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MITO E REALIDADE DA OPINIAO PÚBLICA CANDIDO TEOBALDO DE SOUZA ANDRADE "Sei onde há mais sabedoria do que a encontrada em Napoleão, Voltaire ou em todos os ministros, presentes e futuros: na opinião pública .." - TAL- LEYRAND É inegável que, embora os meios de comunicação e o pro- gresso educacional estejam evoluindo aceleradamente, as pessoas nem sempre estão bem informadas, pois a latitude e a longitude dos problemas as impedem de obter infor- mee em número suficiente para que possam opinar de ma- neira racional. Ademais, a complexidade das questões le- vantadas afasta, de certo modo, o homem comum dos pro- blemas de alta indagação. O que, na realidade, existe, é a massa que aceita, por comodismo, os pontos de vista dos grupos relativamente pequenos, porém detentores dos me- lhores veículos de comunicação. O procedimento da criatura humana, em face da comple- xidade da vida moderna, é, às vêzes, difícil de ser com- preendido. O indivíduo, algumas vêzes, mostra-se cons- cientemente racional em suas atitudes e opiniões; outras, age impulsionado por sentimentos. Seu comportamento, por via de regra, deveria ser produto de fatôres tanto ra- cionais, como emocionais, em razoável equilíbrio. Infeliz- mente, a atuação da propaganda tem levado as pessoas a CÂNDIDO TEOBALDO DE SOUZA ANDRADE - Professor de Relações Públicas do Departamento Estadual de Administração (DEA) e do Instituto d. Organização Racional do Trabalho (lDORT).

MITO E REALIDADE DA OPINIAO PÚBLICA

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MITO E REALIDADE DAOPINIAO PÚBLICA

CANDIDO TEOBALDO DE SOUZA ANDRADE

"Sei onde há mais sabedoria do que a encontradaem Napoleão, Voltaire ou em todos os ministros,presentes e futuros: na opinião pública .." - TAL-

LEYRAND

É inegável que, embora os meios de comunicação e o pro-gresso educacional estejam evoluindo aceleradamente, aspessoas nem sempre estão bem informadas, pois a latitudee a longitude dos problemas as impedem de obter infor-mee em número suficiente para que possam opinar de ma-neira racional. Ademais, a complexidade das questões le-vantadas afasta, de certo modo, o homem comum dos pro-blemas de alta indagação. O que, na realidade, existe, éa massa que aceita, por comodismo, os pontos de vista dosgrupos relativamente pequenos, porém detentores dos me-lhores veículos de comunicação.

O procedimento da criatura humana, em face da comple-xidade da vida moderna, é, às vêzes, difícil de ser com-preendido. O indivíduo, algumas vêzes, mostra-se cons-cientemente racional em suas atitudes e opiniões; outras,age impulsionado por sentimentos. Seu comportamento,por via de regra, deveria ser produto de fatôres tanto ra-cionais, como emocionais, em razoável equilíbrio. Infeliz-mente, a atuação da propaganda tem levado as pessoas a

CÂNDIDO TEOBALDO DE SOUZA ANDRADE - Professor de RelaçõesPúblicas do Departamento Estadual de Administração (DEA) e do Institutod. Organização Racional do Trabalho (lDORT).

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agirem em virtude de considerações emotivas, deixando arazão e a reflexão como mero beckground de suas ações.

A hegemonia do público frente à massa está na dependên-cia do número, cada vez maior, de pessoas capazes de for-mar opinião racionalmente esclarecida. A massa, caracte-rizada pelo comportamento emocional, fàcilmente manipu-lável pela propaganda, forma apenas um sentimento co-letivo, não a opinião pública. Esta é apanágio do público,que se forma através do debate racional dos problemas.Ê preciso, portanto, não fugir às controvérsias, criandosempre interêsses e possibilidades, a fim de que as ques-tões levantadas sejam discutidas amplamente, pois só as-sim haverá condições para o aparecimento do público e.conseqüentemente, da opinião pública.

Neste artigo pretendemos examinar o problema da possi-bilidade da opinião pública como produto de debate racio-nal. Será essa opinião pública um mito ou uma realidade?Como se conceitua a opinião pública? Como se forma?Quais as limitações de sua racionalidade? Discutiremosêsses problemas em face da grande importância da opiniãopública, não só para os homens públicos, mas, também,para os homens de emprêsa. Os públicos são o objetodas relações pblicas, cuja importância é tão grande paraas emprêsas. Cabe às relações públicas a tarefa de infor-mar os públicos, levantando as controvérsias, facilitandoa discussão, permitindo a formação de uma verdadeiraopinião pública. 1 Ora, a realização dessa tarefa só serápossível na medida em que o homem de emprêsas tenhauma idéia precisa do que seja a opinião pública.

PRIMEIRAS DISCUSSÕES SÔBRE OPINIÃO PÚBLICA

A origem da expressão "opinião pública" encontra-se, apa-rentemente, na Antigüidade. Os gregos e os romanos em-pregavam palavras semelhantes, falando êstes últimos emconsensus populi, numa acepção exclusivamente jurídica.

1) Cf. CÂNDIDO TEOBALDO DE SOUZA ANDRADE, Para Entender RelaçõesPúblicas, Editora Luzir, São Paulo, 1962.

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Na realidade, o têrmo "opinião pública", no seu sentidoatual, não estêve presente na Antigüidade. O mesmoaconteceu na Idade Média, ainda que nesse período fôssecomum o ditado vox populi vox Dei, criado por AlbinoFlaco, abade de Tours, numa carta ao imperador CarlosMagno. Em sua obra Discursos, Nicolau Maquiavel tam-bém repetiu o mesmo anexim, quando disseque se podiacomparar a voz do povo à voz de Deus. No início do sé-culo XVIII o poeta inglês Alexandre Pope escreveu: "Éestranha a voz do povo: ela é e não é a voz de Deus" .

O têrmo "opinião pública", com o significado de partici-pação popular nas coisas de interêsse público, apareceurealmente com Jean Jaques Rousseau, na metade do sé-culo XVIII, quando o autor de O Contrato Social escreveuque a vontade do povo é a única origem da soberania e dasleis. Em igual direção e na mesma época, dizia DavidHume, em seu célebre Ensaio sôbte o Entendimento Hu-mano, que a soberania da opinião pública, longe de seruma aspiração utópica, é o que pesa e pesará sempre, emtôdas as horas, nas sociedades humanas.

Com a crescente penetração da filosofia democrática, noséculo XIX, a expressão "opinião pública" começou a ga-nhar em significado, desde a idéia romântica de NapoleãoBonaparte de que "a opinião pública é uma potência invi-sível",2 até aquêles que discordavam da possibilidade dealguns milhares de pessoas alcançarem um consensus, for-mando opinião pública sôbre assuntos diversos de real im-portância.

Nas primeiras décadas do século atual alguns pressupostosacêrca da teoria da opinião pública eram aceitos e defen-didos por destacados valôres da intelectualidade, não sóeuropéia, mas, também, americana. Assim, acreditava-seque o povo se interessava pelas diretrizes políticas, erabem informado, era capaz de deliberar e de chegar a con-clusões lógicas, racionais, e que sempre tinha possibilidadede tornar conhecida sua decisão e de impor sua vontade

2) CÉGOs, Pratique de Relation Publiques, Paris, 1953, pág. 205.

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na elaboração das leis. Surge nesse período a famosa obrade José Ortega y Gasset, Rebelião das Massas. Escreviao filósofo social espanhol: "O mando é o exercício normalda autoridade, o qual se baseia sempre na opinião pública- sempre, hoje como há dez mil anos, entre os inglêsescomo entre os botocudos". 3 Na mesma trilha achava-se ogrande presidente norte-americano Woodrow Wilson quan-do disse que "a opinião pública governa o mundo" . 4

Em situação contrária àquelas idéias, o jornalista ianqueWalter Lippmann lançava o seu livro The Pbentom Public,fazendo severa crítica às teorias de uma opinião públicaesclarecida e global, dizendo que aquêles pressupostos deracionalidade e de soberania popular eram admitidos porcientistas sociais que partiam da conjetura de que "tôdaa humanidade está ao alcance das palavras; ouvindo-as,responderá homogêneamente, pois que tem uma sóalma. ( ... ) O apêlo à intuição cosmopolita, universal edesinteressada, existente em todos, equivale a um apêlo aninguém" . 5 Mais tarde, em uma conferência realizada emChicago, em novembro de 1955, Lippmann modificava,parcialmente, o seu pensamento, aceitando a presunção deque, numa sociedade livre, todos os seus membros deba-tem os problemas de modo sincero e racional.

A OPINIÃO PÚBLICA COMO DISCUSSÃo RACIONAL

O conceito de que a opinião pública faz supor a discussãoracional de controvérsias de interêsse geral, implicando,também, a procura do entendimento entre os membros dasociedade, parece estar, em nossos dias, universalmenteaceito. Enquanto Gabriel Tarde não chega a consideraro debate público como fautor de opinião pública, o seumais destacado seguidor nos Estados Unidos da América,

3) J<>sÉ ORTEGA y GASSET, La Rebelión de las Masas, Revista de Occi-dente, Madri, 1956,. pág. 189.

4) PEDRO SABIN, Mesa Redonda sôbre Relações Públicas, Revista PN,Rio- de Janeiro, 5 de maio de 1957, pág. 65.

5) WALTER LIPPMANN, The Phantom Public, Macrnillan Co., Neva Iorque,1927, págs. 168/9~

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o Professor Edward Alsworth Ross, em sua obra PsicologiaSocial, observava que a opinião pública poderia ser consi-derada como uma "discussão que atrai a atenção geral" . 'Interessante, também, notar que o pioneiro da PsicologiaSocial em terra americana estabelece uma diferença entreopinião pública e opinião preponderante; esta é a opiniãoque não admite mais discussões (casamento monogâmicono mundo ocidental, por exemplo). Tudo que é passívelde discussão, de controvérsia, é terreno propício à forma-ção de opinião pública.

"Não existe opinião pública onde não haja um acôrdo subs-tancial. Mas, não existe opinião pública onde não hajadesacôrdo. Opinião pública pressupõe discussão pública",escreveram Robert E. Park e Ernest W. Burgess, em In-troduction to the Science oi Sociology , 7 Portanto, segun-do êssesautores, é indispensável para a formação da opi-nião pública a existência de pontos de vista divergentese comuns que possam ser debatidos amplamente.

Empregando a expressão "discussão pública racional", Ja-mes T. Young, citado por W. B. Graves, em Readings inPublic Opinion, disse: "Opinião pública é o julgamento so-cial de uma comunidade consciente de si mesma, numacontrovérsia de significação geral, após a discussão públicaracional" . 8 O conceito de J. Young, portanto, coloca emdestaque a racionalidade como fator determinante da opi-nião pública.

John Dewey, em sua obra The Public and Its Probletns,anota: "Opinião pública é o julgamento formado e levadoem consideração por aquêles que constituem o público ediz respeito a negócios públicos". 9 A acepção do filósofosocial e educador ianque implica uma boa dose de racio-

6) EDWARDALSWORTHRoss, Sociel Psycolo~y,Macmillan Co., Nova Iorque,1929, pág. 346.

7) ROBERT E. PARK e ERNEST W. BURGESS, Introductioa to the Scienceof Sociologv, University of Chicago Prese, Chicago, 1921, pág. 832.

8) W. B. GRAVES, 'Readin~s iru Public Opinion, D. Appleton Co., NovaIorque, '1928, pág .. 102. .

9) JOHN DEWEY, The Public and its Problems, Holt, Nova Iorque, 1927,pág. 177.

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nalidade, desde que a criação da opinião pública está inti-mamente relacionada com a existência de um julgamentodo público. O seu conceito envolve, também, um aspectorestritivo de que a opinião pública se refira, exclusivamen-te, a negócios públicos, o que não nos parece exato. Ascontrovérsias não são unicamente políticas e não existe umsó tipo de público.

Podemos dizer que o processo da opinião pública é um pro-cesso intelectual total: começa com algum problema, se-guindo-se uma série lógica de passos até à solução da ques-tão levantada. Inicia-se o processo com uma controvérsiaque, não podendo ser solucionada pelos padrões tradicio-nais, exige a reunião de várias pessoas para discuti-la, ra-cional e amplamente, em busca de uma decisão inteligente.É evidente que outros fatôres, além da racionalidade, es-tarão presentes nas discussões públicas, mas, para quehaja opinião pública, é preciso que predominem as consi-derações de ordem racional. Freqüentemente, a discussãopúblic·a proporciona a interação dos componentes do grupoem debate, em bases antes racionais do que emocionais,porque o desacôrdo estimula a habilidade de crítica. Pre-valecem, assim, as considerações racionais, exigidas em facedos argumentos e contra-argumentos oferecidos pelos ele-mentos em discussão. Não há aí o apoio mútuo e a unani-midade que assinalam a multidão e a massa.

LIMITAÇÕES À RACIONALIDADE

Na verdade, o antigo ideal do homem inteligente e beminformado, que recorre à crítica e à reflexão para chegara conclusões racionais a respeito das controvérsias levan-tadas, não constitui uma realidade em todos os sentidos.A hereditariedade, o meio cultural, a personalidade, a im-possibilidade de obter tôdas as informações, os estereótipose tantos outros determinantes impedem a formação de umaopinião pública racional e pura. Porém, não se pode negarque a discussão pública obriga a certa racionalidade, por-quanto os argumentos e contra-argumentos expostos têm

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de ser justificados e criticados, envolvendo assim avalia-ção, reflexão e julgamento.

É importante lembrar que na discussão pública as opiniõesindividuais expostas podem ser resultantes, em grande par-te, do grau de acatamento que os membros que discutemtenham pelos orientadores do debate. Os indivíduos, mui-tas vêzes, concordam para evitar conflitos de idéias, sen-timentos de ansiedade e, principalmente, porque acreditamnão estar à altura dos oponentes. Portanto, não se podedizer que essas opiniões sejam, totalmente, racionais e 16-gicas, pois elas estão ligadas aos sentimentos e às emo-ções. Todavia, essa espécie de tolerância e mesmo a in-capacidade inicial de debater os argumentos e contra-argu-mentos apresentados oferecem um lado positivo: permitem,o comêço da interação social entre os integrantes da dis-cussão.

Nesse mesmo sentido opina Robert E. Park: "Sempre quealguns indivíduos estejam juntos, ainda que de modo in-formal, sem importar quão estranhos possam ser uns emrelação aos outros, nem a magnitude das distâncias sociaisque os separem, o mero fato de que permaneçam reserva-dos ante a presença dos outros estabelece, imediatamente,um vivo intercâmbio de influências: o principal efeitodêsse intercâmbio consiste em criar uma disposição deânimo, um Stimmung ... " . 10

É exato não só que tôdas as pessoas participam, direta ouindiretamente, das decisões e das manifestações de nossossemelhantes, como, também, que há verdadeira ansiedadepor essa manifestação. Essa ansiedade é uma das carac-terísticas fundamentais da natureza humana.

Deve-se recordar, outrossim, que não pode haver uma dis-cussão pública racional sem que haja, anteriormente, umentendimento, ou seja, o estabelecimento de um "universode comunicações". Somente dessa maneira será possívelchegar ao consenso.

10) ROBERT E. PARK, "Collective Beheviour", Encyclopedia oi Social Scien:ces, Nova Iorque, 1930, vol , 3, págs, 631/3_

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Donald Pierson, em seu livro Teoria e Pesquisa em Socio-logia, observa: "A 'opinião pública' forma-se pelo debatee, na realidade, é o seu 'precipitado'. É geral ao grupo; umaespécie de média das opiniões dos seus vários membros.Assim, talvez não se encontre na opinião de nenhum mem-bro do grupo, considerado sozinho. Nasce do jôgo de di-ferenças de interêsse, de motivos, de julgamentos indivi-duais, que colidem, entram em conflito e se manifestampor meio de notícias" . 11

o FAUTOR IRRACIONALIDADE

o grande perigo na formação da opinião pública reside nainfluência, cada vez mais considerável, que os grupos depressão vêm exercendo em todo o mundo. As informaçõese as notícias são dispostas hàbilmente, persuadindo, inti-midando ou coagindo as pessoas a aceitar os pontos de vis-ta ou propósitos autoritários dêsses grupos. Minorias bemorganizadas e capacitadas para divulgar sua posição (con-trôle dos veículos de comunicação, propaganda, bons argu-mentadores etc.) exercem, não raro, muito maior influên-cia sôbre o processo de formação da opinião pública do qUEseria de esperar.Sôbre a atuação dos grupos de pressão nos Estados Unidosda América assim se referiu Leda Boechat Rodrigues en:artigo publicado na Revista Brasileira de Estudos Políticos."À espantosa proliferação dos grupos de pressão nos últi.mos 30 anos correspondeu acentuada mudança em sua!táticas. De início, o lobby (cabala nos corredores do Congresso) consistia, sobretudo, na influência direta, e recorria, com freqüência, ao subôrno. Depois, grande ênfastpassou a ser dada à propaganda e à criação de atitude!públicas favoráveis às pretensões de determinados gruposDaí falarem uns e outros em old lobby e new lobby . Segundo condusão da comissão parlamentar encarregada diinvestigar o lobbying em 1950 (nos EUA), os grupos dpressão, atualmente, 'em vez de tentarem influenciar di

11) DoNALD PIERSON, Teoria e Pesquisa em Sociologia, Edições Melherarnentos, Sao Paulo, 1955, pág. 239.

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reta mente a feitura das leis, procuram criar uma aparênciade apoio público a suas pretensões'. Isso é facilitado pelaprática corrente, até nos melhores jornais, de dar à propa-ganda inspirada pelos grupos econômicos o mesmo trata-mento dispensado às notícias" . 12

Em seu livro Public Opinion, Walter Lippmann focalizaoutro aspecto da formação da opinião pública: "Os clichêsdentro das cabeças de sêres humanos, os clichês dêles pró-prios, de outros, de suas necessidades, propósitos e afinida-des são suas opiniões públicas". 13 Na verdade, o jorna-lista nova-iorquino encara uma facêta da criação da opi-nião pública que merece ser estudada. Quando as pes-soas procuram, racionalmente, emitir suas opiniões deve-selevar em conta que possuem em sua mente uma amplasérie de lembranças, idéias e principalmente imagens este-reotipadas que fazem brotar um aspecto de irracionalidadeque precisa ser levado em consideração.

O fautor irracionalidade - estereótipos, slogens, apelosemocionais - pode, às vêzes, provocar o aparecimento deum comportamento, por parte do público, muito semelhan-te ao de u'a multidão ou massa, não surgindo, na realida-de, a opinião pública, mas somente um sentimento coletivo,porquanto, segundo nosso conceito, a opinião pública seforma através da comunicação e da interação social, o quedifere bastante dêsse sentimento coletivo produzido pelasmassas, em conseqüência da comunicação apenas unila-teral.

Já Gustave Le Bon, em sua famosa obra As Opiniões e a~Crenças, considerava êsse aspecto irracional da opinião pú-blica, quando escreveu: "O meio social exerce nas nossasopiniões e na nossa maneira de proceder uma ação inten-sa . A despeito de nossa vontade, êle determina interfe-

12) LEDA BoECHAT RODRIGUES,"Grupos de Pressão e de Govêrno Represen-tativos nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França", Revista Bresi-leira de Estudos Políticos, Universidade de Minas Gerais, Belo Hoei-zonte, junho de 1961, págs, 88/9.

13) WALTER L!PPMANN, Public OpiniO:rJ,.Harcourt, Nova Iorque, 1938,pág. 29.

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rências inconscientes que sempre nos dominam" . 14 Aindano mesmo livro, o psicólogo social francês já havia afir-mado que. "os. homens, na sua imensa maioria, somentepossuem opiniões coletivas e que os mais independentesprofessam, em geral, as opiniões dos grupos sociais a quepertencem" . 15 Certo é, entretanto, que essas acepções le-variam ao conceito de massa, onde prevalecem as reaçõesemocionais às considerações racionais.

Gabriel Tarde, citado por Arthur Ramos, em Introdução àPsicologia Social, também entendia a opinião pública como"um grupo momentâneo e mais ou menos lógico de julga-mentos que, respondendo a problemas propostos, em dadomomento, se acham reproduzidos, em numerosos exempla-res, em pessoas do mesmo país, do mesmo tempo, da mes-ma sociedade" .16 Êsse julgamento individual, reproduzidoem diversas pessoas, as quais, apresentando pontos de vis-ta semelhantes, não se interessam pela discussão públicados assuntos, constitui característica típica da massa. Nãose pode, pois, falar em opinião pública.Todos êsses fautores, complexos e profundos, que dificul-tam a criação da opinião pública, precisam ser estudados.Os integrantes do público 'estão na dependência das fontesde informação e de interpretação, uma vez que não podemcobrir, pessoalmente, tôdas as áreas. Ademais, a propa-ganda, através dos veículos de comunicação em massa,pode conduzi-los a um comportamento similar ao da mul-tidão ou massa. Também não se deve olvidar que na atualsociedade de massas está presente o sentido de inse-gurança e isolamento de seus componentes, o que facilitaa tarefa dos grupos de pressão, fazendo assim desaparecer,em grande parte, a possibilidade do debate racional e am-plo . É importante lembrar, igualmente, que muitas vêzesocorre que algumas pessoas não têm interêsse naquilo queoutras consideram controvérsias públicas de grande valor.

14) GUSTAVE LE BoN, As Opiniões e as Crenças, Cia. Brasil Editôra, SãoPaulo, 1955, pág. 123.

15) Idem, pág. 121.16) ARTHUR RAMOS, Introdução à Psicologia Social, CIl$II do Estudante

de Brasil, Rio de Janeiro. 1952, pág. 199.

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Na presente sociedade de massas o escopo da opinião pú-blica tem mudado. Na sociedade primária os cidadãos es-tavam mais preocupados com os problemas locais e as con-trovérsias giravam, principalmente, em tôrno de questõesde moral. Hoje, na sociedade de massas, os problemas têmdimensões amplas, envolvendo controvérsias de caráter re-gional e internacional, não se restringindo, apenas, às co-munidades locais ou a interêsses peculiares.

FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA OPINIÃO PúBLICA

A formação e o desenvolvimento da opinião pública com-preendem várias fases. Na primeira etapa há, freqüente-mente, um mal-estar em conseqüência do número, da no-vidade e da complexidade. dos problemas que se levantamnas comunidades por fôrça do crescimento rápido do mun-do em nossos dias. Por sua vez, a impossibilidade de re-solver essas situações através dos padrões e normas cultu-rais exige que as pessoas interessadas passem a agir aban-donando as tradições e a herança social que demonstra-ram ser incompatíveis com as soluções necessárias. Pro-voca-se, assim, o aparecimento da segunda fase, ou seja, ada controvérsia, em busca de resultados objetivos e ime-diatos. Num terceiro passo procura-se delimitar a con-trovérsia levantada, assinalando-se, então, o início da dis-cussão pública. Nesse estágio o debate se generaliza, pro-vocando, às vêzes, um descontentamento maior do que osurgido na primeira fase. Não raro o problema é colo-cado de maneira dramática, onde se misturam razão e emo-ção, mito e realidade. Porém, pouco a pouco, os argumen-tos racionais começam a 'preponderar e a demarcar linhasnítidas em tôrno da questão controvertida, aparecendo, en-tão, já na última etapa, um cotisensus, que não é a opi-nião da maioria ou da minoria, mas a opinião mescladade tôdas as opiniões individuais ou grupais presentes nadiscussão pública.

O importante é que a controvérsia seja apresentada, im-parcial e claramente, de modo a permitir sua discussão, da

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maneira mais ampla e racional. Ela não deve ser coloca-da em debate público já estando dirigida para determina-do resultado ou solução, como se a discussão pública tivesseapenas o mérito de ratificar alguma coisa preestabelecida.

O público, geralmente, compõe-se, de um lado, por gruposde interêsse e, de outro, por espectadores desinteressadose desunidos. A controvérsia, que cria o público, é comu-mente colocada pelos grupos de interêsse que, além deestabelecerem as controvérsias, procuram amoldá-las a seusinterêsses egoísticos. Esforçam-se, outrossim, para con-quistar o apoio e a aliança dos espectadores aos seus pro-pósitos, fixando as opiniões das pessoas desinteressadas.Os esforços feitos pelos grupos de interêsse, para orientare moldar a opinião pública, podem tornar-se os primeirospassos no sentido de estabelecer atitudes emocionais, atra-vés de informações incorretas ou apelos aos sentimentos.

Daí o fato de alguns psicólogos sociais acreditarem na na-tureza irracional da opinião pública. Contudo, deve-se terpresente que o próprio sistema de controvérsias e discus-sões públicas obriga a certo número de cogitações e si-logismos que seguem um processo lógico de raciocínio,muito embora possam ter por origem uma premissa não-racional; por conseguinte, a conclusão, ou antes, o preci-pitado resultante só poderá ser lógico e, portanto, racional.Não convém esquecer, além disso, que os argumentos econtra-argumentos, defendidos e justificados, implicamcrítica e reflexão.

É daro que a qualidade da opinião pública está na depen-dência da ampla discussão pública. É preciso notar, ini-cialmente, que a discussão pública pressupõe debates pre-liminares e exploratórios, visando não somente a definir,com exatidão, a controvérsia, mas também a chamar aatenção para o problema, estimulando assim o apareci-mento de considerações várias e propostas divergentes arespeito do tema em polêmica.

Quando a controvérsia estiver realmente definida e diver-sasalternativas tiverem sido apresentadas, ter-se-á atingi-

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do, efetivamente, a área da discussão pública. Será, então,quase impossível evitar que ulteriores propostas venhama ser apresentadas, muitas vêzes com o intuito único deprovocar confusão, de tumultuar o debate público e deevitar, mediante êsse ardil, que as soluções emergentespossam vir a contrariar os interêsses de grupos. Destarte,as decisões naturais e espontâneas que viessem a contarcom a referenda do público seriam confundidas, prevale-cendo as conclusões propostas pelos grupos interessados.

Kimball Young lembra, com muita precisão, que os líderese agitadores, representando grupos de pressão, podem seros primeiros a definir uma controvérsia. Êles são espe-cialmente importantes porque verbalizam e cristalizamos vagos, porém fortes, sentimentos das massas. Diz aindao autor de Handbook oi Social Psycbology que os líderese agitadores freqüentemente procuram valer-se, para ocul-tar suas nefandas intenções, dos desejos e motivos das mas-sas, e que isso constitui, na atual sociedade, uma das maisgraves ameaças à democracia. 17

LEIS DE CANTRIL

Segundo o Professor Hadely Cantril, da Universidade dePrinceton, EUA, em seu livro Gauging Public Opinion,"as duas leis principais que regem a opinião pública são:1.8) a opinião pública é muito sensível aos acontecimen-tos importantes; 2.a) em geral, a opinião pública não pre-cede as emergências: apenas reage a elas.

Consoante a primeira lei do professor Cantril, a sensibili-dade da opinião pública diante dos eventos de importânciaé uma realidade. Talvez, fôssemais exato dizer que opúblico - não, propriamente, a opinião pública - sejasuscetível aos acontecimentos. Não nos esqueçamos deque a opinião pública é produto da discussão dos compo-

17) KIMBAL YOUNG, Handbook oi Social Psychology, Routleâge and Ke-ban Poul Ltd., Londres, 1957.

18) HADLEY CANTRIL, Gauging Public Opinion, Princeton University Press,Nova Jersey, 1947. '

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nentes do público. De qualquer forma, os fatos de grandevalor influenciam a formação do público e da opinião pú-blica. Ademais, as controvérsias surgidas resultam sem-pre de situações crític-as determinadas por eventos pode-rosos.Outro aspecto deve ser considerado em relação à primeiralei de Cantril. É que os acontecimentos, por si sós, nãoprovocam, nem tampouco influenciam, o aparecimento daopinião pública. Como escreveu Kimball Young, os fatosimpressionam a opinião pública, não meramente por suaocorrência, porém pelo modo de como são interpretados.Na verdade, êsse ponto de vista é importante, visto queinterpretar quer dizer traduzir e representar. Entram, as-sim, vários fatôres subjetivos e emocionais que podem in-duzir as atitudes e opiniões do público em face dos even-tos. Essas características irracionais que entram na inter-pretação dos acontecimentos, contudo, não oferecem gran-de gravidade, pois que a sugestão presente no público nãopossui aquela fôrça que conhecemos na multidão e namassa. Sem embargo, êsse fator precisa ser observado.Quanto à segunda lei de Cantril, não se pode negar que aopinião pública é conseqüência das emergências. Quandoum problema se levanta e os métodos tradicionais, bemcomo as soluções de rotina, não conseguem encontrar de-cisões adequadas e oportunas, cria-se a discussão públicaem tôrno da questão controvertida e, finalmente, resultan-te das reações do público em frente das emergências, surgea opinião pública.

LIVRE DIÁLOGO

Em resumo, quando uma atividade, que envolve interêse,é produto de duas ou mais atividades individuais, sua rea-lização está na dependência da comunicação, do debate edo acôrdo comum. Para tanto é preciso:• que o promotor dessa atividade se comunique com to-

dos os que tenham interêsse ou possam vir a ser alcan-çados por ela, proporcionando, assim, oportunidade

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para que os interessados formem juízos de suas neces-sidades, vantagens e fins;

que as pessoas interessadas deliberem em comum, ex-pondo suas opiniões, fazendo valer suas razões, apre-sentando objeções, procurando, enfim, fazer prevalecersua convicção pessoal ou, ao revés, aceitando a opiniãoalheia;

que haja acôrdo onde a opinião comum ou a delibera-ção coletiva seja o resultado da ampla e livre discussão,representando, dêsse modo, o universo de todos os in-terêsses e opiniões levantados durante o debate.

Em igual direção A Lawrence Lowell, em seu livro PublicOpinion and Popular Government anotou: "A fim de quea opinião possa ser pública não é suficiente u'a maioria enão é exigida a unanimidade, mas ela precisa ser tal que,embora a minoria dela não participe, seus integrantes sesintam obrigados, não pelo mêdo, mas pela convicção, aaceitá-la; e, se a democracia é completa, o acatamento daminoria deve ser dado de boa-vontade" . 19

CONCLUSÕES

o público age através da formação de uma opinião públi-ca . Esta não é uma opinião unânime, nem, tampouco, aopinião da maioria. É uma opinião composta; consiste natendência que resulta do embate de muitas opiniões diver-gentes, que se influenciam e se modificam mutuamente.A opinião pública está em contínuo processo de formação;raramente é possível chegar ao consenso completo. A opi-nião pública aproxima-se de uma síntese, sem jamais al-cançá-la totalmente. Nem todos os membros do públicocontribuem para essa síntese de forma eqüitativa; a opi-nião pública é reflexo do grau, da eficiência, da organizaçãoe da verbalização dos grupos ou indivíduos que partici-pam do debate.

19) A. LAWRENCE LoWELL, Public Opinion and Popular Gaverrunent,Longmans, Green, Nova Icrque, 1953, pág. 15.

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122 MITO E REALIDADE DA OPINIÃO PÚBLICA R.A.E./ll

A sociedade só poderá viver em relativa harmonia se exis-tirem entre seus elementos, principalmente entre os gruposantagônicos, as mais amplas comunicações e os mais livresdebates em busca de opiniões ou decisões coletivas. So-mente sob essas condições poderá a opinião pública serrealmente formada, assegurando a paz e o progresso dospovos.

É certo que, atualmente, existe grande interêsse por partedos que lideram - no poder público ou nos grandes gru-pos econômicos - de criar autênticas massas, passíveis deserem dirigidas através de propaganda constante e auda-ciosa. No entanto, as entidades - públicas ou privadas- tôdas voltadas para o interêsse social, devem facilitar adiscussão dos problemas e fornecer suficientes informaçõespara o debate, propiciando o aparecimento da comunidadede públicos. A massa poderá gerar a opinião pública,mas apenas como mito. Porque somente o público, emface das controvérsias, com o amplo diálogo entre seuscomponentes e à base de considerações racionais, poderádar origem à opinião pública real.