Mirian Limoeiro Cardoso - O mito do método

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

Material de leitura para uso exclusivo dos alunos do IFCH

O MITO DO MTODO*

Mirian Limoeiro Cardoso

* Trabalho apresentado no Seminrio de Metodologia Estatstica, realizado na PUC Rio de Janeiro, janeiro-fevereiro de 1971.

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PREFCIO Sendo o objetivo principal dos cursos de Estatstica a perfeita compreenso do emprego e das limitaes das tcnicas estatsticas, temos voltado nossas atenes para o estudo da metodologia cientfica, por estarmos convictos de ser este o caminho a seguir. O primeiro passo que demos nesse sentido foi a criao da Srie de Textos em Estatstica em cujo volume I deixamos bem claro nossos propsitos. No perodo de vero desse ano (janeiro/fevereiro) fizemos realizar um Seminrio em Metodologia Estatstica que contou com a participao de diversos professores e alunos, mormente das reas de Psicologia, Sociologia, Economia, Estatstica e Metodologia Cientfica. As brilhantes palestras proferidas pela professora Mirian Limoeiro Cardoso praticamente traduzem as concluses que foram alcanadas nesse Seminrio. Assim, achamos por bem solicitar da professora Mirian que redigisse um trabalho consubstanciando suas exposies. Como este trabalho j consta no caderno da PUC - n especial do Departamento de Sociologia, com a permisso desse departamento que agora, prazerosamente, o publicamos.

Gildasio Amado Filho Coordenador do Ensino de Estatstica

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O MITO DO MTODO* Apoiar-se constantemente sobre uma filosofia como sobre um absoluto realizar uma censura da qual nunca se estudou a legalidade. Bachelard Em que consiste uma reflexo sobre o mtodo? Numa epistemologia cartesiana o mtodo se reduz a um conjunto de regras que por si s garantem a obteno dos resultados desejados. O investigador que as conhea bem e que consiga agir puramente de acordo com elas chegar certamente a bom termo no seu trabalho. Haver, portanto, modos - uns corretos, outros no - de atingir o conhecimento cientfico. Nesse sentido ele se identifica como tcnica, supostamente vlida para a utilizao nos mais diversos domnios da cincia, que assim considerada unicamente nos seus aspectos substantivos. O pesquisador aqui levado a adotar os padres aceitos e estabelecidos do mtodo cientfico sem uma discusso mais profunda dos critrios de cientificidade segundo os quais deva acat-los e no a outros. No explicitando esses critrios, dificulta-se a reflexo autntica, necessariamente crtica, sobre o mtodo. Ela se debate no interior do prprio mtodo. Encontra nele os seus limites e todas as tentativas de aprofundamento resultam num refinamento das proposies dele mesmo, que deste modo jamais se questiona. A cincia contempornea, de que a epistemologia cartesiana j no consegue dar conta(1), e em que o fato mais significativo o desenvolvimento do mtodo estar-se fazendo cada vez mais no interior dela mesmo(2), apresenta a questo de forma bem mais complexa, tendendo sempre a se concretizar. O rigor necessrio ao trabalho cientfico no permite que hoje se pretenda seguir risca procedimentos estabelecidos. Ele tem conduzido na direo oposta, ou seja, discusso de validades do seu emprego para o problema em estudo, a fim de poder realmente conhec-lo, e isto s tem significado se este conhecimento apresentar o carter de novidade, essencial ao desenvolvimento cientfico. Se novo, porque no apenas uma cpia, uma reproduo, ainda que sofisticada. Assim, para ser novo, h que no tenha sido feito mecanicamente, nem s por desdobramentos. O que crescentemente vai-se destacando em importncia a experincia, no sentido amplo de relao entre o terico e o real, no sentido especfico de prova. Entende-se o mtodo como parte de um corpo terico integrado(3), em que ele envolve as tcnicas, dando-lhes sua razo, perguntando-lhes sobre as possibilidades e as limitaes que trazem ou podem trazer s teorias a que servem, no trabalho sobre o seu objeto. A reflexo aqui necessariamente retorno do mtodo sobre si mesmo, questionamento dos seus prprios fundamentos, reviso crtica. Nesse sentido, ela fundamental ao exerccio da cincia. Realizando sua pesquisa, o cientista se ampara em teorias que, no confronto com o mundo que lhes concerne, do indicaes, mostram lacunas e encaminham hipteses. Como problematizar? Quais as formulaes mais adequadas da investigao? Que caminho seguir? So problemas com que o pesquisador se defronta. Pode-se aceitar a comodidade da tentativa de tratar estes aspectos num grau de abstrao tal que permita uma formalizao capaz de universalizar perguntas e respostas. Findo o esforo, a

4 tranqilidade de estar diante de um conjunto de preceitos que, sem atentar para investigadores particulares, nem para reas especficas, nem para problemas concretos, tragam a garantia de um trabalho fecundo. Acredito necessrio estar com a cincia de hoje e duvidar desta tranqilidade. prefervel refletir. E colocar-se na posio de um cientista concreto frente as dificuldades tanto mais complexas quanto mais concretas. J que o mtodo est sendo visto como um componente de um conjunto responsvel pela elaborao do conhecimento, necessrio perguntar o que faz com que este todo seja como . O que determina que as articulaes de seus termos sejam estas e no outras? Ou seja, quais as fundaes deste corpo terico? Somente conduzindo o raciocnio at o plano propriamente epistemolgico, distanciando-se, assim, das malhas do mtodo como tal para atingir as suposies em que se baseiam, as bases de que parte, que ser possvel compreender a formao do conhecimento e o papel que a cabe ao mtodo. O conhecimento o resultado da relao entre um sujeito que se empenha em conhecer e o objeto de sua preocupao. Pode-se supor, seguindo uma epistemologia espontnea, que esta relao se d entre o investigador, considerado empiricamente, como indivduo concreto, personalizado, e o pedao da realidade, tambm concreto, que ele tenha decidido pesquisar. Cada pessoa seria inteiramente responsvel pelas formulaes que fizesse, pelas explicaes que desse, porque seu pensamento teria sido elaborado a partir do contato com o objeto, que sendo concreto e independente dele, no teria como neg-lo. Para sair-se bem bastaria que ele no se deixasse enganar por si mesmo, isto , se neutralizasse para impedir interferncias deformadoras do objeto, que deveria ser colhido em toda a sua pureza. Entretanto parece que existem limitaes srias considerao deste duplo empirismo na formao do conhecimento, quer quanto ao sujeito, quer quanto ao objeto, e consequentemente quanto a sua orientao pelo real. Relativamente ao sujeito, devemos anotar primeiro que o pensamento no existe independente de algum que pense, ao mesmo tempo em que s existe como coisa pensada. O sujeito que pensa aprende a pensar dentro da sociedade em que se encontra, antes de se descobrir como ser pensante. Aprende a pensar se comunicando com os que o cercam, e com a linguagem incorpora a forma de pensar que ela contm, como prpria. Ainda quando se considera apenas essa comunicao nos seus aspectos mais simples e imediatos, j se pode verificar que nela se acham com destaque as explicaes que a sociedade em questo d de si mesma e do seu mundo. Cabe notar que o relacionamento pensamento/objeto no feito fundamentalmente a partir de cada ser pensante individual e especfico, mas est baseado na explicao parcial concretamente aceita pela sociedade ou pelo grupo social, conforme ela assimilada pelo sujeito, tendo importncia a sua posio dentro dela ou dele. As explicaes que fornecem as bases para o estabelecimento da relao com o objeto a estudar constituem atualmente parte do conhecimento que a cincia elaborou e cuja utilizao social conduziu sedimentao do saber socializado. Sua adequao como saber depende de sua adequao experincia. Sendo sempre limitado, parcial, o conhecimento necessariamente menos rico e complexo do que a realidade a que se refere, e aquela adequao nunca seno relativa, e por isso mesmo provisria. Sua vigncia se d at o momento em que o conhecimento tenha avanado a um grau superior de sofisticao e refinamento, quando seus limites se tornem mais ntidos e as restries a sua validade fixem melhor seus contornos. Tendo ocorrido mudana nas formulaes tericas, consequentemente as formas de pensar seu objeto, agora tambm distinto, tambm se transforma. Esta relao no , porm, mecnica nem imediata.

5 Neste sentido, embora, todo o esforo se dirija para o objeto, a relao que propicia o seu conhecimento se funda na teorizao aceita no momento como dando conta dele, pelo menos parcialmente. No fundo, a realidade que importa, mas no ela que comanda o processo da sua prpria inteligibilidade. J a sua existncia independente no seno uma questo. Ela capaz de nos sensibilizar, ela fornece elementos que os sentidos podem captar. Eles sero percebidos, apreendidos, colocados, como evidncia a confirmar ou afirmar formulaes anteriores. O que no se pode esquecer, sob pena de mascar o processo, que estas formulaes esto presentes em todos os momentos. Elas orientam a percepo; no resta nenhuma dvida quanto seletividade perceptiva. Elas guiam a apreenso e a interpretao. Elas fornecem os critrios, apenas em parte conscientes segundo os quais alguns aspectos ganham relevncia, enquanto outros so esquecidos. Com elas se formulam as questes para as quais se buscam respostas no real. At que ponto se pode, de forma conseqente, entender estas respostas como dados? A realidade ela mesma s se torna objeto como termo da relao, como coisa pensada. Se a explicao diversa, a prpria realidade que ela agora explica diferentemente aparecer diversa: elementos antes esquecidos ou secundrios podem tornar-se os mais importantes, a relevncia anterior pode desfigurar-se. Apenas para lembrar um exemplo, o desenvolvimento da Lingstica nos indica a subverso ocorrida com a revoluo fonolgica: enquanto a pesquisa lingista anterior se baseava principalmente na anlise histrica dos fenmenos conscientes, a Fonologia proceder anlise sincrnica, privilegiando os fenmenos inconscientes. O objeto do estudo deste modo, inteiramente diverso num e outro caso. Assim, a experincia, momento fundamental, sempre pensada como mtodo confirmado. (Bachelard, 1968,122). A reflexo que nos leva a repensar o pensamento que conhece traz indicaes de que o importante aqui a relao entre a teoria explicadora e aquilo que ela explica, relao que se apresenta no objeto do conhecimento: fato cientfico, construdo. A caracterstica de ser resultado de uma construo inteligente marca todo objeto cientfico em todas teorias, embora nada se oponha mais s evidncias do senso comum que a distino entre objeto real, pr-construdo pela percepo, e objeto cientfico, como sistema de relaes construdas expressamente(4) . O processo de teorizao no um reflexo direto e mecnico da realidade no plano do pensamento, bem como as teorias no so verdades reveladas. So sempre o resultado de um trabalho difcil e complexo para conhecer o seu objeto, utilizando as teorias e as experincias anteriores, tentando ultrapass-las e as mltiplas formas do seu reconhecimento, atravs do estabelecimento do fato cientfico e do tratamento rigoroso dado a sua relao com ele. A verdade do resultado terico deste trabalho diz da sua adequao realidade, ou seja, capacidade explicativa diante do prprio objeto que ela se prope, o que exige que se recorra experincia. Cabe precisar o que se est entendendo por experincia. Se a experincia de laboratrio ou experimento controlado (Nagel, 450-459) apresenta enorme valor nas realizaes cientficas em tantos casos, nem por isso crucial ou indispensvel. At porque as dificuldades tcnicas e lgicas que traz so muitas vezes insuperveis. Visa descobrir relaes de dependncia, mas no consegue resolver problemas como o da incerteza da atribuio das diferenas verificadas (devemse a diferenas no estado inicial das variveis? A diferenas em outras circunstncias fora do controle da experincia?), ou como o fato de os fenmenos sociais serem histricos (e da muitos deles nicos, no recorrentes), ou como o da irreversibilidade da mudana, etc. Refiro-me muito mais certamente ao controle experimental, entendendo-se da forma mais aberta possvel, embora precisa e especfica em cada caso particular. Esse controle e essa abertura que constituem a pedra de toque do trabalho propriamente

6 cientfico. No simples atingi-los, no nem um pouco fcil mant-los, mas essa uma experincia que a cincia moderna no pode prescindir. Por maior que seja o controle, porm, a realidade que a pesquisa pretende conhecer permanece sempre mais rica do que a teoria que a ela se refere. A eficcia do controle nunca plena, e este passa a ser mais um argumento para que o investigador mantenha seu esprito em aberto, em ateno vigilante e metdica. Sob este aspecto, o pesquisador individual tem seu peso no conjunto do processo de co-construo. Atende-se, no entanto, que no neutralidade que se est pedindo a ele, mas participao crtica, vontade empenho em conseguir descobrir, melhor dizendo construir uma explicao precisa, capaz de satisfazer o nvel de exigncia requerido. Trata-se, sem dvida, de uma construo, dominada por um projeto, a teoria em ao que o cientista tenta desenvolver erigindo em nova teoria. Isso posto, certo que h uma interferncia decisiva do sujeito, terico enquanto constri a teoria, emprico enquanto testa na prtica. O sujeito emprico, antes de ser um definidor de situaes, aparece como um portador. De um lado, em que o processo inconsciente, portador de uma cultura - que lhe dita os hbitos, as maneiras de proceder, as normas a seguir, as preferncias, etc; de uma linguagem que lhe estrutura pensamento. De outro lado, em que ele atua conscientemente, portador de tudo aquilo que ele j sabea respeito da coisa: atravs da experincia passada, individual, dos grupos e da sociedade, no que dela ficou guardada na memria, constituindo as prenoes (5) ; e atravs das teorias codificadas que lhe servem de apoio, fornecendo-lhes as noes a respeito do que procura, conceitos, relaes, precises. Tendo isso em conta, o sujeito aparece como portador de um projeto. com este projeto, que no tem a caracterstica de ser privativo seu, mas de ser a forma de atualizao da teoria que o produz, que ele conduz e realiza a experincia. Longe de se neutralizar, ele desempenha o papel de ativar a teoria. Na experincia, ele cria as condies, cria o objeto; ela no algo que acontea e que seja observado de fora mas, sim, algo produzido, seja no laboratrio, sob condies ideais, seja na realidade, com controle relativo e parcial. Apresenta sempre participao efetiva, em que os aspectos do objeto real que o sujeito terico organizou na anlise vo constituir o fato cientfico. O funcionamento da experincia forma a prova, mostrando se a teoria consegue ou no o real que ela formula. A tautologia a um risco permanente pois o real que dever fornecer a ltima palavra no o real externo e concreto, mas o real que a prpria teoria formulou. Da principalmente a necessidade de crtica sobre aquela formulao, a indispensabilidade de abertura metodolgica. I - Existe uma histria da cincia Para que possamos falar do conhecimento cientfico como verdade, temos que salientar seu carter transitrio, histrico. E no esquecer a ligao forte existente entre a sua histria e a sua atualidade, ou seja, que o objeto da histria da cincia construdo a partir do que a cincia hoje, embora no se identifique com o objeto da cincia (Bachelard, 1951). O objeto do discurso histrico, com efeito, a historicidade do discurso cientfico, enquanto esta historicidade representa a efetivao de um projeto estabelecido interiormente, mas transpassado de acidentes, retardado ou desviado por obstculos, interrompido por crises, isto , por momentos de julgamento e de verdade(Canguilhem, 17). Apesar de se poder discutir se as cincias sociais j tem ou no histria, nas cincias da natureza a questo se simplifica. Em cada rea do conhecimento possvel seguir o alargamento e o refinamento das explicaes. A constituio de uma cincia

7 refuta as idias acatadas na poca sobre seu objeto e seus mtodos. Desde a sua consolidao o seu objeto redefinido vrias vezes , mas as teorias que lhe do corpo no desaparecem no esquecimento como inverdades. Elas em geral ao serem construdas estendem a sua aplicao e a sua validade longe demais. Esses excessos que mais tarde sero cortados, tornando-as mais estritas e mais rigorosas. O conhecimento que se tinha conseguido elaborar na rea do saber em pauta, pois, no se apresenta como acabado ou definitivo. Mas a sua validade, assim como a sua limitao, s so compreensveis a partir da formulao que o nega e com a qual a cincia progride. Exemplifiquemos, seguindo Bachelard, com Einstein e Newton: Do ponto de vista astronmico, a refundio do sistema einsteiniano total. A astronomia relativista no sai de nenhum modo da astronomia newtoniana. O sistema de Newton era um sistema acabado. ... o pensamento newtoniano era de sada um tipo maravilhosamente transparente de pensamento fechado; dele no se podia sair a no ser por arrombamento. Mesmo sob aspecto simplesmente numrico, enganamo-nos. Acreditamos, quando vemos no sistema newtoniano uma primeira aproximao do sistema einsteiniano, pois que as sutilezas relativistas no decorrem de uma aplicao aperfeioada dos princpios newtonianos. No se pode, portanto, dizer corretamente que o mundo newtoniano prefigura em suas grandes linhas o mundo einsteiniano. bem depois, quando nos instalamos de improviso no pensamento relativista, que reencontramos nos clculos astronmicos da relatividade - que mutilaes e abandono os resultados numricos fornecidos pela astronomia newtoniana. No h, portanto, transio entre o sistema de Newton e o sistema de Eisntein. No se vai do primeiro ao segundo acumulando conhecimentos, redobrando os cuidados nas medidas, retificando ligeiramente os princpios. preciso, o que ao contrrio, um esforo de novidade total. ... A astronomia de Newton pois, finalmente um caso particular da Panastronomia de Einstein, como a geometria de Euclides um caso particular da Pangeometria de Lobatchewsky (Bachelard, 1968, 43-44). Cada grande avano da cincia se marca por uma descontinuidade com o todo terico anterior e este que serve de esteio para as explicaes do senso comum , depois de longo processo de sedimentao. O fato cientfico da ordem do terico e no do real. sempre uma abstrao, a qual no se chega, porm, sem romper com o espontaneismo, marca do senso comum, que no tem meios de evitar a sua subjugao pelas formas de pensar dominantes. Sem este rompimento o progresso cientfico impossvel . Se uma teoria conduz a pesquisa cujo resultado uma nova teoria, o conhecimento conseguido se acrescenta ao anterior. Verifica-se, ento, o seu carter acumulativo. Os partidrios do mtodo cientfico pretendem que esta acumulao s se d no caso de continuidade entre os dois conhecimentos(6), o que contradiz a caracterstica mais marcante da cincia: a incorporao do novo, a novidade radical, a diferena qualitativa que acompanha a descontinuidade. Como a cincia no se produz unicamente para atender suas prprias necessidades, mas responde sociedade e ao homem e pode vir a lhes servir, as suas aplicaes vo tornando as invenes mais arrojadas e as explicaes mais revolucionrias de certa forma acessveis a outras camadas sociais. um processo de vulgarizao, atravs dos tcnicos e especialistas que delas precisam se inteirar para a realizao do seu trabalho na produo em geral, e atravs daqueles que delas usufruem. Assim, o conhecimento cientfico avanadssimo de hoje ir fazendo parte progressivamente do conhecimento vulgar de amanh. Nem por isso deixar de ser cientfico.

8 Por outro lado, quando ocorre no domnio cientfico uma ruptura, ela no elimina a verdade anteriormente aceita como se deixasse de ser cientfica. A negao que sobre elas exerce de outra espcie. No podemos esquecer que ela no se restringe aos aspectos substantivos, mas envolve tambm o mtodo, a tcnica e o objeto. indispensvel ressaltar a mudana de objeto. Trata-se de um campo especfico sobre o qual a teoria anterior j no tem o direito de falar, ao qual ela no mais pode se aplicar (se que antes o teria divisado, ou pretendido dar-lhe alguma explicao). Com a Fsica einsteiniana, como vimos, a Fsica newtoniana no lanada fora da cincia Fsica: a dimenso da sua verdade se especifica, a sua aplicao se limita. At certo modo ela se reafirma no domnio que pelo menos por enquanto lhe permanece assegurado. Estou facilitando a tarefa que me impus pensando a cincia como corpo terico j constitudo e tentando acompanhar o processo da sua formao ao longo do tempo. O quadro se complica quando focalizamos um momento dado a cincia se constituindo. Encontraremos num mesmo setor do saber tentativas bastantes diversas, cada qual chamando a si as melhores condies de contribuir para a elaborao do conhecimento cientfico. A explicao desta variedade no a que me est preocupando aqui. Os procedimentos da experincia tero lugar de relevo na seleo das alternativas mas as concepes do que seja a prova das condies que deva satisfazer tambm variam. A prpria experincia concreta e a viabilidade eficincia que forneam para o posterior desenvolvimento da experincia que garantiro a permanncia de uma abordagem como parte do corpo da cincia. Apenas os aspectos substantivos j no so suficientes para dizer da cincia. Ela se compe de um processo constante de pesquisa em interrelao profunda com os produtos intelectuais desta pesquisa. Ela tanto mtodo quanto teoria, um como condio do outro. A cada momento cada rea do conhecimento cientfico dispe de pelo menos um aparato terico de explicao. Se fosse possvel analiticamente indicar os elementos da construo terica e as suas relaes em dois momentos distintos do seu desenvolvimento num esquema grfico, teramos algo como o Quadro I. QUADRO I A unicidade da construo terica - especificao das relaes entre os seus elementos (2) teoria mtodo mtodo experincia objeto cientfico tcnica infirmadora tcnica objeto real objeto real objeto cientfico

(1) teoria E X P E R I N C I A

9 Estes dois momentos distintos so aqui referidos, sem fazer diferenciao, necessria num outro nvel de abstrao, entre: a) o ponto de no-retorno(na expresso de F. Reynault) como corte epistemolgico (Pcheux & Balibar, 8); b) a ruptura epistemolgica, que o seu efeito, a partir da qual a cincia em questo se constitui (idem, 11); c) as demarcaes ou rupturas intra-ideolgicas que antecedem o corte (idem, 10); e d) as refundies ou rupturas intra-cientficas (idem, 12). As pessoas comuns no duvidam da existncia do real. A sua experincia a confirma a cada dia, especialmente diante dos obstculos que ela lhes coloca. A prtica cientfica muitas vezes vem encontrar elementos j codificados e classificados teoricamente, mas at ento no observados; por outro lado, muitas vezes depara com objetos no esperados pelas formulaes anteriores. Seguindo os ensinamentos e as dvidas suscitadas pela experincia, podemos, assim, supor que a realidade existe e se transforma com uma organizao prpria, independentemente do que achemos, saibamos ou queiramos. neste sentido que as teorias, embora construes, se aproximam da noo mesmo de descoberta. Mas tendo sempre presente que nem ao menos temos condies de perceb-la ou aprend-la por inteiro. Apoiamo-nos sobre aquilo que j, ou por enquanto, conseguimos entender dela e, seguindo este guia terico, que tambm uma limitao, que vamos at ela. Pondere-se que o trabalho terico no se estar exercendo sobre a realidade, mas apenas uma parcela dela, e no tal qual seja, mas de acordo como ns a vemos. Aquela teoria e aquele objeto real, ambos especficos de um momento determinado do desenvolvimento cientfico, interagem formando a experincia, que adere a suas especificidades, orientada pela teoria. O mtodo, pois, se exerce no estabelecimento da conseqncia terica desta relao, orientada teoricamente, entre a teoria base e o real a que se refere para o qual pretende apresentar uma explicao vlida. Como resultado deste exerccio metdico fica construdo o objeto do conhecimento, objeto cientfico. Este o ponto em que a tcnica comea a ser requisitada, uma tcnica tal que possa ser produtiva e eficiente diante daquela tripla especificidade, relacionando objeto cientfico e objeto real. Poder-se-ia contrapor que as tcnicas apenas indicam como fazer. Lembro-me, no entanto, que como fazer depende de quem faz e do que feito. Toda tcnica se limita pelo tipo de fora que a pe em funcionamento e pela resistncia sobre a qual ela se aplica. A alegao da sua neutralidade caber dentro destes limites? Pretender qualquer tratamento isolado de qualquer das partes da construo no atende, portanto, a sua unicidade. Essas sete instncias da construo do conhecimento forma um todo nico altamente integrado. A modificao de uma acarreta modificaes nos demais e este processo de transformao se d quando, posto prova o conjunto, como um todo ou mesmo numa das relaes que o compem, ele no resiste; quando negado na prtica e se reduz aos limites que a experincia lhe impe, permitindo uma formulao. Nenhum dos seus termos pode ser transferido a outro conjunto impunemente. Uma imagem mais adequada da composio historicamente construda da teoria numa rea do saber contraria, ento, com cada um dos momentos (conjunto tericos integrados) demonstrando uma ruptura com o momento anterior, que, porm, a partir do que lhe sucede, pode ser entendido como parte. Se a teoria tem seu poder modificado no tempo marcado pelas descontinuidades das grandes descobertas cientficas, o mesmo ocorre com o mtodo. Ao carter transitrio do conhecimento cientfico substantivo corresponde o carter no absoluto do mtodo: no h um conjunto de normas e regras que garantem a cientificidade. Dois so os problemas que aqui se levantam: a historicidade do mtodo e seu carter intracientfico.

10 Transformando-se os conjuntos tericos, transformando-se as suas relaes bsicas. A relao teoria/objeto real, que estabelece o objeto do conhecimento, diversa, bem como, diversos so os termos para um e para outro sistema explicativo. Cada teoria tem o mtodo que lhe adequado mas que, ainda assim, aproveitando a cincia passada como material de reflexo, no pode deixar de ser constantemente submetida crtica. No basta ter um mtodo, no basta controlar a sua aplicao, preciso ir at a vigilncia do prprio mtodo: o que Bachelard chama de terceiro grau de vigilncia. O prprio mtodo postula a sua no aceitao fora de uma vigilncia constante (Bachelard, 1966, cp. IV). Pensando a cincia em bloco, como um todo, podemos falar de autonomia da pesquisa (Kaplan, 3 sg.); ou seja, no se pode afirmar a verdade da cincia ou pretender a aceitao de uma formulao em funo de nenhuma disciplina que lhe seja superior ou lgica, ou metodologia, etc. Claro que esta autonomia no se refere a cada cincia em particular, nem a sua relao com a sociedade na qual a cincia est inserida. No tem cabimento a cincia como algo fechado em si e independente de tudo mais. Muito pelo contrrio, a sua insero profunda, embora no seja direta, no meio social. A cincia no cabe no mundo por diletantismo ou por motivao meramente intelectual. J o processo de institucionalizao dos centros de pesquisa est a mostrar que as investigaes l realizadas tm importncia para a sociedade. No fossem elas as principais responsveis no mundo atual pelas explicaes sobre as quais o homem constri seu mundo e articula suas relaes com ele. Hoje temos condies de discernir com clareza que esta dependncia em relao s necessidades e aos reclamos sociais no se faz mecanicamente. O desenvolvimento terico tem ritmo prprio, embora as vias mais fecundas de investigao tenham estreitamente a ver com as carncias da estrutura social e do homem desta estrutura. O que me preocupa aqui a compreenso do mtodo como lgica da investigao. Castells mostrou com nitidez a particularidade desta posio de pretensa universalidade (pp. 2 sg.). O cientista investigador sabe que no existe uma lgica definida da descoberta. Sabe que possvel criar hbitos intelectuais (Bourdieu & Chamboredon & Passeron, 7-12; Bachelard, 1968, 147 sg; Kaplan, 13-18) que facilitam a abertura do pensamento, a flexibilidade de raciocnio e de ateno, de tal modo que se aprenda a se deixar guiar pela teoria e pelo mtodo sem se escravizar a ele, pois que o aspecto que excita a lgica (Bachelard, 1968, 149). Esses hbitos, capazes de treinamento e desenvolvimento, referem-se naturalmente pessoa do investigador enquanto que o elemento dominante se deslocou para a teoria que o informa. Coerncia apenas no basta para o conhecer. Ela critrio, sim, mas de uma verdade formal, que no diz nada acerca do mundo, no capaz de nada acrescentar. Cincia implicando em conhecimento novo, esta novidade necessariamente ultrapassa a coerncia, cujos limites esto sempre fixados pelo discurso mesmo que dele parte. A lgica, construda como tal, no mais do que uma lgica de coerncia, de consistncia, puramente dedutiva. Ela um auxiliar da maior importncia na concatenao dos resultados, na sua organizao e exposio. Como disciplina cientfica, a Lgica constitui no fundo uma anlise da atividade pensante, que muito mais rica e complexa do que esta sua reconstruo. Tendo isso em mente que Kaplan distingue entre Lgica em uso e lgica reconstruda (Kaplan, 3 sg.), a primeira se referindo aos estilos cognitivos, s formas de abordagem do objeto, em que no falta lugar para a inventividade e a imaginao, sem as quais no se conhece o verdadeiro progresso da cincia. Deste modo, essa lgica no um a priori que o cientista deva seguir cegamente.

11 A questo da verdade material tem a ver com a confirmao na experincia, que relativa totalidade terica disponvel e aceita na ocasio. Se, para aprofundar o conhecimento construindo um objeto mais simples e melhor definido, preciso distanciar-se de uma lgica, ou em outras palavras, se uma lgica no est de acordo como o real sobre o qual se tem controle, muda-se a lgica, no se diz que o real que est errado. Por conseguinte, um fracasso experimental cedo ou tarde uma mudana de lgica, uma mudana profunda do conhecimento (Bachelard, 1968, 122). Neste sentido, fica claro que no uma lgica que d validade pesquisa, mas ao contrrio. O compromisso do cientista , em ltima instncia, sempre com a realidade e no com uma lgica. No se pode pretender que o desconhecido seja reduzido ao conhecido, assim como a cincia no o afirma como incognoscvel. Pesquisa sendo explorao do at agora desconhecido, ou parcialmente conhecido, tem que encontrar guias que indiquem as possibilidades das vias de acesso at ele, mas o estabelecimento normativo dessas vias implicaria num conhecimento prvio delas, o que nega de incio o esforo da pesquisa. um reducionismo grosseiro a pretenso de uma lgica da descoberta, ou de um mtodo cientfico afirmado de uma vez por todas. Tendo a cincia uma histria, mister do cientista aprender com ela. E assim como ela mostra a falncia de alguns mtodos, ela indica fecundidade de outros. A cada momento do desenvolvimento cientfico algum ou alguns mtodos so apontados como os mais eficientes no tratamento de tais ou quais problemas. At que outros os suplantem. A cincia no tem preconceitos. Ela no mera sistemtica, no simples classificao; ela se abre para o conhecer, apenas isso que lhe importa, por isso que sofre tantas vezes tantas oposies do social. Os novos momentos de desenvolvimento cientfico no se acumulam em continuidade com os momentos anteriores. A sua novidade exige descontinuidade nessa acumulao. Permanece lcito falar em cumulatividade desde que o novo aqui no se constri por mera oposio ao antigo, mas mantm, limitando-o, e o ultrapassa, acrescentando-se a ele. Assim que o nvel cada vez mais alto. II - O mtodo Cientfico Na cincia contempornea ainda encontramos marcas profundas de uma valorizao excessiva do mtodo, como tcnica e/ou como lgica. Veremos como ela se associa a tendncias tipicamente cientificistas. Isto , creio podermos associar a uma supervalorizao do mtodo, consequentemente muito radicalmente categorizado em oposio a todas as demais. Deparamo-nos com afirmaes do mtodo cientfico colocado num nvel manifestamente superior aos outros mtodos, sem maior discusso externa ao prprio mtodo e sem considerar aspectos tais como especificidade histricas, tempo e/ou estruturas diferenciais, etc. Acredito que devamos nesta altura dedicar a nossa ateno aos outros que formulam o mtodo cientfico e tentar escutar suas lies. Nagel pode-nos ajudar bastante no esclarecimento do que se entende por mtodo cientfico, sem o risco das interpretaes ingnuas demais. Diz ele: 1) ... as concluses da cincia, diversamente das crenas do senso comum, so produtos do mtodo cientfico. Esta frmula breve, entretanto, no deve ser interpretada erradamente. No deve ser entendida como afirmando, por exemplo, que a prtica do mtodo cientfico consista em seguir regras

12 prescritas para fazer descobertas experimentais ou para encontrar explanaes satisfatrias para fatos estabelecidos. No h regras de descoberta e inveno na cincia... Nem afirmandoque a prtica do mtodo cientfico consista no uso de algum conjunto especial de tcnicas em todas as pesquisas, independente do objeto ou do problema em investigao. Tal interpretao do dictum uma caricatura da sua inteno... Nem, finalmente, a frmula deve ser lida como reivindicando que a prtica do mtodo cientfico elimine efetivamente toda forma de biasou fonte de erro pessoal que poderia de outro modo debilitar o produto da pesquisa, e mais geralmente que ela assegure a verdade de qualquer concluso alcanada pelas pesquisas que empregam o mtodo. ... A prtica do mtodo cientfico a crtica persistente dos argumentos, luz dos cnones postos prova para julgar a fidedignidade dos procedimentos atravs dos quais os dados da evidncia so obtidos e para avaliar a fora comprovadora da evidncia em que se baseiam as concluses. Se as concluses da cincia so os produtos de pesquisas conduzidas de acordo com uma poltica definida para obter e julgar a evidncia, a rationale para a confiana autorizada nestas concluses deve ser baseada nos mritos desta poltica. (Nagel, 12-13) Neste sentido, o mtodo cientfico uma avaliao crtica da evidncia disponvel que se compe mais de hbitos intelectuais do que de regras fixadas. No fundo, o mtodo cientfico se constitui dos cnones (ou poltica definida) para obter e julgar a evidncia, isto , procedimentos normativos para coleta de dados e para determinao dos tipos adequados destes. A crtica do mtodo se exerce pelo retorno crtico(7) daquilo que se faz atualmente como pesquisa ao que os cnones indicam como devendo ser feito. A referncia falsidade de possveis interpretaes introduz na anlise um elemento de relativismo quanto ao mtodo cientfico: no que se refere segunda observao, em funo do objeto de estudo, donde a possibilidade de mtodos cientficos distintos para reas diferentes do saber; no que se refere terceira observao, quanto verdade alcanada, vislumbrando uma dimenso de incerteza quanto aos resultados, embora imputando a restrio ou a falhas de tcnica ou a bias pessoais dos pesquisadores. E embora na primeira observao negue a existncia de regras que garantam a descoberta e a inveno, no deixa de afirmar que a confiana nas concluses se justifica pelo mtodo. Mesmo no sendo garantia de verdade ele o responsvel pelo que de cientfico se consiga como resultado. Por ele a cincia se afasta do senso comum. As observaes, portanto, parecem encaminhar distines entre posies mais simplificadas e mais sofisticadas. D ao uso do mtodo cientfico uma dimenso menos puramente realista, e portanto mais rica, mas no lhe muda o carter. A explicao consiste em relacionar dados. preciso dispor dos dados para relacionar. Tem-se que ir colhe-los. No se pode descuidar da verificao de que eles sejam evidncia adequada, de que realmente correspondam quilo que ns definimos como variveis no problema. Nem da sua no transformao, ou deformao, no processo da coleta. Definida a evidncia despojada, a dificuldade mesmo reside em como consegui-la: assim que o mtodo aparece como fundamental. O seu julgamento, segundo padres fixados na cincia - as normas (fluidas) do mtodo cientfico(Bunge, 263) -, permite distanci-lo de outros tipos de aproximao do real, garantindo cincia o lugar de destaque que faz com que seus produtos sejam ouvidos com ateno e acatados. A sofisticao e o rigor do mtodo como garantia de diferenciao do seu status no conjunto das explicaes disponveis.

13 Semelhantemente, Hengenberg prope que: Criticando o bom senso, modelando-o, atinge aquele saber designado como cientfico. O mtodo cientfico, em relao aos objetos da experincia ordinria, impe certa ordem, classificando, medindo, explicando as coisas e fenmenos ... Partese de alguns dados comuns. ... Estabelecem-se certas correlaes entre aquilo que se constata. ... Face a dados novos ... (Hengenberg, 12) O mtodo cientfico continua tendo a ver com os dados, objetos da experincia ordinria, constatveis. com estes objetos concretos do mundo sensvel que se lida. So eles que decide: se eles mudam, se aparecem novos, o conhecimento os acompanha, pois o que ele pretende descrev-los, classificando-os. E isso feito a partir de um exerccio crtico sobre o senso comum. A existe uma diferena quanto a Nagel. L a crtica se dirigia aos argumentos, aqui ficamos com o bom-senso, que ser sistematizado e controlado. A distncia continua bem marcada entre a cincia, a que consegue as explanaes controlveis pela evidncia factual e as demais formas de conhecer. Quando nos defrontamos com um homem de cincia e no um filsofo, preocupado com os mtodos, vemos que a concretizao sempre maior. A cincia passa a estar delimitada, a teoria constantemente invocada, surgem questes especficas de interpretao e operao de mtodo. No campo da Sociologia lembramos logo Durkheim que, embora apresentado o mtodo como provisrio diante do avano da cincia (pp. XVII - XVIII), prope uma interpretao particular do social e, com ela, um conjunto de regras para orientar o desenvolvimento da Sociologia como cincia das realidades, partindo da observao e tratando os fatos sociais como coisas. O apelo realidade concreta para ele o critrio de cientificidade. Enquanto Durkheim pretente que o seu mtodo seja exclusivamente sociolgico, Radcliffe-Brown pensa na cincia da Sociedade como uma cincia natural, mas as preocupaes com a pesquisa se aproximam nos dois. H uma idia errada entre algumas pessoas de que o mtodo da cincia simplesmente de fazer observaes e assim descobrir alguma verdade geral. ... O mtodo da cincia o que envolve observao classificao e generalizao, no como processos separados, mas como parte de um procedimento complexo nico (P.28). A maneira de fazer descobertas que marcam poca no pode ser ensinada. o gnio que encontra as regras certas e as abstraes certas(P.30). A essncia do mtodo cientfico se baseia na descoberta de tcnicas de procedimento pelos quais se pode fazer comparaes cada vez mais exatas. Aqui entram medida tcnicas de mensurao (P.37). Aqui a simplicidade se alia clareza. Suspeita-se da complexidade do mtodo. Fazer pesquisa no fcil. Por mais que sejam definidos, os passos da investigao no tm ordenao rgida. Articulam-se na prtica, trocam de lugar. Como o objeto continua concreto, o mtodo se identifica com a tcnica e nela ressalta a mensurao, o apelo quantificao rigorosa. Mas h algo que perturba a tranqilidade da anlise: como suposio do objeto no plano real, uma vez regulado o acesso cientfico a ele, a partir do que se poderia pensar numa transformao no plano terico? Como dar conta do desenvolvimento cientfico? Radcliffe-Brown atribui as grandes modificaes do pensamento aos gnios: o acaso do surgimento de cientistas superdotados (condio externa prpria cincia) que ocasionaria a elaborao de regras novas para o conhecimento, que os demais seguiriam at que outro gnio surgisse (8) . Certo no estarmos frente a formulaes totalmente iguais, mas no menos certa a sua semelhana nos aspectos fundamentais e que se mantm ainda quando lidamos com a corrente que consiste numa nova exasperao do cientificismo, o

14 positivismo lgico (9). Com a sua discusso demanda o aprofundamento de tpicos que no cabem num trabalho como este, vou apenas dar indicaes breves e gerais, a sugerir um tratamento especfico posterior. Considerando a cincia como registro de enunciados e a possibilidade de reportar todos os enunciados a enunciados de observao (constataes), entendidos como o fundamento ltimo do conhecimento, o mtodo estar necessariamente vinculado derivao lgica dos enunciados e aos critrios de significado cognoscitivo, j que nem todas as proposies tm sentido. A histria destes critrios nos mostra um caminho que se inicia com a exigncia de verificabilidade emprica e termina com a tradutibilidade necessria a uma linguagem empirista. Acrescendo que a cincia deve ser unificada com base no fisicalismo, chega-se concepo de que a lgica da cincia no outra coisa seno a sintaxe lgica da linguagem da cincia(10). A linguagem unificada do fisicalismo salvaguarda o mtodo cientfico. O enunciado se enlaa ao enunciado, a lei lei (Nourath, 313). A distino entre enunciados com e sem sentido, ao se mostrar sem base para permitir, o desenvolvimento rigoroso da explicao, cria enormes dificuldades para a sustentao dos prprios fundamentos da teoria da construo do conhecimento no empirismo lgico. O apelo tradutibilidade como critrio encaminha para um desvio cuja direo o formalismo. A afirmao do mtodo cientfico pelo positivista lgico esquece necessariamente toda a discusso dos critrios de significado emprico. A qualificao de um mtodo como o mtodo cientfico o ope aos demais, portanto no cientficos. O primeiro problema que tal oposio nos traz o da absolutizao do mtodo, que nossa discusso j mostrou ser contrria a sua historicidade. Pensar no mtodo cientfico consiste num pensar no cientfico. Em segundo lugar, implica numa supervalorizao da cincia, decorrncia do seu isolamento como inteiramente autnoma, quer no quadro das formas do saber, quer no quadro da sociedade. Com a cincia estaramos com a verdade, sendo que a no-cincia se identificaria com a opinio, a ideologia, ... Seguir os cnones estabelecidos j seria uma garantia da obteno da verdade. Da segue a vantagem em dispor deste mtodo milagroso, conhec-lo e dominlo enquanto conjunto de tcnicas que, se bem manejadas, conduzem descoberta da verdade. Descoberta entendida no seu sentido vulgar de atingir algo j pronto e constitudo e que apenas no tinha sido alcanado antes. Essa descoberta preserva o objeto de qualquer interferncia, entendida no caso como contaminao. Supe-se o mtodo como elemento capaz de permitir desvendar o mundo, a realidade, guardando desta a sua objetividade pura e total. Dissocia-se o resultado do processo de sua obteno, tanto mais quanto mais se for cientista. Isto , reduz-se o mtodo tcnica e supe-se a sua neutralidade. Ela ser tanto melhor, mais cientfica, quanto menos interferir. Ela pensada como no tendo nada a ver com o contedo sobre o qual aplicada. O esforo da pesquisa apenas tcnico , nada terico. Terico unicamente o seu resultado. Sendo a tcnica estritamente concreta, a neutralidade dela depende to somente da neutralidade de quem utiliza. A partir da o foco centrado no pesquisador individual. O melhor cientista seria a mquina, incapaz de pensar, mas com timo desempenho tcnico, o tanto mais quanto sofisticadas forem os seus instrumentos de formalizao, das lgicas linguagem matemtica. Evidente que num mundo mostra, em que s se precisa ir corretamente at ele para descobri-lo, neste ir a que se concentram todas as atenes. Sempre h o risco de erro no conhecimento, correspondente a uma cpia mal feita, erro este

15 sempre imputvel forma da obteno do saber, ao mtodo, sendo as divergncias imputadas s subjetividades distintas. Quando se busca o apoio do mtodo cientfico, entende-se o conhecimento como nada mais que manipulao de dados pelo sujeito. Seu primeiro fundamento a iluso do real transparente, mostrando-se e fornecendo dados que o espelham. Neste real, a objetividade absoluta, em oposio ao sujeito do conhecimento inteiramente contido no indivduo pesquisador, lutando por vencer sua subjetividade no trato dos objetosconcretos. No apenas o objeto se d a conhecer, como ainda o sujeito opera com ele enquanto coisa concreta. por demais absurdo supor que ao pensar uma pedra o sujeito est colocando uma pedra concreta dentro da cabea. Procura-se resolver a dificuldade apelando para a sensao, das impresses que a pedra causa no sujeito que a observa. Supe-se trazer o objeto tal qual dentro do pensamento. No h como negar que ela existe fora do sujeito, mas este como que a transpe, tentando resguard-la na sua inteireza, para dentro do conceito ao resultado deste primeiro processo de abstrao(11). O fundamento do conhecimento permanece, pois, na constatao momento da transposio (Schilick,215-232). Desse modo, entre as suposies bsicas de mtodo cientfico contam-se as seguintes. Recolhem-se indcios do real para com eles compor, sistematizando, uma cpia de objeto. A verdade desta cpia se confunde com a objetividade, quando vrias subjetividades concordam quanto a ela. Considerando o objeto como objeto real que se oferece, consistindo esta oferta nos dados, o sujeito no devendo interferir, mas apenas captar estes dados e trabalha-los, o conhecimento no seno o resultado da manipulao deles e o essencial para consegui-lo o mtodo (tcnica) adequado. III - O mtodo cientfico, iluso empirista Os mtodos que a cincia contempornea emprega no so formulados antes nem fora da atividade cientfica. A filosofia certamente conduz uma reflexo sobre os mtodos das cincias, mas a sua relao bem mais complexa e bem mais ntima do que se pode supor. No se trata aqui de uma filosofia da cincia, como se entende em certos crculos, mesmo porque, se no se aceita uma como completamente absorvida pela outra, tambm no se as considera como totalmente separadas. So duas atividades da inteligncia, distintas e especficas, mas muito fortemente conjugadas. Hoje a cincia no prescinde da filosofia, no precisa romper com ela para se fazer como cincia, nem se pode dar a ela inteiramente como objeto porque, num sentido, parte dela. Por outro lado, a filosofia no dispensa a cincia como forma rigorosa do saber humano. Uma filosofia da cincia supe exatamente esta separao que vimos negando. A filosofia definiria as tarefas da cincia e as especificaria como tal. Assim, por exemplo, quanto a descrio, ela analisaria no a descrio em geral, mas perguntaria que tipo de descrio cientfico, em oposio ao potico (Scrivem,84), etc. A filosofia da cincia simplesmente a discusso dos critrios gerais para teorias, classificaes e o mais, e necessria enquanto as instituies ou asseres dos cientistas sobre o que constitui procedimento adequado esto em conflito ou podem ser melhoradas pela anlise (Scverin, 84). Se, porm no h cincia sem filosofia, se no h filosofia sem cincia, se em cada uma cabe a outra sem ferir suas especificidades, perde o sentido pensar em termos de uma filosofia da cincia. Enganam-se aqueles que a dizem idntica metodologia cientfica, pois esta tem razes na prpria cincia. um exerccio cientfico e no especificamente filosfico. No caso, a prioridade cabe ao exerccio metdico da prtica cientfica. E se permitido falar em cientificidade sempre como resultado desta

16 atividade e no daquela. As questes realmente relevantes surgem a partir das cincias corretas e particulares, em termos de uma reviso crtica, simultaneamente terica e metodolgica, das suas possibilidades e da sua capacidade atualizada. Em nem todas pocas a pesquisa cientfica estimulada igualmente, nem todos os setores do saber so igualmente beneficiados, mas nunca a cincia considera seus resultados como acabados. com estas consideraes que se pode pensar a constncia da pesquisa. Jamais um pesquisador diz, ao concluir o seu trabalho: Agora sim conheo. Sua posio exige um rigor maior, e ele dir: Agora o conhecimento mais perfeito do que aquele de que partimos. Continuemos logo as pesquisas para, numa crtica incessante, transform-lo e torn-lo ainda mais verdadeiro. A teoria est sendo transformada. Parte-se de uma teoria - base para problematizar o objeto que lhe prprio, quando ele aparece como um desafio. Mas tambm ela se problematiza enquanto faz cincia. O mtodo da problematizao dela no idntico ao mtodo da problematizao que ela faz. Deste modo, fazer cincia transforma incessantemente o mtodo. E essa capacidade de transformao sempre presente que d carter de cientfico. Ele s permanece intacto, fechado, se no for posto em prtica ou se o for, mas de forma contrria ao progresso da cincia. Fazendo-se a cincia, a renovao permanente: da teoria, do mtodo, da tcnica, do objeto. Pensando a cincia no tempo, olhando os grandes momentos de que se compe conclumos que as autnticas revolues que os constituem no se do por pura continuidade com a teoria, o mtodo, a tcnica e o objeto anterior, nem por algum processo que nada tenha a ver com eles (como uma gerao espontnea). Do-se atravs de uma forma especfica de negao da sua prpria base, do seu prprio ponto de partida. Isto , o desenvolvimento do conjunto terico anterior condio para a novidade que o conjunto atual possa construir. O conhecimento nunca parte do vazio, do total desconhecimento. Toda investigao supe um projeto, um corpo terico que lhe d forma, orientao e significado, e que muito mais do que meramente um quadro de referncia terico. Supe-se tal complexidade do concreto real que o conhecimento s pode ir construindo as representaes que o vo explicando num processo infinito de aproximao. Qualquer que seja o conhecimento ele sempre parcial e, assim de maneira ampla, seletiva. Mas essa seletividade no depende da subjetividade do investigador. Vimos que o trabalho eminentemente terico - os critrios da seleo, de quais aspectos guardar e quais abandonar so tericos. E a mesmo que se encontra o cerne da relao teoria/realidade, definidora da formao do conhecimento. Ao contrrio, o apelo realidade dos objetos concretos, princpio primeiro de toda epistemologia espontnea, no faz seno manifestar a objeo prejudicial do senso comum cincia (Bourdieu & Chamboredon & Passeron, 228). J Max Weber, afirmando a possibilidade das cincias humanas, discutindo o dualismo entre cincias da natureza e cincias da cultura e adotando a postura compreensiva (Verstehen), nega que a impossibilidade de atingir a realidade ontolgica dos fenmenos seja restrita ao mundo cultural e a afirma para qualquer campo. Para ele, todo conhecimento reflexivo (Denkende Erkenntnis) da realidade infinita por um esprito humano finito tem consequentemente por base a seguinte pressuposio implcita: somente um fragmento limitado da realidade pode construir cada vez mais o objeto da apreenso (Erfassung) cientfica e somente ele essencial, no sentido de que ele merea ser conhecido (Weber, 135). No que concerne percepo, h bastante tempo a Psicologia vem fazendo importantes revelaes. No h mais possibilidades de dvida quanto ao seu carter

17 seletivo: a percepo no pura, nem global, nem absoluta. Como no o objeto que se mostra, mas o sujeito que se dirige a ele e o interroga, quando a cincia est formada, isto , dispe de um corpo terico j constitudo, segundo ele que se procede ao interrogatrio, ele que est a pedir informaes sobre este ou aquele aspecto, sobre articulao deste com aquele nvel, etc. O observador s vai desprevenido para a observao quando nada sabe do seu objeto, mas no esse o caso da cincia. E no se est levando em conta a capacidade sensorial diferencial de cada um, que certamente altera o quadro da seletividade, porm de forma secundria. O que selecionado pela percepo no somente funo do nosso aparato perceptor definido fisiologicamente, mas tambm parcialmente funo do nosso aparato perceptor colorido e modelado pela nossa cultura. (Krech & Crutchffild, 92). Indivduos diferentemente dotados e com formao distinta percebem diversamente o mesmo objeto, vem aspectos diferentes diante do mesmo fato, compreendem-no de modo s vezes totalmente discordante. O conhecimento anterior de situaes ou tipos de pessoas ao qual ele liguem um objeto que lhes seja dado observar tambm altera a impresso que este lhes causa e o que aprendem dele. Krech & Crutchffield estudam o assunto, para o qual apresentam a proposio: As propriedades perceptivas e cognitivas de uma subestrutura so determinadas em larga medida pelas propriedades da estrutura de que ela parte (P.94). Onde haja discriminao racial contra negros, por exemplo, a boa ao de um negro menos notada que a de um branco, enquanto um crime praticado por negros, ainda mais se contra brancos, tende a ser reprimido muito mais fortemente do que no caso de seu autor ser um branco. No mesmo sentido, se as nossas informaes anteriores e a nossa memria nos do uma idia de como sejam os magistrados, e se travamos contato com um magistrado, tendemos a super-perceber os traos que se prendem s caractersticas segundo as quais definimos a classe a que ele pertence, e a subperceber os demais. Que contribuio nos pode trazer a reflexo atual da Psicologia sobre o assunto? (Piaget, 1970, cap.4) A percepo no nem mesmo uma realidade autnoma. Nossos conhecimentos no provm nem da sensao, nem da percepo sozinha, mas da ao integral da qual a percepo no constitui seno a funo de sinalizao. O prprio da inteligncia no o efeito, contemplar, mas transformar, e seu mecanismo essencialmente operatrio. Ora, as operaes consistem em aes interiorizadas e coordenadas em estruturas de conjunto (reversveis, etc.) e se se quer dar conta deste operatrio da inteligncia humana, pois da prpria ao e no da percepo sozinha que convm partir (Piaget, 1970, 84-85). A transformao do objeto a conhecer se d de dois modos: por ao fsica modificando suas posies, seus movimentos ou suas propriedades para explorar sua natureza; e por ao lgico - matemtica - enriquecendo as propriedades ou relaes do objeto com sistemas de classificao, de ordenao, de colocao em correspondncia, de enumeraes ou medidas, etc. Assim que no descobrimos a propriedade de um objeto seno juntando alguma coisa percepo (91). A prpria percepo no consiste em uma simples leitura dos dados sensoriais, mas comporta uma organizao ativa, na qual intervm decises e pr-inferncias e que devida influncia sobre a percepo como tal do esquematismo das aes ou das operaes (108). Da relao do conhecimento de que se dispe com o objeto a que se dirige que surge o dinamismo da pesquisa, orientado em todos os momentos do processo pela teoria. O sentido do vetor epistemolgico parece-nos bem claro. Ele vai seguramente do racional ao real e de nenhum modo, ao contrrio, da realidade ao geral (Bachelard, 1968,13). No a realidade que se d integralmente e sensibiliza o observador,

18 comeando o conhecimento. Se um pesquisador observa alguma coisa porque a considera como importante no esclarecimento de algo dentro do contexto terico mais geral que o mobiliza para a pesquisa. J tem, deste modo, pelo menos uma idia mais ou menos precisa do que vai encontrar na coisa observada, ou no mnimo do que vai buscar na observao dela. Por isso que parece muito mais correto falar de objetivao e no objetividade. Os estudos vinculados teoria dos quanta tem mostrado a impossibilidade de captar o fenmeno sem interferir nele; as micropartculas se modificam quando so submetidas observao. E mesmo se no o objeto nele mesmo que se altera com os procedimentos da pesquisa, a inesgotabilidade do real pelo conhecimento, por mais amplo e rigoroso que seja, mostra a carncia da objetividade cientfica colocada ao objeto real. Precisamos ir mais longe, porm. A experincia cientfica no significa a ida ao real tal como ele se apresenta, por assim dizer em estado bruto. Muitos so os fatores que no mundo concreto se ligam ao objeto que ocupa os estudiosos; inmeros devero ser eliminados para que o fenmeno surja com maior pureza; vrios podero ser sujeitos a controle na construo da experincia. necessrio, portanto, ter em mente que a experincia no um acontecimento contemplado de fora; ela compreende um conjunto de procedimentos minuciosamente coordenados e levados a efeito. O mtodo e a tcnica utilizados esto inextricavelmente unidos ao seu contedo, ao que ela . Nessa medida, a objetividade consiste numa estruiturao do dado (Piaget, 1967, 755). As primeiras impresses tm-se mostrado sempre enganosas. Os sentidos, em todas as significaes da palavra, fabulam(12) . Se o sujeito que procura, esta procura no se identifica com a busca do cego, ela orientada. Ela sabe o que quer, ela prev o que vai encontrar, mais do que isso, ela compe os elementos e se controla para poder observ-los num estado puro que a realidade no consegue oferecer. Ela trabalha com o possvel, no entendimento de que a realidade uma atualizao do possvel, entre outras. Bachelard, nos ensina que toda verdade nova nasce apesar da evidncia, toda experincia nova nasce da experincia imediata (Bachelard, 1968,15). A experincia se formula como hiptese atravs do conhecimento j constitudo sobre a realidade. S em seguida que inclui a observao, sob mltiplas formas. No caminha, pois, para uma objetividade dada, mas a formula num mtodo de objetivao. A objetividade se conquista passo a passo, por aproximaes indefinidas e tanto mais fraca quanto mais imediato o conhecimento dos objetos (Piaget, 1967, 755). Permanece o risco do erro. H os que pensam que ante o erro s podemos pedir uma explicao psicolgica; a verdade exige uma anlise lgica (Reichenbch, 127). A verdade como fuga do erro, como a pureza que se lhe ope e que radica no imediatamente sensvel (constatao): toda a verdade sinttica deriva da observao e todas as contribuies da razo ao conhecimento so analticas (idem, 268). A verdade se parte em objetiva e subjetiva, referente a coisas objetivas e subjetivas, atravs de oraes informativas objetivas ou subjetivamente verdadeiras, sendo as oraes informativas imediatamente verdadeiras (idem, 270). Por outro lado, o erro est sendo aqui encarado como elemento altamente positivo do desenvolvimento da cincia, e assim como parte importante da verdade. O rigorismo tecnolgico que repousa sobre a f no rigor definido de uma vez por todas e para todas as situaes, quer dizer, sobre uma representao fixista da verdade ou, partindo do erro como transgresso de normas incondicionais, se ope diametralmente pesquisa dos rigores especficos, que repousa sobre uma teoria da verdade como teoria do erro ratificado (Bourdieu & Chamboredon & Passeron, 28). Antes o erro, uma intuio feliz no uma intuio clara, ou pelo menos, uma intuio clara no uma intuio distinta. ... De qualquer modo, um intuio clara e

19 distinta no saberia achar por si mesma seu justo lugar na totalidade do saber. O erro um dos tempos da dialtica que ele tem necessariamente que atravessar. Ele suscita pesquisas mais precisas, ele realmente o motor do conhecimento (Bachelard, 1968; 2ed; 29). No se est pretendendo assim uma separao radical entre verdade e erro; ao contrrio, a verdade surge com o erro, no sentido de contra o erro que, deste modo, parte integrante do processo da sua construo. Uma verdade sobre um fundo de erro, tal a forma do pensamento cientfico (Bachelard, 1966, 48). A unicidade da construo terica j nos deu conta da falsidade da suposio da tcnica universal e neutra. Se na anlise da sociedade e dos grupos eu trabalho com questionrios, fao perguntas aos indivduos e utilizo as suas respostas como se fossem a realidade daqueles indivduos - buscando a objetividade- posso verificar que a tcnica de entrevistas tem por trs a suposio de que a realidade dos indivduos a sua conscincia, mesmo se eu estiver levando em considerao a deformao da situao pergunta-resposta. Alm disso, aquela tcnica me obriga a atomizar o meu objeto de estudo. Pode a teoria em que me baseio dizer que no assim, mas o uso do questionrio supe alguma teoria em que a sociedade e os grupos no sejam seno a soma dos indivduos de que se compe. Se eu seleciono os indivduos por amostras aleatrias, estou de sada, e sem qualquer possibilidade de recuperao posterior, supondo que no h distino essencial entre eles, ou melhor, que as distines sociais so todas superficiais, de tal modo que posso tratar a todos igualmente, que todos entendero igualmente a minha pergunta igual (basta que eu tenha cuidado no momento de formul-la) e que, assim, o significado de resposta idnticas ser tambm idntico. Se estratifico as minhas amostras, os critrios que presidem estratificao devero considerar as variveis trabalhveis pelas tcnicas de amostragem. Se as distines sociais efetivas dos grupos em questo no tiverem estas caractersticas, ... A cincia se volta para a realidade. As tcnicas que ela utiliza no servem dela (pelo menos no o deveriam!), mas servem a ela, dentro de esquemas tericos e metodolgicos especficos e em relao a realidades especficas. Uma das funes importantes da afirmao do mtodo cientfico tem sido a de conferir status cientfico queles que o seguem, inmeras vezes, apesar da precariedade dos resultados a que conseguem chegar. Autores que se beneficiam deste tipo de atribuio costumam incluir no incio dos seus trabalhos indicaes sobre as tcnicas que utilizam, conforme ao mtodo, visando muito menos o esclarecimento e a orientao dos leitores quanto compreenso mais adequada do desenvolvimento da pesquisa, do que conseguir aceitao geral, principal, seno unicamente, em funo do prprio mtodo. quase um prlogo ritual ao qual tudo o que se segue j deve ser encarado com seriedade e respeito. A crtica teoria esbarra na defesa do mtodo. Assistimos hoje a algo como um transbordamento da preocupao exagerada com o mtodo. Comum entre os empiristas, que chegam at a pretenso de validade universal e absoluta do mtodo cientfico, especialmente nas Cincias Sociais, ela temse intensificado entre os no-empiristas. Cada vez mais se vem buscando a compreenso da adequao-no adequao das formulaes em termos estritamente metodolgicos. Crescentemente se vem mitificando o mtodo. As perguntas mais freqentes so: Como devo proceder? Qual o mtodo vlido? isolando os mtodos dos seus contextos tericos, utilizando indiscriminadamente tcnicas de um para trabalhar com conceitos formulados por outro, para testar hipteses formuladas segundo um mtodo s vezes radicalmente diferente. O que Wright Mills chamou de inibio metodolgica do empirismo abstrato (Cap. 3) se alastra e faz sentir o seu peso no marcar passo a que conduz. No algo que merea ser descuidado sem retardar todas as possibilidades do desenvolvimento cientfico.

20 Deslocar a ateno da cientificidade s para o mtodo tem como conseqncias principais utilizar critrios a-histricos para ela e esquecer a teoria. Com isso, a definio da cientificidade escapa progressivamente da prtica cientfica para se resguardar em postulados apriorsticos e inacessveis cincia como tal. Atomizando a totalidade terica, autoriza a autonomia de cada uma das suas partes e tende a considerar to somente a tcnica, cuja suposta neutralidade gera confuso e deforma o desenvolvimento terico. Um paradoxo surge marcante: a cincia, busca do novo, deve ater-se manuteno de um estilo, definido para garanti-la como tal. Para no correr o risco de se descientificizar ela deve ser conformista! Lembra a definio da boa hiptese, cujas qualidades incluem a compatibilidade com outras informaes cientficas aceitas (Henenberg, 15). Estranho apego cincia que emperra o desenvolvimento cientfico. No entanto, a cincia mesma, que s pode existir livre, exige do esprito a abertura ao no conformismo, capaz de gerar rupturas e, assim, crescimento, aprofundamento, engrandecimento. O mtodo s assume a altura que lhe cabe quando compreendido como relao que parte de um conjunto de relaes, que especificam um corpo terico determinado. No fraqueza o no dispor de um mtodo que por si s fornea as garantias de certeza do produto que elabora. Certamente a Fsica em que a incerteza predomina, a Fsica Quntica, uma evoluo mais rigorosa e perfeita da Fsica dominada pela certeza. De fato, no foi possvel estabelecer a Mecnica Quntica na dianteira do pensamento cientfico contemporneo sem grande dificuldade e oposio. Resistncia srias no campo da prpria Fsica ocorreram. Basta lembrar a polmica de Einstein contra Bohr. Os parmetros ocultos, defendidos por Broglie, Vigier e Bohm, demonstram bem a pretenso de manter e estender ao mundo das micropartculas os padres de determinao realizados para os macrofenmenos. Nesse caso a Fsica Quntica no seria assim to nova em relao Fsica clssica e sua contribuio ao pensamento contemporneo no seria to importante. Sem dvida o mtodo o guia geral que esclarece e encaminha as idias. Levando em considerao a experincia anterior (histria da cincia), a preocupao que domina no o que fazer para em qualquer lugar, ou mesmo hoje e aqui, estar fazendo cincia; nem qual a gnese do conhecimento - mas a inveno, a descoberta, a inovao: Uma doutrina da cincia ... essencialmente uma doutrina da cultura e do trabalho, uma doutrina da transformao correlativa do homem e das coisas (Bachelard, 1965,3). E isso depende de elementos muito mais complexos do que um mero conjunto de normas. Depende de slida formao terica, de abertura metodolgica, de rigor e de vontade, quase que num sentido de necessidade imperiosa de conseguir a explicao mais refinada, mas adequada, levando at os limites a capacidade terica da totalidade com que se opera. Mesmo que seja para se negar completamente. O saber fazer no pode vir a substituir em ns o gosto pela verdade (Lvi-Strauss, 39).

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22 13.Durkheim, Emile - Les rgles de la mthode sociologique, P.U.F., Paris, 1956 (13 ed.), trad. em portugus As regras do mtodo sociolgico, Cia. Ed.Nac., SP, 1963 (3 ed.). 14.Fichant, M. & Pcheux, M. - Sur hhistoire des sciences, F. Maspero, Paris, 1969. 15.Hegenberg, Leonidas - Introduo Filosofia da Cincia, explicaes cientficas, Ed. Herder, SP, 1965. 16.Hempel, Carl G. - Problemas Y cambios en el critrio empirista de significado, Revue Internationale de Philosophie, vol. 4, 1950, trad. em espanhol in Ayer, A.J. - op. Cit, V. 17. ... - Fundamentals of concept formation in empirical science, International Encyclopedia of Science, vol. II n 7, The Univ. Of Chicago Press, 1964, (7 ed.). 18.Kaplan, Abrahan - The condct of inquiry, methodology for behavioral science, Chandler Publishing Co., San Francisco, 1964. 19.Krech, D. & Crutchfield, R.S. - Theory and problems os Social Psychology, McGraw-Hill Book Co., Inc., 1948. 20.Lvy-Strauss, Glaude - Trisites Tropiques, Union Gnrale dditions, Paris, 1966. 21.Merton, Robert kK. - Social Theory and social structure, The Free Press og Glencoe, 1964 (9 ed.). 22.Mills, C. Wright - The sociological imagination, Oxford Univ. Press, Inc., NY, 1959, trad. em portugus A imaginao sociolgica, Zahar Ed., Rio, 1965. 23.Nagel, Ernst - The structure os science, problems in the logic of scientific explanation, Harcourt, Brace & World, NY, 1961. 24.Neurath, Otto - Soziologie in Physykalismus in Erkenntinis, vol II, 1931-32, trad. Em espanhol Sociologia en fisicalismo in Ayer, A.J.. op. Cit., XIV. 25.Pcheux, M. & Balibar, E. - Avertissement - Dfinition in Fichant, M. & Pcheux, M. Op. cit. 26.Piaget, Jean - Programme et mthodes de lpistmologie gntique in Beth, W.E. & Mays, W. Piaget, J. - pistmologiegntique et recherche psychologique, tudes dpistmologie gntique, I, P.U.F., Paris, 1957. 27. ... - Logique el connaissance scientifique, Encyclopdie de la Pliade, Ed. Gallimard, Paris, 1967. 28. ... - Psychologie et pistmologie, pour une thorie de la connaissance, Ed. Gonthier, Paris, 1970.

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Notas (1) Ver Bachelard, Gv, 1968 especialemente a Introduo e o captulo VI. (2) Ver Piaget, J., 1967, especialmente pp. 51 sg. (3) Para a exposio da noo de campo intelectual, embora apresente problemas cuja discusso parece conveniente, ver Bourdieu, P., 1966. (4) Bourdieu, P. & Camboredon & Passeron, op. Cit., p.60. A propsito, ver o texto n 31, cit. Simiand, Franois - Methode historique et sciences sociales, pp.229-231. (5) Para a discusso das prenoes como obstculo epistemolgico ver Bachelard, G., 1967; Curkhein, E. - cap. II.II; Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 35-37. (6) Ver, por exemplo, as ponderaes sobre o assunto por Merton, R.K. op. Cit., Introduo. (7) Um tipo muito especial de crtica. (8) Estranho ressurgimento de uma figura to antiga, o gnio, como explicaodo cerne das revolues cientficas, especialmente quando elas j ocorreram tantas vezes em que a paternidade dos grandes eventos ou das grandes descobertas disputada por vrios cientistas, trabalhando at independentemente, uns dos outros! Talvez ocorrncia simultnea de vrios gnios ... (9) Para uma discusso da Teoria do mtodo cientficono Positivismo Lgico veja-se Weinberg, parte II. (10) Carnap, Rudolf - Logical syntax of language, citado em Ayer, A.J. p.30. (11) Como se o conceito que algum tivesse de alguma coisa resultasse apenas do seu contato direto, fsico, imediato e pessoal com aquela coisa ... (12) Canguilhem, G. - Sur une pistemologie concordataire, texto n 1 in Bourdieu & Chamboredon & Passeron, p. 123. Como nos lembra Bachelard, poder-se-ia acusar de temeridade a previso que se apia mais sobre uma doutrina do que sobre os fatos. ... No se trata de uma generalizao, mas ao contrrio, indo alm do fato. a idia que v o particular em toda a sua riqueza, para alm da sensao que no se apodera seno do geral (in Canguilhem, 1968, 176).