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Cristina Diniz Mendonça O Mito da Resistência Experiência histórica e forma filosófica em Sartre (Uma interpretação de L'Être et le Néant) Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Orientador: Prof. Dr. Paulo Eduardo Arantes São Paulo 2001

Mito Da Resistncia Filosofia Satre NoPW

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Cristina Diniz Mendona

O Mito da ResistnciaExperincia histrica e forma filosfica em Sartre (Uma interpretao de L'tre et le Nant)

Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. Orientador: Prof. Dr. Paulo Eduardo Arantes

So Paulo 2001

Ao Edilson

O tempo a minha matria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente(Carlos Drummond de Andrade)

Agradecimentos

Um agradecimento especial ao Edilson, verdadeiro heri dessa guerra de resistncia, sem nenhum mito. Desnecessrio acrescentar que a tal herosmo se deve a realizao do trabalho.

Os agradecimentos de praxe ao orientador seriam injustos. Devo a Paulo muito mais do que a orientao desde o Mestrado e o cuidado evidente (expresso em preciosas observaes) com que sempre leu os meus textos ao longo de todos esses anos. Limito-me a dizer que este trabalho seria inconcebvel sem o que extra de seus livros e cursos, e isso as referncias explcitas nunca sero suficientes para atestar.

Minha gratido a Michel Contat que to gentilmente me acolheu na Equipe Sartre do CNRS, por ele coordenada, e, mais do que isso, jamais mediu esforos para me fornecer textos e manuscritos inditos de Sartre.

Agradeo tambm o apoio da Geg, Cidinha e dos amigos David Sehl e Ernani Chaves.

Durante a elaborao deste trabalho fui bolsista do CNPq e da Fapesp, aos quais agradeo.

Resumo

Estudo de um clssico da filosofia francesa contempornea Ltre et le Nant, de Jean-Paul Sartre, procurando expor a estrutura do livro: uma forma filosfica (ou filosfico-literria) dramtica, expresso do prprio material (histrico) que ela recria. O trabalho est dividido em duas partes. A primeira uma desmontagem da armao filosfica do livro, expondo a gnese de suas principais figuras (a Liberdade e o Tempo). Essa desmontagem, evidenciando o carter hbrido do material (filosfico, literrio e histrico) que sustenta a estrutura de Ltre et le Nant, colocou-nos na pista das relaes entre esse Ensaio de Ontologia Fenomenolgica (lido tradicionalmente como uma obra de pura Metafsica) e uma certa construo coletiva (poltica e literria): o Mito da Resistncia no perodo crtico da Segunda Guerra e da Ocupao da Frana (verdadeiro divisor de guas na cultura francesa contempornea, e decisivo o suficiente para definir o perfil de uma gerao intelectual). Examinar os termos desse reencontro da elaborao filosfica com a matria viva da histria foi o propsito da Segunda Parte do trabalho. Se quisssemos afinal resumir as relaes existentes entre as duas partes deste trabalho, diramos que a anlise da organizao interna de L'tre et le Nant levou-nos a descobrir o fio filosfico da obra entrelaado numa trama histrico-literria. esse novelo composto de materiais heterclitos Husserl, Heidegger, o Hegel de Kojve, sem falar de Malraux, dos clssicos do modernismo americano e de Kafka, tudo isso amalgamado a assuntos da vida cotidiana que tratamos de desembrulhar. Ao faz-lo, atravs do contraponto entre os atributos filosficos da Liberdade e os vrios registros fenomenolgicos em que a experincia crucial da Resistncia recuperada e formalizada, terminamos por identificar o contedo de experincia desse que considerado o mais abstrato (e tcnico) tratado de Metafsica dos Tempos Modernos, ao menos no mbito da filosofia francesa.

RsumIl sagit dune tude dun classique de la philosophie franaise contemporaine, Ltre et le Nant de Jean-Paul Sartre, qui essaie dexposer la structure du livre: une forme philosophique (ou philosophico-littraire) dramatique, expression du matriau historique quelle recre. Ce travail se divise en deux parties dont la premire consiste en un dmontage de larmature philosophique du livre qui montre la gense de ses principales figures (la Libert et le Temps). Ce dmontage, mettant en vidence la nature hybride des matriaux (philosophique, littraire et historique) qui sous-tendent la structure de Ltre et le Nant, nous a permis de reprer des relations entre cet Essai dOntologie phnomnologique, traditionnellement lu comme une oeuvre de pure Mtaphysique, et une certaine construction collective (politique et littraire): le Mythe de la Rsistance dans la priode critique de la Deuxime Guerre et de lOccupation de la France (point de clivage profond dans la culture franaise contemporaine et assez dcisif pour dfinir le profil de toute une gnration intellectuelle). Examiner les termes de cette rencontre de llaboration philosophique avec la matire vivante de lhistoire, a t lobjectif de la Seconde Partie du prsent travail. Si on voulait enfin rsumer les relations existantes entre les deux parties de ce travail, on dirait que lanalyse de lorganisation interne de Ltre et le Nant nous a amens dcouvrir le fil philosophique de loeuvre entrelac dans une trame historicolittraire. Cest ce noeud compos de matriaux htroclites Husserl, Heidegger, le Hegel de Kojve, pour ne pas parler de Malraux, des classiques du modernisme amricain et de Kafka, tout cela amalgam des sujets de la vie quotidienne que nous avons essay de dmler. Ce faisant, par le moyen du contrepoint entre les attributs philosophiques de la Libert et de multiples registres phnomnologiques o lexprience cruciale de la Rsistance est rcupre et formalise, nous avons fini par identifier le contenu dexprience de ce qui est considr le plus abstrait et technique trait de Mtaphysique des Temps Modernes, au moins dans le domaine de la philosophie franaise.

ndice

Prembulo Introduo

...........................................................................................................................................

1 13

...........................................................................................................................................

PRIMEIRA PARTE:

O duplo sentido da alienao ou os Caminhos da Liberdade em L'tre et le Nant .............. 23

Introduo ............................................................................................................................ 25 Captulo 1: Captulo 2: No princpio era a pura Negao (O Ser-fora-de-si) ......... 27 A Liberdade entra em cena ............................................................ 71

Captulo 3: Quando o Tempo cura as feridas do prprio Tempo .......... 123 SEGUNDA PARTE: Uma descoberta filosfica dos Tempos Modernos ....... 187 Introduo Captulo 1: Captulo 2: Captulo 3:.........................................................................................................................

189

Uma moral em tempos sombrios .............................................. 197 Razo e Resistncia O Domingo da Vida.......................................................................

275 461 589 599

......................................................................

Breve nota comparativa Bibliografia

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...................................................................................................................................

Prembulo

Ce que les gens dsirent tous, cest dtre tmoins de leur temps (Sartre, Sit.IX, p.39)

Suis-je philosophe? Ou suis-je littraire? Je pense que ce que jai apport depuis mes premires uvres, cest une ralit qui soit les deux: tout ce que jai crit est la fois philosophie et littrature, non pas juxtaposes, mais chaque lment donn est la fois littraire et philosophique assim Sartre diagnostica, no final dos anos 70, o resultado de sua vastssima obra (Entretiens avec Sartre, in M. Sicard, Essais sur Sartre, p.380). Mas esse ponto de chegada do autor no seno ponto de partida: longe de fechar a discusso acerca da natureza de sua obra, tal diagnstico s faz reabri-la. Filosofia e literatura ao mesmo tempo? Os romances como forma literria e filosfica? As obras consideradas de filosofia pura como forma filosfico-literria? Esse hbrido sartriano antes um enigma a ser decifrado. Um olhar sobre o conjunto da obra de Sartre, detendo-se em alguns de seus momentos mais expressivos, h de constatar a peculiar transformao dos gneros ao

O MITO DA RESISTNCIA

longo do itinerrio do pensamento do autor: do romance La Nause a Ltre et le Nant, um ensaio de ontologia fenomenolgica; de Ltre et le Nant (concebido como filosofia pura) a LIdiot de la famille (um romance que, segundo o autor, e no um romance).1 Mas por que LIdiot de la famille (uma monografia histrica concreta, no entender de Sartre) no lugar da moral prometida no final de Ltre et le Nant? Por que Sartre abandona esse projeto filosfico?2 Limitemo-nos por ora a sugerir que nesse abandono est em jogo o problema do estatuto da filosofia em nossa poca, ou a forma problemtica de sobrevivncia da filosofia depois da decomposio do Esprito Absoluto. E mais: o prprio itinerrio do pensamento sartriano da filosofia pura monografia histrica concreta a expresso desse problema da sobrevivncia da filosofia (e tambm da literatura) nas condies sociais do mundo contemporneo, sinalizando a busca (nem sempre deliberada) de uma nova forma (filosfico-literria?) que possa dar conta do tempo presente. (Aqui alis o ncleo duro do Marxismo Ocidental, seja dito de passagem.) Hegel reprsente un sommet de la philosophie. A partir de lui, rgression. Marx apporte ce quil navait pas donn entirement (...). Dgnrescence marxiste ensuite. Dgnrescence allemande post-hglienne. Heidegger et Husserl petits philosophes. Philosophie franaise nulle. O desdobramento dessas palavras, escritas por Sartre na segunda metade dos anos 40 (Cahiers pour une morale, p.67), ser esta afirmao bombstica do autor, quase duas dcadas depois: no momento presente no pode haver filsofos (A Conferncia de Araraquara, p.37). Mas, assim como a filosofia, a literatura (na sua acepo tradicional) tambm se tornou impossvel no momento presente: il ny en a plus, de littrature, arremata Sartre numa entrevista concedida a M. Contat e a M. Rybalka em 1971 (Entretiens sur moi-mme, Sit.X, p.114). Pouco antes, em 1970, interrogado sobre as razes que o teriam levado a abandonar o romance para escrever biografias teria o romance se tornado une forme littraire impossible?, Sartre responde: Il ny a plus dunivers naturel du 2

Prembulo

roman et il ne peut plus exister quun certain type de roman: le roman spontan, naf (Sartre par Sartre, Sit.IX, p.122). E numa entrevista posterior, nosso autor diz que mesmo sendo fascinado pelo estilo de Madame Bovary ele sabe muito bem que no se pode mais escrever como Flaubert: esse tipo de romance pertence un monde qui est un peu pass (Entretiens avec Sartre, Essais sur Sartre, p.154). Se foi a experincia da Primeira Guerra que levou Walter Benjamin a formular o problema do fim da narrao,3 a experincia da Segunda Guerra que, como veremos, leva Sartre a buscar uma nova forma narrativa, sucedneo do romance e da filosofia tradicionais. No imediato ps-guerra, fazendo um balano das transformaes que a histria imps forma literria, o autor escreve: Il nest plus le temps de dcrire ni de narrer (Quest-ce que la littrature?, Sit.II, p. 311).4 J na correspondncia (indita) com Jean Paulhan (1937-1940),5 vemos Sartre em busca de uma nova forma literria que, pensando em Malraux, ele chama de roman reportage. Mais tarde, o privilgio que outorga a Jean Genet vem da idia de que sua obra essencialmente documento, fato real um documento que, ao expor cruamente aspectos da realidade social, faz ao mesmo tempo a sua crtica. Essa , alis, a funo que Sartre atribui ao ensaio, cuja forma ele se pe procura logo depois do final da redao de Ltre et le Nant, como atesta esta passagem escrita em 1943: Le roman contemporain, avec les auteurs amricains, avec Kafka, chez nous avec Camus, a trouv son style. Reste trouver celui de lessai. Et je dirai aussi: celui de la critique (Un nouveau mystique, Sit.I, p.133). Mas j no estamos aqui a anos-luz de distncia da idia, expressa no final de Ltre et le Nant, de que s no terreno da reflexo pura os verdadeiros problemas podem encontrar uma verdadeira soluo? Onde afinal situar o hbrido que Sartre afirma definir o conjunto de sua obra? Nem filosofia pura nem literatura pura (leia-se romance tradicional), mas antes um movimento de passagem entre ambas que desfaz suas formas tradicionais? Se assim for, a obra sartriana poderia ser pensada como um momento do processo de 3

O MITO DA RESISTNCIA

transformao histrica da forma filosfica e literria (ou da decomposio das formas filosfica e literria tradicionais).6 Qual a particularidade das determinaes que constituem esse momento?

*

Foi a guerra que fez explodir os quadros envelhecidos de nosso pensamento. A guerra, a Ocupao, a Resistncia, os anos que se seguiram (Sartre, Questo de Mtodo, Pensadores, p.126). Mas essa exploso, isto , a ruptura com a tradio espiritualista acadmica francesa, mais precisamente a filosofia alimentar, digestiva, da Terceira Repblica, vinha sendo preparada desde meados dos anos 30 perodo de turbulncia poltica em meio ao qual se delineia o projeto literrio e filosfico de Sartre. justamente no embate com o velho idealismo tradicional dos universitrios franceses (nas palavras de Simone de Beauvoir, cf. Privilges, p.269) que o pensamento sartriano comea a tomar forma. No por acaso, nas primeiras obras mais significativas do autor, o inimigo nmero um esse idealismo oficial da Terceira Repblica (os termos agora so da Questo de Mtodo, p.125) basta lembrarmos o romance La Nause (cf. a ironia do personagem Roquentin a respeito do philosophe humaniste, uma figura odiada... at a Nasea), o primeiro livro de filosofia, escrito em 1934, La Transcendance de lEgo (onde Sartre, visando principalmente Lachelier e Brunschvicg, alm de Victor Brochard, denuncia o neokantismo como uma tendncia perigosa da filosofia contempornea, p.14) e o famoso ensaio sobre Husserl (escrito em 1933-1934 e publicado em 1939).7 Algum tempo mais tarde, nos Carnets de la Drle de Guerre momento em que o vendaval da guerra arrasta consigo os valores dominantes (ides, valeurs, tout fut bouscul, afirma Simone de Beauvoir, referindo-se quela guerre qui avait tout remis en question8), Sartre d finalmente por encerrada a idade da hegemonia da tradio 4

Prembulo

espiritualista: Pour nous, Nizan, Aron, moi-mme (...) ces pauvres gens [Baruzi, Brunschvicg, etc.] (...) ctaient les reprsentants les plus hassables de la lche pense et du verbalisme. (...) Rien ne nous dplaisait tant que cette pense grise... (p.111). Referindo-se pois quela pense grise como coisa do passado (o uso do verbo no passado sugestivo), os Carnets de Guerre de Sartre pretendem jogar a derradeira p de cal nessa ideologia que morre junto com o mundo que tentara eternizar. Mas ao mesmo tempo que os Carnets (de onde sai Ltre et le Nant) anunciam o fim de um dos ciclos da cultura burguesa na Frana, anunciam tambm o comeo de uma nova poca (que despontar em breve) os Tempos Modernos. Com efeito, o outro aspecto da ruptura com a cultura defunta9 que mandava rezar pela cartilha da Primaut du Spirituel10 a descoberta (causa e efeito dessa ruptura) da modernidade, cuja palavra de ordem fora lanada por Jean Wahl em 1932: Vers le concret.11 Se outrora, como denunciou Sartre em 1936, le succs croissant du kantisme, dont Lachelier se fait en France le champion, foi sintoma da forte raction conservatrice en France (Limagination, p.28-29), agora, no limiar de uma nova poca, a ruptura com aquela tradio prenncio de um perodo de efervescncia revolucionria que coloca na ordem do dia, para toda uma gerao intelectual, a questo da modernidade e com ela a necessidade de um pensamento crtico, negativo: avesso ao conservadorismo, radical, no acadmico.12 Em que termos se d essa descoberta da modernidade naquela Frana convulsionada pela radicalizao dos conflitos sociais? Do ponto de vista literrio, ela se tornou possvel com a descoberta de Kafka e, sobretudo, dos clssicos do modernismo americano; do ponto de vista filosfico, deve-se a uma tripla descoberta: Husserl, Heidegger13 (ambos virados pelo avesso e convertidos em filsofos de vanguarda) e Hegel (lido pela tica da filosofia da Ao de Kojve).14 Com tais descobertas, completam-se os anos de aprendizagem da gnration des 3 H, como ficou conhecida no ps-guerra a gerao de Sartre e de Merleau-Ponty os 5

O MITO DA RESISTNCIA

3 H, no caso, interpretados como filsofos realistas, ponto de partida para uma filosofia concreta (denominao do Existencialismo em sua face ascendente). Est aberto o caminho para a fulgurante entrada em cena do Existencialismo (sem dvida, o captulo mais rico e interessante da filosofia francesa contempornea). A expresso terica maior desse movimento de renovao cultural na Frana, que resulta da ruptura com a tradio espiritualista e da descoberta da modernidade, Ltre et le Nant (EN) ao mesmo tempo culminncia do processo de liquidao de um gnero de educao (pulverizado juntamente com o mundo do qual inseparvel) e resposta aos Tempos Modernos ento em marcha. Na encruzilhada portanto de dois mundos, o ensaio de ontologia fenomenolgica de Sartre, j escrito sob o signo da modernidade, est tambm, como veremos, no cruzamento principal dos caminhos tomados pelos gneros ao longo do pensamento do autor o que nos reconduz ao problema do incio deste Prembulo. Se nossa leitura procede, na estrutura de EN est a chave para compreender o sentido do itinerrio da obra sartriana (sua gnese e seu desfecho). Nesse momento particular do pensamento do autor um momento nico e irredutvel se reproduz, junto com o movimento geral da poca, a totalidade das determinaes do curso de sua obra. Fechemos pois o ngulo de nossa lente e centremos o foco neste ponto nevrlgico da evoluo das formas em Sartre: Ltre et le Nant.

6

Prembulo

Notas - Prembulo

1)Eis o que Sartre diz sobre LIdiot de la famille (IF): ...mon travail sur Flaubert,

quon peut dailleurs considrer comme un roman. Je souhaite mme que les gens disent que cest un vrai roman (Sit.IX, p.123). Algum tempo depois essa idia de vrai roman para designar LIdiot de la famille ser relativizada: Dabord il faut en venir lide de roman. Jai peut-tre exagr un peu quand jai dit que ctait un roman (...). Ce roman nest pas en fait un roman (Entretiens avec Sartre, Essais sur Sartre, p.148).2

)Recorde-se as palavras finais de Ltre et le Nant, anunciando esse projeto: Toutes

ces questions, qui nous renvoient la rflexion pure et non complice, ne peuvent trouver leur rponse que sur le terrain moral. Nous y consacrerons un prochain ouvrage (p.692). No s essa obra nunca veio luz do dia como o autor, no mencionado balano feito no final de sua vida, afirma que a philosophie pure (...) cest un peu en dehors de ce que jaime faire (Entretiens avec Sartre, in Essais sur Sartre, p.380).3

) A arte de narrar est em vias de extino. (...) Uma das causas desse fenmeno

bvia: as aes da experincia esto em baixa, e tudo indica que continuaro caindo at que seu valor desaparea de todo. (...) Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua at hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha no mais ricos, e sim mais pobres em experincia comunicvel. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experincia transmitida de boca em boca. No havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experincias mais 7

O MITO DA RESISTNCIA

radicalmente desmoralizadas que a experincia estratgica pela guerra de trincheiras, a experincia econmica pela inflao , a experincia do corpo pela guerra de material e a experincia tica pelos governantes (W. Benjamin, O Narrador, in Obras Escolhidas, vol.I, p.197-198). Sobre esse problema do fim da narrao em Benjamin, cf. em particular o Prefcio de Jeanne Marie Gagnebin para as Obras Escolhidas do autor, onde se l por exemplo o seguinte: A arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da transmisso de uma experincia no sentido pleno, cujas condies de realizao j no existem na sociedade capitalista moderna (p.10). Tendo em vista que o fracasso da Erfahrung implicou o fim da narrativa tradicional, afirma ainda Gagnebin, coloca-se para Benjamin o problema de uma nova forma de narratividade (pp.9 e 11). Embora o problema de uma nova forma de narratividade esteja tambm no horizonte de Sartre, seu quadro de referncia , intil ressalvar, completamente diverso do de Benjamin (no obstante a tentativa de F. Jameson de aproximar, em certos aspectos, as anlises dos dois autores sobre a narrao cf. por exemplo Marxismo e Forma, p.66-67).4

)Quase uma dcada depois, e por caminhos inteiramente diversos, Adorno formula o

mesmo problema: on ne peut plus narrer, alors que la forme du roman exige la narration o que torna doravante impossvel o romance tradicional (La situation du narrateur dans le roman contemporain, Notes sur la Littrature, p.37).5

)Graas gentileza e generosidade de Michel Contat, pudemos consultar o

manuscrito indito dessa valiosa correspondncia entre Sartre e Paulhan (alm de outros manuscritos inditos de Sartre). Referindo-se aos textos sartrianos daquele perodo, Michel Contat afirma que o autor est procura de uma thorie nouvelle du roman: Ses articles pour la NRF avant la guerre, ceux qui sont repris dans Situations I, se proposaient, comme le montre explicitement sa correspondance indite avec Jean Paulhan, de fonder une thorie nouvelle du roman. Abandon de la position du

8

Prembulo

narrateur omniscient, adoption rsolue du ralisme subjectif, technique romanesque relevant dune mtaphysique de la libert (Michel Contat, Le Roman Existentiel, Magazine Littraire, n 282, novembro de 1990, nmero especial sobre Sartre).6

)Utilizamos o termo tradicional na acepo de Horkheimer e de Adorno. Se Marx e

Engels falaram em decomposio do Esprito Absoluto (um processo histrico cujo desenvolvimento levar Horkheimer a contrapor Teoria Tradicional e Teoria Crtica), Adorno, considerando as condies sociais do mundo contemporneo, fala em decomposio da forma romanesca, isto , do romance tradicional (cuja expresso mais autntica seria o romance de Flaubert, conforme lemos em La situation du narrateur dans le roman contemporain, Notes sur la Littrature, pp.38 e 41).7

)Esse ensaio sobre Husserl abre-se com um vivo ataque filosofia alimentar:

Nous avons tous lu Brunschvicg, Lalande et Meyerson nous avons tous cru que lEsprit-Araigne attirait les choses dans sa toile, les couvrait dune bave blanche et lentement les dglutissait, les rduisait sa propre substance. Quest-ce quune table, un rocher, une maison? Un certain assemblage de contenus de conscience, un ordre de ces contenus. O philosophie alimentaire! (...) En vain, les plus simples et les plus rudes parmi nous cherchaient-ils quelque chose de solide, quelque chose, enfin qui ne ft pas lesprit; ils ne rencontraient partout quun brouillard mou et si distingu: euxmmes (Une ide fondamentale de la phnomnologie de Husserl: lintentionnalit, Sit.I, p.29).8 9

)Cf. La force de lge, p. 445 e La force des choses, vol.I, p.100. )Expresso cunhada por Paulo Eduardo Arantes ao se referir justamente quela

cultura de que se alimentava a caqutica burguesia francesa de entre-guerras (Um Hegel errado, mas vivo, IDE, n 21, dezembro de 1991, p.73-74).

9

O MITO DA RESISTNCIA

10

)Ttulo de Maritain, ironizado por Simone de Beauvoir no livro Quand prime le

spirituel un livre dont jindiquai le thme par un titre ironiquement emprunt Maritain: Primaut du Spirituel, diz a prpria autora, em La force de lge (p.255), sobre esse seu primeiro ajuste de contas com a tradio espiritualista.11

)Cet lan de curiosit dont jtais complice responsable et qui produisit dabord des

livres comme Vers le Concret de Jean Wahl, avait sa source dans un vieillissement de la philosophie franaise et un besoin que nous prouvions tous de la rajeunir (Sartre, Les Carnets de la Drle de Guerre, p.228). Sobre a importncia desse livro de Jean Wahl para a gerao de Sartre, cf. tambm Questions de Mthode, in Critique de la raison dialectique, vol. I, p.29, nova edio.12

)O sentido e a necessidade dessa descoberta da modernidade um problema

a ser enfrentado ao longo deste trabalho (assim como o problema das relaes entre modernidade e revoluo nos Tempos Modernos).13

)Se

posteriormente,

mais

de

uma

dcada

depois

dessa

descoberta

da

fenomenologia alem, Sartre afirma (cf. a j citada passagem dos Cahiers pour une morale) que Heidegger e Husserl so petits philosophes no sentido (explicitado s na Questo de Mtodo) de que aquilo que fizeram no foi radical o suficiente para caracterizar uma nova poca de criao filosfica (mesmo porque isso j no seria mais possvel, por razes de ordem histrica). Contudo, numa Frana dominada pelo espiritualismo da Universidade da Terceira Repblica (um misto de positivismo e neo-kantismo), Husserl e Heidegger significaram a prpria modernidade filosfica para a gerao de Sartre. Foi sobretudo a desmontagem do objetivismo kantiano, a destranscendentalizao da filosofia e o consequente cancelamento do programa transcendental das filosofias ps-kantianas, operados por Heidegger em Sein und Zeit esse pensamento destranscendentalizante e crtico da metafsica, como diz Habermas (Martin Heidegger Loeuvre et lengagement, p.13) , que permitiram a

10

Prembulo

Sartre romper com a nauseante filosofia alimentar (o que afinal tornou possvel Ltre et le Nant).14

)Foram os clebres cursos ministrados por Alexandre Kojve na Ecole Pratique des

Hautes Etudes, de 1933 a 1939, que introduziram Hegel, sempre proscrito da universidade, como lembra E. Roudinesco, para a gerao de Sartre: Durante seis anos, a fala desse homem torna-se a prpria linguagem da modernidade, a quintessncia do esprito novo (E. Roudinesco, Histria da Psicanlise na Frana, vol.2, pp.72, 151,152). Sobre a pr-histria desse movimento de renovao cultural na Frana, cf. ainda Roudinesco, a partir da p.72: a renovao da espiritualidade que vem luz na Frana entre 1925 e 1935 (p.74). Cf. tambm V. Descombes, Le Mme et lAutre, para quem sil est un signe du changement des esprits rvolte contre le no-kantisme, clipse du bergsonisme , cest bien le retour en force de Hegel, at ento banni par les no-kantiens (p.21). A respeito desse renascimento do hegelianismo na cultura francesa dos anos 30, cf. em particular dois artigos de Paulo Eduardo Arantes: Um Hegel errado, mas vivo Notcia sobre o Seminrio de Kojve (IDE, n 21, dezembro de 1991) e Hegel no espelho do Dr. Lacan (IDE, n 22, outubro de 1992), sobre a importncia da interpretao kojeviana da Fenomenologia do Esprito na formao do pensamento de Lacan.

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Introduo

Nous crivons pour nos contemporains (Sartre, Sit.II, p.14)

Decorridos mais de 50 anos do lanamento de Ltre et le Nant, ressoa ainda hoje, nos diferentes tipos de interpretao da obra, o eco do mesmo refro entoado desde os comentadores da primeira hora: trata-se de um livro de pura reflexo filosfica, com portas e janelas fechadas para o mundo, escrito no entanto, curiosamente, numa poca de virada histrica radical, durante a Segunda Guerra Mundial justamente naquele momento que o autor, distanciando-se do vendaval que ento soprava sobre o mundo, busca refgio no territrio neutro da filosofia pura... Se nos for permitido arrolar rapidamente alguns exemplos significativos dessa interpretao tradicional de EN, comecemos por Marcuse, num dos primeiros e mais

O MITO DA RESISTNCIA

importantes ensaios sobre o livro: Lanalyse existentielle de Sartre est strictement philosophique, en ce sens quelle fait abstraction des facteurs qui constituent sa ralit empirique concrte: celle-ci ne fait quillustrer les conceptions mtaphysiques et mtahistoriques de Sartre (LExistentialisme A propos de Ltre et le Nant de Jean-Paul Sartre, 1948, in Culture et Socit, p.218). Nessa medida, acrescenta Marcuse, h uma distncia intransponvel entre o ensaio de ontologia

fenomenolgica de Sartre e a realidade histrica, o que faz da obra uma doutrina idealista (pp.218 e 231).1 Um outro exemplo, bem mais recente: Anna Boschetti, em Sartre et Les Temps Modernes, define EN como la recherche, strictement individuelle, dune vrit pure, comme possibilit de se faire regard sans corps (thoria), sans pass et sans point de vue, mettant le monde entre parenthses... (p.103; grifo nosso). Referindo-se ainda ao que considera uma rpulsion inspire Sartre par le social (lhorreur pour le social, prprio de uma tradio filosfica que termina por expulser lhistoire, transformer les notions philosophiques en ides absolues, indpendantes des conditions historiques de production..., pp.103 e 110), Boschetti, indo at onde Marcuse no iria, inscreve EN na linhagem da filosofia pura no sentido kantiano: On reconnat, reconstitue partir dexigences communes, lattitude des philosophies pures par excellence: Kant par exemple, ou Maine de Biran (p.104). tambm como uma obra de filosofia pura que Gerd Bornheim (para nos lembrarmos de um importante exemplo mais prximo de ns) caracteriza EN s que agora o ensaio de ontologia de Sartre ser lido totalmente luz da tradio da metafsica ocidental (da filosofia grega Metafsica moderna): trata-se de elucidar os mesmos problemas que acompanham o ncleo de toda a tradio da Metafsica ocidental, escreve Bornheim sobre o assunto de EN (Gerd Bornheim, Sartre, Metafsica e Existencialismo, p.26). O grande esforo do autor, v-se logo, no sentido de situar EN como um captulo da metafsica ocidental: Sabe-se que a 14

Introduo

questo do nada envolve toda a evoluo do pensamento ocidental, ainda que de tal modo que ela nunca chega de fato a ser ventilada: realmente, como pensar o nada? J em Parmnides o problema est presente; e se sua presena permanece tbia na Grcia, irrompe com uma fora deveras impressionante na filosofia crist segue-se o exemplo de Santo Agostinho (Gerd Bornheim, Sartre, p.192). Dessa forma, ao colocar o problema do nada, Sartre estaria apenas sendo fiel a um problema clssico afinal, o Ser e o Nada so pressupostos fundamentais da Metafsica ocidental (Idem, p.193). J no incio de seu livro, Bornheim escreve: Em si mesmo o fenmeno ser. Como? Sartre demonstra seu ponto de vista recorrendo a um raciocnio anlogo ao argumento ontolgico de Santo Anselmo e de Descartes (p.29). Donde a concluso de sua anlise: EN no ultrapassa os limites da Metafsica e torna-se ininteligvel se despido de seu contexto metafsico (p.185 e 193). Portanto, estaramos diante de uma filosofia na sua acepo mais tradicional a filosofia dogmtica propriamente dita. Alis, diga-se de passagem, justamente nesse terreno da filosofia dogmtica que Bento Prado Jr. (entendendo por dogmatismo a aposta fundamental do racionalismo do sculo XVII, mas tambm da filosofia platnica-aristotlica) finca as razes do ensaio de ontologia fenomenolgica de Sartre (O Estado de S. Paulo, 11/08/1993). No muito diferente o ponto de vista de Luiz Roberto Salinas Fortes, para quem a filosofia da liberdade desenvolvida em EN faz de Sartre incontestavelmente o herdeiro legtimo de uma respeitvel tradio que remonta at Descartes (A Liberdade como Apocalipse, in Revista de Cultura e Poltica, n 2, agosto/outubro de 1980. p.63).2 Finalmente, preciso no esquecer que o prprio autor, em plena consonncia com seus comentadores, considera EN uma constelao de idias brilhando no cu da filosofia pura, muito longe do mundo terreno: Em EN eu quis, apreendendo-me no nvel mesmo da conscincia, isto , no nvel ao mesmo tempo o mais certo e o mais abstrato, o mais formal, aquele em que se encontram verdades inegveis, mas quase 15

O MITO DA RESISTNCIA

nulas, com as quais no se pode fazer quase nada, eu quis portanto fazer uma descrio do que a realidade humana como projeto, compreenso (A Conferncia de Araraquara, p.93). E numa outra ocasio, Sartre afirma: Ltre et le Nant retrace une exprience intrieure sans aucun rapport avec lexprience extrieure devenue, un certain moment, historiquement catastrophique de lintellectuel petit-bourgeois que jtais. Car jai crit EN, ne loublions pas, aprs la dfaite de la France (Sit.IX, p.102; sobre a definio de EN como uma obra de filosofia pura, cf. ainda a entrevista de Sartre a Sicard, in Essais sur Sartre, p.380). Uma filosofia de sobrevo, deveramos ento concluir, sem os ps no cho e sem territrio definido, semeando pensamentos de pura ausncia histrica? Castelos de idias que, sem razes sociais, formam-se e se desmancham no ar? Numa palavra: uma filosofia livre do mundo (como queria por exemplo Schopenhauer3)? Tal carter primeira vista paradoxal de uma obra de filosofia pura que se distancia da realidade num momento em que, como se l nos Dirios de Guerra do prprio Sartre, a realidade histrica impunha sua presena aos contemporneos, torna-se tanto mais surpreendente quando se pensa que a primeira elaborao de EN se encontra justamente nesses Dirios de Guerra4 (cujo propsito deliberado era apreender a experincia histrica em curso) e que, alm disso, intelectuais que participavam do movimento poltico de Resistncia contra o nazismo declaram que o livro tornou nosso universo transparente. Um ensaio de ontologia fenomenolgica que torna visvel o contedo de uma experincia poltica? Com efeito, um n a ser desatado o que implica uma genealogia da obra, um estudo de sua forma particular e de suas relaes com a totalidade das manifestaes do momento histrico em que ela emerge.

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Introduo

Ao leitor atento de EN certamente no passar despercebida a arquitetura peculiar da obra, assentada em dois planos: o das demonstraes ontolgicas, isto , descrio filosfica no sentido da fenomenologia alem (e neste plano que os comentadores se detm), e o plano da exemplificao aqui, as ilustraes, os exemplos, so construdos com matria histrica local, so figuras com contedo histrico definido. assim que ao longo da leitura de EN vemos passar sob nossos olhos, como se fossem meros exemplos casuais (no constitutivos portanto do ensaio de ontologia fenomenolgica), as figuras de prisioneiros de guerra (a guerra justamente o exemplo privilegiado do livro), de lderes polticos da poca, do ocupante alemo, do judeu perseguido, do torturador e do torturado, do Resistente, de uma cidade em estado de exceo, sob toque de recolher. Simples registro da hora histrica, exterior ao fio ontolgico que est sendo urdido? Ocorre que em EN temos um movimento ininterrupto de passagem de um plano a outro (e nesse movimento de passagem est o lado mais vivo e interessante da obra), de tal maneira que a prpria reflexo filosfica tecida com materiais histricos da poca. Todavia o problema permanece em aberto. Concedamos, dir-se-, que EN, pretendendo apenas descrever estruturas ontolgicas intemporais (pois no outro o seu propsito), o faa com figuras do mundo real. Mas em que medida esse registro da hora histrica, movendose assim num nvel to conjunturalmente rente aos fatos, articula-se internamente com as demonstraes ontolgicas? Em que termos se daria a reapropriao filosfica desses exemplos? Esse o ponto delicado. Examinemos pois esse clssico da filosofia contempornea, tentando compreender como foi possvel sua construo em dois nveis aparentemente distintos para isso, preciso palmear a distncia que primeira vista separa esses dois nveis que constituem a obra (as demonstraes ontolgicas abstratas e as situaes concretas do mundo). Fixemos como ponto de partida (tarefa da Primeira Parte da Tese) a exposio do processo de engendramento das duas figuras centrais de EN: 17

O MITO DA RESISTNCIA

Liberdade e Tempo (entrada principal do pensamento sartriano, a nosso ver). Essa exposio, desentranhando o movimento do livro, examinando seus conceitos fundamentais e explicitando sua filosofia da Ao, pretende trazer luz do dia a estrutura de EN uma forma dramtica, como veremos, expresso do prprio material que ela recria.

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Introduo

Notas - Introduo

1)Todavia, numa entrevista de 1977 ocasio em que revela um grande interesse por

Sartre: I love Sartre and love him more and more (p.37), Marcuse inverte totalmente seu ponto de vista sobre EN, e faz esta afirmao espantosa: In my first article (Contribution to a Phenomenology of Historical Materialism, 1928), I myself tried to combine existentialism and Marxism. Sartres Being and Nothingness is such an attempt on a much larger scale (Heideggers politics: an interview with Herbert Marcuse by Frederick Olafson, Graduate Faculty Philosophy Journal, Vol. 6, n 1 Winter, 1977, p. 30). Mas aqui trata-se evidentemente de um lapso de Marcuse (ditado talvez pela pressa em aproximar o pensamento sartriano do marxismo) pois o propsito de juntar existencialismo e marxismo prprio do Sartre posterior, nunca de EN. Nessa mesma entrevista, o autor tenta precisar o sentido da concretude que agora v em EN: Even Ltre et le Nant is already much more concrete than

Heidegger ever was. Erotic relationships, love, hatred, all this the body, not simply as abstract phenomenological object but the body as it is sensuously experienced, plays a considerable role in Sartre all this is miles away from Heideggers own analysis, and, as Sartre developed his philosophy, he surpassed the elements that still linked him to existentialism and worked out a Marxist philosophy and analysis (p.36). Essa idia de EN como uma ontologia realmente concreta e no s pseudoconcreta reafirmada por Marcuse, ainda naquele ano de 1977, por ocasio de seu Dilogo com Habermas concreto aqui, contraposto a Ser e Tempo, significa mais uma vez o seguinte: Em Heidegger, o ser-a neutro, isto , um conceito abstrato. Em Sartre, o Ser-a, por exemplo, est partido em dois sexos todo um

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O MITO DA RESISTNCIA

domnio que no aparece em Heidegger. Em O Ser e o Nada se faz, por exemplo, uma fenomenologia do traseiro, que realmente encantadora. (...) Em Sartre, existe realmente uma filosofia concreta. E isso foi comprovado tambm mais tarde, pois o caminho de O Ser e o Nada ao Sartre poltico realmente muito curto (Habermas, Dilogo com Herbert Marcuse, in Perfis Filosfico-Polticos, p.248). As anlises de Marcuse sobre EN sero examinadas ao longo deste trabalho.2

)Nesse sentido, cf. tambm Annie Cohen-Solal: Ltre et le Nant est une uvre

profondment cartsienne. Dailleurs, jusquen 1943, luvre de Sartre na-t-elle pas t clairement lodysse dune conscience solitaire? (Sartre, p.254).3

) J que o mundo todo e tudo nele pleno interesse e, na maioria das vezes, interesse

mesquinho, ordinrio e ruim, s um cantinho deve decididamente ficar livre dele e estar aberto to-s ao conhecimento das relaes mais importantes e urgentes de todas isso a filosofia (Arthur Schopenhauer, Sobre a Filosofia Universitria, traduo de Mrcio Suzuki e Maria Lcia Cacciola).4

) Le projet de Ltre et le Nant parat avoir t conu en 1939, pendant la drle de

guerre, alors que Sartre, mobilis, et cantonn en Alsace, occupait ses longs loisirs remplir des carnets(...). Libr, il commena par achever Lge de raison et ce nest qu lautomne 1941 quil entreprit la rdaction de Ltre et le Nant (Contat, M. e Rybalka, M., Les Ecrits de Sartre, p.85-86). assim que, como afirma o prprio Sartre, les carnets de guerre deviennent des carnets de penses, o sesquisse, jour jour, un grand livre: Ltre et le Nant (Entrevista concedida a Mondes Nouveaux, n 2, dezembro de 1944, p.3). Trs dcadas mais tarde, o autor volta a sublinhar essa relao ntima entre seus Carnets de Guerre e EN: mes carnets (...) taient pleins dobservations qui sont passes dans Ltre et le Nant ensuite (Sartre par lui-mme: Un Film, p.69). Nesse sentido, recorde-se ainda o que diz Michel Contat: Les Carnets sont aussi un atelier philosophique. Sartre y forge des concepts, il travaille sur la

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Introduo

volition, la morale, la notion de situation, sur diffrents thmes qui se retrouveront dans Ltre et le Nant dont ils sont, par moments, comme un brouillon (Entrevista, Magazine Littraire, nmero especial sobre Sartre, novembro de 1990, p.23).

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Primeira Parte

O duplo sentido da alienao ou os Caminhos da Liberdade em Ltre et le Nant

Sob a pele das palavras h cifras e cdigos. (Carlos Drummond de Andrade).

Introduo

No interior do movimento de vai-e-vem entre os dois planos de EN, ao longo do qual se misturam materiais heterclitos Husserl, Heidegger, o Hegel de Kojve, sem falar de Malraux, dos clssicos do modernismo americano e de Kafka, tudo isso amalgamado a assuntos da vida cotidiana, se d um outro movimento: as figuras que compem a trama do livro vo sendo transformadas, como numa intriga teatral (dramtica, no caso), e tal transformao vai permitindo a passagem de um momento de pura negatividade, o momento negativo da alienao (que resulta essencialmente do olhar do Outro e da prpria estrutura da conscincia que tem seu ser fora de si mesma), ao momento positivo da alienao, outro aspecto da descoberta da figura de uma liberdade que libertao. Nesse duplo sentido da alienao (que permitiria duas direes de leitura do livro) est o nervo por onde passam todos os problemas de EN.

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Captulo 1

No princpio era a pura Negao (O Ser-fora-de-si)

On reproche Ltre et le Nant de ne point parler de laffirmation. Il ne sagit pas de la nier mais de la mettre sa place. De mme que Hegel a enseign la philosophie aprs Spinoza que toute dtermination est ngation, (...) de mme toute affirmation est sur un autre plan conditionne par une nantisation. (Sartre, Cahiers pour une morale , p.155-156)

Em EN, a busca do ser (ttulo da Introduo que define o propsito da obra)1 comea com o problema do nada, da negao (donde o primeiro captulo: Lorigine de la ngation): Nous tions partis la recherche de ltre(...). Or, voil quun coup doeil jet sur linterrogation elle-mme, au moment o nous pensions toucher au but, nous rvle tout coup que nous sommes environns de nant. Cest la possibilit

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permanente du non-tre, hors de nous et en nous, qui conditionne nos questions sur ltre. Et cest encore le non-tre qui va circonscrire la rponse: ce que ltre sera senlvera ncessairement sur le fond de ce quil nest pas (EN, p.40). E ainda: Le nant hante ltre. (...) Le nant est la condition premire de la conduite interrogative et, plus gnralement, de toute enqute philosophique ou scientifique (EN, p.46).2 Esse ponto de partida heideggeriano: para Heidegger, como escreve o prprio Sartre em EN, le nant se donne comme ce par quoi le monde reoit ses contours de monde cette solution peut-elle nous satisfaire? (EN, p.53). a partir desse horizonte heideggeriano que se delineiam os problemas filosficos de EN do horizonte heideggeriano e o de Hegel (ou de um certo Hegel), cabe acrescentar: se por um lado Heidegger a raison dinsister sur le fait que la ngation tire son fondement du nant (da le progrs que sa thorie du Nant reprsente par rapport celle de Hegel), por outro, cest Hegel qui a raison contre Heidegger, lorsquil dclare que lEsprit est le ngatif (EN, p. 51 e 53) dans les deux cas on nous montre une activit ngatrice et lon ne se proccupe pas de fonder cette activit sur un tre ngatif (EN, p.54). No interior desse dilogo crtico com Heidegger e Hegel, vai se constituindo a estrutura ontolgica de EN ela resultado de um propsito deliberado de assimilar, reelaborando, a armao conceitual dessa modernidade filosfica. Tal propsito est estampado na frase de abertura do livro: La pense moderne a ralis un progrs considrable en rduisant lexistant la srie des apparitions qui le manifestent. On visait par l supprimer un certain nombre de dualismes qui embarrassaient la philosophie et les remplacer par le monisme du phnomne. Y a-ton russi? (EN, p.11). Se o pensamento moderno responde aqui pelo nome triplo 3 H (dos quais Hegel e Heidegger, um tanto quanto amalgamados,3 prevalecem sobre Husserl), preciso entender o imperativo dessa abertura de EN: modernidade filosfica significa, no caso, ruptura com a filosofia moderna no sentido kantiano, 28

No princpio era a pura Negao ...

isto , teoria do conhecimento.4 Trocando em midos: doravante a filosofia no pode mais, sob pena de retrocesso, ser identificada teoria do conhecimento. (O assunto da filosofia no mais uma teoria do conhecimento j na Transcendance de lEgo, Sartre impusera a seguinte condio para o desenvolvimento de um projeto filosfico realista: Il suffit que le Moi soit contemporain du Monde et que la dualit sujetobjet, qui est purement logique, disparaisse dfinitivement des proccupations philosophiques, p.86-87.) O primado da negao em EN, isto , a negao como ponto de partida da investigao filosfica, pressupe a desmontagem (possvel, por sua vez, com a modernidade filosfica)5 do primado do conhecimento, prprio da teoria epistemolgica tradicional por isso as primeiras pginas de EN dedicam-se justamente a desfazer lillusion du primat de la connaissance: Il convient dabandonner le primat de la connaissance, si nous voulons fonder cette connaissance mme. (...) La rduction de la conscience la connaissance, en effet, implique quon introduit dans la conscience la dualit sujet-objet, qui est typique de la connaissance (EN, p.17, 18 e 19). E Sartre acrescenta: Nous sommes ici sur le plan de ltre, non de la connaissance (EN, p.28).6 Da a inovao formal de EN, o famoso de entre parnteses, para se diferenciar radicalmente da idia de conhecimento: Ces ncessits de la syntaxe nous ont oblig jusquici parler de la conscience non positionnelle de soi. Mais nous ne pouvons user plus longtemps de cette expression o le de soi veille encore lide de connaissance. (Nous mettrons dsormais le de entre parenthses, pour indiquer quil ne rpond qu une contrainte grammaticale.) (p.20). Sob este prisma, compreende-se que o fato de Husserl entender a Fenomenologia como uma teoria fundacionista do conhecimento7 seja inaceitvel aos olhos do Sartre de EN (encharcados de Heidegger e do Hegel de Kojve, conforme temos sublinhado). Embora alguns anos antes, no ensaio sobre Husserl, nosso autor julgara encontrar neste ltimo os instrumentos necessrios para a ruptura com a epistemologia dominante na filosofia francesa (La philosophie franaise, qui nous a 29

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forms, ne connat plus gure que lpistmologie. Mais pour Husserl et les phnomnologues, la conscience que nous prenons des choses ne se limite point leur connaissance, Sit.I, p.31), em EN o ponto de vista husserliano descartado: Ainsi, pour avoir rduit ltre une srie de significations, la seule liaison que Husserl a pu tablir entre mon tre et celui dautrui est celle de la connaissance; il ne saurait donc, pas plus que Kant, chapper au solipsisme (EN, p.280). Se na origem do projeto filosfico sartriano est a descoberta de Husserl (Husserl mavait pris, je voyais tout travers les perspectives de sa philosophie qui mtait dailleurs plus accessible, par son apparence de cartsianisme. Jtais husserlien et devais le rester longtemps, nos termos com que os Carnets de la drle de guerre rememoram o momento da descoberta da fenomenologia, p.225), seu acabamento, na forma do ensaio de ontologia fenomenolgica, deve-se mais a Heidegger8 do que filosofia husserliana (cujo idealismo Sartre, j nos Carnets de la drle guerre, cf. p.226, julga superado por Heidegger). Em EN, o idealismo de Husserl considerado um retrocesso com relao a Hegel por isso, desrespeitando a cronologia, Sartre examina os problemas filosficos em questo a partir das solues encontradas por Husserl, Hegel e Heidegger (nesta ordem). o prprio autor quem explica a razo desse desrespeito cronologia: Si, sans observer les rgles de la succession chronologique, nous nous conformons celles dune sorte de dialectique intemporelle, la solution que Hegel donne au problme[de lexistence dautrui], dans le premier volume de la Phnomnologie de lEsprit, nous paratra raliser un progrs important sur celle que propose Husserl (p.280). Comparado com Husserl, no que diz respeito ainda ao problema do Outro, foi Hegel quem a su placer le dbat son vritable niveau (bien que sa vision soit obscurcie par le postulat de lidalisme absolu, EN, p. 290). A grande crtica de EN a Husserl que ele no teria ultrapassado verdadeiramente o idealismo kantiano: Il na jamais dpass la pure description de lapparence en tant que telle, il sest enferm dans le cogito, il mrite dtre appel, malgr ses 30

No princpio era a pura Negao ...

dngations, phnomniste plutt que phnomnologue; et son phnomnisme ctoie chaque instant lidalisme kantien (EN, p.111). Logo no Primeiro Captulo do livro, Sartre afirma que Husserl, tanto quanto Kant, comea deliberadamente pelo abstrato Mais on ne parviendra pas plus restituer le concret par la sommation ou lorganisation des lments quon en a abstraits (EN, p.38). O que levar seguinte concluso sobre o kantismo de Husserl: Husserl a conserv le sujet transcendantal (...) qui ressemble fort au sujet kantien (EN, p.279) e, nessa medida, est aqum de Hegel (pp.280 e 283) En passant de Husserl Hegel, nous avons accompli un progrs immense (EN, p.283). Todavia, Hegel tambm no teria resolvido o problema: Que nous a apport cette longue critique? [a Hegel] Ceci simplement: cest que mon rapport autrui est dabord et fondamentalement une relation dtre tre, non de connaissance connaissance, si le solipsisme doit pouvoir tre rfut. Nous avons vu, en effet, lchec de Husserl qui, sur ce plan particulier, mesure ltre par la connaissance et celui de Hegel qui identifie connaissance et tre (EN, p.289-290). Neste particular, Heidegger quem abre o caminho ao mostrar que le rapport originel de lautre avec ma conscience nest pas (...) la connaissance (EN, p.292). Em EN, a ao que prevalece sobre o conhecimento (veremos mais adiante que nesse ensaio de ontologia fenomenolgica o primado da negao ao mesmo tempo o primado da Ao, como em Kojve): Avoir, faire et tre sont les catgories cardinales de la ralit humaine. Elles subsument sous elles toutes les conduites de lhomme. Le connatre par exemple est une modalit de lavoir (EN, p.485). Mas se a questo da verdade no pode mais ser pensada nos termos do antagonismo epistemolgico kantiano (da o fracasso de Husserl), o propsito da filosofia no tampouco um absoluto de conhecimento, como na filosofia dogmtica do sculo XVII: En renonant au primat de la connaissance, nous avons dcouvert ltre du connaissant et rencontr labsolu, cet absolu mme que les rationalistes du XVIIe sicle avaient dfini et constitu logiquement comme un objet 31

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de connaissance. Mais, prcisment parce quil sagit dun absolu dexistence et non de connaissance, il chappe cette fameuse objection selon laquelle un absolu connu nest plus un absolu, parce quil devient relatif la connaissance quon en prend. En fait, labsolu est ici non pas le rsultat dune construction logique sur le terrain de la connaissance, mais le sujet de la plus concrte des expriences (EN, p.23). Ao absoluto de conhecimento, construdo logicamente pelo grande racionalismo do sculo XVII (para usar a expresso de Merleau-Ponty), EN contrape portanto um absoluto de existncia (definido como le sujet de la plus concrte des expriences ele a prpria experincia).9 No mais podendo ser enquadrada nos moldes da tradio gnosiolgica anterior, a questo da verdade situa-se agora noutro registro: o da experincia vivida. (O que alis Malraux importante fonte de EN, como veremos enunciara em termos literrios: Ce ntait ni vrai, ni faux, mais vcu, La Condition Humaine, Pliade, p.693.) Isso significa que, assim como outrora, poca da consolidao do mundo moderno, a filosofia, aps uma longa travessia por turbulentos mares, pisou em terra firme, separando-se da teologia, agora (com Ser e Tempo sobretudo) a filosofia se separa da teoria do conhecimento (e do sujeito transcendental),10 tentando alcanar o solo da experincia concreta. No lugar de uma teoria do conhecimento, e do sujeito transcendental kantiano, um pensamento da historicidade11 (cujo caminho foi indicado pela histria ontolgica heideggeriana); no lugar do absoluto do conhecimento, prprio da filosofia dogmtica do sculo XVII, um absoluto de existncia (que Merleau-Ponty chamar le mtaphysique dans lhomme, ou mtaphysique en acte12) numa palavra: uma filosofia concreta, isto , capaz de mostrar la ncessit dune existence concrte et contingente au milieu du monde (EN, p.409). Mas o que vem a ser uma filosofia concreta (que vai dar no materialismo subjetivo posterior) a partir da Fenomenologia? Se nos reportarmos a alguns momentos anteriores da surpreendente tentativa sartriana de converter a austera 32

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fenomenologia num ativismo filosfico vers le concret (algo j muito mais radicalizado do que na matriz), procurando reconstituir seus primeiros passos, o ponto de partida de EN se tornar bem menos enigmtico. Tentemos, pois, expor a gnese do projeto realista do jovem Sartre.

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A busca de uma filosofia concreta, contra o que a Questo de Mtodo chamar de idealismo oficial dos universitrios franceses, j pode ser surpreendida no jovem Sartre de entre-guerras. Antes de sua estada em Berlim (1933-1934), quando finalmente descobre a fenomenologia alem, Sartre estudou alguns tericos franceses do direito internacional (particularmente Hauriou, Davy e Lon Duguit). Num artigo de 1927, La Thorie de lEtat dans la pense moderne franaise, nosso autor pe em dvida certas notions mtaphysiques consideradas muito abstratas. Aps descartar a perspectiva idealista, representada principalmente por Esmein de nos jours, lidalisme classique (...) ne peut sadapter aux faits nouveaux des annes daprs guerre, Sartre parece salvar alguns aspectos do que ele chama de realismo de Duguit (por exemplo, a idia de Estado como fonction sociale). A tarefa que vislumbra ento para o filsofo (seu prprio projeto filosfico) , segundo suas palavras, reconstruire les concepts [de Droit naturel e de souverainet de lEtat, no caso] sur une base de faits. O artigo indica ainda que apenas a partir de uma perspectiva realista torna-se possvel compreender, por exemplo, que ce sont les rvolutionnaires dAmrique et de France qui ont donn au Droit naturel une existence relle et la souverainet de lEtat une sanction idale. Mas sobretudo num importante ensaio escrito dois anos depois, Lgende de la Vrit (ponto de partida do pensamento poltico sartriano e a primeira tentativa do autor de vincular filosofia e literatura: La Lgende de la Vrit est une espce 33

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dessai de trouver un rapport entre littrature et philosophie, Sartre-Un Film, p.41), que encontramos elementos que nos permitem falar, curiosamente, num certo materialismo do jovem Sartre. Como diz Simone de Beauvoir, esse ensaio de 1929 rattachait les divers modes de la pense aux structures des groupes humains (La Force de lge, p.49). A partir de referncias histricas precisas, o jovem Sartre procura determinar a necessidade (histrica) da emergncia (filosfica) do problema da verdade. Desta perspectiva, nosso autor pode afirmar que a questo da verdade no existiu sempre sua origem datada historicamente: La vrit procde du

commerce: elle accompagna au march les premiers objets manufacturs: elle avait attendu leur naissance pour sortir, tout arme, du front des hommes. A verdade e os primeiros objetos manufaturados tm portanto a mesma idade. O propsito do ensaio, v-se logo, dar conta da gnese material (por assim dizer) do problema da verdade, ou melhor, desentranhar essa gnese a partir das condies do mercado, dos objetos manufaturados, e no a partir de uma histria interna da filosofia, ou das idias. a prpria natureza da mercadoria que engendra determinadas reflexes, sugere o autor. (Anlise curiosa, sem dvida, tanto mais quando se pensa que quela poca Sartre ignorava completamente Marx apenas quase dez anos depois, num texto de 1938, La Conspiration par Paul Nizan, que nosso autor vai se referir s admirables analyses du ftichisme de la marchandise em Marx. Em EN, as referncias a Marx sero determinadas sobretudo pela leitura da Fenomenologia do Esprito: la fameuse relation Matre-esclave qui devait si profondment influencer Marx, p.282.) A relao do pensamento com as coisas, ou a estreita unio do esprito e das coisas, nas palavras do prprio Sartre: eis o tema do ensaio. Enfatizando a determinao fundamental da economia, da esfera do mercado (as relaes de troca, as relaes materiais entre os homens), o autor escreve: La puissance du march libra les hommes de leurs grandes forces intrieures. Da a idia de um irrsistible mouvement das mercadorias.13 34

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Entre esses primeiros ensaios de Sartre e EN, d-se a descoberta de Husserl. Sem poder encontrar em sua prpria casa os instrumentos tericos necessrios para o desenvolvimento de seu projeto realista, Sartre (assim como outros de sua gerao) forado a cruzar o Reno (literalmente, como atesta sua passagem, depois de Aron, por Berlim). O problema : como conciliar esse projeto realista com a descoberta da filosofia husserliana (uma conception idaliste de lexistence, conforme EN a define, p.148)? La Transcendance de lEgo (primeira elaborao dessa descoberta, pois escrito no exato momento em que Sartre estudava Husserl em Berlim), desfaz o problema enquanto tal porque, vendo na filosofia husserliana uma libertao da philosophie alimentaire, a qual dissolve as coisas na conscincia, julga ver a tambm um solo frtil para o desenvolvimento de uma filosofia realista. Na concluso dessa sua primeira obra filosfica, Sartre procura justamente refutar as acusaes, feitas por tericos de extrema esquerda, de que a fenomenologia um idealismo. Contra essa acusao injusta, nosso autor define a fenomenologia como uma corrente realista, na medida em que situa o homem no mundo:14 Les thoriciens dextrme-gauche ont parfois reproch la phnomnologie dtre un idalisme et de noyer la ralit dans le flot des ides. Mais si lidalisme cest la philosophie sans mal de M. Brunschvicg, si cest une philosophie o leffort dassimilation spirituelle ne rencontre jamais de rsistances extrieures, o la souffrance, la faim, la guerre se diluent dans un lent processus dunification des ides, rien nest plus injuste que dappeler les phnomnologues des idalistes. Il y a des sicles, au contraire, quon navait senti dans la philosophie un courant aussi raliste. Ils ont replong lhomme dans le monde, ils ont rendu tout leur poids ses angoisses et ses souffrances, ces rvoltes aussi. Malheureusement, tant que le Je restera une structure de la conscience absolue, on pourra encore reprocher la phnomnologie dtre une doctrine-refuge, de tirer encore une parcelle de lhomme hors du monde et de dtourner par l lattention des vritables problmes. Il nous parat que ce 35

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reproche na plus de raisons dtre si lon fait du Moi un existant rigoureusement contemporain du monde et dont lexistence a les mmes caractristiques essentielles que le monde. Il ma toujours sembl quune hypothse de travail aussi fconde que le matrialisme historique nexigeait nullement pour fondement labsurdit quest le matrialisme mtaphysique. Il nest pas ncessaire, en effet, que lobjet prcde le sujet pour que les pseudo-valeurs spirituelles svanouissent et pour que la morale retrouve ses bases dans la ralit. (...) Le Moi (indirectement et par lintermdiaire des tats) tire du Monde tout son contenu. Il nen faut pas plus pour fonder philosophiquement une morale et une politique absolument positives (p.85, 86, 87). exatamente esse projeto filosfico realista que sustenta as reflexes de Sartre em Limagination, onde o autor impe como condio para um estudo verdadeiramente concreto do problema da imagem a ruptura com os pressupostos da metafsica: La thorie mtaphysique de limage choue dfinitivement dans sa tentative pour retrouver la conscience spontane dimage et la premire dmarche dune psychologie concrte doit tre pour se dbarrasser de tous les postulats mtaphysiques (p.109-110). A pista para essa ruptura com os postulados tradicionais da metafsica (capaz de levar a uma psicologia concreta), Sartre entrev, naquele momento, ainda em Husserl (a quem dedica o ltimo captulo de Limagination): Husserl ouvre le chemin (p.158).15 Mas no ensaio sobre Husserl que encontramos mais claramente formulada essa virada sartriana (que converte a Fenomenologia numa filosofia concreta): Contre la philosophie digestive de lempiro-criticisme, du nokantisme, contre tout psychologisme, Husserl ne se lasse pas daffirmer quon ne peut pas dissoudre les choses dans la conscience(Sit.I, p.29-30). Na fenomenologia husserliana, Sartre v a chave para o desenvolvimento de seu projeto iluminista, explicitado posteriormente, de um spirituel dans la rue,au march, dsincarn16: Husserl a rinstall lhorreur et le charme dans les choses. (...) Nous voil dlivrs de Proust. Dlivrs en mme temps de la vie intrieure(...). Ce nest pas dans je ne sais 36

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quelle retraite que nous nous dcouvrirons: cest sur la route, dans la ville, au milieu de la foule, chose parmi les choses, hommes parmi les hommes (Sit.I, p.31-32). Mais tarde, nos Carnets de la Drle de Guerre, afirmando ter enfim descoberto que a filosofia de Husserl voluait au fond vers lidalisme (ce que je ne pouvais admettre), nosso autor vai buscar sua solution raliste via Heidegger: Je revins chercher une solution raliste. (...) Certainement cest pour mvader de cette impasse husserlienne que je me tournai vers Heidegger (Les Carnets de la Drle de Guerre, p.226-227). Realismo aqui, no caso da modernidade heideggeriana, significa sobretudo uma filosofia que no mais contemplativa, como explicar Sartre alguns anos mais tarde, em 1943: Lerreur de M. Bataille est de croire que la philosophie moderne est demeure contemplative. Il na visiblement pas compris Heidegger (Sit.I, p.145).17 Se nos lembrarmos, alm disso, que Kojve definira a filosofia hegeliana justamente como um realismo, atingiremos afinal o nervo do realismo do jovem Sartre: On a souvent affirm que le Systme de Hegel est idaliste. Or en fait, lIdalisme absolu hglien na rien voir avec ce quon appelle ordinairement Idalisme. Et si on emploie les termes dans leur sens usuel, il faut dire que le systme de Hegel est raliste (Kojve, Introduction la Lecture de Hegel, p.427).18 E mais adiante Kojve precisa o sentido desse realismo: Il faut dire que Ralisme en philosophie ne signifie, en fin de compte, rien dautre quHistorisme. (...) On introduit dans la philosophie la notion de lHistoire(...). Dire que la philosophie doit tre raliste, cest donc dire en dernire analyse quelle doit tenir et rendre compte du fait de lHistoire.(...) Il ny a vraiment de Ralisme philosophique que l ou la philosophie tient et rend compte de lAction, cest--dire du Temps (Introduction la Lecture de Hegel, p.432-433). Histria, Ao, Tempo: eis aqui os ingredientes do Hegel de Kojve, os quais, mesclados ao pensamento da historicidade heideggeriano, comporo o esqueleto filosfico de EN.

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assim que quando lermos em EN on doit partir dun certain ralisme (p.362), j poderemos identificar os termos desse realismo: uma filosofia no contemplativa (a partir da Fenomenologia, sobretudo do Heidegger de Ser e Tempo); uma filosofia que, em vez de mero encadeamento de conceitos, seja capaz de apreender a experincia viva (para recorrer ao vocabulrio com o qual Merleau-Ponty reativa a interpretao kojeviana da Fenomenologia do Esprito19). Se Sartre restringe a acepo de seu realismo (un certain ralisme) porque faz ao mesmo tempo a crtica radical do ralisme naf (EN, p.284), mais diretamente identificado ao positivismo do sculo XIX (p.268), com forte influncia na tradio acadmica francesa.20 Contra esse ralisme naf, EN busca le concret enquanto totalit synthtique (p.37-38) o que significa compreender lhomme, le monde et le rapport qui les unit, la condition que nous envisagions ces conduites comme des ralits objectivement saisissables et non comme des affections subjectives qui ne se dcouvriraient quau regard de la rflexion (p.38). Outro momento dessa tentativa sartriana de expor seu realismo: A quel tre le pour-soi est-il prsence? Notons tout de suite que la question est mal pose: (...) La question na de sens que si elle est pose dans un monde (EN, p.220) um mundo que se dvoile concrtement (p.221). Essa forma tomada pelo realismo em EN a viga central de sustentao da estrutura do livro, cuja pedra fundamental o problema da negao. Estamos agora em condies de compreender melhor esse ponto de partida do ensaio de ontologia fenomenolgica de Sartre. * O problema da negao se constitui em EN a partir do primeiro traado da figura do pour-soi. Mas o inverso tambm verdadeiro: a busca do fundamento da negao que permite ao autor delinear a figura do pour-soi: La ngation vient du pour-soi lui-mme (EN, p.214); le pour-soi est fondement de toute ngativit et de toute relation, il est la relation (EN, p.411). A prpria negao pressupe a 38

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conscincia: rien sinon la ngation (...) ne peut venir len-soi par le Pour-soi (p.225); pela ralit-humaine que la ngation par dpassement vient au monde, p.236-237 (decorre da a humanizao do nant, como veremos adiante). a negao o primeiro divisor de guas entre o pour-soi e o en-soi ela que torna possvel distinguir a figura do pour-soi do fundo amorfo e indiferenciado do en-soi (regido pelo princpio de identidade21): Mais il faut prciser ce que nous entendons par cette ngation originelle. Il convient de distinguer deux types de ngation: la ngation externe et la ngation interne. (...) Il est clair que ce type de ngation [interne] ne saurait sappliquer ltre-en-soi. Il appartient par nature au pour-soi. Seul le pour-soi peut tre dtermin dans son tre par un tre quil nest pas. Et si la ngation interne peut apparatre dans le monde (...) cest par le pour-soi quelle vient au monde, comme toute ngation en gnral (EN, p.215-216). E mais: Seule une conscience peut se constituer comme ngation interne (EN, p.682).22 A negao interna definida como liaison synthtique et active des deux termes dont chacun se constitue en se niant de lautre (EN, p.298)23 pressupe, por sua vez, a idia de ngation de la ngation (p.222-223), seconde ngation (p.334), double ngation interne (p.415), numa palavra, ngation concrte (p.223 e 230): la ngation interne est un lien ontologique concret (p.216). Mas veremos que a ngation de la ngation essa ngation-fondement: le fondement de la ngation est ngation de ngation (...); cette ngation-fondement... (p.239) s aparece em EN por ocasio da primeira entrada em cena da liberdade no livro (assunto do nosso prximo captulo). Limitemo-nos por ora a salientar que a negao interna (prpria do pour-soi, como foi dito) implica a existncia de relaes internas entre os termos em questo na linguagem de Sartre, implica lunit de relations internes (p.622): La liaison de ltre et du non-tre ne peut tre quinterne (EN, p.155-156).24 O primeiro momento da constituio do problema da negao (que permite lanar as bases da estrutura do pour-soi e do en-soi, e onde impera a idia, 39

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heideggeriana, do nant como fundamento da negao25) um momento de pura negatividade o momento negativo da alienao que descreve o ser-fora-de-si ou uma subjetividade impotente diante da fora das coisas. Mas de que alienao se trata? Se desmontarmos a engrenagem existencial da alienao, veremos sobressair, em primeiro lugar, uma das peas essenciais que a compem: o olhar do outro. Com efeito, trata-se de uma alienao que resulta fundamentalmente do olhar do outro, isto , estamos diante de um processo de coisificao por intersubjetividade: Lautre en surgissant confre au pour-soi un tre-en-soi-au-milieu-du-monde comme chose parmi les choses (EN. p.481); tout ce qui est alin nexiste que pour lautre (p.584).26 Ressaltemos alguns outros aspectos dessa descrio filosfica da alienao que resulta da existncia de Autrui: Et ce moi que je suis, je le suis dans un monde quautrui ma alin (p. 307); avec le regard dautrui, la situation mchappe ou, pour user dune expression banale, mais qui rend bien notre pense: je ne suis plus matre de la situation (p. 311); Autrui est au milieu de mon monde (p. 316); Autrui est dabord pour moi ltre pour qui je suis objet (p.317); la prsence dautrui dmondanise mon monde (p. 318); Mon tre pour-autrui est une chute travers le vide absolu vers lobjectivit. Et comme cette chute est alination(...) (p. 321); Autrui mest prsent partout comme ce par quoi je deviens objet (p.327); mon tre-pour-autrui, cet tre cartel (p.334); je me sens atteint par autrui dans mon existence de fait (p. 401); les bornes de ma libert: du fait de lexistence dautre, jexiste dans une situation qui a un dehors et qui, de ce fait mme, a une dimension dalination... (p. 582); lexistence de lAutre apporte une limite de fait ma libert (p. 581); vivre dans un monde hant par mon prochain... (p. 567); lalination permanente de mon trepossibilit qui nest plus ma possibilit, mais celle de lautre (p. 605). Mas a alienao em EN resulta tambm da prpria estrutura da conscincia, que tem seu ser fora de si mesma uma conscincia cujo ser foi jogado no mundo das coisas: se mtamorphoser en chose (EN, p.672), je suis dehors (p.468).27 Essa 40

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idia de que meu ser est fora de mim constitutiva de EN: Je suis toujours hors de moi, ailleurs (p. 652); Nous courons vers nous-mmes et nous sommes, de ce fait, ltre qui ne peut pas se rejoindre. En un sens, la course est dpourvue de signification, puisque le terme nest jamais donn, mais invent et projet mesure que nous courons vers lui (EN, p.244); Cette objectivit de ma fuite, je lprouve comme une alination que je ne puis ni transcender ni connatre (EN, p.411-412). Outros exemplos, dentre os inmeros que atravessam a obra: Ce Moi alin (...) cest mon tre-dehors (p.332-333); Ainsi trouvons-nous dans les choses (p. 516); la ralit humaine (...) vient recevoir sa place parmi les choses, sans en tre aucunement matresse (p.547); il ny a jamais rien de plus que les choses (p.607); jprouve corrlativement mon alination et mon objectivit(p.468); lappartenance au Nousobjet est sentie comme une alination plus radicale encore du Pour-soi (p. 470); et qui vise englober mon appartenance comme objet la totalit humaine (...) saisie galement comme objet (p. 470); cest travers cette souffrance subie que

jprouve mon tre- regard-comme-chose-engage-dans-une-totalit-des-choses (...); je nous prouve comme saisis partir des choses et comme choses vaincues par le monde (p.472); il ny a jamais rien de plus que les choses(...); cest les choses renvoyant au sujet son image (p.607); ce que jprouve cest un tre dehors (p. 469); jai tre moi-mme hors de moi (p.492); la ralit humaine (...) est perptuellement arrache elle-mme (p.495); ainsi je rencontre ici tout coup lalination totale de ma personne: je suis quelque chose que je nai pas choisi dtre (p.582); tre aline, cest--dire dexister comme forme en soi pour lautre; nous ne pouvons chapper cette alination... (p. 583); je suis (...) en-soi par rapport moi (p.653); cest moi hors de moi, hors de toute subjectivit, comme un en-soi qui mchappe (p. 652); ma conscience (...) est dehors comme une chose (p.504).28 Essa idia de que a conscincia tem seu ser fora de si mesma, cuja importncia estrutural em EN fica evidenciada na lista exaustiva dos exemplos acima citados, vem 41

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inicialmente da leitura sartriana de Husserl: La philosophie de la transcendance nous jette sur la grand-route, au milieu des menaces, sous une aveuglante lumire. (...) Que la conscience essaye de se reprendre, de concider enfin avec elle-mme, tout au chaud, volets clos, elle sanantit. Cette ncessit pour la conscience dexister comme conscience dautre chose que soi, Husserl la nomme intentionnalit (Sit.I, p.31).29 Lembremos tambm La Transcendance de lEgo, onde Sartre, numa perspectiva husserliana (cf. Simone de Beauvoir, La force de lge, p.210), procura demonstrar a seguinte tese: Nous voudrions montrer ici que lEgo nest ni formellement ni matriellement dans la conscience: il est dehors, dans le monde; cest un tre du monde, comme lEgo dautrui (La Transcendance de lEgo, p.13). Todavia, ao desenvolver em EN a idia do ser-fora-de-si, nosso autor j navega em guas heideggerianas: le Dasein est hors de soi, dans le monde, il est un tre des lointains, lemos no prprio EN (p.53).30 Mas j sabemos que no ensaio de ontologia de Sartre as guas heideggerianas correm no mesmo sentido das do Hegel de Kojve a descrio do ser-fora-de-si em EN tem muito tambm da leitura kojeviana da Fenomenologia do Esprito. O que Sartre descreve um processo de desintegrao do sujeito: Lalination de moi quest ltre-regard implique lalination du monde que jorganise (EN, p.309); le monde se dsintgre; cette dsintgration ne mest pas donne, je ne puis ni la connatre ni mme seulement la penser(EN, p.319). E ainda: le monde scoule hors du monde et je mcoule hors de moi (p.307). O autor chama de hmorragie interne(p.307) esse processo de coulement de mon monde vers autrui-objet, ou de leffondrement du monde en tant que tel (p.389) une destruction alinante et un effondrement concret de mon monde qui scoule vers autrui(p.402). no desdobramento desse processo (e aqui podemos reconhecer mais claramente os ecos da Fenomenologia do Esprito) que se d o esfacelamento do sujeito da a idia, recorrente como vimos, de ter seu ser fora de si mesmo.31 Se quisssemos resumir o resultado dessa primeira desmontagem da 42

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engrenagem existencial da alienao em EN, diramos que o momento negativo da alienao descreve um estado de nantisation (no sentido de Kojve, interpretando Hegel: nantisation cessation de laction)32, isto , trata-se de uma descrio (no interior da qual Heidegger e Hegel aparecem quase que indiferenciados, ou em alguns momentos um prevalece sobre o outro) da impotncia de uma subjetividade cujo ser est fora de si mesmo, prostrado diante da fora das coisas.33 Mas j no primeiro captulo do livro h uma tendncia inverso (e este um momento em que Hegel prevalece sobre Heidegger), ou seja, superao do quietismo, do estado de paralisia e angstia prprios do Dasein heideggeriano (a solido de uma subjetividade abandonada num mundo inteiramente desencantado), atravs de uma luta herica de conscincias (no melhor estilo da Fenomenologia do Esprito, interpretada por Kojve). Se Heidegger pra aqui, na descrio do momento de dissoluo do sujeito, as anlises de EN procuram subverter esse estado de coisas subverso que levar superao do momento negativo da alienao e afirmao, feita no final do livro, da primaut de ltre sur le nant, p.683 (o que implica a afirmao da Ao):34 Ainsi, en renversant la formule de Spinoza, nous pourrions dire que toute ngation est dtermination.35 Cela signifie que ltre est antrieur au nant et le fonde. Par quoi il faut entendre non seulement que ltre a sur le nant une prsance logique mais encore que cest de ltre que le nant tire concrtement son efficace (p.51). O resultado desse mecanismo de inverso, ao longo do qual passamos da idia do nant como condition premire de toute enqute philosophique ou scientifique prsance logique do ser, , como veremos a seguir, a afirmao da liberdade: o captulo sobre a negao termina com a afirmao da liberdade humana. A liberdade sai da negao (assim como na Fenomenologia do Esprito, conforme enfatiza Kojve, a conscincia de si brota da negao), ou melhor, para usar os termos de Jean Wahl, la ngation suppose la libert (Essai sur le nant dun problme, in Deucalion, n 1, 1946, p.62). Noutras palavras: a passagem de um momento de pura 43

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negatividade ao momento positivo da alienao resultado da descoberta da figura de uma liberdade que libertao (no mesmo sentido que na Fenomenologia do Esprito, segundo Hyppolite, la libert absolue suppose la libration, La Phnomnologie de lEsprit, vol.I, p.166, nota 35).

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Notas - Captulo 1

1)Mon projet ultime et initial car il est les deux la fois est, nous le verrons,

toujours lesquisse dune solution du problme de ltre (EN, p.518).2

)Esse privilgio da negao justificado por Sartre alguns anos depois, nos Cahiers

pour une morale, na passagem que figura como epgrafe deste captulo. justamente tal privilgio que levar Jean Wahl, em sua anlise das pginas iniciais da primeira parte de EN, a indagar: Ne pourrait-on reprocher Sartre la tendance quil a prsenter certaines choses positives (comme le futur) sous forme ngative? (Jean Wahl, Essai sur le nant dun problme sur les pages 37-84 de Ltre et le Nant de J. P. Sartre, in Deucalion, n 1, 1946, p.65-66). Ainda sobre o primado da negao em EN, Jean Wahl escreve: Sartre ici va maintenir la ralit de la ngation (...). En fait il va aller bien plus loin que la ralit de la ngation puisquil va tenter de prouver lide de lexistence objective du non-tre (Idem, p.42). Tambm MerleauPonty, em seus comentrios a respeito de EN, define o ensaio de ontologia fenomenolgica de Sartre como une philosophie de la ngativit, ou une philosophie du ngatif (Le visible et linvisible, p.90): le nant nest pas, ce qui est prcisment pour lui la seule manire dtre (Le visible et linvisible, p.79). Nessa perspectiva, une philosophie qui pense vraiment la ngation, cest--dire qui la pense comme ce qui de part en part nest pas, est aussi une philosophie de ltre. Nous sommes par-del le monisme et le dualisme, parce que le dualisme a t pouss si loin que les opposs ntant plus en comptition sont en repos lun contre lautre, coextensifs lun lautre. (...) Du point de vue dune philosophie de la ngativit absolue, qui est du mme coup philosophie de la positivit absolue, tous les problmes de la philosophie classique se volatilisent, car ils taient des problmes de 45

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mlange ou dunion, et mlange et union sont impossibles entre ce qui est et ce qui nest pas, mais, par la mme raison qui rend le mlange impossible, lun ne saurait tre pens sans lautre. Ainsi disparat lantinomie de lidalisme et du ralisme (Idem, p.80, 81 e 82). Isso posto, Merleau-Ponty tratar no entanto de criticar EN, tomado como representante de uma tradio de pensamento negativo que remonta a Hegel essa filosofia da negatividade, fundamental para o primeiro MerleauPonty, no s o dos escritos polticos mas tambm o da Fenomenologia da Percepo, j se tornara inaceitvel aos olhos do autor de Le visible et linvisible.3

)Com efeito, em EN estamos diante de um Hegel existencialista (que vem do Hegel

pr-existencialista de Kojve, por cujo trilho correro tambm as anlises de Hyppolite e do primeiro Merleau-Ponty): Le vritable concret, pour Hegel, cest lExistant (EN, p.47). Nesse sentido, cf. Kojve: La PhG est une description phnomnologique de lexistence humaine. Cest dire que lexistence humaine y est dcrite telle quelle apparat(erscheint) ou se manifeste celui-l mme qui la vit. En dautres termes, Hegel dcrit le contenu de la conscience de soi de lhomme qui est domin dans son existence soit par lune des attitudes existentielles types qui se retrouvent partout et toujours (Ire Partie), soit par lattitude qui caractrise une poque historique marquante (IIe Partie). Lhomme tant appel dans la PhG Conscience (Bewusstsein), Hegel indique quil sagit dune description phnomnologique, en disant quil dcrit lattitude en question telle quelle existe pour la Conscience ellemme (fr das Bewusstsein selbst). Mais Hegel lui-mme crit la PhG aprs lavoir pens, cest--dire aprs avoir intgr dans son esprit toutes les attitudes existentielles possibles. Il connat donc la totalit de lexistence humaine, il la voit, par consquent, telle quelle est en ralit ou en vrit (Introduction la lecture de Hegel, p.576). As ressonncias dessa leitura kojeviana ainda se fazem sentir nos comentrios de Hyppolite sobre a dialtica do senhor e do escravo na Fenomenologia do Esprito: 46

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Cest cette exprience existentielle qui fait que la conscience esclave possde ltrepour-soi. Dans langoisse, le tout de son essence sest en effet rassembl en elle, comme un tout (La Phnomnologie de lEsprit, vol.I, p.164, nota 26; Hyppolite enfatiza esse momento da dialtica ao qual se atm o Dasein heideggeriano). MerleauPonty, por sua vez, apoiando-se tambm em Kojve (de cujos cursos fora assduo frequentador), e mais explicitamente em Hyppolite, exalta a Fenomenologia do Esprito como uma obra existencialista e acusa o ltimo Hegel de ter posto de lado a existncia, subordinando o indivduo aos desgnios da histria. Se em 1807 Hegel privilegiou a experincia individual, afirma Merleau-Ponty no ensaio

LExistentialisme chez Hegel, em suas ltimas obras ele subjugou o particular ao universal. Embora no final do seu percurso a filosofia hegeliana passe a considerar a histria como o desenvolvimento de uma lgica, o jovem Hegel, maneira existencialista, queria descrever a situao fundamental do homem no mundo (LExistentialisme chez Hegel, Les Temps Modernes, n 7, abril de 1946; reproduzido em Sens et Non-Sens, p.113). Merleau-Ponty estabelece portanto um corte entre o primeiro Hegel (existencialista) e o Hegel da maturidade (logicista, idealista): Si le Hegel de 1827 est sujet au reproche didalisme, on nen peut dire autant de Hegel de 1807 (Idem, p.111). Em que consiste o existencialismo do jovem Hegel? On peut parler dun existentialisme de Hegel en ce sens dabord quil ne se propose pas denchaner des concepts, mais de rvler la logique immanente de lexprience humaine dans tous ses secteurs (Idem, p.113). A experincia em Hegel, diferentemente de Kant, teria o estatuto de algo vivido e no simplesmente contemplado. De acordo com essa leitura merleau-pontyana (calcada, convm insistir, em Kojve e Hyppolite), todos os temas caros ao existencialismo por exemplo, a liberdade, as relaes entre o eu e o outro, a conscincia da morte encontram ressonncia na filosofia do jovem Hegel. Nessa medida, diz Merleau-Ponty, mesmo 47

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que Kierkegaard o primeiro a empregar a palavra existncia no seu sentido moderno tenha se contraposto a Hegel, no h uma incompatibilidade entre as duas filosofias. O Hegel ao qual ele se ope aquele que, no final, encerrou-se num palcio de idias. Quanto ao primeiro Hegel da Fenomenologia, cabe filosofia da existncia recuper-lo. Privilegiando, pois, a obra que tratou da experincia humana e recusando as obras consideradas simples encadeamento de conceitos, a interpretao existencialista da filosofia hegeliana poderia ser sintetizada nesta frase de Merleau-Ponty em La Querelle de lExistentialisme (Les Temps Modernes , n 2, novembro de 1945; reproduzido em Sens et Non-Sens, p. 141): On peut interprter autrement Hegel (), on peut le faire (et selon nous il faut le faire) beaucoup plus marxiste, on peut fonder sa logique sur la phnomnologie et non pas sa phnomnologie sur sa logique. ( essa particular leitura de Hegel que permite responder a questes como esta formulada por Vincent Descombes: Celui qui verrait dans loeuvre hglienne un monument rationaliste stonnera sans doute du respect affich par les futurs existentialistes franais lendroit de Hegel: si lexistence est foncirement absurde, injustifiable, comment saccommoder dune pens qui soutient que tout ce qui est rel est rationnel?, Le Mme et lAutre, p. 24-25.) Ainda sobre essa tentativa de reabilitar Hegel para o campo existencialista, cf. a Phnomnologie de la Perception: La synthse de lEn soi et Pour soi qui accomplit la libert hglienne a cependant sa vrit. En un sens, cest la dfinition mme de lexistence, elle se fait chaque moment sous nos yeux dans le phnomne de prsence, simplement elle est bientt recommencer et ne supprime pas notre finitude (p.519). O propsito de Merleau-Ponty, conforme lemos em Partout et nulle part, buscar a face subjetiva da dialtica. Para isso, o autor pretende mostrar que h mais coisas em comum entre Hegel, Husserl, Heidegger e Bergson (Merleau-Ponty muito mais condescendente com Bergson do que Sartre, como veremos logo adiante) do que 48

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primeira vista se poderia imaginar: o sculo, rumando para a existncia, tambm rumava para a dialtica. (...) A dialtica reencontrada pelos contemporneos (...) uma dialtica do real. O Hegel que reabilitaram no aquele de quem o sculo XIX se afastara, detentor de um segredo maravilhoso para falar de todas as coisas sem pensar nelas, aplicando-lhes mecanicamente a ordem e a conexo dialticas; mas aquele que no quer escolher entre a lgica e a antropologia, que fazia a dialtica emergir da experincia humana, mas definia o homem como portador emprico do Lgos, punha no centro da filosofia essas duas perspectivas e a inverso que transforma uma na outra. Essa dialtica e a intuio no so apenas compatveis: h um momento em que confluem (Em toda e em nenhuma parte, Pensadores, p. 424-425). E nas Aventures de la Dialectique (p.50), o filsofo refere-se dialtica como uma intuition continue. (Nesse sentido, interessante esta observao de Jean Hyppolite: Si nous en croyons Merleau-Ponty les deux grandes dcouvertes philosophiques de notre poque sont prcisment cette existence et cette dialectique en tant quelles se rfrent lune lautre. (...) La dialectique nest pas ce jeu artificiel de notions quon a souvent reproch Hegel, mais elle est une dialectique du rel, celle mme que nous redcouvrons aujourdhui dans la Phnomnologie de lesprit. Ainsi existence et dialectique ne sopposent pas comme une donne immdiate et une mdiation intellectuelle. Cette jonction temporelle de limmdiat et de la mdiation cest la dialectique de lexistence telle quelle se dvoile nous dans loeuvre de MerleauPonty, Existence et Dialectique dans la Philosophie de Merleau-Ponty, Les Temps Modernes, n 184-185, nmero especial, 1961, p. 231.) Esse propsito de unir as duas diferentes (se no opostas) linhagens da fenomenologia (no sentido husserliano e no sentido hegeliano) reafirmado por Merleau-Ponty em seus cursos na Sorbonne, onde ensina que o fundamento da filosofia est no que Husserl denomina histria intencional e que outros chamam dialtica (La Fenomenologia y las Ciencias del 49

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Hombre, p.96). E acrescenta: A Fenomenologia, no sentido husserliano, une-se neste momento Fenomenologia no sentido hegeliano, que consistia em seguir o homem em suas experincias, sem substituir-se a ele, deslizando-se nelas de maneira a fazer aparecer seu sentido (p.101-102). exatamente essa aproximao entre

fenomenologia, filosofia da existncia e dialtica hegeliana que servir de suporte para o primeiro Merleau-Ponty aproximar-se do marxismo, mas isto j uma outra histria.4

)O que j evidencia o equvoco de Anna Boschetti ao inscrever EN, como observamos

na Introduo, na linhagem da filosofia kantiana. (E nisto Boschetti no est sozinha, diga-se de passagem cf. por exemplo Alain Renaut, para quem la philosophie morale, esboada no final de EN, retrouve une thmatique formellement proche de celle quavait mise en place Kant ds le dbut de la Critique de la raison pratique, Sartre, le dernier philosophe, pp.196, 197 e 198.) Veremos ao longo deste trabalho que nada mais distante do ensaio de ontologia fenomenolgica de Sartre do que essa tradio da filosofia de Kant. EN se tornou possvel, como j indicamos, justamente a partir da desmontagem, feita por Heidegger, da filosofia no sentido kantiano nisto reside a modernidade filosfica para Sartre. Nessa medida, Jean Wahl tem razo ao demarcar nos seguintes termos o referencial filosfico de EN: Bien plutt qu des philosophies abstraites, comme celles de Kant et de Husserl, il faut donc se rattacher Heidegger et son tre-dans-le monde; cest cet tre-dans-le-monde quil va chercher dterminer (Essai sur le nant dun problme, in Deucalion, n 1, 1946, p.42).5

) Vale lembrar que a desmontagem do primado do conhecimento o eixo da leitura

heideggeriana de Kant: A contribuio positiva da Crtica da Razo Pura, de Kant, por exemplo, reside no impulso que deu elaborao do que pertence propriamente natureza e no em uma teoria do conhecimento, lemos em Ser e Tempo (vol.1, p.37). ( esse tipo de leitura que levar Lukcs a afirmar o seguinte a respeito de Heidegger: caracterstico que trate de ressaltar a fundamental tendncia 50

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antropolgica da lgica transcendental de Kant, para fazer deste filsofo um precursor do existencialismo, da mesma forma que Simmel tratava de fazer dele um precursor da filosofia da vida, O assalto razo, p.404.) Mais adiante, Heidegger acrescenta: que logo que o fenmeno de conhecimento do mundo se apreende em si mesmo, sempre recai numa interpretao formal e externa. Um ndice disso a suposio, hoje to corrente, do conhecimento como uma relao de sujeito e objeto, to verdadeira quanto v. Sujeito e objeto, porm, no coincidem com pre-sena [Dasein] e mundo (Ser e Tempo, p.98). Ainda sobre a desmontagem do objetivismo kantiano em Ser e Tempo (ST), cf. vol.1, p.270-271. A verdade, na tica de Ser e Tempo, no adequao entre o sujeito e o objeto: A verdade no possui, portanto, a estrutura de uma concordncia entre conhecimento e objeto, no sentido de uma adequao entre um ente (s