional para a atribuição do dano ao dumping8.

Alguns analistas entendem que muitas decisões de painéis e OA são fruto de ativismo pelo livre-comércio, que os compele a desconsiderar, a criar ou a interpretar restritivamente disposições dos Acordos da OMC, sempre a favor do Membro que reclama de barreiras ao comércio9. O principal argumento dessa corrente é que o Artigo 17.6, incisos (i) e (ii), do Acordo Antidumping faz deferência à autonomia decisória dos Estados-membros no que tange à condução de investigações e à interpretação das disposições do Acordo. In verbis,

Art 17.6.O Grupo Especial, ao examinar a matéria

objeto do parágrafo:

(a) ao avaliar os elementos de fato da matéria

determinará se as autoridades terão estabelecidos os

fatos com propriedade e se sua avaliação dos mesmos foi

6 DS 241 – Argentina-Poultry. Relatório do Painel, parágrafos 7272-7257.7 DS 141 – EC Bed Linnen, Relatório do Órgão de Apelação, parágrafo 228.8 DS 184 – US Hot-Rolled Steel, Relatório do Órgão de Apelação, parágrafo 223.9 GREENWALD, 2003; CUNNINGHAM E CRIBB, 2003; TARULLO, 2003.

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imparcial e objetiva. Se tal ocorreu, mesmo que o Grupo

Especial tenha eventualmente chegado à conclusão

diversa, não se considerará inválida a avaliação;

(b) interpretará as disposições pertinentes do Acordo

segundo regras consuetudinárias de interpretação do

Direito Internacional Público. Sempre que o Grupo

Especial concluir que uma disposição pertinente do

Acordo admite mais de uma interpretação aceitável,

declarará que as medidas das autoridades estão em

conformidade com o Acordo se as mesmas encontram

respaldo em uma das interpretações possíveis10.

Todavia, o OA já se pronunciou no sentido de confirmar o entendimento de que o inciso (i) acima implica revisão ativa dos fatos pelo painel, em vez de aceitação resignada das conclusões das autoridades investigadoras11. Ademais, o inciso (ii) não faz referência a qualquer interpretação possível, mas apenas àquelas feitas conforme as regras atualmente codificadas pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, em que o significado ordinário (textual) de qualquer disposição deve ser apurado no contexto e à luz do objeto e dos propósitos do tratado12 – e não à luz de interesses particulares conjunturais.

A respeito dessa discussão, Du13 pondera que os textos da OMC apresentam redação ambígua e pouco detalhada não só por terem conciliado interesses e visões de mundo diversos de um grupo numeroso e heterogêneo de Estados soberanos, mas também para serem aplicáveis a diversas situações, inclusive

10 Decreto 1355; 94 que incorpora a Ata Final da Rodada Uruguai. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and1355-94.pdf>. Acesso em: 30/5/2013.

11 DS 184 – US Hot-Rolled Steel, Relatório do Órgão de Apelação, parágrafo 55.12 DS 184 – US Hot-Rolled Steel, Relatório do Órgão de Apelação, parágrafo 59.13 DU, 2001.

Medidas antidumping: jurisprudência no âmbito da OMC e autonomia decisória de seus membros em tempos de crise econômica

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àquelas futuras, imprevisíveis no momento de negociação. Ainda que seus Membros tenham concordado em exercer sua soberania dentro dos limites acordados no âmbito da OMC para obter certos ganhos, o autor alerta para o fato de algumas interpretações dadas pelo Órgão de Apelação não refletirem o entendimento das instituições democráticas dos Estados durante o processo de ratificação.

Mavroids, Messerlin e Wauters14 defendem, ao contrário, que o OA é o único contrapeso à inclinação sistemática de alguns Membros à laxidão de regras e procedimentos relativos à aplicação de direitos antidumping. Argumentam, ademais, que o conceito de dumping, especificamente enquanto estratégia predatória de preços, que cria distorções entre mercados com o objetivo de eliminar a concorrência, nem é fato verificável no mundo real, nem é viável teoricamente em termos econômicos. Nesse sentido, chegam a sugerir que os Acordos de Antidumping e Salvaguardas sejam condensados, visto que ambos visam a proteger a indústria local de importações com as quais não se tem condições de competir.

3. dAdos e Análises soBre notificAção e questionAmento de medidAs

A assertiva de que a jurisprudência no âmbito da OMC tem furtado, em larga escala, os Membros de sua autonomia decisória para aplicar direitos antidumping não se sustentaria em fatos, de acordo com Durling15. Esse autor analisou dados sobre controvérsias em antidumping no período de 1º de janeiro de 1995 a 30 de setembro de 2002, quando 1.173

14 MAVROIDS, MESSERLIN E WAUTERS, 2008, pp. 286-290.15 DURLING, 2003.

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medidas antidumping foram notificadas, porém somente 37 pedidos de consultas relativas a medidas antidumping foram feitos. Evoluíram para composição e conclusão de painel 13 dessas consultas, tendo o painel aceito apenas metade de todas as alegações (“claims”). Ao indicar que em metade desses 13 casos o demandado sequer apelou, o autor argumentou que essa aceitação do resultado sugere reconhecimento pelo demandado da inconsistência, ou percepção de não haveria maiores problemas em se adaptar ao que foi estabelecido pelo painel. De toda forma, contabilizou que somente 5 das 1.173 medidas notificadas no período foram alteradas em razão de decisão no âmbito do Sistema de Solução de Controvérsias da OMC (SSC).

Se utilizarmos alguns dos indicadores desse estudo, mas em análise dos dados disponibilizados pela OMC de 1º de janeiro de 1995 até 31 de dezembro de 2012, é possível verificar alguns aspectos interessantes adicionais. Do conjunto de 160 Membros da OMC, apenas 42 notificaram a adoção de medidas antidumping durante todo o período de análise, sendo que os dez países que mais notificam medidas somam 77% do total das notificações do período16. Todavia, ao longo do período, percebem-se não apenas variações anuais no número de notificações, mas também diminuição no número de notificações a partir da metade do período em consideração, tornando-se similar ao dos três primeiros anos de vigência do Acordo Antidumping (Figura 1).

16 Os dez países que mais notificaram medidas antidumping no período de 1 de janeiro de 1995 a 31 de dezembro de 2012 foram Índia (em 1o lugar, com 19% do total das notificações), Estados Unidos (em 2o, com 11%), Comunidade Europeia (em 3o, com 10%), Argentina (em 4o, 8%), China (em 5o, com 6%), Turquia (em 6o, com 5%), Brasil (em 7o, com 5%), África do Sul (em 8o, com 5%), Canadá (em 9o, com 4%) e Austrália (em 10o, com 4%).

Medidas antidumping: jurisprudência no âmbito da OMC e autonomia decisória de seus membros em tempos de crise econômica

493

Figura 1. Representação gráfica da variação do número de notificações de medidas antidumping por ano no período de 1º de janeiro de 1995 a 31 de dezembro de 2012

Ao desdobrar os dados de notificações de medidas antidumping ano a ano pelo grupo de Membros desenvolvidos (PD)17, por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (BRICS)18 e pelos demais Membros19, essa diferença entre as duas metades do

17 No período de análise, os países desenvolvidos que notificaram medidas antidumping foram Austrália, Canadá, Estados Unidos, Israel, Japão, Nova Zelândia e Comunidade Europeia.

18 Deve-se recordar que Brasil, Índia e África do Sul são Membros da OMC desde 1º de janeiro de 1995; China, desde 11 de dezembro de 2011 (embora tenha começado em 1998 a notificar medidas antidumping) e Rússia, desde 22 de agosto de 2012, ano em que notificou 4 medidas antidumping.

19 No período de análise, os demais Membros (não PD e não BRICS) que notificaram medidas antidumping foram Argentina, Chile, Cingapura, Colômbia, Costa Rica, Egito, Filipinas, Guatemala, Indonésia, Jamaica, Lituânia, Malásia, México, Marrocos, Nicarágua, Paquistão, Paraguai, Peru, Polônia, República da Coreia, República Dominicana, República Tcheca, Taiwan, Trinidade e Tobago, Turquia, Ucrânia, Uruguai e Venezuela.

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período ainda é percebida, na Figura 1, para PD e para os BRICS. Com relação a essas duas categorias, é possível notar, ademais, que a maior contribuição para o número anual de notificações de 1995 a 1998 era dos PD e a menor, dos BRICS, porém esse padrão começou a se inverter a partir de 1999, quando a contribuição dos BRICS ultrapassou a dos demais Membros (não PD) e, a partir de 2002, só foi menor do que a dos PD em 2005. Essa trajetória de aumento progressivo do número de notificações por ano para os BRICS foi brevemente interrompida em 2001, quando houve redução das notificações de Índia e África do Sul, em relação aos anos anteriores, se analisados os dados brutos de notificação (dados não apresentados).

Para os demais Membros (não BRICS e não PD), o número de notificações parece apenas oscilar, ano a ano, em torno de 50. Em 2003, contudo, verifica-se surto de notificações, que pode ser atribuído tanto à Tailândia, que nesse ano fez 20 notificações de medidas (enquanto anteriormente, oscilou entre 0 e 3 notificações por ano), quanto à Turquia, que fez 28 notificações (enquanto anteriormente, não ultrapassou 11 notificações por ano).

Ao dividir o período de análise em dois segmentos temporais, de 1º de janeiro de 1995 a 31 de dezembro de 2003 e de 1 de janeiro de 2004 a 31 de dezembro de 2012, como a Figura 1 sugere possível, verifica-se redução de 26% no somatório das notificações anuais de medidas antidumping de um segmento temporal ao outro (Tabela 1). Contudo, ao desdobrar esses dados entre PD, BRICS e demais Membros, verifica-se redução muito maior no número de notificações de PD (- 46%), em comparação aos números dos BRICS (- 9%) e dos demais Membros (-26%), sendo que, para estes, a diferença é inflada pelo surto de

Medidas antidumping: jurisprudência no âmbito da OMC e autonomia decisória de seus membros em tempos de crise econômica

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notificações ocorrido em 2003, conforme indicado no parágrafo precedente. Ou seja, se a evolução jurisprudencial do DSB implica redução da autonomia decisória dos Estados, esse efeito não se distribuiria homogeneamente entre os Membros da OMC e, se a crise econômica de 2008 compeliu os Estados a adotar medidas protecionistas, a variação do número de notificações de medidas antidumping ao longo do período não parece ser um bom indicador.

Deve-se ressaltar, contudo, que, dentro de cada categoria de Membros em análise, a diferença entre o número total de notificações feitas em cada segmento temporal varia individualmente. No caso dos PD, todos reduziram o número de notificações aproximadamente à metade, exceto Japão e Nova Zelândia, que relataram apenas 1 e 2 casos a mais no segmento temporal mais recente – porém esses dois Membros, de qualquer maneira, representam apenas 4% do total de notificações de PD. No caso dos BRICS, enquanto Índia reduziu o número de notificações em 13% e África do Sul, em 82%, Brasil aumentou em 30% e China mais que dobrou o número de notificações de um segmento temporal ao outro20.

20 Para a Rússia, não é possível fazer essa comparação, uma vez que sua adesão à OMC aconteceu em 2012, conforme assinalado anteriormente.

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Tabela 1. Comparação da proporção de casos registrados por número de notificações de medidas antidumping entre 1 de janeiro de 1995 a 30 de setembro de 2003 e entre 1 de janeiro de 2004 e 31 de dezembro de 2012.

1995-2003 2004-2012Notificações de medidas

Membros Desenvolvidos (PD) 556 299 (- 46%)Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (BRICS) 486 444 (-9%)Demais Membros 517 417 (-19%)Total 1.559 1.116 (- 26%)

Proporção de consultas por notificaçõesPD como demandados e notificantes 1:20 1:10BRICS como demandados e notificantes 1:121 1:40Demais Membros como demandados e notificantes 1:27 1:104Total 1:31 1:25

Proporção de painéis conclusos (apelados ou não) por notificações

PD como demandados e notificantes 1:21 1:14BRICS como demandados e notificantes 0 1:122Demais Membros como demandados e notificantes 1:64 1:417Total 1:62 1:44

Proporção de apelações por notificaçõesPD como demandados e notificantes 1:56 1:50BRICS como demandados e notificantes 0 1:440Demais Membros como demandados e notificantes 1:172 0Total 1:56 1:50

A categoria dos demais Membros, por abarcar Estados em situações bastante díspares, apresenta casos tão diversos quanto os de Malásia, México, Tailândia e Taipé, que reduziram o somatório de notificações anuais à metade do segmento temporal de 1995-2003 ao de 2004-2012, apresentando comportamento similar ao dos PD; os de Indonésia e Turquia, que quase dobraram o número de notificações, apresentando comportamento similar ao da China; os de Paquistão e Ucrânia

Medidas antidumping: jurisprudência no âmbito da OMC e autonomia decisória de seus membros em tempos de crise econômica

497

que aumentaram 10 e 5 vezes, respectivamente o número de notificações; os de Filipinas e Polônia que reduziram a zero o número de notificações, o qual já era relativamente baixo no segmento temporal anterior (11 e 9, respectivamente); e os de Membros que não fizeram mais do 4 notificações no período total de análise, como Cingapura, Costa Rica, Guatemala, Jamaica, Letônia, Marrocos, Nicarágua, Paraguai, República Dominicana, República Tcheca e Uruguai.

Outro aspecto interessante é que a diminuição do número de notificações de medidas antidumping de um segmento temporal a outro não implica necessariamente diminuição no número de casos que mencionam o Acordo Antidumping, nem de casos que evoluíram para painéis, nem de casos apelados. De fato, a Tabela 1 demonstra que questionamentos dessa natureza tornaram-se, no total, mais frequentes. Contudo, se esses dados forem desdobrados entre as três categorias de Membros, verificam-se padrões distintos:

• para os PD, que reduziram, em conjunto, o número de notificações a quase metade de um segmento temporal ao outro, a proporção de consultas por notificações duplicou (de 1 consulta a cada 20 notificações em 1995-2003 para 1 a cada 10 em 2004-2012) e, como a quase totalidade dessas consultas evoluiu para pronunciamento painel (apelados ou não21), também dobrou a proporção de painéis conclusos por notificações para esse conjunto de Membros;

• para os BRICS, a proporção de consultas por notificações triplicou (de 1:121 para 1:40) e começaram a aparecer os dois primeiros casos que evoluíram para pronunciamento

21 Foram excluídos desses dados casos em que o painel nunca iniciou, ou ainda não concluiu, seus trabalhos.

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de painel, tendo um sido apelado (ambos sendo a China o Membro demandado – o que já poderia ser esperado, visto que esse Membro dobrou o número de notificações de medidas antidumping de um segmento temporal ao outro);

• para os demais Membros, a redução do número de notificações de um segmento temporal a outro foi acompanhada de acentuada redução das proporções de consultas, painéis conclusos e apelações por notificações (Tabela 1).

Deve-se destacar, contudo, que, em termos absolutos, o número de consultas que evoluíram para pronunciamento de painel para PD é o dobro do número correspondente para BRICS e demais Membros somados no segmento temporal de 1995 a 2003 (respectivamente, 17 painéis tendo PD como demandado e 8 painéis tendo BRICS ou demais Membros como demandado) e sete vezes maior de 2004 a 2012 (respectivamente, 22 painéis para PD e 3 painéis para BRICS ou demais Membros).

Analisando os registros da OMC, é possível perceber que as alegações dos reclamantes sobre violação do Acordo Antidumping permanecem concentradas nos mesmos artigos e que alguns parágrafos e incisos não questionados no segmento temporal de 1995 a 2003 passaram a ser citados de 2004 a 2012. Ademais, deve-se ressaltar que a divulgação do resultado final de alguns dos principais casos de antidumping, como o DS 141 – EC-Bed Linen, coincidiu com o momento de transição entre os dois segmentos temporais analisados (2003-2004), em que se verifica, ao menos para os PD, redução das notificações de medidas antidumping com concomitante aumento da proporção de casos por notificações.

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4. considerAções finAis

É intuitivo associar a evolução da jurisprudência no âmbito da OMC tanto à diminuição progressiva da autonomia decisória dos Estados, quanto ao esclarecimento de dispositivos ambíguos que levam a disputas sobre sua correta interpretação. Todavia, dados e análises neste Capítulo sugerem algo diferente. Por um lado, verificou-se que nem todos os Membros da OMC têm consistentemente reduzido o número de notificações de medidas antidumping desde 1995, o que indica que essa evolução jurisprudencial não restringiria na mesma medida a autonomia decisória de todos os Membros. Por outro lado, apurou-se que nem todos os Membros que têm diminuído o número de notificações passaram a aplicar medidas em estrita conformidade com o Acordo Antidumping ou com a jurisprudência, visto que alguns estão sendo proporcionalmente mais questionados. Dessa forma, é possível supor que não apenas existem ainda muitos aspectos do Acordo a serem definidos, apesar do tão propalado ativismo do Órgão de Apelação, mas também que a cada interpretação do Acordo Antidumping descartada no âmbito do SSC como possível acarretaria a busca de uma terceira ou quarta interpretação do mesmo dispositivo não necessariamente aceitável.

Cumpre recordar, por fim, que decidir de forma autônoma não é decidir de forma arbitrária, nem é interpretar regras conforme interesses particulares conjunturais. Ao contrário, a existência de critérios definidos para adoção de medidas antidumping aumenta a segurança jurídica tanto para autoridades investigadoras quanto para empresas investigadas e terceiros interessados, ainda mais em tempos de crise econômica, quando a adoção de medidas de defesa comercial, mais do que tentadora, pode parecer urgente para os Estados.

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Embora não seja suficiente, nem adequado, contar apenas com a jurisprudência para esclarecer ambiguidades e preencher lacunas do Acordo Antidumping, ou de qualquer outro acordo no âmbito da OMC, é forçoso reconhecer que algumas dessas definições dificilmente seriam alcançadas em negociação ou, se alcançadas, não necessariamente ratificadas, como já reconhecido pelo próprio OA.

501

Guilherme Marquadt Bayer é Engenheiro elétrico, graduado pela Unicamp. Ingressou na carreira diplomática em 2006. Foi subchefe da Divisão de Defesa Comercial de Salvaguardas do Itamaraty. Atualmente se ocupa de temas agrícolas na Missão do Brasil junto à OMC, em Genebra. Desde março de 2013 preside o Comitê de Agricultura da OMC.

Joaquim Maurício Fernandes de Morais é Diplomata, formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em 2008. Ingressou no Instituto Rio Branco em 2010. Atualmente trabalha na Coordenação-Geral de Contenciosos, unidade do Itamaraty responsável pela área de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio.

limitAção do “policy spAce” pArA A concessão

de suBsídios AgrícolAs: contriBuição BrAsileirA

nos contenciosos do AçúcAr e do Algodão

Guilherme Marquadt BayerJoaquim Maurício Fernandes de Morais

503

A interação entre os Acordos de Subsídios e Medidas Compensatórias (ASCM) e o Acordo sobre Agricultura (AsA) para a limitação do policy space disponível aos

Membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) para subsidiar a agricultura ainda é pouco compreendida até mesmo em círculos especializados. Não é incomum especialistas no Acordo sobre Agricultura ou no Acordo de Subsídios tratarem de cada tema de forma estanque e perderem a dimensão a respeito de como o Acordo de Subsídios provê elementos adicionais ao Acordo sobre Agricultura para a limitação das possibilidades de concessão de apoio distorcivo à agricultura.

A atuação brasileira no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC (OSC) contribuiu para elucidar a interação entre os dois acordos na limitação do policy space dos Membros para conceder subsídios agrícolas. Contribuiu, ainda, para avanços na consecução de um dos objetivos centrais do Brasil no âmbito do Sistema Multilateral de Comércio, que é a reforma das políticas restritivas ao comércio dos países desenvolvidos na área agrícola, que se estende à concessão de subsídios distorcivos ao comércio, tanto na vertente de apoio interno como na de apoio à exportação. Dois casos foram basilares na construção dessa jurisprudência: o contencioso do algodão e o contencioso do açúcar.

Para além de uma descrição mais detalhada dos contenciosos supracitados – tratados em detalhe por outros autores na presente publicação –, o objetivo do trabalho é apresentar

Guilherme Marquadt BayerJoaquim Maurício Fernandes de Morais

504

algumas contribuições proporcionadas pela atuação brasileira no OSC, as quais influenciaram decisivamente a jurisprudência da OMC no sentido de elucidar “caminhos” adicionais para questionar práticas desleais às exportações brasileiras de bens agrícolas.

1. inter-relAção entre o Acordo de suBsídios e o Acordo soBre AgriculturA

A aplicação do Acordo de Subsídios no disciplinamento de subsídios agrícolas não é direta e nem livre de exceções. O potencial efeito do ASCM na regulação dos subsídios agrícolas não passou despercebido pelos negociadores da Rodada Uruguai. Naquela ocasião, por influência decisiva europeia, foi inserida uma “peace clause” no Acordo sobre Agricultura1, que limitava a aplicabilidade do ASMC a programas de subsídio agrícola – dentro de certos parâmetros estabelecidos na própria “peace clause” – durante o período de implementação da Rodada Uruguai, terminado ao final de 2003. Não por acaso, uma das batalhas legais enfrentadas pelo Brasil durante o contencioso do algodão – iniciado em 2002, ainda durante a vigência da “peace clause” – foi afastar a sua aplicabilidade, com vistas a construir o caso de dano grave (“serious prejudice”) com base no ASCM.

Com a expiração da “cláusula da paz”, a jurisprudência hoje é clara no sentido da aplicabilidade do Acordo de Subsídios a programas agrícolas, sempre que não haja uma disciplina mais específica no Acordo sobre Agricultura que constitua exceção à regra mais geral do primeiro acordo.

Talvez o exemplo mais importante de inaplicabilidade do Acordo de Subsídios em decorrência de regra mais específica no

1 Artigo 13 do AsA.

Limitação do “policy space” para a concessão de subsídios agrícolas: contribuição brasileira nos contenciosos do açúcar e do algodão

505

Acordo sobre Agricultura seja a área de subsídios à exportação de bens agrícolas. Subsídios vinculados à exportação2 de bens industriais são proibidos segundo o Acordo de Subsídios – em verdade já o eram pelo GATT desde a década de 1960. O Acordo sobre Agricultura, contudo, foi muito mais leniente na regulação dos subsídios à exportação, obrigando os Membros a apenas consolidar a quantidade máxima de subsídios que poderiam conceder a cada ano e a não superar esse limite. Assim, ao menos na área de subsídios à exportação, foi criado um “duplo padrão”, no qual a proibição existente no Acordo de Subsídios não se estende a programas de apoio à agricultura3.

Na área de apoio doméstico, contudo, as disciplinas do Acordo de Subsídios são plenamente aplicáveis. Não há nenhum artigo do Acordo sobre Agricultura que afaste os subsídios agrícolas de uma análise de dano grave ou até mesmo de uma possível investigação para a imposição de medidas compensatórias.

No Acordo sobre Agricultura, além de consolidar subsídios à exportação, os Membros consolidaram a quantidade total de apoio interno distorcivo ao comércio que poderiam conceder anualmente na denominada Caixa Amarela. No caso do Brasil, esse compromisso atinge US$ 912 milhões anuais; no dos EUA, US$ 19 bilhões. Subsídios minimamente distorcivos (Caixa Verde), não são limitados, assim como os de Caixa Azul, que, apesar de distorcivos, têm parâmetros delimitados pelo próprio AsA.

2 Aqueles que são “contingent on export performance” segundo o artigo 3 do Acordo de Subsídios.

3 Tal exceção, contudo, não alcança a acionabilidade dos subsídios à exportação nas Partes III e V do ASCM.

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Engano comum é interpretar a limitação em Caixa Amarela como um “direito” a conceder apoio distorcivo, ou seja, desde que respeitados os limites consolidados, tais subsídios não seriam questionáveis no âmbito do sistema de solução de controvérsias. Tal caracterização seria válida apenas sob o prisma isolado do Acordo sobre Agricultura. No entanto, como visto acima, com o fim da “cláusula da paz”, o Acordo de Subsídios se aplica totalmente às políticas agrícolas de apoio interno. Como o contencioso do algodão mostrou de forma cabal, subsídios à produção agrícola são permitidos, desde que não causem efeitos adversos ou dano grave a algum parceiro comercial4. Assim, os limites consolidados de apoio à exportação e apoio interno – assim como os subsídios em Caixa Verde e Caixa Azul –, não devem ser interpretados como um “teto” abaixo do qual os Membros podem conceder subsídios livremente, uma vez que os subsídios, ainda que dentro desses limites, estão plenamente sujeitos às disciplinas do Acordo de Subsídios.

2. o cAso do Algodão e A AplicAção do Artigo 6º do Ascm pArA progrAmAs de Apoio doméstico à AgriculturA

O contencioso do algodão foi a primeira disputa comercial em que subsídios de apoio doméstico foram analisados no âmbito do Sistema de Solução de Controvérsias. A jurisprudência formada nos inúmeros “rulings” do caso começou a estabelecer o “padrão” de dificuldade exigido para demonstrar “serious prejudice” para casos futuros. A disputa também elucidou a conformidade com as regras da OMC de programas de pagamentos diretos desacoplados (“decoupled”),

4 Conforme os artigos 5º e 6º do Acordo de Subsídios.

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enquadrados na Caixa Verde do Acordo sobre Agricultura, mas que, na prática, têm impacto distorcivo ao comércio, o que abriu nova vertente para o questionamento de subsídios agrícolas no OSC. Ainda mais importante, a jurisprudência gerada pelo contencioso do algodão mostrou possível caminho a ser percorrido para questionar programas agrícolas, ainda que completamente compatíveis com as normas do Acordo sobre Agricultura, com base no Acordo de Subsídios. Constituiu, assim, importante precedente para a consecução de interesses brasileiros relacionados ao comércio agrícola.

A principal tese demonstrada pelo Brasil durante o contencioso foi a de que os subsídios internos norte-americanos ao setor cotonicultor causavam dano grave aos produtores de algodão do Brasil, por meio de “significant price suppression”. As correias de transmissão do dano grave eram duas: 1) o aumento da produção e da exportação norte-americanas em decorrência da vantagem gerada pela concessão dos subsídios; e 2) a contenção do preço internacional da commodity causada pelos subsídios norte-americanos5.

No relatório do caso do algodão (parágrafo 7.1347 e seguintes), o painel afirmou que encontrava, principalmente, quatro razões – confirmadas pelo Órgão de Apelação (OA) – que comprovavam o nexo causal entre os subsídios dos Estados Unidos e a contenção significativa de preços (artigo 6.3(c) do ASCM) e que indicam, em maior ou menor grau, o que também deveria ser demonstrado em caso semelhante que algum Membro venha a questionar no âmbito da Organização:

5 A tese brasileira foi construída primordialmente com base no artigo 6.3 (c) do ASCM, o qual permite caracterizar dano grave pela existência de significativa “contenção ou limitação” do preço do produto subsidiado no mesmo mercado em que compete com o produto similar de algum outro Membro.

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a) a influência substancial dos EUA no mercado mundial de algodão, decorrente da magnitude da produção e exportação norte-americana de algodão. O “market share” dos EUA na produção e exportação mundiais de algodão alcançavam 20% e 40%, respectivamente, no período sob análise do painel.

b) a natureza dos subsídios norte-americanos, que afetam o nível de área plantada e de produção, tendo em vista sua forma obrigatória e vinculada ao movimento de preços, bem como seu efeito estabilizador sobre a renda dos produtores. Esses subsídios isolam os produtores norte-americanos dos sinais de mercado quando da baixa de preços e incentivam a produção;

c) o considerável volume de pagamentos sob os programas “marketing loans” e pagamentos contracíclicos, durante todo o período de análise do contencioso, havendo coincidência temporal clara entre a contenção dos preços internacionais do algodão e os subsídios “price contingent” dos EUA;

d) a existência de evidência crível (“credible evidence”) da discrepância entre os custos de produção nos EUA e a renda auferida com a venda do algodão. Dado o significativo hiato entre os custos totais de produção e a renda obtida pelos produtores norte-americanos no mercado, inferiu-se que os subsídios seriam fator decisivo para viabilidade da produção de algodão nos EUA, ao menos no nível demonstrado durante os anos sob análise.

Em outras palavras, o painel analisou: i) a magnitude da produção e da exportação de algodão dos Estados Unidos; ii) a tendência geral dos preços internacionais; e iii) a natureza

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e relevância dos subsídios, principalmente a sua capacidade de gerar “price suppression”. Em conclusão, o painel original e o de implementação salientaram que todas as simulações apresentadas pelas partes da controvérsia corroboram a visão de que os subsídios norte-americanos levaram a um aumento da produção e da exportação dos EUA, o que, por sua vez, causaram contenção do preço internacional do produto.

Por meio dos “critérios” elencados acima, foi aceito o pleito brasileiro de “contenção de preços” em razão dos subsídios “price contingent”6. Outros elementos poderiam ser elaborados caso a reclamação fosse relativa ao efeito em terceiros mercados (artigo 6.3(b) do ASMC) ou aumento de “world market share” dos EUA (artigo 6.3(d) do ASMC), caminho ainda em aberto para disputas futuras.

Para além das questões específicas do contencioso do algodão pelas quais o Brasil pôde comprovar dano grave, a atuação do Brasil durante a disputa – tanto durante o painel original como durante o de implementação – colaborou para esclarecer algumas disciplinas que aumentaram a probabilidade de êxito de contestações futuras de subsídios agrícolas com base no Acordo de Subsídios.

Interpretando a Parte III do ASCM, que dispõe sobre os subsídios acionáveis, o painel esclareceu os requisitos para demonstração de dano grave (parágrafos 7.1171 e seguintes), facilitando, aparentemente, a viabilidade de futuras controvérsias. Para o painel, uma análise de dano grave não demanda uma precisa quantificação do subsídio em questão (em resposta à tentativa dos EUA de aplicar metodologias quantitativas de investigações para a imposição de medidas

6 Programas: “Marketing Loans”, “STEP 2”e de Pagamentos Contracíclicos.

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compensatórias) e nem a alocação precisa de subsídios mais gerais ao produto sob consideração7. Seria necessário apenas demonstrar a existência e a natureza do subsídio e os efeitos do dano grave causado (conforme interpretação do artigo 7º do ASCM).

Na mesma linha, o painel e o OA favoreceram análise de longo prazo na determinação de dano grave, refutando alegações dos EUA de que o benefício dos subsídios se daria apenas no ano em que o pagamento foi realizado. Tal determinação se reveste de especial importância na medida em que a ausência de concessão do subsídio em algum ano em particular – em decorrência de aumento geral nos preços internacionais, por exemplo – não inviabiliza a construção de um caso com base em período de tempo mais amplo.

Ficou determinado, ademais, que, para um produto de características homogêneas, como os produtos agrícolas, subsídios capazes de gerar pequenas variações de preço podem causar perdas significativas aos produtores, dado o elevado volume da produção e o fato de o preço ser o elemento central para o fechamento de operações de compra e venda.

Não menos importante para a construção de casos futuros foi a jurisprudência criada sobre mercado relevante, nos termos do artigo 6.3 (c) do ASCM, permitindo que o mercado mundial seja utilizado para a determinação de “significant price suppression”. A esse respeito, os Painéis original e de implementação esclareceram que:

7 Nos termos do relatório do Painel original (documento WT/DS267/R, parágrafo 7.1173): “allocating absolutely precise proportions of the subsidy to the product concerned, or trying to trace with precision where each subsidy dollar may be spent by a recipient, is not a necessary exercise on the part of the Panel”.

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i) em contraste com outras alíneas do mesmo artigo 6.3, a alínea (c) não impõe limitação de cunho geográfico ao termo “mercado” (“same market”). Não há, em outras palavras, nenhum óbice a que um mercado “mundial” possa corresponder, em certas circunstâncias (variáveis, por exemplo, em função da natureza do produto, da homogeneidade das condições de competição e dos custos de transporte), aos termos “same market”. A determinação do mercado relevante sob o artigo 6.3(c) depende, dessa forma, do produto subsidiado. Se existe mercado mundial para esse produto, nada naquele dispositivo impede que esse mercado seja o “same market” para fins de comprovar dano grave; e

ii) dois produtos estariam no “same market” se estivessem em real ou potencial competição, ainda que não sejam vendidos ao mesmo tempo e no mesmo lugar ou país.

O contencioso do algodão, dessa forma, mostrou o caminho a ser percorrido para questionar a legalidade de subsídios agrícolas – totalmente compatíveis com o Acordo sobre Agricultura – com base no Acordo de Subsídios. O “caminho” trilhado pelo Brasil foi demonstrar a “contenção” do preço do algodão no mercado internacional em decorrência dos subsídios norte-americanos, utilizando o artigo 6.3(c) do ASCM para construir a alegação de dano grave.

Três elementos esclarecidos pela disputa podem ser ressaltados como “atalhos” para contestações exitosas de subsídios agrícolas no futuro com base no ASCM:

i) que o mercado mundial pode ser o mercado relevante para analisar a influência de subsídios agrícolas no mercado de commodities, as quais são comercializadas em tempo real no mundo inteiro em bolsa de valores e de mercadorias de futuros;

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ii) que pequenas variações de preço internacional de produtos agrícolas podem provocar perdas importantes devido a homogeneidade do produto e ao fato de que o preço é o fator determinante para o fechamento das operações;

iii) adoção de perspectiva de longo prazo na determinação do dano grave, afastando, ao mesmo tempo, a necessidade de utilização de métodos relativos à quantificação do subsídio e do “dano”, relevantes para a imposição de medidas compensatórias (Parte V do ASCM), o que dificultaria de forma significativa o trabalho técnico necessário para novas condenações de subsídios agrícolas com base em dano grave e “efeitos adversos”.

A interpretação da jurisprudência com vistas a iniciar novas disputas, contudo, deve levar em consideração que a vitória brasileira foi facilitada por dois fatores: i) os EUA eram os principais exportadores mundiais de algodão, com “market share” em torno de 40%, além de serem o principal produtor da commodity; e ii) a magnitude dos subsídios “price contingent” concedidos pelos EUA, que chegavam a dobrar a renda recebida pelo cotonicultor pela venda do seu produto.

Dessa forma, até mesmo sob um “olhar leigo”, os subsídios norte-americanos eram de tal forma distorcivos, que, indepen-dentemente da intricada interpretação dos acordos da OMC, a alegação de dano grave era quase que intuitiva. Não por acaso, o modelo econométrico apresentado pelo Brasil e validado pelo Árbitro que determinou os direitos de retaliação ao Brasil no caso em tela estimou a “price suppression” dos subsídios norte--americanos em 9%, o que representa uma contenção de preço extremante elevada.

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Não terá a mesma probabilidade de êxito, ao menos sob o artigo 6.3 (c) do ASCM, a contestação de subsídios de países que não exportam o produto em questão de maneira significativa8 ou cujos subsídios não representem percentual tão relevante da renda do agricultor. Foge ao escopo deste trabalho explorar em detalhe formas de questionar subsídios agrícolas sobre outros artigos do ASCM, ou mesmo sob “ameaça de dano”, alternativa de importante efeito sistêmico, dada a volatilidade dos preços das commodities agrícolas9.

Cabe ainda breve menção ao fato de o Brasil ter tido êxito no questionamento de subsídios “desacoplados” à produção como o programa de pagamentos diretos10, notificados pelos Estados Unidos à OMC como Caixa Verde. Para além de questões técnicas analisadas pelo painel relativas ao fato de os “direct payments” dos EUA não estarem completamente em consonância com o Anexo II do Acordo sobre Agricultura, por excluírem algumas commodities do seu escopo, ou pelo fato de a análise de “serious prejudice” ter se dado com base nos subsídios “price contingent”, cabe menção ao fato de que o modelo econométrico utilizado pelo Brasil para quantificar a “price suppression” dos subsídios norte-americanos incluiu os “direct payments” em sua análise. O modelo brasileiro foi aceito pelo Árbitro que definiu as con-tramedidas aplicáveis pelo Brasil em razão da não conformidade dos programas norte-americanos à normativa multilateral, tendo sido, dessa maneira, “validado” pelo OSC.

8 O artigo 6.3 (a) do ASMC, no que concerne ao deslocamento ou ao impedimento de importação no mercado do país subsidiador, poderia oferecer eventual alternativa, caso se queira construir um caso contra Membro com importante mercado doméstico mas que não seja exportador significativo do produto similar.

9 O fato de o preço das commodities agrícolas variar de forma expressiva em razão do ano de análise torna mais complexa a análise de dano, uma vez que o mesmo programa de subsídio, com os mesmos parâmetros, pode estar ou não causando dano grave a depender do nível do preço do produto no mercado internacional.

10 Programa “Direct Payments”.

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A inclusão de subsídios do tipo “direct payments” na quantificação da retaliação brasileira11 mostra que até mesmo subsídios Caixa Verde podem ser questionados segundo as disciplinas do ASCM e serem incluídos em casos que envolvam alegação de dano grave, abrindo “nova avenida” para a limitação de policy space dos países desenvolvidos por meio do OSC.

Por fim, o contencioso do algodão também forneceu importantes elementos a serem levados em consideração nas negociações para a liberalização do comércio agrícola, entre os quais, podem-se destacar:

a) tendo em vista os efeitos distorcivos para o comércio internacional decorrentes de pagamentos classificados como Caixa Verde e a possível migração, no futuro, de outros tipos de subsídios em direção a esta caixa, dever-se-ia avaliar com cautela a introdução de qualquer tipo de “peace clause” para programas de apoio classificados como Caixa Verde. Se os subsídios forem realmente “decoupled”, a “cláusula da paz” se faz desnecessária; caso contrário, a afastabilidade de recurso ao sistema de solução de controvérsias da OMC não seria recomendável;

b) sem sombra de dúvida, permanece importante o acordo sobre disciplinas “product specific” que limitem a quantidade de subsídios “por produto” que os Membros possam conceder segundo as normas do Acordo sobre Agricultura12. Contudo, o valor “real” de concessão dessa

11 O modelo adotado pelo Brasil atribui “efeito distorcivo” do programa “Direct Payments” como sendo um quarto de programas “fully coupled”, como os “Marketing Loans”.

12 O limite em Caixa Amarela da Rodada Uruguai não é limitado por produto. Assim, pelo menos do ponto de vista do AsA, não haveria óbices a um Membro concentrar todo o seu apoio AMS em um único produto. Novos limites de subsídio por produto é uma das demandas brasileira em negociação no âmbito da Rodada Doha.

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natureza deve ser sopesado à luz da jurisprudência da OMC acerca da possibilidade de questionar subsídios “por produto” com base no Acordo de Subsídios, como demonstrado no caso do algodão.

A jurisprudência gerada por disputas comerciais na OMC é sempre específica às circunstâncias do caso em consideração. De forma alguma a jurisprudência do caso do algodão deve ser interpretada como uma garantia de vitória futura, dado que as circunstâncias específicas de cada caso nunca serão as mesmas. O caso apenas lança luz sobre possíveis caminhos a serem trilhados com boas chances de êxito, principalmente em disputas baseadas em “significant price suppression”, cuja viabilidade deve ser auferida, inter alia, a partir de análise do montante do subsídio concedido vis-à-vis o valor da produção, da natureza dos subsídios em questão13 e da relevância da parte demandada em termos de “market share” mundial e produção da commodity sob consideração.

3. o cAso do AçúcAr e o AlcAnce do conceito de “suBsídio à exportAção” no Artigo 9.1(c) do Acordo soBre AgriculturA

Como visto anteriormente, prevalece na OMC um “duplo padrão” quanto ao tratamento jurídico aplicável aos subsídios à exportação para bens industriais e para bens agrícolas. O artigo 3.1 do ASMC veda a concessão de qualquer apoio oficial condicionado à exportação de bens industriais, determinando como exceção, no entanto, as disposições previstas no Acordo sobre Agricultura. No mesmo sentido, o artigo 21.1 do AsA

13 Embora subsídios parcialmente acoplados ou de Caixa Verde também possam ser contestados em casos de “serious prejudice”, os efeitos distorcivos desses programas são menores quando comparados com subsídios totalmente acoplados.

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estabelece que as normas específicas do Acordo Agrícola devem prevalecer sobre os demais acordos da OMC. Conforme decisão do Órgão de Apelação, no entanto, nem toda norma do AsA se reveste desse caráter de excepcionalidade, principalmente no que concerne aos subsídios proibidos, dentre os quais se incluem os subsídios à exportação14.

Essa divergência de interpretação sobre a excepcionalidade das normas do Acordo sobre Agricultura em relação ao ASMC permeou as discussões no caso do açúcar. Esse contencioso, envolvendo Brasil, Austrália e Tailândia contra o regime açucareiro europeu, consistiu em um dos principais casos na OMC para delimitar os limites da normativa multilateral relacionado ao apoio oficial à agricultura e carregava consigo pleito histórico do mundo em desenvolvimento contra os vultosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos. No caso específico, a organização de um regime comunitário para o setor açucareiro, a partir de 1968, possibilitou que as Comunidades Europeias (CE) deixassem a condição de importadora líquida de açúcar no início do regime para a de líder mundial na exportação do produto após trinta anos de sua vigência.

Dentre as divergências relacionadas ao artigo 9.1(c) do AsA15, a CE defendia que pagamentos “na exportação” (“on the export”) equivaliam a pagamentos “condicionados à exportação” (“contingent on the export”), como previsto na redação de

14 US – Subsidies on Upland Cotton (DS267), Relatório do OA, para. 530: “we note that the introductory language of the chapeau makes it clear that the Agreement on Agriculture prevails over Article 3 of the SCM Agreement, but only to the extent that the former contains an exception.” (grifo nosso).

15 Artigo 9.1(c) do AsA: “payments on the export of an agricultural product that are financed by virtue of governmental action, whether or not a charge on the public account is involved, including payments that are financed from the proceeds of a levy imposed on the agricultural product concerned or on an agricultural product from which the exported product is derived”.

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outras alíneas do mesmo artigo 9.1 e no artigo 3.1(a) do ASMC. Em outros termos, a CE entendia que, embora a redação entre os diferentes dispositivos fosse distinta, seria “coerente” aplicar o mesmo entendimento aos termos “on the export” e “contingent on the export”, a fim de garantir a harmonia na interpretação das normas dos Acordos sobre Agricultura e de Subsídios. Aduzia, ainda, que uma interpretação muito ampla para “on the export” poderia, de algum modo, apagar as fronteiras (“blurring”) entre apoio doméstico e subsídios à exportação no AsA.

O painel, confirmado pelo OA, no entanto, acolheu o pleito dos demandantes de que, para efeitos do artigo 9.1(c) do AsA, não se aplicava o mesmo padrão interpretativo adotado para subsídios à exportação em que há, obrigatoriamente, um elemento de condicionamento (“contingent on”). Nesses casos, o ônus probatório seria mais estrito, tendo vista que caberia à parte demandante demonstrar que a concessão do subsídio está condicionada à ou depende da realização de determinado desempenho exportador. Não se verificando, esse condicionamento, ainda que houvesse algum tipo de pagamento ao exportador, não se estaria diante de um subsídio à exportação.

É extensa e bem detalhada a jurisprudência sobre a configuração de um subsídio à exportação com base no artigo 3.1(a) do ASMC, principalmente no que tange aos parâmetros para determinar a existência de condicionamento de facto à exportação16. O Órgão de Apelação já destacou a obrigatoriedade de o demandante comprovar essa “relação de condicionamento”,

16 Ver jurisprudência relevante nos seguintes casos: Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft (DS70), EU and certain Member States – Measures Affecting Trade in Large Civil Aircraft (DS316) e United States – Measures Affecting Trade in Large Civil Aircraft (DS353).

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que, em seu entender, é ponto central na caracterização do subsídio à exportação17. Normalmente nos casos em que esse condicionamento à exportação não é evidente a partir do texto da medida legal – a qual nem sempre existe – autorizando a concessão do subsídio, resta à parte demandante apresentar evidências consistentes de que determinado programa oficial vincula ou condiciona os “pagamentos” a um perfil de exportação do beneficiário. A nota de rodapé nº 4 do ASMC acrescenta, ainda, que o simples fato de se conceder subsídios a uma empresa exportadora não torna esses pagamentos obrigatoriamente subsídios proibidos à exportação18.

É possível depreender, com base na descrição acima, o elevado ônus probatório que recai sobre o demandante a fim de que seu pleito venha a ser bem-sucedido no sistema de soluções de controvérsias da OMC, especialmente quando se tratar de uma situação que envolva subsídios condicionados de facto à exportação (o que, na prática, representa a maioria dos casos), com base no ASMC. Portanto, uma maior flexibilidade ao alcance do conceito de “subsídio à exportação”, no âmbito do Acordo sobre Agricultura, poderia facilitar a condenação de programas oficiais de apoio à agricultura que não sejam diretamente condicionados a um desempenho exportador, mas que tenham relação com a exportação dos produtos agrícolas.

17 Canada – Aircraft (DS70), Relatório do Órgão de Apelação, para. 47: “[…] we have also emphasized that a ‘relationship of conditionality or dependence’, namely that the granting of a subsidy should be ‘tied to’ the export performance, lies at the ‘very heart’ of the legal standard in Article 3.1(a) of the SCM Agreement”. (grifo nosso).

18 ASMC, nota de rodapé nº 4: This standard is met when the facts demonstrate that the granting of a subsidy, without having been made legally contingent upon export performance, is in fact tied to actual or anticipated exportation or export earnings. The mere fact that a subsidy is granted to enterprises which export shall not for that reason alone be considered to be an export subsidy within the meaning of this provision. (grifo nosso).

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A decisão do painel no contencioso do açúcar deu maior amplitude ao conceito de “subsídio à exportação” para as hipóteses do artigo 9.1(c) do AsA. De forma coerente, entendeu que o termo “on the export” não poderia ter o mesmo significado que “contingent on export”, uma vez que os Estados-membros fizeram a opção de utilizar a preposição “on” em vez da expressão “contingent on”. Partindo das conclusões em India – Autos19, o painel decidiu que os pagamentos “na exportação” não precisam estar “condicionados à exportação”; deveriam, na realidade, estar “relacionadas à exportação” (“in connection with”).

Essa diferença aparentemente sutil na interpretação do artigo 9.1(c) do AsA tem grande relevância para futuros pleitos relacionados à concessão de subsídios ilegais à exportação de bens agrícolas. Essa mudança no paradigma interpretativo possibilita um menor esforço probatório para o demandante, tendo em vista que não haveria a necessidade de demonstrar a “relação de condicionamento” presente em subsídios “contingent on export”. Estando comprovado que os pagamentos estão apenas relacionados à exportação do produto agrícola, seria possível configurar a existência de subsídio à exportação nos termos do artigo 9.1(c) do AsA.

Em decorrência da interpretação mais ampla do painel à expressão “pagamentos na exportação” do artigo 9.1(c), a CE defendeu, em sua apelação, que essa decisão poderia gerar confusão na distinção entre as disciplinas do Acordo sobre Agricultura para apoio doméstico e subsídios à exportação e permitiria que qualquer medida de apoio doméstico pudesse ser caracterizada como subsídio à exportação. O OA, todavia, não acolheu o pleito comunitário e confirmou o entendimento do painel em relação ao artigo 9.1(c), adotando as seguintes

19 India – Measures Affecting the Automotive Sector (DS146), Relatório do Painel, para. 7.257.

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conclusões: (i) os Estados-membros devem estar cientes dos efeitos “spill-over” dos programas de apoio doméstico em relação à parte da produção agrícola voltada ao mercado externo; e (ii) o apoio doméstico ilimitado com os referidos efeitos poderia minar os benefícios decorrentes dos compromissos de redução de subsídios à exportação previstos no artigo 9.2 do AsA20.

Importante ressaltar que a caracterização do subsídio à exportação nos termos do artigo 9.1(c) do AsA ainda requer a comprovação de outros elementos, a exemplo do que seja “pagamento” e de que esse pagamento seja “financiado por medidas governamentais”21. A jurisprudência da OMC, no entanto, não aplica interpretação mais estrita – em geral mais flexível – a nenhum desses dois outros elementos do que aquela utilizada na caracterização de subsídio com base no ASMC. Embora não seja o escopo desse artigo detalhar os limites delineados pela jurisprudência para esses dois outros elementos, pode-se citar, como exemplo, que o OA adota entendimento de que desembolsos indiretos e/ou não financeiros (“payments-in-kind”) estariam incluídos no significado de “pagamento”22. Essa interpretação foi, inclusive, utilizada no contencioso do açúcar para concluir que o valor abaixo do custo de produção da beterraba “C” vendida aos produtores de açúcar “C” – só possível em decorrência dos subsídios concedidos pelo regime açucareiro comunitário – constituía um “pagamento” nos termos do

20 EC – Export Subsidies on Sugar, Relatório do Órgão de Apelação, para. 280.21 EC – Export Subsidies on Sugar, Relatório do painel, para. 7.251: “[...] article 9.1(c) requires the

demonstration of three elements. First, it requires that ‘payments’ be made. Second, that those payments be made ‘on the export of an agricultural product’. And third, that those payments be ‘financed by virtue of governmental action’”.

22 Canada – Dairy (DS103/DS113), Relatório do Órgão de Apelação, para. 109: “the context of Article 9.1(c) also supports a reading of the word ‘payments’ that embraces ‘payments-in-kind’. That context includes the other sub-paragraphs of Article 9.1. As the Panel explained, none of the export subsidies listed in Article 9.1 is restricted to grants made solely in money form and several expressly involve subsidies granted in a form other than money”.

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artigo 9.1(c) do AsA. Essa diferença no preço da beterraba “C” representava um pagamento equivalente (“payment-in-kind”), visto que a CE não realizava desembolso financeiro direto ao produtor de açúcar “C”23.

4. o cAso do Algodão e A delimitAção de disciplinAs soBre gArAntiAs de crédito à exportAção de Bens AgrícolAs

O uso de garantias de crédito é um dos principais instrumentos para fomentar a exportação de produtos agrícolas. Ao assegurar o pagamento do empréstimo concedido à exportação em caso de “default”, a emissão de garantias de crédito encoraja instituições a financiar as exportações agrícolas e torna mais competitivos os termos creditícios disponíveis ao comprador. Os potenciais impactos da concessão dessas garantias no comércio internacional não residem, portanto, no simples ato de um governo emitir garantias de crédito – instrumento rotineiro em operações financeiras – em favor da exportação de seus produtos agrícolas, mas nas condições (normalmente, preço e prazo) em que são oferecidas essas garantias em relação ao que seria cobrado pelo mercado.

Em recente estudo do Congressional Research Service (CRS), instituto de pesquisa do Congresso dos Estados Unidos, os programas de garantias de crédito à exportação sob adminis-tração do Departamento de Agricultura (USDA), em especial o programa General Sales Manager (GSM-102), representam um dos principais mecanismos na promoção dos produtos agríco-las norte-americanos no mercado internacional. Embora tenha sido condenado como subsídio ilegal no contencioso do algodão,

23 EC – Export Subsidies on Sugar, Relatório do Painel, paras. 7.269-7.270.

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o Programa GSM-102 ainda autoriza anualmente a emissão garantias de crédito à exportação em um patamar muito elevado, com média anual entre US$ 4 e 5 bilhões nos últimos quatro anos24. Dentre os produtos beneficiados pelo programa, desta-cam-se concorrentes de produtos exportados pelo Brasil, como algodão, soja, óleo de soja, milho, carne bovina, carne de frango e arroz, que são vendidos para diferentes mercados na África, Oriente Médio e América Latina, bem como para países com mercados relevantes como Turquia, China e Coreia do Sul25.

Os dados do Programa GSM-102 demonstram a impor-tância que as garantias de crédito à exportação podem ter na promoção dos produtos agrícolas no mercado internacional. No contencioso do algodão, uma das discussões preliminares foi determinar se garantias de crédito à exportação estariam su-jeitas às normas dos Acordos sobre Agricultura e de Subsídios. Os Estados Unidos alegavam que, em razão do artigo 10.2 do AsA26, o tratamento das garantias de crédito à exportação esta-ria fora do escopo do Acordo sobre Agricultura e que disciplinas específicas estariam sujeitas à posterior negociação entre os Estados-membros (“the deferral of the disciplines”27). Com base nessa interpretação, seria facultado aos Membros autorizar a ampla emissão de garantias de crédito à exportação de produ-tos agrícolas sem haver a possibilidade de caracterizá-las como subsídios à exportação e de contestá-las no âmbito do sistema de solução de controvérsias da OMC.

24 Congressional Research Service (CRS). Agricultural Export Programs: background and issues. Disponível em: <http://fpc.state.gov/documents/organization/211397.pdf>. Acesso em: 9/7/2013.

25 United States Department of Agriculture (USDA). Export Credit Guarantee Programs. Disponível em: <http://www.fas.usda.gov/excredits/ecgp.asp>. Acesso em: 9/7/2013.

26 Acordo sobre Agricultura, Artigo 10.2: “[m]embers undertake to work toward the development of internationally agreed disciplines to govern the provision of export credits, export credit guarantees or insurance programmes and, after agreement on such disciplines, to provide export credits, export credit guarantees or insurance programmes only in conformity therewith”.

27 US – Subsidies on Upland Cotton, Relatório do Painel, para. 7.900.

Limitação do “policy space” para a concessão de subsídios agrícolas: contribuição brasileira nos contenciosos do açúcar e do algodão

523

O painel, confirmado por maioria do Órgão de Apelação (houve um voto dissidente), não acolheu a argumentação norte-americana. Decidiu que, embora o artigo 10.2 do AsA conclamasse os Estados-membros a desenvolverem disciplinas internacionais específicas para garantias de crédito à exportação, não havia nenhuma disposição no Acordo sobre Agricultura, a exemplo do que ocorria em outros acordos da OMC, que expressamente excluísse as garantias de crédito à exportação de sua incidência28. Adicionalmente à ausência de exclusão expressa no texto, o Órgão de Apelação acrescentou que o tema das garantias de crédito à exportação era do conhecimento dos negociadores à época da elaboração do Acordo sobre Agricultura, e, portanto, caso optassem por excluí-las da incidência desse Acordo o teriam feito de forma expressa29.

A partir dessa decisão, foi possível caracterizar as garantias de crédito à exportação como subsídio à exportação nos termos do artigo 10.1 do AsA30. Considerando que não há no Acordo sobre Agricultura definição de “subsídio à exportação”, a não ser os tipos previstos no artigo 9.1, o painel fez uso da alínea (j) do Anexo I do ASMC, que dispõe especificamente sobre garantias de crédito à exportação:

The provision by governments (or special institutions

controlled by governments) of export credit guarantee

or insurance programmes, of insurance or guarantee

programmes against increases in the cost of exported

28 US – Subsidies on Upland Cotton, Relatório do Painel, para. 7.906; Relatório do OA, para. 610.29 US – Subsidies on Upland Cotton Relatório do Órgão de Apelação, para. 609.30 Acordo sobre Agricultura, Artigo 10.1: “[e]xport subsidies not listed in paragraph 1 of Article 9

shall not be applied in a manner which results in, or which threatens to lead to, circumvention of export subsidy commitments; nor shall non-commercial transactions be used to circumvent such commitments”.

Guilherme Marquadt BayerJoaquim Maurício Fernandes de Morais

524

products or of exchange risk programmes, at premium

rates which are inadequate to cover the long-term

operating costs and losses of the programmes. (grifo

nosso)

A jurisprudência da OMC confirma entendimento de que são considerados subsídios à exportação per se as medidas governamentais (a exemplo de um programa oficial de garantias de crédito à exportação) que se enquadrem na descrição de uma das alíneas do Anexo I do ASMC31. Com isso, de acordo com o disposto na alínea (j), os programas de garantias de crédito à exportação cujos prêmios cobrados são insuficientes (“inadequate”) para cobrir os custos operacionais e perdas financeiras do programa no longo prazo constituem subsídios à exportação, sujeitos, portanto, às obrigações do artigo 3 do ASMC e do artigo 10.1 do AsA.

Nesse ponto, o contencioso do algodão trouxe jurisprudência relevante para futuros casos. A partir dela, foram estabelecidos os critérios de análise para caracterizar um programa de garantias de crédito à exportação como subsídio à exportação no âmbito do Acordo sobre Agricultura. No que tange ao termo “inadequate to cover”, o Órgão de Apelação entendeu que o foco da análise da alínea (j) estaria em determinar se haveria “insuficiência no valor dos prêmios”32, cabendo ao painel, por meio de um teste essencialmente financeiro, verificar “the financial performance of an export credit guarantee program, that is, its revenues from premiums and its long-term operating costs and losses”33.

31 Korea - Measures Affecting Trade in Commercial Vessels (DS273), Relatório do Painel, para. 7.204. Brazil - Export Financing Programme for Aircraft (DS46), Relatório do Painel, para. 6.31.

32 US – Subsidies on Upland Cotton, Relatório do OA, para. 665.33 US – Subsidies on Upland Cotton, Relatório do OA, para. 667.

Limitação do “policy space” para a concessão de subsídios agrícolas: contribuição brasileira nos contenciosos do açúcar e do algodão

525

Durante os painéis original e de implementação, as partes divergiram quanto aos dados financeiros relativos aos programas de garantias de crédito à exportação, que possibilitavam, em alguns casos, conclusões opostas quanto à sustentabilidade financeira ou não dos programas. Essa divergência foi superada, primeiramente, com a confirmação de que não seria necessária uma quantificação precisa dos prêmios, sendo o objetivo principal avaliar se os valores cobrados pelos prêmios seriam “suficientes” (“adequate”) para cobrir os custos e perdas no longo prazo34. No caso, a “insuficiência” dos prêmios ficou ainda mais evidente devido à comprovação de custo líquido para o Tesouro norte-americano em vários anos.

Em segundo lugar, a avaliação financeira não estaria restrita a uma abordagem meramente retrospectiva, com base nos dados históricos dos programas de garantias de crédito à exportação. Na fase de implementação, o OA decidiu que a análise da “adequação ou suficiência” dos prêmios ao longo prazo poderia adicionalmente basear-se em projeções do desempenho financeiro futuro do programa35. Esse tema tem íntima relação do que venha a ser considerado “longo prazo” pelo painel, tendo em vista que esse conceito não está determinado nos Acordos sobre Agricultura e de Subsídios. Nesse sentido, uma maior ou menor amplitude do que seja longo prazo poderia proporcionar conclusões distintas, a depender de fatores como as taxas históricas e projetadas de recuperação de crédito do programa para determinado período.

Em terceiro lugar, o OA confirmou pleito brasileiro de que evidências relacionadas à “estrutura, design e operação” do programa poderiam servir à análise do painel em dois

34 US – Subsidies on Upland Cotton, Relatório do Painel, paras. 7.823-7.825.35 US – Subsidies on Upland Cotton (Art. 21.5), Relatório do OA, para. 278.

Guilherme Marquadt BayerJoaquim Maurício Fernandes de Morais

526

casos: (i) quando informações financeiras do programa não estiverem disponíveis; e (ii) na existência desses dados, como meio suplementar para avaliar a “adequação” dos prêmios36. Esse elemento qualitativo de análise foi uma importante conquista para o governo brasileiro, pois inseriu um elemento adicional que não se restringia a dados puramente financeiros, os quais, muitas vezes, não estão amplamente disponíveis à parte demandante. No contencioso, o Governo apresentou alguns elementos adicionais relacionados à “estrutura, design e operação” do programa GSM-102 que serviram para demonstrar que os prêmios não eram “suficientes” para cobrir os custos operacionais e as perdas financeiras no longo prazo, como, por exemplo, a existência de um valor máximo (“fee cap”) estabelecido em lei para os prêmios e a não precificação do risco no cálculo dos prêmios cobrados pelo programa37.

O Brasil apresentou ainda, como evidência adicional, a grande disparidade entre os prêmios cobrados pelo Programa GSM-102 e aqueles calculados com base na metodologia do Arranjo sobre Créditos à Exportação da OCDE38. Embora o painel tenha acolhido a referida comparação como elemento relevante, em razão da “magnitude” da diferença de valores, ressaltou que não estaria sugerindo que “qualquer diferença” entre os prêmios do GSM-102 e os da OCDE demonstraria que o programa não seria financeiramente sustentável ao longo prazo39.

O uso do Arranjo da OCDE como parâmetro para avaliar a “adequação” dos prêmios de programas de garantias de crédito

36 US – Subsidies on Upland Cotton (Art. 21.5), Relatório do OA, para. 278.37 US – Subsidies on Upland Cotton, Relatório do Painel, paras. 7.857-7.866.38 Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). Arragement on

Officialy Supported Export Credits. Disponível em: <http://www.oecd.org/tad/xcred/theexportcreditsarrangementtext.htm>. Acesso em: 7/7/2013.

39 US – Subsidies on Upland Cotton (Art. 21.5), Relatório do Painel, para. 14.97.

Limitação do “policy space” para a concessão de subsídios agrícolas: contribuição brasileira nos contenciosos do açúcar e do algodão

527

à exportação gerou forte oposição dos Estados Unidos, que argumentavam que a alínea (j) não dispunha do “porto seguro” do Arranjo da OCDE previsto no segundo parágrafo da alínea (k) do Anexo I do ASMC, o qual se restringia apenas às operações de crédito direto à exportação. Apesar da reação norte-americana, o painel de implementação, embora tenha reconhecido a ausência de previsão legal para uso do “porto seguro” da OCDE nos casos da alínea (j), reconheceu que os prêmios com base no Arranjo da OCDE, “from an evidentiary point of view”, poderiam servir como indicativo à “insuficiência” dos prêmios para assegurar a sustentabilidade financeira do programa GSM-102 no longo prazo40.

O Brasil, dessa forma, logrou caracterizar o programa norte-americano de garantias de crédito à exportação (GSM-102) como um subsídio à exportação por meio de uma análise que não se restringia a critérios meramente quantitativos, mas também com base em elementos qualitativos, utilizando as informações disponíveis como “evidência” da incompatibilidade dos prêmios cobrados pelo programa com as despesas relacionadas a “defaults” nos empréstimos no longo prazo. A possibilidade de acionar outro Estado-membro com base na alínea (j) do ASMC a partir de análises qualitativas é mais um fator que facilita questionamentos futuros. Do contrário, reclamações exitosas relacionadas ao financiamento subsidiado das exportações por meio de garantias de crédito poderiam tornar-se demasiadamente complexas, principalmente pelo fato de que os demandantes, na maioria das vezes, não disponibilizam as informações necessárias para a comprovação do prejuízo financeiro do programa oficial.

40 US – Subsidies on Upland Cotton (Art. 21.5), Relatório do Painel, para. 14.95.

Guilherme Marquadt BayerJoaquim Maurício Fernandes de Morais

528

5. considerAções finAis

O objetivo do presente artigo foi mostrar como a atuação brasileira no OSC contribuiu para disciplinar programas agrícolas com base tanto no Acordo sobre Agricultura como no Acordo de Subsídios. Ressaltaram-se três vitórias jurídicas obtidas pelo Brasil com impacto relevante na limitação do policy space disponível para a concessão de subsídios distorcivos à agricultura: i) questionamento com base em alegação de dano grave, conforme artigo 6 do ASMC; ii) caracterização menos exigente de subsídios à exportação no Acordo sobre Agricultura em comparação com o ASMC; e iii) estabelecimento de disciplinas para as garantias de crédito à exportação de bens agrícolas com base nos Acordos sobre Agricultura e de Subsídios.

Essas três vitórias jurídicas do Brasil avançaram, de forma importante, as regras disponíveis relativas à regulação do comércio agrícola. Mesmo com a falta de avanços nas negociações da Rodada Doha, no qual o disciplinamento mais profundo dos subsídios agrícolas era objetivo central do Brasil, o País logrou dar importantes passos por meio da atuação no OSC. Tais conquistas lançam luz sobre possíveis questionamentos futuros e constituem “ferramentas” para pressionar os formuladores de programas de subsídios na Europa e nos Estados Unidos de forma a garantir a legalidade de seus programas com o sistema multilateral de comércio.

529

Diplomata. Formada, com láurea, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 2008. Ingressou no Instituto Rio Branco em 2010. Atualmente trabalha na área de solução de controvérsias da OMC, na Coordenação-Geral de Contenciosos.

“toBAcco By Any other nAme”: emBAlAgens

genéricAs e uso dA mArcA no âmBito do

Acordo tripsChloe Rocha Young

531

Ao discutir temas de propriedade intelectual, são grandes as chances de que o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio

(Acordo TRIPS) venha à mente. Como consequência de intensas negociações sobre o tema, já regulado pelas Convenções de Paris (1967), Berna (1971) e Roma (1961) e pelo Tratado sobre Circuitos Integrados (1989)1, o Acordo TRIPS inovou não apenas por inserir questões além do comércio de bens na OMC, mas também por estabelecer um padrão de equilíbrio entre o interesse público e os direitos e incentivos relativos à propriedade intelectual. Nesse sentido, mais do que um padrão mínimo de proteção da propriedade intelectual a ser implementado e, quando desejado, ampliado pelos Estados em suas legislações nacionais, o Acordo TRIPS reflete a convergência de interesses diversos manifestos por países desenvolvidos e em desenvolvimento, interesses individuais e coletivos.

Sob a luz da importância da conclusão do Acordo TRIPS, pode-se ainda afirmar que seu texto não se manteve estanque no tempo, estando sujeito a atualizações frente às demandas socioeconômicas. A Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública (2001) é exemplo disso ao reforçar

1 Respectivamente: Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (1967); Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas (1971); Convenção Internacional para a Proteção aos Artistas Intérpretes ou Executantes, aos Produtores de Fonogramas e aos Organismos de Radiodifusão (1961); e Tratado sobre a Propriedade de Intelectual em Matéria de Circuitos Integrados (1989).

Chloe Rocha Young

532

preocupações referentes à saúde pública, em particular o acesso a medicamentos, por países em desenvolvimento. Ao balizar os direitos de patentes frente às necessidades de saúde pública, a Declaração não significou uma incompatibilidade entre promoção da saúde e interesses comerciais de propriedade intelectual, mas sim sua possível convergência.

Tal confluência é verificada nos objetivos do Acordo, em seu artigo 7, ao estabelecer que:

The protection and enforcement of intellectual

property rights should contribute to the promotion

of technological innovation and to the transfer and

dissemination of technology, to the mutual advantage of

producers and users of technological knowledge and in a

manner conducive to social and economic welfare, and to

a balance of rights and obligations2.

A afirmação dos direitos de propriedade intelectual, desse modo, ocorre de maneira conforme ao bem-estar social e econômico. É relativo a este bem-estar e, em particular, às necessidades de saúde pública que novas discussões no âmbito do Acordo TRIPS emergiram, voltadas em especial às políticas antitabagistas.

Disputas sobre produtos de tabaco, em especial cigarros, não são novidade no âmbito do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC. Como objeto de regimes de importação diferenciados ou sujeitos a exigências técnicas, estiveram em foco em discussões no âmbito do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT 1994) e do Acordo sobre Barreiras

2 Artigo 7 (Acordo TRIPS).

“Tobacco by Any Other Name”: embalagens genéricas e uso da marca no âmbito do Acordo TRIPS

533

Técnicas ao Comércio (Acordo TBT), como nos casos Peru – Taxes on Cigarettes, Dominican Republic – Import and Sale of Cigarettes, Thailand – Cigarrettes (Philippines), US – Clove Cigarettes e Armenia – Cigarettes and Alcoholic Beverages3. Embora afirmada a importância de políticas antitabagistas para a saúde pública, ressaltou-se a necessidade de que tais políticas estivessem em acordo com as provisões dos mencionados instrumentos legais. Nesse sentido, o Órgão de Apelação (OA), em US – Clove Cigarettes, foi explícito:

We do not consider that the TBT Agreement or any of the

covered agreements is to be interpreted as preventing

Members from devising and implementing public

health policies generally, and tobacco-control policies

in particular, through the regulation of the content of

tobacco products, including the prohibition or restriction

on the use of ingredients that increase the attractiveness

and palatability of cigarettes for young and potential

smokers. Moreover, we recognize the importance of

Members’ efforts in the World Health Organization

on tobacco control. While we have upheld the Panel’s

finding that the specific measure at issue in this dispute

is inconsistent with Article 2.1 of the TBT Agreement,

we are not saying that a Member cannot adopt measures

to pursue legitimate health objectives such as curbing

and preventing youth smoking. In particular, we are

3 Dos referidos casos, Dominican Republic – Import and Sale of Cigarettes (DS 302), Thailand – Cigarettes (Philippines) (DS 371) e US – Clove Cigarettes (DS 406) obtiveram decisão do Órgão de Apelação adotada pelo OSC; Peru – Taxes on Cigarettes (DS 227) e Armenia – Cigarettes and Alcoholic Beverages (DS 411) apenas realizaram consultas. Não se incluiu aqui o caso Dominican Republic – Import of Cigarettes (DS 300), contra Honduras, o qual foi reaberto com questões adicionais sob o mencionado nome de Dominican Republic – Import and Sale of Cigarettes (DS 302).

Chloe Rocha Young

534

not saying that the United States cannot ban clove

cigarettes: however, if it chooses to do so, this has to be

done consistently with the TBT Agreement4.

É importante ressaltar que, no âmbito do Acordo TRIPS, é conferido aos Estados espaço relativamente amplo para determinar medidas protetoras da saúde pública, incluindo políticas antitabaco. A discussão sobre os limites desse espaço foi submetida ao OSC com os recentes contenciosos iniciados por Ucrânia, República Dominicana, Honduras e Cuba contra legislação australiana que determina o uso de embalagens genéricas a cigarros e outros produtos de tabaco5. O que se pode deduzir é a acentuada sensibilidade do caso em pauta, o qual resultará em jurisprudência de grande importância ao Acordo TRIPS, em especial aos seus artigos 8.1 e 20. Quanto ao primeiro, seu texto afirma:

Members may, in formulating or amending their laws

and regulations, adopt measures necessary to protect

public health and nutrition, and to promote the public

interest in sectors of vital importance to their socio-

economic and technological development, provided that

such measures are consistent with the provisions of this

Agreement6.

4 Relatório do OA (US – Clove Cigarettes, parágrafos 235-236).5 Australia – Tobacco Plain Packaging (Ukraine) (DS 434), Australia – Tobacco Plain Packaging

and Geographical Indications (Honduras) (DS 435), (Dominican Republic) (DS 441) e (Cuba) (DS 458). Iniciados em 2012, por Ucrânia, Honduras e República Dominicana, e em 2013, por Cuba, os contenciosos enfocarão a Tobacco Plain Packaging Act, que entrou em vigor na Austrália em dezembro de 2012. Por virtude dessa lei, e outros instrumentos legais, todos os cigarros e outros produtos de tabaco vendidos em território australiano devem seguir padrões comuns de embalagem, como cor, fonte e tamanho da letra, advertência de risco à saúde e outros, além de estarem sujeitos a aumento na tributação. Cabe ressaltar que as medidas australianas seguem as recomendações da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS), na qual tanto Austrália como Honduras são partes (Cuba apenas assinou, não notificando a entrada em vigor da Convenção em seu território).

6 Artigo 8.1 (Acordo TRIPS).

“Tobacco by Any Other Name”: embalagens genéricas e uso da marca no âmbito do Acordo TRIPS

535

Os artigos 7 e 8 do Acordo TRIPS elencam, respecti-vamente, os objetivos e princípios do Acordo, de modo a pautarem interpretações conferidas às provisões legais em propriedade intelectual. Em outras palavras, são dispositivos sem aplicação direta, sob a luz dos quais órgãos competentes devem interpretar o texto legal, em seu sentido ordinário e dentro de seu contexto normativo, conforme a Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados7. O painel do caso Canada – Pharmaceutical Patents assim reafirmou, ao interpretar o artigo 30 do Acordo TRIPS, o qual estabelece as exceções aos direitos de patentes: “The words and those conditions [of art. 30] must be examined with particular care on this point. Both the goals and the limitations stated in Articles 7 and 8.1 must obviously be borne in mind when doing so as well as those of other provisions of the TRIPS Agreements which indicate its object and purposes”8. Políticas fundadas no artigo 8.1, consequentemente, poderiam limitar direitos estabelecidos à propriedade intelectual (sejam patentes, marcas, indicações geográficas etc.), não por conferir uma exceção à normativa, mas por embasar interpretação mais favorável das exceções presentes no Acordo.

O artigo, desse modo, define um enquadramento para a atuação de Membros ao exercerem sua discricionariedade. Embora a linguagem do dispositivo, em particular seu primeiro inciso, se assemelhe aos artigos XX(b) do GATT 1994 e XIV(b) do GATS, sua qualificação é distinta. Por um lado, os mencionados artigos são exceções às obrigações estabelecidas em seus respectivos Acordos; por outro, o artigo 8.1 do Acordo TRIPS é

7 Segundo a Convenção, em seu artigo 31.1: “A treaty shall be interpreted in good faith in accordance with the ordinary meaning to be given to the terms of the treaty in their context and in the light of its object and purpose.”

8 Relatório do painel (Canada – Pharmaceutical Patents, parágrafo 7.26). Nota da autora.

Chloe Rocha Young

536

tomado em consideração na interpretação de outras provisões, incluindo exceções legais aos direitos decorrentes da propriedade intelectual. Como resultado, a interpretação do artigo 8.1 seria mais abrangente que a conferida às exceções do GATT 1994 e do GATS, a qual foi desenvolvida jurisprudencialmente com conotação restrita.

Cabe ressaltar, em particular, a proteção conferida ao interesse público, mais amplo que o conceito de ordem pública, definido pelo artigo 8 do Acordo TRIPS como a proteção da saúde pública e nutrição (artigo 8.1) ou a promoção do interesse público em “setores de importância vital para seu desenvolvimento socioeconômico e tecnológico” (artigo 8.2). Nesse sentido, cabe aos Estados estabelecer o que é de interesse público, de modo que há razoável liberdade para a implementação de políticas que defendam tal interesse. Essa postura, menos restritiva que outros dos Acordos cobertos, mostra-se compatível com seu próprio fundamento, como mencionado: o equilíbrio entre os interesses privados, individuais, na proteção da propriedade intelectual e os interesses públicos. Se, por um lado, é regida a proteção aos detentores de patentes, marcas, desenhos industriais etc.; por outro, há a possibilidade da defesa de interesses coletivos que podem consubstanciar-se na reafirmação da propriedade intelectual (como, e.g., a inovação tecnológica decorrente de incentivos ao registro de patentes) ou na restrição de direitos (e.g., o licenciamento compulsório de medicamentos para acesso público).

Em particular no tocante à saúde pública, a discricionariedade conferida aos Membros da OMC, porém, encontra dois limites no texto do artigo 8.1, ao que uma determinação de embalagens genéricas a produtos do tabaco deve adequar-se: a necessidade da medida e a sua conformidade com as provisões do Acordo TRIPS.

“Tobacco by Any Other Name”: embalagens genéricas e uso da marca no âmbito do Acordo TRIPS

537

Amplamente discutido e definido pelo Órgão de Apelação no âmbito do artigo XX(b) do GATT 1994, o “teste da necessidade” de uma medida se resumiria à verificação da (i) contribuição da mesma a um objetivo legítimo; (ii) inexistência de outra medida menos restritiva ao comércio que poderia cumprir com o mesmo objetivo; e, por último, (iii) importância relativa do objetivo frente à restrição comercial da medida9. A interpretação conferida ao termo “necessária” é, assim, acentuadamente restrita, o que se justifica pelo fato do artigo XX ser uma exceção às obrigações estabelecidas no GATT 1994. Diferentemente, o artigo 8.1 do Acordo TRIPS, longe de ser uma exceção, descreve princípios aos quais outras provisões do Acordo devem pautar-se, o que justificaria uma interpretação mais abrangente do termo “necessária”10.

Nessa mesma linha, seria incongruente interpretar “necessária” nos mesmos termos do artigo XX(b) GATT se também considerada a linguagem usada no artigo 8.1 do Acordo TRIPS. Enquanto aquele enumera hipóteses, e suas limitações,

9 Conforme o OA: “(...) the fundamental principle is the right that WTO Members have to determine the level of protection that they consider appropriate in a given context. Another key element of the analysis of the necessity of a measure under Article XX(b) is the contribution it brings to the achievement of its objective. A contribution exists when there is a genuine relationship of ends and means between the objective pursued and the measure at issue. To be characterized as necessary, a measure does not have to be indispensable. However, its contribution to the achievement of the objective must be material, not merely marginal or insignificant, especially if the measure at issue is as trade restrictive as an import ban. Thus, the contribution of the measure has to be weighed against its trade restrictiveness, taking into account the importance of the interests or the values underlying the objective pursued by it”. Relatório do Órgão de Apelação (Brazil – Tyres, parágrafo 210).

10 Sendo que os artigos XX do GATT 1994 e 8 do Acordo TRIPS apresentam contextos diferentes, seria ilógico que “necessária” mantivesse o mesmo significado. Assim, de um mesmo termo não é extraído um mesmo significado necessariamente, como afirmou o Órgão de Apelação, em referência à interpretação de “like products”: “(…) while the meaning attributed to the term “like products” in other provisions of the GATT 1994, or in other covered agreements, may be relevant context in interpreting Article III:4 of the GATT 1994, the interpretation of “like products” in Article III:4 need not be identical, in all respects, to those other meanings”. Relatório do Órgão de Apelação (EC – Asbestos, parágrafo 89).

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em que um Membro poderá aplicar medidas restritivas ao comércio, este afirma de modo genérico a importância da promoção da saúde pública e nutrição e do interesse público em setores vitais ao desenvolvimento socioeconômico e tecnológico. Termos como “to promote” (ao invés, e.g., da expressão “to enforce”) e “public interest” (no lugar de “public order”) indicam esse sentido. O teste da necessidade do artigo 8.1 do Acordo TRIPS, desse modo, poderia resumir-se ao nexo causal entre a medida e o objetivo procurado. Isso porque, primeiro, a legitimidade desse objetivo é definida pelos Estados dentro de sua policy space e em conformidade ao interesse público; segundo, o caráter restritivo ao comércio deve adequar--se à outra limitação do referido artigo: a conformidade com as provisões do Acordo TRIPS.

A “cláusula de conformidade” garante que medidas determinadas em consonância à primeira parte do artigo 8.1 do Acordo TRIPS não restrinjam os direitos inerentes à propriedade intelectual elencados no Acordo, a menos se previsto pelas exceções legais. Assim, ao mesmo tempo em que Membros podem discricionariamente estabelecer regimes que promovam a saúde pública, não devem se descuidar das provisões do Acordo.

Políticas de proteção à saúde pública que, nesse sentido, resultem na implementação de medidas restritivas à propriedade intelectual, como a referida determinação do uso de embalagens genéricas a todos os produtos de tabaco, devem estar em conformidade aos direitos e às exceções previstas no Acordo TRIPS, incluindo o direito de marcas. Poder-se-ia pensar que a “cláusula de conformidade” reduziria o artigo 8.1 a mero texto sem efeitos, uma vez que qualquer restrição aos direitos

“Tobacco by Any Other Name”: embalagens genéricas e uso da marca no âmbito do Acordo TRIPS

539

de propriedade intelectual teria de estar conforme aos outros dispositivos legais do Acordo.

No entanto, cabe reiterar que o artigo 8º como um todo, como princípio do Acordo TRIPS, pauta a interpretação dos termos das provisões do Acordo, incluindo suas exceções. Como mencionado, todas as expressões do Acordo TRIPS, em consonância com a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, devem ser interpretados em seu sentido ordinário e dentro de seu contexto, à luz dos objetivos e propósitos do Acordo. Desse modo, a promoção à saúde pública justifica maior flexibilidade aos termos legais, o que resulta em um status interpretativo mais “favorável” às medidas nela embasadas. É o que ocorre com o caso das embalagens genéricas aos produtos de tabaco, em contraposição ao direito de uso de marca das empresas produtoras.

O direito de uso da marca, embora não afirmado explicitamente no Acordo TRIPS, está fundado não só em seu artigo 16, sobre os direitos conferidos aos titulares do registro da marca, como também no artigo 20, sobre proibições às limitações injustificadas ao uso. Em especial, o artigo 16.1 do Acordo determina:

The owner of a registered trademark shall have the

exclusive right to prevent all third parties not having

the owner’s consent from using in the course of trade

identical or similar signs for goods or services which

are identical or similar to those in respect of which the

trademark is registered where such use would result in a

likelihood of confusion. In case of the use of an identical

sign for identical goods or services, a likelihood of

confusion shall be presumed. The rights described above

Chloe Rocha Young

540

shall not prejudice any existing prior rights, nor shall

they affect the possibility of Members making rights

available on the basis of use11.

Ao conferir o direito negativo de proteção da marca contra terceiros, o Acordo TRIPS protege a essência da marca: o elemento de diferenciação de um produto no mercado. O registro, porém, não confere apenas o poder de impedir que terceiros usem, sem autorização, a marca, mas também o direito ao uso da mesma, como mencionado. É natural que o Acordo, ao estabelecer os parâmetros mínimos de proteção da propriedade intelectual, proteja também o direito ao uso da marca pelo titular do registro. Uma vez que o direito de propriedade intelectual é a proteção de um direito de propriedade lato sensu, ao proprietário é conferido o direito erga omnes de uso, fruto e abuso da propriedade. Conclui-se, dessa forma, que o titular do registro da marca detém o direito de usá-la, além da proteção de que outrem não possa fazê-lo.

Nesse sentido, cabe ressaltar a defesa do painel, em EC – Geographical Indications, que dispõe que:

The function of trademarks can be understood by

reference to Article 15.1 as distinguishing goods and

services of undertakings in the course of trade. Every

trademark owner has a legitimate interest in preserving

the distinctiveness, or capacity to distinguish, of his

trademark so that it can perform that function. This

includes its interest in using its own trademark in

connection with the relevant goods and services of its

own and authorized undertakings. Taking account of

that legitimate interest will also take account of the

11 Artigo 16.1 (Acordo TRIPS).

“Tobacco by Any Other Name”: embalagens genéricas e uso da marca no âmbito do Acordo TRIPS

541

trademark owner’s interest in the economic value of its

mark arising from the reputation that it enjoys and the

quality that it denotes12.

Embora a existência de um interesse não incorra necessariamente em um direito, o titular da marca tem o interesse legítimo de seu uso com motivação econômica. Se a essência da marca é a diferenciação que ela confere a um produto ou serviço, seu mero registro sem uso não incorreria no reconhecimento dessa especificidade pelos consumidores. O registro, assim, se fundamentasse apenas um direito negativo contra o uso de terceiros, retiraria da marca sua utilidade econômica ou, até mesmo, a uma propriedade intelectual vazia de sentido – o que sequer justificaria o registro em primeiro lugar. A existência de algumas marcas registradas sem que haja uso das mesmas nos mercados hodiernos deve ser vista como uma exceção à regra, e não justificativa para que não seja afirmado o direito de uso dos detentores de marcas em geral. Afirmar não haver direito ao uso da marca reduziria essa propriedade intelectual à inutilidade econômica, e as provisões relativas à sua proteção, a um texto esvaziado de conteúdo.

Reafirmando, ainda, a existência de um direito ao uso da marca, deve-se atentar ao texto do artigo 20 do Acordo TRIPS, o qual traz, indiretamente, a possibilidade de sua restrição:

The use of a trademark in the course of trade shall not

be unjustifiably encumbered by special requirements,

such as use with another trademark, use in a special

12 Embora no excerto o Painel faça referência à expressão “take account of the legitimate interests of the owner of the trademark and of third parties” do artigo 17 do Acordo TRIPS, é importante ressaltar a importância conferida pelo órgão ao interesse de uso da marca pelo seu detentor, mantendo o caráter essencial de diferenciação de produtos. Relatório do Painel (EC – Geographical Indications, parágrafo 7.664).

Chloe Rocha Young

542

form or use in a manner detrimental to its capability

to distinguish the goods or services of one undertaking

from those of other undertakings. This will not preclude

a requirement prescribing the use of the trademark

identifying the undertaking producing the goods or

services along with, but without linking it to, the

trademark distinguishing the specific goods or services

in question of that undertaking13.

Conforme a primeira parte do artigo, em leitura a contrario sensu, o uso da marca pode ser justificadamente onerado por requisitos especiais. Consequentemente, uma vez que há necessidade de justificativa para a restrição do uso, há o correspondente direito ao uso da marca.

O artigo 20 do Acordo TRIPS merece especial atenção no caso da determinação do uso de embalagens genéricas aos produtos de tabaco. Essa medida não restringe o direito negativo de impedir o uso da marca por terceiros sem autorização do titular, porém condiciona o uso da mesma pelo detentor do registro às exigências legais que estabelecem um padrão de embalagem. Nesse sentido, não se trata de uma exceção aos direitos inerentes à marca, mas de uma limitação da forma pela qual é usada14. O uso de embalagens genéricas pode ser qualificado como um requisito tanto de uso em forma especial quanto de uso em detrimento da capacidade de diferenciação dos bens, ambos previstos no artigo 20.

A questão se coloca quanto à possibilidade de ser uma onerosidade justificável. Nesse ponto, é premente reiterar o

13 Artigo 20 (Acordo TRIPS).14 Assim, não cabe discutir a aplicação do artigo 17 do Acordo TRIPS, que estabelece como exceção

que: “Members may provide limited exceptions to the rights conferred by a trademark, such as fair use of descriptive terms, provided that such exceptions take account of the legitimate interests of the owner of the trademark and of third parties”.

“Tobacco by Any Other Name”: embalagens genéricas e uso da marca no âmbito do Acordo TRIPS

543

papel do artigo 8.1 do Acordo TRIPS como base à interpretação de todos os dispositivos legais do instrumento. Não cabe aqui, como mencionado, avaliar a efetividade do estabelecimento de embalagens genéricas para os objetivos de saúde pública estabelecidos pela Austrália, como a redução do apelo dos produtos de tabaco aos consumidores (especialmente jovens), o aumento da efetividade dos avisos de saúde nos pacotes e a redução da capacidade dos produtos em confundir consumidores quanto aos seus efeitos danosos à saúde. Essa consideração deve ser feita à luz dos estudos científicos elaborados e dos argumentos da Austrália, de maneira a comprovar a necessidade da medida para a promoção da saúde pública, conforme o artigo 8.1 do Acordo TRIPS.

O ponto que se deve ressaltar é a possível pressuposição de que a medida seja justificável porque voltada à saúde pública. O termo “injustificável” do artigo 20, ao ser interpretado em seu sentido ordinário, dentro de seu contexto legal, e à luz dos princípios do Acordo TRIPS, não qualificaria medidas tomadas para a promoção da saúde pública, desde que sejam autorizadas, pelo artigo 8.1 do Acordo, a serem implementadas quando houver interesse público e necessidade. Em outras palavras, o regime de embalagens genéricas aos produtos de tabaco, uma vez considerado necessário à promoção da saúde pública em conformidade interesse público, seria considerado medida que justificadamente onera o uso da marca das produtoras dos referidos produtos por meio de seus requisitos específicos de cor, fonte, imagens etc. Mesmo que seja afirmado que a padronização da fonte e tamanho da letra dos nomes das marcas de tabaco reduz a capacidade de diferenciação da marca, seria uma condição justificável sob amparo do artigo 20 e, porque conforme o dispositivo, o artigo 8.1 do Acordo TRIPS.

Chloe Rocha Young

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A discussão gerada a partir de políticas antitabagistas no âmbito do Acordo TRIPS, em suma, produz interessantes avaliações sobre o direito de marcas e as possíveis limitações ao seu uso. Dentro do contexto de equilíbrio entre interesses do Acordo, é possível verificar a proteção de direitos de propriedade intelectual e, simultaneamente, a afirmação de um policy space dos Estados na promoção da saúde pública.

Embora o artigo 8.1 do Acordo TRIPS confira essa discricionariedade aos Membros da OMC, também a limita à existência de necessidade da medida, interpretada de modo mais abrangente à conotação consolidada pelo Órgão de Apelação no “teste da necessidade” sob os artigos XX do GATT 1994 e XIV do GATS, e à “cláusula de conformidade” com as demais provisões sobre propriedade intelectual.

Cabe reiterar que o artigo 8.1 do Acordo TRIPS, por estabelecer os princípios do instrumento legal, é de extrema importância na interpretação das demais normativas, em consonância com a Convenção de Viena sobre direitos dos Tratados. Desse modo, medidas implementadas para promover a saúde pública, incluindo políticas antitabagistas, poderiam estar sujeitas a interpretação “mais favorável” dos dispositivos legais cabíveis.

Nesse sentido, a possibilidade de impor requisições especiais ao uso da marca, desde que justificáveis, advinda de interpretação a contrario sensu do artigo 20 do Acordo TRIPS, merece especial atenção. A determinação legal no sentido da padronização das embalagens dos produtos de tabaco coloca- -se como condicionalidade ao direito de uso da marca, podendo enquadrar-se tanto como forma especial de uso quanto uso em detrimento da capacidade de diferenciação entre os produtos. Essa onerosidade imposta aos direitos de marca, uma vez

“Tobacco by Any Other Name”: embalagens genéricas e uso da marca no âmbito do Acordo TRIPS

545

interpretada à luz dos princípios estabelecidos pelo artigo 8.1 do Acordo TRIPS, poderia ser qualificada como justificável e, assim, em conformidade com o artigo 20.

O policy space conferido pelo Acordo TRIPS aos Estados, ainda que sujeito aos parâmetros esclarecidos por meio da interpretação do OSC, demonstra-se mais flexível que outros Acordos da OMC. Uma vez que direitos de propriedade intelectual tocam diversos setores da economia, incluindo o mercado de cigarros e produtos de tabaco, a atuação dos Estados transfigura-se, ao mesmo tempo, em políticas mais complexas e abrangentes.

547

Diplomata, formada em Direito pela Universidade de São Paulo, é mestre em diplomacia pelo Instituto Rio Branco, no qual obteve o Prêmio Rio Branco, Medalha de Vermeil, por formar-se em primeiro lugar. Servindo atualmente na Embaixada do Brasil em Pequim, foi responsável por temas de solução de controvérsias e propriedade intelectual na Delegação Permanente do Brasil junto à OMC. Em Brasília, trabalhou na Divisão de Integração Regional (DIR) e na Divisão de Coordenação Econômica e Assuntos Comerciais do Mercosul (DMC).

sAnções econômicAs unilAterAis: Análise dA compAtiBilidAde com As

disciplinAs dA omcLetícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

549

Este artigo analisa, sob perspectivas histórica e jurídica, o tratamento que o sistema multilateral de comércio tem acordado às sanções econômicas unilaterais. Como

se verá, são raras as instâncias em que a legalidade dessas medidas foi concretamente questionada, ou mesmo analisada, seja nos tempos do GATT, seja mais recentemente, sob o regime da OMC, quando o mecanismo de solução de controvérsias foi reforçado. O fato de que muitos países visados pelas sanções – tais como Irã, Líbia e Síria – não são membros da OMC impede, é certo, que eles figurem no polo ativo da demanda. Mesmo, porém, nos casos de imposição de sanções comerciais contra membros da OMC, a exemplo daquelas contra Cuba e Mianmar, a legalidade dessas medidas é raramente contestada pelo Estado objeto da sanção. A jurisprudência é escassa também em relação à hipótese, menos incomum, de que terceiros países questionem os efeitos extraterritoriais desse tipo de sanção. Em apenas um caso (efeitos da Lei Helms-Burton sobre temas de propriedade intelectual) a contenda chegou a ser decidida pelo órgão de solução de controvérsias da OMC. Em todos os demais, o tema encontrou solução política. Após desenhar panorama histórico da imposição de sanções econômicas (primeira sessão), este artigo analisará as disciplinas multilaterais de comércio na matéria (segunda sessão), bem como as instâncias em que o sistema de solução de controvérsias foi chamado a pronunciar--se (terceira sessão).

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Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

1. sAnções econômicAs soB perspectivA históricA

A utilização de sanções econômicas – qualquer forma de suspensão ou ameaça de suspensão de relações comerciais ou financeiras costumeiras entre Estados – como instrumento de política externa não é fato novo no cenário internacional. Um dos mais antigos exemplos históricos de sanção econômica é o decreto de Mégara, editado por Péricles em 432 a. C. em resposta à abdução de três mulheres, o qual proíbe a entrada de produtos daquela cidade nos portos e mercados ao longo do vasto império ateniense. Embora existam divergências entre historiadores sobre a extensão e os efeitos do decreto, o embargo, ao atingir Esparta, aliada de Mégara, é usualmente apontado como um dos fatores que teriam contribuído para a Guerra do Peloponeso1.

Em obra que analisa extenso repertório de casos2, Hufbaue, Schott, Elliot e Oegg documentam 187 instâncias de imposições de sanções econômicas entre 1914 e 2006. Os casos vão desde o bloqueio imposto pelas potências aliadas à Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial até a recusa, por parte da Geórgia, de somar-se ao consenso para a acessão da Rússia à OMC, medida adotada em retaliação ao embargo imposto pela Rússia, em 2006, à exportação de importantes produtos agrícolas georgianos. Com efeito, a acessão da Rússia à OMC só foi possível em virtude de acordo obtido, em novembro de 2011, após intenso processo

1 Aristófanes descreve com humor o episódio: “... but now some young drunkards go to Megara and carry off the harlot Simaetha; the Megarians, hurt to the quick, run off in turn with two harlots of the house of Aspasia; and so for three whores Greece is set ablaze. Then Pericles, aflame with ire on his Olympian height, let loose the lightning, caused the thunder to roll, upset Greece and passed an edict, which ran like the song, ‘That the Megarians be banished both from our land and from our markets and from the sea and from the continent’”. (sem grifo no original). Aristophanes. The Acharnians, 425 a. C. Disponível em: http://classics.mit.edu/Aristophanes/acharnians.html. Acesso em: 2/5/2013.

2 HUFBAUER; SCHOTT; ELLIOTT e OEGG, 2009, pp. 1-41.

551

Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC

mediação capitaneado pelo governo suíço, por meio do qual Geórgia e Rússia concordaram que observadores internacionais monitorariam o movimento de bens através das fronteiras das regiões de Abkházia e Ossétia do Sul.

Dos 187 casos de sanções econômicas documentados, em apenas 23 as sanções foram adotadas sob os auspícios de organismos multilaterais internacionais ou de cobertura regional (quatro adotadas pela Liga das Nações, 17 pela ONU e seis por organismos regionais, como a União Africana e a OEA). Em relação às demais sanções, todas unilaterais, ainda que adotadas em conjunto por um ou mais países, 117 foram impostas pelos EUA, 21 pela União Europeia, 16 pelo Reino Unido e 14 pela URSS ou Rússia (desde 1990). Os mesmos dados apontam que o Brasil foi alvo de sanções econômicas – sobretudo relacionadas à suspensão de ajuda econômica e militar – em três ocasiões: 1963, 1977 e 1978, todas por parte dos EUA.

O recurso a sanções econômicas como forma de lograr objetivos de política externa vem se tornando mais frequente com o passar do tempo. Entre 1960 e 1980, foram impostas 57 sanções econômicas, das quais apenas três autorizadas pelo CSNU. Entre 1980 e 2000, o número de novas sanções saltou para 82, das quais onze autorizadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas – CSNU. Dessas, dez foram aprovadas após 1990, refletindo o relativo desbloqueio do CSNU após o período da Guerra Fria. No mesmo sentido, o custo econômico total das sanções para os países-alvo vem aumentando. Em 1980, o custo global das sanções em vigor chegava a US$ 7 bilhões. No ano 2000, esse custo havia crescido para US$ 27 bilhões anuais, dos quais em média US$ 15 bilhões poderiam ser atribuídos à intervenção no Iraque.

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Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

Análise do impacto sobre o comércio das medidas norte-americanas em vigor no ano 2000 indica que o valor das restrições depende do grau de inserção do país-alvo no comércio internacional e do grau da projetada interdependência do país- -alvo em relação aos EUA na ausência de sanções. Calcula-se, por exemplo, que o ônus daquelas sanções norte-americanas contra Cuba em vigor em 2000 representariam cerca de 14% do PIB do país caribenho. As sanções comerciais contra o Irã e a Síria representariam, todavia, apenas 0,4% e 0,2% dos PIBs daqueles países, respectivamente.

Em termos de impacto sobre terceiros países, as mesmas es-timativas indicam que, no ano de 1999, o volume de comércio afetado como consequência das restrições comerciais impostas pelos EUA ao Irã seria de US$ 1,87 bilhão, três vezes superior ao impacto dessas mesmas restrições sobre os EUA (US$ 525 mi-lhões). A mesma lógica aplica-se às estimativas para as sanções norte-americanas contra a Síria (US$ 847 milhões para terceiros países e US$ 145 milhões para os EUA), mas não para Cuba, em que se estima que o impacto das sanções seria maior nos EUA (US$ 254 milhões) do que em terceiros países (US$ 147 milhões).

Interessa notar que algumas sanções unilaterais impostas durante a Guerra Fria continuam a surtir efeitos, afetando, inclusive, a relação jurídica entre os membros da OMC. Esse é o caso da emenda Jackson-Vanik, de 1974, por meio da qual os EUA negam o status de Nação Mais Favorecida – NMF (no texto da lei definido como “normal trade relations” – NTR) a países comunistas ou que não possuam economia de mercado que limitem a liberdade de emigração e outros direitos humanos. Editada em resposta às restrições impostas pela ex-URSS à emigração de cidadãos de nível superior, o que afetava

553

Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC

principalmente os judeus, a emenda Jackson-Vanik continua a ter consequências para a ascensão de novos membros à OMC. O texto da emenda requer que, em relação ao universo de países tidos como comunistas, o Presidente determine, caso a caso, se um dado país está atuando em conformidade com os dispositivos sobre liberdade de emigração contidos na emenda. Na prática, uma determinação favorável acabou sendo feita, cedo ou tarde, em relação a todos os países-alvo da emenda, com exceção de Cuba e Coreia do Norte, únicos dois países com os quais os EUA atualmente não mantêm NTR3. No entanto, ao impor condições à concessão do tratamento NMF, a emenda está em desconformidade com o Artigo I do GATT, que dispõe que qualquer vantagem será estendida “imediata e incondicionalmente” ao produto similar originário de ou destinado a qualquer outra parte4.

Como consequência da impossibilidade dos EUA concederem tratamento MFN incondicional aos países-alvo da emenda, quando das acessões de Mongólia (1996), Quirguistão (1998), Geórgia (1999), Moldova (2001), Armênia (2002), Vietnã (2006) e, mais recentemente, da Rússia (2011) à OMC, os EUA invocaram os dispositivos do Artigo XIII do Acordo de Marraqueche5para negar a aplicação das regras da OMC a esses países6. Assim, embora, na prática, o comércio entre

3 COOPER, 2012, pp. 1-2.4 Artigo I do GATT: 1. “Qualquer vantagem, favor, imunidade ou privilégio concedido por uma

Parte Contratante em relação a um produto originário de ou destinado a qualquer outro país, será imediata e incondicionalmente estendido ao produtor similar, originário do território de cada uma das outras Partes Contratantes ou ao mesmo destinado.” (sem grifo no original).

5 Artigo XIII do Acordo de Marraqueche (similar ao Artigo XXXV do GATT): “Este Acordo e os Acordos Comerciais Multilaterais dos Anexos 1 e 2 não se aplicarão entre dois membros quaisquer se qualquer um deles, no momento em que qualquer deles se torne membro, não aceita sua aplicação”.

6 Em relação à China, a Emenda Jackson-Vanik foi repelida antes de concluídos os trâmites de acessão.

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Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

eles e os EUA continuasse fluindo normalmente por força da determinação favorável do Presidente, o recurso ao Artigo XIII implicava a não aplicação entre os dois países das regras da OMC, dentre as quais o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC (OSC). Aos poucos, em relação a cada um desses países, legislação determinando a não aplicação da emenda Jackson-Vanik foi sendo editada pelo Congresso americano7 (COOPER, 2012, pp. 2-3). Hoje, permanecem em vigor três casos de recurso ao Artigo XIII: El Salvador em relação à China (WT/L/429), Turquia em relação à Armênia (WT/L/501) e EUA em relação a Tadjiquistão (WT/L/871).

2. sAnções econômicAs à luz dAs disciplinAs dA omcO elevado custo econômico de sanções unilaterais sobre

o país-alvo e terceiros países indica que haveria razões que justificariam seu questionamento perante o mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Qualquer medida, por exemplo, que implique restrição às exportações ou importações de um país (ou grupo de países) estaria, prima facie, em desacordo com a cláusula de nação mais favorecida (Artigo I do GATT), que dispõe que os membros devem conceder aos bens originários ou destinados a qualquer outro país tratamento não menos favorável do que o concedido ao produto similar (“like product”) originário de ou destinado a outro membro. Se as sanções impostas forem restrições quantitativas, como geralmente o são, a medida violará, ademais, o Artigo XI do GATT, que contém regra geral sobre proibição de imposição de restrições quantitativas.

7 COOPER, 2012, pp. 2-3.

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Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC

Além desses dispositivos que seriam aplicáveis à ampla maioria das sanções comerciais, a depender da arquitetura da medida, outros dispositivos do GATT podem ser infringidos. Por exemplo, as sanções contra Cuba estabelecidas por meio do “Cuban Liberty and Democratic Solidarity Act” (1996), conhecido como Lei Helms-Burton, proíbem tanto a entrada de bens originários de Cuba como de bens que tenham sido transportados de e para Cuba. Essa proibição colide com as disciplinas do Artigo V, “Liberdade de Trânsito”, que requerem que os membros permitam o trânsito por seu território de bens destinados ou provenientes do território de outro membro, sem levar em consideração a bandeira da embarcação, seu local de origem, procedência, entrada, saída ou destino. Os dispositivos sobre liberdade de trânsito aplicam-se também aos bens originários ou procedentes de países não membros da OMC.

Sanções econômicas também podem estar em desacordo com as regras e os compromissos específicos assumidos no âmbito do GATS, caso imponham, por exemplo, restrições à prestação de serviços financeiros, a investimentos, ou à presença comercial de nacionais do país-alvo ou de países que comerciem com o país--alvo. Em 1996, a União Europeia (UE) iniciou procedimentos de solução de controvérsias contra os EUA na OMC contestando a compatibilidade da Lei Helms-Burton com diversos artigos do GATT e do GATS8. Entre outras medidas, a UE questionava dispositivos que poderiam levar à recusa de vistos ou à exclusão de não nacionais americanos do território dos EUA em razão do envolvimento comercial desses indivíduos com Cuba. Segundo a UE, a referida lei violaria os artigos I, III, VI, V, XI e XIII do

8 DS 38 – “United States – The Cuban Liberty and Democratic Solidarity Act” (Complainant: European Communities).

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Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

GATT, bem como os artigos I, III, VI, XVI e XVII do GATS, em especial o Anexo sobre Movimento de Pessoas Naturais. Embora entendimento bilateral, concluído em 1997, sobre os efeitos extraterritoriais da Lei Helms-Burton tenha colocado fim ao contencioso, sua compatibilidade com o sistema multilateral de comércio viria a ser objeto de nova disputa em US – Section 211 Omnibus Appropriations Act of 19989.

Em matéria de compras governamentais, em 1997, UE e Japão contestaram, perante o OSC, legislação do Estado ameri-cano de Massachusetts que proibia que o governo estadual con-tratasse bens e serviços de empresas que fizessem negócios com Mianmar10. Tratava-se, em essência, de uma forma de boicote secundário de Massachusetts em complementação àquele imposto pelo governo federal. Os demandantes argumentaram que a lei em questão infringiria diversos dispositivos do Acordo de Compras Governamentais (GPA). O caso, no entanto, nunca chegou a ser decidido na OMC, pois, logo após a conclusão da fase de consultas, a lei de Massachusetts foi repelida pela Suprema Corte dos EUA com base no argumento de que aquele Estado havia usurpado o poder exclusivo da União de regular o comércio11.

A análise da compatibilidade de sanções econômicas com os acordos da OMC passa, necessariamente, pela determinação

9 DS 176 – “United States — Section 211 Omnibus Appropriations Act of 1998” (Complainant: European Communities)

10 DS 88 – “United States – Measure affecting government procurement” (Complainant: European Communities) e DS 95 – “United States – Measure affecting government procurement” (Complainant: Japan).

11 Dentre as razões que levaram a Suprema Corte dos EUA a declarar a inconstitucionalidade da Lei do Estado de Massachusetts estão o fato de que a lei i) infringe direto exclusivo do governo federal de regular temas de política externa; ii) impõe restrições ao comércio exterior, em violação da “Foreign Commerce Clause”; e iii) deve observar os limites de estatuto federal e ordem executiva que impõem sanções a Mianmar.

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Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC

de se tais medidas podem estar justificadas à luz de outros dispositivos dos acordos. Os principais são aqueles do artigo XX (“Exceções Gerais”) e do artigo XXI do GATT (“Exceções de Segurança”), que equivaleriam, grosso modo, aos artigos XV e XV bis do GATS. Não é pacífico, entretanto, em que medida essas exceções/isenções poderiam servir de base para fundamentar sanções econômicas unilaterais por motivos de política externa.

O texto do Artigo XXI dispõe que:

ARTIGO XXI

EXCEÇÕES RELATIVAS À SEGURANÇA

Nenhuma disposição do presente Acordo será

interpretada:

(a) como impondo a uma Parte Contratante a obrigação

de fornecer informações cuja divulgação seja, a seu

critério, contrária aos interesses essenciais de sua

segurança;

(b) ou como impedindo uma Parte Contratante de tomar

todas as medidas que achar necessárias à proteção dos

interesses essenciais de sua segurança:

(i) relacionando-se às matérias desintegráveis ou às

matérias-primas que servem à sua fabricação;

(ii) relacionando-se ao tráfico de armas, munições e

material de guerra e a todo o comércio de outros artigos

e materiais destinados direta ou indiretamente a

assegurar o aprovisionamento das forças armadas;

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Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

(iii) aplicadas em tempo de guerra ou em caso de grave

tensão internacional;

(c) ou como impedindo uma Parte Contratante de tomar

medidas destinadas ao cumprimento de suas obrigações

em virtude da Carta das Nações Unidas, a fim de manter

a paz e a segurança internacionais.

A exegese do referido texto pareceria indicar que não estaria dada carta branca para que os membros do GATT adotem sanções econômicas sempre que julgarem que determinada ação ou omissão de um outro país seja contrária a seus interesses nacionais. A alínea “a”, por exemplo, tem escopo bastante limitado, podendo ser invocada apenas com o fito de adotar medidas que visem proteger informação necessária à segurança nacional.

Embora o caput da alínea “b” pareça deixar espaço a interpretações individuais sobre o que seria uma medida necessária à proteção dos interesses essenciais de segurança nacional, as alíneas seguintes acabam por restringir o escopo do dispositivo a situações que pareceriam, de fato, relacionadas a preocupações legítimas de segurança. É certo que os incisos “i” e “ii”, ao abrangerem matérias desintegráveis (“fissionable materials”) e tráfico de armas, possuem contornos mais claros do que o inciso “iii”, dado que o que vem a constituir “um caso de grave tensão internacional” estaria aberto a interpretações. Como afirmou um dos redatores da Carta de Havana, durante as discussões sobre o significado “interesses essenciais de segurança”:

we gave a good deal of thought to the question of the

security exception which we thought should be included

559

Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC

in the Charter. We recognized that there was a great

danger in having too wide an exception because that

would permit anything under the sun. Therefore we

thought it well to draft provisions which would take care

of the real security interests and, at the same time, so

far as we could, to limit the exception so as to prevent

the adoption of protection for maintaining industries

under every conceivable circumstance (…). It is really a

question of balance12.

No caso do inciso “c”, que englobaria as sanções aprovadas pelo Conselho de Segurança, parece ainda mais clara a noção de que a medida visa fazer frente a preocupações legítimas de segurança. O alcance desse inciso é, no entanto, limitado pelo fato de que, conforme discutido anteriormente, a vasta maioria das sanções econômicas aplicadas entre 1914 e 2006 não foram aprovadas pelo Conselho de Segurança. Além disso, mesmo em relação às sanções efetivamente aprovadas pelo Conselho de Segurança, caberia analisar se as medidas adotadas individualmente por cada membro da ONU para implementar tal decisão não excederiam o escopo das sanções aprovadas13.

Sobre a possibilidade de recurso às exceções ao Artigo XX como justificativa para a adoção de sanções comerciais, cabe lembrar que alguns autores14 argumentam que sanções econômicas impostas com o objetivo de promover a democracia e os direitos humanos no país-alvo poderiam ser justificadas com base na exceção do artigo XX(a), que dispõe:

12 Documento EPCT/A/PV/33, p. 20.21 and Corr. 3. Citado em “Analytical Index of the GATT”, p 600.

13 Cf. SINGH, 2012.14 HOWSE; GENSER, 2008, pp. 182-191.

560

Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

ARTIGO XX

EXCEÇÕES GERAIS

Desde que essas medidas não sejam aplicadas de forma

a constituir quer um meio de discriminação arbitrária,

ou injustificada, entre os países onde existem as mesmas

condições, quer uma restrição disfarçada ao comércio

internacional, disposição alguma do presente capítulo

será interpretada como impedindo a adoção ou aplicação,

por qualquer Parte Contratante, das medidas:

(a) necessárias à proteção da moralidade pública; [...]

Na jurisprudência da OMC, o conceito de “moral pública” foi analisado, pela primeira vez, no âmbito do contencioso “US – Gambling”, em que os EUA alegaram que as restrições impostas ao jogo pela Internet eram uma medida necessária para proteger a moral pública. Naquele contencioso, prevaleceu a interpretação de que os membros “should be given some scope to define and apply for themselves the concepts of ‘public morals’ (…) in their respective territories, according to their own systems and scales of values”15.

Essa relativa autonomia de que os membros da OMC dispõem para definir o que constituiria a “moral pública” em seus territórios tem servido de base para argumentos de que sanções econômicas contra países considerados não democráticos ou que violem direitos humanos poderiam ser adotadas ao abrigo do artigo XX(a) do GATT. Essa tese, no

15 DS 285 “United States – Measures Affecting the Cross-Border Supply of Gambling and Betting Services” (Complainant: Antigua and Barbuda).

561

Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC

entanto, nunca chegou a ser testada no âmbito do sistema de solução de controvérsias da OMC. Pareceria, não obstante, que uma definição demasiadamente ampla de “moral pública” poderia acabar por minar as bases do sistema multilateral de comércio, ao permitir que se impusessem restrições comerciais aos bens de terceiros países sob os mais diversos pretextos.

3. sAnções econômicAs nA jurisprudênciA do gAtt e dA omc

Durante os tempos do GATT, uma dezena de casos de sanções econômicas unilaterais foi levada à apreciação das Partes Contratantes, das quais apenas quatro foram objeto de decisão do OSC. Em todos os casos, a exceção de segurança do artigo XXI foi a principal defesa invocada.

Em 1949, a então Tchecoslováquia submeteu às Partes Contratantes, sob o procedimento previsto no artigo XXIII.2 do GATT, a imposição, pelos EUA, de licenças de exportação para uma série de produtos sob a rubrica “materiais de guerra”. Praga argumentava que a forma como o termo “materiais de guerra” fora definido pelos EUA era excessivamente ampla, resultando em virtual proibição de importação de bens originários da Tchecoslováquia, em violação, portanto, da cláusula de nação mais favorecida. As Partes Contratantes decidiram por voto – procedimento que vigorou nos primeiros anos do GATT, sendo depois descontinuado – que seria legítimo o recurso ao artigo XXI no caso em tela, havendo o Reino Unido argumentado que “every country must have the last resort on questions relating to its own security”. O Brasil figurou entre

562

Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

os países que votaram a favor da caracterização da medida como exceção por motivos de segurança16.

Nas décadas de 1960 e 1970, a exceção de segurança foi invocada, sem contestação, para justificar o embargo imposto por Gana17 à importação de produtos portugueses (sob o argumento de que a situação em Angola representava ameaça a seus interesses de segurança nacional), bem como o boicote da República Árabe Unida (RAU) a Israel18. Interessa notar que, tanto os argumentos de Gana, como aquelas da RAU, parecem estar fundados sobre uma interpretação do que constituiria uma medida “aplicada em tempo de guerra ou em caso de grave tensão internacional”, conforme o texto do Artigo XXI: (b) (iii).

Em 1968, Cuba listou o embargo americano, imposto em fevereiro de 1962, no inventário de medidas não tarifárias aplicadas pelas Partes Contratantes. Em resposta, os EUA

16 Documento CP.3/SR22 – II/28. “Summary record of the twenty-second meeting”, 8 June, 1949. 17 Documento SR.19/12, p. 196. Citado em “Analytical Index of the GATT”, p. 600. À época da

acessão de Portugal, Gana procurou justificar a manutenção do boicote afirmando que: “under this Article each contracting party was the sole judge of what was necessary in its essential security interest. There could be no objection to Ghana regarding the boycott of goods as justified by security interests. It might be observed that a country’s security interests might be threatened by a potential as well as an actual danger. The Ghanaian Government’s view was that the situation in Angola was a constant threat to the peace of the African continent and that any action which, by bringing pressure to bear on the Portuguese Government, might lead to a lessening of this danger, was therefore justified in the essential security interest of Ghana”. O argumento de Gana parece estar fundado sobre uma interpretação do que constituiria “um caso de grave tensão internacional”, conforme o texto do Artigo XXI b:iii.

18 Documento L/3362. Citado em “Analytical Index of the GATT”, p. 602. Nas negociações no âmbito do Grupo de Trabalho para a acessão da RAU ao GATT, representante da RAU afirmou que “the history of the Arab boycott was beyond doubt related to the extraordinary circumstances to which the Middle East area has been exposed. The state of war which had long prevailed in the area necessitated the resorting to this system (…) In view of the political character of this issue, the United Arab Republic did not with to discuss it within the GATT… I would not be reasonable to ask that the United Arab Republic should do business with a firm that transferred all or part of its profits from sales to the United Arab Republic to an enemy country”.

563

Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC

afirmaram que a medida era justificada pelo Artigo XXI. As Partes Contratantes não foram chamadas a pronunciar-se19.

Em novembro de 1975, vários países questionaram perante o Conselho Geral a imposição, pela Suécia, de quotas à importação de calçados, sob o argumento de que a política de segurança daquele país requeria a manutenção de um mínimo de capacidade produtiva nacional. O tema nunca chegou a ser levado ao sistema de solução de controvérsias, pois a Suécia descontinuou tal política em julho de 197720.

No contexto da Guerra das Malvinas, em abril de 1982, o Conselho Geral do GATT analisou o bloqueio imposto pela então Comunidade Europeia, Austrália e Canadá à importação de produtos originários da Argentina. Alegaram os países que impuseram o bloqueio que as medidas eram justificadas sob o Artigo XXI do GATT e que tinham sido adotadas à luz da Resolução 502 do CSNU, a qual, a propósito, não faz referência a sanções econômicas. Argumentaram, ainda, que os direitos decorrentes do artigo XXI não demandam notificação, justificativa ou aprovação das Partes Contratantes. A Argentina argumentou que o bloqueio infringia os Artigos I, II, XI:1 e a Parte IV do GATT e solicitou uma interpretação do artigo XXI pelo Conselho Geral, o que nunca ocorreu. Como resultado do pleito argentino, entretanto, as Partes Contratantes aprovaram documento intitulado “Decision Concerning Article XXI of the General Agreement”, que determina a obrigação (“should to the fullest extent possible”) de informar a demais das medidas adotadas sob o Artigo XXI21.

19 Documento MTN/3B/4, p. 559. Citado em “Analytical Index of the GATT”, p. 605.20 Documento C/M/109, pp. 8-9. Citado em “Analytical Index of the GATT”, pp. 603-4. 21 Documento L/5426, 29S/23, Citado em “Analytical Index of the GATT”, p. 606.

564

Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

Em 1985, a Nicarágua questionou o bloqueio imposto, pelos EUA, à importação de todos os bens e serviços de origem nicaraguense, bem como à exportação de produtos dos EUA para a Nicarágua, sob o argumento de que o embargo violaria os Artigos I, II, V. XI, XIII e a Parte IV do GATT e que “this is not a matter of national security but one of coercion”22. Os EUA alegaram que o embargo era justificado por tratar-se de emergência nacional23 e argumentaram que não cabia ao órgão de solução de controvérsias do GATT tecer juízo de valor acerca das causas que levaram aquele país a invocar a exceção do artigo XXI(b)(iii). Em resposta aos argumentos norte-americanos, a Nicarágua sustentou que o recurso ao Artigo XXI(b)(iii) só seria legítimo se a medida fosse: i) necessária à proteção de interesse essencial de segurança; e ii) adotada em tempo de guerra ou caso de grave tensão internacional. No entender da parte demandante, nenhuma dessas condições teria sido observada tendo presente que: i) um pequeno país em desenvolvimento como a Nicarágua não poderia representar uma ameaça à segurança dos EUA; ii) não havia uma emergência, no sentido do artigo XXI, uma vez que os dois países continuavam a manter relações diplomáticas; iii) a análise acerca da existência de uma emergência deveria levar em consideração outros dispositivos e organismos internacionais; iv) a Corte Internacional de Justiça, o CSNU (Resolução 562) e a AGNU (Resolução 40/188) teriam condenado o embargo.

22 Documento C/M/188, p. 4. Citado em “Analytical Index of the GATT”, p. 603. 23 Documento L/6053 – “United States – Trade Measures Affecting Nicaragua” (by the Panel).

Interessa notar que a Ordem Executiva que impôs o embargo afirma que “Ronald Reagan, President of the United States of America, finds that the policies and actions of the Government of Nicaragua constitute an unusual and extraordinary threat to the national security and foreign policy of the United States and hereby declare a national emergency to deal with that threat”.

565

Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC

Os EUA, no entanto, apenas concordaram com o estabelecimento do painel após a Nicarágua haver aceitado que, nos termos de referência, restaria claro que o painel não deveria “examine or judge the validity or motivation for the invocation of Article XXI(b)(iii) by the United States” (note- -se que, atualmente, não mais se admite semelhante limitação à atuação dos painéis, à luz da regra do consenso invertido). Impossibilitado de decidir sobre a substância do caso, o painel fez a seguinte indagação – a qual, em verdade, equivale afirmar a impossibilidade de deixar ao alvitre das partes a interpretação do artigo XXI:

if it were accepted that the interpretation of Article XXI

was reserved entirely to the contracting party invoking

it, how could the Contracting Parties ensure that this

general exception to all obligations under the General

Agreement is not invoked excessively or for purposes

other than those set out in this provision?24.

O último caso de recurso ao artigo XXI sob o GATT deu- -se em 1991, quando a ex-Iugoslávia solicitou o estabelecimento de um painel para examinar as restrições comerciais adotadas por Bruxelas no contexto das sucessivas guerras de secessão das repúblicas que conformavam a “terra dos eslavos do sul”. A Comunidade Europeia afirmou que as medidas eram adotadas sob o artigo XXI do GATT, havendo a ex-Iugoslávia defendido que a exceção de segurança não era cabível no caso em tela. O caso nunca chegou a ser decidido pelo sistema de solução de controvérsias do GATT, devido à aceleração do processo de desintegração da Iugoslávia. Em 1992, as Partes Contratantes

24 L/6053 – “United States – Trade Measures Affecting Nicaragua” (Report by the Panel), p. 14.

566

Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

entenderam que a República Federal da Iugoslávia não poderia ser considerada como sucessora automática da República Federal Socialista da Iugoslávia, e, por conseguinte, o caso foi dado como terminado.

Já sob o regime da OMC, além dos casos “DS – 38” e “DS – 88/95”25, já relatados na sessão anterior, que encontraram solução política, em apenas uma oportunidade o OSC chegou a pronunciar-se sobre a compatibilidade de sanções econômicas com as regras da OMC. Trata-se do contencioso “US – Section 211 Omnibus Appropriations Act of 1998”, em que a UE questionou a compatibilidade com o acordo TRIPS de medidas adotadas pelos EUA no contexto de seu embargo contra Cuba. A legislação em questão determinava que Cuba, seus nacionais e nacionais de outros países que tenham interesse em marcas e nomes comerciais relacionados a bens confiscados pelo regime cubano estavam proibidos de registrar ou renovar tais marcas e nomes comerciais sem o consentimento do proprietário original. Além disso, a lei determinava que as cortes dos EUA não estavam autorizadas a reconhecer ou proteger qualquer direito em relação a essas marcas sem o consentimento do proprietário original. Diferentemente dos demais casos envolvendo medidas adotadas no contexto de embargos econômicos, os EUA não invocaram em sua defesa a exceção de segurança do artigo XXI do GATT. Preferiram argumentar que as medidas adotadas, na prática, não resultavam em tratamento menos favorável.

O Órgão de Apelação (OA) entendeu que, por impor requisitos adicionais a Cuba, seus nacionais e nacionais de

25 DS 38 – “United States – The Cuban Liberty and Democratic Solidarity Act” (Complainant: European Communities). DS 88 – “United States – Measure affecting government procurement” (Complainant: European Communities) e DS 95 – “United States – Measure affecting government procurement” (Complainant: Japan).

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Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC

outros países que tenham interesse em marcas cubanas, a referida legislação infringia os dispositivos sobre nação mais favorecida (artigo 4 do TRIPS) e tratamento nacional (artigo 3.1 do TRIPS). Em suas considerações finais, o Órgão de Apelação frisou que:

where a WTO Member chooses not to recognize

intellectual property rights in its own territory relating

to a confiscation of rights in another territory, a measure

resulting from and implementing that choice must, if it

affects other WTO Members, comply with the TRIPS

Agreement, by which all WTO Members are voluntarily

bound26.

Embora o relatório do OA no caso em tela tenha sido adotado há mais de dez anos, os EUA ainda não implementaram as medidas necessárias para tornar sua legislação compatível com as disciplinas da OMC. Em 2005, após vários acordos entre EUA e UE prorrogando o prazo razoável de implementação, a UE notificou ao OSC que não tinha a intenção de retaliar, reservando-se, no entanto, o direito de fazê-lo em momento posterior.

Essa situação de descumprimento das recomendações do OSC no contexto do bloqueio contra Cuba dá margens a questionamento sobre em que medida as regras da OMC seriam eficazes para fazer frente a sanções econômicas unilaterais. Em se tratando de efeitos das sanções sobre terceiros países, a ameaça de retaliação constituiria, com efeito, importante elemento de dissuasão, a exemplo do que ocorreu em relação

26 DS 176 – “United States — Section 211 Omnibus Appropriations Act of 1998” (Complainant: European Communities). Relatório do Órgão de Apelação, parágrafo 363.

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Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme

aos dois contenciosos trazidos pela UE contra os EUA (“DS – 38” e “DS – 88/95”27) que encontraram solução política. Nas hipóteses em que a demanda seja trazida pelo país-alvo, no entanto, a ameaça de retaliação surtiria pouco ou nenhum efeito, pois eventuais retaliações apenas tenderiam a reforçar o bloqueio.

Essa realidade foi, com efeito, explicitada pela Nicarágua quando do contencioso movido pelo país junto ao sistema de solução de controvérsias do GATT contra o embargo imposto pelos EUA em 1985. Na ocasião, como forma de compensar os efeitos econômicos do embargo, a Nicarágua solicitou, sem sucesso, que as Partes Contratantes aprovassem waiver que permitisse aos países que assim o desejassem concederem tratamento mais favorável aos produtos nicaraguenses28.

4. conclusão

A análise empreendida indica que o recurso a sanções eco-nômicas unilaterais como instrumento de política externa não está imune a questionamentos perante o sistema multilateral de comércio. O histórico do GATT e da OMC dá testemunho,

27 DS 38 – “United States – The Cuban Liberty and Democratic Solidarity Act” (Complainant: European Communities). DS 88 – “United States – Measure affecting government procurement” (Complainant: European Communities) e DS 95 – “United States – Measure affecting government procurement” (Complainant: Japan).

28 L/6053 – “United States – Trade Measures Affecting Nicaragua” (by the Panel), p. 14. Após concluir que uma autorização para impor contramendidas seria contraproducente a Nicaragua argumentou: “a recommendation by the Panel that Nicaragua be authorized to withdraw its concessions in respect of the United States would indeed be a meaningless step because of the two-way embargo. For these reasons alternative solutions to re-establish Nicaragua’s benefits under the General Agreement and to achieve the purpose of Article XXIII would need to be found. Nicaragua suggested that the Panel recommend that the CONTRACTING PARTIES grant a general waiver under Article XXV:5 which would permit the contracting parties which so desire to alleviate the effects of the embargo by giving, notwithstanding their obligations under Article I, differential and more favorable treatment to products of Nicaraguan origin”.

569

Sanções econômicas unilaterais: análise da compatibilidade com as disciplinas da OMC

porém, de que, na ampla maioria das vezes em que medidas relacionadas a embargos comerciais foram submetidas ao escru-tínio multilateral, a solução encontrada foi política, em vez de jurídica. Em termos jurídicos, parece claro que os limites das exceções dos artigos XXI e XX(a) do GATT não podem ser esten-didos demasiadamente, sob o risco de se minarem as próprias bases do sistema de comércio internacional. No entanto, mes-mo nos casos em que seja adotada uma solução jurídica para o tema, o país-alvo das sanções disporá de poucas ferramen-tas para dar cumprimento a essa decisão, na medida em que o recurso à retaliação terá pouco efeito sobre, ou mesmo refor-çará, a disposição do país que aplica as sanções de continuar a fazê-lo.

pArte ivA efetividAde do sistemA de solução de controvérsiAs

573

Formada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Pós-Graduação em Direito das Comunidades Europeias e Mestrado em Direito Internacional Público pela Universidade de Assas, Paris II. Diplomata de carreira, atuou na Divisão do Mercosul do Ministério das Relações Exteriores, na Delegação do Brasil junto à ALADI e o Mercosul, na Delegação junto à UNESCO, na Embaixada do Brasil em Quito e na Secretaria-Geral da UNASUL em Quito. Atualmente, ocupa o cargo de Coordenadora--Geral de Contenciosos do Itamaraty.

A AplicAção internA dAs decisões do órgão de

solução de controvérsiAs dA omc nA práticA

Daniela Arruda Benjamin

575

O Sistema de Solução de Controvérsias (SSC) da OMC revelou-se, desde sua criação, instrumental para promover a legalização do sistema multilateral de

comércio1. Em seus 18 anos de funcionamento, o SSC contribuiu decisivamente para reforçar tanto as regras de conduta quanto o quadro institucional que balizam as relações recíprocas dos Membros da Organização em matéria comercial conferindo maior efetividade e eficácia aos compromissos assumidos em seu âmbito. É reconhecido, nesse sentido, nos termos do próprio do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Soluções de Controvérsias da OMC (ESC), como um elemento essencial para trazer segurança e previsibilidade para o sistema multilateral de comércio, preservar o equilíbrio geral de direitos e obrigações dos Membros, consagrados no Acordo e garantir o funcionamento eficaz da OMC.

1 Segundo Charlotte Ku e Paul Diehl, in (KU, Charlotte, DIEHL Paul F. (ed). International Law, Classic and Contemporary Readings, Lyanee Rienner Publishers, p. 3) a tendência a conferir maior relevância ao direito internacional na regulamentação das relações interestatais se registra em diferentes regimes internacionais e está relacionada com a natureza dual do direito internacional cujas regras forneceriam “both an operating system and a normative system for international relations”. Para Kenneth Abbot e Duncan Snidal (“Hard and Soft Law” in International Governance, in op. Cit. p. 26), há várias razões que explicam o crescente peso do direito internacional (hard law) no cenário internacional: ganhos em termos de credibilidade e legitimidade do compromisso, redução dos comportamentos unilaterais aumento dos custos políticos associados à violação e crescente fluidez na aplicação dos compromissos facilitando a administração dos regimes internacionais. (pp. 22-27) De acordo com os autores, “Violation of a legal commitment entails reputation costs To the extent that states (or certain States) see themselves as members of an international society structure by international law, reputational effects may be even broader. Law observance is even more highly valued in most domestic societies; efforts to justify international violations thus create cognitive dissonance and increase domestic audience costs”, p. 26.

576

Daniela Arruda Benjamin

Como reconheceu o então Diretor-Geral da Organização Internacional, Pascal Lamy, em artigo publicado em 2006, no European Journal of International Law:

[…] the WTO is an international organization that

brings together two concepts of international law.

Leaving aside one or two specificities, it is a permanent

negotiating forum between sovereign states and

it is therefore a cooperation organization akin to

international conferences established under traditional

international law. But it also comprises a sophisticated

dispute settlement mechanism which makes it (…) a

distinctive organization (..) and (…) a true legal order

(…) with valid rules and enforcement mechanism2.

A natureza jurídica das decisões adotadas no âmbito do SSC e, consequentemente, sua caracterização com regra jurídica, no entanto, nunca foram pacíficas. O ESC é silente sobre o tema, limita-se a estabelecer no artigo 3.4 que as recomendações e decisões emanadas do OSC têm por objetivo encontrar uma solução satisfatória para o contencioso. Para alguns autores, além disso, dado o perfil político do OSC e os limites poucos precisos da obrigação de adequar a medida considerada incompatível – que poderia inclusive ser afastada mediante compensação ou mesmo aceitação da retaliação – não haveria propriamente uma obrigação jurídica inequívoca de dar cumprimento às mesmas3.

2 LAMY Pascal, “The Place of the WTO and its Law in the International Legal Order European”. Journal of International Law N 17 2006, pp 969-984.

3 Cf. WOLFRUM, Rüdiger, STOLL Peter-Tobias & KAISER, Karen (Ed). “WTO – Institutions and Dispute Settlement”, pp. 308-309. Observa-se, ainda que embora, com lembra Hodu (Theories and Practices of Compliance with WTO Law, p. 3, o caráter obrigatório de uma norma e seu grau de implementação (compliance) tenha sido usado por muitos autores como uma espécie de “teste” para qualificá-la como direito internacional, a natureza de regra de direito internacional das decisões derivadas do ESC não deriva de seu eventual caráter obrigatório ou não, mas do

577

A aplicação interna das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC na prática

Boa parte da doutrina, no entanto, sempre defendeu que, a natureza jurídica das decisões que emanam do OSC e a obrigação de dar cumprimento às mesmas – se infere do próprio texto do ESC, cujo artigo 21 estabelece que o pronto cumprimento das recomendações e decisões é fundamental para assegurar a efetiva solução da controvérsia, em benefício de todos os Membros. Argumentam, ainda, que tanto compensação como retaliação foram concebidas como meios de induzir o cumprimento e que o artigo 3.7 deixa claro que o primeiro objetivo do mecanismo e assegurar que medida considerada violatória seja eliminada imediatamente. De acordo com o Professor John Jackson:

An adopted dispute settlement report establishes

and international law obligation upon the member in

question to change its practice to make it consistent with

the rules of the WTO Agreement and its annexes. In this

view, the “compensation” or the “retaliation approach”

are only a fallback in the event of non-compliance4.

Embates doutrinários à parte, é inegável que os Membros atribuem importância considerável ao cumprimento das decisões adotadas ao amparo do ESC. Os índices de implementação do SSC, comparado com outros mecanismos de solução de controvérsias, são significativos. Estima-se que em cerca de 90% dos casos, as decisões são devidamente cumpridas5. Casos de inadimplência, em geral, além disso, costumam ser justificados como temporários ou qualificados como divergências quanto ao

fato, inquestionável, de que seu fundamento e alcance derivam de um tratado internacional, no caso o Acordo de Marraqueche que aprovou o ESC. Nesse sentido, forma parte do direito internacional público.

4 JACKSON, John H, The WTO Dispute Settlement Understanding – Misunderstandings on the Nature of Legal Obligations, p.60.

5 Não há estatísticas precisas sobre a implementação das decisões. Nem sempre as partes na controvérsia comunicam oficialmente o encerramento dos casos. Prevalece, no entanto, a percepção de que casos de efetivo descumprimento são a exceção.

578

Daniela Arruda Benjamin

alcance das medidas adotadas pelos Estados, o que não deixa de refletir certo consenso sobre o caráter vinculatório das decisões em benefício da consistência do sistema.

Nesse contexto, a questão de sua aplicação interna ganha relevo particular. Como explicam Mavroids, Bermann e Wu,

The fact that [...] the Member States are bound by WTO

law in their relations with other international law actors

does not, in itself, guarantee that full effect will be given

to the rights and obligations arising (...) in the domestic

legal systems of the WTO members. Since the WTO has

no real enforcement machinery or instruments of its

own the efficacy of WTO law rests on a daily basis with

its Members6.

Além disso, obrigatória ou não, o impacto das decisões da OMC vis-à-vis os ordenamentos jurídicos de seus Membros é crescente. O longo contencioso sobre bananas, por exemplo, suscitou mais de 40 ações junto ao Tribunal de Justiça Europeu, nos quais os importadores questionaram a compatibilidade do Regulamento 404/93 do Conselho Europeu – que estabelecia o regime de importação de bananas com as regras da OMC e a decisão do OSC7.

A maneira, contudo, como essas decisões são aplicadas internamente pode variar consideravelmente, tanto em termos de prazo, como em termos de substância. Em termos de prazo, embora o ESC consagre o princípio do “pronto cumprimento das

6 MAVROIDIS, Petros C; BERMANN, George A. & WU, Mark. The Law of the World Trade Organization (WTO) Documents, Cases & Analysis, p. 1128.

7 PETERSMANN, Ernst-Ulrich. “Alternative Dispute Resolutions – Lessons for the WTO?”. In WEISS, Friedl. Improving WTO Dispute Settlement Procedures. Issues& Lessons from the Practice of Other International Courts&Tribunals, pp. 36-37. Ver também M. Petros C. Mavroidis, George A. Bermann & Mark Wu. Op. Cit., pp. 1130-1137.

579

A aplicação interna das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC na prática

decisões”, reconhece a possibilidade de que, em determinadas circunstâncias, seja definido um “prazo razoável para o cumprimento”, seja de comum acordo, seja via arbitragem8. Esse prazo pode variar, dependendo da natureza da medida questionada e o tipo de medida interna de ajuste. Nos casos, por exemplo, em que o cumprimento pressupõe mudanças legislativas, é de praxe estabelecer prazos mais longos, normalmente de até 15 meses, contados da adoção do Relatório do painel ou do Órgão de Apelação (OA). Na prática, contudo, esse período pode ser bem mais longo. Havendo, por exemplo, divergências sobre as medidas alegadamente adotadas por um Membro, o ESC prevê a possibilidade de que seja convocado novo painel (se possível integrado pelos painelistas originais) para determinar se houve ou não implementação9. A decisão do painel pode ainda ser objeto de apelação. Em termos concretos, isso significa que o prazo para cumprimento da decisão original pode se estender no tempo10.

Em termos de substância, embora o artigo 19.1 do ESC contemple a possibilidade de que os órgãos adjudicatórios “recomendem” meios de implementação de suas decisões, na prática, as decisões limitam-se a recomendar que as medidas nacionais sejam ajustadas, ficando a critério dos demandados

8 Artigo 21.3 do ESC.9 Os painéis de implementação são previstos no Artigo 21.5 do ESC para determinar a existência ou

a compatibilidade de uma medida adotada por um Membro com a decisão do OSC e os acordos da OMC. Não se trata, nesse sentido, de uma nova disputa, mas de uma etapa do procedimento original. O procedimento é mais expedito. Em princípio, o objeto da controvérsia é mais restrito que o da disputa original, centrando-se nas medidas adotadas ou não para dar cumprimento à decisão. Na prática, contudo, em função da noção ampla de “medida de cumprimento”, adotada, os contenciosos ao amparo do artigo 21.5 podem ser bastante complexos.

10 Alguns casos, como EC-Bananas (DS 27) EUA-Algodão (DS 267) e Grandes Aeronaves Civis (DS 316 e DS 353) ultrapassaram a marca de dez anos sem implementação.

580

Daniela Arruda Benjamin

determinarem como isso seria feito11. Os diferentes painéis de implementação, por sua vez, adotaram uma noção ampla de “medida de cumprimento” que englobaria qualquer ação ou comportamento do Estado que guardasse um mínimo de relação com a decisão sobre a controvérsia12.

Não é apenas a forma de executar internamente uma decisão emanada do SSC que pode variar. Os efeitos e alcance dessas decisões no ordenamento jurídico dos diferentes países também podem variar consideravelmente dependendo da estrutura constitucional e do ordenamento jurídico de cada país, a quem cabe, em última instância, determinar sua hierarquia em relação ao direito interno e se esses atos podem ser arguidos com tal, em tribunais nacionais13. Como bem lembra o Professor

11 O Acordo de Subsídios é um pouco mais preciso. Estabelece que subsídios declarados proibidos no âmbito do SSC devem ser imediatamente “retirados”. No caso de subsídios acionáveis, poder--se-ia optar por manter os subsídios à condição de que seus efeitos adversos fossem removidos. Na prática, contudo, mesmo nesse caso, prevalece uma grande indefinição sobre como se operacionaliza na prática essa eliminação, tanto dos subsídios ou dos seus efeitos adversos.

12 De acordo com a jurisprudência, as medidas de cumprimento para fins de um painel de implementação, podem ser qualquer ação ou omissão do reclamado, declarada ou não, que tenha uma “relação particularmente próxima”, “vínculo específico” ou “ nexo estreito” com as recomendações do OSC sobre a disputa. Essa “relação privilegiada”, em geral é determinada em função da natureza da medida e seus efeitos em relação à situação de descumprimento, no entendimento de que o Membro reclamado tem a obrigação de adotar medidas concretas para cessar o descumprimento dos Acordos da OMC e/ou evitar que a decisão do OSC seja frustrada pela manutenção ou adoção de medidas não conhecidas ou mencionados no caso original. Em geral, trata-se de medidas adotadas após a decisão original, incluindo medidas adotadas durante o procedimento do artigo 21.5, mas já houve casos em que se entendeu que medidas anteriores à decisão poderiam ser consideradas “medidas de cumprimento”, desde que sua manutenção tivesse relação concreta com a decisão. Cf Relatório do OA no caso Estados Unidos Zeroing (EC) (Artigo 21.5 – EC) (DS 294).

13 Como tive oportunidade de defender em trabalho anterior, a despeito da crescente relevância e impacto interno dos atos emanados das Organizações Internacionais, particularmente os de natureza jurisdicional, raros são os sistemas jurídicos nacionais que contêm regras claras sobre a interação desses atos com o direito interno. De acordo com Magdalena Martinez, National Sovereignty and International Organization, as razões para esse vazio legal são variadas. Parte se deve à própria incerteza em relação à obrigatoriedade e a natureza dos atos emanados das Organizações Internacionais (OI). Parte à preocupação de evitar atribuir a esses atos, emanados de autoridades fora do País, efeitos jurídicos diretos (p. 271). O tratamento conferido aos atos emanados das OI dependeria igualmente da abertura da ordem constitucional de cada país à

581

A aplicação interna das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC na prática

Welber Barral, nem todos os países, por exemplo, conferem aos tratados de direito comercial, em geral, incluindo às decisões emanadas do OSC, caráter autoexecutável14, isto é a capacidade de serem invocadas diretamente pelos particulares na ordem jurídica interna, na ausência de um ato interno de transposição dessa decisão ao ordenamento jurídico interno.

Alguns exemplos são suficientes para ilustrar o alcance do problema. Nos Estados Unidos (que é o maior usuário do SSC), embora o judiciário local não pareça ter maiores dificul-dades em aplicar o direito internacional, como parte integran-te do ordenamento jurídico nacional, prevalece a posição de que as decisões do OSC não vinculam os tribunais internos, cabendo exclusivamente ao Executivo ou ao Legislativo, con-forme o caso, adotarem medidas positivas para dar satisfação às decisões do OSC. Em caso levado a tribunais norte-ame-ricano sobre a prática de “zeroing” pelas autoridades norte- -americanas nas investigações antidumping, condenada pela OMC como já comentado anteriormente neste livro15, a Corte Federal de Apelação dos Estados Unidos deixou claro que não estava vinculada às decisões da OMC na ausência de uma regu-lamentação interna específica. Segundo a Corte:

participação dos mesmos em esquemas de cooperação internacional, em geral e, em OI, em particular (p. 11) Países mais propenso à participação em OI tendem a ser menos refratários a conferir maiores efeitos às decisões emanadas dessas entidades. A Constituição da Holanda, por exemplo, uma das mais abertas nessa área, estipula claramente que “legislative, executive, and judicial powers may be conferred on international instituions by or pusuant to a treaty” (artigo 91), reconhecendo “the binding force of decisions made by international bodies” (artigo 93). A Constituição de Portugal (artigo 8.3), por sua vez é um pouco mais moderada estabelece que “as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram diretamente na ordem interna, desde que tal se encontre expressamente estabelecido nos respectivos Tratados”. Por via de regra, contudo, a maioria dos ordenamentos jurídicos costuma ser silente sobre a matéria. Ver sobre o tratamento dos atos emanados das OI no direito comparado ARRUDA BENJAMIN, Daniela. A Aplicação dos Atos Emanados das Organizações Internacionais no Ordenamento Jurídico Brasileiro, pp. 50-80.

14 BARRAL, Welber (Org.). Solução de Controvérsias a Organização Mundial do Comércio, pp. 7-73. 15 Ver supra, artigo sobre o contencioso do suco de laranja de Valéria Mendes Costa.

582

Daniela Arruda Benjamin

WTO decisions are not binding on the United States,

much less this court… [do original] Congress has enacted

legislation to deal with the conflict presented here. It

has authorized the United States Trade Representative,

an arm of the executive branch, in consultation with

various congressional and executive bodies and agencies,

to determine whether or not to implement WTO reports

and determinations and if so implemented the extension

of the implementation ….[ do original] We will not

attempt to perform duties that fall within the exclusive

province of the political branches, and we therefore

refuse to overturn Commerce’s zeroing practice based

on any ruling by the WTO or other international body,

unless and until such ruling has been adopted pursuant

to the specified statutory scheme16.

Essa posição decorre, em muito, da leitura que se faz do ato interno que incorpora os compromissos da OMC no ordenamento jurídico norte-americano17, que, para muitos, daria ênfase ao recurso a medidas compensatórias como forma de dar cumprimento às obrigações dos Estados Unidos, consagrando o entendimento de que um Membro da OMC, em última instância pode optar por não dar cumprimento automático a decisão, adotando medidas de compensação. Na decisão no caso Tembec Inc v. United States envolvendo o cumprimento das decisões

16 Apud SHANY, Yuval. Regulating Jurisdictional Relations between national and International Courts, p.57.

17 Uruguay Round Agreements Act Statement of Administrative Action, H.Doc., 103-316, vol. 1, at 1032-33, que estabelece claramente que “[n]o provision of any of the Uruguay Round Agreements, nor the application of any such provision to any person or circumstance, that is inconsistent with any law of the United States shall have effect.”

583

A aplicação interna das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC na prática

da OMC nos casos Softwood Lumber movidos pelo Canadá18, a Corte de Comércio Internacional dos Estados Unidos entendeu, na mesma linha, que:

Congress fashioned section 129 to allow the United

States to take full advantage of its remedial options

before the WTO. Rather than require the ITC19 or

Commerce automatically to implement an adverse WTO

Recommendation, Congress granted the USTR authority

to decide whether the United States will undertake to

comply with its WTO obligations and, if so, whether that

response will be through agency action20.

A Corte reconheceu, não obstante que as decisões do OSC podem ser levadas em consideração como “persuasive source of law” para informar a análise dos casos submetidos aos tribunais nacionais e assim reconciliar direito interno e direito internacional.

No caso da União Europeia, o real alcance jurídico das regras da OMC e do OSC no direito comunitário também não é claro. Por ocasião dos diversos contenciosos internos sobre o regime de bananas europeu, mencionado acima, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) reconheceu que:

where [...] an international agreement provides for its

own system of courts, including a court with jurisdiction

to settle disputes between the Contracting Parties to the

agreement and, as a result, to interpret its provision, the

18 Refere-se aos diversos contenciosos movidos contra o Canadá questionando a aplicação de medidas de defesa comercial (direitos compensatórios e direitos antidumping) pelos Estados Unidos às exportações canadenses de madeira suave. Ao total, foram seis contenciosos. (DS 236, DS 247, DS 257, DS 277 e DS 311).

19 International Trade Commission. 20 Apud MAVROIDIS, Petros C.; BERMANN, George A. & WU, Mark, The Law of the World Trade

Organization (WTO) Documents, Cases & Analysis, op. cit., pp. 1186-1187.

584

Daniela Arruda Benjamin

decisions of that court will be binding on the Community

institutions, including the Court of Justice (…) in so far

as the agreement is an integral part of the Community

legal order… [e que, como é o caso dos acordos da

OMC, internalizados na ordem jurídica comunitária

pela Decisão 94/800 do Conselho] an international

agreement providing for such a system of courts is in

principle compatible with Community Law21.

O Tribunal, no entanto, absteve-se de atribuir efeito às decisões do OSC, limitando-se a reconhecer que as normas comunitárias deveriam ser “interpretadas em conformidade” com os compromissos assumidos na OMC. De acordo com o TJCE, a OMC atribuiria grande importância à negociação entre as partes para a busca de uma solução para o contencioso. Nesse sentido, afastar judicialmente a aplicação da norma comunitária considerada incompatível com os acordos da OMC pelo OSC, privaria o Executivo (no caso, a Comissão) de entabular negociações com terceiros países para solução amigável do contencioso na OMC. Esse entendimento permanece inalterado até hoje. Em junho de 2009, o Advogado-Geral da UE chegou a defender que o reconhecimento de um direito de indenização resultante da violação do direito da OMC, na hipótese de não execução da decisão do órgão de regulação de litígios da OMC no prazo fixado, indicando que a jurisprudência firmada nos casos relacionados ao contencioso de bananas – sobre a flexibilidade dos Membros da OMC para negociar uma solução mutuamente satisfatória – não se aplicaria na hipótese de ter se esgotado

21 PETERSMANN, Ernst-Ulrich, Alternative Dispute Resolutions – Lessons for the WTO? In WEISS, Friedl op.cit pp. 36-37. Ver também, Petros C. Mavroidis, George A. Bermann, Mark Wu, op. cit., pp. 1130-1137.

585

A aplicação interna das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC na prática

o prazo de implementação da medida definido pelo OSC22. O Tribunal, no entanto, optou por não acatar a recomendação do Advogado-Geral e manteve a decisão do Tribunal de Primeira Instância de não conceder indenização à empresa com base no descumprimento da decisão do OSC23.

No caso do Japão, outro grande usuário do sistema de solução de controvérsias – ainda que a Constituição permita a aplicação direta de alguns Tratados24 – no caso das decisões do OSC também prevalece o entendimento de que não se trata de um instrumento autoexecutável. Sua aplicação interna depende, nesse contexto, de uma medida específica do Governo, em geral, via adoção de ato administrativo, já que a maioria das decisões de caráter técnico são tomadas pelo Executivo.

A situação no Brasil não difere muito. A Constituição Federal (CF) não contém nenhum dispositivo explícito sobre a interação dos atos emanados das OI com o ordenamento jurídico brasileiro. O texto constitucional limita-se a estabelecer, em seu artigo 4º inciso IX, que o Brasil deverá balizar-se, nas suas relações internacionais, pela “busca da cooperação entre os povos”, atribuindo à União, no artigo 21, a competência de “manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais”. Não há, no entanto, na Constituição, nenhuma previsão específica sobre o alcance dos atos emanados dessas organizações, que tampouco figuram no rol de instrumentos legislativos estabelecidos no artigo 59 da CF. Tampouco há, no

22 Ver: <http://europa.eu/rapid/press-release_CJE-03-39_pt.htm>.23 No caso em espécie, a empresa importadora Biret impetrou pedido de indenização contra a

Comissão com fundamento na ilegalidade das Diretivas 81/602/CE e 88/146/CE consideradas incompatíveis com os acordos da OMC nos contenciosos relacionados à proibição pela UE de importação de carnes com hormônios. Casos Hormônios (DS 26 e 48) iniciados por Estados Unidos e Canadá.

24 Reservado a instrumentos que contemplem obrigações claras e diretas, que não requeriam, nesse contexto, para sua aplicação interna, a adoção de nenhum ato interno de aplicação.

586

Daniela Arruda Benjamin

direito positivo brasileiro, elementos que permitam inferir de forma inequívoca como, na prática, a integração desses atos no direito interno deveria se operar25.

Na ausência de previsão legal ou indicações precisas que permitam identificar de maneira clara a forma de interação dos atos emanados das OI, incluindo os atos emanados de tribunais e instâncias jurisdicionais como o OSC26, no ordenamento jurídico brasileiro, para apreender o real alcance desses atos, faz-se necessário um exame da prática que vem sendo adotada no Brasil. No caso das decisões da OSC, em que pese não haver dúvidas no País sobre seu caráter obrigatório, até o momento, nos dois únicos casos em que o Brasil viu-se na contingência de adotar medidas internas de implementação – DS46 Brasil – Programa de Financiamento à Exportação e DS332 Brasil –

25 Como lembra Dallari, se no caso dos Tratados Internacionais propriamente ditos “o acúmulo de discussão, embora volumoso, não possibilitou ainda que legislação doutrina e jurisprudência convergissem no reconhecimento de posição incontroversa para a disciplina da recepção das normas convencionais, no caso das decisões das Organizações internacionais, tal debate nem ganhou corpo”. Pedro A. Dallari, “A Constituição e as Relações Internacionais”, p. 19. As exceções mais marcantes referem-se ao caso da incorporação das normas do Mercosul ao ordenamento jurídico brasileiro – que tem despertado grande interesse da doutrina e o tema da internalização dos atos e decisões emanados do sistema (regional e internacional) de proteção dos direitos humanos, tendo em vista, neste caso, o disposto no parágrafo 2º do artigo 5º da CF. No caso específico do Tribunal Penal Internacional, entendeu-se que seria fundamental regulamentar sua aplicação interna por lei.

26 Em que pese a especificidade dos órgãos jurisdicionais internacionais, com a Corte Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ou o OSC, do ponto de vista formal, os atos emanados dessas instâncias têm a natureza jurídica de atos emanados de OI, cuja obrigatoriedade jurídica decorre de um tratado internacional que as instituiu. Segundo dados levantados por Cretella Neto (Teoria Geral das Organizações Internacionais, p. 173) existiram atualmente mais de uma centena de instâncias jurisdicionais, muitas pertencentes à estrutura de alguma OI. Embora, a rigor, pela própria natureza jurisdicional, não tenham capacidade normativa, stricto sensu, suas decisões na medida em que esclarecem o direito positivo e lhe dão concretude prática, têm contribuído para o crescente adensamento da juridicidade das relações internacionais. No Brasil, em via de regra, prevalece o entendimento que sentenças ditadas por Tribunais Internacionais a cuja jurisdição internacional o Brasil se submete por tratado, devem ser considerados atos internacionais, cuja obrigatoriedade e base jurídica emanam do Tratado que a estabeleceu. Não se confundiriam, nesse caso, com sentenças estrangeiras que requerem homologação para serem executadas no Brasil. Cf. Daniela Arruda Benjamin, op. cit, pp. 120-121.

587

A aplicação interna das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC na prática

Medidas Afetando a Importação de Pneus Recauchutados27, optou-se por um sistema de incorporação que se poderia qualificar de difuso. Isto é, mediante adoção de atos internos de adequação da legislação contestada na OMC, “inspirados nas decisões do OSC”, mas não necessariamente embasados juridicamente nas mesmas. Não houve, em nenhum dos casos um ato formal de incorporação da decisão.

No caso Aeronaves, a aplicação interna da decisão foi viabilizada mediante sucessivas modificações da regulamentação do Programa de Financiamento às Exportações, conhecido como PROEX28, contestado pelo Canadá. Os ajustes envolveram, entre outros, modificações de várias Resoluções do Banco Central e a alteração da Lei 8.187/91 – que criou o PROEX29.

Em Pneus, o OSC reconheceu a legalidade das restrições im-postas pelo Brasil à importação de pneus recauchutados em fun-ção de razões ambientais, mas questionou a prática do judiciário brasileiro de permitir, por meio de liminares, a importação de pneus usados e recauchutados. Além de discriminatória, o Órgão entendeu que a medida afetava a coerência da política ambiental utilizada pelo Brasil para justificar a restrição. Nesse caso, mais do que adequar a legislação, o País viu-se na contingência de

27 Ver para mais detalhes sobre os casos os artigos sobre o contencioso de pneus e o de aeronaves nesta publicação.

28 Criado pela Lei 8.187 de 1991 – modificada posteriormente pela Lei 10.184, de 12/2/10 – o Programa foi complementado por uma série de atos infralegais: Portarias Interministeriais; Cartas Circulares e Resoluções do Banco Central, Portarias do MDIC e mesmo por uma Medida Provisória.

29 As primeiras revisões feitas pelo Brasil na regulamentação do Programa (PROEX II) foram consideradas insuficientes pelo Painel original (reconvocado pelo Canadá com base no artigo 25.1 do ESC), o que determinou novos ajustes pelo Brasil (PROEX III). As novas medidas tampouco foram aceitas pelo Canadá. Novamente reconvocado, no entanto, o Painel original desestimou a reclamação canadense no entendimento de que embora a legislação brasileira não tivesse sido satisfatoriamente adequada às regras da OMC, como desejado pelo Canadá, conferia suficiente discricionariedade às autoridades brasileiras para aplicá-la de forma compatível. Novo questionamento, nesse contexto, dependeria da prática posterior do Estado brasileiro.

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Daniela Arruda Benjamin

modificar uma prática judiciária. O instrumento utilizado, nesse caso, foi engenhoso. Com fulcro no parágrafo 1º do artigo 102 da CF, regulamentado pela Lei Nº 9.882, de 03.12.99, foi interposta, junto ao STF, ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), no caso a proteção ambiental consagrada no artigo 225 da CF, com o objetivo de suspender as liminares judiciais que estavam autorizando a importação de pneus recau-chutados.

Embora o contencioso na OMC tenha sido mencionado na ADPF (iniciada antes mesmo da decisão do OSC sobre o tema) como um dos problemas derivados da prática judiciária questionada, em momento algum, a decisão do OSC foi utilizada como fundamento legal para a ADPF, cujo embasamento jurídico é exclusivamente interno30. Em 24 de junho de 2009, o STF proferiu decisão sobre o assunto julgando, com base no voto da Relatora, parcialmente procedente a ação e declarando, com efeitos ex tunc, a inconstitucionalidade das liminares judiciais que permitiram as importações de pneus usados e recauchutados. Embora a questão ainda esteja formalmente em aberto na OMC, em março de 2009, a Delegação do Brasil junto à OMC encaminhou relatório ao OSC informando sobre as medidas adotadas para dar cumprimento à decisão do OSC, as quais não foram contestadas pela União Europeia.

Em termos de alcance, ainda não há como afirmar se os Tribunais nacionais aceitariam atribuir efeitos jurídicos concretos às decisões do OSC porventura invocados em ações jurídicas internas na ausência de um ato administrativo de incorporação. Isto é, se poderiam ser aplicadas diretamente

30 A referência ao contencioso figura na página 23 da petição inicial, apresentada pelo Presidente da Republica. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=TP&docID=181175#1%20-%20PETI%C7%C3O%20INICIAL/>. Acesso em: 11/1/2011.

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A aplicação interna das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC na prática

pelos tribunais mediante o que Cretella Neto chama de “regime de integração simplificada”, que permitiria dar efeitos a atos emanados de uma OI, incluindo tribunais internacionais, “sempre e quando se encontrarem satisfeitas as condições estabelecidas pelo tratado constitutivo disciplinando a promulgação do ato pela Organização”31.

Não resta dúvida de que o judiciário brasileiro está habilitado a aplicar, no julgamento dos casos submetidos a sua apreciação, normas internacionais adotadas pelo Brasil. A título de exemplo, vale recordar julgamento do STJ, no âmbito do Recurso Extraordinário No. 821-406, de 2007 em que o Tribunal observou, invocando a Súmulas 20 e 71 do STJ e a Súmula 575 do STF que

pacífica é a jurisprudência do STJ no sentido de que a

mercadoria importada de país signatário do GATT é

isenta de ICMS, quando contemplado com esse favor o

similar nacional, em aplicação do princípio do tratamento

nacional consagrado nos acordos da OMC.

Mais recentemente, em 12 de junho de 2013, Juiz federal, substituto da 8ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF), indeferiu pedido liminar impetrado pela Associação Brasileira de Criadores de Camarão para suspensão, por motivos sanitários, das importações de camarões da Argentina, sob a alegação de que o Brasil, como signatário da OMC se comprometeu a não adotar medidas protecionistas e discriminatórias que favoreçam produtos domésticos contra a competição estrangeira e impeçam o livre-comércio de produtos entre os Membros. O Juiz ponderou ainda que o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da OMC

31 Op. cit., p. 387.

590

Daniela Arruda Benjamin

(Acordo SPS, na sigla em inglês) estabelece procedimentos uniformes e harmonizados a todos os países signatários para que cada um possa aplicar, em seus territórios, medidas de proteção contra riscos decorrentes da entrada de pragas, doenças, organismos portadores de doenças ou organismos patogênicos contidos nos produtos provenientes do comércio internacional, de forma não discriminatória, desde que com “respaldo em princípios científicos e em provas científicas suficientes, baseadas na avaliação do risco”32.

Em sua decisão, o Juiz concluiu, com base na análise dos dispositivos pertinentes do Acordo que

a medida sanitária proposta pela autora, qual seja, a

proibição total da importação de camarão selvagem da

Argentina, configura medida discriminatória disfarçada

ao comércio internacional, com nítida intenção

protecionista injustificada do produto nacional, em

detrimento dos princípios da igualdade comercial e

do livre-comércio entre nações, estabelecidos pela

Organização Mundial do Comércio – OMC33.

Dada a descentralização do sistema Judiciário e a falta de clareza no ordenamento jurídico brasileiro sobre o real alcan-ce dos atos emanados das OI é difícil saber se essa abertura do Judiciário brasileiro à aplicação dos acordos da OMC – que de res-to ainda teria que ser confirmada por meio de uma análise mais exaustiva da jurisprudência que excede o escopo do presente tra-balho – se estenderia, igualmente, às decisões do OSC.

Por um lado, não há como negar que pelo Decreto No. 1355, de 30/12/94, a Ata Final que aprova os Resultados da

32 Cf.: <http://portal.trf1.jus.br/sjdf/comunicacao-social/imprensa/noticias/mantida-autorizacao-do-ministerio-da-pesca-para-importacao-de-camaroes-argentinos.htm>. Acesso em: 15/7/2013.

33 Idem.

591

A aplicação interna das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC na prática

Rodada Uruguai de Negociações Comerciais que estabeleceu a OMC, o Brasil conferiu aos acordos da OMC hierarquia de lei interna, e estabeleceu, entre outros a obrigação de “garantir a conformidade de suas leis, regulamentos e procedimentos com os Acordos da OMC”, incluindo as disposições do ESC sobre a obrigatoriedade de dar cumprimento às decisões do OSC. A rigor, portanto, o Decreto de promulgação dos Acordos da OMC poderia constituir embasamento jurídico interno suficiente para que as decisões do OSC fossem invocadas em tribunais internos brasileiros, independentemente da adoção de medidas adicionais. Algumas decisões adotadas por tribunais brasileiros parecem apontar nessa direção.

Por outro, no entanto, diante das dúvidas que ainda pairam sobre a natureza das decisões do OSC não seria de estranhar se os Tribunais nacionais optassem por seguir a linha adotada por outros países e afastassem essa aplicação com o argumento de que, por força dos próprios Tratados da OMC, o Executivo teria discricionariedade suficiente para decidir não dar cumprimento à decisão, sujeitando-se às medidas previstas nos Acordos nessa hipótese. Além disso, como no caso do Brasil persistem divergências sobre o alcance do direito internacional vis-à-vis o direito interno, tampouco se pode descartar a possibilidade de que os Tribunais optem por enfatizar o caráter autônomo e a natureza sui generis das decisões do OSC que, nesse sentido, não poderiam prescindir, para sua validade interna, de ato específico de internalização (diferente do ato que incorporou a Ata Final da Rodada Uruguai).

Seja como for, é importante ter presente que a despeito da ausência de regulamentação interna específica sobre o assunto ou mesmo da existência em conferir efeitos diretos às decisões do OSC, na prática, a maioria dos países tem aplicado regularmente os atos emanados do OSC. Para tanto, são utilizadas diferentes

592

Daniela Arruda Benjamin

modalidades de aplicação interna, determinadas em geral, caso a caso, muito em função do conteúdo da decisão e do contexto interno de cada país. Em alguns casos pontuais, medidas de implementação interna podem requer mudanças amplas, envolvendo inclusive modificação de leis e práticas judiciárias, normalmente mais complexas e que demandam mais tempo. Em geral, contudo, no caso do OSC os índices de implementação podem ser considerados satisfatórios34.

As razões para tanto são variadas, como são variados os motivos que levam Estados a respeitarem seus compromissos internacionais em geral. Como lembra Joost Pauwelyn, esses motivos podem envolver35: interesse próprio; preocupações com reputação e legitimidade, pressão interna ou internacional; convicção sobre a consistência e obrigatoriedade da norma; existência de mecanismos para induzir cumprimento; impacto sobre outros interesses e mesmo ausência de consequências na hipótese de violação36. Para muitos, o cumprimento está associado igualmente à efetividade e à robustez das regras37.

Na prática, é difícil identificar um único motivo. Muito possivelmente, trata-se, antes de qualquer coisa, de um

34 O que não significa que se tenham registrados casos de descumprimento ao longo dos anos, também por motivos variados. Normalmente, no entanto, mesmo esses descumprimentos costumam ser caracterizados como transitórios.

35 PAUWELYN, Joost. Optimal Protection of International Law, Navigating between European Absolutism and American Voluntarism, p. 1.

36 O autor recorda que, em algumas áreas do direito internacional, uma violação poderia ser qualificada de eficiente, na medida em que facilitaria ajustes na regra sem os custos de uma modificação da regra. Op. cit., p. 16.

37 Segundo Robert Mitchell (in MARTIN e SIMMONS, 2001, p. 105), a qualidade do regime internacional, sua clareza e a existência de mecanismos de controle, conta muito para explicar o grau de adesão aos mesmos. Guzman por sua vez, identifica três fatores que, combinados, constituem incentivos para o respeito do direito internacional: reputation, retaliation and reciprocity (Three Rs of Compliance) e permitiriam ao direito internacional fomentar a cooperação entre Estados. Andrew T. Guzman. How International Law works. A Rational Choice Theory, op. cit., p. 33.

593

A aplicação interna das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC na prática

imperativo prático de regulamentar relações recíprocas. De acordo com Yusuf Aksar,

(…) there cannot be any doubt on the fact that the

first and most practical reason for the effectiveness of

international economic law is that it is based on common

good and necessity (…) At this point, international

economic law provides legal rules or principles creating a

stable and global market which is a fundamental need for

the international community. Certainly, compliance with

those rules serves to the protection of the self-interest of

each member of the international community38.

Até o presente, o SSC tem-se mostrado à altura do desafio. Sua capacidade de continuar garantindo maior previsibilidade e segurança ao sistema multilateral de comércio, em um ambiente econômico em constante evolução, dependerá em muito da possibilidade do sistema continuar fornecendo os incentivos necessários para a implementação das decisões39. Para isso, a

38 In AKSAR, Yusuf (Ed.) Implementing International Economic Law Through Dispute Settlement Mechanisms, p. 44. Não se desconhece, por certo, que o direito internacional é apenas um dos fatores levados em consideração pelos Estados em sua conduta internacional, e não necessariamente o preferido ou o mais importante. Ainda que se possa matizar a posição de Goldsmith e Posner (2005), para quem o direito internacional, em função de suas limitações, não tem qualquer efeito sobre a conduta dos Estados – é inegável que, pela própria natureza do sistema internacional, haverá sempre margem para violações, até porque a avaliação sobre custos e benefícios decorrentes da violação pode variar consideravelmente segundo as circunstâncias e os interesses envolvidos. Ao fim e ao cabo, o comportamento de um Estado em relação ao direito internacional, em geral, e em especifico vis-à-vis os atos emanados das OI, dependerá de sua percepção dos próprios interesses, definidos ou apreendidos em função das circunstâncias específicas de cada caso. Jack L Goldsmith, Eric Posner, The limits of International Law, p. 35.

39 Não deixa de ser sintomático, por exemplo, que em artigo publicado em 2011 no Journal of World Trade sobre a experiência da China no Sistema de Solução de Controvérsias, Wenhua JI e Cui Huang tenham observado que, “China has so far been quite restrained in its reactions and has shown due respect for the authority of the WTO dispute settlement system, always expressing its willingness to implement and to complete implementation within a reasonable period of time. But, recognizing the failure of certain leading Members, particularly the US

594

Daniela Arruda Benjamin

julgar pela experiência dos últimos 18 anos, será necessário, um esforço contínuo para assegurar a legitimidade e a qualidade de suas decisões, a fluidez e celeridade dos procedimentos e eficácia dos remédios existentes em caso de descumprimento.

and the EU, to implement certain adverse DSB rulings after several years of cumbersome litigation and political manoeuvering, it remains to be seen whether prompt compliance by China will always continue to be the case in the future for China, especially for economically or politically sensitive cases”. Desde sua acessão a OMC em 2001, o país tem aumentado consideravelmente sua participação no SSC, tanto como demandante (com foco nos Estados Unidos e União Europeia), quanto como demandado e terceiras partes. Wenhua JI e Cui Huang. “China’s Experience in Dealing with WTO Dispute Settlement: A Chinese Perspective”. Journal of World Trade, vol. 45, n. 1, 2011, pp. 1–37.

595

Conselheiro, ingressou na carreira diplomática em 1995 e está atualmente na Delegação do Brasil junto à OMC, em Genebra. Foi Coordenador-Geral de Contenciosos do Itamaraty (2010--2013) e professor titular no Instituto Rio Branco. Trabalhou na Divisão de Mercosul do Itamaraty (1996-2001). Mestre em Direito Internacional pela Universidade de Kiel. Bacharel em Direito pela UFPR.

retAliAção nA omc: procedimento, práticA

e oBjetivos

Celso de Tarso Pereira

597

1. o procedimento de retAliAção no ãmBito do sistemA de solução de controvérsiAs dA omc

Também com disputas, ameaças e retaliações comerciais se faz a política externa. Apesar de a frase soar forte e contundente em âmbito diplomático, essa tem sido a

experiência do Brasil e de vários outros países no Sistema de Solução de Controvérsias (SSC) da OMC. Os resultados obtidos pelo Brasil em longa série de casos demonstra claramente que o SSC tem sido vetor relevante na defesa do interesse de importantes setores da economia nacional, como demonstram os ganhos concretos nos casos Açúcar (UE), Algodão (EUA), Frangos (em disputas diferentes contra UE, África do Sul e Argentina), Suco de Laranja (EUA), Salvaguardas sobre Aço (EUA), entre outros.

O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC passou a funcionar em 1995 e, desde então, foram iniciadas mais de 460 controvérsias, tendo o Brasil participado em 115 (como demandante, demandado e terceira parte). O órgão central responsável por administrar esse sistema, estabelecido ao final da Rodada Uruguai do GATT (1986-1994), com a aprovação do Entendimento relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC), é o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), composto por representantes de todos os Membros da OMC.

598

Celso de Tarso Pereira

O SSC permite, a qualquer momento, a solução do conflito por meio de acordo entre as partes. Caso esse acordo não seja atingido, elas utilizarão os procedimentos estabelecidos no mecanismo de solução de controvérsias para solucionar a disputa, que podem ser classificados em quatro fases principais: (i) consultas; (ii) painel; (iii) apelação; e (iv) implementação.

Após o transcurso de todas as fases, incluindo o fim do “período razoável de tempo” para a implementação das recomendações contidas no relatório adotado, sem que elas sejam implementadas, as partes podem chegar a um acordo quanto a uma possível compensação da parte vencida à vencedora até o integral cumprimento do relatório. Caso não haja acordo quanto à compensação, a parte vencedora poderá solicitar ao OSC autorização para suspender concessões ou obrigações em relação à parte vencida na controvérsia. Esse mecanismo visa conferir maior efetividade ao sistema de solução de controvérsias da OMC e, consequentemente, ao sistema multilateral de comércio.

A suspensão de concessões ou de outras obrigações – comumente chamada de retaliação – é vista como uma medida temporária e não deveria, em tese, permanecer aplicada por muito tempo. Importante ressaltar que o direito à retaliação não é automático, mas requer autorização prévia do OSC.

A autorização para retaliar submete-se, assim, ao mesmo rito de consenso invertido que caracteriza o sistema de solução de controvérsias pós-GATT. A prática mostra que o Membro afetado sempre contesta o nível de suspensão de concessões e um painel de arbitragem1 é instalado, se possível composto

1 O termo “arbitragem” é reservado, no ESC, a três procedimentos: o do artigo 22.6, para determinar o nível de suspensão de concessões; o do artigo 21.3, para determinar o período razoável de tempo para implementar decisão e o do artigo 25, todos mais expeditos que o Painel regular e todos sem recurso de apelação. No caso da arbitragem do artigo 25, é necessário acordo das partes, ao contrário dos demais. Nas demais situações, fala-se de painel ou grupo especial.

599

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

pelos membros do painel original. O prazo previsto para a divulgação do laudo arbitral é de apenas 60 dias, claramente insuficiente para a complexa tarefa atribuída aos árbitros: nos casos submetidos até hoje à arbitragem do artigo 22.6 do ESC, nenhum deles ateve-se a esse prazo. Do laudo arbitral não cabe recurso de apelação, nem as partes podem buscar uma segunda arbitragem. A função principal dos árbitros é determinar se o nível de suspensão é equivalente ao nível da anulação ou prejuízo, conforme o artigo 22.7.

Registre-se que alguns outros Acordos possuem igualmente regras específicas para solução de controvérsias, as quais, por serem mais específicas, têm prevalência sobre as regras mais genéricas do ESC. As mais importantes são claramente aquelas contidas no Acordo de Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC), aplicáveis aos subsídios proibidos (artigo 4) e aos acionáveis (artigo 7). Se o parâmetro para definição do montante da retaliação é geralmente a equivalência entre o nível da suspensão e o de anulação e prejuízo, em caso de subsídios proibidos os árbitros deverão determinar se as contramedidas são adequadas e, no caso dos subsídios acionáveis, se são proporcionais (“commensurate”) ao grau e natureza dos efeitos adversos existentes. Os significados de equivalente, adequado e proporcional são distintos e têm sido interpretados pela jurisprudência (mas não pelo OA, já que não há previsão de apelação dos painéis de arbitragem).

Embora não previsto nas regras do ESC, o procedimento de arbitragem, uma vez estabelecido o painel, tem seu início substantivo com a apresentação, pela parte que solicita a autorização, de um “methodology paper”, o qual explica, detalha e justifica o montante de retaliação requerido. Esse é, de fato, o primeiro documento, já no curso da arbitragem do artigo 22.6, que procurará dar substância e legitimidade ao

600

Celso de Tarso Pereira

valor da suspensão, o qual teve que ser anunciado em momento anterior, quando da solicitação da autorização para retaliar (artigo 22.2). Como os prazos combinados nos artigos 22.2 e 22.6 alocam um tempo mínimo para a obtenção da autorização (30 dias depois do fim do chamado período razoável de tempo), o “request for authorization for suspension of concessions or other obligations” costuma ser conciso e o valor requerido tende a ser meramente referencial, um valor teto, que não poderá mais ser alterado. É apenas em fase posterior, quando o painel foi composto e os prazos definidos pelos árbitros, que se apresenta o “methodology paper”, que deverá então, em bases científicas, justificar o montante pedido.

A outra parte, em sua primeira petição, contestará o valor solicitado; normalmente, então, será apresentada mais uma réplica da parte que quer retaliar e ambas serão ouvidas pelos árbitros em uma audiência, antes da decisão final. Muitas vezes estendendo-se por meses, a discussão pode tornar-se difícil e exigir estudos e modelos econométricos, culminando em complexas “batalhas de modelos”, as quais, por sua vez, exigem que cada lado tenha em sua equipe técnicos capazes de conduzir o debate e explicar e defender as variáveis que compõem cada modelo. Desnecessário dizer que países em desenvolvimento, sem recursos humanos ou financeiros disponíveis para coordenar e produzir tais estudos, encontram--se em desvantagem crítica no procedimento em relação aos países desenvolvidos (especialmente EUA, UE e Canadá).

Naqueles casos em que se solicita autorização para suspender concessões em outro setor que o da violação original (retaliação cruzada), os árbitros terão também a função de analisar se os requisitos do artigo 22.3 foram cumpridos. A

601

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

regra do ESC é que a retaliação se dê no mesmo setor da violação questionada: não existe um “direito” à retaliação cruzada. O artigo 22.3 fornece verdadeira hierarquia de “remédios” que podem ser tomados, estabelecendo que (a) o princípio geral é o de que a parte reclamante deverá procurar primeiramente suspender concessões ou outras obrigações relativas ao(s) mesmo(s) setor(es) em que o painel ou o Órgão de Apelação haja constatado uma violação ou outra anulação ou prejuízo. Caso não seja possível retaliar no mesmo setor, nem em outros setores do mesmo Acordo (conforme artigo 22.3 (b) – situação aplicável especialmente para o Acordo de Serviços), a letra (c) do mesmo artigo impõe as condições para a retaliação cruzada: “se a parte considera que é impraticável ou ineficaz suspender concessões ou outras obrigações relativas a outros setores abarcados pelo mesmo acordo abrangido, e que as circunstâncias são suficientemente graves, poderá procurar suspender concessões ou outras obrigações abarcadas por outro acordo abrangido”.

O principal obstáculo jurídico para a parte que tenciona retaliar em outro setor é, portanto, comprovar perante o painel de arbitragem que não é “practicable” ou “effective” retaliar no mesmo setor da violação. Tal teste não é fácil, como o Brasil viria a descobrir em sua disputa com os EUA sobre subsídios ao algodão. Com pauta de comércio bilateral diversificada e na casa dos bilhões de dólares – ao contrário do Equador e Antígua e Barbuda em seus respectivos casos – o ônus da prova de convencer os árbitros de que não havia produtos em montantes suficientes para serem retaliados tornava-se mais árduo. Como as condições para “cruzar” a retaliação se tornaram, na prática, tão severas – especialmente para países com maior participação no comércio internacional e que tendem, portanto, a se envolver

602

Celso de Tarso Pereira

mais frequentemente em disputas na OMC – não é de se admirar que alguns países em desenvolvimento tenham apresentado, no âmbito das negociações do ESC, proposta para que os critérios do artigo 22.3 sejam exigidos apenas dos países desenvolvidos2.

No caso Algodão, por exemplo, à luz da natureza e da gravidade das violações, assim como da percepção que os EUA continuariam a resistir a cumprir com as decisões, o Brasil solicitou aos árbitros autorização para retaliar os EUA em outro setor que não apenas o de bens. Depois de Equador e Antígua, o Brasil seria o terceiro país a solicitar tal autorização. Para tanto, teve que, primeiramente, demonstrar que estavam presentes os critérios do artigo 22.3 ESC (com fundamento em que a retaliação no mesmo setor de bens não seria “practicable or effective” e as circunstâncias seriam sérias o suficiente). Pautando-se na interpretação dos requisitos do artigo 22.3 do ESC desenvolvida pelos árbitros em casos anteriores (CE - Bananas III, EUA - Jogos de Azar), o Brasil qualificou “practicable”, no que foi endossado pelos árbitros, como sendo aquela suspensão no mesmo setor que “está disponível para aplicação na prática” (“available for application in practice”) ou “adequado para ser usado em um caso particular” (“suited for being used in a particular case”3). Se não for uma opção real ou adequada para ser usada nas circunstâncias, ela será impraticável. Na interpretação de “effective”, contudo, os árbitros, no caso Algodão, discordaram do entendimento de CE - Bananas III, que era endossado pelo Brasil. Em Bananas III, os árbitros tinham afirmado que “the thrust of this criterion empowers the party seeking suspension

2 Cf. TN/DS/W/47, por Índia, Malásia, Egito, Honduras e outros.3 WT/DS267/ARB/1, par. 5.71.

603

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

to ensure that the impact of that suspension is strong and has the desired result, namely to induce compliance with DSB rulings within a reasonable period of time”4. Já para os árbitros em Algodão, o critério de eficácia da retaliação se avalia dentro do mesmo setor ou acordo e não em comparação com a suspensão em outro setor. Alinhando-se com os argumentos dos EUA, que desejavam minimizar a referência de CE - Bananas III ao impacto da retaliação e seu resultado de induzir o cumprimento, os árbitros acabaram realçando eficácia apenas como “the ability of the complaining party to make effective use of the awarded countermeasures in order to induce such compliance”5; tal entendimento parece relacionar-se muito mais ao termo “practicable” (“available for application in practice”) do que a “effective”: os termos acabaram por adquirir conceituação semelhante.

A consequência dessa nova interpretação – não sujeita à apelação, embora podendo ser alterada na próxima disputa que chegue à mesma fase – é a maior dificuldade em se justificar a retaliação fora do setor original da disputa. Não se levando especialmente em conta o impacto que a retaliação cruzada pode ter em se obter o cumprimento, torna-se mais difícil comprovar a necessidade de se ir além do setor original.

2. A práticA dA retAliAção nA omcEmbora não seja a regra, o histórico de disputas na

OMC mostra que, em algumas circunstâncias, quando fortes interesses nacionais são contrariados, aumenta a recalcitrância de alguns países em acatar as decisões do Órgão de Solução de

4 Idem, par. 5.77, citando a Decisão dos Árbitros em CE - Bananas III (Equador), par. 72.5 Idem, par. 5.81.

604

Celso de Tarso Pereira

Controvérsias (OSC). Os EUA, no caso Algodão ou “zeroing”, a UE no caso Hormônios e mesmo o Brasil no caso Aeronaves (Bombardier-Embraer), são exemplos conhecidos. Para essas situações, a previsão do “último recurso” da retaliação no Entendimento de Solução de Controvérsias confere ao país “vencedor” a expectativa de que todo o esforço ligado à condução de um caso na OMC poderá ainda ser justificado e que o país que decide não acatar as recomendações não evitará as consequências previstas.

A avaliação jurídica e econômica da retaliação pela literatura não é unânime, que a vê tanto como uma estratégia economicamente perversa, contrária à essência mesma do livre--comércio cujas regras o SSC quer preservar, como também como o pilar central do sistema de solução de controvérsias da OMC. Diante da possibilidade de retaliar, a diretriz básica do processo de tomada de decisão governamental deve ser a de reduzir os custos domésticos e incrementar no possível o impacto no país a ser retaliado.

Desde 1995, o OSC, com fundamento no artigo 22.6 do ESC, autorizou o uso de medidas retaliatórias 19 vezes, em disputas envolvendo os seguintes 11 Membros: EUA, Comunidade Europeia (depois UE), Canadá, Japão, México, Coreia, Equador, Índia, Chile e Antígua e Barbuda, além do Brasil. Desse grupo, apenas cinco países realmente implementaram a retaliação, em quatro disputas diferentes: Bananas III (EUA), Hormônios (EUA e Canadá), Foreign Sales Corporation (CE) e Emenda Byrd (CE, Japão, México, Canadá).

Nos demais casos autorizados, ou os países resolveram, por diferentes motivos, não retaliar (Índia, Chile, Coreia e Brasil em Emenda Byrd), não tiveram capacidade ou meios suficientes para tanto (Equador em Bananas III e Antígua em Jogos de

605

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

Azar), chegaram a um acordo satisfatório (Brasil e Canadá nos dois casos Aeronaves) ou o processo foi suspenso (Algodão) mediante o pagamento de compensação (EUA ao Brasil).

Note-se que o caso EUA - Direito Autoral não foi incluído no rol acima porque o montante da retaliação nesse caso resultou da arbitragem de procedimento especial sob o artigo 25 do ESC e não do artigo 22.6, como todos os demais (o artigo 25 permite às partes acordar procedimento alternativo para buscar uma “arbitragem expedita”). Cabe relembrar também que a CE (e outros Membros) chegou a ameaçar retaliação aos EUA em 2003, no caso EUA-Salvaguardas sobre Aço (DS248), com base não em autorização do artigo 22.6 do ESC, mas do artigo 8 do Acordo de Salvaguardas, o qual também permite, cumpridas algumas condições, a suspensão de concessões equivalentes. A retaliação não foi aplicada porque os EUA revogaram as salvaguardas poucos dias antes da adoção do relatório do Órgão de Apelação, em 10 de dezembro de 2003: a legitimidade conferida aos demandantes por essa decisão do órgão máximo da OMC, combinada com a ameaça de retaliação autorizada pelo Acordo de Salvaguardas, contribuíram certamente para que os EUA revogassem a medida ilegal. Ainda ao amparo do mesmo Acordo, no caso CE - Salvaguardas sobre Glúten de Trigo (DS166), a CE aplicou contramedidas por alguns meses, entre a adoção do relatório de apelação pelo OSC e a expiração da validade da medida de salvaguardas.

Mais recentemente, em 13 de dezembro de 2012, Antígua e Barbuda notificaram o OSC sobre sua intenção de retaliar os EUA, após vários anos de negociações infrutíferas (desde 2007) em busca de solução mutuamente satisfatória. A partir de vitória em disputa relativa ao Acordo de Serviços, Antígua pretende “retaliar cruzado” em várias seções do Acordo TRIPS,

606

Celso de Tarso Pereira

até o valor autorizado de US$ 21 milhões/ano6. Também entre 2011 e 2012, o Japão e a UE acionaram o artigo 22 do ESC e solicitaram autorização para retaliar por falta de cumprimento dos EUA nos seus respectivos casos “zeroing”. Por conta dessa pressão adicional, e também graças aos 10 outros casos sobre o mesmo assunto (inclusive do Brasil), os EUA acabaram por acatar a decisão e as arbitragens foram suspensas.

O número relativamente pequeno de retaliações que foram aplicadas pode ser interpretado de diversas maneiras. Por um lado, poderia indicar que muitos contenciosos comerciais foram resolvidos antes da solicitação de consultas ou durante sua realização. De fato, com base em dados completos do ano de 2012, contavam-se 454 pedidos de consultas, dos quais 182 seguiram para a fase seguinte e resultaram em relatórios de painéis. Também se poderia inferir um alto grau de acatamento dos relatórios do Órgão de apelação, pois dos 121 adotados (que reflete uma taxa média de 66% de apelação dos relatórios dos painéis), apenas 19 acabaram sendo levados ao painel de arbitragem do art. 22.6. A ameaça latente de um país buscar a autorização para retaliar pode igualmente funcionar como dissuasão mesmo antes disso acontecer.

O fato de que apenas 11 países tenham percorrido todo o longo percurso até a obtenção da autorização para retaliar poderia ser interpretado igualmente, porém, como um sinal de que apenas uma minoria dos 159 países participa ativamente do sistema e que somente um pequeno grupo possui capacidade de exaurir as possibilidades do mecanismo. Que somente cinco países tenham implementado a retaliação pode sinalizar que a retaliação é remédio excepcional, realmente um “último recurso”.

6 Cf. WT/DS285/25. United States – Measures Affecting the Cross-Border Supply of Gambling and Betting Services – Recourse by Antigua and Barbuda to article 22.7 of the DSU. 13 December 2012.

607

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

O quadro abaixo resume as autorizações de retaliação na OMC sob o artigo 22.6 do ESC e informa sobre sua aplicação na prática:

DecisãoMembro

requerente da retaliação

Número da disputa (DS)

Autorização para

suspensãoartigo 22.6

ESC

Laudo Situação

U.S. – Cotton Subsidies

(22.6) (SCM 4.11) Subsídios

Proibidos

Brasil 267 19/11/2009

US$ 147,4 milhões

para 2006; anos futuros calculados

com base em fórmula dos

árbitros

EUA estão fazendo

mudanças graduais no programa

GSM (além do pagamento de compensação)

U.S. – Cotton Subsidies

(22.6) (SCM 7.10) Subsídios

Acionáveis

Brasil 267 19/11/2009US$ 147,3

milhões por ano

EUA estão pagando

compensação anual

U.S. – Gambling

Services (22.6)Antígua 285

US$ 21 milhões por

ano

Antígua notificou

intenção de retaliar em dez/2012

U.S. – Offset Act (“Byrd

Amendment”) (22.6) (Chile)

Chile 217 17/12/2004

Pagamento variável de

acordo com desembolso

anual de direitos

antidumping (AD) ou

subsídios por país

Não retaliou

U.S. – Offset Act (“Byrd

Amendment”) (22.6)

(Canada)

Canadá 234 26/11/2004

Pagamento variável de

acordo com desembolso

anual de direitos AD ou subsídios

por país

Retaliou por curto período

(continua)

608

Celso de Tarso Pereira

DecisãoMembro

requerente da retaliação

Número da disputa (DS)

Autorização para

suspensãoartigo 22.6

ESC

Laudo Situação

U.S. – Offset Act (“Byrd

Amendment”) (22.6) (EC)

Comunidades Europeias 217 26/11/2004

Pagamento variável de

acordo com desembolso

anual de direitos AD ou subsídios

por país

Continua retaliando

U.S. – Offset Act (“Byrd

Amendment”) (22.6) (India)

Índia 217 26/11/2004

Pagamento variável de

acordo com desembolso

anual de direitos AD ou subsídios

por país

Não retaliou

U.S. – Offset Act (“Byrd

Amendment”) (22.6) (Japan)

Japão 217 26/11/2004

Pagamento variável de

acordo com desembolso

anual de direitos AD ou subsídios

por país

Continua retaliando

U.S. – Offset Act (“Byrd

Amendment”) (22.6) (Korea)

Coreia 217 26/11/2004

Pagamento variável de

acordo com desembolso

anual de direitos AD ou subsídios

por país

Não retaliou

U.S. – Offset Act (“Byrd

Amendment”) (22.6)

(Mexico)

México 234 26/11/2004

Pagamento variável de

acordo com desembolso

anual de direitos AD ou subsídios

por país

Retaliou por curto período

(continua)

609

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

DecisãoMembro

requerente da retaliação

Número da disputa (DS)

Autorização para

suspensãoartigo 22.6

ESC

Laudo Situação

U.S. – Offset Act (“Byrd

Amendment”) (22.6) (Brazil)

Brasil 217 26/11/2004

Pagamento variável de

acordo com desembolso

anual de direitos AD ou subsídios

por país

Não retaliou

U.S. – 1916 Act (22.6)

Comunidades Europeias 136

Montante dos

julgamentos finais das

cortes domésticas e “settlement

awards” sob a Lei AD 1916

Não retaliou

U.S. – FSC (22.6)

Comunidades Europeias 108 07/05/2003

US$ 4,043 milhões por

ano

Retaliou por curto período

Canada – Aircraft II

(22.6)Brasil 222 18/03/2003 US$

247,797,000

Não retaliou. Acordo com Canadá no âmbito da

OCDE

Brazil – Aircraft (22.6) Canadá 46 12/12/2000

C$ 344.2 milhões por

ano

Não retaliou. Acordo com Canadá no âmbito da

OCDEEC – Bananas

(22.6) (Ecuador)

Equador 27 18/05/2000US$ 201.6

milhões por ano

Não retaliou

EC – Hormones

(22.6) (Canada)

Canadá 48 26/07/1999C$ 11.3

milhões por ano

Retaliação implementada

até acordo com UE

EC – Hormones (22.6) (U.S.)

Estados Unidos 26 26/07/1999

US$ 116.8 milhões por

ano

Retaliação implementada

até acordo com UE

EC – Bananas (22.6) (U.S.)

Estados Unidos 27 19/04/1999

US$ 191.4 milhões por

ano

Retaliação implementada

até acordo com UE

(fim)

610

Celso de Tarso Pereira

3. o oBjetivo dA retAliAção: A visão dos pAinéis e dAs pArtes

Embora o recurso à retaliação esteja previsto no artigo 22 do ESC, em nenhum lugar desse Acordo se explicita qual é o objetivo que se busca com a suspensão de concessões. Esse entendimento é, contudo, importante para delimitar o que se pode ou não alcançar com esse recurso e, para o Brasil, relevante para ajudar a definir a estratégia governamental que seja efetiva e em linha com o escopo possível da retaliação.

À luz do texto dos dispositivos do ESC e do histórico das arbitragens conforme o artigo 22.6, em geral se identificam três possíveis objetivos para a retaliação: a) reequilíbrio de concessões (“rebalancing of concessions”), com a reparação de prejuízos mediante a suspensão de concessões, pela parte vencedora, em valor equivalente; b) indução ao cumprimento e c) punição. Alguns autores identificam um objetivo adicional: d) induzir a uma solução mutuamente acordada. A primeira alternativa enfatiza o lado do país que sofre com o não cumprimento e busca assegurar a ele algum tipo de reparação ou compensação; as duas seguintes enfatizam o lado da necessidade de observância das regras multilaterais e a consequente sanção que se busca impor sobre a parte em descumprimento. A última introduz grau de flexibilidade naquelas circunstâncias em que a retirada da medida incompatível é impraticável, pelo menos momentaneamente.

À primeira vista, o ESC parece privilegiar o cumprimento, tendo em vista o artigo 22.1 que recorda que “neither compensation nor the suspension of concessions or other obligations is preferred to full implementation”. A suspensão de concessões, pelo mesmo artigo, é medida temporária, até que haja cumprimento das decisões; diferentemente das

611

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

renegociações tarifárias ao amparo do artigo XXVIII do GATT, a retaliação não tem o condão de levar a um reequilíbrio de concessões que seja permanente. Por outro lado, o parâmetro da “equivalência”, estabelecido no artigo 22.4 do ESC, não parece ser, em todos os casos, suficiente para induzir ao cumprimento, pois, dependendo do tamanho da economia dos países em disputa, os efeitos de uma retaliação apenas equivalente podem não se fazer sentir: às vezes pode ser necessário um incentivo adicional para induzir um país a abrir mão de sua medida ilegal e cumprir as decisões.

Por sua vez, a jurisprudência das arbitragens ocorridas até agora não parece indicar um entendimento unívoco sobre o objetivo da retaliação e a avaliação dos árbitros parece evoluir com cada nova disputa e com a análise dos efeitos que cada decisão gerou na prática. Segundo Pauwelyn, três tendências podem ser observadas na evolução da jurisprudência7:

1. nos casos Bananas III, Hormônios e Jogos de Azar, os árbitros claramente endossaram o objetivo de induzir ao cumprimento. Em uma passagem enfática da primeira arbitragem da OMC sob o artigo 22.6 do ESC, em Bananas III, os árbitros declaram claramente esse objetivo e aproveitam, mediante menção do critério da equivalência, para afastar qualquer intenção punitiva da retaliação:

the authorization to suspend concessions or other

obligation is a temporary measure pending full

implementation by the Member concerned. We agree

7 PAUWELYN, Joost. “The Calculation and Design of Trade Retaliation in Context: What is the Goal of Suspending WTO Obligations?”. In: Chad B. Bown; Joost Pauwelyn (ed.). The Law, Economics and Politics of Retaliation in WTO Dispute Settlement. London: Cambridge University Press, 2010, pp. 49-56.

612

Celso de Tarso Pereira

with the United States that the temporary nature

indicates that it is the purpose of countermeasures

to induce compliance. But this purpose does not mean

that the DSB should grant authorization to suspend

concessions beyond what is equivalent to the level of

nullification or impairment. In our view, there is nothing

in the DSU that could be read as a justification for

counter-measures of a punitive nature8.

2. Já nos casos posteriores Brasil-Aeronaves (DS46), EUA--FSC (DS108) e Canadá-Aeronaves II (DS222), todos relativos a concessões governamentais de subsídios proibidos, os árbitros foram um passo além e parecem ter endossado um parâmetro para a retaliação que, na prática, permite que se dê a ela um caráter punitivo. Em parte, a interpretação de viés mais punitivo decorre da regra mais específica e diferenciada encontrada no artigo 4.10 do ASMC, relativo a subsídios proibidos, que estabelece o padrão mais flexível de contramedidas apropriadas9 e não o de equivalência do artigo 22.4.

Os árbitros no caso Brasil-Aeronaves (DS46), o primeiro painel a analisar pedido de autorização para retaliar por conta da concessão governamental de subsídio proibido, souberam matizar o objetivo geral de “induzir ao cumprimento”, interpretando que “uma contramedida é apropriada se, entre outras coisas, ela efetivamente induz o cumprimento”10 e criticando a utilização do padrão de equivalência para se atingir esse objetivo:

8 CE-Bananas III, WT/DS27/ARB, par. 6.3. Ênfases do autor.9 Cf. artigo 4.10 do ASMC: “In the event the recommendations of the DSB is not followed within the

time-period specified by the panel […] the DSB shall grant authorization to the complaining Member to take appropriate countermeasures, unless the DSB decides by consensus to reject the request”.

10 Brasil-Aeronaves, WT/DS46/ARB, par. 3.44.

613

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

Requiring that counter measures in the form of

suspension of concessions or other obligations be

equivalent to the level of nullification or impairment

would be contrary to the principle of effectiveness by

significantly limiting the efficacy of countermeasures in

the case of prohibited subsidies11.

Aprofundando a análise, os árbitros em EUA-FSC afirmaram que pode ser conveniente, ao se definir o valor das contramedidas apropriadas, levar em conta a gravidade da violação e a natureza da ruptura do equilíbrio de direitos e obrigações e, para tanto, ir-se além do que seriam efeitos comerciais apenas equivalentes12. O passo seguinte, contudo, de autorização de medidas punitivas, só seria dado no caso Canadá-Aeronaves II (DS222), no qual os árbitros, depois de definirem um nível apropriado de retaliação baseado no montante do subsídio que era concedido pelo Governo canadense em benefício à Bombardier, resolveu aumentá-lo em 20% (majorando o valor de US$ 200 milhões para US$ 240 milhões), em parte por conta da declaração formal do Canadá, em reunião do OSC, de que não pretendia dar cumprimento à decisão.

Ao incrementar o montante da retaliação em 20%, os árbi-tros dessa disputa manifestavam sua insatisfação com o padrão da “equivalência”, percebido como insuficiente, e incorporavam a flexibilidade concedida pelo parâmetro de “contramedidas apropriadas”. Assim, pelo menos em situações de concessão de subsídios proibidos, parece que uma suspensão punitiva seria possível. Kym Anderson chega a ponderar que

11 Idem, par. 3.58.12 EUA-FSC, WT/DS108/ARB, par. 5.55.

614

Celso de Tarso Pereira

if the purpose of the retaliation is to induce swift

WTO compliance from the respondent, then

perhaps some multiple of the damage is the optimal

level of retaliation to impose. Even the possibility

that some multiple of the damage might be authorized

would reduce the tendency for members to persist with

WTO-inconsistent policies13.

3. Depois das arbitragens iniciais e das primeiras reações às decisões, diluiu-se parcialmente a convicção de que o objetivo da retaliação seja simplesmente induzir ao cumprimento. De fato, como conciliar tal objetivo com o padrão de mera equivalência estabelecida pelo ESC? No caso EUA-Lei de Antidumping de 1916 (DS136), os árbitros pela primeira vez, em fevereiro de 2004, expressam a possibilidade de existirem outros objetivos:

[...] in our view, a key objective of the suspension of

concessions or obligations – whatever other purposes

may exist – is to seek to induce compliance by other

WTO Member with its WTO obligations”14.

Foi somente no caso Emenda Byrd que os árbitros, em agosto de 2004, explicitaram a dúvida sobre qual seria o objetivo da suspensão de concessões:

On the one hand, the general obligation to comply with

DSB recommendations and rulings seems to imply

that suspension of concessions or other obligations is

intended to induce compliance [...] On the other hand,

the requirement that the level of such suspensions remain

13 ANDERSON, Kym. “Peculiarities of Retaliation in WTO Dispute Settlement”. World Trade Review, v. 1, n. 2, July 2002, p. 129 (ênfase adicionada).

14 EUA-Lei Antidumping de 1916, WT/DS136/ARB, par. 5.5. Ênfase do autor.

615

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

equivalent to the level of nullification or impairment

suffered by the complaining party seems to imply that the

suspension […] is only a means of obtaining some form

of temporary compensation, even when negotiations of

compensations has failed15.

Os árbitros expressam assim claramente a tensão entre o suposto objetivo de induzir ao cumprimento e o instrumento frágil colocado à disposição do ESC para alcançar essa meta: o parâmetro da equivalência (artigo 22.4 do ESC).

Na decisão do caso Jogos de Azar, de dezembro de 2007, os árbitros, que enfrentaram inúmeras dificuldades para estabelecer o nível equivalente da retaliação devido à falta de cooperação ou incapacidade das partes16, não hesitaram em retornar à visão tradicional: “the thrust of the effectiveness criterion empowers the party seeking suspension to ensure that the impact of that suspension is strong and has the desired result, namely to induce compliance”17.

O tema é retomado, porém, não somente pelos árbitros do painel do artigo 22.6 do ESC, mas também pelo Órgão de Apelação no caso EUA-Suspensão Continuada (DS320), de outubro de 2008, dessa vez enfatizando que o que se espera não é a mera compliance, mas sim full ou substantive compliance:

15 Idem, par. 6.2-6.316 EUA-Jogos de Azar, WT/DS285/ARB, par. 3.173. A citação vale pela força retórica e de

admoestação às partes: “We, therefore, have no choice but to adopt our own approach. In so doing, we feel we are on shaky grounds solidly laid by the parties. The data is surrounded by a degree of uncertainty. For most variables, the data consists of proxies for what needs to be measured, and observations are too few to allow for a proper econometric analysis. Certain data that we have requested and that, to some extent, could have remedied this situation has not been provided. On methodological questions, parties, in a number of respects, have retained their extreme positions and have failed to propose alternative solutions that would have taken into account the exchange of arguments”. Ênfase do autor.

17 Idem, par. 4.84. Ênfase do autor.

616

Celso de Tarso Pereira

It is difficult to envisage how a dispute could be finally

resolved merely because the inconsistent measure is

formally removed, regardless of whether substantive

compliance has been achieved. […] the authorization

to suspend concessions does not lapse under Article 22.8

until substantive compliance is achieved. Moreover, the

European Communities’ position, which requires the

termination of the suspension of concessions whenever

an implementing measure is notified, undermines the

effectiveness of the suspension of concessions in

inducing full compliance. Such a position is difficult to

reconcile with the DSU’s objective of providing security

and predictability to the multilateral trading system18.

Essa referência do Órgão de Apelação ao critério de efetividade da retaliação poderia servir como argumento poderoso em arbitragens futuras, em favor dos países autorizados a retaliar. De fato, se o objetivo da retaliação deve ser induzir o cumprimento de modo eficaz, fica aberta a possibilidade, em algumas circunstâncias, de se ultrapassar o parâmetro da equivalência (ou das contramedidas apropriadas), de modo a se dotar a suspensão de um “fator de indução” ao cumprimento maior.

Os árbitros do caso Algodão, ao citar a referida passagem do Órgão de Apelação, não dão destaque à questão da eficácia, mas voltam a endossar a tese geral da indução ao cumprimento. Fazem, contudo, distinção importante entre o objetivo da suspensão (quer seja sob o artigo 22.4 do ESC ou sob o artigo 4.10 do ASMC) e o parâmetro (benchmark) para definição do nível da retaliação:

18 EUA-Suspensão Continuada, WT/DS320/AB/R, par. 308. O ponto em discussão refere-se aos elementos do artigo 22.8 do ESC. Ênfase do autor.

617

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

the objective of inducing compliance defined the purpose

of suspension of concessions or other obligations, while

the benchmark (in that case, Article 22.4 of the DSU)

required that the level of suspension of concessions or

other obligations should be in line with the trade effects

of the illegal measure on the complainant19.

E ainda:

“Inducing compliance” appears rather to be the common

purpose of retaliation measures in the WTO dispute

settlement system, including in the context of Article

22.4 of the DSU. The fact that countermeasures under

Article 4.10 of the SCM Agreement serve to induce

compliance does not in and of itself provide specific

indications as to the level of countermeasures that may

be permissible under this provision20.

Os árbitros parecem com isso distanciar-se do painel em Canadá-Aeronaves II (DS222), que havia se posicionado em favor de que, pelo menos em casos de subsídios proibidos, o objetivo de indução ao cumprimento poderia, em certas circunstâncias, exigir tougher sanctions (que poderia ser lido como “maior eficácia”, nos termos usados pelo OA).

Para concluir essa evolução jurisprudencial, vale registrar, no mesmo caso Algodão, a posição manifestada pelas partes:

Brazil emphasizes that a purpose of countermeasures

under Article 4.10 of the SCM Agreement is to induce

compliance. In Brazil’s view, “countermeasures are

‘appropriate’ and not ‘disproportionate’ to the extent

they provide [an] incentive [to reconsider its refusal to

19 EUA-Algodão, WT/DS267/ARB/1, par. 4.110. Ênfase do autor.20 Idem, par. 4.112.

618

Celso de Tarso Pereira

withdraw the subsidy]”. The United States, for its part,

considers that the objective of countermeasures is to

“rebalance rights and obligations” and concludes that

the proportionality of countermeasures must be assessed

having regard to the adverse effects of the measure on

the complainant21.

O Brasil – afirmando que induzir ao cumprimento é um objetivo das contramedidas (e não o objetivo) – ressalta que estas deveriam servir como incentivo à revogação das medidas incompatíveis com os Acordos: com isso almeja a autorização de um montante significativo o suficiente para fazer os EUA cumprirem a decisão. Os EUA, temendo valor de retaliação excessivamente alto (como aconteceu, por exemplo, no caso FSC, no qual chegou aos US$ 4 bilhões) e desejando assegurar proporcionalidade, advogam o objetivo mais moderado de reequilíbrio de direitos e obrigações. Na prática, claramente, os dois países, mais que defender posições teóricas, estavam, cada um, buscando resguardar seus melhores interesses.

Embora as opiniões se dividam majoritariamente entre as duas visões alinhavadas acima, não se pode esquecer a possibilidade de um objetivo alternativo, e importante, para a retaliação: induzir uma solução mutuamente acordada para a disputa (“mutually agreed solution”). Tal objetivo alternativo pode ser inferido a partir do texto do artigo 22.8 do ESC, o qual prevê três situações em que a retaliação deve ser terminada: a) a remoção da medida incompatível com os Acordos; b) uma solução para o prejuízo causado, oferecida pelo Membro que o causou, ou c) quando uma solução mutuamente satisfatória for acordada.

21 Ibidem, par. 4.108. Ênfase do autor.

619

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

As duas primeiras situações parecem reforçar os dois objetivos tradicionais: a remoção da medida corresponde claramente ao objetivo de induzir ao cumprimento; uma solução para o prejuízo, muitas vezes, pode ser uma concessão ou vantagem estendida pelo Membro objeto da retaliação em favor do outro país, o que corresponderia ao objetivo de reequilíbrio de concessões. A terceira situação seria uma forma adicional de se terminar a disputa e, em paralelo, a retaliação que estiver em vigor ou a ponto de ser aplicada: qualquer solução acordada pelas partes, contanto que compatível com os Acordos da OMC.

Ao contrário da compensação, prevista no artigo 22.2 do ESC, que por natureza se entende como temporária, as três situações presentes no artigo 22.8 constituem “final remedies”, que põem um fim ao litígio e à retaliação. O artigo 3.7 do ESC, como visto, parece endossar essa visão, pois estabelece que “the aim of the dispute settlement mechanism is to secure a positive solution to the dispute. A solution mutually acceptable to the parties to a dispute and consistent with the covered agreements is clearly to be preferred”. Assim, o objetivo de induzir um encaminhamento satisfatório insere-se no objetivo maior de todo o sistema de solução de controvérsias, que é o de assegurar uma solução positiva para a disputa. A retaliação teria, assim, não apenas um, ou dois, mas múltiplos objetivos. De cunho talvez mais pragmático, uma solução mutuamente acordada, segundo Michelle Limenta,

provides another outcome when withdrawal of the inconsistent measure is not attainable. Inducing a mutually

agreeable solution makes the system more fruitful and provides Members with some flexibility in settling their disputes within the framework of the WTO22.

22 LIMENTA, Michelle. “Non-compliance in WTO Dispute Settlement: the multiple purposes of WTO Retaliation”. Society International Economic Law Working Paper, n. 2012/19, June 2012, p. 20.

620

Celso de Tarso Pereira

Dois exemplos podem ser contrapostos: a compensação atualmente sendo paga ao Brasil pelos EUA no caso Algodão e a solução acordada pela UE e pelos EUA no caso Hormônios. Ao passo que a primeira situação tem caráter provisório enquanto se aguarda a implementação pelos EUA das decisões da OMC sobre seus subsídios (ou se alcance algum outro tipo de acordo entre as partes), a segunda, aceita pelas partes e endossada pelos demais Membros da OMC nas reuniões do OSC, parece consolidar-se como resolução definitiva da disputa e interrompe a retaliação que estava em vigor, sem acarretar, ao fim e ao cabo, o cumprimento pela UE da decisão da OMC. Essa conclusão pode ou não estar em consonância com os objetivos mais amplos do sistema multilateral, mas, se não há objeção dos demais Membros, ela se imporia como a mais pragmática e realista para aquele caso específico. Ela forneceria “a more politically sound rather than legally sound settlement”23.

Pauwelyn, em artigo mais antigo, endossava claramente essa posição:

(…) full compliance should not always be an absolute

must (as it is, for example, in human rights cases); if

trade concessions can be realigned in such a way that all

interested parties can agree to them, the WTO system

should be flexible enough to accept such realignment

as a settlement to the dispute. This is explicitly set out,

for example, in the tariff renegotiations clause of the

GATT24.

23 Idem, p. 18.24 PAUWELYN, Joost. “The Limits of Litigation: Americanization and Negotiation in the Settlement

of WTO Disputes”. Ohio State Journal on Dispute Resolution, v. 19, n. 1, 2003, p. 17.

621

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

Pode-se indagar, contudo, se tal posição serve aos interesses sistêmicos do SSC da OMC, pois vários países – prejudicados por uma medida ilegal mas sem condições de iniciar uma controvérsia – deixariam de se beneficiar da observância das regras acordadas por todos e para todos.

3.1 Cumprir ou pagar pelo descumprimento?

As diferentes nuances reveladas nas decisões dos árbitros quanto ao objetivo do último recurso contra o descumprimento das decisões adotadas pelo OSC – e também na prática dos Membros em exercitar ou não a autorização para retaliar – indicam provavelmente um desacordo ainda maior relativo à natureza jurídica das violações das obrigações dos Acordos da OMC.

Na discussão sobre a natureza jurídica das violações às regras da OMC, alguns autores, John Jackson à frente, advogam que as decisões dos painéis e do Órgão de Apelação, uma vez adotadas pelo OSC, são vinculantes e seu descumprimento caracteriza uma violação clara do direito internacional: as decisões devem ser cumpridas. Em consequência, o objetivo último do SSC da OMC e do recurso à retaliação só pode ser o de induzir ao cumprimento àqueles Membros recalcitrantes. Jackson, entre outros argumentos, recorre a vários dispositivos do ESC para reforçar a postura de que um “adopted dispute settlement report establishes an international law obligation upon the member in question to change its practice to make it consistent with the rules of the WTO Agreement and its annexes”25. Em especial, ele recorda os artigos 3.7, que estabelece que o primeiro

25 JACKSON, John H.. The Jurisprudence of GATT & The WTO: Insights on Treaty Law and Economic Relations. London: Cambridge University Press, 2000, p. 163 (ênfase adicionada). Jackson, nesse artigo e em outros, desenvolve argumentos para refutar posição inicialmente apresentada por Judith Bello em editorial ao American Journal of International Law em 1996.

622

Celso de Tarso Pereira

objetivo do SSC é assegurar “the withdrawal of the measures concerned” e que se deve recorrer à compensação apenas se “the immediate withdrawal is impracticable”; o 21.1, que recorda que o “prompt compliance is essential in order to ensure effective resolution of the disputes” e o artigo 22.1, que reafirma por um lado que a compensação e a suspensão de concessões e outras obrigações são “temporary measures” mas, por outro, que nem uma nem outra “is preferred to full implementation”. Tais dispositivos demonstrariam que os negociadores do ESC almejavam que o cumprimento das regras fosse o objetivo último do sistema: qualquer outra solução seria meramente temporária, até que o cumprimento cabal se fizesse possível.

Outros autores, como Alan Sykes e Warren Schwartz, defendem visão oposta: as decisões (rulings) não são obrigatórias ou vinculantes de maneira absoluta e pagar uma compensação ou sofrer uma retaliação seriam alternativas plenamente válidas e juridicamente aceitáveis dentro do sistema de regras criado pela OMC. O objetivo do sistema, assim, não seria o cumprimento, mas apenas o reequilíbrio dos direitos e obrigações entre as partes. Sykes e Schwartz afirmam que “a party found to be in violation of its obligations can, if it so chooses, continue to violate them. The ultimate price to be paid, if the case is not settled, is the withdrawal of substantially equivalent concessions”26. De modo ainda mais explícito, enfatizam que:

we simply note that the provisions of the DSU, taken

as a whole, allow a violator to continue a violation in

perpetuity, as long as it compensates or is willing to bear

the costs of the retaliatory suspension of concessions. If

WTO members really wanted to make compliance with

26 SCHWARTZ, Warren F. & SYKES, Alan O. “The Economics Structure of Renegotiation and Dispute Resolution in the WTO/GATT System”. Journal of Legal Studies, v. 31, n. 1, 2000, p. 11.

623

Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

dispute resolution findings mandatory, they would have

imposed some greater penalty for noncompliance to

induce it27.

A posição de Sykes e Schwartz repousa em entendimento de que o SSC permite o que eles designam de efficient breaches, ou seja, “departures from specified obligations when the costs of compliance exceed the associated benefits” ou, ainda, “efficient adjustments to unanticipated circumstances”. Sykes e Schwartz defendem a proposição de que os Acordos da OMC não seriam mais do que “contratos entre os atores políticos que os negociaram e assinaram” em busca de uma “joint political welfare maximization”28. Mais ainda, os Acordos do GATT/OMC representariam contratos incompletos que oferecem parâmetros amplos para a adoção de políticas em muitas áreas, mas que, com linguagem vaga, geram com frequência diferenças de interpretação29.

Cada contrato ou Acordo está sujeito, pela própria natureza, a condições de complexidade e incerteza, e as partes não podem prever, antecipadamente, como se comportarão em todas as circunstâncias. As condições econômicas podem mudar, os padrões de produção se alteram rapidamente, a força de grupos de interesses domésticos diminui ou aumenta etc. Nessas situações, pode convir ao interesse de ambas as partes – e em última análise do sistema multilateral de comércio como um todo – que uma delas se desvie das obrigações assumidas – possa quebrar o acordado, desde que pague, de alguma forma, à outra parte. Isso poderia acontecer na OMC, por exemplo, naquelas circunstâncias em que os custos políticos

27 Idem, p. 14.28 SCHWARTZ, Warren F. & SYKES, Alan O. Op. cit., p. 2.29 DAVIS, Christina. Op.cit., p. 32.

624

Celso de Tarso Pereira

do cumprimento excederiam os benefícios do cumprimento: o resultado do caso CE-Hormônios (DS26 e DS48), exemplifica bem uma dessas circunstâncias, pois a preocupação com a saúde pública – endossada majoritariamente pela população comunitária – prevaleceu claramente, no processo de decisão da CE, sobre os danos que seriam gerados por retaliação de EUA e Canadá.

Na esfera dos Acordos da OMC, alguns dispositivos, segundo Sykes e Schwartz, refletiriam o desejo dos signatários de facilitar a efficient breach. O artigo XIX do GATT (“Emergency Action on Imports of Particular Products”) permite proteção temporária para indústrias que estejam sendo deslocadas em seu mercado doméstico pela crescente concorrência de produtos importados (sempre que as circunstâncias sejam imprevistas); para evitar abusos na invocação dessa válvula de escape, o Acordo de Salvaguardas da Rodada Uruguai passa a requerer o pagamento de compensação comercial (artigo 8.1) se a salvaguarda é aplicada por mais de três anos (artigo 8.3), além de ser possível submeter a análise dos requisitos da medida ao SSC. Já o artigo XXVIII do GATT permite, sem especificar pré-requisitos, que qualquer concessão tarifária possa ser retirada, por qualquer razão e por um período indeterminado; como contrapartida, o Membro deve oferecer concessões compensatórias que, se não forem aceitas pelos membros afetados pela medida, pode justificar que estes retirem de modo unilateral concessões equivalentes. Em suma, os artigos XIX e XXVIII reconheceriam que às vezes convém permitir a violação das regras acordadas, exigindo-se apenas que o Membro que assim deseje atuar “pague” por isso uma compensação ou aceite que outros países afetados retirem por sua vez concessões equivalentes.

Apesar de reconhecer que os argumentos de Jackson fornecem justificativa razoável para sua posição de que

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Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

um Membro da OMC está obrigado a cumprir com suas obrigações em todas as circunstâncias, Sykes e Schwartz ponderam, em primeiro lugar, que o artigo 22.1 do ESC estabelece que o cumprimento é apenas preferível, não que ele é obrigatório, sugerindo que possa haver situações nas quais o descumprimento seja aceitável; o texto dos demais artigos do ESC, 3.7 e 22, também contém linguagem que, apesar de indicar que o cumprimento é desejável, deixa espaço para o ocasional desvio das obrigações acordadas30.

Dessa leitura decorreria que, temporário ou não, esse descumprimento refletiria entendimento realista dos limites do sistema e seria consequência do fato de que os negociadores não podiam antecipar todas as situações em que os custos do cumprimento seriam maiores do que os benefícios.

A maneira encontrada para permitir a efficient breach foi a estruturação de um sistema de solução de controvérsias sofisticado, capaz de determinar com razoável aproximação o valor da suspensão de concessões, o qual corresponderia ao preço a ser pago pelo descumprimento. Além disso, o nível moderado das contramedidas contra violações “enhances stability in the system by accomodating temporary noncompliance driven by political necessity”31.

No fundo, a originalidade – e ousadia – de Sykes e Schwartz está em apontar a rationale do SSC como sendo a de deter violações aos Acordos nos casos em que os benefícios do cumprimento excedem os custos do cumprimento (que seriam a maioria), assim como preencher a função de esclarecer as regras e interpretar as lacunas, mais do que identificar e punir os que desrespeitam as regras. “What the new system really adds”, dizem os autores,

30 SCHWARTZ, Warren F. & SYKES, Alan O. Op. cit., pp.13-14.31 DAVIS, Christina, Op.cit., p. 32.

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Celso de Tarso Pereira

is the opportunity for the losing disputant to ‘buy out’

of the violation at a price set by an arbitrator who has

examined carefully the question of what sanctions

are ‘substantially equivalent’ to the harm done by the

violation32.

3.2. Avaliação das posições

Nenhuma das visões expostas acima, que resumem em boa medida as divergências de entendimento sobre o objetivo último do sistema (induzir ao cumprimento ou reequilibrar as concessões) e sobre a natureza do descumprimento de suas regras (violação do direito internacional ou alternativa válida ao cumprimento, mediante algum pagamento), consegue refletir toda a complexidade da prática do comércio internacional e o contexto de expectativas gerado em torno da decisão de retaliar.

A recente evolução no impasse gerado pelo caso Hormônios – no qual a retaliação por EUA e Canadá durou uma década – aparentemente superado recentemente com a oferta de acesso melhorado de carne de qualidade (quality beef) aos EUA e Canadá (e aos demais países também, por conta do princípio de Nação Mais Favorecida) não consolida e pereniza o descumprimento de uma parte mediante o pagamento de uma compensação, com um reequilíbrio das concessões? Com a aceitação do reequilíbrio da situação pelo restante dos Membros da OMC, não se exime a UE de dar cumprimento à decisão do OSC? Após 10 anos de supervisão (função de supervisão do OSC, conforme artigo 22.5 do ESC) pareceria que a OMC reconhece que em algumas circunstâncias o cumprimento não é factível e que uma dose de pragmatismo por parte dos envolvidos é bem-vinda.

32 SCHWARTZ, Warren F. & SYKES, Alan O. Op. cit., p. 26.

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Retaliação na OMC: procedimento, prática e objetivos

Embora bastante pragmática, essa configuração de fato pode acabar favorecendo apenas alguns países mais poderosos economicamente, em condições de pagar, compensar ou reequilibrar as concessões, permitindo-lhes assim “comprar” seu descumprimento (“compliance buy-out”) e perpetuar uma situação irregular. Bem poucos países da OMC estariam em condições de entrar nessa barganha. Criar-se-iam, desse modo, duas categorias de países na OMC: aqueles que não teriam outra opção a não ser cumprir com uma obrigação de direito internacional sob pena de serem retaliados (seriam os países que “defenderiam” tese de que o sistema tem que ser inflexível e o cumprimento sempre almejado) e aqueles outros países, capazes de resistir a pressões e com recursos suficientes para oferecer compensação ou concessões em outras áreas, mantendo intacta a medida declarada incompatível pelo SSC (esses seriam os defensores da tese do efficient breach).

Por outro lado, o discurso de boa parte dos membros da OMC (talvez da maior parte) continua a ser o de que o objetivo da retaliação deve ser a indução ao cumprimento e de que qualquer desvio poderia ser, no máximo, temporário. Como aspiração geral do conjunto de membros da OMC em relação ao sistema, essa posição cumpre a função de moderar e modular a flexibilidade introduzida nas regras do comércio internacional pela ideia concorrente de reequilíbrio. Em contraponto a essa flexibilidade, a percepção generalizada de que as regras devem ser respeitadas e de que o cumprimento é a única forma real de reestabelecer o equilíbrio de concessões quebrado pela violação é fundamental para a sustentabilidade do sistema no longo prazo.

Ausente uma definição cabal e clara no ESC sobre o objetivo da suspensão de concessões no SSC, é a inter-relação entre cada nova decisão arbitral, cada insucesso ou implementação que dela

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Celso de Tarso Pereira

se obtém e a reação de cada Membro em resposta a situações concretas que acabará consolidando, na prática, os limites do sistema e de seus instrumentos de “sanção” ou “reequilíbrio”.

4. conclusão A decisão de um país de participar ativamente do mecanismo

de solução de controvérsias da OMC reflete ao mesmo tempo um assentimento aos princípios e regras do sistema multilateral de comércio e confiança de que há um procedimento imparcial e eficaz para dirimir as inevitáveis diferenças comerciais entre os participantes.

Importantes objetivos de política externa e a delimitação mesmo do espaço para políticas públicas domésticas podem ser alcançados e definidos no decorrer de procedimento de painel ou de apelação. Em vista do número expressivo de disputas que têm sido levadas à OMC e da complexidade crescente dos temas em discussão, cabe ao Governo brasileiro, e ao MRE em particular, em sintonia com o setor privado nacional, dotar-se dos meios necessários para atuar bem em todas as fases do sistema, de modo a obter a melhor implementação possível em cada controvérsia. A utilização hábil do último recurso da retaliação, nesse contexto, pode, em algumas circunstâncias, servir também ao alcance dos interesses nacionais no sistema multilateral de comércio.

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É diplomata, formado em Engenharia Elétrica com ênfase em Telecomunicações pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). De 1999 a 2006, trabalhou no setor privado, na área de telecomunicações, exercendo diversas posições ligadas a Engenharia, Planejamento e Finanças. Ingressou no Instituto Rio Branco em 2007, sendo promovido a Segundo-Secretário em 2009. Trabalhou na Coordenação-Geral de Contenciosos (CGC) de 2008 a 2012. Está atualmente a serviço do Setor Econômico da Embaixada do Brasil em Washington.

A construção dA retAliAção BrAsileirA

no cAso do Algodão: os desAfios do pioneirismo

Luiz Fellipe Flores Schmidt

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O laudo arbitral do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, de 22 de agosto de 2009, que concedeu ao Brasil autorização para retaliar os EUA no âmbito

do contencioso do Algodão, foi motivo de comemoração no Itamaraty e nos demais órgãos do Governo Federal envolvidos no tema. O Brasil recebera o direito de aplicar mais de US$ 800 milhões1 em retaliação, dos quais mais de US$ 200 milhões poderiam tomar a forma de “retaliação cruzada” – contramedidas com base em outras disciplinas da OMC além do comércio de bens, como serviços e propriedade intelectual. Em especial, os direitos advindos da decisão forneciam ao Brasil meios para alavancar sua posição negociadora junto aos EUA com vistas ao fim dos subsídios declarados ilegais.

Contudo, o espírito inicial de festa deu lugar, nos dias e semanas que se seguiram, a uma crescente apreensão. Com efeito, cada passo que fora dado no contencioso até aquele momento havia-se provado mais difícil e de resultados imprevisíveis, pois, a cada etapa, havia menos precedentes que pudessem balizar a atuação brasileira. Até aquele momento, por exemplo, poucas autorizações de retaliação ao comércio de bens haviam sido concedidas no âmbito de acordos de comércio e, destas, menos ainda haviam sido, de fato, implementadas.

1 O laudo arbitral prevê um valor de retaliação variável, baseado em uma fórmula que leva em conta o uso dos programas condenados. Para mais informações, vide “Nota à imprensa MRE 421/2009”, de 31/8/2009, disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/2009/08/31/contencioso-do-algodao-arbitragem>, acessado em 10/7/2013.

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Luiz Fellipe Flores Schmidt

Quanto à retaliação cruzada, o cenário era ainda mais árido. A OMC havia concedido apenas duas autorizações: no caso movido por Antígua e Barbuda contra os EUA, por barreiras contra serviços de jogos de azar pela Internet2, e no contencioso iniciado pelo Equador contra a União Europeia sobre o regime comunitário de importação de bananas3. Contudo, nenhum dos dois países havia tomado passos concretos para implementar a retaliação, presumivelmente em razão, entre outros aspectos, da assimetria entre as respectivas economias.

A partir daquele momento, portanto, o desafio tomava outra dimensão. Quanto à retaliação cruzada, particularmente, estava-se adentrando território completamente inexplorado.

O Governo brasileiro, contudo, estava determinado a levar o processo até o fim, ciente de que estava em jogo não apenas sua credibilidade mas, em certa medida, a do próprio sistema. Pela primeira vez, a OMC havia concedido direitos de retaliação cruzada a uma grande economia, capaz de causar prejuízos significativos a um parceiro nas sensíveis áreas de serviços e, particularmente, de propriedade intelectual. Todo o mundo especializado acompanhava de perto os desdobramentos do caso. E os esforços de negociação com os EUA se revelavam, até aquele momento, virtualmente infrutíferos.

Durante a condução do contencioso, o Itamaraty mantivera estreita coordenação com outros órgãos federais envolvidos no tema. Não obstante, a implementação de uma retaliação eficaz requeria a elevação da intensidade e da abrangência

2 United States — Measures Affecting the Cross-Border Supply of Gambling and Betting Services (“US-Gambling”, DS 285).

3 European Communities — Regime for the Importation, Sale and Distribution of Bananas (EC-Bananas III, DS 27).

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A construção da retaliação brasileira no caso do algodão: os desafios do pioneirismo

desta cooperação a outro patamar. Para tanto, entre outras providências, optou-se por dar maior institucionalidade ao processo. Em outubro de 2009, a Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) baixou a Resolução nº 63, que instituiu o Grupo Técnico (GT) “para identificar, avaliar e formular propostas de implementação das contramedidas autorizadas pela OMC, a serem submetidas à apreciação do Conselho de Ministros da CAMEX”.

A coordenação do “GT Retaliação” coube ao Itamaraty, por meio da Coordenação-Geral de Contenciosos (CGC). Compunham o grupo representantes da Secretaria Executiva da CAMEX e dos Ministérios do Desenvolvimento, Fazenda, Agricultura, Desenvolvimento Agrário, Planejamento e Saúde, além da Casa Civil. Outros órgãos também foram envolvidos, conforme a necessidade, como os ministérios da Educação e da Cultura, além de diversas autarquias – Receita Federal, Banco Central, agências reguladoras e universidades, entre outras.

Para se ter uma dimensão do esforço, participaram diretamente de alguma etapa do processo, pelos controles do MRE, mais de 130 servidores federais, incluindo mais de 20 do Itamaraty. Foram estabelecidos “pontos focais” em cada órgão, de modo a organizar a disseminação da informação. Em média, pelo menos 30 servidores estavam envolvidos de maneira mais direta e regular em cada etapa do processo. O calendário de reuniões era extenso – tem-se registro de mais de 30 reuniões “plenárias”, as quais ocorriam, em média, uma vez por semana, sem contar os encontros e teleconferências em grupos menores. Isso porque, desde o início, o trabalho se desenvolveu simultaneamente nas duas vertentes – retaliação em bens e retaliação cruzada.

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Luiz Fellipe Flores Schmidt

A retAliAção em Bens

Do ponto de vista jurídico, no plano doméstico, o Executivo detém ampla liberdade para implementar a retaliação em bens. Contudo, óbice legal no plano regional necessitava ser superado: recorde-se que, no âmbito do Mercosul, o Brasil está vinculado à Tarifa Externa Comum (TEC). Foi necessária negociação com os demais Estados-Partes, o que culminou na aprovação de Decisão CMC4 que permite a Estados-Partes majorar tarifas extra-zona, não apenas para implementar eventual retaliação autorizada pelo OSC da OMC como também para retirar unilateralmente concessões em resposta a membro da OMC que tenha modificado compromissos ao amparo do artigo XXVIII do GATT.

Dada a existência de precedentes no campo da retaliação em bens, o grupo debruçou-se inicialmente sobre eles, cujo número era reduzido, porém significativo. Destes, de particular interesse foi o processo adotado pela União Europeia no âmbito do caso FSC5, no qual fora autorizada pela OMC a retaliar os EUA em bens, no montante de até US$ 4 bilhões. O processo envolveu a elaboração, pela Comissão Europeia, de lista preliminar de bens6, em seguida submetida a consulta pública7.

4 Decisão MERCOSUL/CMC/DEC No. 18/2009, de 7/12/2009. Disponível em: <http://gd.mercosur.int/SAM/GestDoc/pubweb.nsf/Normativa?ReadForm&lang=POR&id=177969B879656A9A0325768800506559>, acessado em 10/7/2013.

5 United States — Tax Treatment for “Foreign Sales Corporations” (“US — FSC”, DS 108).6 Para os propósitos deste artigo, considera-se “bem” ou “produto” o conjunto de mercadorias

cobertas por uma linha tarifária na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM).7 “Aviso respeitante a um processo de resolução de litígios da Organização Mundial do Comércio

(OMC) relativo ao tratamento fiscal aplicado pelos EUA às sociedades de venda no estrangeiro (Foreign Sales Corporations — FSC) — Convite à apresentação de comentários sobre a lista dos produtos que poderão ser sujeitos a contramedidas”, JO C 217/2 de 13/9/2002. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2002:217:0002:0015:PT:PDF>, acessado em 10/7/2013.

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A construção da retaliação brasileira no caso do algodão: os desafios do pioneirismo

Para a seleção da lista preliminar, buscou-se, entre outros critérios, produtos em que a dependência dos EUA, medida em relação à pauta de importação total, fosse inferior a 20%8. A partir dos resultados da consulta, a Comissão ajustou a lista e publicou versão final9, ainda com mais de 400 linhas tarifárias. As sobretarifas iniciariam em 5%, sendo elevadas em 1% a cada mês subsequente. O objetivo era orquestrar um “crescendo” que aumentasse progressivamente a pressão sobre os legisladores dos EUA.

Outros precedentes foram analisados, como o contencioso sobre a Emenda Byrd10, em que Canadá, Japão e União Europeia aplicaram retaliação em bens contra os EUA, além do caso trazido pelo México contra os EUA no âmbito do NAFTA, em função de barreiras à operação de transporte rodoviário de carga.

Diretriz fundamental dos trabalhos do GT Retaliação era que o processo deveria ser amplamente discutido – não apenas dentro do Governo, mas contar com a maior participação possível da sociedade e dos agentes econômicos afetados. Por essa razão, em termos procedimentais, decidiu-se adotar caminho análogo ao da UE no caso FSC: elaboração de lista preliminar pelo Governo, seguida de consulta pública, revisão dos comentários e decisão sobre uma lista final.

Definido o processo, cabia estabelecer os critérios que norteariam a elaboração pelo grupo da lista inicial. Algumas

8 O processo é descrito, de forma sintética, no documento “Foreign Sales Corporation (FSC): Questions and Answers”, produzido pela Comissão Europeia em 27/2/2004. Disponível em: <http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2004/april/tradoc_116000.pdf>, acessado em 10/7/2013.

9 Regulamento (CE) 2193/2003 do Conselho, de 8/12/2003. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2003:328:0003:0012:PT:PDF>, acessado em 10/7/2013.

10 US — Continued Dumping and Subsidy Offset Act of 2000 (US – Offset Act (Byrd Amendment), DS 217), aberto por Austrália, Brasil, Chile, Índia, Indonésia, Japão, Coreia do Sul e Tailândia.

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Luiz Fellipe Flores Schmidt

decisões de ordem geral – comuns a qualquer processo de retaliação em bens, por sinal – tinham que ser tomadas.

Uma das escolhas a serem feitas referia-se à forma: se a restrição à importação se daria pelo estabelecimento de cotas de importação ou pelo aumento de tarifas. Se a criação de cotas permitiria ao Governo controlar exatamente a quantidade (e/ou o valor) dos bens internalizados, viabilizando controle mais preciso do montante retaliado, os custos inerentes à administração das cotas – além da severa intervenção comercial que representaria um bloqueio completo das importações ou uma tarifa extra-quota muito alta, uma vez preenchida a quota – pareceram ao grupo obstáculos excessivos, sem um benefício correspondente. Ademais, nem a normativa nem a jurisprudência da OMC haviam estabelecido critérios para a contabilização do montante retaliado, o que confere expressiva liberdade ao retaliante para estabelecer seu modelo. Por essas razões, entre outras, decidiu-se implementar a retaliação exclusivamente por meio de majoração tarifária.

Outro ponto importante discutido diz respeito ao grau de concentração da retaliação. Poder-se-ia concentrar a retaliação sobre pequeno número de bens, aplicando-se-lhes elevadas sobretarifas, de forma a reduzir drasticamente a importação daqueles produtos. Nesse caso, gerar-se-ia maior pressão sobre os grupos afetados que, por sua vez, teriam incentivo maior para influenciar o Congresso dos EUA no sentido de revogar os subsídios condenados; por outro lado, altas excessivas possivelmente inviabilizariam os negócios de muitos importadores domiciliados no Brasil. No outro extremo, havia a opção de adotar sobretarifas leves sobre uma vasta quantidade de itens. Se esta opção tinha o condão de “democratizar” o impacto da retaliação, o impacto individual limitado provavelmente não seria suficiente para galvanizar apoio que levasse a mudanças

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A construção da retaliação brasileira no caso do algodão: os desafios do pioneirismo

em Washington. A solução adotada, de certa forma, representou posição intermediária entre esses dois polos.

Analisados esses elementos de ordem geral, cabia definir os critérios para selecionar efetivamente quais linhas tarifárias seriam reunidas na lista preliminar. Parte desse trabalho, contudo, já fora adiantado, de certa forma, no próprio painel de retaliação11. Naquela etapa do contencioso, o Brasil oferecera diversos argumentos para justificar que recorrer à retaliação somente em bens não seria “prático ou eficaz”, conforme a linguagem dos acordos, para atingir o fim esperado – induzir os EUA ao cumprimento da decisão –, pelo que se fazia necessário o recurso à retaliação cruzada.

Para provar isso, o Brasil indicou que a maior parte de sua pauta de importação dos EUA consistia de bens que, caso fossem submetidos à aplicação de sobretarifas12, provocar-se- -iam graves prejuízos à capacidade produtiva nacional. Incluiu-se nessa categoria, com sucesso, os insumos industriais e os bens de capital, de maneira geral. Sobre os bens de consumo, o painel também aceitou excluir do “potencial retaliável” produtos em que os EUA dominassem 20% ou mais da pauta de importação do Brasil, dada a presumida deficiência de fornecedores substitutos adequados.

De maneira geral, a mesma abordagem usada no contencioso foi adotada na confecção da lista preliminar. Contudo, se no contencioso o enfoque fora necessariamente mais impressionista, identificando critérios gerais e grandes categorias de bens, para o propósito da elaboração da lista

11 Para uma discussão das etapas anteriores do contencioso, vide artigo “O contencioso do algodão: o desafio da implementação”, de Luciano Mazza de Andrade, nesta coletânea.

12 No âmbito do grupo, denominou-se sobretarifa o adicional tarifário, em pontos percentuais, a ser aplicado sobre os bens passíveis de retaliação, de modo a induzir queda na exportação daquele bem.

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fazia-se necessário processo mais minucioso, que avaliasse os impactos na economia real de cada item, individualmente. Como resultado, observa-se que tanto foram incluídos diversos itens considerados insumos, mas que, pelas particularidades dos respectivos mercados, o grupo entendeu que o impacto de sua inclusão na retaliação seria suportável, como foram deixados de fora bens de consumo em que se concluiu o oposto.

Outros elementos de natureza qualitativa também foram ponderados na seleção. Com efeito, a análise ateve-se não apenas a considerações de natureza econômica, mas também a aspectos políticos. Na realidade, queria-se que o impacto econômico gerado pela retaliação se convertesse em energia política capaz de alterar a legislação norte-americana. Dessa forma, a análise necessariamente também levou em conta, na medida do possível, a configuração política em Washington dos setores afetados pelas medidas.

Por fim, há que se ter presente que todo o trabalho foi permeado pela premissa de que se pretendia a implementação concomitante, ainda que com alguma defasagem, da retaliação em bens e da retaliação cruzada, e que esta última era vista como o principal vetor para uma solução do caso. Em função disso, no equilíbrio entre os objetivos de causar dano bastante à contraparte para induzir mudanças e causar o menor dano possível à economia doméstica, foi possível, no que tange a bens, priorizar o segundo em relação ao primeiro sem se perder muito em eficácia. Ausente a possibilidade de retaliação cruzada, uma retaliação efetiva talvez demandasse uma lista de bens de caráter bastante diverso daquele da lista original.

O grupo submeteu ao Conselho de Ministros da CAMEX as conclusões desta primeira etapa e, em 9 de novembro de 2009, a CAMEX publicou a Resolução nº 74/2009, pondo em consulta

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pública lista preliminar com 222 linhas tarifárias que somavam valor de importação total de US$ 2,7 bilhões. A lista fora propositalmente maximalista, pois o grupo tinha a expectativa de que, a partir dos elementos trazidos pela consulta pública e por análises adicionais, a relação final seria substancialmente “enxugada”.

O processo de consulta pública, se, por um lado, foi extremamente trabalhoso, por outro revelou-se bastante rico. Mais de 700 manifestações foram recebidas da sociedade, principalmente oriundas de empresas e associações de produtores, importadores e consumidores dos bens envolvidos. No entanto, outros agentes também deram sua contribuição, incluindo até mesmo pessoas físicas.

Entre os resultados das avaliações quantitativas preliminares, o grupo observou forte correlação positiva entre o número de manifestações recebidas (favoráveis ou contrárias) sobre um determinado bem e a intensidade do fluxo de comércio com os EUA daquele bem. Isso trouxe conforto ao grupo, consistindo em sinal importante de que os “stakeholders” estavam atentos e conscientes da importância daquele processo.

Como já era esperado, a maioria esmagadora das manifes-tações recebidas expressava contrariedade à aplicação de sobre-tarifas sobre o bem de interesse do manifestante. Com efeito, o senso comum indicava que o conjunto dos agentes econômicos estaria muito mais atento aos riscos que a medida poderia tra-zer aos respectivos negócios do que às oportunidades que even-tualmente poderia gerar.

Muitas manifestações, contudo, faziam-no apenas repisando afirmações de natureza genérica - isto é, alertavam para o fato de que a medida implicaria aumento de custos, ou “geraria dificuldades” à empresa ou ao setor, mas sem elencar,

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com fatos e números, argumentos que apoiassem o pleito, ou seja, que comprovassem a eventual ausência de fornecedores alternativos viáveis em outros países e o impacto disso sobre os negócios. Não obstante, muitas manifestações lograram fazê- -lo, e outras tantas expuseram aspectos menos evidentes porém relevantes do comércio de determinado produto, o que, por vezes, levou o grupo a reavaliar sua decisão.

Em resumo, o recurso à consulta pública, além de mecanismo de ampliação da transparência e da participação da sociedade, confirmou-se como ferramenta valiosa para o processo.

Em 10 de março de 2010, a CAMEX publicava a Resolução nº 15/2010, com a lista final contendo 102 bens sobre os quais incidiria a retaliação. O valor total de importações representado pela lista era de US$ 983 milhões, e o impacto das sobretarifas, suficiente para transpor o “gatilho” de US$ 561 milhões, a partir do qual se faria recurso à retaliação cruzada. A retaliação em bens entraria em vigor 30 dias após a publicação da Resolução – em 7 de abril, portanto. A bomba-relógio fora acionada.

A retAliAção cruzAdA

Em paralelo aos trabalhos na retaliação em bens, foram sendo delineadas as possíveis medidas a serem adotadas no campo da retaliação cruzada. Antes disso, contudo, importante trabalho já vinha sendo realizado. Antes de tudo, era necessário conferir o devido amparo legal à retaliação cruzada, particularmente no que tange à suspensão de direitos de propriedade intelectual. Para tanto, a CAMEX determinara, em agosto de 2007 – muito antes da instauração do procedimento de arbitragem da retaliação no contencioso do algodão, portanto – o estabelecimento de subgrupo dentro do Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI) com

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vistas à revisão do arcabouço normativo existente e elaboração de uma proposta de legislação. O trabalho culminou na edição da Medida Provisória 48213, que atribui à CAMEX competência para suspender diversos direitos de propriedade intelectual conforme necessário para implementar uma retaliação cruzada.

Diferentemente do processo em bens, em que bastava determinar quais seriam as sobretarifas aplicadas e sobre quais linhas tarifárias, a elaboração de medidas de retaliação cruzada consistia necessariamente em trabalho mais “artesanal”. O setor de serviços, por um lado, não conta com sistema e ponto de controle unificados, como o comércio de bens; os direitos de propriedade intelectual, por sua vez, existem sobre as formas mais diversas, como diversos são os instrumentos jurídicos em que estão codificados.

No entendimento do grupo, havia ainda dois outros desafios que tocavam, em maior medida, à retaliação cruzada. Um deles é que, como o valor autorizado para retaliação é limitado, tais medidas, por natureza, devem ser dotadas de mensurabilidade quanto a seu impacto. Outro aspecto é que, dado que a retaliação deve cessar quando a parte retaliada cumprir com as determinações da OMC, as medidas também devem ser dotadas de reversibilidade. Por exemplo, meramente colocar um item protegido por direito autoral em domínio público, sem qualquer controle, permitiria que cópias do item fossem feitas indiscriminadamente e sem supervisão do Governo, inviabilizando a mensuração e a limitação de seus impactos. Ademais, reverter essa mesma medida, se legalmente factível, teria resultados discutíveis na prática, pois o material já se

13 Medida Provisória 482, de 10/2/2010, convertida na Lei nº 12270/10, de 24/7/2010. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12270.htm>, acessado em 10/7/2013.

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teria disseminado de tal forma que impedir novas reproduções subsequentes se revelaria inviável.

Não se entenda, com isso, que o laudo arbitral tenha colocado quaisquer limitantes específicos sobre como o Brasil deveria conduzir a retaliação cruzada, pois não foi o caso; tratou-se, meramente, da aplicação dos princípios da precaução e da boa-fé, caros à boa política governamental e às relações internacionais – em especial quando se trata de medida inédita como a retaliação cruzada.

Dadas essas características particulares, a etapa inicial dos trabalhos do GT Retaliação em retaliação cruzada pode ser descrita, resumidamente, como um grande exercício de “brainstorming”, em que se estimulou os participantes dos diversos órgãos envolvidos a buscarem ideias, as quais não necessariamente envolvessem sua respectiva área de atuação. Muitas das boas ideias trazidas esbarraram em obstáculos jurídicos intransponíveis, ou seriam de execução muito difícil, especialmente no curto prazo. Nenhuma das iniciativas concernentes ao setor de serviços, por exemplo, logrou maturar a tempo de ser incluída no pacote levado a consulta pública.

Contudo, um volume razoável de iniciativas resistiu à maioria dos questionamentos. O grupo centrou-se progressivamente nas medidas mais viáveis e, após serem elas levadas à apreciação dos Ministros de Estado, foi publicada no dia 15 de março de 2010 a Resolução CAMEX nº 16, instaurando a consulta pública sobre 21 possíveis medidas de retaliação cruzada.

Em linhas gerais, as medidas consideradas podem ser reuni-das nas seguintes classes: i) subtração de prazo de proteção de pa-tentes e de direitos autorais; ii) licenciamento compulsório, sem remuneração, de patentes e de direitos autorais; iii) suspensão do direito exclusivo do titular de impedir a importação (permitindo a chamada “importação paralela”) ; iv) majoração dos custos de

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registro e manutenção de propriedade intelectual no território nacional; e v) aplicação de direitos de natureza comercial sobre a remuneração oriunda de propriedade intelectual. Algumas das medidas delineavam as respectivas áreas de incidência, como produtos químicos e biotecnológicos agrícolas e cultivares, medi-camentos e o setor de audiovisual.

Recebeu-se da sociedade 119 manifestações no âmbito da consulta pública. O número foi bem inferior ao da consulta em bens, crê-se, pelo fato de as medidas atingirem número potencialmente menor de setores, estes também organizados em um menor número de entidades.

Assim como ocorrera na consulta em bens, a maior parte das manifestações foi negativa, e número significativo se limitou a argumentos genéricos. Com frequência, observou-se a alegação de que a retaliação cruzada possivelmente enviaria “mensagem” ruim aos investidores ou traria danos à imagem do Brasil. Algumas faziam referência a preocupações que o Governo já tratara ao longo do processo, como eventuais dificuldades na mensuração dos impactos e na manutenção do controle sobre as consequências da medida. Outras trouxeram considerações importantes, que o grupo levou em conta ao tecer recomendações ao Conselho de Ministros. Houve também expressivo número, ainda que minoritário, de manifestações favoráveis, basicamente destacando o efeito das medidas de retaliação como estímulo à indústria nacional, sem custos para o governo, e o estímulo à concorrência.

Após o fim da consulta pública, já com negociações bilaterais em andamento, o grupo prosseguiu com os trabalhos, suspendendo-os no início de agosto de 2010, quando já estavam em vigor os dois acordos provisórios14.

14 Posteriormente, os trabalhos foram retomados, o que foge ao escopo temporal deste artigo (agosto de 2009 a agosto de 2010).

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em pArAlelo, As negociAções BilAterAis

Ao longo de fevereiro e março de 2010, período em que foram publicadas a Medida Provisória 482, a lista final de bens e a consulta pública sobre retaliação cruzada, o país já se preparava para o impacto da retaliação. O assunto, àquela altura, já havia transbordado da mídia especializada e frequentava as páginas dos principais jornais e noticiários televisivos. Afinal, parte do impacto seria sentido pelo cidadão comum, consumidor de lâminas de barbear, ketchup e xampus importados.

As gestões bilaterais sobre o tema também elevavam-se de perfil. Em questão de dias, diferentes autoridades norte- -americanas foram a Brasília com o tema na agenda, incluindo a Secretária de Estado Hillary Clinton, em 3 de março, e o Secretário de Comércio Gary Locke, em 9 de março. A Representação de Comércio (USTR) também emitiu nota15 expressando “desapontamento” com o Brasil por insistir na medida, mas ainda sem oferecer qualquer contraproposta. Como argumento principal, o Governo dos EUA alegava que a questão só poderia ser resolvida pela via legislativa, e que o Congresso somente consideraria mudanças na Lei Agrícola (Farm Bill) na renovação seguinte, prevista, à época, para 2012. Contudo, cabia aos EUA, na visão do Brasil, buscar uma saída, ainda que temporária.

Seguiu-se uma série de reuniões bilaterais, em que os EUA buscaram demover o Brasil da posição, ora em troca de promessas abstratas, ora sob ameaças também abstratas. Finalmente, em

15 “USTR Statement on Awards in Brazil Cotton Dispute”, 8 de março de 2010. Disponível em <http://www.ustr.gov/about-us/press-office/press-releases/2010/march/ustr-statement-awards-brazil-cotton-dispute>, acessado em 10/7/2013.

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A construção da retaliação brasileira no caso do algodão: os desafios do pioneirismo

1º de abril de 2010 – a apenas sete dias da entrada em vigor da retaliação em bens –, os EUA flexibilizaram sua posição e entabularam proposta preliminar de acordo.

Em 5 e 6 de abril, houve troca de cartas entre autoridades do MRE e do USTR, em que se estabelecia o prazo de 20 dias, contados da reunião do dia 1º, para que se negociasse entendimento bilateral que envolvesse os seguintes itens: i) compensação financeira equivalente à totalidade dos prejuízos sofridos pelo Brasil em razão dos subsídios domésticos, conforme declarado pelo laudo arbitral da OMC (US$ 147,3 milhões por ano), a serem pagos em parcelas mensais, em benefício de um fundo de capacitação técnica que beneficiasse os produtores de algodão atingidos, até que os EUA aprovassem nova legislação agrícola; ii) alterações imediatas, ainda que parciais, no programa de subsídios à exportação GSM-102, de modo a aumentar a diferenciação por risco-país, seguidas de negociações sobre novos aumentos; iii) aceleração dos trâmites administrativos referentes a dois pleitos antigos do setor agrícola brasileiro – o reconhecimento do estado de Santa Catarina como livre de febre aftosa e outras doenças para fins de exportação de carne suína, e de 14 estados brasileiros, para fins de exportação de carne bovina. Em troca, o Brasil adiaria a entrada em vigor da retaliação para após o referido prazo de 20 dias.

O acordo foi comemorado de ambos os lados16. Os EUA cumpriram os compromissos iniciais assumidos e, em 20 de

16 Vide Nota à Imprensa MRE no. 167, de 5/4/2010, disponível em <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/2010/04/05/contencioso-brasil-eua-na-omc-sobre-algodao>, acessado em 10/7/2013, e Nota à Imprensa USDA “U.S., Brazil Agree Upon Path Toward Negotiated Solution of Cotton Dispute”, de 6/4/2010, disponível em: <http://www.ustr.gov/about-us/press-office/press-releases/2010/april/us-brazil-agree-upon-path-toward-negotiated-solution>, acessado em 10/7/2013.

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abril, assinou-se Memorando de Entendimento bilateral17. O documento formalizou o compromisso dos EUA com o pagamento mensal da compensação financeira referente aos subsídios domésticos até que se promulgasse nova Farm Bill. Contudo, restava pendente o tratamento dos subsídios à exportação; a alteração no GSM-102 fora simbólica, meramente um gesto inicial. Dessa forma, o Memorando de Entendimento adiou a retaliação por apenas mais 60 dias, para viabilizar a continuidade das negociações. Em 20 de junho, logrou-se assinar um Acordo-Quadro18 que estabeleceu regras para um ajuste gradual dos parâmetros do Programa GSM-102, cujo ritmo varia conforme o grau de utilização do programa.

conclusão

No momento da feitura deste artigo, a promulgação de uma nova Lei Agrícola continua pendente no Congresso dos EUA. Pelos efeitos da Resolução CAMEX 43/2010, a retaliação está suspensa enquanto permanecer em vigor o Memorando de Entendimento e o Acordo-Quadro – os quais, por seu turno, seguem vigorando até a aprovação da nova lei, exceto se houver quebra do acordo ou desistência de uma das partes.

17 Memorando de Entendimento entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América sobre um fundo de Assistência Técnica e Fortalecimento da Capacitação relativo ao Contencioso do Algodão (WT/DS267) na Organização Mundial do Comércio, assinado em 20/4/2010, disponível em: <http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/bilaterais/2010/memorando-de-entendimento-entre-o-governo-da-republica-federativa-do-brasil-e-o-governo-dos-estados-unidos-da-america-sobre-um-fundo-de-assistencia-tecnica-e-fortalecimento-da-capacitacao-relativo-ao-contencioso-do-algodao-wt-ds267-na-organizacao-mundial-do-comercio/>, acessado em 10/7/2013.

18 Acordo-Quadro para uma Solução Mutuamente Acordada para o Contencioso do Algodão na Organização Mundial do Comércio (WT/DS267), assinado em 25/4/2010, disponível em: <http://sijut.fazenda.gov.br/netacgi/nph-brs?s1=AC000000SN2010062501$.CHAT.+E+MRE.ORGA.+E+20100805.DDOU.&l=0&p=1&u=/netahtml/sijut/Pesquisa.htm&r=0&f=S&d=SIAT&SECT1=SIATW3>, acessado em 10/7/2013.

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A construção da retaliação brasileira no caso do algodão: os desafios do pioneirismo

Independentemente do desfecho final do caso, é digno de maior estudo o fato de que a oferta, por parte dos EUA, de proposta de acordo temporário, com compensação financeira substantiva, deu-se às vésperas da entrada em vigor da retaliação em bens, e com a consulta pública sobre retaliação cruzada já em curso. A coincidência de datas torna razoável supor que a percepção de que o Brasil não apenas iria, de fato, colocar em vigor a retaliação em bens, mas também estava adotando os últimos passos para implementar a retaliação cruzada, foram fundamentais, se não determinantes, para aquele desfecho.

Na mesma linha, para os EUA, ao que tudo indica, não estava em jogo apenas o impacto que a retaliação cruzada potencialmente viria causar, mas a criação de importante precedente, em que uma grande economia retirava unilateralmente concessões na área de propriedade intelectual de um país desenvolvido. Recorde-se que não foram poucas as críticas ao Brasil, em especial por entidades ligadas à indústria de propriedade intelectual, alegando que o país estaria “roubando” direitos e fazendo apologia à pirataria. Algumas entidades chegaram a defender contra-retaliações ao país, como a inclusão na “Special 301 Priority Watch List”19 e a suspensão de benefícios do Sistema Geral de Preferências (SGP).

Na interpretação do Governo brasileiro, contudo, a verdade era justamente o oposto: a suspensão de compromissos na área de propriedade intelectual consistia em recurso extremo, porém totalmente amparado no sistema multilateral e no direito internacional. A retaliação era a exceção que confirmava a regra – qual seja, a alta prioridade conferida pelo Brasil à proteção da propriedade intelectual.

19 Lista em que o Governo dos EUA classifica países de acordo com o grau de proteção que conferem à propriedade intelectual. Note-se que o Brasil não reconhece listas unilaterais dessa natureza.

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É Engenheiro Aeronáutico, graduado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica em 1996. Trabalhou como engenheiro de desenvolvimento da Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER). Ingressou na carreira diplomática em 2004. Atuou na área de solução de controvérsias na Coordenação-Geral de Contenciosos (2005-2008) e na Delegação do Brasil junto à OMC, em Genebra (2008-2011). Em 2006 e 2007, chefiou a delegação brasileira em várias das reuniões de negociação para a revisão do Entendimento Setorial Aeronáutico da OCDE. Atualmente, serve na Delegação do Brasil junto à ALADI e ao Mercosul, em Montevidéu.

A resolução do contencioso emBrAer-

-BomBArdier: A revisão do entendimento setoriAl

Aeronáutico dA ocdeMarcus Vinicius Ramalho

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1. o pós-contencioso e A permAnênciA dA incertezA

Um dos elementos da “jurisprudência” que se estabeleceu com os contenciosos Embraer-Bombardier1 foi aquele relativo ao safe haven proporcionado pelo segundo

parágrafo da alínea “k” do Anexo I ao Acordo de Subsídios da OMC: caso um programa ou uma medida de créditos à exportação estivesse em conformidade com os dispositivos relativos a taxas de juros (“interest rate provisions”) do “Arranjo” sobre créditos à exportação da OCDE, esse programa ou medida não seria considerado um subsídio à exportação (proibido pelo Acordo de Subsídios).

É certo que a existência desse safe haven proporciona uma referência para o desenho de medidas de crédito à exportação que serão, por definição, compatíveis com o Acordo de Subsídios. O safe haven do Arranjo da OCDE proporcionou, inclusive, a base para que o painel de implementação decidisse que o PROEX III, adotado pelo Brasil em cumprimento às determinações emanadas no contencioso movido pelo Canadá (DS46), era compatível com as disciplinas multilaterais.

1 Os contenciosos “Embraer-Bombardier” referidos neste artigo correspondem aos três contenciosos entre Brasil e Canadá no sistema de solução de controvérsias da OMC relacionados ao apoio estatal ao financiamento às exportações de aeronaves regionais: Brazil – Export Financing Programme for Aircraft (DS46); Canada – Measures Affecting the Export of Civilian Aircraft (DS70); Canada – Export Credits and Loan Guarantees for Regional Aircraft (DS222).

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Ocorre que, embora os termos do safe haven proporcionem uma base suficiente para estabelecer a legalidade de uma medida de créditos à exportação, eles não constituem o único benchmark para a avaliação da legalidade de medidas de crédito à exportação. Há toda uma série de instrumentos e parâmetros que, aplicados em diferentes combinações, poderiam ser utilizados pelos governos para ajudar suas empresas a conquistar e preservar mercados. Nesse campo, o único limite é a imaginação dos empresários, financistas e burocratas.

Ao final das penosas fases litigiosas que opuseram Brasil e Canadá nos três contenciosos Embraer-Bombardier, os dois países haviam conquistado o direto de “retaliar-se” mutuamente. Ambas as partes estavam cientes, no entanto, de que a retaliação não traria qualquer benefício a nenhum dos lados. As duas empresas – Embraer e Bombardier – continuavam a disputar encomendas de companhias aéreas em todo o globo, e as respectivas agências de crédito à exportação (ACEs) continuavam dispostas a apoiá-las.

Embora os contenciosos houvessem esclarecido em boa medida qual era a natureza e o alcance das disciplinas multilaterais pelas quais tanto o Brasil quanto o Canadá estavam vinculados, essas disciplinas não eram suficientemente detalhadas a ponto de assegurar a previsibilidade e o “level playing field” – em outras palavras, que a competição entre as empresas se daria no terreno do preço intrínseco e da qualidade de seus produtos, e não seria distorcida pelas condições de financiamento que os respectivos governos – por intermédio de suas ACEs – estariam dispostos a colocar na mesa para “adoçar” o pacote oferecido pela fabricante de seu país. Caso essas distorções continuassem a ocorrer, sempre haveria o caminho do litígio na OMC, mas esse era, como se comprovara, demorado e custoso. Além disso, independente do resultado de um eventual novo contencioso, o

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A resolução do contencioso Embraer-Bombardier: a revisão do entendimento setorial aeronáutico da OCDE

“estrago” já estaria feito. Encomendas de altíssimo valor teriam sido perdidas, e esse resultado não seria revertido por decisões de painéis e do Órgão de Apelação.

De fato, Brasil e Canadá buscaram negociar um modus vivendi bilateral que pusesse fim à precariedade dessa situação, estabelecendo termos comuns de apoio à exportação de aeronaves que dessem a suas empresas – e também aos respectivos tesouros nacionais – mais previsibilidade, proporcionando o almejado “level playing field”. No entanto, por diversas razões, esse esforço negociador – que envolveu várias rodadas de encontros bilaterais – não foi bem-sucedido.

Foi nesse contexto que, ao final de 2004, o Brasil foi convidado para tomar parte, como negociador pleno, da revisão – que estava prestes a se iniciar – do “Entendimento Setorial sobre Créditos à Exportação para Aeronaves Civis” da OCDE (doravante, “Entendimento Setorial Aeronáutico”, ou ASU, na sigla em inglês). O ASU era parte integrante do Arranjo sobre créditos à exportação da OCDE, e estava, portanto, diretamente relacionado às disciplinas do Acordo de Subsídios da OMC mediante a já citada cláusula de safe haven. Esse convite feito ao Brasil – e o resultado da revisão do ASU – foi uma das mais importantes consequências dos contenciosos Embraer-Bombardier.

2. o entendimento setoriAl Aeronáutico dA ocdeO Entendimento Setorial Aeronáutico vigente em 2004

datava de 1986, e dele não fazia parte o Brasil. Aplicava-se, em princípio, a todas as modalidades de apoio financeiro oficial às exportações de aeronaves (financiamento direto, refinanciamento, garantias de crédito). Suas disciplinas eram distintas conforme a categoria de aeronave: para as de maior porte

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(“large aircraft”, mercado onde competiam, principalmente, a norte-americana Boeing e o consórcio europeu Airbus), previa- -se, por exemplo, prazo máximo de 12 anos para financiamentos que pudessem se beneficiar de garantias de crédito oferecidas pelos governos. Já para as demais aeronaves, de menor porte (nicho onde competiam a Embraer e a Bombardier), o prazo máximo dos financiamentos para o apoio oficial era de 10 anos.

Para aeronaves de menor porte, previam-se taxas de juros mínimas, às quais se deviam, em princípio, acrescentar prêmios de risco que variavam principalmente em função do risco soberano do país onde se localizava a companhia aérea compradora (consoante as regras do então chamado “Knaepen Package”). Já no caso das aeronaves de maior porte, não havia qualquer regra no tocante ao prêmio de risco mínimo a ser cobrado pelas ACEs que oferecessem, por exemplo, garantias de crédito à exportação.

As garantias de crédito, a propósito, eram a modalidade de apoio oficial mais comumente empregada pelas ACEs dos EUA – notadamente o Ex Im Bank – e da União Europeia (ECGD britânica, COFACE francesa, Euler Hermes alemã). Essas ACEs, assim, não desembolsavam o valor financiado; mediante o pagamento de um prêmio, elas assumiam o risco de inadimplemento da transação e pagavam à entidade financiadora (por exemplo, um banco privado) o valor do principal eventualmente ainda devido pela companhia aérea caso esta entrasse em default. Sabia-se que, na prática, as ACEs norte-americana e europeias cobravam um prêmio de risco único, de 3% do valor financiado, independentemente do risco da companhia aérea. Já as ACEs brasileira e canadense atuavam principalmente mediante o financiamento direto,

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A resolução do contencioso Embraer-Bombardier: a revisão do entendimento setorial aeronáutico da OCDE

desembolsando integralmente os montantes financiados, recebendo em contrapartida pagamentos de juros e amortizações do principal ao longo do prazo de financiamento. Nesse caso, o prêmio de risco era embutido nas próprias taxas de juros do financiamento. (No caso do financiamento associado à garantia de crédito, o banco financiador não necessitava adicionar prêmio de risco, já que este era assumido pelo governo de países essencialmente risk-free, como os EUA e os países europeus).

Os contenciosos Embraer-Bombardier evidenciaram para os governos do Brasil e do Canadá aspectos da realidade que estavam muito longe de serem satisfatoriamente cobertos pelas disciplinas do Entendimento Setorial Aeronáutico de 1986 (e menos ainda por aquelas muito mais genéricas do Acordo de Subsídios). Por exemplo, a natureza dos mercados de aeronaves de menor porte (também chamadas “regionais”) era tal que justificava prazos de pagamento significativamente maiores do que aqueles aplicáveis a aeronaves de maior parte, e seguramente mais longos que os 10 anos previstos no ASU de 1986. No mercado regional, eram comuns financiamentos privados com prazos de 15 ou até 17 anos. Também era evidente que o risco das transações estava muito mais associado ao perfil da companhia aérea (ou da entidade intermediária na transação), que afinal era quem assumia o compromisso primário de reembolsar os empréstimos, do que somente ao país de seu domicílio. Por exemplo, a classificação de risco de várias empresas sediadas nos EUA (país cujo risco soberano é dos menores do mundo), em vários casos, devido a sua precária situação financeira, é semelhante à dos títulos apelidados como junk bonds. Não faria sentido, nessas situações, atribuir a uma transação com esse tipo de empresas o mesmo grau de risco associado ao governo dos EUA.

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Vislumbravam-se, ademais, possíveis overlaps de concor-rência entre as aeronaves de maior capacidade produzidas pelas empresas que tipicamente fabricavam aviões “regionais” (a exemplo dos “E-Jets” da Embraer, da família 170-190) e os aparelhos de menor porte fabricados pela Boeing (a exemplo do A318 da Airbus e do Boeing 737-600). Esses potenciais nichos de concorrência tornavam necessário não somente alinhar as condições de apoio financeiro oferecido, por exemplo, pelo BNDES e pelo Ex Im Bank, mas também assegurar que diferentes formas de apoio – de um lado, o financiamento direto, e de outro, as garantias de crédito – fossem “equiva- lentes”, do ponto de vista financeiro, para a companhia aé-rea, de modo que a concorrência entre os fabricantes não fosse distorcida pelo fato de os governos oferecerem distintas for-mas de apoio oficial às transações.

Foi nesse contexto que o Brasil aceitou o convite dos países--membros da OCDE e, no final de 2004, começou a participar plenamente das negociações para a revisão do Entendimento Setorial Aeronáutico da Organização.

3. As negociAções

As negociações para a revisão do ASU estenderam-se de novembro de 2004 a julho de 2007. O Brasil participou das 14 reuniões do processo negociador para a revisão do Entendimento. A equipe brasileira que participou das negociações, coordenada pelo Itamaraty, contou com representantes dos Ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Seguradora Brasileira de Crédito à Exportação (SBCE). Ao longo do processo, o Brasil defendeu, como metas do exercício de revisão, três preceitos básicos: (i) condições equitativas de concorrência (“level playing field”); (ii) redução

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A resolução do contencioso Embraer-Bombardier: a revisão do entendimento setorial aeronáutico da OCDE

de custos: os tesouros nacionais não deveriam competir entre si e as taxas de juros (ou os prêmios cobrados por garantias de crédito) deveriam melhor refletir os riscos da transação; e (iii) previsibilidade e transparência.

Podem-se distinguir claramente duas fases no processo negociador. Na primeira, que se estendeu até julho de 2006, Brasil e Canadá, de um lado, procuraram sensibilizar os EUA e os países europeus (e também, em alguma medida, o Japão, que foi o outro participante mais ativo nas negociações) quanto à necessidade de se adotar um mecanismo comum para a classificação do risco das companhias aéreas, e de “precificar” esse risco adequadamente. Nesse contexto, o Brasil e o Canadá defenderam a adoção de uma “curva” em que os prêmios de risco (a serem acrescidos às taxas de juros, no caso de financiamentos diretos, ou a serem cobrados diretamente pelos provedores das garantias de crédito) variassem sensivelmente com o grau de risco do tomador do empréstimo e refletissem da melhor forma possível os valores que seriam cobrados no mercado. Os EUA e os países europeus concordavam, em princípio, com esse conceito, mas defendiam prêmios de risco muito inferiores àqueles que propunham Brasil e Canadá, receosos de prejudicar seus exportadores ao tornar mais restritivas as condições para o apoio oficial ao financiamento de suas aeronaves.

Nessa primeira fase, além de insistirem na ideia de adotar um mecanismo comum de classificação de risco e de uma adequada precificação do risco de crédito associado a cada classificação, Brasil e Canadá, tendo presente o histórico dos contenciosos, lograram convencer os demais países a inverterem os prazos máximos de financiamento previstos no ASU: para as aeronaves de menor porte, o prazo máximo passou a ser de 15 anos (ao invés de 10). Para as de maior porte, o prazo máximo continuou em 12 anos.

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Na reunião de negociação realizada em julho de 2006, tornou-se claro que não seria possível chegar a uma “curva” de prêmios de risco única, que valesse para todos os modelos de aeronaves a exportadas pelos países participantes do eventual Entendimento. Os EUA, por exemplo, julgavam que o prêmio de 3% então praticado já seria mais que suficiente para que o Ex Im Bank cobrisse custos e perdas (“Ex Im is making money with 3 percent”). Os EUA participavam das negociações, alegava-se, entre outras razões, porque reconheciam um “general desire to increase fees”. Os EUA admitiam abertamente que tais prêmios de risco, e mesmo aqueles propostos pelas ACEs europeias, seriam vulneráveis a questionamentos na OMC, mas ressalvavam que não se empenhavam nas negociações com o objetivo de garantir a compatibilidade do apoio oficial à exportação de aeronaves com as disciplinas multilaterais. O Brasil, naturalmente, aferrando-se ao princípio de que ao Tesouro Nacional não interessaria competir com os tesouros dos EUA, do Canadá ou dos países europeus na concessão de subsídios, manteve-se firme na defesa de prêmios de risco mais alinhados com o mercado.

A solução foi adotar o que os negociadores chamaram de “bifurcação”: para aeronaves de menor porte, valeria uma curva de prêmios de risco. Para as demais aeronaves, aplicar-se-ia outra curva. Ambas as curvas seriam funções da classificação de risco da companhia aérea, a qual, esta sim, seria estabelecida de forma conjunta por todos os participantes.

A partir daí, o “jogo” modificou-se consideravelmente. Boa parte dos esforços brasileiros concentrou-se em negociar com o lado canadense a curva de prêmios de risco que seria aplicada ao financiamento das exportações de aeronaves regionais.

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Nesse contexto, a maior dificuldade foi convencer o Canadá a abandonar a prática da chamada market window, evidenciada nos contenciosos na OMC, pela qual alguns financiamentos concedidos por órgãos do governo canadense não seriam caracterizados como “apoio oficial”. Nessa modalidade, agências governamentais estenderiam apoio à exportação nas condições que o mercado financeiro supostamente praticaria, como se atuassem no segmento na condição de instituições privadas. Nessa situação, sempre que a agência operasse na market window, ela não o faria na condição de instituição oficial, e não estaria obrigada, portanto, a seguir disciplinas endossadas por seu Governo. A manutenção da market window abriria a possibilidade, assim, de que as Agências de Crédito à Exportação pudessem oferecer termos de financiamento mais favoráveis do que aqueles resultantes da aplicação das curvas de prêmios de risco eventualmente acordadas pelas partes. O Brasil sustentou que tal possibilidade retiraria do sistema uma de suas características mais importantes – a previsibilidade –, a qual refletia princípio que, para o lado brasileiro, era inegociável.

Essa diferença, felizmente, como várias outras que ameaçaram a conclusão das negociações, foi superada. O Canadá se comprometeu a abrir mão da prática da market window. Vários outros aspectos do ASU foram negociados a bom termo. Em julho de 2007, a conclusão do processo negociador foi formalizada em encontro realizado no Palácio Itamaraty no Rio de Janeiro, com a participação, entre outros, do então Subsecretário para Assuntos Econômicos e Tecnológicos do MRE, Embaixador Roberto Azevêdo, e do Secretário-Geral da OCDE, Angel Gurría.

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4. o novo entendimento setoriAl Aeronáutico

Conforme já mencionado, o Entendimento Setorial Aeronáutico concluído em 2007 substituiu a versão anterior, datada de 1986. As principais disciplinas do Entendimento de 2007 são resumidas a seguir.

4.1. Forma do apoio

O apoio oficial para créditos à exportação de aeronaves poderá ter a forma de (i) garantia de crédito (“pure cover”); (ii) financiamento/refinanciamento direto e apoio a taxas de juros (“interest rate support”); ou (iii) qualquer combinação das modalidades anteriores.

4.2. Condições para o apoio oficial

As transações potencialmente beneficiárias de apoio oficial deverão se conformar às seguintes condições: (i) adiantamento (down payment) mínimo de 15% do preço líquido da exportação; (ii) prazo máximo de pagamento de 12 anos no caso de aeronaves de maior porte (“categoria 1”), 15 anos no caso de aeronaves de menor porte (“categoria 2”, na qual se enquadram os modelos da Embraer e da Bombardier) e 10 anos no caso de outras aeronaves (“categoria 3”, em geral, com menos de 30 assentos, aeronaves executivas e helicópteros); (iii) perfis de pagamento do tipo SAC (amortizações constantes de principal) ou Price (prestações constantes de principal e juros), com frequência mínima semestral. São permitidas exceções (com certos limites) para perfis mais irregulares no caso de aeronaves das categorias 2 e 3; e (iv) aeronave como garantia real prioritária em toda a porção financiada, com a opção de garantia soberana do país do

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importador. No caso de aeronaves da categoria 1, na medida em que aumenta o grau de risco da companhia aérea, o apoio oficial só poderá ser concedido caso sejam satisfeitas algumas condições adicionais, tais como reduções do valor financiado e do prazo de pagamento. No caso de aeronaves classificadas na categoria 3, é permitida a concessão de apoio oficial para transações sem garantia real ou soberana, desde que em bases de minimis (valor da exportação inferior a US$ 15 milhões), com prazo de pagamento reduzido a 8,5 anos e sobretaxa sobre os prêmios de risco originalmente aplicáveis àquela categoria. Nesses casos, nenhuma terceira parte poderá ter qualquer recurso à aeronave como garantia real.

4.3. Precificação de risco

Ao oferecer apoio oficial, as Partes deverão cobrar prêmios de risco mínimos, os quais, no caso de aeronaves das categorias 2 e 3, variam não apenas com o grau de risco da companhia aérea (indicado por “ratings” do tipo AA, A, B+ etc.), mas também com o prazo da transação (15, 12 ou 10 anos). Os prêmios são mais reduzidos caso a companhia aérea se localize em país signatário da Convenção e do Protocolo sobre Garantias Internacionais Relativas a Equipamentos Móveis Aeronáuticos (“Tratado da Cidade do Cabo”) ou em país que seja Parte do Entendimento Setorial Aeronáutico. No caso das aeronaves da categoria 1, são previstos os prêmios de risco apenas para o prazo de 12 anos, variáveis conforme o grau de risco da companhia aérea. Poderá haver desconto sobre esses valores caso a companhia aérea se localize em país signatário do Tratado da Cidade do Cabo.

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De forma inovadora, o Entendimento Setorial busca assegurar a equivalência, do ponto de vista financeiro, entre a concessão de apoio oficial nas formas de financiamento direto e de garantia de crédito. Para isso, o acordo estabelece regras de conversão entre prêmios de risco cobrados na forma de spread, ao longo do prazo de financiamento, e prêmios cobrados “à vista”.

4.4. Taxas de juros

Caso o apoio oficial tome a forma de financiamento direto, refinanciamento ou apoio a taxas de juros, os prêmios de risco descritos no item anterior devem ser somados a uma taxa básica de juros, a qual varia apenas com o prazo da transação, e não com o risco da companhia aérea. Nos termos do Entendimento Setorial, essa taxa básica pode ser, ao longo do financiamento, uma taxa flutuante (a taxa LIBOR) ou uma taxa fixa (baseada em títulos do Tesouro denominados na moeda em que é realizado o financiamento).

4.5. Outras taxas

Em financiamento direto, são estipulados valores mínimos para três tipos de taxas: (i) “arrangement fee” de 25 pontos- -base (0,25%), cobrados uma só vez sobre o valor desembolsado; (ii) “commitment fee” de 20 pontos-base (0,20%), cobrados anualmente sobre o valor não desembolsado; e (iii) “administration fee” de 5 pontos-base (5%) ao ano, cobrados ao longo do financiamento.

4.6. Classificação de risco

Foi estabelecida uma lista inicial de companhias aéreas e suas respectivas classificações de risco (ratings), as quais

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determinarão o prêmio de risco a ser cobrado em apoio oficial. A lista será atualizada periodicamente, podendo ainda ser objeto de alterações e acréscimos em bases ad hoc. O conteúdo desta lista é confidencial.

4.7. Medidas de transparência

As Partes deverão notificar ao Secretariado da OCDE, pouco após estenderem compromisso firme de apoio oficial (“final commitment”), os termos e condições desse apoio (prazo, taxas de juros, outras taxas no caso de financiamento direto), bem como informações sobre o comprador da aeronave, o número de aeronaves financiadas, entre outras. Tais informações deverão ser encaminhadas de acordo com formulário acordado pelas Partes da negociação.

4.8. Retirada do acordo

Qualquer Parte poderá se retirar do acordo, bastando para isso indicar essa intenção ao Secretariado da OCDE com antecedência de seis meses.

O resumo acima é apresentado aqui apenas para demonstrar que as disciplinas acordadas em 2007 eram muito mais detalhadas – e conferiam, portanto, muito mais previsibilidade aos governos e ao setor privado – do que se poderia inferir das regras mais gerais do Acordo de Subsídios da OMC. As novas regras também eram bastante mais detalhadas – e inovadoras – do que aquelas estipuladas no antigo ASU, de 1986, e no próprio arranjo da OCDE sobre créditos à exportação vigente em 2007.

Em vista de seu caráter inovador, o ASU de 2007 continha uma cláusula que previa sua própria revisão para o ano de 2011.

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Em vista dos efeitos da crise financeira de 2008, que se fez sentir de forma acentuada nos mercados de interesse das empresas exportadoras de aeronaves, a revisão foi antecipada em um ano. Hoje, está em vigor uma nova versão do Entendimento Setorial Aeronáutico – o “ASU 2011”.

Um relato das negociações ou das características do ASU 2011 foge ao escopo do presente trabalho. Vale mencionar, de todo modo, que uma de suas características principais é a adoção de uma “curva” única para os prêmios de risco, superando-se, assim, a “bifurcação” que, nas negociações da versão anterior, foi a solução de compromisso que permitiu a conclusão do novo Entendimento em 2007. A filosofia geral do ASU, no entanto, permaneceu, a exemplo do sistema comum de classificação de risco das companhias aéreas.

5. comentários gerAis

No início das discussões sobre a revisão do Entendimento Setorial Aeronáutico, em fins de 2004, o Brasil observou que a presença de um país em desenvolvimento e de alto risco soberano nas negociações poderia e deveria introduzir elementos novos no debate entre os Participantes. O País aceitava, por um lado, não impor aos demais negociadores a questão do custo de captação mais elevado para as agências de crédito à exportação brasileira. O Brasil não poderia admitir, contudo, que uma agência oficial cobrasse taxas excessivamente baixas simplesmente por considerar seu risco de carteira como inferior. Ao tratar, por exemplo, do tema da precificação do risco de crédito (em outras palavras, do valor dos prêmios cobrados pela oferta de garantias de crédito ou dos spreads de risco que constituem

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parte das taxas de juros no caso de financiamento direto), o Ex Im Bank norte-americano procurava estabelecer distinção entre a probabilidade de default por parte de uma companhia aérea de modo geral e o risco de inadimplemento específico com a agência oficial. As empresas em situação difícil, argumentava o Ex Im, tenderiam a priorizar o pagamento à agência oficial, sob pena de comprometer sua capacidade de crédito de forma irremediável. Em resposta, o Brasil argumentava que, para assegurar o “level playing field”, a precificação do risco deveria se concentrar nos elementos de cada transação com base em seus próprios méritos e no risco objetivo da companhia aérea devedora, o que faria com que o exercício da precificação levasse aos mesmos resultados independentemente da identidade da agência oficial de crédito à exportação.

Essa abordagem demandava metodologia que quantificasse os prêmios de risco com base nos tópicos apontados acima. Nesse sentido, o Brasil apresentou contribuições técnicas que foram reconhecidas pelos demais negociadores como sendo de grande qualidade, as quais incorporaram elementos de avaliação de risco recomendados no que era, então, o novo Acordo de Basileia sobre regulamentação de capital e reservas bancárias (“Basileia II”). Tais contribuições introduziram conceitos que terminaram por pautar boa parte das discussões.

O Brasil tinha em vista, ainda, que deveriam se estabelecer parâmetros que permitissem tratar de forma igual diferentes arquiteturas financeiras. As garantias de crédito, por exemplo, são instrumentos em que países desenvolvidos têm uma natural vantagem competitiva, já que elas conferem às transações apoiadas o baixo risco de inadimplemento do país que as oferece sem que este tenha que efetuar os desembolsos típicos de uma

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instituição que concede financiamentos diretos (os quais, por sua vez, constituem a forma de apoio oficial mais usada pelo Brasil). De forma inovadora, o Entendimento Setorial de 2007 buscou assegurar a equivalência, do ponto de vista financeiro, entre a concessão de apoio oficial nas formas de financiamento direto e de garantia de crédito. Para isso, o acordo estabeleceu regras de conversão entre prêmios de risco cobrados na forma de spread, ao longo do prazo de financiamento, e prêmios cobrados “à vista”, como no caso das garantias.

Levando-se em conta a dificuldade de os EUA e os países europeus acompanharem, de modo geral, os valores mais elevados propostos pelo Brasil e pelo Canadá para os prêmios nas transações de maior risco, o Brasil buscou assegurar que pelo menos as aeronaves menores da Boeing e da Airbus – que podem competir em alguma medida com os modelos da família 170/190 da Embraer – seguissem as disciplinas aplicáveis às aeronaves de menor porte. Assim, as aeronaves Boeing 737-600 e Airbus A318 foram classificadas na mesma categoria dos modelos da Embraer e da Bombardier. Consequentemente, os termos de financiamento eventualmente oferecidos pelas agências europeia e norte-americana nas exportações do A318 e do Boeing 737-600 seriam os mesmos aplicáveis às aeronaves das fabricantes brasileira e canadense.

O acordo teve significado especial para o Brasil e o Canadá. Ao aderir ao Entendimento Setorial, as agências de crédito à exportação canadenses – inclusive do Québec – não poderiam oferecer termos e condições mais favoráveis do que aqueles estipulados no acordo. Nesse sentido, o Canadá se comprometeu – conforme já mencionado – a abrir mão da prática de market window evidenciada nos contenciosos na OMC. Com o novo

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Entendimento Setorial, assegurou-se a previsibilidade da participação dos governos dos dois países no apoio oficial ao financiamento para a exportação de aeronaves. O acordo tinha o potencial para encerrar, assim, o ciclo de contenciosos que havia marcado as relações bilaterais nos 10 anos anteriores, os quais tiveram como objeto precisamente as medidas disciplinadas pelo novo instrumento.

Pode-se dizer que os termos e condições de financiamento contemplados no Entendimento Setorial de 2007 eram mais compatíveis com o risco das operações e com parâmetros de mercado. Essa aproximação com o mercado foi ainda maior no “ASU 2011”. As regras negociadas em 2007 buscaram assegurar, ainda, previsibilidade e transparência na concessão de apoio oficial para a exportação de aeronaves, além de equivalência entre as diversas formas de apoio. Todos esses fatores concorreram para os objetivos de reduzir os custos para os respectivos tesouros nacionais, proporcionar condições equitativas de concorrência e evitar que a competição entre os fabricantes seja distorcida pelos termos e condições de financiamento oferecidos pelos governos.

A atuação do Brasil durante as negociações para a revisão do Entendimento mostrou também que a participação de um país em desenvolvimento no estabelecimento ou na revisão de disciplinas multilaterais pode trazer para o processo perspectivas e elementos que escapam à esfera de interesses ou à percepção dos parceiros desenvolvidos. As posições brasileiras – tanto na definição política dos termos da negociação quanto no que se refere às questões téc-nicas enfrentadas pelos participantes –, contribuíram para que as disciplinas acordadas fossem em certa medida inovadoras, mas, ao mesmo tempo, aceitáveis para todas as partes.

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Conselheira, formada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, ingressou na carreira diplomática em 1998. Trabalhou na Divisão de Ciência e Tecnologia (2000-2002); na então Subsecretaria-Geral de Assuntos Econômicos, Tecnológicos e de Integração (2003); Divisão de Serviços, Investimentos e Assuntos Financeiros (2003-2004); na Subsecretaria-Geral de Cooperação, Cultura e Promoção Comercial (2010) e na Secretaria-Geral (2011-2013). Serviu na Delegação do Brasil junto à OMC (2005-2008) e no Consulado-Geral em Nova York (2008-2010). Atualmente está lotada na Delegação do Brasil junto à ONU.

“enforcement” em trips e no mecAnismo de solução de controvérsiAs:

umA vitóriA dos pAíses em desenvolvimento

Erika Watanabe

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Em abril de 2007, quando solicitaram consultas à China, os Estados Unidos estavam, na verdade, iniciando um dos mais importantes contenciosos na Organização Mundial

do Comércio (OMC) em matéria de direitos de propriedade intelectual. O contencioso “China – Measures Affecting the Protection and Enforcement of Intellectual Property Rights (DS 362)” levou a Organização a tratar, de forma aprofundada e tendo como foco principal, temas relacionados exclusivamente à interpretação e implementação (enforcement) dos dispositivos do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, em inglês)1.

Apesar das críticas à postura pragmática adotada pelos Estados Unidos e às limitações do relatório do painel, o contencioso teve vários méritos, o principal deles, o de estabelecer limites às demandas crescentes dos países desenvolvidos por medidas mais coercitivas em prol da implementação de TRIPS por parte dos países em desenvolvimento. Não sem razão, doze terceiras partes juntaram-se ao processo, metade delas representado o mundo em desenvolvimento e a outra metade, o desenvolvido, em clara demonstração da clivagem de posições que impera nesta área2. Um dos maiores defensores das flexibilidades do

1 O DS 362 não terá sido o primeiro contencioso a tratar de temas relativos à implementação de TRIPS, visto que em “United States – Section 211 Omnibus Appropriations Act of 1998” (DS 176), de 2002, o painel e o Órgão de Apelação já haviam se pronunciado sobre enforcement.

2 São elas: Argentina, Brasil, Índia, México, Tailândia, Turquia, Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Japão, Taipé/China e União Europeia.

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Acordo TRIPS, o Brasil não poderia ter deixado de participar do contencioso, como terceira parte.

O presente artigo não visa analisar cada uma das decisões do painel3, o que já foi feito por vários estudiosos, mas procurará explorar outros aspectos do contencioso, como os interesses envolvidos e a relevância para os países em desenvolvimento das decisões adotadas pelo Órgão de Solução de Controvérsias (OSC).

1. o contencioso

Em 10 de abril de 2007, os Estados Unidos solicitaram consultas à China sobre uma gama de medidas que estariam em desacordo com os compromissos de acessão desse país à OMC, mais especificamente no que se refere ao Acordo TRIPS. As medidas questionadas foram:

• Grupo I (que mais tarde veio a se tornar objeto do Pedido I, quando o painel foi constituído) – os parâmetros estabelecidos pelo Governo chinês para a criminalização da contrafação de marcas e da pirataria de direitos de autor (em desconformidade com os artigos 41.1 e 61 do Acordo TRIPS4);

• Grupo II (mais tarde denominado Pedido II) – a possibilidade de que as mercadorias apreendidas sejam

3 Para tanto, recomenda-se leitura do próprio relatório do painel, sumário da OMC, disponível em: <http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds362_e.htm> e de artigos como MEDENHALL, J. WTO Panel Report on Consistency of Chinese Intellectual Property Standards. The American Society on International Law. Disponível em: <http://www.asil.org/insights090403.cfm>. Acesso em: 14/7/2013. e Mixed Ruling on China IP Enforcement. ICTSD. Disponível em: http://ictsd.org/i/news/bridges/44213/. Acesso em: 14/7/2013.

4 A Lei Penal de 1979, interpretada pelas decisões da Suprema Corte nos. 19 e 6, criminaliza a contrafação e pirataria somente a partir do piso de 500 discos, DVDs, CDs ou softwares.

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“Enforcement” em TRIPS e no Mecanismo de Solução de Controvérsias: uma vitória dos países em desenvolvimento

leiloadas pelo Governo chinês (em desconformidade com os artigos 46 e 59 do Acordo TRIPS5);

• Grupo III (que veio a constituir o Pedido III na fase de painel) – a ausência de proteção por meio de direitos de autor e direitos conexos àquelas obras que i) nunca tenham sido submetidas à apreciação das autoridades chinesas responsáveis pela avaliação de conteúdo, ii) estejam sob análise dessas autoridades, iii) tenham sido editadas pelo Governo ou iv) tenham sido proibidas pelas autoridades (em violação aos artigos 9.1 do Acordo TRIPS (que incorpora os artigos 5(1) e 5(2) da Convenção de Berna – 1971) e artigos 14, 41.1, 61 do Acordo TRIPS) e

• Grupo IV – a criminalização somente de atividades que envolvam ao mesmo tempo reprodução e distribuição (em desacordo com os artigos 41.1 e 61 do Acordo).

Dadas as complexidade e peculiaridades do sistema chinês, foram colocadas em questão normativas das várias esferas de Governo, como leis, regulamentos, decretos, medidas interpretativas da Corte Suprema e da Procuradoria chinesas.

As consultas – às quais se juntaram Canadá, Japão, México e União Europeia – duraram cerca de três meses e confluíram para a resolução de somente o último grupo de medidas questionadas pelos norte-americanos. Como resultado das consultas, um acordo entre Estados Unidos e China sobre o último ponto levou este país a criminalizar também a reprodução e a distribuição perpetradas de forma dissociada uma da outra.

5 Os Regulamentos Aduaneiros sobre Direitos de Propriedade Intelectual determinam que os bens confiscados devam ser i) doados a órgãos públicos de bem-estar social; ii) vendidos ao proprietário dos direitos; iii) leiloados, no caso da impossibilidade das duas primeiras opções e removidas as características da infração e iv) destruídos, quando a retirada da marca seja impossível.

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Diante da ausência de entendimento sobre os três primeiros grupos de medidas, os Estados Unidos solicitaram o estabelecimento de um painel, o que foi feito pelo OSC em setembro de 2007. A falta de acordo também se manifestou na escolha dos integrantes do painel, os quais foram designados, a pedido do reclamante, pelo Diretor-Geral da OMC em dezembro de 2007. O painel necessitou de pouco menos de um ano para deliberar sobre os pedidos norte-americanos, tendo-se reunido com as partes em abril e junho, e com os terceiros – Brasil incluído – em abril de 2008.

Em janeiro de 2009, o relatório circulado frustrou a expectativa de vários analistas, pois não teria havido um claro ganhador: o painel deu razão a reclamante e reclamado, exerceu economia processual em duas ocasiões, e ainda foi da opinião de que os Estados Unidos não teriam conseguido fazer um caso prima facie em vários dos (sub)pedidos.

2. A pArticipAção do BrAsil

A exemplo de outros contenciosos nos quais tomou parte como terceiro, o Brasil preferiu contribuir de forma mais direta para o processo de interpretação dos dispositivos do Acordo TRIPS. Para tanto, optou por participar do painel em si, deixando para outras terceiras partes a presença na fase de consultas. O País apresentou petição, respostas às perguntas escritas enviadas pelo painel e argumentação oral na audiência das terceiras partes com o painel.

Em vista de suas posições no âmbito do sistema multilateral de comércio, como a defesa da preservação do policy space de cada país, e de sua experiência no mecanismo de solução de controvérsias, a participação brasileira no contencioso foi esperada e estimulada por alguns Membros.

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“Enforcement” em TRIPS e no Mecanismo de Solução de Controvérsias: uma vitória dos países em desenvolvimento

Os temas suscitados pelos Estados Unidos e as repercussões futuras em matéria de interpretação do Acordo TRIPS justificariam o interesse do Governo e da sociedade brasileiros em acompanhar de perto o debate sobre os aspectos conceituais e sistêmicos do caso. Recorde-se que, à época, o País enfrentava críticas semelhantes àquelas feitas à China, por parte de parceiros comerciais como Estados Unidos e União Europeia. A participação brasileira teria como objetivo tentar evitar possíveis interpretações restritivas do Acordo, que viessem a ameaçar: i) o delicado equilíbrio entre direitos e obrigações alcançado pelos Membros durante as negociações de TRIPS, bem como ii) as exceções e flexibilidades conquistadas nas referidas negociações.

3. o principAl pedido dos estAdos unidos

O pedido I constituiu um dos pontos centrais da reclamação norte-americana, com claro viés econômico-comercial. Os Estados Unidos argumentaram que os parâmetros estabelecidos pelo Governo de Pequim, em termos de lucro e volume, para a criminalização dos atos de contrafação de marcas e pirataria de direitos autorais seriam incompatíveis com os artigos 41.1 e 61 do Acordo TRIPS. Ao se basear em tais parâmetros para a criminalização, a China estaria, na verdade, sujeitando a proteção da propriedade intelectual a gatilhos relacionados a lucros auferidos, preço e quantidade, evitando a proteção do direito de propriedade como valor em si mesmo, absoluto.

O questionamento dos Estados Unidos não se referia ao recurso a parâmetros numéricos e de valor, mas ao fato de a criminalização só se dar a partir de níveis relativamente

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altos, o que impossibilitaria penalizar e coibir um número de infrações cometidas por pessoas físicas e em menor escala6. Caberia registrar o fato de que os Estados Unidos – tal como e possivelmente muito antes de a China fazê-lo – também se valem de parâmetros quantitativos e de valor para graduar as penalidades aplicáveis aos infratores de direitos de autor7.

Nesse contexto, o painel reconheceu que a análise do pedido I deveria se concentrar na vertente da criminalização, mais especificamente em quais infrações deveriam ser criminalizadas, e não naquelas passíveis de questionamento na esfera civil. Uma vez delimitado seu campo de ação, o painel concentrou seu exame no termo “escala comercial”, conforme utilizado – mas não definido – no artigo 61 do Acordo TRIPS. Tendo presente a intenção dos Estados Unidos de obter do painel a criminalização de maior número possível de infrações dos direitos de propriedade intelectual na China, o país advogou interpretação abrangente, defendendo que fatores qualitativos e quantitativos fossem deixados em aberto, e analisados caso a caso. Por essa lógica, a venda de um único item de alto valor, como um software, deveria ser considerada em “escala comercial”. A China, por sua vez, foi da opinião de que o termo deveria ser interpretado considerando o poder discricionário de cada país e as condições locais.

6 Respostas dos Estados Unidos ao primeiro conjunto de perguntas do painel e primeira petição dos Estados Unidos: “much retail commerce appears to still be conducted through small outlets, and consequently beyond the reach of criminal sanctions due to the criminal thresholds”. Disponível em: <http://www.ustr.gov/webfm_send/236>. Acesso em: 14/7/2013.

7 “18 USC § 2319 – Criminal infringement of a copyright: (c) Any person who commits an offense under section 506 (a)(1)(B) of title 17 – (1) shall be imprisoned not more than 3 years, or fined in the amount set forth in this title, or both, if the offense consists of the reproduction or distribution of 10 or more copies or phonorecords of 1 or more copyrighted works, which have a total retail value of $2,500 or more”. Disponível em: <http://www.law.cornell.edu/uscode/text/18/2319>. Acesso em: 14/7/2013.

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“Enforcement” em TRIPS e no Mecanismo de Solução de Controvérsias: uma vitória dos países em desenvolvimento

À exceção de Índia e Turquia8, todos os outros terceiros que participaram do contencioso – mediante apresentação de petição, respostas ao painel e apresentações orais – ofereceram contribuições para a interpretação de “escala comercial”. Para o Brasil, o artigo 61 do Acordo TRIPS deveria ser interpretado à luz de seus dois elementos, que combinam ordem de magnitude (escala) com o propósito de obter ganho financeiro (comercial). Assim, o Acordo exigiria que os Membros da OMC garantissem a existência de procedimentos e penalidades para as infrações intencionais aos direitos de marca e de autor que envolvam o intuito de obtenção de lucro e quantidade significativa de bens9.

O painel não chegou a definir “escala comercial”, mas apontou o caminho para sua interpretação, bem como abriu portas para que futuros questionamentos possam abranger as novas modalidades de comercialização de produtos, que não existiam na época da negociação do Acordo TRIPS10. Segundo o painel, a interpretação do termo “escala comercial” dependeria de uma série de circunstâncias, que podem variar de acordo com as diferentes formas de comércio e de contrafação/pirataria. A avaliação da “escala comercial” estaria sujeita, portanto, ao tipo de produto e de mercado onde este produto é comercializado, tendo sempre em mente a intenção de obter lucro11.

Assim, em vez de definir o termo, o painel optou por criar um teste para verificar a existência caso a caso da “escala comercial”. Em vista da precariedade de provas aduzidas pelos Estados Unidos (recortes de jornal e relatórios de associações comerciais), o mesmo painel foi da opinião de que essas provas

8 Ao contrário da Índia, ativo participante, a Turquia costuma ter participação discreta nos procedimentos de solução de controvérsias da OMC.

9 Petição de terceira parte do Brasil, parágrafos 35-38.10 Relatório do painel, parágrafo 7.657.11 Relatório do painel, parágrafo 7.577.

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Erika Watanabe

não foram suficientes para permitir uma análise do mercado chinês, deduzir a escala de certas operações comerciais ou mesmo concluir o que constituiria escala comercial de qualquer produto no mercado chinês12. Portanto, os Estados Unidos não teriam conseguido apresentar um caso prima facie a respeito da suposta inconformidade da legislação chinesa vis-à-vis o artigo 61 do Acordo TRIPS.

Com o pedido I, os Estados Unidos tentaram, mas não lograram, obter do painel uma decisão que levasse a China a criar mecanismos mais eficazes para a criminalização de um maior número de atividades de contrafação e pirataria. Uma decisão nessa linha diminuiria os custos que recaem sobre os detentores de direitos de propriedade para fazer valer seus direitos, o que inclui: i) patrocinar atividades de monitoramento de possíveis infrações e ii) recorrer a ações judiciais, longas e cujos resultados não oferecem compensações significativas. A criminalização mais abrangente e sem gatilhos ofereceria a estes detentores de direitos uma medida adicional àquelas civis (mediação e arbitragem), além de constituir fator de inibição de futuras novas infrações.

Em várias passagens, o painel menciona o fato de o reclamante não ter apresentado argumentos, comentários, provas, ou respostas mais elaboradas sobre vários aspectos deste primeiro pedido. O relatório observa, ainda, que os Estados Unidos sequer tentaram fundamentar certas alegações, e, em alguns casos, teriam deixado de concatenar os alegados atos de infração e as medidas sob exame. O painel chegou à conclusão de que os Estados Unidos falharam na tarefa de se desincumbir

12 “The Panel finds that, even if these sources were suitable for the purpose of demonstration of contested facts in this proceeding, the information that was provided was too little and too random to demonstrate a level that constitutes a commercial scale for any product in China”. Relatório do painel, parágrafo 7.617.

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“Enforcement” em TRIPS e no Mecanismo de Solução de Controvérsias: uma vitória dos países em desenvolvimento

do ônus da prova13. E por entender que suas conclusões com relação à primeira frase do artigo 61 do Acordo TRIPS já seriam suficientes para a solução deste ponto do contencioso (na verdade, os Estados Unidos não teriam conseguido fazer um caso prima facie nessa primeira parte), o painel decidiu exercer economia processual no que tange ao pedido referente ao artigo 41.1 e à segunda frase do artigo 61 do Acordo TRIPS.

Deixando de lado os fatores domésticos que teriam motivado a atuação por vezes falha dos Estados Unidos segundo observado pelo próprio painel, é de se registrar as dificuldades intrínsecas deste primeiro pedido. O fato de o reclamante não ter conseguido sequer produzir provas sobre a “escala comercial” na China é fruto de uma das peculiaridades do país: a pulverização do mercado chinês para todo e qualquer produto. Esse mercado é fragmentado e caracterizado por uma profusão de pequenas fábricas, intermediários, distribuidores e lojas minúsculas, sem grandes atores claramente identificáveis, como são os conglomerados norte-americanos. A dificuldade dos Estados Unidos é bem retratada na sua primeira petição: “[A] single wholesale mall (...) houses some 30,000 stores, many of them in small 10-by-15 foot stalls. (...) Another shopping mall (…) spans six floors of small stores and offers ‘counterfeit goods at bargain prices’”14.

Agregue-se às características do mercado outra particula-ridade chinesa, que terá dificultado a compreensão norte-ame-ricana: a complexidade do sistema jurídico, que engloba leis, “interpretações” da Corte Suprema e da Procuradoria chinesas, regulamentos, decisões do Executivo, tudo isto aliado à falta de

13 Cf. parágrafos 7.636, 7.655, 7.667 do relatório do painel.14 Primeira petição dos Estados Unidos, parágrafo 122. Disponível em: http://www.ustr.gov/

webfm_send/236. Acesso em: 14/7/2013.

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consenso inicial sobre tradução destes textos e à difícil imple-mentação das normativas do Governo central de Pequim na esfe-ra das províncias chinesas.

As limitações dos Estados Unidos neste caso ficam mais evidentes diante da defesa cada vez mais profissional por parte do reclamado, recém-ingresso no multilateralismo comercial, mas que não tem poupado esforços no aparelhamento da área de solução de controvérsias no seio da administração pública chinesa.

4. os outros dois pedidos

No que se refere ao segundo pedido norte-americano, o painel concordou com a alegação de que a simples remoção da marca não seria suficiente para permitir a venda dos bens apreendidos nos canais de comércio (artigo 46 do Acordo TRIPS). No entanto, no ponto mais importante da reclamação norte- -americana, o painel foi da opinião de que o artigo 59 do Acordo não exige que os órgãos de governo destruam ou disponham dos bens apreendidos – como gostariam os Estados Unidos e detentores de direitos de propriedade intelectual – mas exige, sim, que tenham a autoridade para fazê-lo: “the obligation is to ‘have’ authority not an obligation to ‘exercise’ authority”15.

A interpretação do painel colocou, assim, uma cunha na intenção dos Estados Unidos de obter a chancela da OMC para alguns padrões mais estritos do que aqueles previstos no próprio Acordo TRIPS. Em atendimento às determinações do OSC, em 2010, a China alterou sua legislação, que agora reproduz a linguagem do artigo 46.

15 Relatório do painel, parágrafo 7.236

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“Enforcement” em TRIPS e no Mecanismo de Solução de Controvérsias: uma vitória dos países em desenvolvimento

O terceiro pedido insere-se em um campo extremamente sensível para o Governo de Pequim e os defensores da liberdade de expressão: o mecanismo de censura de obras. A maior vitória do país no contencioso, assim tida pelos Estados Unidos, teria sido o reconhecimento do painel de que as medidas chinesas negavam proteção de direitos de autor àquelas obras ou excertos que não teriam passado no exame de conteúdo das autoridades chinesas16.

Nota-se, no entanto, que o painel deu ganho de causa parcial aos Estados Unidos, pois concluiu, mais uma vez, que o reclamante não teria conseguido apresentar um caso prima facie, com relação às obras que: i) nunca não foram submetidas a exame das autoridades chinesas; ii) ainda estão sob exame; ou iii) circulam na íntegra a despeito de terem sido editadas por essas autoridades.

Tal como no primeiro, o painel também exerceu economia processual neste terceiro pedido, abstendo-se de analisar as alegadas violações aos artigos 5(2) da Convenção de Berna e 14 e 61 do Acordo TRIPS.

5. o contexto chinA – estAdos unidos

O tema da propriedade intelectual tem ocupado espaço considerável e importante na agenda de comércio China – Estados Unidos, desde a década de 1970.

Os vários acordos e memorandos de aproximação entre os dois países exigiam a acessão do país asiático a acordos multila-terais na área de propriedade intelectual, como as Convenções

16 Cf. nota à imprensa do US Trade Representative na ocasião. Disponível em: <http://www.ustr.gov/about-us/press-office/press-releases/2009/january/united-states-wins-wto-dispute-over-deficiencies-c>. Acesso em: 14/7/2013.

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de Berna e de Genebra. Registre-se aqui, uma vez mais, o duplo padrão dos Estados Unidos, já que o próprio país levou mais de cem anos para assinar a primeira convenção e nunca assinou outras convenções igualmente importantes no campo da prote-ção dos direitos de propriedade intelectual, como a Convenção de Roma17, que diz respeito à matéria diretamente afeta ao artigo 14 do Acordo TRIPS, objeto de alegada violação por parte da China.

A China, portanto, vinha em um exercício de anos de adequação de suas normas às exigências da OMC, com vistas à sua entrada na Organização. O recurso norte-americano ao mecanismo de solução de controvérsias (MSC) foi entendido pelos chineses como um esforço dos Estados Unidos de rever o marco multilateral da OMC de proteção dos direitos de propriedade intelectual, em clara tentativa de criar obrigações extras, alterando o delicado equilíbrio alcançado em TRIPS entre direitos e obrigações, em detrimento dos países em desenvolvimento.

É certo que a maior parte dos problemas enfrentados pelos Estados Unidos no relacionamento com a China diz respeito à exportação de produtos contrafeitos ou pirateados, que não é abrangida pelo Acordo TRIPS. No entanto, em vista da dificuldade de resolver o tema da infração dos direitos de propriedade intelectual na China, a limitação do processo negociador com o país, e as questões econômicas envolvidas, os Estados Unidos tiveram de se valer da vertente possível em TRIPS, questionando as medidas chinesas de enforcement com relação aos produtos importados ou produzidos no território chinês.

17 International Convention for the Protection of Performers, Producers of Phonograms and Broadcasting Organizations.

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“Enforcement” em TRIPS e no Mecanismo de Solução de Controvérsias: uma vitória dos países em desenvolvimento

Para os Estados Unidos, o recurso ao MSC para tratar de temas envolvendo a China ainda impõe alguns desafios. Até a entrada desse país na OMC, em 2001, os Estados Unidos podiam se valer de instrumentos como ameaças de sanção e não renovação do status de nação mais favorecida. Após a acessão do país, os Estados Unidos passaram a ter de se limitar aos instrumentos previstos pelo sistema multilateral (bons ofícios, consultas, negociações, solução de controvérsias e arbitragem). Esse exercício requer melhor compreensão do mercado e do complexo sistema jurídico chineses.

O fato de os Estados Unidos terem questionado medidas as such – de forma às vezes falha –, e não casos concretos de violação ao Acordo TRIPS, chamou a atenção de vários analistas, que viram neste contencioso a intenção norte-americana de usar o mecanismo de solução de controvérsias para: i) entender melhor a China, por meio de explicações oficiais e registradas na OMC, que poderão ser utilizadas no futuro em possíveis novos casos; e ii) pressionar o país, o que é corroborado pelas declarações do então USTR e o dado de as duas partes terem chegado a um acordo com relação ao quarto pedido, ainda na fase de consultas18.

Teria havido, por parte dos Estados Unidos, instrumen-talização do contencioso para fazer avançar a difícil agenda de negociações bilaterais com a China, enquanto – pari passu – os dois países seguiam bilateralmente em negociações sobre outras questões também relativas a direitos de propriedade intelectual,

18 Conforme atesta o comunicado à imprensa do United States Trade Representative (USTR): “Over the past several years China has taken tangible steps to improve IPR protection and enforcement. However, we still see important gaps that need to be addressed. We will pursue this legal dispute in the WTO and will continue to work with China bilaterally on other important IPR issues”. Disponível em: <http://www.ustr.gov/archive/Document_Library/Press_Releases/2007/August/United_States_Requests_WTO_Panel_in_Case_Challenging_Deficiencies_in_Chinas_Intellectual_Property_Rights_Laws.html>. Acesso em: 14/7/2013.

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cujas consequências teriam impacto concreto e imediato na pro-teção e implementação desses direitos na China.

Para alguns, os Estados Unidos deveriam ter apresentado um caso mais geral, de descumprimento das regras de implementação dos direitos de propriedade intelectual como um todo. Na hipótese de o país perder e os problemas com a China persistirem, o Congresso norte-americano teria, então, uma justificativa para desenvolver novos instrumentos de pressão e proteção dos direitos de propriedade intelectual19. Mas em razão das várias dificuldades que cercam este contencioso (pulverização do mercado chinês; particularidades do Acordo TRIPS, que se concentra nas importações, e dificuldade de compreensão do sistema legal que rege a proteção à propriedade intelectual na China), os Estados Unidos preferiram delimitar o escopo do contencioso mediante seleção de algumas leis, normativas e regulamentos, e optando por questioná-las as such e não com base em casos concretos de violação.

6. críticAs Aos estAdos unidos

Em razão de o pedido III envolver o mecanismo de censura na China, a posição adotada pelos Estados Unidos sobre este ponto do contencioso foi alvo de críticas por parte de juristas e organizações defensoras dos direitos humanos20. Na ótica desses atores, ao optar pela vertente exclusivamente comercial, o país teria ignorado suas próprias teses tradicionalmente defendidas

19 Audiência na Comissão EUA – China do Congresso dos EUA. Disponível em: <http://www.uscc.gov/hearings/2006hearings/transcripts/june7_8/06_06_7_8_trans.pdf>. Acesso em: 14/7/2013.

20 Cf. T. Broude. It’s easily done. The China – Intellectual Property Rights Enforcement Dispute and the Freedom of Expression. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1492222>. Acesso em: 14/7/2013.

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“Enforcement” em TRIPS e no Mecanismo de Solução de Controvérsias: uma vitória dos países em desenvolvimento

em matéria de direitos humanos e liberdade de expressão. Essa estratégia teria levado o painel a admitir a legalidade da censura, se para o bem da ordem pública.

A decisão de revestir de “implementação” um caso de acesso a mercados também teria contribuído para angariar a má vontade de negociadores chineses e da opinião pública, em particular se levar-se em consideração que os Estados Unidos foram explícitos nessa sua intenção em contencioso estabelecido quase simultaneamente relativo ao Acordo-Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS, em inglês)21.

7. críticAs Ao pAinel

Conforme mencionado, uma das críticas mais veementes ao relatório tem origem nas associações de defesa da liberdade de expressão, pois o painel teria reduzido a censura a um fato jurídico e, assim, acabou por reconhecer a legitimidade deste tipo de medida, desde que para garantir a ordem pública22.

Ademais, teria confundido a diferenciação tradicional entre pedidos “as such” e “as applied”. Ironicamente, apesar de os Estados Unidos terem optado por questionar as medidas em si mesmas, de forma a evitar o campo minado da coleta de provas nessa área, o painel concluiu em mais de uma ocasião que o reclamante falhou ao não aduzir provas suficientes, em um caso que envolve matéria de interpretação e análise jurídica das normas, e não de fatos e casos concretos.

21 “China – Measures Affecting Trading Rights and Distribution Services for Certain Publications and Audiovisual Entertainment Products (DS 363)”.

22 “The right of a government ‘to control, or to prohibit’ the ‘circulation, presentation, or exhibition’ of any work or production clearly includes censorship for reasons of public order”. Relatório do painel, parágrafo 7.126.

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Erika Watanabe

Apesar de China e Estados Unidos terem proclamado vitória no contencioso, muitos avaliam que o maior perdedor teriam sido os próprios EUA.

8. os pontos positivos pArA os pAíses em desenvolvimento Para os países em desenvolvimento, o caso teve efeitos

menos perversos do que aqueles inicialmente imaginados. Na verdade, o relatório abraça várias das teses defendidas por esses países.

Corrobora essa afirmação o fato de o painel: i) ter evitado reabrir questões sensíveis para os PEDs, como o do delicado equilíbrio alcançado na Rodada Uruguai entre direitos e obrigações no Acordo TRIPS (artigos 1.1. e 41.5), considerado por China e várias terceiras partes, especialmente Brasil, um dos pontos sistêmicos mais importantes do contencioso; ii) ter endossado a tese defendida pelos PEDs de que o Acordo TRIPS constitui um minimum standard agreement, que estabelece os padrões mínimos a serem observados pelos Membros, e ter reconhecido as flexibilidades, autonomia e policy space negociados por esses países na Rodada Uruguai; iii) ter-se recusado a recorrer a linguagem já existente em acordos bi e plurilaterais, como o Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA); e iv) ter reiterado que os direitos de propriedade intelectual são direitos privados e como tal não caberia transferir aos Governos dos PEDs os riscos e ônus da proteção desses direitos. Em suma, pode-se afirmar que, de uma forma geral, o painel recusou-se a chancelar obrigações TRIPS-plus, colocando uma cunha no interesse de vários países em se valer do MSC para renegociar ou legitimar sua interpretação do que deveria ser o Acordo TRIPS. Como bem asseverou Peter Yu,

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“Enforcement” em TRIPS e no Mecanismo de Solução de Controvérsias: uma vitória dos países em desenvolvimento

the dispute shows vividly the dynamic nature of changes

in the international intellectual property system, the

failure of the one-size-fits-all model, and the need for

individualized paths for each WTO member. It also

raises questions concerning the attempts by the United

States and, for that matter, other developed countries –

to “kick[ ] away the ladder” that will help less developed

countries succeed23.

23 YU, Peter. The TRIPS Enforcement Dispute. In: Nebraska Law Review, vol. 89, ed. 4, agosto, 2011. Disponível em: <http://digitalcommons.unl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1072&context=nlr>. Acesso em: 14/7/2013.

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Chloe Rocha Young é Diplomata, formada, com láurea, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 2008. Ingressou no Instituto Rio Branco em 2010. Atualmente trabalha na área de solução de controvérsias da OMC, na Coordenação-Geral de Contenciosos.

Guilherme Lopes Leivas Leite é Diplomata, formado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e pela UPPA (França). É mestre em diplomacia pelo Instituto Rio Branco (IRBr), Prêmio Lafayette de Carvalho e Silva, Medalha de Bronze. Atualmente, está lotado na Coordenação-Geral de Contenciosos (CGC) e é Professor-Assistente da disciplina de Direito Internacional Público no IRBr.

“the lAdy doth protest too much, methinks”:

pedidos preliminAres no sistemA de solução de controvérsiAs dA omc

Chloe Rocha Young Guilherme Lopes Leivas Leite

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O Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) é reconhecido por sua eficiência no âmbito da OMC. A grande quantidade de contenciosos entre os mais variados

Membros, totalizando 462 até meados de 2013, com pouco mais de 18 anos, demonstra essa perspectiva. A título de comparação, na Corte Internacional de Justiça, em seus 67 anos, são 153 casos demandados, e no Tribunal de Direito do Mar, estabelecido um após o OSC, apenas 21. É difícil questionar o êxito do sistema.

O sucesso ocorreu devido, além da qualidade de seus julgados, à relativa rapidez das decisões proferidas pelo Órgão. Há prazo de sessenta dias para a realização das consultas (Artigo 4.7 do Entendimento de Solução de Controvérsias – ESC) seis meses para a decisão do painel (Artigo 12.8 do ESC) e noventa dias para o Órgão de Apelação (OA) (Artigo 17.5 do ESC). Prazos mais curtos podem, inclusive, ser estabelecidos, em casos excepcionais, conforme especificado nos Acordos pertinentes da OMC. Em média, um contencioso não deveria levar mais de dois anos entre o pedido de consultas e a adoção das recomendações pelo OSC após recurso ao Órgão de Apelação.

Esses prazos, no entanto, não têm sido respeitados, dada a crescente complexidade dos contenciosos, resultado da submissão pelos Membros de programas abrangentes e medidas que envolvem questões econômicas e científicas. Ademais, a demora em se chegar a um acordo na Rodada Doha tem levado os Membros a submeterem ao OSC questões sobre as quais não

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Chloe Rocha YoungGuilherme Lopes Leivas Leite

se chegou a um consenso negociado, ampliando o escopo de aplicação dos Acordos.

Sintomático notar que os contenciosos sobre aeronaves entre Brasil e Canadá (DS 46 e DS 70), iniciados em 1996, tiveram decisões do Órgão de Apelação de cerca de 70 páginas, enquanto os contenciosos também sobre aeronaves entre EUA e UE (DS 316 e DS 353) beiram as 700.

Para além da complexidade inerente de um sistema jurídico, o Sistema de Solução de Controvérsias da OMC tem sofrido certo desgaste, em particular no tocante à atuação das partes dentro de lacunas normativas ainda não sanadas no ESC. Uma prática cada vez mais recorrente tem sido a apresentação de pedidos preliminares, geralmente, em relação a questões procedimentais, feitos antes da primeira audiência entre as partes do painel.

Dentre as disputas completas1, houve 68 pedidos de preliminary rulings, ainda não sabido os dados sobre pedidos em disputas ativas. Apenas raramente, em 5 dos 68 casos, houve uma publicação antecipada da decisão do painel sobre a questão preliminar, antes da circulação do relatório final.

Nesse contexto, o Artigo 12.1 do ESC determina que “Panels shall follow the Working Procedures in Appendix 3 unless the panel decides otherwise after consulting the parties to the dispute”. O Apêndice 3 ao Entendimento apresenta sugestão de working procedures (procedimentos de trabalho), em que se definem as questões processuais e procedimentais do painel. Não há no texto de procedures sugerido qualquer menção a preliminary rulings.

1 Segundo relatórios de painéis e do Órgão de Apelação, disponíveis em: <www.wto.org>.

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“The lady doth protest too much, methinks”: pedidos preliminares no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

Sem regramento definido expressamente pelo ESC, os procedimentos preliminares têm sido definidos caso a caso pelos painéis, com base na flexibilidade conferida pelo Artigo 12.2 do Entendimento. Este dispositivo determina que: “Panel procedures should provide sufficient flexibility so as to ensure high-quality panel reports, while not unduly delaying the panel process”2. Embora a concepção de discussões preliminares em contenciosos siga esse desejo de flexibilidade e eficiência na solução, uma vez que mais bem definem os parâmetros de atuação do painel, seu uso crescente tem-se demonstrado de objetivo diverso. Recentemente, suspeita-se que pedidos preliminares têm sido usados como meio de protelação judicial, por vezes, inclusive, não se limitando a apenas questões procedimentais, mas também apresentando pontos referentes às argumentações substantivas das partes.

Painéis mais recentes têm previsto uma disposição específica em relação a preliminary rulings, mas essa previsão é genérica e apresenta mais a natureza de sugestão que obrigação como, por exemplo:

A party shall submit any request for a preliminary

ruling at the earliest possible opportunity and in any

event no later than in its first written submission to

the Panel. If the complainant requests such a ruling,

the defendant shall submit its response to the request

in its first written submission. If the defendant requests

such a ruling, the complainant shall submit its response

to the request prior to the first substantive meeting of

2 Artigo 12.2 (ESC).

694

Chloe Rocha YoungGuilherme Lopes Leivas Leite

the Panel, at a time to be determined by the Panel in

light of the request. Exceptions to this procedure shall be

granted upon a showing of good cause3.

Solicita-se que um pedido de preliminary ruling seja feito na primeira oportunidade possível e, no máximo, até a primeira petição de cada uma das partes. Não há qualquer menção a respeito do conteúdo desses pedidos, apenas em relação ao seu timing. Tampouco fica caracterizado que tipo de pedido seria cabível a título de preliminary ruling em vez de uma questão substantiva, de fundo.

Nesse sentido, é surpreendente a relativa inexistência de estudos a respeito do tema. Além de algumas poucas páginas descritivas em Dispute Settlement in the World Trade Organization4, não há discussões específicas a respeito do fenômeno. Assim, o presente artigo pretende problematizar a questão dos pedidos preliminares e discutir os principais temas e a necessidade de regulamentação.

1. conteúdo dos pedidos preliminAres e protelAção judiciAl

É um princípio de direito internacional geral que o órgão judi-cial decide, em última instância e com efeito vinculante às partes, dúvidas a respeito de sua própria jurisdição, a chamada compétence de la compétence5. Esse princípio está expresso no Artigo 36(10) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça6 e foi reconhecido di-

3 US-Steel Safeguards. Relatório do painel, par. 6.1. 4 David Palmeter & Petros C. Mavroidis, Dispute Settlement in the World Trade Organization:

practice and procedure. 2 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.5 Hugh Thrilway, “The International Court of Justice”. In: EVANS. International Law. 3 ed. Oxford:

Oxford University Press, 2010.6 Em caso de disputa sobre se a Corte tem ou não jurisdição, a Corte decidirá.

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“The lady doth protest too much, methinks”: pedidos preliminares no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

versas vezes pelo OSC. No caso “US – Softwood Lumber” (21.5), o Órgão de Apelação reconheceu explicitamente que: “It is rather for the Panel itself to determine the ambit of its jurisdiction”7.

Em particular, em duas disputas houve discussão a respeito da jurisdição do painel em relação a outros foros, ainda que a jurisdição imediata do painel não tenha sido questionada: Argentina – Poultry Anti-Dumping Duties (DS 241) e Mexico – Taxes on Soft Drinks (DS 308). No primeiro, a Argentina alegava o princípio do estoppel para impedir o Brasil de questionar a demanda que já havia sido discutida no foro judicial do Mercosul. O painel entendeu que o direito do Brasil não havia precluído8 e que não haveria quaisquer limites, em decorrência da decisão, à sua jurisdição. No segundo, o México alegara que já teria invocado a disputa contra os EUA em um tribunal arbitral no âmbito do NAFTA e solicitou, sob o argumento do forum non conveniens9, que o painel não julgasse o caso. O painel, porém, reconheceu sua jurisdição: “the Panel was satisfied that it had proper jurisdiction in this case and therefore the authority to consider and make rulings and recommendations on the matters raised by the parties”10. E que: “[a] panel would seem therefore not to be in a position to choose freely whether or not to exercise its jurisdiction. Were a panel to choose not to exercise its jurisdiction in a particular case, it would be failing to perform its duties”. Em ambos os casos, o painel decidiu por exercer sua jurisdição, não obstante a possibilidade de litispendência ou de conflito de jurisdições.

7 US – Softwood Lumber IV, Relatório do Órgão de Apelação, par. 73.8 Argentina – Poultry Anti-Dumping Duties, Relatório do Painel, par. 73.8.9 Forum non conveniens é um princípio de sistemas de common law em que um juiz pode declinar

um caso se houver outro que seja foro mais apropriado para resolver a disputa entre as partes.10 Mexico – Taxes on Soft Drinks, Relatório do Painel, par. 7.4.

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Chloe Rocha YoungGuilherme Lopes Leivas Leite

Assim, com a jurisdição dos painéis bem estabelecida, o questionamento presente na maioria dos pedidos de preliminary rulings está relacionado às exigências formais do pedido de painel, presentes no Artigo 6.2 do ESC:

The request for the establishment of a panel shall be

made in writing. It shall indicate whether consultations

were held, identify the specific measures at issue

and provide a brief summary of the legal basis of the

complaint sufficient to present the problem clearly. In

case the applicant requests the establishment of a panel

with other than standard terms of reference, the written

request shall include the proposed text of special terms

of reference.

Basicamente os pedidos são referentes à exigência da correta identificação das medidas questionadas e da base legal invocada para fundar a demanda, que formam o terms of reference do painel11, ou seja, definem a lide a ser discutida entre as partes. A importância do pedido de painel é a correta identificação das medidas, para que o demandado e as terceiras partes possam responder adequadamente as questões do demandante.

Não há, no entanto, uma obrigação, no pedido de painel, de avançar os argumentos jurídicos, nem de explicar como ou por que a medida viola a norma alegada12. O pedido de painel, segundo o OA, deve apenas permitir ao demandado entender a “nature and the gist of what is at issue”13.

Os questionamentos a respeito das formalidades do Artigo 6.2 do ESC são, de longe, os mais levantados em pedidos de

11 China – Raw Materials, Relatório do Órgão de Apelação, par. 219.12 Dominican Republic – Import and Sale of Cigarettes, Relatório do Órgão de Apelação, par. 121.13 US – Continued Zeroing, Relatório do Órgão de Apelação, par. 168.

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“The lady doth protest too much, methinks”: pedidos preliminares no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

preliminary ruling justamente por serem os mais fáceis de serem questionados. Isso porque constituem uma avaliação, em certa medida subjetiva, da capacidade do demandante em apresentar a essência (gist) do que está sendo questionado.

Houve casos em que o pedido de painel claramente estava deficiente. No pedido de painel dos EUA no caso China – Raw Materials (DS 394, 395 e 398), foram listadas mais de 80 medidas, muitas delas genéricas, e uma breve menção de que violavam cinco artigos do GATT e outros do Protocolo de Acessão da China à OMC. O painel decidiu, dada a extensão do questionamento, realizar reunião específica para a discussão do pedido de preliminary ruling, com a participação de terceiras partes e decisão preliminar. Em outros casos, os painéis deferiram às petições e à primeira reunião substantiva entre as partes, ou até decidiram de plano.

É interessante notar que a discussão sobre a jurisdição do painel de implementação, mais restrita, não gera tanta celeuma em etapas procedimentais, justamente por ser mais limitada. O Artigo 21.5 do ESC determina que seja formado um painel quando: “there is disagreement as to the existence or consistency with a covered agreement of measures taken to comply with the recommendations and rulings”. A análise de inclusão de uma medida como “measure taken to comply”, em razão de sua natureza, timing e efeitos14, toca significativamente mais questões substantivas, o que permite ao painel analisá-las de maneira abrangente. A vagueza e a suposta facilidade do “teste da essência” no caso do Artigo 6.2 do ESC, paradoxalmente, favorece uma separação que, muitas vezes, não é clara.

14 US – Zeroing ( Japan), Relatório do Painel de Implementação (Article 21.5 – EC), par. 7.61-7.62.

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Chloe Rocha YoungGuilherme Lopes Leivas Leite

O próprio OA reconheceu, no caso “US – Selected Customs Matters” (DS 315), que há um risco de que:

[…]This could lead to unnecessary litigation on a panel’s

terms of reference, as the responding party may choose

to contend at a preliminary stage that, in the light of the

substance of the legal provision on which a specific claim

is based, the measure identified in the panel request does

not fall within the panel’s terms of reference15.

Ou seja, abre-se a possibilidade de se questionar uma mesma medida duas vezes e de haver uma confusão entre a decisão de mérito e a decisão procedimental. A falta de regras claras impede o painel de avaliar de forma mais estrita os pedidos de preliminary ruling e a possível intenção protelatória do demandado.

Ademais, há limitações estruturais do sistema que favorecem o questionamento preliminar de questões em relação às discussões substantivas. O Órgão de Apelação apenas pode julgar questões de direito (conforme Artigo 17.6 do ESC), tal qual os sistemas de common law, mas não tem autoridade de reenviar (remand) a questão ao painel original para analisar as questões fáticas faltantes, tal qual sistemas de civil law. Assim, o afastamento preliminar de uma questão que posteriormente seja apelada e reincluída pelo Órgão de Apelação poderá não gerar efeito prático algum, uma vez que o Órgão não terá elementos fáticos suficientes para embasar sua decisão.

Os questionamentos do painel, em geral, não são tão evidentes e parecem serem usados, cada vez mais, com intenção protelatória. A falta de regras claras sobre o procedimento e a possibilidade de exclusão, de plano, de certas medidas ou de

15 US – Selected Customs Matters, Relatório do Órgão de Apelação, par. 136.

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“The lady doth protest too much, methinks”: pedidos preliminares no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

possíveis violações permite ao demandado ao menos ganhar tempo sem grandes custos. Esses fatos dão ensejo a um aumento significativo dos pedidos. Embora não haja dados públicos em relação às disputas correntes, quase 20% dos pedidos ocorreram nas disputas do último ano e meio.

2. pArticipAção de terceirAs pArtes nos procedimentos preliminAres

A indefinição quanto aos procedimentos de trabalho para pedidos preliminares e a discricionariedade dos painéis tem gerado abordagens variadas quanto à participação das terceiras partes nas discussões preliminares, em detrimento dos direitos garantidos pelo Artigo 10 do ESC.

Conforme a mencionada norma, terceiras partes não só devem ter acesso às petições apresentadas pelas partes e outras terceiras partes, até a primeira audiência do painel, como também têm garantido o direito legal de serem ouvidas e apresentarem petições escritas ao painel, como se pode verificar:

2. Any Member having a substantial interest in a matter

before a panel and having notified its interest to the DSB

(referred to in this Understanding as a “third party”)

shall have an opportunity to be heard by the panel

and to make written submissions to the panel. These

submissions shall also be given to the parties to the

dispute and shall be reflected in the panel report.

3. Third parties shall receive the submissions of the

parties to the dispute to the first meeting of the panel16.

16 Artigos 10.2 e 10.3 (ESC).

700

Chloe Rocha YoungGuilherme Lopes Leivas Leite

Ao avaliar a participação das terceiras partes, o Órgão de Apelação a qualificou como fundada em “direitos legais”, os quais teriam como contraponto a obrigação do painel em aceitar e considerar a referida manifestação. Em suas palavras,

[...] under the DSU, only Members who are parties to a

dispute, or who have notified their interest in becoming

third parties in such a dispute to the DSB, have a legal

right to make submissions to, and have a legal right

to have those submissions considered by, a panel.

Correlatively, a panel is obliged in law to accept and

give due consideration only to submissions made by the

parties and the third parties in a panel proceeding. These

are basic legal propositions […]17.

Cabe ressaltar que pedidos preliminares merecem especial atenção das terceiras partes pois, como mencionado, jogam luz aos questionamentos sobre a abrangência do contencioso, melhor definindo a moldura de atuação do painel por meio de esclarecimentos do seu pedido de abertura. Acresce-se, ainda, recente “inovação” das partes no procedimento, que por vezes trazem à discussão preliminar questões substantivas do caso, antecipando futuros argumentos.

Nesse contexto, faz-se premente o acesso das terceiras par-tes, incluindo a oportunidade de se manifestarem e, assim, serem ouvidas. Anteriormente, a praxis das partes era incluir o pedido preliminar dentre os pontos levantados em sua primeira petição, conferindo, assim, acesso às terceiras partes e consequente espa-ço para manifestarem-se por meio de suas respectivas petições. No entanto, hodiernamente, tem-se recorrido à antecipação das

17 US – Shrimp, Relatório do Órgão de Apelação, par.101. Ênfase nossa.

701

“The lady doth protest too much, methinks”: pedidos preliminares no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

discussões preliminares para momentos anteriores à primeira petição, com potencialidade de que o painel, no uso de sua discri-cionariedade na definição dos procedimentos, restrinja os men-cionados direitos legais, o que resulta em rationale questionável.

Nesse sentido, o painel de Canada – Wheat Exports and Grain Imports (DS 276), decidiu aplicar o Artigo 10.3 do ESC e circular o pedido entre as terceiras partes frente a pedido preliminar, justificando que:

[...] had Canada made its requests for preliminary rulings

in its first written submission, there would have been

no question that the third parties would have received

all written submissions made pursuant to Canada’s

requests for preliminary rulings. We do not consider that

the mere fact that Canada in this case provided the Panel

with prompt notice of its request in order to permit

the Panel to make an early ruling justifies denying the

third parties access to the information contained in the

parties’ preliminary written submissions18.

Reforçando o argumento do amplo acesso das terceiras partes a todas as petições apresentadas, como direito legal, o Órgão de Apelação, em “US – FSC (21.5)” (DS 108), defendeu que:

Article 10.3 does not say that third parties shall receive

‘the first submissions’ of the parties, but rather that

they shall receive ‘the submissions’ of the parties. The

number of submissions that third parties is not stated.

Rather, Article 10.3 defines the submissions that third

18 Canada – Wheat Exports and Grain Imports, Relatório do Painel, par. 6.6.

702

Chloe Rocha YoungGuilherme Lopes Leivas Leite

parties are entitled to receive by reference to a specific

step in the proceedings – the first meeting of the panel.

It follows, in our view, that, under this provision, third

parties must be given all of the submissions that have

been made by the parties to the panel up to the first

meeting of the panel, irrespective of the number of such

submissions which are made […]19.

O referido acesso não faria sentido jurídico se não houvesse a previsão correlata da oportunidade da terceira parte em manifestar-se e ser ouvida. Uma vez que são Membros da OMC com interesse substancial na discussão do contencioso, o Artigo 10.3 do ESC garante que sua participação seja completa, de maneira a beneficiar painéis com suas contribuições à interpretação dos dispositivos legais, geralmente de interesse sistêmico. Se às terceiras partes é negado tanto o acesso quanto a possibilidade de manifestação, tal participação torna-se deficiente.

Novamente, o OA, em “US – FSC (21.5)” (DS 108) manteve ênfase conferida à oportunidade das terceiras partes em manifestar-se e serem ouvidas, definida pelo Artigo 10.2 do ESC e também garantida em todos os procedimentos até a primeira audiência, conforme o Artigo 10.3:

Our interpretation of Article 10.3 is also consistent with

the context of that provision. Article 10.1 directs panels

‘fully’ to take into account the interests of Members other

than the parties to the dispute, and Article 10.2 requires

panels to grant to third parties ‘an opportunity to be

19 US – FSC 21.5, Relatório do Órgão de Apelação, par. 245.

703

“The lady doth protest too much, methinks”: pedidos preliminares no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

heard’. Article 10.3 ensures that, up to a defined stage

in the panel proceedings, third parties can participate

fully in the proceedings, on the basis of the same written

submissions as the parties themselves20.

Cabe ressaltar que negar os referidos direitos, mesmo que dentro de um procedimento não legalmente previsto como o preliminar, sujeito à discricionariedade do painel, vai de encontro também com o Apêndice 3 do ESC, que determina que o painel deve respeitar as provisões legais do ESC relevantes, o que inclui os direitos de terceiras partes.

Uma vez que terceiras partes não podem apelar decisões do painel ou do OA, a jurisprudência existente a respeito de direitos de terceiras partes encontra-se quase que totalmente em painéis. No caso acima (“US – FSC”), as questões sobre direitos de terceira parte foram apeladas pela União Europeia, demandante no caso. Assim, é mais difícil manter uma uniformidade jurisprudencial a respeito do tema.

A insegurança quanto aos procedimentos preliminares, em especial os questionamentos quanto à participação das terceiras partes em tais procedimentos, portanto, corre sério risco de ignorar jurisprudência desenvolvida pelo Órgão de Apelação. No entanto, essa rationale jurídica, embora de grande importância no âmbito do OSC, não supre por completo as lacunas do ESC em referência aos procedimentos para pedidos preliminares, o que caberia aos Membros desenvolver em eventual reforma do instrumento.

20 US – FSC 21.5, Relatório do Órgão de Apelação, par. 249. Ênfase nossa.

704

Chloe Rocha YoungGuilherme Lopes Leivas Leite

3. conclusão: “much dsu ABout nothing”A crescente complexidade dos contenciosos da OMC não

foi acompanhada de um aperfeiçoamento de suas disposições procedimentais, o que tem causado, como visto, insegurança e procedimentos que podem violar normas importantes do ESC. O grupo negociador do ESC (DSU Review), iniciado em 1997, ainda não foi exitoso em decidir por mudanças nas regras que permitam preencher as lacunas do sistema.

A fim de suprir tais lacunas, o Brasil apresentou ao OSC21, em 28 de janeiro de 2013, manifestação a respeito dos pedidos de preliminary ruling com as principais preocupações que podem pautar uma discussão futura de maior regulamentação do ins-tituto.

Em primeiro lugar, o Brasil apontou que o uso indiscriminado desses procedimentos podem gerar efeitos sistêmicos graves, uma vez que prejudicam a eficiência e a rapidez dos painéis e dificultam a revisão pelo Órgão de Apelação, muitas vezes tornando suas deci-sões sem efeito. Essa falta de regulamentação restringe, no limite, a própria revisão multilateral da solução de controvérsias e, por sua crescente complexificação, cria uma barreira aos países em desenvolvimento para acessarem o sistema.

Em segundo lugar, o Brasil afirmou que, embora possam tratar de temas procedimentais, jurisdição dos painéis, questões sobre provas etc., as normas questionadas em preliminary rulings estão no ESC, que é um covered agreement da OMC, portanto, tem a mesma validade que as demais normas. Devem, assim, ter a mesma aplicação, o mesmo grau de eficiência e as mesmas garantias quanto ao devido processo legal, bem como a ampla participação de terceiras partes.

21 A manifestação encontra-se anexa ao final deste artigo.

705

“The lady doth protest too much, methinks”: pedidos preliminares no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

Estados Unidos, Canadá, União Europeia, Austrália e China concordaram com a necessidade de que terceiras partes participem dos procedimentos de preliminary rulings e que haja ampla aceitação de maior discussão do tema.

Os riscos de desgaste do sistema pelo uso indiscriminado de pedidos de preliminary rulings, como visto, são significativos. As possibilidades de protelação e exclusão de análise substantiva de medidas incentivam seu uso pelos demandados, e, algumas vezes, pelos demandantes. O custo de oportunidade para a parte é muito baixo, mas as implicações sistêmicas são enormes. Criou-se, na prática, uma etapa de pré-admissibilidade, em que o demandado pode questionar a validade da demanda antes de discuti-la substancialmente. Ordenamentos jurídicos que dispõem desse sistema têm ampla regulação procedimental e muitas vezes contam com juízes que analisam apenas a admissibilidade, o Tribunal Penal Internacional é exemplo de jurisdição internacional com essa estrutura. O juízo preliminar, criado sem maiores regras, de maneira ad hoc e pela vontade do painel e das partes, cria um peso no sistema que prejudica sua confiabilidade.

É possível que não se possa conter a crescente complexificação do Sistema de Solução de Controvérsias da OMC, mas devem-se controlar as mudanças para que elas garantam os direitos plenos dos Membros e a manutenção da eficiência e da confiabilidade do sistema, o que, em última instância, mantêm sua utilização pelos Membros.

4. Anexo: stAtement By BrAzil At the dsB meeting – jAnuAry 28, 2013

1. Brazil inserted an item in the DSB’s Agenda under “other business” in order to draw attention to a systemic

706

Chloe Rocha YoungGuilherme Lopes Leivas Leite

issue relating to preliminary ruling requests in panel proceedings. Specifically and taking into consideration the growing number of such requests, Brazil wishes to express its concern over the lack of uniformity with which they have been dealt recently.

2. Preliminary rulings are not mentioned textually in the DSB. It is understood, however, that panels may accept such requests regarding procedural aspects by the flexibility with which they are afforded under Article 12 of the DSU. Parties to a dispute may also agree to include such possibility in their Working Procedures. The scope of such requests seems to be, from recent practice, increasingly flexible. This absence of specific provisions on preliminary rulings is allowing for a great margin of discretion in two important and inter-related aspects: the subject-matter of the claims put forth and the timing of the requests.

3. The first point Brazil wishes to raise is that an indiscrimi-nate use of such procedures, without proper rules, may cause important systemic consequences that impact the dispute settlement proceedings as a whole. The over-ar-ching effects may, among other things, hinder the expe-diency and efficiency of panel proceedings, make Appellate Body review more difficult, sometimes moot, limit third party rights and the multilateral review of the settlement of disputes and constitute, by the complexification of the system, a barrier for developing countries to access the dispute settlement system.

4. The second issue pertaining to preliminary rulings regards the procedure itself. Brazil wishes to bring attention to the fact that provisions on jurisdictional

707

“The lady doth protest too much, methinks”: pedidos preliminares no Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

and procedural matters such as terms of reference of a dispute, function of the panels, formalities for their establishment and evidence-gathering issues, usually dealt with in the “preliminary” phase constitute nevertheless relevant provisions of the DSU. No matter the stage of the proceedings these issues are raised, there will be a controversy as to the application of a provision in a covered agreement, and their proper interpretation and application is the primary function of the Panels, just as any other issue raised in a dispute.

5. In this sense, preliminary rulings have the same effects as any other decision made by the panel and should abide by the same rules and principles set forth in the DSU. The aforementioned flexibility accorded to the panel and the parties to a dispute cannot be used in a manner that contradicts any provision of the DSU or any of the covered agreements or that undermines the multilateral review of the procedures or third party rights.

6. Brazil wishes to emphasize that it is not against preliminary ruling requests as such. What it is saying is that preliminary rulings must not constitute a means to procrastinate the proceedings or an opportunity for parties to advance arguments on substantive matters or subjects that could otherwise be presented in their Substantive Written Submissions and discussed in the Meetings. Moreover, there are occasions where procedural matters of fundamental relevance are decided in these initial steps of the panel proceedings. That is precisely why, in Brazil’s view, these requests cannot be overused and must conform to the rules and principles of this Organization’s dispute settlement system.

709

Formada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Pós-Graduação em Direito das Comunidades Europeias e Mestrado em Direito Internacional Público pela Universidade de Assas, Paris II. Diplomata de carreira, atuou na Divisão do Mercosul do Ministério das Relações Exteriores, na Delegação do Brasil junto à ALADI e o Mercosul, na Delegação junto à UNESCO, na Embaixada do Brasil em Quito e na Secretaria-Geral da UNASUL em Quito. Atualmente, ocupa o cargo de Coordenadora-Geral de Contenciosos do Itamaraty.

por fim, AlgumAs notAs soBre A revisão do

sistemA de solução de controvérsiAs dA omc

Daniela Arruda Benjamin

711

Como fica evidente ao longo da presente publicação, o Sistema de Solução de Controvérsias (SSC) da OMC pode ser qualificado, sem sombra de dúvida, como uma história

de sucesso. Sua utilização recorrente, a qualidade e consistência de suas decisões e os elevados índices de cumprimento conferiram ao sistema uma singularidade e importância pouco vistas no campo do direito internacional. Ao longo dos anos, o SSC contribuiu para o desenvolvimento paulatino de um corpus juris na área do comércio internacional que se revelou instrumental para o fortalecimento do sistema multilateral de comércio e da própria OMC.

Não há como deixar de reconhecer, no entanto, que, em que pese seus inúmeros méritos, o sistema apresenta algumas lacunas e deficiências. Muitas delas são de natureza pontual. Revelaram-se progressivamente, na medida em que o SSC e o alcance de seus dispositivos – resultado de uma mescla, nem sempre coerente, de princípios de “common law” com “civil law” – foram sendo testados. Alguns temas, por outro lado, são mais complexos e revelam visões distintas sobre o alcance do mecanismo, cujo equacionamento não é de fácil solução. Em seu conjunto, a despeito da avaliação geral de que o sistema funciona bem, essas questões têm motivado já há algum tempo debates sobre a necessidade de uma reforma do sistema.

A ideia de promover ajustes pontuais no Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC) não é nova. Decorre naturalmente do

Daniela Arruda Benjamin

712

caráter abrangente e evolutivo do instrumento adotado em 1994, pensado como um esforço de aperfeiçoamento do sistema existente durante o período do GATT1, que sempre se pretendeu contínuo. Nesse sentido, antes mesmo do início do funcionamento do mecanismo, os Estados-Membros já haviam decidido que:

a full review of dispute settlement rules and procedures

under the World Trade Organization …. shall be

completed within four years after its entry into force,

and a decision shall be taken on the occasion of the first

meeting at Ministerial level after the completion of the

review, whether to continue, modify or terminate such

dispute settlement rules and procedures2.

As negociações, iniciadas formalmente em 1997, têm propiciado profícuo intercâmbio de ideias sobre as fortalezas e debilidades do sistema. Partiram da premissa, válida até hoje, de que o exercício deveria limitar-se a aperfeiçoar e a esclarecer

1 De acordo com EVANS, David & DE TARSO PEREIRA, Celso, “DSU Review: a View from Inside” in YERXA, RUFUS & WILSON Bruce (Ed). “Key Issues in WTO Dispute Settlement The First 10 Years” (pp. 251-258): “at the launch of the Uruguay Round in 1986 there was a general recognition that the GATT system for settling disputes needed strengthening…The result was the Understanding on Rules and Procedures Governing the Settlement of Disputes (the DSU), which was adopted in 1994 at the end of the Uruguay Round and as part of the single undertaking…But the changes were made in the light of 40 years of GATT experience” (pp. 251-252). Para detalhes sobre as origens e funcionamento do sistema de solução de controvérsias do GATT, a partir dos artigos XXII e XXIII do GATT 47 ver Thomas A. Zimmermann. “Negotiating the Review of the WTO Dispute Settlement Understanding” (pp. 39-54) & Julio Lacarte Muró, “The First Years of the Appellate Body and the WTO Dispute Settlement System: A Historical Perspective” in JANOW, Merit E; DONALDSON Victoria, YANOVICH Alan (ED) “The WTO: Governance, Dispute Settlement& Developing, pp. 323-325. Vide, igualmente, sobre o Capítulo VIII da Carta de Havana que regularia as divergências no âmbito da Organização Internacional do Comércio (que não chegou a ser criada), WEISS Friedl (Ed). “Improving WTO Dispute Settlement Procedures. Issues&Lessons from the Practice of Other International Courts & Tribunals” (pp. 20-21) Vários dos elementos que conformam o SSC teriam se inspirado nos dispositivos Carta de Havana, temperados pela prática posterior do GATT-47.

2 Decisão sobre a Aplicação e Revisão do Entendimento sobre as Normas e Procedimentos sobre Solução de Diferenças, 1994 [MTN/FA III-9] in http://www.jus.uio.no/lm/wta.1994/iii9.html.

Por fim, algumas notas sobre a revisão do Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

713

aspectos do funcionamento do sistema, sem promover mudanças estruturais que pudessem afetar a imparcialidade e consistência que lhe conferiram reputação e prestígio.

Desde 2001, com base no mandato conferido pela Conferência Ministerial de Doha3, o tema vem sendo debatido regularmente em encontros formais e informais na OMC4, com a participação ativa de grande número dos Estados-Membros, com resultados ainda pouco conclusivos5. Apesar da indiscutível importância atribuída pelos Estados-Membros da OMC ao funcionamento do SSC, o alcance preciso dos ajustes a serem feitos ainda não está claro.

As propostas de reforma apresentadas até o momento afetam ampla gama de dispositivos do Entendimento6 e estão relacionadas, basicamente, aos seguintes temas: (i) ampliação

3 O prazo inicial estabelecido em 1994 para a conclusão da revisão tem sido prorrogado de forma recorrente De acordo com o parágrafo 30 da Declaração Ministerial de Doha (2001), “The negotiations should be based on the work done thus far as well as any additional proposals by members, and aim to agree on improvements and clarifications not later than May 2003, at which time we will take steps to ensure that the results enter into force as soon as possible thereafter”. Em Hong Kong, 4 anos mais tarde, os Estados-Membros decidiram dar continuidade às discussões, sem estabelecer, contudo, novo prazo para sua conclusão.

4 Para a condução dos debates para revisão do ESC foi estabelecido, no âmbito do Órgão de Solução de Controvérsias, uma Sessão Especial que, além de reuniões formais, tem promovido rodada de consultas informais entre os Estados-Membros interessados na reforma.

5 Grande parte da dificuldade em lograr avanços concretos está relacionada à percepção geral de que o Sistema atual funciona bem e que, portanto, não há urgência em promover uma reforma, o que diminui o incentivo para aceitar compromissos que poderiam afetar negativamente o funcionamento do mecanismo. Além disso, muitas das propostas foram pensadas a raiz de problemas concretos surgidos em uma controvérsia específica, o que, às vezes, dificulta um debate objetivo.

6 Em relatório apresentado em 6 de junho de 2003 ao Comitê de Negociações Comerciais, o Presidente da Sessão Especial do OSC estabelecida para coordenar as negociações contabilizava 42 propostas, apresentadas por diferentes Estados-Membros. Nos últimos dez anos, novas contribuições foram acrescentadas à lista e têm sido objeto de análise e debate. A intenção do atual Presidente da Sessão Especial é, com base nesse histórico e nas posições expressadas pelos Estados-Membros ao longo dos anos, imprimir nova dinâmica às negociações. Os 26 relatórios dos diferentes Presidentes da Sessão Especial do OSC sobre o processo negociador estão disponíveis no seguinte endereço eletrônico <https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/FE_Search/FE_S_S006.aspx?Query=(+%40Symbol%3d+tn%2fds%2f*+and+(%40Title%3d+report+and+chairman))&Language=ENGLISH&Context=FomerScriptedSearch&languageUIChanged=true>.

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714

dos direitos de terceiras partes nas diferentes instâncias do procedimento; (ii) introdução, na fase de apelação, de etapa revisão preliminar do relatório do Órgão de Apelação antes de sua circulação oficial; (iii) maior precisão sobre as etapas procedimentais pós-adoção dos Relatórios (“sequencing”); (iv) tratamento mais favorável a países em desenvolvimento; (v) prazos; (vi) amicus curiae; (vi) aperfeiçoamento dos mecanismos estabelecidos no entendimento para induzir implementação (retaliação e compensação)7; (vii) flexibilidade e controle dos Estados-Membros sobre o funcionamento do sistema; (viii) transparência; (ix) conformação dos Painéis8 e (x) tratamento de informação confidencial.

Muitas das propostas apontam simplesmente a consolidar práticas que foram sendo desenvolvidas ao longo do tempo e devem permitir maior sistematização dos procedimentos, como no que tange à participação de terceiras partes e ao tema de “sequencing”. Outras tratam de questões políticas sensíveis como o controle dos Estados-Membros sobre os

7 Uma das críticas recorrentes ao funcionamento do ESC é que o mecanismo não oferece remédios suficientemente efetivos para compensar eventuais danos sofridos com a violação das regras da OMC. Por um lado, o ESC limita-se a determinar, em seu artigo 19.2, que a Parte tem a obrigação de retirar ou adequar a medida condenada, sem qualquer efeito retroativo, ou previsão de indenização. Medidas cautelares tampouco são previstas. Por outro lado, na hipótese de descumprimento da decisão do OSC, os instrumentos previstos para induzir a parte recalcitrante a adotar alguma medida (compensação e retaliação) são considerados complexos e de difícil instrumentalização, particularmente para países de menor desenvolvimento relativo. Boa parte das propostas de revisão do ESC envolve, nesse contexto, medidas voltadas a ampliar os instrumentos à disposição dos Estados-Membros para induzir o cumprimento das decisões do ESC. Muitas das dificuldades nessa área, não obstante, são inerentes à natureza de instrumento de direito internacional do ESC, cuja implementação depende, em última instância, de uma decisão soberana do Estado afetado.

8 Grupo Especial, consoante a versão oficial, em língua portuguesa, do texto do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias, disponível na página do Ministério das Relações Exteriores <(http://www.itamaraty.gov.br/o-ministerio/conheca-o-ministerio/tecnologicos/cgc/solucao-de-controversias/mais-informacoes/texto-dos-acordos-da-omc-portugues/2-anexo-2-entendimento-relativo-as-normas-e-procedimentos-sobre-solucao-de-controversias/view)>. O termo painel, no entanto, encontra-se consagrado pela prática e será utilizado ao longo do artigo para referir-se aos Grupos Especiais.

Por fim, algumas notas sobre a revisão do Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

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procedimentos e o tratamento especial e diferenciado a países em desenvolvimento, que ainda enfrentam dificuldades para utilizar o sistema.

Algumas, no entanto, implicam inovações importantes, que poderiam afetar o equilíbrio entre as dimensões jurídicas e diplomáticas que caracteriza o atual sistema9. Muitas, com efeito, visam a reforçar o caráter jurisdicional do mecanismo: redução de prazos, maior automaticidade na seleção de painelistas (que passariam a ser escolhido dentre um grupo preestabelecido pelo Secretariado para garantir maior coerência, qualidade e uniformidade dos painéis); regras mais precisas para a fase de implementação da decisão (relativas, por exemplo, à sequência dos procedimentos e ao seguimento multilateral das soluções mutuamente satisfatória acordadas pelas partes) e, sobretudo, mecanismos mais contundentes para incentivar o cumprimento das decisões, que vão desde a suspensão do direito de presidir instâncias da OMC até pagamento de compensações pecuniárias (já previstas no atual mecanismo, mas pouco utilizadas). Várias propostas também procuram facilitar o recurso à retaliação, inclusive para possibilitar que terceiros sejam autorizados a retaliar em nome da parte na controvérsia afetada pelo não cumprimento da decisão.

Outras iniciativas vão em sentido contrário. Pretendem conferir aos Estados-Membros maior flexibilidade para controlar o procedimento – em termos de prazos e regras processuais – e implementar as decisões. Uma das propostas, em particular,

9 De acordo com Zimmerman op.cit p. 57, desde a época do GATT é evidente que os Estados--Membros oscilam entre o interesse em contar com um sistema de solução de controvérsias efetivo, baseado na aplicação de regras, e o desejo de ter maior flexibilidade na adoção de políticas comerciais, o que explicaria, ao longo dos anos, a alternância de períodos caracterizados pelo maior legalismo com períodos em que prevalecia o “power play” e acaba se refletindo nas discussões sobre a atual reforma do sistema.

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permitiria que as partes na controvérsia, de comum acordo, decidam não adotar parte das decisões.

Apesar da aparente dificuldade em alcançar consenso em torno de um conjunto de ideias que permitiriam concluir o processo de revisão que já dura 16 anos, as razões que motivaram, desde sempre, o exercício continuam válidas. Independentemente dos resultados das discussões em curso sobre o futuro da Rodada Doha e da própria OMC, é de se esperar que o SSC continue a ser acionado com frequência e, nesse sentido, passe a ter um papel ainda maior na definição do alcance das regras à disposição dos Estados-Membros para promoverem seus interesses comerciais.

O aperfeiçoamento do SSC, sob esse prisma, mais do que uma opção, torna-se condição sine qua non para que ele possa continuar operando de forma eficaz e consistente. A capacidade do mecanismo de absorver um maior volume de casos de crescente complexidade – muitos dos quais envolvem, cada vez mais, temas politicamente sensíveis, com impacto sobre o campo de atuação dos Estados-Membros e o equilíbrio de direitos e obrigações consagrados nos acordos – dependerá em muito da possibilidade de equacionar as deficiências que tem crescentemente afetado seu funcionamento10.

Nesse contexto, parece evidente, que o sistema de solução de controvérsias só teria a beneficiar-se com a intensificação dos esforços para revisão do ESC e que, em essência, o debate

10 Não se descarta igualmente que o SSC continue tendo, como no passado, certa influência sobre as negociações futuras sobre o alcance dos compromissos assumidos pelas Partes na OMC. Em que pese seu objetivo central de solucionar divergências pontuais entre os Estados-Membros, com base nos acordos existentes, não raro a interpretação de determinados dispositivos consagrada pelos órgãos adjudicatórios serviram de baliza para os negociadores na definição de novos compromissos, os quais, uma vez adotados, naturalmente se beneficiarão de um sistema de solução de controvérsia funcionando de forma eficaz.

Por fim, algumas notas sobre a revisão do Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

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sobre o assunto deveria conduzir a uma reflexão sobre como reforçar sua efetividade, em pelo menos dois aspectos centrais comentados a seguir.

1. clAridAde e previsiBilidAde

Para que o sistema, possa funcionar a contento é mister contar com regras de procedimento mais claras. O ESC em si é relativamente lacônico sobre muitas dessas questões. Contém apenas algumas diretrizes gerais. No caso dos Painéis, os procedimentos são definidos com base no modelo estabelecido no Anexo III do ESC. O OA, por sua vez, até pelo ineditismo do estabelecimento de uma instância de revisão no âmbito de mecanismos internacionais de solução de controvérsias, foi autorizado, pelo ESC, a adotar suas próprias regras de procedimento11.

De acordo com McRae12, muitas das premissas sobre as quais têm funcionado os Painéis e o OA em especial são construções próprias13, baseadas na experiência do GATT e desenvolvidas pela prática, sem maior referência a modelos ou regras procedimentais adotadas em outros tribunais internacionais. Mesmo princípios e institutos usuais do direito processual, como

11 WT/AB/WP/6, de 16/08/2010, Disponível em: <http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/ab_procedures_e.htm>.

12 McRAE, Donald. “What is The Future of WTO Dispute Settlement?”, p. 14.13 Em linhas gerais, o procedimento envolve intercâmbio de petições escritas, audiências,

intervenções orais e debates, respeitando o princípio do contraditório. No exercício de suas funções, os órgãos adjudicatórios podem efetuar perguntas às partes, buscar informações e assessoramento técnico. Um calendário, estabelecendo as diferentes etapas e os prazos para realização das diferentes etapas é estabelecido prévio ao início do procedimento ante os órgãos adjudicatórios.

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“ônus da prova”14, “economia processual”15 ou prima facie case16 no âmbito da OMC, ganharam uma dimensão particular, nem sempre fácil de apreender. A medida que os casos submetidos ao mecanismo se tornam mais complexos e volumosos, no entanto, clareza e previsibilidade serão fundamentais para garantir que todos os Estados-Membros estejam aptos, em igualdades de condições, a utilizar o mecanismo, sem perder-se em meandros e tecnicalidades procedimentais.

Como mencionado anteriormente, muitas das propostas em debate no contexto da revisão têm justamente essa preocupação

14 Técnica processual que permite identificar qual parte na controvérsia deve comprovar determinadas alegações de fato e de direito. Contempla tanto o ônus de alegar quanto o ônus de apresentar evidência. Como regra geral, na OMC, a parte que alega algo tem o ônus de demonstrar que suas alegações têm fundamento (actori incumbit probatio). Em alguns casos, os órgãos adjudicatórios admitem que possa haver uma “reversão do ônus da prova”, cabendo à outra parte provar que as alegações contra ela não são verdadeiras. Salvo, no entanto, em alguns casos específicos, como na invocação de algumas exceções, os parâmetros de análise (standard of review) das provas não são claros, isto é, não se sabe exatamente em que circunstâncias essa reversão ocorre. Formalmente, segundo a jurisprudência firmada no caso US-Wool Shirts and Blouses (DS33) se “[a] party adduces sufficiente evidence to raise a presumption that what is claimed is true, the burden the shifts to the other party, who will fail unless it adduces sufficient evidence to rebut the presumption”. (Relatório do OA parágrafo 14). O standard, no entanto, para definir se evidências suficientes foram apresentadas, não é claro. A decisão é feita a posteriori pelo Painel ou pelo OA, em função do respectivo convencimento ante as provas apresentadas.

15 O princípio da economia processual permite que os órgãos adjudicatórios se furtem a avaliar todas os alegações, de fato e de direito, aduzidas pelas partes sempre e quando a análise prévia de outros pontos defendidos pela Parte for considerada suficiente para resolver o caso.

16 Instituto de direito processual, comum nos sistemas da common law. Determina que a parte que inicia uma disputa tem o ônus de demonstrar de saída, isto é prima facie, que reuniu evidências fáticas e legais suficientes para fundamentar as alegações que apresenta. Em alguns sistemas legais, o estabelecimento de um caso prima facie é considerado condição sine qua non para o início do procedimento legal. Em outros, uma vez estabelecido e na ausência de contestação, um caso prima facie é tido como prova suficiente do alegado. Trata-se, em geral, de uma presunção legal. A outra parte na controvérsia pode refutar a evidência apresentada e/ou apresentar o que se chama uma defesa afirmativa, levando o caso para julgamento. Os órgãos adjudicatórios da OMC referem-se ao instituto da prima facie com frequência considerável, tanto para embasar decisões sobre ônus da prova, como para desestimar alegações. Na prática, contudo, como não existem regras claras na OMC sobre o alcance do instituto, o valor das provas apresentadas ou indicações das circunstâncias que determinam a alteração do ônus da prova, o alcance procedimento do instituto é limitado. Opera basicamente como elemento subjetivo de convicção de painelistas e do Orgão de Apelação (que se revela a posteriori), de que haveria uma presunção de que o que foi alegado por uma parte é verdadeiro.

Por fim, algumas notas sobre a revisão do Sistema de Solução de Controvérsias da OMC

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de conferir maior previsibilidade ao mecanismo: definição mais precisa da sequência dos procedimentos pós-decisão17; ajustes de prazos e definição de casos e limites temporais para sua suspensão; exigências de notificações. Tais medidas, se adotadas, já representariam, por si só, um salto de qualidade importante.

Seria recomendável, no entanto, um esforço adicional para definir de forma mais clara os direitos processuais das partes em uma controvérsia, a fim de garantir o pleno respeito ao devido processo legal. Atualmente, as poucas e esparsas referências no ESC e na jurisprudência – de resto não muito consistente – sobre temas procedimentais não são de muita ajuda. Além disso, muito em função da preocupação, louvável, de evitar que problemas nessa área levem a um non liquet com custos adicionais para os Estados-Partes, flexibilidades na aplicação das poucas regras existentes são frequentes.

Essa prática, não obstante, está longe de garantir a necessária fluidez dos procedimentos. Ao contrário, parece estar contribuindo para torná-los ainda mais longos e complexos. A médio e longo prazo, mantida a tendência atual de elevação do número de casos submetidos a painéis e OA, a inexistência de regras procedimentais claras – que permitam, inclusive, de maneira transparente e expedita, desestimar um caso por falhas procedimentais grave – além de afetar o devido processo legal

17 A falta de claridade sobre a possibilidade de invocar, sem respeito a uma sequência específica, os procedimentos previstos nos artigos 21.5 (que prevê a possibilidade de se convocar Painel na hipótese de divergências quanto ao efetivo cumprimento da decisão do ESC) e 22 (que autoriza a Parte interessada a solicitar ao OSC autorização para suspender concessões em relação à Parte que não tiver cumprido a decisão) suscitou divergências entre os Estados-Membros. Boa parte do conjunto inicial de propostas apresentadas no âmbito da revisão buscava equacionar esse problema que foi sendo paulatinamente amenizado, na prática, via acordo subsequente entre as partes, cujo modelo deverá pautar as discussões sobre a revisão do ESC na matéria. Em geral, prevalece o entendimento de que caso seja iniciado o procedimento previsto no artigo 21.5, as partes devem abster-se de solicitar suspensão de concessões, até a decisão do painel.

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e, consequentemente, a consistência do procedimento –, pode levar a uma paralisia do sistema com um todo, em detrimento do interesse geral.

Não se trata de tema menor. Em muitos casos, os efeitos de regras procedimentais não se limitam apenas ao rito em si. A aplicação do princípio da economia processual pelos órgãos adjudicatórios da OSC é um exemplo. Ao permitir que a análise das questões aduzidas pelas partes em um caso específico seja abreviada, sob o argumento de que o exame de pontos precedentes já permitiria solucionar o caso em espécie, a aplicação do princípio impediu que questões jurídicas de interesse sistêmico, suscitadas nos diferentes contenciosos, fossem analisadas. Tendo presente a “autoridade” que emana das decisões do OSC18, essa análise, tivesse sido feita, teria facilitado a preparação de casos subsequentes e mesmo desestimado a apresentação de outros19.

Muitos dos problemas de cunho procedimental que se verificam atualmente são de natureza pontual. Poderiam, nesse sentido, ser resolvidos mediante a adoção de medidas específicas, de caráter prático. Algumas poderiam, inclusive, ser implementadas independentemente da conclusão de uma

18 Formalmente, as decisões do OSC não têm efeito de coisa julgada erga omnes. Não obstante, são frequentemente citadas como precedente, adquirindo um alcance e uma autoridade que extrapola os limites do caso específico.

19 Em termos práticos, o constante recurso ao princípio da economia processual gera outro problema de difícil equacionamento. De acordo com as regras do ESC, o mandato do OA limita-se à avaliação questões de direito e a interpretação jurídica dada pelo painel aos fatos sub judice. A análise dos fatos envolvidos na controvérsia é competência exclusiva do painel. Nesse contexto, a ausência de uma avaliação completa dos fatos pelo painel, por economia processual, que não possa ser sanada pelo OA pode levar facilmente (e de fato tem levado) a uma situação de non liquet, em contradição com os objetivos do ESC de promover uma rápida solução das divergências entre os Estados-Membros, hipótese de o OA reverter a decisão do painel nas questões efetivamente avaliadas. A fim de tentar equacionar o problema, propostas apresentadas no âmbito do processo de reforma do ESC preveem a possibilidade de que o OA possa reconvocar o painel original para completar a análise dos fatos (remand). Falta definir como, na prática, isso ocorreria.

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reforma formal do ESC, via decisão do OSC20 ou reforma das regras de procedimento dos painéis e do OA.

A título ilustrativo, mencionam-se três temas que mereceriam atenção especial:

Em primeiro lugar, seria conveniente regulamentar de forma mais detalhada a etapa de consultas prévia à solicitação de painéis. Instância, por excelência, político-diplomática, em que as partes devem necessariamente dispor de ampla margem e flexibilidade para explorar todas as alternativas possíveis para alcançar uma solução consensuada, essa fase é, igualmente, uma etapa importante do procedimento. Não só em termos formais (na condição de instância prévia obrigatória para solicitação de painéis), mas, também, em termos substantivos, na medida em que o alcance da jurisdição do painel está, em certo sentido, vinculado aos temas suscitados nas consultas21.

Embora o artigo 6.2 do ESC se limite a dizer que os pedidos para estabelecimento de um painel deverão indicar tão somente se as consultas efetivamente se realizaram22, o valor dessa etapa para definição do escopo do procedimento como um todo tem sido sistematicamente reconhecido pelo Órgão de Apelação23.

20 No exercício do mandato que lhe confere o artigo 2 do ESC, de administrar o as regras e procedimentos estabelecidos no Entendimento.

21 Formalmente, a jurisdição do Painel é definida pelos Termos de Referência estabelecidos em aplicação do artigo 7º do ESC. Não obstante, no caso US – Certain EC Products (DS165), o OA considerou que “an issue that was not formally the subject of the consultations is not part of the dispute and does not fall within a Panel’s terms of reference” (Relatório do OA parágrafos 69-70). A análise é formal, baseada no pedido e não no conteúdo das consultas.

22 De acordo com o referido dispositivo o pedido deve ser formulado por escrito e “indicar se foram realizadas consultas e identificar as medidas em controvérsia e fornecer uma breve exposição do embasamento legal da reclamação suficiente para apresentar o problema com clareza” e, assim, delimitar o escopo do contencioso.

23 O OA, não obstante, considera que não tem mandato para verificar se uma questão em particular foi efetivamente tratada na consulta. A análise, para efeitos da definição do escopo da jurisdição do Painel está circunscrita a verificar se o pedido de consulta permitiria considerar que os temas suscitados na etapa posterior estão incluídos. Cf JANSEN, Bernhard. “Scope of Jurisdiction in GATT/WTO Dispute Settlement: Consultation and Panel Request” in WEISS, Friedl op.cit., p. 46.

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Juntamente com o pedido de abertura de painéis, o pedido de consulta forma a base dos termos de referência do painel e, portanto, o limita da sua atuação, fundamental para a adequada condução do procedimento. De acordo com Jensen,

It is a fundamental principle for any legal procedure,

both under national and international law that the

scope of the procedure be clearly defined at the outset

by the party bringing the dispute in order to ensure due

process and the respect for the rights of defence of the

respondent24.

Na mesma linha, Kuijper25 observa que, no caso da OMC, a importância da fase pré-instauração do painel é indiscutível. Além de, em muitos casos, viabilizar uma efetiva solução negociada para o caso, em termos procedimentais, contribui para definir a jurisdição dos órgãos adjudicatórios, permite ao demandado melhor se posicionar frente ao contencioso, assegura que as terceiras partes interessadas tenham a oportunidade de se familiarizar com o contencioso e, assim, exercer seu direito de juntar-se à consulta.

Não chega a ser surpresa, portanto, que discussões sobre o escopo da jurisdição do painel tenham se tornado frequentes, gerando uma proliferação de pedidos preliminares, que sequer estão previstos nas regras atuais. Parte do problema poderia ser amenizado, por exemplo, estabelecendo que os resultados das consultas entre as partes devem ser registrados em uma ata a ser notificada ao Secretariado da OMC. Atualmente, os órgãos adjudicatórios não têm como saber ao certo quais temas foram levantados efetivamente durante a consulta, o que dificulta

24 Ibidem, p. 45.25 KUIJPER, Pieter-Jan. “The Pre-Litigation Stage in the WTO Dispute Settlement Procedure and in

the EC Infringement Procedure” in WEISS, Friedl op. cit., p. 68.

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sobremaneira a análise da compatibilidade do pedido de abertura de painel com o artigo 6.2 do ESC e, consequentemente, a definição do escopo dos contenciosos.

Pelas mesmas razões apontadas acima, seria conveniente, em segundo lugar, estabelecer o quanto antes, regras uniformes para tratamento das questões preliminares que têm sido frequentemente suscitadas pelas partes, envolvendo, em geral, questionamentos sobre o alcance dos contenciosos e a compatibilidade do pedido de abertura de painel com o disposto no artigo 6.2 do ESC26. Atualmente, painéis e OA têm abordado o tema de diferentes maneiras. Alguns optam por analisar essas questões antes do prazo estabelecido para apresentação das petições iniciais, gerando efeitos dilatórios e indefinições, em termos de cronograma. Dependendo da natureza da questão suscitada, essa “etapa preliminar informal” pode envolver inclusive realização de audiências. Em outros contenciosos, os órgãos adjudicatórios têm preferido tratar as questões preliminares juntamente com o mérito, o que não é sem impacto sobre a preparação e consistência do procedimento.

Regras mais claras que estabelecessem, de antemão, que eventuais questões preliminares deverão ser suscitadas em um prazo específico – contado da apresentação de pedido de

26 O alcance do artigo 6.2 tem motivado número crescente de questionamentos preliminares. Em geral, os painéis e o OA têm dado uma interpretação bastante flexível ao artigo 6.2. A análise do que é considerado suficiente “para apresentar o problema com clareza” é feita caso a caso, em função das circunstâncias específicas da disputa. Em alguns casos, se considera que a mera referência ao dispositivo considerado violado pela medida interna é suficiente para qualificar como “breve exposição do embasamento legal da controvérsia”. Em outros, a complexidade do tema exige que maiores detalhes sejam incluídos no pedido. Não se espera, contudo, que o demandante avance, no pedido, os argumentos e posições que fundamentarão seu caso. Por outro lado, reconhece-se que lacunas na elaboração do pedido não podem ser sanadas em etapas posteriores do procedimento, sob pena de afetaram o direito de defesa da parte demandada. Ver entre outros, os Relatórios do OA nos casos EC – Selected Customs Matters (DS 315 Relatório do OA parágrafo 130); US – Continued Zeroing, (DS 350 Relatório do OA, parágrafos 168 – 169)

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abertura de painel – e decididas, com respeito ao contraditório e aos direitos das terceiras partes, com antecipação à apresentação das petições iniciais poderiam contribuir, em muito, para a fluidez e a uniformidade dos procedimentos27.

Um terceiro aspecto a considerar refere-se ao tratamento das provas no âmbito do SSC. As regras de procedimento não contêm nenhuma referência precisa sobre apresentação e valor das provas28. Além da falta de clareza sobre as circunstâncias que determinaria a reversão do ônus da prova já mencionado acima29, evidências e novos argumentos podem ser apresentados praticamente ao longo de todo o procedimento, exceto, na fase de apelação que, em teoria está limitada a questões de direitos. Já houve casos, no entanto, que o OA entendeu que alegações novas poderiam ser apresentadas nessa fase, desde que ficasse demonstrado que as mesmas não poderiam ter sido do conhecimento da parte na etapa inicial contencioso. O mesmo se aplica no âmbito do painel de implementação constituído ao amparo do artigo 21.5 do ESC, na hipótese de divergência

27 Essa etapa preliminar poderia igualmente ser utilizada para desestimar alegações que não tivessem reunido as características de um caso prima facie e estabelecer diretrizes para o tratamento de provas.

28 Na prática, isso confere aos órgãos adjudicatórios ampla margem de manobra para determinar o alcance das provas. De acordo com o OA “[...] the DSU accords to a panel [...]ample and extensive authority to undertake and to control the process by which it informs itself both of the relevant facts of the dispute and of the legal norms and principles applicable to such facts”. US-Shrimp (DS 58, Relatório do OA, parágrafo 106).

29 Vide Nota de Rodapé 14. A análise é feita caso a caso. Tanto o Painel quanto o OA dispõe de ampla margem de discricionariedade para determinar quando consideram que teria havido reversão do ônus da prova. A determinação é feita no julgamento do mérito e é usada como fundamento da decisão de desestimar a alegação. As partes, por via de regra, não tem qualquer indicação prévia de que tipo de evidência ou que quantidade de provas seria necessário apresentar para determinar a reversão. As poucas indicações na jurisprudência tampouco são claras. Em alguns casos, indica-se que a reversão da prova se dá sempre que a parte estabeleça um caso prima facie, cujos contornos, como se viu, tampouco são precisos e variam caso a caso. Ver sobre o tema CAMERON, James e ORAVA Stephen J . “GATT/WTO Panels between Recording and Finding Facts: Issues of Due Process, Evidence, Burden of Proof and Standard of Review in GATT/WTO Dispute Settlement” in WEISS, Frield, op. cit., pp. 232-233.

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quanto à compatibilidade das medidas adotadas por um Estado com as decisões e recomendações do OSC que lhe cabia cumprir. A noção ampla de “medidas de cumprimento”30 que têm sido adotada, na prática, tem permitido que uma série de fatos e alegações novas, não tratadas no contencioso, sejam suscitadas na fase de implementação.

Sem deixar de reconhecer que há méritos na forma flexível como essas e outras questões procedimentais têm sido tratadas – em muito motivada pela preocupação de assegurar a efetividade do procedimento e evitar que nova controvérsia tenha que ser iniciada por vício de forma – a ausência de parâmetros claros sobre a matéria não deixa de representar um ônus adicional para as partes na controvérsia, em detrimento da fluidez e eficácia do mecanismo31.

2. legitimidAde

Uma eventual reforma também deveria ter presente a importância de assegurar que o SSC possa atuar de forma cada vez mais transparente e inclusiva, beneficiando a todos os seus membros. Para isso, faz-se necessário, em primeiro lugar, atenção especial à situação dos países em desenvolvimento, os quais apesar de representarem mais de dois terços dos membros da OMC, têm uma participação relativamente reduzida no SSC

30 De acordo com a jurisprudência do OA, uma medida de cumprimento, para efeitos da análise do artigo 21.5 do ESC pode ser qualquer ação ou inação, atribuída ao um Estado após o período previsto para cumprimento da decisão ou recomendação da OSC, que tenha uma estreita relação com o caso sob judice.

31 Como bem recordou o Professor Mavroidis, flexibilidade e análise caso a caso “should not amount to a lack of clear metodology”, em detrimento da segurança jurídica. MAVROIDIS, Petros, “Legal Eagles? The WTO Appellate Body’s First Ten Years” in JANOW, Merit E; DONALDSON Victoria, YANOVICH Alan (ED) “The WYO: Governance, Dispute Settlement& Developing Countries” p. 360.

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Com algumas exceções importantes32, raros são os países em desenvolvimento que acionam o sistema de forma sistemática.

Embora o ESC contemple dispositivos que objetivam facilitar a atuação desses países (em termos de prazos e procedimentos)33, são frequentes as críticas de que, na prática, o sistema só opera adequadamente em benefício dos países desenvolvidos, que são, de fato, os maiores usuários do sistema. Além das dificuldades inerentes à preparação e à condução de um contencioso34, muitos dos quais envolvem temas complexos e implicam investimentos importantes, em termos de recursos humanos e financeiros, o maior desafio para os países em desenvolvimento reside na etapa de implementação das decisões do OSC.

Como já foi mencionado, se, por algum motivo, as decisões do OSC não sejam devidamente implementadas, o Estado-

32 Argentina, Brasil, China, Índia, México e Tailândia, por exemplo. 33 Artigos 4.10, 8.10, 12.11 e 24 (específico para países de menor desenvolvimento relativo,

ditos LDC), cuja redação foi baseada na Decisão do GATT de 5 de abril de 1966 sobre os Procedimentos para aplicação do artigo XXIII que contemplava tratamento diferencial para LDC (prazos mais curtos e recurso aos bons ofícios do Diretor-Geral da OMC <(http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/disp_settlement_cbt_e/a2s1p1_e.htm)>. Para um histórico do tratamento do tema no GATT ver Documento de trabalho preparado pelo Secretariado para o Comitê de Negociação do Grupo de Solução de Controvérsias em 1988 MTN.GNG/NGl3/W/27. Disponível em: <http://www.worldtradelaw.net/history/urdsu/w27.pdf>. A preocupação em assegurar tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento de modo geral, foi consagrada com a adoção, em 1979, da Decisão sobre Tratamento Diferencial e Mais Favorável e Plena Participação dos Países em Desenvolvimento (Cláusula de Habilitação) que resultou na introdução da Parte IV no GATT-47, sobre Comércio e Desenvolvimento.

34 Para uma análise mais detalhada dos desafios enfrentados pelos países em desenvolvimento para utilização do sistema ver SHAFFER, Gregory “How to Make the WTO Dispute Settlemetn System Work for developing Countries: Some Proactive Developing Countries Strategies”, in ICTSD Resource Paper, n. 5, pp.15-17. O autor recorda que a falta de recursos humanos, financeiros e jurídicos necessários para o acompanhamento dos casos – cada vez mais custosos e complexos – e a reduzida participação de muitos desses países no sistema multilateral de comércio criam limitações estruturais para a participação dos países em desenvolvimento, que não necessariamente se resolveriam com uma reforma do SSC. Reconhece, não obstante, que algumas medidas pontuais – como a criação de uma assessoria jurídica gratuita, regras procedimentais diferenciadas e previsão de remédios legais mais eficazes que facilitem a implementação de decisões favoráveis a países em desenvolvimento – poderiam ter um efeito positivo.

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-Membro afetado pode, em última instância, recorrer ao mecanismo de retaliação (suspensão de concessões e outros benefícios atribuídos ao país que não cumpriu a decisão), com o objetivo de induzir o pronto cumprimento da decisão. Em função, não obstante, do tamanho relativo das economias em desenvolvimento, países menores encontram maior dificuldade de recorrer ao mecanismo e, consequentemente, de exercer pressão adequada para fazer valer seus direitos.

Ao longo dos anos, várias medidas foram propostas com o objetivo de dar alcance real no âmbito do ESC, ao compromisso de garantir tratamento especial e diferenciado aos países em desenvolvimento. Destacam-se, entre elas, a criação de Fundo para custeio de despesas legais, prazos especiais para controvérsias envolvendo países em desenvolvimento; ampliação, para esses países, dos instrumentos previstos no ESC para induzir o cumprimento das decisões35. Decisões nessa área serão cruciais para conferir maior legitimidade ao SSC que somente poderá exercer efetivo papel central na consolidação do sistema multilateral de comércio se for capaz de beneficiar a todos os países, independentemente do seu tamanho ou desenvolvimento relativo.

Caberia, igualmente, considerar a ampliação e sistematiza-ção dos direitos de participação das chamadas terceiras partes no contencioso. A questão está longe de ser meramente procedi-mental (com costuma ser tratada). Ainda que, formalmente, as decisões do OSC sejam obrigatórias apenas às partes na contro-vérsia – que, nesse sentido, têm interesse principal na solução do caso – na prática, por seu impacto sobre a interpretação das

35 Algumas das propostas sobre esse tema contemplam o estabelecimento de multas no caso de descumprimento; pagamentos de compensação monetária, que levaria em conta o dano sofrido pelo país em desenvolvimento; condenação a pagamento de custas processuais e possibilidade de cessão de direitos de retaliação a terceiros países.

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regras como um todo, seu alcance transcende os limites de um contencioso específico. Interessam, nesse sentido, a todos os Estados-Membros.

Essa “vocação multilateral” do sistema é claramente reconhecida pelo ESC, cujo artigo 10 deixa claro que os interesses de todos os Estados-Membros afetados pelo caso em exame devem ser levados em consideração pelos painéis e estabelece que qualquer Estado pode acompanhar, como terceira-parte o contencioso. O “interesse legal” é decorrência da própria participação no sistema multilateral de comércio36. Não há necessidade de demonstrar qualquer interesse específico no caso em si37.

Em termos procedimentais, as terceiras partes têm assegurado, ao amparo do referido artigo, um conjunto mínimo de prerrogativas que consiste, por via de regra, no direito de receber as petições iniciais das partes, apresentar opiniões escritas, participar de audiências e responder perguntas porventura feitas por Painéis e OA. A participação, contudo, ainda é muito limitada. Na maior parte dos casos, por força de uma interpretação restritiva do artigo 10, as terceiras-partes não têm acesso a todos os documentos e comunicações circulados entre as partes, particularmente antes da primeira audiência. Nem sempre, além disso, estão autorizadas a participar de todas as instâncias do procedimento, como audiências exclusivas para

36 De acordo com o AO, no caso, as decisões adotadas no ESC criam “expectativas legítimas” em todos os Estados-Membros que precisam ser levadas em consideração (Japão-Alcoholic Beverages, DS 8, 10 e 11 – Relatório do OA parágrafo 14.3).

37 Esse direito amplo de participação aplica-se apenas à fase litigiosa. Na etapa de consultas, no entanto, a participação de terceiros pode ser inviabilizada pelas partes na controvérsia sob a alegação de que o terceiro interessado não tem interesse substantivo no caso, restando sempre ao País em questão a possibilidade de iniciar um contencioso. Trata-se de regra não escrita, que se consolidou com base na interpretação do artigo XXIII do GATT-47, que fundamenta até hoje, boa parte dos pedidos de consulta no âmbito do ESC e que se refere exclusivamente a consultas bilaterais.

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as partes, arbitragens e procedimentos especiais porventura estabelecidos. A participação como terceira-parte na fase de apelação, por exemplo, está limitada aos países que tenham participado da fase de painel. É bem verdade que tem sido cada vez mais frequente que os painéis e o OA concedam o que tem sido chamado de “direitos ampliados” para as terceiras-partes. Em geral, no entanto, isso se dá de forma ad hoc, sem maior preocupação de uniformidade.

Por fim, mas não menos importante, não há que descuidar da questão da “governabilidade” do sistema. De acordo com o artigo 2º do ESC cabe ao OSC a importante responsabilidade de administrar as regras e procedimentos relacionados ao mecanismo de solução de controvérsias, incluindo, inter alia, o monitoramento da implementação das decisões. Na prática, no entanto, em função da preocupação legítima em evitar que a dinâmica intergovernamental interfira na atuação dos órgãos adjudicatórios, como era comum na época do GATT, o OSC tende a funcionar mais como um foro para registro de posições, do que como uma instância de diálogo e coordenação voltada à administração eficaz do sistema. Papel esse que em nada afetaria a necessária autonomia e independência de que devem dispor os painéis e o OA no exercício de suas funções. Ao contrário, um OSC atuante, capaz de discutir e decidir sobre temas de interesse sistêmico em beneficio de todos, só contribuiria para fortalecer a legitimidade do sistema.

A legitimidade de um sistema legal obviamente não se mede apenas em função de um elemento isolado. Inclui várias dimensões. Depende, em última instância, de uma avaliação subjetiva sobre a capacidade do sistema de responder, de forma ágil e eficiente, aos interesses e aspirações dos participantes. No caso, do SSC, por suas características e funções, a noção de legitimidade estará sempre associada, em primeiro lugar,

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à própria qualidade e consistência das decisões adotadas e a capacidade do mecanismo de garantir, através de regras claras, um efetivo equilíbrio de direitos e obrigações entre os Membros da OMC. Requer, portanto, esforço contínuo de transparência e adaptação38.

É necessário ainda, ter presente que qualquer reflexão sobre o aperfeiçoamento do Sistema de Solução de Controvérsias da OMC, cujo balanço de quase 20 anos de funcionamento é, em uma palavra, excepcional, não pode jamais perder de vista, a sua natureza de instrumento de direito internacional concebido por e para Estados soberanos. Sua legitimidade e eficácia dependerá, em essência, da sua capacidade de atender aos interesses dos Estados-Membros da OMC. Diplomacia, flexibilidade e soluções negociadas, nesse sentido, têm e devem continuar tendo papel central em qualquer esforço bem-sucedido de fortalecimento do SSC e, consequentemente, no desenvolvimento e consolidação de um sistema coerente de regras de direito comercial internacional. A fórmula para tanto já está consagrada no ESC. Resta saber calibrá-la.

38 Para isso, além da maior previsibilidade em termos procedimentais, o ESC se beneficiaria igualmente de medidas que amenizem a certa tendência ao “isolamento clínico” revelada pelo OSC ao longo dos anos, tanto em relação a outras regras de direito internacional que vinculam seus membros, como vis-à-vis da sociedade em geral. A ênfase em uma análise objetiva e textual dos textos dos Acordos, que sem dúvida muito contribuiu para a excelência das decisões – não deveria ser lida como inviabilizando o exame contextualizado dos casos submetidos à apreciação do OSC. Não se espera, é claro que painéis e OA embarquem em ativismo judicial ao arrepio dos textos, mas que sejam capazes de contextualizar sua aplicação à luz da dinâmica e dos objetivos do sistema multilateral de comércio. Como resumiu o Professor Mavroidis ao avaliar os 10 anos de atuação do ESC, as decisões deveriam ser “more contextual, less literal without being teleological”, in WOLFRUM, Rüdiger; STOLL, Peter-Tobias & KAISER, Karen (Ed). “WTO – Institutions and Dispute Settlement”, pp. 288-290. Com esse mesmo espírito de abertura e transparência, poderia ser positivo, igualmente, considerar com atenção às propostas atualmente em discussão sobre a possibilidade de maior abertura em relação à intervenção de terceiros, não partes na controvérsia, nos procedimentos (audiência, apresentação de comentários), a exemplo do que ocorre em outros Tribunais Internacionais.

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considerAções finAis

São conhecidas as dificuldades que a OMC vêm enfrentando para avançar nas negociações da Rodada Doha, num quadro de crise econômica mundial em que aumenta a

pressão por medidas protecionistas e proliferam iniciativas regionais e bilaterais.

A capacidade da Organização de continuar a exercer o papel central que lhe está reservado dependerá da recuperação de sua capacidade negociadora e do aprofundamento paulatino das regras e compromissos assumidos em 1994 de modo a adequá- -las à realidade atual e às aspirações dos seus Membros.

Nesse sentido, a próxima Conferência Ministerial de Bali, que se realizará de 3 a 6 de dezembro próximo, constitui uma oportunidade ímpar para que os Membros da OMC reafirmem, com decisões e resultados concretos, o compromisso com um sistema multilateral de comércio justo e equilibrado.

O desafio não é menor. Lograr uma base sólida de consenso entre 159 países com diferentes interesses e níveis de desenvolvimento sobre questões politicamente sensíveis não é um exercício fácil.

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Enio Cordeiro

Regras previsíveis e transparentes para o comércio internacional são absolutamente necessárias, especialmente em períodos de maior turbulência econômica. É preciso assegurar condições equânimes de acesso aos mercados, assim como a participação de todos os países na construção e no aperfeiçoamento do sistema.

Os países necessitam cada vez mais de segurança e previsi-bilidade externa para a definição de suas estratégias de cresci-mento, particularmente no que se refere à garantia de acesso a mercados e proteção contra ações unilaterais de terceiros.

Isso explica, em grande parte, o extraordinário desenvol-vimento do sistema de solução de controvérsias da OMC, cuja importância para o funcionamento do sistema multilateral de co-mércio só tende a aumentar.

Para um país como o Brasil, cuja estratégia de desenvolvi-mento está profundamente vinculada à inserção na economia mundial, o compromisso com as regras internacionais do comér-cio e com o fortalecimento da OMC, mais do que uma prioridade, é uma premissa de base na formulação da política externa. Isso se reflete na ênfase dada, nos últimos anos, à reestruturação da área econômica do Itamaraty, em geral, e da área de contenciosos, em particular.

O investimento realizado pelo Ministério nessa área para dotá-la com recursos humanos e materiais adequados tem sido fundamental para a defesa dos interesses comerciais do país. Gerou também uma dinâmica positiva de crescente articulação com o setor privado e com a área jurídica no desenvolvimento e sofisticação de uma expertise nacional em matéria de OMC, que é muito importante para o sucesso da participação do Brasil no sistema.

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Considerações finais

O Brasil é hoje, reconhecidamente, um dos mais bem-suce-didos usuários do Sistema de Solução de Controvérsias da OMC.

Como bem ilustram os trabalhos apresentados no presen-te volume, em linha com nossa tradição de buscar o fortaleci-mento do direito internacional, o Brasil levou ao mecanismo de solução de controvérsias da OMC questões com implicações sistêmicas importantes tais como o impacto dos subsídios agrí-colas dos países desenvolvidos, a relação entre comércio e meio ambiente e o direito de acesso a medicamentos. A ativa participa-ção do Brasil em contenciosos como terceira parte tem igualmente possibilitado maior contribuição do país nas discussões jurídicas sobre o alcance dos compromissos estabelecidos em praticamente todos os acordos da Organização.

Em termos concretos, além de ganhos pontuais em matéria de acesso a mercados, defesa de setores econômicos estratégicos (como siderurgia, indústria aeronáutica e setor agrícola) e a pro-moção de objetivos do Governo na área de saúde e meio ambiente, a ativa participação brasileira no mecanismo de solução de contro-vérsias conferiu-nos maior prestígio e capacidade de influência no âmbito da OMC.

Independente do rumo que tomem as negociações no âmbito da OMC, parece seguro afirmar que o dinamismo e a relevância do mecanismo de solução de controvérsias continuarão caracterizan-do o funcionamento do sistema multilateral de comércio.

Dificuldades pontuais à parte, mantido o balanço positivo dos últimos 18 anos, o mecanismo continuará a ter um papel prepon-derante na definição do alcance dos compromissos assumidos pe-los países no âmbito da OMC.

O Brasil certamente estará preparado, com base na experiên-cia acumulada nos últimos anos, para ter uma participação cada vez mais ativa no mecanismo de solução de controvérsias em

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Enio Cordeiro

defesa de seus interesses e de um sistema de comércio internacio-nal mais estável, previsível e inclusivo.

Enio CordeiroSubscretário-Geral de Assuntos Econômicos e Financeiros

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referênciAs BiBliográficAs

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Anexos

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3.19

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1999

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sulta

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2000

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--

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Anexos

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DS5

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1996

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1997

--

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)

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-Em

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/201

3.

762

Anexos

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1998

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DS1

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1999

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Anexos

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Eu

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2003

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1.20

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DS2

46EC

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2003

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plem

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DS2

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Com

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07.0

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2003

10.1

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2002

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2003

Rela

tório

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tado

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20.0

3.20

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.07.

2003

10.1

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do

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l Sa

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2002

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2003

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tório

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Stee

l Sa

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2002

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2003

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tado

DS2

54U

S –

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l Sa

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Nor

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04.0

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0211

.07.

2003

10.1

1.20

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Anexos

(con

tinu

a)

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65EC

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bsid

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es

Euro

peia

s27

.09.

2002

15.1

0.20

0428

.04.

2005

Rela

tório

ado

tado

, com

re

com

enda

ção

para

ad

equa

ção

das m

edid

as

DS2

83EC

– E

xpor

t Su

bsid

ies o

n Su

gar

Tailâ

ndia

Com

unid

ades

Eu

rope

ias

14.0

3.20

0315

.10.

2004

28.0

4.20

05Re

lató

rio a

dota

do, c

om

reco

men

daçã

o pa

ra

adeq

uaçã

o da

s med

idas

DS2

86EC

– C

hick

en C

uts

Tailâ

ndia

Com

unid

ades

Eu

rope

ias

25.0

3.20

0230

.05.

2005

12.0

9.20

05Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

DS2

90EC

– T

rade

mar

ks

and

Geo

grap

hica

l In

dica

tions

Aus

trál

iaCo

mun

idad

es

Euro

peia

s17

.04.

2003

15.0

3.20

05-

Impl

emen

taçã

o no

tifica

da

pelo

dem

anda

do à

OM

C

DS2

91EC

– A

ppro

val

and

Mar

ketin

g of

Bi

otec

h Pr

oduc

tsEU

ACo

mun

idad

es

Euro

peia

s13

.05.

2003

29.0

9.20

06-

Reta

liaçã

o au

toriz

ada

DS2

92EC

– A

ppro

val

and

Mar

ketin

g of

Bi

otec

h Pr

oduc

tsC

anad

áCo

mun

idad

es

Euro

peia

s13

.05.

2003

29.0

9.20

06-

Solu

ção

mut

uam

ente

ac

orda

da

DS2

93EC

– A

ppro

val

and

Mar

ketin

g of

Bi

otec

h Pr

oduc

tsA

rgen

tina

Com

unid

ades

Eu

rope

ias

14.0

5.20

0329

.09.

2006

-So

luçã

o m

utua

men

te

acor

dada

766

Anexos(c

onti

nua)

CA

SOTÍ

TULO

DO

C

ASO

DEM

AN

DA

NTE

DEM

AN

DA

DO

PED

IDO

DE

CON

SULT

AS

RELA

T. D

O

PAIN

ELRE

LAT.

DO

OA

STAT

US

ATU

AL

DS2

94U

S –

Zero

ing

(EC

)Co

mun

idad

es

Euro

peia

sEU

A12

.06.

2003

31.1

0.20

0518

.04.

2006

Rela

tório

ado

tado

, com

re

com

enda

ção

para

ad

equa

ção

das m

edid

as

DS3

15EC

– S

elec

ted

Cust

oms M

atte

rsEU

ACo

mun

idad

es

Euro

peia

s21

.09.

2004

16.0

6.20

0613

.11.

2006

Impl

emen

taçã

o no

tifica

da

pelo

dem

anda

do à

OM

C

DS3

16EC

and

cer

tain

m

embe

r Sta

tes –

La

rge

Civ

il A

ircra

ftEU

A

Com

unid

ades

Eu

rope

ias e

ce

rtos

Est

ados

-M

embr

os

06.1

0.20

0430

.06.

2010

18.0

5.20

11Pr

oced

imen

to d

e ar

bitr

agem

su

spen

so

DS3

17U

S –

Larg

e C

ivil

Airc

raft

Com

unid

ades

Eu

rope

ias

EUA

06.1

0.20

04-

-Pr

oced

imen

to d

e pa

inel

su

spen

so

DS3

20U

S –

Cont

inue

d Su

spen

sion

Com

unid

ades

Eu

rope

ias

EUA

08.1

1.20

0431

.03.

2008

16.1

0.20

08Re

lató

rio a

dota

do

DS3

21C

anad

a –

Cont

inue

d Su

spen

sion

Com

unid

ades

Eu

rope

ias

Can

adá

08.1

1.20

0431

.03.

2008

16.1

0.20

08Re

lató

rio a

dota

do

DS3

35U

S –

Shrim

p (E

cuad

or)

Equa

dor

EUA

17.1

1.20

0530

.01.

2007

-Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

DS3

39C

hina

– A

uto

Part

sCo

mun

idad

es

Euro

peia

sC

hina

30.0

3.20

0618

.07.

2008

15.1

2.20

08Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

DS3

40C

hina

– A

uto

Part

sEU

AC

hina

30.3

.200

618

.07.

2008

15.1

2.20

08Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

DS3

42C

hina

– A

uto

Part

sC

anad

áC

hina

13.0

4.20

0618

.07.

2008

15.0

2.20

08Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

767

Anexos

(con

tinu

a)

CA

SOTÍ

TULO

DO

C

ASO

DEM

AN

DA

NTE

DEM

AN

DA

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PED

IDO

DE

CON

SULT

AS

RELA

T. D

O

PAIN

ELRE

LAT.

DO

OA

STAT

US

ATU

AL

DS3

43U

S –

Shrim

p (Th

aila

nd)

Tailâ

ndia

EUA

24.0

4.20

0629

.02.

2008

16.0

7.20

08Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

DS3

44U

S –

Stai

nles

s St

eel (

Mex

ico)

Méx

ico

EUA

26.0

5.20

0620

.12.

2007

30.0

4.20

08So

luçã

o m

utua

men

te

acor

dada

DS3

45U

S –

Cust

oms

Bond

Dire

ctiv

eÍn

dia

EUA

06.0

6.20

0629

.02.

2008

16.0

7.20

08Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

DS3

47

EC a

nd c

erta

in

mem

ber S

tate

s –

Larg

e C

ivil

Airc

raft

(2

nd co

mpl

aint

)

EUA

Com

unid

ades

Eu

rope

ias e

ce

rtos

Est

ados

-M

embr

os

31.0

1.20

06-

-A

utor

idad

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nel

cadu

cou

DS3

50U

S –

Cont

inue

d Ze

roin

gCo

mun

idad

es

Euro

peia

sEU

A02

.10.

2006

01.1

0.20

0804

.02.

2009

Rela

tório

ado

tado

, com

re

com

enda

ção

para

ad

equa

ção

das m

edid

as

DS3

53U

S –

Larg

e C

ivil

Airc

raft

(2nd

co

mpl

aint

)

Com

unid

ades

Eu

rope

ias

EUA

27.0

6.20

0531

.03.

2011

12.0

3.20

12Pr

oces

so d

e ar

bitr

agem

su

spen

so

DS3

62C

hina

Inte

llect

ual

Prop

erty

Rig

hts

EUA

Chi

na10

.04.

2007

26.0

1.20

09-

Impl

emen

taçã

o no

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da

pelo

dem

anda

do à

OM

C

DS3

75EC

– IT

Pro

duct

sEU

ACo

mun

idad

es

Euro

peia

s28

.05.

2008

16.0

8.20

10-

Impl

emen

taçã

o no

tifica

da

pelo

dem

anda

do à

OM

C

DS3

76EC

– IT

Pro

duct

sJa

pão

Com

unid

ades

Eu

rope

ias

28.0

5.20

0816

.08.

2010

-Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

768

Anexos

CA

SOTÍ

TULO

DO

C

ASO

DEM

AN

DA

NTE

DEM

AN

DA

DO

PED

IDO

DE

CON

SULT

AS

RELA

T. D

O

PAIN

ELRE

LAT.

DO

OA

STAT

US

ATU

AL

DS3

77EC

– IT

Pro

duct

sTa

ipé

Com

unid

ades

Eu

rope

ias

12.0

6.20

0816

.08.

2010

-Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

DS3

79

US

– A

nti-

Dum

ping

and

Co

unte

rvai

ling

Dut

ies (

Chi

na)

Chi

naEU

A19

.09.

2008

22.1

0.20

1011

.03.

2011

Impl

emen

taçã

o no

tifica

da

pelo

dem

anda

do à

OM

C

DS3

81U

S –

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II

(Mex

ico)

Méx

ico

EUA

24.1

0.20

0815

.09.

2011

16.0

5.20

12Re

lató

rio a

dota

do, c

om

reco

men

daçã

o pa

ra

adeq

uaçã

o da

s med

idas

DS3

84U

S –

COO

LC

anad

áEU

A01

.12.

2008

18.1

1.20

1129

.06.

2012

Impl

emen

taçã

o no

tifica

da

pelo

dem

anda

do à

OM

C

DS3

86U

S –

COO

LM

éxic

oEU

A17

.12.

2008

18.1

1.20

1129

.06.

2012

Impl

emen

taçã

o no

tifica

da

pelo

dem

anda

do à

OM

C

DS3

91Ko

rea

– Bo

vine

M

eat (

Can

ada)

Can

adá

Repú

blic

a da

Co

reia

09.0

4.20

09-

-So

luçã

o m

utua

men

te

acor

dada

DS3

92U

S –

Poul

try

(Chi

na)

Chi

naEU

A17

.04.

2009

29.0

9.20

10-

Rela

tório

ado

tado

DS3

94C

hina

– R

aw

Mat

eria

lsEU

AC

hina

23.0

6.20

0905

.07.

2011

30.0

1.20

12Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

DS3

95C

hina

– R

aw

Mat

eria

lsCo

mun

idad

es

Euro

peia

sC

hina

23.0

6.20

0905

.07.

2011

30.0

1.20

12Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

DS3

97EC

– F

aste

ners

(C

hina

)C

hina

Com

unid

ades

Eu

rope

ias

31.0

7.20

0903

.12.

2010

15.0

7.20

11Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

(con

tinu

a)

769

Anexos

CA

SOTÍ

TULO

DO

C

ASO

DEM

AN

DA

NTE

DEM

AN

DA

DO

PED

IDO

DE

CON

SULT

AS

RELA

T. D

O

PAIN

ELRE

LAT.

DO

OA

STAT

US

ATU

AL

DS3

98C

hina

– R

aw

Mat

eria

lsM

éxic

oC

hina

21.0

8.20

0905

.07.

2011

30.0

1.20

12Im

plem

enta

ção

notifi

cada

pe

lo d

eman

dado

à O

MC

DS4

05EU

– F

ootw

ear

(Chi

na)

Chi

naU

nião

Eur

opei

a04

.02.

2010

28.1

0.20

11-

Impl

emen

taçã

o no

tifica

da

pelo

dem

anda

do à

OM

C

DS4

06U

S –

Clo

ve

Cig

aret

tes

Indo

nésia

EUA

07.0

4.20

1002

.09.

2011

04.0

4.20

12Re

lató

rio a

dota

do, c

om

reco

men

daçã

o pa

ra

adeq

uaçã

o da

s med

idas

DS4

12C

anad

a –

Rene

wab

le E

nerg

yJa

pão

Can

adá

13.0

9.20

10-

-Re

lató

rio a

dota

do, c

om

reco

men

daçã

o pa

ra

adeq

uaçã

o da

s med

idas

DS4

20U

S –

Car

bon

Stee

l (K

orea

)Re

públ

ica

da

Core

iaEU

A31

.01.

2011

--

Pain

el e

stab

elec

ido,

mas

não

co

mpo

sto

DS4

26C

anad

a –

Feed

-In

Tariff

Pro

gram

Uni

ão E

urop

eia

Can

adá

11.0

8.20

11-

-Re

lató

rio a

dota

do, c

om

reco

men

daçã

o pa

ra

adeq

uaçã

o da

s med

idas

DS4

30In

dia

– A

gric

ultu

ral

Prod

ucts

EUA

Índi

a06

.03.

2012

--

Pain

el c

ompo

sto

DS4

31C

hina

– R

are

Eart

hsEU

AC

hina

13.0

3.20

12-

-Pa

inel

com

post

o

DS4

32C

hina

– R

are

Eart

hsU

nião

Eur

opei

aC

hina

13.0

3.20

12-

-Pa

inel

com

post

o

(con

tinu

a)

770

Anexos

CA

SOTÍ

TULO

DO

C

ASO

DEM

AN

DA

NTE

DEM

AN

DA

DO

PED

IDO

DE

CON

SULT

AS

RELA

T. D

O

PAIN

ELRE

LAT.

DO

OA

STAT

US

ATU

AL

DS4

33C

hina

– R

are

Eart

hsJa

pão

Chi

na13

.03.

2012

--

Pain

el c

ompo

sto

DS4

34

Aus

tral

ia –

To

bacc

o Pl

ain

Pack

agin

g (U

krai

ne)

Ucr

ânia

Aus

trál

ia13

.03.

2012

--

Pain

el e

stab

elec

ido,

mas

não

co

mpo

sto

DS4

37U

S –

Coun

terv

ailin

g M

easu

res (

Chi

na)

Chi

naEU

A25

.05.

2012

--

Pain

el c

ompo

sto

DS4

47U

S –

Ani

mal

sA

rgen

tina

EUA

30.0

8.20

12-

-Pa

inel

est

abel

ecid

o, m

as n

ão

com

post

o

DS4

53A

rgen

tina

– G

ood

and

Serv

ices

Pana

Arg

entin

a12

.12.

2012

--

Pain

el e

stab

elec

ido,

mas

não

co

mpo

sto

Atu

aliz

ada

até

19/7

/201

3.

(fim

)

771

Anexos

An

exo iv

Tabe

la d

e ca

sos

anal

isad

os n

o pr

esen

te li

vro

Títu

lo a

brev

iado

do

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Refe

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ia c

ompl

eta

do c

aso

Arg

entin

a –

Poul

try

Ant

i-Dum

ping

D

utie

sRe

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o Pa

inel

, Arg

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a —

Defi

nitiv

e A

nti-D

umpi

ng D

utie

s on

Poul

try

from

Bra

zil, W

T/D

S241

/R,

adot

ado

em 1

9 de

mai

o de

200

3

Braz

il –

Airc

raft

(Art

igo

21.5)

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Bra

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Exp

ort F

inan

cing

Prog

ram

me

for A

ircra

ft, W

T/D

S46/

AB/

R,

adot

ado

em 2

de

agos

to d

e 20

09

Braz

il –

Retr

eate

d Ty

res

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Bra

zil –

Mea

sure

s Affe

ctin

g Im

port

s of R

etre

ated

Tyr

es, W

T/D

S332

/A

B/R,

ado

tado

em

17

de d

ezem

bro

de 2

007

Cana

da –

Airc

raft

(Art

igo

21.5)

Rela

tório

do

Org

ão d

e A

pela

ção,

Can

ada

– M

easu

res A

ffect

ing

the

Expo

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n Ci

vilia

n A

ircra

ft, W

T/D

S70/

AB/

R, a

dota

do e

m 9

de

mai

o de

200

0

Cana

da –

Dai

ryRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, C

anad

a –

Mea

sure

s Affe

ctin

g th

e Im

port

atio

n of

Milk

and

the

Expo

rtat

ion

of D

airy

Pro

duct

s, W

T/D

S103

/AB/

R, a

dota

do e

m 1

3 de

out

ubro

de

1999

Cana

da –

Dai

ryRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, C

anad

a –

Mea

sure

s Affe

ctin

g D

airy

Exp

orts

, WT/

DS1

13/A

B/R,

ad

otad

o em

13

de o

utub

ro d

e 19

99

Cana

da –

Airc

raft

Cred

its a

nd

Gua

rant

ees (

Art

igo

22.6)

Rela

tório

do

Pain

el, C

anad

a –

Expo

rt C

redi

ts a

nd L

oan

Gua

rant

ees f

or R

egio

nal A

ircra

ft, W

T/D

S222

/R,

adot

ado

em 2

8 de

jane

iro d

e 20

02

Cana

da –

Aut

osRe

lató

rio d

o Pa

inel

, Can

ada

– Ce

rtai

n M

easu

res A

ffect

ing

the

Aut

omot

ive

Indu

stry

, WT/

DS1

39/R

, ad

otad

o em

19

de ju

nho

de 2

000

(con

tinu

a)

772

Anexos

Títu

lo a

brev

iado

do

caso

Refe

rênc

ia c

ompl

eta

do c

aso

Cana

da -

Rene

wab

le E

nerg

y R

elat

ório

do

Pain

el, C

anad

a –

Cert

ain

Mea

sure

s Affe

ctin

g th

e Re

new

able

Ene

rgy

Gen

erat

ion

Sect

or,

WT/

DS4

12/R

, e C

anad

a –

Mea

sure

s Rel

atin

g to

the

Feed

-in T

ariff

Pro

gram

, WT/

DS4

26/R

, ado

tado

em

6

de m

aio

de 2

013

Cana

da –

Ren

ewab

le E

nerg

yRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, C

anad

a –

Cert

ain

Mea

sure

s Affe

ctin

g th

e Re

new

able

Ene

rgy

Gen

erat

ion

Sect

or, W

T/D

S412

/AB/

R, e

Can

ada

– M

easu

res R

elat

ing

to th

e Fe

ed-in

Tar

iff P

rogr

am, W

T/D

S426

/AB/

R, a

dota

do e

m 6

de

mai

o de

201

3

Cana

da –

Whe

at E

xpor

ts a

nd

Gra

in Im

port

sRe

lató

rio d

o Pa

inel

, Can

ada

– M

easu

res R

elat

ing

to E

xpor

ts o

f Whe

at a

nd T

reat

men

t of I

mpo

rted

Gra

in,

WT/

DS2

76/R

, ado

tado

em

27

de se

tem

bro

de 2

004

Chin

a –

Inte

llect

ual P

rope

rty

Righ

tsRe

lató

rio d

o Pa

inel

, Chi

na –

Mea

sure

s Affe

ctin

g th

e Pr

otec

tion

and

Enfo

rcem

ent o

f Int

ellec

tual

Pro

pert

y Ri

ghts

, WT/

DS3

62/R

, ado

tado

em

26

de ja

neiro

de

2009

Chin

a –

Raw

Mat

eria

lsRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, C

hina

– M

easu

res R

elat

ed to

the

Expo

rtat

ion

of V

ario

us R

aw

Mat

eria

ls, W

T/D

S394

-395

-398

/AB/

R, a

dota

do e

m 2

2 de

feve

reiro

de

2012

Dom

inica

n Re

publ

ic –

Impo

rt a

nd

Sale

of C

igar

ette

sRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, D

omin

ican

Repu

blic

– M

easu

res A

ffect

ing

the

Impo

rtat

ion

and

Inte

rnal

Sal

e of

Cig

aret

tes,

WT/

DS3

02/A

B/R,

ado

tado

em

25

de a

bril

2005

Indi

a –

Aut

osRe

lató

rio d

o Pa

inel

, Ind

ia –

Mea

sure

s Affe

ctin

g th

e A

utom

otiv

e Se

ctor

, WT/

DS1

46/R

, ado

tado

em

19

de m

arço

de

2002

Indi

a –

Aut

osRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, In

dia

– M

easu

res A

ffect

ing

the

Aut

omot

ive

Sect

or, W

T/D

S146

/AB/

R,

adot

ado

em 1

9 de

mar

ço d

e 20

02

Indo

nesia

– A

utos

Rela

tório

do

Pain

el, I

ndon

esia

– C

erta

in M

easu

res A

ffect

ing

the

Aut

omob

ile In

dust

ry, W

T/D

S54-

55-5

9-64

/R, a

dota

do e

m 2

3 de

julh

o de

199

8

Japa

n –

Alco

holic

Bev

erag

es II

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Japa

n –

Taxe

s on

Alco

holic

Bev

erag

es, W

T/D

S8/A

B/R,

ado

tado

em

4

de o

utub

ro d

e 19

96

(con

tinu

a)

773

Anexos

Títu

lo a

brev

iado

do

caso

Refe

rênc

ia c

ompl

eta

do c

aso

Japa

n –

Alco

holic

Bev

erag

es II

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Japa

n –

Taxe

s on

Alco

holic

Bev

erag

es, W

T/D

S10/

AB/

R, a

dota

do e

m

4 de

out

ubro

de

1996

Japa

n –

Alco

holic

Bev

erag

es II

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Japa

n –

Taxe

s on

Alco

holic

Bev

erag

es, W

T/D

S11/

AB/

R, a

dota

do e

m

4 de

out

ubro

de

1996

Taila

nd –

Cig

aret

tes (

Phili

ppin

es)

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Thai

land

– C

usto

ms a

nd F

iscal

Mea

sure

s on

Ciga

rett

es fr

om th

e Ph

ilipp

ines

, WT/

DS3

71/A

B/R,

ado

tado

em

17

de ju

nho

de 2

011

EC –

Ban

anas

III (

Art

igo

22.6)

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Eur

opea

n Co

mm

uniti

es –

Reg

ime

for I

mpo

rtat

ion,

Sal

e an

d D

istrib

utio

n of

Ban

anas

, WT/

DS2

7/A

B/R,

ado

tado

em

22

de m

aio

de 1

997

EC –

Asb

esto

sRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, E

urop

ean

Com

mun

ities

– M

easu

res A

ffect

ing

Asb

esto

s and

Pro

duct

s Co

ntai

ning

Asb

esto

s, W

T/D

S135

/AB/

R, a

dota

do e

m 1

2 de

mar

ço d

e 20

01

EC –

Bed

Lin

enRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, E

urop

ean

Com

mun

ities

– A

nti-D

umpi

ng D

utie

s on

Impo

rt o

f Cot

ton-

Type

Bed

Lin

en fr

om In

dia,

WT/

DS1

41/A

B/R,

ado

tado

em

30

de o

utub

ro 2

000

EC –

Exp

ort S

ubsid

ies o

n Su

gar

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Eur

opea

n Co

mm

uniti

es –

Exp

ort S

ubsid

ies o

n Su

gar,

WT/

DS2

65/

AB/

R, a

dota

do e

m 2

8 de

abr

il de

200

5

EC –

Exp

ort S

ubsid

ies o

n Su

gar

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Eur

opea

n Co

mm

uniti

es –

Exp

ort S

ubsid

ies o

n Su

gar,

WT/

DS2

66/

AB/

R, a

dota

do e

m 2

8 de

abr

il de

200

5

EC –

Chi

cken

Cut

sRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, E

urop

ean

Com

mun

ities

– C

usto

m C

lass

ifica

tion

of F

roze

n Bo

nele

ss

Chick

en C

uts,

WT/

DS2

69/A

B/R,

ado

tado

em

12

de se

tem

bro

de 2

005

EC –

Exp

ort S

ubsid

ies o

n Su

gar

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Eur

opea

n Co

mm

uniti

es –

Exp

ort S

ubsid

ies o

n Su

gar,

WT/

DS2

83/

AB/

R, a

dota

do e

m 2

8 de

abr

il de

200

5

EC –

Sel

ecte

d Cu

stom

s Mat

ters

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Eur

opea

n Co

mm

uniti

es –

Sel

ecte

d Cu

stom

s Mat

ters

, WT/

DS3

15/

AB/

R, a

dota

do e

m 1

3 de

nov

embr

o de

200

6

(con

tinu

a)

774

Anexos

Títu

lo a

brev

iado

do

caso

Refe

rênc

ia c

ompl

eta

do c

aso

EC a

nd C

erta

in M

embe

r Sta

tes-

La

rge

Civi

l Airc

raft

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Eur

opea

n Co

mm

uniti

es –

Mea

sure

s Affe

ctin

g Tr

ade

in L

arge

Civ

il A

ircra

ft, W

T/D

S316

/AB/

R, a

dota

do e

m 1

8 de

mai

o de

201

1

Japa

n –

DRA

Ms (

Kore

a)Re

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, C

ount

erva

iling

Dut

ies o

n D

ynam

ic Ra

ndom

Ace

ss M

emor

ies f

rom

Ko

rea,

WT/

DS3

36/A

B/R,

ado

tado

em

17

de d

ezem

bro

de 2

007

Mex

ico –

Tax

es o

n So

ft D

rinks

Rela

tório

do

Pain

el, M

exico

– T

ax M

easu

res o

n So

ft D

rinks

and

Oth

er B

ever

ages

, WT/

DS3

08/R

, ad

otad

o em

24

de m

arço

de

2006

Turk

ey –

Rice

Rela

tório

do

Pain

el, T

urke

y –

Mea

sure

s Affe

ctin

g th

e Im

port

atio

n of

Rice

, WT/

DS3

34/R

, ado

tado

em

22

de

outu

bro

de 2

007

US

- Ant

i-Dum

ping

Mea

sure

s on

PET

Bags

Rela

tório

do

Pain

el, U

nite

d St

ates

– A

nti-D

umpi

ng M

easu

res o

n Po

lyet

hyle

ne R

etai

l Car

rier B

ags f

rom

Th

aila

nd, W

T/D

S383

/R, a

dota

do e

m 2

2 de

jane

iro d

e 20

10

US

– Cl

ove

Ciga

rett

esRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, U

nite

d St

ates

– M

easu

res A

ffect

ing

the

Prod

uctio

n an

d Sa

le o

f Clo

ve

Ciga

rett

es, W

T/D

S406

/AB/

R, a

dota

do e

m 4

de

abril

201

2

US

– Co

ntin

ued

Susp

ensio

nRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, U

nite

d St

ates

– C

ontin

ued

Susp

ensio

n of

Obl

igat

ions

in th

e EC

-H

orm

ones

Disp

ute,

WT/

DS3

20/R

, ado

tado

em

16

de o

utub

ro d

e 20

08

US

– Co

ntin

ued

Zero

ing

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Uni

ted

Stat

es –

Con

tinue

d Ex

isten

ce a

nd A

pplic

atio

n of

Zer

oing

M

etho

dolo

gy, W

T/D

S350

/AB/

R, a

dota

do e

m 4

de

feve

reiro

de

2009

US-

Cor

rosio

n-Re

sista

nt S

teel

Sun

set

Revi

ew

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Uni

ted

Stat

es –

Sun

set R

evie

w o

f Ant

i-Dum

ping

Dut

ies o

n Co

rros

ion-

Resis

tant

Car

bon

Stee

l Fla

t Pro

duct

s fro

m Ja

pan,

WT/

DS2

44/A

B/R,

ado

tado

em

15

de

deze

mbr

o de

200

3

(con

tinu

a)

775

Anexos

Títu

lo a

brev

iado

do

caso

Refe

rênc

ia c

ompl

eta

do c

aso

US

– FS

CRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, U

nite

d St

ates

– T

ax T

reat

men

t for

“For

eign

Sale

s Cor

pora

tions

”, W

T/D

S108

/AB/

R, a

dota

do e

m 2

4 de

feve

reiro

de

2000

US

– FS

C (A

rtig

o 21

.5)Re

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, U

nite

d St

ates

– T

ax T

reat

men

t for

“For

eign

Sale

s Cor

pora

tions

”, W

T/D

S108

/AB/

RW, a

dota

do e

m 1

4 de

jane

iro d

e 20

02

US

– G

ambl

ing

(Art

igo

22.6;

22,7

)Re

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, U

nite

d St

ates

– M

easu

res A

ffect

ing

the

Cros

s-Bo

rder

Sup

ply

of

Gam

blin

g an

d Be

tting

Ser

vice

s, W

T/D

S285

/AB/

R, a

dota

do e

m 7

de

abril

de

2005

US

– G

asol

ine

(Ven

ezue

la)

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Uni

ted

Stat

es –

Sta

ndar

ts fo

r Ref

orm

ulat

ed a

nd C

onve

ntio

nal

Gas

olin

e, W

T/D

S2/A

B/R,

ado

tado

em

29

de a

bril

de 1

996

US

– G

asol

ine

(Bra

zil)

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Uni

ted

Stat

es –

Sta

ndar

ts fo

r Ref

orm

ulat

ed a

nd C

onve

ntio

nal

Gas

olin

e, W

T/D

S4/A

B/R,

ado

tado

em

29

de a

bril

de 1

996

US

– H

ot-R

olle

d St

eel

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Uni

ted

Stat

es –

Ant

i-Dum

ping

Mea

sure

s on

Cert

ain

Hot

-Rol

led

Stee

l Pr

oduc

ts fr

om Ja

pan,

WT/

DS1

84/A

B/R,

ado

tado

em

24

de ju

lho

de 2

001

US

– La

rge

Civi

l Airc

raft

(2nd

co

mpl

aint

)Re

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, U

nite

d St

ates

– M

easu

res a

ffect

ing

Trad

e in

Lar

ge C

ivil

Airc

raft

– Se

cond

Com

plai

nt, W

T/D

S353

/AB/

R, a

dota

do e

m 1

2 de

mar

ço d

e 20

12

US

– O

ffset

Act

(Byr

d A

men

dmen

t)Re

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, U

nite

d St

ates

– C

ontin

ued

Dum

ping

and

Sub

sidy

Offs

et A

ct o

f 200

0,

WT/

DS2

17/A

B/R,

ado

tado

em

16

de ja

neiro

de

2003

US

– O

rang

e Ju

ice (B

razil

)Re

lató

rio d

o Pa

inel

, Uni

ted

Stat

es –

Ant

i-Dum

ping

Adm

inist

rativ

e Re

view

s of O

ther

Mea

sure

s Rel

ated

to

Impo

rts o

f Cer

tain

Ora

nge

Juice

s fro

m B

razil

, WT/

DS3

82/R

, ado

tado

em

25

de m

arço

de

2011

(con

tinu

a)

776

Anexos

Títu

lo a

brev

iado

do

caso

Refe

rênc

ia c

ompl

eta

do c

aso

US

– Se

ctio

n 21

1 A

ppro

pria

tions

A

ctRe

lató

rio d

o Ó

rgão

de

Ape

laçã

o, U

nite

d St

ates

– S

ectio

n 21

1 O

mni

bus A

ppro

pria

tions

Act

of 1

998,

W

T/D

S176

/AB/

R, a

dota

do e

m 2

de

jane

iro d

e 20

02

US

– Se

lect

ed C

usto

ms M

atte

rs

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Uni

ted

Stat

es –

Sel

ecte

d Cu

stom

s Mat

ters

, WT/

DS3

15/A

B/R,

ad

otad

o em

13

de n

ovem

bro

de 2

006

US

– Sh

rimp

(Vie

t Nam

)Re

lató

rio d

o Pa

inel

, Uni

ted

Stat

es –

Ant

i-Dum

ping

Mea

sure

s on

Cert

ain

Shrim

p fro

m V

iet N

am, W

T/D

S404

/R, a

dota

do e

m 1

1 de

julh

o 20

11

US

– Sh

rimp

Rela

tório

do

Órg

ão d

e A

pela

ção,

Uni

ted

Stat

es –

Impo

rt P

rohi

bitio

n of

Cer

tain

Shr

imp

and

Shrim

p Pr

oduc

ts, W

T/D

S58/

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Formato 15,5 x 22,5 cm

Mancha gráfica 12 x 18,3cm

Papel pólen soft 80g (miolo), cartão supremo 250g (capa)

Fontes Gentium Book Basic 14/15 (títulos),

Chaparral Pro 11,5/15 (textos)