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Foi por meio da cobertura televisiva que os protestos “das redes sociais” viraram acontecimento político Mirta Varela (Tradução: Nashla Dahás) 1/7/2015 Em 2013, grupos de manifestantes invadiram o Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. A cena foi apresentada por parte da imprensa como símbolo de uma irracionalidade primitiva. (Imagem: AGÊNCIA BRASIL / FOTO VALTER CAMPANATO) “Vândalos”. Esta foi a designação escolhida pelos principais meios de comunicação brasileiros para qualificar os manifestantes que protestavam contra o aumento das passagens dos transportes públicos, em junho de 2013. Os “vândalos” eram jovens que se comunicavam principalmente pelas redes sociais, mas que souberam usar a TV para veicular seus protestos. Quando a TV Globo suspendeu a exibição da novela para transmitir ao vivo os protestos que tomavam as ruas de várias cidades, em 20 de junho daquele ano, sinalizava-se um clímax: a mídia televisiva estava decidida a dar visibilidade aos acontecimentos. Participar de um evento de massas é uma experiência vital, mas as imagens da multidão na TV produzem outro tipo de fascínio. Há mais de meio século, o filósofo alemão Walter Benjamin identificou uma correlação direta entre o poder simbólico dessas manifestações e a técnica utilizada para exibi-las: “Os movimentos de massa são expostos, no geral, de forma mais clara diante dos aparatos do que diante dos olhos”. A tecnologia não parou de mudar desde então, mas a observação de Benjamin segue atual. A questão é saber: como foram construídas, diante dos nossos olhos, as imagens das mobilizações de massa que tiveram lugar no Brasil (e em outros lugares distantes e diversos do planeta)? Se a Internet facilita a organização de manifestações, a ausência de oradores muda o estilo das reuniões e das (des)concentrações públicas. Em Brasília, os manifestantes optaram por se mover em diferentes direções, o que desconcertou tanto a polícia quanto as câmeras de televisão. As transmissões do dia 20 foram fiéis à narrativa clássica em três atos: condenação ao vandalismo; apoio à justiça das pautas reivindicadas; regulação ou chamado à institucionalidade (e nova condenação ao vandalismo). O ataque a prédios de Oscar Niemeyer foi apresentado como síntese de uma irracionalidade primitiva. No dia seguinte, a Globo transferiu sua atenção para os políticos em Brasília. Isso foi notável porque, enquanto cobria os protestos na véspera, não havia incluído nenhuma entrevista com políticos. Nenhum canal entrevistou manifestantes que atacaram carros de diferentes redes de informação. Em compensação, foram exibidos vídeos enviados pelo público. As multidões só se expressaram por meio dessas imagens, enquanto a palavra era monopolizada por jornalistas e “especialistas” convidados. Em 25 de junho, a TV Record do Rio de Janeiro mostrou de um helicóptero a marcha ordenada que ia da Rocinha para a casa do governador Sérgio Cabral, no Leblon, onde um grupo já estava acampado. A marcha resultou em imagens panorâmicas poderosas, pois são bairros tão próximos geograficamente quanto apartados socialmente, e os manifestantes caminharam pela avenida Imagens da multidão - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/imagens-da-... 1 de 4 26/10/2015 13:28

Mirta Varela - Imagens da multidão

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Imagens da multidão. Foi por meio da cobertura televisiva que os protestos “das redes sociais” viraram acontecimento político. Por Mirta Varela (Tradução: Nashla Dahás). Revista de História da Biblioteca Nacional Edição nº 118 - Julho de 2015.

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Foi por meio da cobertura televisiva que os protestos “das redes sociais”viraram acontecimento político

Mirta Varela (Tradução: Nashla Dahás)

1/7/2015

Em 2013, grupos de manifestantes invadiram oPalácio do Itamaraty, sede do Ministério dasRelações Exteriores, em Brasília. A cena foiapresentada por parte da imprensa como símbolode uma irracionalidade primitiva. (Imagem:AGÊNCIA BRASIL / FOTO VALTER CAMPANATO)

“Vândalos”. Esta foi a designação escolhidapelos principais meios de comunicaçãobrasileiros para qualificar os manifestantes queprotestavam contra o aumento das passagensdos transportes públicos, em junho de 2013. Os“vândalos” eram jovens que se comunicavamprincipalmente pelas redes sociais, mas quesouberam usar a TV para veicular seusprotestos.

Quando a TV Globo suspendeu a exibição danovela para transmitir ao vivo os protestos quetomavam as ruas de várias cidades, em 20 dejunho daquele ano, sinalizava-se um clímax: amídia televisiva estava decidida a darvisibilidade aos acontecimentos.

Participar de um evento de massas é umaexperiência vital, mas as imagens da multidãona TV produzem outro tipo de fascínio. Há maisde meio século, o filósofo alemão Walter Benjamin identificou uma correlação direta entre o podersimbólico dessas manifestações e a técnica utilizada para exibi-las: “Os movimentos de massa sãoexpostos, no geral, de forma mais clara diante dos aparatos do que diante dos olhos”. A tecnologianão parou de mudar desde então, mas a observação de Benjamin segue atual. A questão é saber:como foram construídas, diante dos nossos olhos, as imagens das mobilizações de massa que tiveramlugar no Brasil (e em outros lugares distantes e diversos do planeta)?

Se a Internet facilita a organização de manifestações, a ausência de oradores muda o estilo dasreuniões e das (des)concentrações públicas. Em Brasília, os manifestantes optaram por se mover emdiferentes direções, o que desconcertou tanto a polícia quanto as câmeras de televisão.

As transmissões do dia 20 foram fiéis à narrativa clássica em três atos: condenação ao vandalismo;apoio à justiça das pautas reivindicadas; regulação ou chamado à institucionalidade (e novacondenação ao vandalismo). O ataque a prédios de Oscar Niemeyer foi apresentado como síntese deuma irracionalidade primitiva. No dia seguinte, a Globo transferiu sua atenção para os políticos emBrasília. Isso foi notável porque, enquanto cobria os protestos na véspera, não havia incluídonenhuma entrevista com políticos.

Nenhum canal entrevistou manifestantes que atacaram carros de diferentes redes de informação.Em compensação, foram exibidos vídeos enviados pelo público. As multidões só se expressaram pormeio dessas imagens, enquanto a palavra era monopolizada por jornalistas e “especialistas”convidados.

Em 25 de junho, a TV Record do Rio de Janeiro mostrou de um helicóptero a marcha ordenada queia da Rocinha para a casa do governador Sérgio Cabral, no Leblon, onde um grupo já estavaacampado. A marcha resultou em imagens panorâmicas poderosas, pois são bairros tão próximosgeograficamente quanto apartados socialmente, e os manifestantes caminharam pela avenida

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Passeata em junho de 2013 saiu da Rocinha aoencontro dos manifestantes acampados em frente àcasa do então governador do Rio de Janeiro, SérgioCabral, no Leblon. Os bairros são tão próximosgeograficamente quanto apartados socialmente.(Imagem: AGÊNCIA BRASIL / FOTO FERNANDOFRAZÃO)

Niemeyer, espremida entre o morro e o mar. No canal SBT do Rio, o jornalista do estúdio pôs-se em“diálogo” com os manifestantes, a quem era pedido que gritassem palavras de ordem para acâmera, ou seja, a voz da rua só pôde ser ouvida quando se adaptou à linguagem festiva datelevisão.

A transmissão ao vivo privilegiou o ponto devista aéreo. Globo, Record e Bandeirantesutilizaram-se de helicópteros e drones. Amultidão adquiriu uma dimensão panorâmica,mais uma vez refletindo as palavras de WalterBenjamin: “Só da perspectiva de um pássaropode-se captar perfeitamente as imagens decentenas de milhares de pessoas”. Já naprimeira metade do século XX, nas imagenscinematográficas das massas abundavam aspanorâmicas, planos abertos de espaços lotados,sem margens. Exemplo de um contraponto foi oregistro do Cordobazo, como ficaram conhecidasas manifestações de maio de 1968 na Argentinaditatorial: câmeras leves mostravam fragmentosda multidão à altura dos olhos. A proliferação decâmeras digitais, desde o final dos anos 1980,converteu o fragmento em multiplicidade depontos de vista. Cientes da opção da TV pelascâmeras voadoras, os manifestantes brasileirospintaram no chão das avenidas slogans que sópodiam ser lidos a partir do céu.

Helicópteros condensam vários sentidos que se relacionam com as demandas dos manifestantes. Emcidades onde o transporte público é lento e incerto, o helicóptero transforma-se na melhor opção dedeslocamento para alguns setores empresariais e políticos, sem falar nas TVs e na polícia. Não poracaso, a Folha de São Paulo de 29 de junho destacou que o governador Geraldo Alckmin venderia umhelicóptero como gesto de austeridade de seu governo. O helicóptero permite sobrevoar cidadescongestionadas, enquanto as manifestações – que surgiram em protesto contra o preço e a qualidadedos transportes – buscam congestioná-las ainda mais.

Uma das imagens escolhidas para sintetizar a violência foi um carro em chamas no Centro do Rio deJaneiro. Outra foi um grupo de manifestantes em uma estação de metrô em São Paulo, buscandomanter-se a salvo da repressão policial. A marcha a pé, o ônibus, o automóvel e o helicópteroconstroem uma narrativa visual em progressão: falam de transporte e de mobilidade, mas tambémdo indivíduo e das massas no espaço público.

Quando os protestos conseguiram obter, em várias cidades, a revogação dos aumentos dotransporte, as demandas e os temas das manifestações se multiplicaram: mais investimento emsaúde e educação, fim do voto obrigatório, críticas à FIFA e aos meios de comunicação, entreoutros. Em 28 de junho, Dia Mundial do Orgulho LGBT, a mídia chegou a incorporar aquelafestividade à lista dos protestos, o que não era descabido por conta da aprovação de um projeto de“Cura Gay” na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Mas depois a coberturamudou de rumo, insistindo nos prejuízos causados pelas manifestações, na necessidade de preveniro vandalismo, no trânsito causado pelas paralisações das ruas. Por outro lado, as TVs viram combons olhos as apropriações culturais dos protestos, em canções como O povo novo, de Tom Zé, eChega, de Seu Jorge.

A contradição é regra na televisão. O mesmo canal que ressalta as reivindicações contra os gastosexigidos pela FIFA transmite um jogo da Copa das Confederações, como se uma coisa não tivessenada a ver com a outra. A mesma mídia que destaca o perigo de grandes concentrações políticasadmira a chamada maciça por ocasião da visita do Papa ao Rio. A Rede Globo não perdeu a

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oportunidade de promover a estreia da novela Saramandaia como a história de uma rebelião popularem favor de um plebiscito.

É difícil prever o destino dos protestos que serviram como ritual de iniciação política para umageração. Menos incerta é a circularidade de sua exibição técnica. O slogan “Vem pra rua”, que setornou hashtag e predominou nas manifestações contra o aumento das passagens, teve sua origemem uma campanha publicitária de automóveis.

A celebração do papel da internet em mobilizações políticas recentes parte da ideia de que estamosassistindo a uma revolução nas comunicações com consequências políticas inevitáveis. É umahipótese baseada em um determinismo difícil de aceitar do ponto de vista das ciências sociais: atécnica muda a sociedade ou é a sociedade que engendra a técnica?

Os conceitos de massa, multidão e povo têm sido objeto de intenso debate e controvérsia. Asmassas podem ser o objeto passivo, anônimo e homogêneo dos meios de comunicação, ou o sujeitoemancipador da história liderada pelos movimentos revolucionários. A ambiguidade é uma dascaracterísticas mais marcantes desses coletivos.

Na vida política moderna, o vínculo entre governantes e governados foi articulado com base em umsistema representativo em que o voto, a imprensa e as mobilizações de rua funcionam comodiferentes instâncias de mediação e diálogo. Enquanto o jornalismo impresso é associado à origemdo sistema republicano, tornou-se senso comum a ideia de que a TV conduziu à reclusão no espaçoprivado, à falta de interesse pelos assuntos públicos e pela política. Haveria uma oposição entreuma imprensa política, formadora de opinião cidadã, e os meios de comunicação de massa. Masquando os “jovens das redes sociais” usam a TV para tornar visíveis seus protestos, com cartazescomo “Saímos do Facebook”, vale a pena questionar a suposta estabilidade dos meios decomunicação.

Mirta Varela é professora da Universidade de Buenos Aires, organizadora, com Mariano Mestman, dolivro Masas, pueblo, multitud en cine y televisión (Eudeba, 2013) e autora do artigo “La revuelta emdirecto”. Revista Ñ (Buenos Aires, 8 de julho de 2013).

Saiba Mais

DAYAN, Daniel & KATZ, Elihu. La historia en directo. La retransmisión televisiva de losacontecimientos. Barcelona: Gustavo Gili, 1992.FILIEULLE, Olivier & TARTAKOWSKY, Danielle. La Manifestation. Paris: Sciences Po. Les Presses, 2008.KRACAUER, Sigfried. “El ornamento de la masa”. In: La fotografía y otros ensayos. El ornamento dela masa I. Barcelona: Gedisa, 2008.LATOUR, Bruno & WEIBEL, Peter (eds.). Iconoclash. Beyond the image wars in science, religion andart. Cambridge, Massachusetts/ London, England: ZKM (Center for Art and Media Karlsruhe)/ MITPress, 2002.

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