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cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014 Mitos e mitopoiese 1 autor: PETER GOW University of St. Andrews, Escócia tradução: HENRIQUE POUGY Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil revisão técnica: RENATO SZTUTMAN Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil 187 DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p187-210 Neste capítulo, discuto a mitologia Piro em linhas gerais, a fim de mostrar como aque- le evento específico no qual Artemio contou- -me o mito do “Homem que foi para baixo da Terra” encaixa-se no quadro geral de como os Piro narram mitos e por que o fazem. Mostro como esses estão conectados com gwashata, o “bem-viver”, e em particular com a relação entre avós e netos corresidentes. Em seguida, mostro que os Piro contam e escutam mitos porque são interessantes. Se o Capítulo 2 foi um exemplo da análise estrutural lévi-straus- siana, aqui pretendo explorar a etnografia das narrativas míticas tal como as experien- ciei durante meu trabalho de campo. É por- tanto neste capítulo que realmente inicio o trabalho, delineado na Introdução, de tentar unir as tradições intelectuais de Malinowski e Lévi-Strauss. Ao comentar a obra de Gregory Schrempp, Sahlins nota que “grandes questões cosmoló- gicas podem ser encontradas até em pequenos contos folclóricos”, e que é isso que Lévi- Strauss está fazendo (veja SCHREMPP, 1992, p. ix). Também os Piro devem encontrar gran- des questões cosmológicas em seus mitos, mas como isso se conecta as suas motivações para ouvi-los e contá-los? Evidentemente, trata-se aqui de uma questão malinowskiana, que re- cebeu surpreendentemente pouca atenção na literatura sobre os povos indígenas amazônicos, concentrada em grande parte no significado dos mitos ou em sua conexão com rituais. Houve exceções notáveis, principalmente provenien- tes da tradição norte-americana de análise do discurso, tais como Basso (1985; 1987), Urban (1991; 1996a), Hill (1993) e Graham (1995). Contudo, por mais impressionantes que sejam esses estudos, todos veem a narração mítica como um exemplo da constituição da cultura por meio da linguagem, ao invés de uma forma distinta de ação social conectada de formas es- pecificáveis a outros modos de ação social, que é o que me interessa aqui. 2 Eu mesmo só come- cei a abordar essa questão quando desenvolvi a análise sobre o porquê de Sebastián ter contado seu mito a Matteson e motivo de Artemio ter me contado sua versão. Uma vez satisfeito com esse argumento, conforme detalhado no capí- tulo anterior, uma questão ainda maior surgiu no horizonte: por que as pessoas Piro contam mitos umas às outras e por que os escutam? Conforme discuti no Capítulo 2, uma das características mais intrigantes das versões do mito sobre as queixadas é sua variabilidade, especialmente as diferenças notáveis entre as duas versões de Sebastián. Variações como estas são justamente as que foram de grande utilida- de ao trabalho de Lévi-Strauss. Neste capítulo, exploro a narração de mitos no mundo vivido piro, de forma a mostrar como estas variações vêm a existir. Argumento que a variação é uma

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cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014

Mitos e mitopoiese1

autor: Peter GowUniversity of St. Andrews, Escócia

tradução: Henrique PouGyUniversidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

revisão técnica: renato SztutmanUniversidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

187

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p187-210

Neste capítulo, discuto a mitologia Piro em linhas gerais, a fim de mostrar como aque-le evento específico no qual Artemio contou--me o mito do “Homem que foi para baixo da Terra” encaixa-se no quadro geral de como os Piro narram mitos e por que o fazem. Mostro como esses estão conectados com gwashata, o “bem-viver”, e em particular com a relação entre avós e netos corresidentes. Em seguida, mostro que os Piro contam e escutam mitos porque são interessantes. Se o Capítulo 2 foi um exemplo da análise estrutural lévi-straus-siana, aqui pretendo explorar a etnografia das narrativas míticas tal como as experien-ciei durante meu trabalho de campo. É por-tanto neste capítulo que realmente inicio o trabalho, delineado na Introdução, de tentar unir as tradições intelectuais de Malinowski e Lévi-Strauss.

Ao comentar a obra de Gregory Schrempp, Sahlins nota que “grandes questões cosmoló-gicas podem ser encontradas até em pequenos contos folclóricos”, e que é isso que Lévi-Strauss está fazendo (veja SCHREMPP, 1992, p. ix). Também os Piro devem encontrar gran-des questões cosmológicas em seus mitos, mas como isso se conecta as suas motivações para ouvi-los e contá-los? Evidentemente, trata-se aqui de uma questão malinowskiana, que re-cebeu surpreendentemente pouca atenção na

literatura sobre os povos indígenas amazônicos, concentrada em grande parte no significado dos mitos ou em sua conexão com rituais. Houve exceções notáveis, principalmente provenien-tes da tradição norte-americana de análise do discurso, tais como Basso (1985; 1987), Urban (1991; 1996a), Hill (1993) e Graham (1995). Contudo, por mais impressionantes que sejam esses estudos, todos veem a narração mítica como um exemplo da constituição da cultura por meio da linguagem, ao invés de uma forma distinta de ação social conectada de formas es-pecificáveis a outros modos de ação social, que é o que me interessa aqui.2 Eu mesmo só come-cei a abordar essa questão quando desenvolvi a análise sobre o porquê de Sebastián ter contado seu mito a Matteson e motivo de Artemio ter me contado sua versão. Uma vez satisfeito com esse argumento, conforme detalhado no capí-tulo anterior, uma questão ainda maior surgiu no horizonte: por que as pessoas Piro contam mitos umas às outras e por que os escutam?

Conforme discuti no Capítulo 2, uma das características mais intrigantes das versões do mito sobre as queixadas é sua variabilidade, especialmente as diferenças notáveis entre as duas versões de Sebastián. Variações como estas são justamente as que foram de grande utilida-de ao trabalho de Lévi-Strauss. Neste capítulo, exploro a narração de mitos no mundo vivido piro, de forma a mostrar como estas variações vêm a existir. Argumento que a variação é uma

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característica geral das narrativas míticas piro, ocorrendo até mesmo ao longo da vida do nar-rador, mas que certas formas dessas variações estão ligadas a mudanças específicas no mundo vivido piro.

Histórias dos antigos3

Para os Piro, a narração mítica é uma ativi-dade dotada de características próprias. Mitos são tsrunnini ginkakle, “histórias dos antigos”, geralmente contados pelas pessoas mais velhas às mais novas, em momentos de descanso na intimidade dos arredores da casa. Conforme minha experiência, são mais frequentemente contados em noites calmas, depois de as pes-soas comerem e antes de se sentirem tomadas pelo sono. Como me foi dito, os avós costu-mam contar essas histórias aos seus netos. Para os Piro, esse cenário específico para a narra-ção de “histórias dos antigos” tem um sentido pragmático evidente: mitos são contados por pessoas que os conhecem bem a pessoas que não os conhecem, nos momentos em que não há muito mais o que se fazer4.

Essas histórias são contadas pelos mais ve-lhos a seus netos porque são interessantes. Nunca me foi dito que é preciso que elas sejam narradas às crianças, e contá-las não é giykota, “aconselhar” (em espanhol do Ucayali, aconse-jar), isto é, a explicação discursiva de valores morais manifestamente direcionada a crianças e jovens adultos. Até onde sei, o que motiva a narração é simplesmente o fato de que as histó-rias são interessantes: quem conta tem vontade de fazê-lo, e quem escuta quer ouvir. Muitas vezes, o estímulo vem das próprias crianças: aos 12 anos, o filho de Artemio, Denis, disse--me que visitava sua avó amiúde “para ver o que ela vai me contar”. Além disso, o interes-se do ouvinte é crucial à fluidez da narrativa. Assim como argumentou Basso (1985) sobre

os Kalapalo do Brasil Central, os narradores piro também precisam que um ouvinte respon-da constantemente com interjeições tais como “¡Gaa!”, “Ah!” ou “¿Gowa?”, “É mesmo?”, ou seus equivalentes em outras línguas faladas localmente.

Há muitas “histórias dos antigos”. Enquanto alguns piro afirmam conhecer várias delas, ou considera-se que conheçam muitas, ninguém jamais alegou-me conhecer todas. Algumas são amplamente conhecidas e con-tadas com frequência, ao passo que outras são apenas por alguns. Não parece haver qualquer noção de um cânone, ou ainda de limites preci-sos para o que é considerado uma “história dos antigos”. O critério de definição é que aquele que conta uma dessas afirma tê-la ouvido an-teriormente como uma “história dos antigos”.

Há, entretanto, uma percepção bem defini-da de que são histórias piro, e que a fonte de um contador sempre foi uma pessoa piro. Apesar da extensão e profundidade temporal dos casa-mentos entre os Piro e outros grupos étnicos, especialmente os Campa, Machiguenga e moza gente,5 e do multilinguismo corrente na área, somente meus informantes piro contaram-me “histórias dos antigos Piro”. Já meus informan-tes Campa nunca me narraram mitos, embora respondessem de bom grado a questões sobre mitos Campa que eu havia lido na literatura.6 Os únicos mitos não-piro que ouvi vieram de dois homens caracterizados como “brancos”: um deles contou mitos de sua região natal, Juanjuí no rio Huallaga, ao norte da Amazônia Peruana, enquanto o outro contou histórias que aprendera com pessoas machiguenga. Em ambos os casos, as origens dos mitos foram cui-dadosamente especificadas.

Tsunnini ginkakles, as “histórias dos an-tigos”, são aquelas que foram contadas pelos tsrunni, os “antigos”. Esse termo, que literal-mente significa “os velhos que agora estão

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infelizmente mortos”, refere-se às gerações an-cestrais de gente piro que, devido à passagem do tempo, atualmente escapam à memória dos vivos. Assim como os Piro contemporâneos, eles foram yine, “humanos, gente piro”, mas eram muito diferentes da “gente de hoje em dia”. Viviam nas florestas, usavam utensílios de pedra, teciam suas próprias túnicas e saias de algodão, e falavam outro tipo de língua piro. Ainda que todos os tsrunni falassem a mesma língua, viviam em grupos geograficamente isolados (em piro, neru), recusando de manei-ra ciumenta a se casar entre si e em conflitos constantes uns com os outros. E contavam es-sas histórias.

Como me disseram nos anos 1980, o mun-do dos tsrunni chegou ao fim quando foram escravizados pelos patrões nos tempos da borracha, devido ao seu intenso desejo pelas “coisas boas” (gejnu) destes brancos. Uma vez escravizados, casaram-se com outros grupos piro, além de Campa, Machiguenga, moza gen-te e outros povos. Nos anos 1980, a memória desse período encontrava-se à beira do esque-cimento, pois pertencia ao mundo dos genito-res mortos dos mais velhos ainda vivos. Como discuti longamente alhures (GOW, 1991), foi por meio desses eventos de escravização e in-tercasamentos que a vida dos Piro contempo-râneos originou-se nas novas aldeias que então passaram a habitar, e foi a partir dessa época que traçaram os laços de parentesco que os co-nectaram e os conectam ainda hoje. Antes des-se período imperava o mundo dos tsurunni, os “antigos” anônimos.

No mundo contemporâneo, dado que to-das as posses são destruídas após a morte, não restam monumentos ou objetos dos “antigos”. Até mesmo aqueles vestígios mais evidentes, tais como a cerâmica, ou os machados de pedra encontrados nas roças, são ambivalentes: meus informantes eram mais propensos a associá-los

a demônios da floresta ou Incas do que aos Piro de outrora.7 Tudo o que resta dos “antigos” é aquilo que os Piro vivos de hoje sabem sobre eles.8 Esse conhecimento toma três formas principais. Em primeiro lugar, há a “língua dos antigos”, que só é ouvida no Baixo Urubamba em canções xamânicas,9 assim como nas vozes de visitantes ocasionais vindos das comunida-des falantes de Piro nos rios Manú e Yaco, res-pectivamente a sudeste e a leste. Especialmente do povo Yaco, diz-se que “eles falam a língua dos antigos, eles falam sapna em lugar de pa-ranta (bananeira) e gaxa ao invés de wixa (nós, nosso), assim como os antigos”.10 No entanto, o fato de que essas pessoas falem a “língua dos antigos” não significa que sejam “mais Piro” do que os Piro do Urubamba. Pelo contrário, conforme também me disseram sobre os povos Manú e Yaco, “não são Piro de verdade como nós, eles são outra gente. Eles falam diferente”.

A segunda forma de conhecimento sobre os “antigos” é a narração de tsurunni pirana, his-tórias “sobre11 os antigos”. Trata-se de histórias sobre os costumes dos “antigos” aprendidas com os parentes mais velhos. Usualmente têm a forma de observações feitas na vida cotidiana, tais como “Os antigos fariam assim, mas nós não fazemos mais isso, fazemos diferente ago-ra” (ver GOW, 1991, p. 63-4; MATTESON, 1965, p. 138-55 para exemplos). Os persona-gens dessas histórias não são nomeados, e elas tendem a ter uma estrutura narrativa menos elaborada. São descrições de formas genéricas de comportamento.

A terceira forma de conhecimento sobre os “antigos” consiste nas “histórias dos antigos”, isto é, aquelas histórias que se afirma terem sido contadas pelos antigos. Assim como as versões do mito que venho discutindo nos capítulos anteriores, estas histórias são fortemente narra-tivas e geralmente têm seus personagens nome-ados. Diferentemente daquilo que se passa com

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as “histórias sobre os antigos”, os mundos nelas descritos são muito mais radicalmente outros em relação ao mundo de hoje. Ao passo que o mundo em que os antigos viviam era similar a esse, no qual as pessoas apenas agiam de forma diferente, aqueles descritos nas histórias dos antigos caracterizam-se por sua maior alterida-de. Nesses mundos, humanos tanto se casavam com animais quanto se transformavam neles, viajavam ao submundo e ao céu, e coisas afins.

Maneiras piro de narrar

Como descrevi acima e discuti longamen-te em outros lugares (GOW, 1990a; 1991), os Piro dão imenso valor à experiência pessoal direta. Nshinikanchi, “memória, amor, respei-to”, um aspecto central da concepção de pessoa Piro, é gerado por meio da experiência direta dos atos de amor e da lembrança dos outros durante a vida cotidiana, enquanto que gwa-shata, um valor-chave no mundo vivido piro, depende da experiência pessoal de bem-estar e tranquilidade no dia a dia de uma boa aldeia. Essa mesma centralidade da experiência dire-ta é encontrada nas maneiras piro de narrar e conversar, nas quais é colocada grande ênfase no fato de o falante ter ou não experienciado pessoalmente aquilo que descreve.

Na língua Piro, qualquer descrição que não seja reivindicada como uma experiência direta ou opinião pessoal deve obrigatoriamente car-regar o segmento “citacional” – gima. Assim, quando uma pessoa diz “Giyagni rapokatka”, “então ele veio”, o falante está alegando ter experiência pessoal direta desse ato. Se este não for o caso, se, por exemplo, o falante está simplesmente reportando o que outra pessoa viu, ele ou ela deverá então dizer “Giyagimni rapokatka”, ou variantes dessa frase que signi-fica “dizem que então ele veio”. O segmento citacional não especifica – tampouco necessita

especificar – quem contou ao falante sobre o evento: o foco está no falante ter ou não expe-rienciado o evento pessoalmente. Essa mesma regra faz-se presente no espanhol do Ucayali: dice, “dizem que”, é seu equivalente. Quando o falante deseja enfatizar que sua afirmação foi realmente proferida por uma pessoa deter-minada, o verbo china, “dizer, pronunciar”, é empregado. No espanhol do Ucayali, o equiva-lente é o verbo contar.

As narrativas de experiências pessoais dire-tas são as histórias com mais elevado grau de certeza. Nelas, o narrador é a testemunha viva dos eventos descritos, cujas decorrências mais amplas podem ser conhecidas pelos ouvintes por sua própria experiência.12 Em contraste, de todas as narrativas os mitos são as menos confiáveis, pois (por definição) ninguém teste-munhou os eventos nelas narrados. São ainda mais incertos do que os rumores sobre eventos distantes, visto que esses ao menos emanam de alguma testemunha viva, ainda que desconhe-cida. Frequentemente, os narradores terminam uma narrativa mítica questionando retorica-mente sua veracidade, dizendo coisas como “É isso que contavam os antigos. Talvez seja men-tira. Eu não sei, mas é isso que eles contavam”. De minha parte, nunca ouvi um Piro alegar enquanto narrava um mito – como muitas ve-zes se declara sobre as narrativas de experiências pessoais diretas – “¡Galikakni!”, “isto é verda-de!” (no espanhol do Ucayali, “¡Verdad es!”). O caráter dúbio dos mitos reside justamente nessa cuidadosa recusa em se reivindicar qual-quer testemunha dos eventos narrados, seja ela uma pessoa conhecida, seja mesmo alguém que possa vir a sê-lo.

É tentador ver nesta falta de convicção sobre os mitos um produto da história recente desse povo. Talvez ela seja o resultado da pressão ide-ológica intensa feita pelos missionários católi-cos e protestantes e pelo Estado peruano, além

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de mais de um século de contato próximo com os patrões brancos. Com efeito, essa era minha própria concepção sobre o fenômeno, tal como testemunha minha reação à pergunta, feita por Artemio na noite de 15 de janeiro de 1982, em relação à história de sua mãe sobre a lua, quan-do ele me disse: “Mas se os homens já foram para lá, e viram que é só pedra, o que pensar daquela crença? Será que é só uma mentira?”.

De fato, refletindo agora, percebo que esses comentários eram comuns, ocorrendo mesmo quando eu não tinha oferecido qualquer con-traevidência às alegações míticas. Além disso, provar que tais expressões de dúvida são um produto histórico recente seria impossível, dada a falta de documentação histórica sobre as convenções narrativas piro anteriores a tais influências.

Entretanto, certas evidências comparativas apontam fortemente contra uma conclusão como essa. Uma mesma hierarquia de con-fiança narrativa é encontrada entre falantes de línguas aparentadas na região do alto Xingu, no Brasil Central, os Waurá, Mehinaku e Yawalapití, cuja experiência com missionários foi reduzida, e onde os forasteiros se esforça-ram por incentivar o conhecimento mitoló-gico, ao invés de o debilitarem (IRELAND, 1988; GREGOR, 1977; VIVEIROS DE CASTRO, 1977).13 Ademais, isso tem sido tão consistentemente registrado ao longo de toda a Amazônia, nos cenários mais diversos – por exemplo, Basso (1985) para os Kalapalo, Reeve (1988) para os Canelos Quichua, Roe (1988) para os Shipibo-Conibo e Vanessa Lea (co-municação pessoal) para os Kayapó –, que se pode dizer que esta é, quase certamente, uma característica sui generis do estilo narrativo da Amazônia indígena. Assim como nesses outros casos amazônicos, o modo com que os Piro ex-perienciam os mitos enquadra-se bem em um dos aspectos da forma mitológica que é central

para a análise de Lévi-Strauss. Reiterando sua posição, o autor escreve: “Por mais distante que retrocedamos, um mito é somente conhecido como algo ouvido e repetido” (1998, p. 189). Com efeito, para os Piro, um mito refere-se a um conjunto de agentes e eventos em relação aos quais nenhuma testemunha conhecida, ou sequer passível de ser conhecida, é postulada. Ele existe somente como uma história conta-da por gerações, como tsrunnini ginkakle, uma “história dos antigos”.

Há ainda outra característica da narração piro, também relacionada ao segmento cita-cional: trata-se da marcação de autoridade ou fonte da narrativa por meio do verbo ginkaka, “contar, narrar”. Nessas elaboradas narrativas de “segunda mão”14, aquele que conta invaria-velmente identifica a fonte da história, isto é, a pessoa de quem ela foi uma experiência pes-soal direta. Vejamos, por exemplo, a conclusão de uma narrativa mitológica: “Seyoka. Najirni ginkakleni. Nyokaka”, “Está terminado. Essa é a história da minha falecida avó. Eu a expus” (MATTESON, 1965, p. 215).

As fontes de tais narrativas são quase inva-riavelmente parentes15 ascendentes próximos, como os pais ou avós – o que vale tanto para as narrativas históricas quanto para as narrati-vas mitológicas.16 Na ausência de experiência pessoal direta, a marcação da fonte estabelece a veracidade provável da narrativa, e o faz por referi-la a laços de parentes próximos. Como discuti em Of Mixed Blood, estes parentes pró-ximos são constituídos como “verdadeiros”17 por meio de interações densamente vividas, e não surpreende que sejam marcados como fontes privilegiadas de histórias interessantes, ainda que inverificáveis. Já quando a fonte é marcada como um parente distante, ou até mesmo como alguém que não seja parente do narrador e tampouco dos ouvintes, há uma probabilidade muito maior de a narrativa ser

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abertamente questionada. Nesses casos, um ouvinte, referindo-se à fonte, soltará comen-tários do tipo “¡Kayloklewakleru wa wale!”, “como ele é mentiroso!”. Na medida em que os Piro não têm uma categoria para histórias fic-cionais, histórias que se apoiam na credulidade dos ouvintes são por sua vez uma importante forma de entretenimento, pois gaylota, “men-tir”, é uma arte verbal importante e altamente desenvolvida. Durante a narração de mitos, a fonte da história de um narrador nunca é ques-tionada, pois parentes ascendentes verdadeiros tendem a não ser acusados de mentir por uma questão de respeito. Aqui, a acusação é direcio-nada aos próprios antigos.

Dentre as formas narrativas Piro, o mito é aquela de caráter mais insistentemente narrati-vo. Com frequência, o narrador refere-se a três diferentes níveis narrativos na mesma história: à sua própria narração (“Agora vou contar-lhes sobre Tsla”), à narração de sua fonte (“Minha avó me contou isso...”) e às narrações dos an-tigos (“Isso é o que os antigos contavam...”). Essa referência constante ao ato de narrar tem o efeito de acentuar a distância dos eventos narrados da experiência vivida daquele que os conta, mas também foca a atenção em um tipo específico de experiência: aquele de escutar as próprias narrativas. Seria errôneo dizer que os mitos existem fora da experiência vivida, pois estão fundados justamente na experiência de escutá-los sendo contados.

Contando “histórias dos antigos”

Essa natureza insistentemente narrativa dos mitos, que enfatiza sua desconexão de toda experiência vivida a não ser aquela de tê-los escutado alguma vez de parentes ascendentes verdadeiros, pode ser explorada no contexto de quem conta e quem não conta “histórias dos antigos”. Somente certos tipos de pessoas

contam mitos e o fazem apenas em determina-dos contextos sociais. Apenas os relativamente idosos contam mitos em um sentido pleno, e os contam preferencialmente a seus parentes mais novos, especialmente seus netos.

É difícil descobrir se as pessoas realmente conhecem mitos ou não, devido à extrema relutância da maioria delas em contá-los. Grosso modo, quem tem menos de 25 anos simplesmente não conta mitos, e nega conhe-cê-los. Pessoas entre essa idade e o começo da meia-idade normalmente recusam-se a contá--los quando requisitadas, mas ocasionalmente narram segmentos curtos de narrativas míti-cas, se as circunstâncias pedirem. Já a partir da meia-idade, principalmente acima dos 45 anos, passam a narrar mitos com uma confiança cres-cente. Todos os Piro estão de acordo sobre isto: se eu perguntasse sobre mitos, eles diriam “Vá perguntar aos velhos, eles que sabem dessas coisas”.

Inicialmente, pensei estar ouvindo as notas finais de uma tradição moribunda: a mitologia piro parecia estar desaparecendo juntamente com muitos dos outros costumes dos “anti-gos”.18 Contudo – e só me dei conta disto du-rante meu trabalho de campo mais recente, em 1988 – a negação do conhecimento dos mitos por parte dos jovens não pode ser tomada como uma evidência de que eles não conhecem ou não se preocupam com os mitos e que, conse-quentemente, nunca os contarão. Trata-se, em vez disso, de uma simples recusa em narrá-los. Isso se torna claro no caso daqueles que estão se iniciando nas narrativas míticas. Por exem-plo, quando estávamos discutindo sobre uma canção que eu havia gravado em um vilarejo distante, Julia, uma mulher de trinta e poucos anos, espontaneamente narrou o seguinte mito curto para mim. A canção era Mapchiri Wgene Jeji Shikale, “Canção do filho da Anaconda”,19 e Julia explicou-a brevemente, como segue:

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Uma anaconda se casou com uma menina hu-mana. Eles tiveram um bebê. Um dia, a avó estava dormindo com o bebê em uma rede. Quando ela acordou, olhou para baixo e viu a criança com uma anaconda enrolada em cima dela. Ela empurrou o bebê no fogo e o queimou. Quando a mãe dele chegou, ela disse “Por que você queimou meu bebê?”. E a avó disse “Esse aí não é humano, é uma anaconda!”. Então veio o pai anaconda e levou seu filho, porque elas não cuidaram dele. A anaconda, por vingança, fez o rio destruir a aldeia em que essas pessoas viviam – ele destruiu a aldeia completamente. É daí que vem essa canção.

Informantes mais velhos narraram o mesmo mito como uma história longa, nomeando os personagens centrais (as mulheres Kochmaloto e outros) e continuando a história após a en-chente (veja a discussão abaixo e no capítulo 5). Julia, por sua vez, simplesmente esboçou o mito para mim, restringindo-se à parte imedia-tamente relevante.

Ainda que ausente na narração de Julia (talvez porque ela estivesse inebriada na oca-sião), a marcação da fonte é quase invariavel-mente presente em outras narrações de pessoas de meia-idade. Geralmente se conta a história enfatizando quem a contou àquele que narra e, se essa pessoa está viva, remete-se o ouvinte diretamente ao narrador original. Por exemplo, em 1982, Artemio, aos seus trinta e poucos anos, tendia a contar versões muito curtas de mitos tal como contados a ele por sua mãe, e então sugeria que eu fosse perguntar a ela. Contudo, quando estava especialmente inte-ressado, como no caso de “Um homem que foi para baixo da terra”, podia narrar “histórias dos antigos” bastante completas.20 Sua irmã caçula, Sara, aos 20 anos, negava absolutamente co-nhecer mitos, e remetia-me diretamente à sua mãe. Em contraste, o cunhado deles, Antonio,

aos seus quarenta e poucos anos, narrava mitos para mim de forma relativamente completa, nomeando os personagens e as localidades, mas ainda fazendo menção às narrações anteriores feitas por sua avó e frequentemente sugerindo que eu fosse perguntar a sua sogra, Clotilde Gordón, para obter relatos completos.

Seis anos mais tarde, em 1988, Sara esta-va mais disposta a narrar mitos na forma de segmentos curtos, embora ainda se referindo à sua mãe como uma fonte melhor. A essa al-tura Antonio já estava disposto a narrar mitos sem qualquer referência a uma fonte anterior que não fossem os próprios antigos. Suas nar-rativas já eram mais completas e coerentes, re-pletas de detalhes omitidos anteriormente, e ele não sugeria que eu procurasse outras fon-tes. Assim como Sara, Antonio também esta-va seis anos mais velho, porém havia ocorrido uma mudança ainda mais importante em sua vida, pois ele tinha se tornado um dos Piro mais velhos ainda ativos em Santa Clara. Sua sogra estava quase permanentemente doen-te, raramente fazendo algo. Além disso, em 1988, Antonio narrava para uma audiência diferente, pois naquele momento de sua vida já tinha vários netos com idade suficiente para permanecerem sentados escutando en-quanto ele falava. Da mesma maneira como sua sogra tinha sido anteriormente, Antonio tornara-se uma autoridade em mitos por ser a mais velha testemunha ainda viva e ativa de eventos de narração prévios e autorizados. Ele podia narrar as histórias integralmente porque era o único que as tinha ouvido de pessoas mortas há muito tempo, pessoas que, muitas vezes, os mais jovens não chegaram a conhecer. Estes, por sua vez, são geralmente inibidos de narrar mitos – além de se senti-rem aliviados por não terem de fazê-lo – pela presença dos mais velhos, que são tidos por conhecê-los melhor.21

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Designo aqui essa passagem para uma nar-ração de mitos de modo totalmente confiante como mitopoiese [doravante mitopoiese], isto é, a fabricação de mitos.22 Conforme as pessoas envelhecem e tornam-se as mais velhas auto-ridades vivas nos costumes dos antigos, elas se tornam mitopoiéticas: contam “histórias dos antigos” referindo-se somente a sua pró-pria autoridade e à dos antigos. E ao fazê-lo, suas narrações expandem-se em profundidade e complexidade, trazendo mais detalhes e es-tabelecendo mais conexões. Ao tornarem-se mitopoiéticas, ficam mais à vontade contando histórias e são, em suma, melhores narradoras.

Segue um exemplo. A primeira vez em que Antonio contou-me os mitos “O nascimento de Tsla” e “As mulheres Kochmaloto”, em 1982, suas versões eram muito mais curtas e menos complexas do que as de sete anos mais tarde.23 A segunda versão de Antonio de “O nascimen-to de Tsla” incluía um longo relato de Tsla e de seus irmãos, os Muchkajine, fazendo uma ca-noa, uma roça e uma casa, relato este que es-tava totalmente ausente na versão anterior (ver Capítulo 4). Nessa versão ele também avançou na narrativa, incluindo o mito “Tsla engolido por um bagre gigante”. Depois que Tsla e os Muchkajine mataram seus tios jaguares para vingar a morte de sua mãe, Antonio prosseguiu:

Então Tsla disse “O que faremos agora? Vamos trabalhar para Kamayaka”. Kamayaka era o cunhado de Tsla. Ele estava construindo uma represa no Pongo de Mainique. Kamayaka fez Tsla e os Muchkajine o ajudarem. Eles trabalha-ram o dia todo. Tsla ficou cansado de trabalhar. Fez então que um wakawa (um bagre gigante, Lat. Paulicea lutkeni)24 o engolisse. Desceu o rio na barriga do wakawa. Kamayaka tinha um papagaio, que gritou “O wakawa engoliu Tsla! O wakawa engoliu Tsla!”. Os Muchkajine segui-ram o wakawa rio abaixo, tentando agarrar Tsla.

Não conseguiam pegá-lo. Só quando chegaram ao rio Mishagua que o alcançaram. Tsla saiu do peixe. Lá vivia Kamayaka – tem uma montanha ali abaixo da foz do Misagua, agora ela já está toda erodida, mas essa era a casa de Kamayaka. Lá eles viveram. Mas o pássaro manipawro can-tou ali. Isso é um mau presságio, prevê a morte. Então Tsla e os Muchkajine partiram para mui-to longe, rio abaixo.

Em sua primeira narração, Antonio havia me contado um segmento de narrativa como introdução a “O nascimento de Tsla”, e, nes-sa ocasião, sua versão era bem diferente. Na primeira versão, é Tsla quem está construin-do a barragem no Pongo; e é Kamayaka, um dos irmãos de Tsla, quem é engolido, e quem engole, por sua vez, é outro bagre gigante, kutsalo (no espanhol do Ucayali, saltón; Lat. Brachyplatysoma filamentosum).25 Por fim, era um “passarinho” não especificado (não o mani-pawro) quem predizia a morte. A primeira ver-são de Antonio é a única que eu conheço que diz que Kamayaka foi engolido, e sua segunda versão está de acordo com a maioria das ou-tras versões ao dizer que Tsla foi engolido por uma wakawa. A maior parte das versões que conheço afirma consistentemente que eram os Incas quem estavam construindo a barragem no Pongo de Mainique, e que foi o pássaro maknawlo quem cantou ominosamente.

Como lidar com essas mudanças? Partindo de um dos insights centrais de Lévi-Strauss, de que não há versão original de um mito e que, portanto, qualquer versão é uma “boa versão”, podemos então nos livrar da ideia de que as diferenças entre as duas versões refletem uma maior ou menor fidelidade a um original que Antonio escutara há muito tempo de sua avó (a autoridade citada na primeira versão). Pois, no mínimo, não temos ideia de como era a versão desta senhora, uma vez que Antonio é nossa

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única autoridade sobre isso. Aliás, é provável que a versão original de Antonio também tenha sido múltipla, pois sua avó presumivelmente a contou tão frequentemente e mudou-a tanto quanto ele. Além do mais, em ambas as ocasi-ões nas quais me narrou essa história, Antonio claramente experienciou a si mesmo como contando a “história dos antigos” sobre “Tsla/ Kamayaka engolido por um wakawa/ katsalo”.

Parece-me que a única hipótese correta é que estamos diante de uma importante carac-terística dos mitos e da mitopoiese piro: isto é, conforme envelhecem, as pessoas contam mitos de forma cada vez mais confiante e complexa e o fazem ao transformarem espontaneamente tanto as versões que ouviram há muito tempo como também suas próprias versões anteriores. Isso sugere que o processo da mitopoiese, ocor-rido no curso da vida de uma pessoa, ainda que experienciado como uma fidelidade cada vez maior a uma fonte antiga, é, na realidade, a gê-nese contínua de novas versões de mitos. Como observou Lévi-Strauss, “o pensamento mítico opera essencialmente por meio de um processo de transformação. Mal um mito vem a ser, ele já é modificado por uma mudança de narrador...” (1981, p. 675). Lévi-Strauss refere-se às mudan-ças nos narradores conforme os mitos caminham de uma sociedade à outra. Sugiro que podemos ver aqui uma versão microscópica do mesmo processo: o mito transforma-se à medida que também o narrador se transforma com a idade. Este é o processo da mitopoiese.26 Já vimos um exemplo disso no último capítulo, com as duas versões de Sebastián do mito sobre os queixadas, e podemos vê-lo agora como uma característica generalizada da narrativa mítica piro.

Envelhecimento, mitopoiese e mitos

Houve uma grande mudança nas circuns-tâncias de vida de Antonio no período entre

1982 e 1988, além de seus seis anos a mais de vida. Em 1988, Antonio tinha vários netos morando com ele com idade suficiente para ouvir suas histórias. Tinha assim uma audi-ência composta por parentes que mantinham com ele a mesma relação que mantivera outro-ra com sua própria fonte de narrativas míticas, sua avó. Esse fato da vida doméstica – que os Piro consistentemente me relataram como sen-do a cena típica da narração de “histórias dos antigos” – tem para essas pessoas uma resso-nância específica: trata-se da extensão temporal máxima das relações de parentesco.

Vejamos como parece o mundo aos ou-vintes (as crianças piro) e aos contadores de mitos (os velhos piro). As crianças com idade suficiente para escutar mitos são aquelas que desenvolveram nishinikanchi, “mente, memó-ria, amor etc.”. Como discuti em outras oca-siões (GOW, 1991; 1996), elas o desenvolvem ao demonstrar sua consideração àqueles que as alimentaram dirigindo-se a essas pessoas por meio de termos de parentesco. Em Piro, esses termos são mama, “mamãe”, papa, “papai”, jiro, “vovó”, totu, “vovô”, shapa, “titia”, koko, “tio” e yeye, “irmão/irmã mais velho(a)”. Como os Piro afirmam, o uso desses termos pela criança é espontâneo e marca o início do nshinikanchi. Esse é o primeiro uso socialmente relevante da linguagem pela criança e permanece importan-te ao longo da vida, na forma da asserção de relações de parentesco com outros. As relações de parentesco iniciam-se quando os mais ve-lhos dão comida às crianças para satisfazer sua fome, mas só são confirmadas como tais pela criança. Para os Piro, são as crianças, e não os adultos, quem fabricam as relações de parentes-co por meio da linguagem.

Os velhos piro estão no extremo oposto desse processo. À medida que a morte leva do mundo seus parentes mais velhos, eles deixam aos poucos e inevitavelmente de usar todos os

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termos de parentesco exceto um, shte ou wiwi, “parente mais jovem”. Este mesmo termo é também a recíproca de todos os termos de pa-rentesco que a criança emprega.27 Com o tem-po, torna-se o único termo de parentesco que os velhos usam, e seu universo social torna-se um mundo indiferenciado de “parentes mais jovens”. Seus parentes mais velhos, esses de fato diferenciados, estão agora mortos e, por conse-quência, não se fala mais com eles. Os velhos tornam-se, como eles mesmos dizem, “órfãos”, sem pais ou outros parentes mais velhos e, por-tanto “sozinhos”.

Não somente eles estão sozinhos, como também perderam sua relação primária com a linguagem. Seus parentes mais velhos, já mor-tos, não podem mais ser interpelados. Eles po-dem somente ser referidos por meio de termos de parentesco, tais como najiro, “minha avó”, ou naxiru, “meu avô”, aos quais o sufixo -ni, “desafortunado, que agora está morto” deve ser afixado, resultando em najirni e naxirni. Uma vez que estão mortas, nenhuma relação social significativa com essas pessoas é possível. É justamente isso o que marca esse sufixo, e não sua não existência. Elas definitivamente exis-tem, mas agora na forma de pessoas mortas, abarrotando a floresta com sua presença malig-na. Qualquer relação com elas é assiduamente evitada.

Como discuti longamente em Of Mixed Blood, os Piro experienciam a vida como um processo contínuo de construção de aldeias, nas quais se pode “viver bem”, e de fuga das casas e aldeias antigas onde os mortos viveram, locais que são então retomados pela floresta. Mas à medida que as pessoas envelhecem, elas se tornam relutantes em se mudar para longe, dizendo que sabem “onde querem morrer”. Cansadas de viver e de perambularem por aí, elas querem morrer onde moram. Conforme o tempo passa, as aldeias piro tendem a coalescer

ao redor dessas pessoas mais velhas e intransi-gentes, para serem então radicalmente transfor-madas ou abandonadas quando elas finalmente morrem.

É nessas aldeias que as crianças crescem e começam a se dirigir aos mais velhos por termos de parentesco. Mas elas nunca usarão termos de parentesco para os parentes mortos de seus avós, pois, estando essa gente morta, as crianças não têm e não terão qualquer experiência pessoal direta deles. De seu ponto de vista, os parentes mortos de seus avós não são parentes, mas, sim, “pessoas mortas há muito tempo”,28 tsrunni. Ou seja, são os “antigos”. De fato, não há termos de parentesco ascendentes além de avós. Bisavós, caso forem conhecidos pela criança e ainda estiverem vivos, são cha-mados pelos mesmos termos de parentesco que os avós. Caso contrário, não são chamados por nada além de tsrunni. Seria tecnicamente possível dizer, por exemplo, “a avó de minha avó” (em Piro, najiro tajirni, no espanhol do Ucayali, la finada abuela de mi abuela),29 mas nunca ouvi alguém dizê-lo. Dada a importân-cia que tem a experiência pessoal vivida para os Piro, tal personagem seria, de fato, uma figura excepcionalmente abstrata.30

Avós e netos Piro defrontam-se nos pontos extremos do ciclo de vida em seu mundo vivi-do: trata-se daqueles perto do fim dos proces-sos de nshinikanchi, e daqueles em seu início. À medida que se aproximam da morte, os velhos estão “cansados de viver” e prestes a se tornar outra coisa, gente morta. Seus amados parentes mais velhos, entre os quais passaram suas vidas, já estão agora mortos e são tsrunni, “antigos”, para seus parentes mais jovens. Como Antonio uma vez me disse, planejando o futuro de Santa Clara, “Os netos de nossos netos... serão um tipo diferente de gente... Quem sabe como vão ser? Já estaremos mortos há tanto tempo, nunca os veremos...”.31

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Por que esse processo deve ser acompanha-do pela mitopoiese, uma facilidade crescente para contar “histórias dos antigos”? Penso que o indício chave para responder a essa questão en-contra-se no abandono dos marcadores de fon-te ligados a quaisquer eventos de narração que não sejam aqueles dos “antigos” eles mesmos. Do ponto de vista dos narradores mitopoiéticos, há uma grande diferença entre uma avó mor-ta e os “antigos”, que nunca foram conhecidos pessoalmente. Mas esses narradores estão con-tando suas histórias a seus netos, e sabem que, ao lembrarem de seus parentes, do ponto de vista de seus pequenos ouvintes, seus próprios avós e os “antigos” tratam-se da mesma coisa. Eles passaram a compreender o que é ser uma pessoa velha, um avô e, portanto, chegaram a uma formulação radicalmente nova do que são os “antigos”. Uma vez alcançada tal com-preensão da profundidade do tempo vivido, os velhos Piro têm um ponto de vista privilegiado para compreender as “histórias dos antigos”. Por definição, essas são as coisas mais antigas no mundo vivido piro, pois não há nada mais velho do que elas: até mesmo as coisas criadas nos mitos são necessariamente posteriores aos eventos narrados. Essas histórias descrevem eventos primordiais, muchikawpotgimni, “há muito tempo atrás, diz-se”. Assim, se os “anti-gos” jazem no limiar do horizonte temporal do parentesco, os eventos das “histórias dos anti-gos” encontram-se muito além deste.

“Histórias dos antigos” são também coi-sas que despertam o interesse direto daquelas crianças que agora estão povoando o mundo, e cujo nshinikanchi está entre as coisas mais novas neste mundo. Os avós, como as pessoas vivas mais velhas acessíveis a uma criança Piro, são as preferidas fontes de conhecimento so-bre a profundidade temporal do mundo em geral. São os avós que mais sabem sobre mu-chikawpotgimni, e seu conhecimento dessa era

está assentado em “histórias dos antigos”. Mas isso tem um significado ainda maior. A corre-sidência de avós e netos é um dos aspectos de gwashata, “bem-viver”. Como eu disse, é justa-mente na relação entre esses dois tipos de pa-rentes que a extensão temporal do parentesco é mais marcada. Dessa forma, é por meio dessa relação que os Piro tornam-se mitopoiéticos e, consequentemente, contam mitos. Os mitos, por mais que possam narrar qualquer outra coisa, definitivamente não são sobre gwashata, “bem-viver”, pois recontam os feitos estranhos e alheios dos seres de “há muito tempo”.

As “histórias dos antigos” confrontam os Piro, enquanto seus contadores e ouvintes, com mundos alternativos que lhes são ao mes-mo tempo outros e familiares. Por exemplo, “Tsla engolido por um bagre gigante” refere-se diretamente a características do mundo ime-diatamente conhecido pelos Piro, tais como a corrente do rio Urubamba e o bagre wakawa, a atividade da pesca ou ainda o chamado de pássaros agourentos. Mais remotamente, na fi-gura dos Muchkajine, esse mito refere-se aos kajine, a “gente branca”, que têm um papel crucial na vida dos Piro. Mas refere-se também a entidades e ações que seriam de outra forma desconhecidas, tais como Tsla e sua habilida-de miraculosa de ser engolido por um bagre gigante e sobreviver. Essas coisas são conheci-das pelos Piro somente por meio de narrativas míticas. O mesmo é verdadeiro para todas as “histórias dos antigos”, que têm sempre um pé firmemente assentado no mundo fenomenal imediato dos Piro, e o outro em mundos bi-zarros e exóticos, caracterizados por diferentes formas de agentes e ações.

Essa característica das narrativas míticas talvez explique o interesse tanto por parte de seus narradores idosos quanto de seus jovens ouvintes, e por extensão para qualquer um que se encontre entre eles no processo de fabricação

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do parentesco. São contadas e ouvidas em uma casa situada em uma aldeia, a porção mais ínti-ma e familiar do mundo conhecido. Contudo conectam as características concretas desse mundo a poderes outros e desconhecidos do “diz-se que há muito, muito tempo...”. Pelo fato de se referirem às características mais evi-dentes do mundo vivido imediato, as narrativas míticas dificilmente seriam de algum interesse aos Piro, tanto jovens quanto velhos. Mas ao então apresentarem essas mesmas característi-cas conhecidas e evidentes como radicalmente contingentes à presença de eventos e agentes já há muito distantes, elas geram um interesse contínuo para o povo piro, que não cansa de ouvi-las ou de contá-las. As narrativas míticas tornam-se, por assim dizer, profundamente in-teressantes para os Piro ao conectarem o que é concretamente conhecível ao que é por eles concretamente incognoscível. Assim, as narra-tivas míticas asseveram que esse passado incog-noscível só pode vir a ser conhecido por meio destas histórias: elas são as únicas testemunhas das origens do mundo em que vivem os Piro.

Narrativas míticas têm uma espécie de au-tonomia, de pura narratividade, que as permite gerar conexões entre aquilo que é conhecido e aquilo que seria, de outra forma, incognoscí-vel. E a chave para compreender isso está em sua relação com o tempo. Os mitos são sempre contados no a xani, “agora”: “Agora vou con-tar para vocês o que contavam os antigos...”. Como demonstrei, narradores e ouvintes es-tão, cada um deles, em uma relação distinta para com esse “agora”, pois este é ao mesmo tempo a velhice dos primeiros e a infância dos últimos. Essa relação diferencial com o “ago-ra” da narração, subordinada ao quadro tem-poral do ciclo de vida, permite às narrativas míticas estabelecer um segundo diferencial, aquele entre o “agora” do evento narrativo – e das diferentes relações de seus participantes

para com esse “agora” – e o muchikawpotgimni, ou o “há muito tempo, diz-se...”, tempo dos eventos dos quais fala o mito. Todas as relações estabelecidas pela narrativa mítica entre o co-nhecido e o incognoscível, sobre as quais ela versa, são assim condensadas e exemplificadas por esta relação específica, aquela entre o tem-po vivido conhecível e o tempo que jaz além da compreensão das pessoas vivas. As narrati-vas míticas geram essa forma temporal, o “há muito tempo, diz-se...”, ao mesmo tempo em que lhe fornecem um conteúdo, povoando-a e preenchendo-a com eventos. Elas prestam tes-temunho aos mesmos eventos que narram.

Outro sentido dessa característica das nar-rativas míticas pode ser alcançado pela conside-ração de dois mitos que contei às crianças piro. As crianças também me pediram que contasse histórias: “¿Qué me cuentas?”, “O que você me conta?”, elas perguntavam. Em uma ocasião, respondi ao pedido contando “Joãozinho e Maria”, a primeira história que me veio à men-te. Foi um fracasso total. Tentei redimir mi-nha reputação como um contador de histórias narrando o mito kayapó da origem do fogo, vagamente lembrado da literatura (ver LÉVI-STRAUSS, 1970; TURNER [n.d.] e 1985). Com isso, obtive muito mais sucesso. Apesar de todos meus esforços para dar a “Joãozinho e Maria” uma cor local, esse mito não fez mui-to sentido às crianças piro: elas são deixadas sozinhas, tomando conta de si mesmas, por várias horas ao longo do dia e nunca sonha-riam em responder a isso perambulando para longe dentro da floresta. A floresta é, de fato, repleta de seres malignos que vivem em belas casas, mas que atacam as crianças diretamente, por meio de feitiços, e não se valendo de com-plexos subterfúgios. O mito kayapó fez muito mais sentido para elas, apesar de suas extremas inversões do mito piro da origem do fogo e de outros mitos piro. Pois esse mito lida com

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um mundo que é ao mesmo tempo familiar e inteligível às crianças piro, um mundo repleto de araras, jaguares, fogueiras, e daí em diante. Ele relaciona o conhecido ao incognoscível por meios pouco familiares, contudo inteligíveis, e as crianças pediram para ouvi-lo várias vezes. Por contraste, minha tentativa com “Joãozinho e Maria”, uma “história dos antigos” dos grin-gos, confusamente relacionava o desconhecido ao incognoscível, e o fez de forma consideravel-mente ininteligível. Não foi interessante para meus jovens ouvintes, e eles nunca me pediram para repeti-la.

Os mitos que as pessoas contam

Por que os Piro contam mitos específicos em contextos específicos? Quais são as deixas que os fazem contar esse mito em lugar de qualquer outro? Não tenho acesso à experiência primária da narração de mitos piro, aquela entre avós e netos: sempre que estive presente, os adul-tos, por respeito, direcionavam sua narração a mim. Contudo há certos traços interessantes do modo como os mitos me foram contados que confirmam e estendem minha análise aqui. Já sugeri certos aspectos dessa questão em rela-ção à narração de Artemio de “Um homem que foi para baixo da terra”, mas pretendo explo-rar neste momento outras características dessa prática. Como disse, “Um homem que foi para baixo da terra” me foi contado somente aquela vez, por Artemio. Certos mitos eram contados a mim mais frequentemente – um deles, espe-cificamente, foi contado muitas vezes – ao pas-so que outros nunca me foram contados.

“Tsla engolido por um Bagre Gigante” foi o primeiro mito que me contaram na vida, e tam-bém o primeiro contado a mim por Antonio (a pessoa que mais me narrou mitos), ainda que desta vez ele o tenha contado como “Kamayaka engolido por um katsalo”. Esse é também o

primeiro mito na coleção de Ricardo Alvarez, Los Piro (1960), e uma de suas versões aparece na primeira coleção de mitos Piro (1951) de Matteson. A primeira vez que o escutei foi pela voz do líder piro Moisés Miqueas, em Sepahua. Estávamos sentados na casa de sua irmã, e ele me dizia, em espanhol, sobre seu trabalho como um guia de viagens fluviais, passando pelo Pongo de Mainique. Descrevia-me as bizarrices dos gringos que o contratavam. Enquanto me contava isso, sua irmã estava conversando em Piro com algumas parentes. Quando comen-tei a Moisés sobre alguma coisa que uma das mulheres disse, me olhou com surpresa e disse: “Então agora você entende nossa língua!”. Em seguida narrou a história de “Tsla engolido por um bagre gigante”. Depois de contar-me que Tsla e os Muchkajine partiram rio abaixo para um destino desconhecido, terminou a história como segue: “Depois que Tsla e os Muchkajine partiram, os patrões brancos vieram, então vie-ram os espanhóis, e então fizemos a comunidad nativa de Sepahua, e é assim que isso veio a ser como é hoje”. Esse relato é uma versão mui-to condensada das narrativas históricas piro. A extensão temporal básica dessas narrativas his-tóricas tem início, como indiquei acima, com a escravização dos “antigos” pelos patrões nos “tempos da borracha”. Esse período foi sucedi-do pelos “tempos da hacienda” (omitido no re-sumo de Moisés), que por sua vez terminaram com a chegada dos gringos. No caso específico de Sepahua, esses tempos têm fim com a chega-da dos padres ou “espanhóis”, padres dominica-nos vindos da Espanha. No período seguinte, os Piro e outros povos indígenas estabeleceram as comunidades nativas, comunidades legal-mente reconhecidas e donatárias de terra (ver GOW, 1991 para uma discussão mais ampla sobre a narração histórica piro).

O fato de Moisés ter podido ligar esta his-tória a esse mito ajuda a explicar por que ele

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me foi contado tão frequentemente: “Tsla en-golido por um Bagre Gigante” é o “mito da história” piro. Como mostrei detalhadamente em Of Mixed Blood, os Piro e outros povos in-dígenas do baixo Urubamba veem sua história como a formação de suas relações de parentes-co contemporâneas, ao decorrer do ciclo das gerações. E veem esse processo como tendo ocorrido por conta das relações transformado-ras que estabeleceram com diferentes tipos de brancos, tais como os patrões da borracha, seu antigo “chefão” Pancho Vargas, missionários dominicanos e do SIL,32 além de funcionários do estado peruano. Além disso, essa história é pensada em termos do rio Urubamba, pois é ao longo e principalmente a montante desse rio que esses diferentes tipos de gente branca chegaram.33

É disso que trata “Tsla engolido por um bagre gigante”. Esse mito versa sobre uma tentativa frustrada de represar o rio Urubamba na altura do Pongo de Mainique, o mais extremo limite a montante daquilo que os Piro reconhecem como seu mundo: como me dis-seram, os “Piro antigos” nunca viveram acima do Pongo. Depois dessas grandes corredei-ras está o alto Urubamba, território do povo Machiguenga,34 e além dele encontra-se a terra dos shishakone, os “andinos” e Gigkane, os Incas.35 Semelhantemente, Tsla e seus irmãos partem rio abaixo, para um destino não espe-cificado. Ao fazê-lo, acabam ultrapassando os limites à jusante do mundo vivido Piro, o alto Ucayali e as aldeias do povo Conibo, desapare-cendo no “exterior”, nos misteriosos mundos rio-abaixo do Brasil, Europa e Estados Unidos. A “terra da morte” da qual Tsla e seus irmãos fogem ao escutar o canto do pássaro é o mundo vivido Piro.

O que foi feito de Tsla e os Muchkajine nin-guém sabe, e nenhum Piro estava disposto a especular sobre o assunto para mim.36 Tenho

uma forte suspeita de que esperavam que eu, ou algum outro branco, talvez pudesse contar isso a eles. Sempre que me narravam esse mito ha-via alguns risos nervosos quando pela primeira vez os Muchkajine eram mencionados. Trata-se dos irmãos mais novos de Tsla, nascidos como ele do útero desmembrado de sua mãe, e atuam nos mitos como seus assistentes e a sua audi-ência. Muchkajine significa, além disso, “bran-cos de há muito tempo” (muchi- + kajine: “há muito tempo” + “brancos”), o que explica os risos nervosos quando esses personagens eram mencionados: de alguma maneira que nunca me foi explicitada, os Muchkajine são a origem mítica dos diversos tipos de gente branca, tanto históricos quanto contemporâneos. Contudo, apesar do leve desconforto causado, é por isso que versões de “Tsla engolido por um Bagre Gigante” foram tão facilmente eliciadas por mim. Pois esse mito lida muito diretamente com um problema evocado pela minha mera presença, na medida em que eu, assim como a maioria dos “brancos”, tinha vindo de “rio--abaixo/ do exterior”, isto é, o destino de Tsla e dos Muchkajine.

Parece-me claro que no momento em que, no decorrer de sua relação com um branco, os Piro chegam ao ponto de começar a introduzir conhecimentos mitológicos na conversa, “Tsla engolido por um bagre gigante” vem mais fa-cilmente à mente. Pois esse mito, ao lidar com os limites espaciais do mundo vivido dos “Piro antigos”, versa também sobre as condições pré-vias das relações dos Piro com os brancos em geral. Na medida em que qualquer relação dada entre um Piro e um branco pode ser pensada a um só tempo como o prolongamento e a pro-jeção contínua da história desse povo (no sen-tido em que ela foi definida acima), esse mito em particular é o mais “interessante” para se contar, uma vez que é o ponto mais apropriado para se começar a narrar mitos para os brancos.

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Além disso, em nenhuma das vezes em que me contaram esse mito a situação foi marcada pela mesma intensa sensação de expectativa que se fazia presente na conversa que levou Artemio a me contar “Um homem que foi para baixo da terra”, expectativa essa que sugeri ter pos-sivelmente marcado a narração de “O sol”, feita por Sebastián a Matteson. Nas vezes em que me contaram “Tsla engolido por um bagre gigante”, o tom emocional era bem diferente, pois essa história concernia àquilo que os Piro podiam, sem qualquer problema, saber em re-lação a um gringo: uma “história dos antigos” sobre o rio ao longo do qual os próprios antigos viveram, assim como os Piro vivem até hoje.

Se “Tsla engolido por um bagre gigante” tinha grandes chances de ser o primeiro mito a me ser contado, também era provável que logo depois fosse seguido de “O nascimento de Tsla” e “As mulheres Kochmaloto”. Esses eram os mitos mais frequentemente contados a mim, e sua proeminência tanto nas coleções de Alvarez e Matteson quanto nas descrições de Matteson da cultura Piro confirmam seu lugar central em sua mitologia, ao menos da perspectiva de um ouvinte estrangeiro branco (ver ALVAREZ, 1960; MATTESON 1951, 1954, 1955). Quando pedia a informantes que eu conhecia bem para me contarem “histórias dos antigos”, era com essas histórias que eles começavam mais frequentemente suas narra-ções. Tudo indica que, quando a deixa que leva à narração de um mito é o termo “história dos antigos”, são os mitos “O nascimento de Tsla” e “As mulheres Kochmaloto” que primeiro vêm à mente. Dessa maneira, eles parecem ser as instanciações chave do mito para os Piro: são “histórias dos antigos” par excellence.

“O nascimento de Tsla” e “As mulheres Kochmaloto” são mitos notavelmente seme-lhantes em muitos aspectos: ambos iniciam--se com uma mulher engravidada por um

predador poderoso e temido (jaguar ou ana-conda) e progridem narrando as desastrosas consequências destas relações de afinidade e as aventuras subsequentes de um grupo de germanos (Tsla e os Muchkajine ou as irmãs Kochmaloto). Esses mitos serão discutidos em detalhes nos próximos capítulos, não obstante, pode-se notar desde já que não deve ser fortui-to que esses “mitos dos mitos” piro girem em torno das relações entre avós e netos: é a avó ja-guar de Tsla quem salva o útero contendo Tsla e seus irmãos mais novos de ser comido por seus próprios filhos,37 e é a avó humana quem joga seu neto anaconda no fogo, provocando a enchente. Portanto, estas histórias evocam di-retamente a mesma relação na qual os mitos são caracteristicamente contados.

Os “mitos dos mitos” Piro, tal como “Tsla engolido por um bagre gigante”, variam quan-do mudam de narrador a narrador e também ao longo do curso da vida de um mesmo narrador, como mostrei aqui. Não obstante, todas as ver-sões que conheço deste tipo de mito são dotadas de uma notável consistência, sejam elas per-tencentes ao arquivo documental, sejam aque-las que me foram contadas diretamente. Mitos como esses não apresentam as mesmas variações dramáticas que vimos para a narrativa mítica sobre os queixadas. Isso sugere que há uma con-tinuidade básica na forma com que essas narrati-vas estão relacionadas com o mundo, ao mesmo tempo em que indica que não estão sendo afeta-das pelas mesmas mudanças históricas que afe-taram as narrativas míticas sobre os queixadas. Essa outra característica será discutida na Parte II, fazendo referência aos “mitos dos mitos”, e na Parte III me voltarei ao “mito da história”.

Mitos esquecidos

Há ainda outra categoria que compreen-de aqueles mitos que as pessoas não são mais

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capazes de contar porque afirmam tê-los esque-cido. Por exemplo, estimulado pelos impor-tantes estudos sobre as máscaras piro pagotko ou pagota realizados pelo antropólogo suíço Baer (1974, 1976-77), em 1988 pedi para Antonio contar-me uma “história dos antigos” sobre elas. Nos anos 1980, minhas questões tiveram como resposta apenas um aborreci-mento educado da parte de meus informantes; contudo, levando em consideração o material de Baer, acredito que existiram importantes conexões entre esse mito e os processos de fabricação e uso da cerâmica.38 Pouco tempo antes Antonio havia me contado três longos mitos piro, incluindo um completamente novo para mim. Pensando que esta era uma situação propícia, perguntei a ele sobre pago-tko. Antonio então começou a dizer, hesitante, “Pagota é um demônio com um nariz grande. Ele vive na floresta, e é um dono dos animais... Na verdade, não conheço essa história muito bem... faz tanto tempo desde que minha mãe contou-a para mim, que não me lembro mais direito”. E prontamente abandonou a tentativa de narrá-la. De maneira similar, quando comecei a perceber a significância do relato de Artemio sobre a lua, tentei fazer que as pessoas me contassem “histórias dos antigos” sobre esse corpo celeste, algumas das quais já conhecia de versões publicadas.39 Não me contaram nenhuma, todos afirmando sua ig-norância. Na mesma ocasião discutida acima, pedi para Antonio me contar sobre a lua. Ele se recusou, dizendo que não conhecia a histó-ria. Contudo depois descobri em minhas ano-tações que – algo completamente esquecido por mim e presumivelmente também por ele – Antonio tinha de fato me contado uma ver-são simplificada do mito da lua em 1982, no único relato da origem das estrelas que já ouvi da boca de um Piro. Segundo minhas notas, ele narrou: “Meus avós diziam que as estrelas

eram gente. Assim também era lua. Lua cos-tumava descer aqui para a terra. Uma menina, que não dormia com homens daqui, dormiu com lua. Ela pintou o rosto dele com huito. Por essa razão, ele tem marcas pretas quanto está cheio”. A incapacidade de Antonio em me contar esse mito outra vez seis anos mais tarde não pode ser explicada por um simples abor-recimento com minhas perguntas, ou mesmo com o próprio ato de narrar mitos. Em 1988, ele me contou muitos mitos e estava muito animado ao narrá-los. Eram justamente as narrativas míticas sobre a lua e sobre pagota, não as narrativas míticas em geral, que ele não podia contar e que tinha “esquecido”.

Encontramo-nos diante da dinâmica tem-poral da mitopoiese. Da mesma maneira que o processo mitopoiético leva a uma expansão das narrativas míticas, na forma de uma memória aparentemente mais profunda dos eventos de narração passados, os narradores tornam-se também mais conscientes das falhas de memó-ria. Contudo, tais lapsos mnemônicos não pa-recem incomodá-los, pois o que está em jogo aqui não é a memorização, mas o interesse. Os narradores piro não estão empenhados em transmitir um cânone de histórias, e, portanto, não têm qualquer interesse abstrato em recon-tar todos os mitos que já ouviram. Só contam aqueles nos quais tanto eles quanto seus ouvin-tes veem agora algum interesse.

Há ainda outra questão aqui. Assim como a mitopoiese pode gerar versões mais comple-xas e elaboradas de narrativas míticas confor-me o narrador envelhece, também pode levar as narrativas míticas a desaparecerem e serem esquecidas, na medida em que tanto os narra-dores quanto seus ouvintes perdem o interesse nelas. Vimos um exemplo de tal transforma-ção no desaparecimento do tema da jornada de canoa do sol, ocorrido entre a primeira e a segunda versões registradas da narrativa mítica

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de Sebastián sobre o mundo subterrâneo dos queixadas. O esquecimento de Antonio da nar-rativa mítica sobre a lua fornece ainda outro exemplo.

A categoria das “histórias dos antigos es-quecidas” é claramente formulada pelos Piro, mas, evidentemente, essa categoria tornou-se saliente para mim precisamente naquelas situ-ações nas quais queria que as pessoas me con-tassem mitos específicos. Eu sabia da existência desses mitos porque os havia lido na literatura sobre a mitologia piro, e geralmente ficava de-sapontado quando as pessoas não conseguiam contá-los para mim. Contudo, é possível que essa categoria das “histórias dos antigos esque-cidas” possa ter uma significação mais positiva, tanto para os Piro quanto para minha análise. Será possível que a categoria de “mitos esque-cidos” também inclua mitos que nunca foram contados ou escutados, mas que fazem uma espécie de sentido lógico para os Piro? Nesse sentido, as pessoas estariam dispostas a postu-lar sua existência, mas afirmariam que foram esquecidos.

Sugiro isso porque, em 1995, Clotilde Gordón me contou sobre a natureza “esqueci-da” de um mito que estou razoavelmente certo de nunca ter existido: “o mito Piro da origem dos grafismos”. Ao analisar os dados coletados no início dos anos 1980 e especialmente em 1988 sobre yonchi, “grafismos”, estava frustra-do pela ausência, tanto em meu material quan-to na literatura, de uma narrativa mítica que desse conta de suas origens. Isso contrastava fortemente com a situação entre os vizinhos ao norte, o povo Shipibo-Conibo (BERTRAND-ROUSSEAU, 1983; GERBHART-SAYER, 1984). Durante o processo de análise conven-ci-me de que não existia um mito de origem dos yonchi, mas não podia ter certeza disso. Pareceu-me uma estranha lacuna na mitologia piro, porém uma lacuna real.

Em 1995, perguntei a Sara Fasabi sobre esse assunto enquanto ela fazia enfeites de miçan-gas para mim. Ela rapidamente reconheceu o problema, dizendo-me que não conhecia a res-posta e que consultaria então sua mãe. No dia seguinte, enquanto a velha Clotilde ensinava um novo grafismo à sua filha, lhe perguntamos. Ela demorou alguns instantes para entender a questão e então, percebendo o que queríamos saber, disse-nos com entusiasmo:

Ah, agora eu entendi! Os antigos talvez contas-sem histórias sobre os motivos gráficos dos en-feites de miçangas, mas não sei nada sobre essas coisas, não. Só faço os motivos que vi minha avó fazer quando eu era menina. Quem sabe o que os antigos podem ter contado sobre eles? Eu não faço ideia.

Há muito tempo, os grandes barcos fluviais cos-tumavam vir até aqui em cima, carregados com contas de vidro brancas, vermelhas e pretas, e os brancos que já morreram (kajinni) trocavam--nas por fruta de tsopi40. Então os Piro faziam um kigimawlo (ritual de iniciação feminino) com muitas miçangas.

Talvez há muito tempo houvesse uma his-tória dos antigos sobre a origem dos motivos gráficos, mas a velha Clotilde não podia recor-dá-la. Como nos disse, nunca a havia escutado, portanto não a conhecia. Não obstante, em se-guida a velha Clotilde deslocou seu relato para uma narrativa de experiência pessoal direta so-bre uma mudança que a interessava sobrema-neira: o progressivo declínio na disponibilidade de contas desde que era jovem. A essa altura, era a mais velha autoridade viva nos costumes dos antigos Piro na área de Santa Clara: como nos disse, os antigos provavelmente contaram his-tórias sobre os motivos gráficos, mas Clotilde nunca tinha ouvido sua avó contá-las e por isso

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não as conhecia. Assim, se tal mito alguma vez existiu, não foi interessante o suficiente para ser lembrado ou repetido. Isso me leva à forte sus-peita de que minha análise está correta, e que os Piro nunca chegaram a contar esse mito, ou ao menos não contaram qualquer mito deste tipo por um longo tempo. Dada minha descri-ção da mitopoiese piro, que melhor definição de um mito não existente alguém poderia for-necer do que a afirmação por uma velha de que sua avó nunca o contou para ela?

Uma narrativa mitológica sobre a origem dos motivos gráficos pode não ser de interesse da velha Clotilde, ou de qualquer outro Piro, contudo, ela é, inevitavelmente, de interes-se de analistas. Parece-me que um velho Piro poderia, se considerasse a questão interessante, contar uma narrativa sobre isso. Ou então, caso ele de fato considerasse a questão de interesse suficiente, poderia também, dada a natureza da mitopoiese, inventar espontaneamente essa narrativa mítica por meio da transformação de outros mitos: na Parte II, mostro como os “mi-tos dos mitos”, ao lidarem com motivos grá-ficos, poderiam ser bons candidatos para uma história destas. Isso sugere que a relação entre as narrativas míticas e o mundo é governada pelo interesse desse povo, mas também que esse interesse é uma forma de investimento. Somente certas características do mundo, além de determinadas narrativas míticas, são inves-tidas com esse tipo de interesse que as torna significativas para os Piro, seja como ouvintes, seja como narradores.

Por detrás do problema dos “mitos esqueci-dos” jaz uma questão metodológica de algum peso, pois, metodologicamente, somos cegos aos processos mitopoiéticos na medida em que eles geram mitos totalmente novos por meio da transformação radical de outros mitos. De forma alguma poderemos dizer que determi-nado mito nunca foi contado anteriormente,

e que é portanto totalmente novo, pois não há meio de assegurar-se de que sua ausência em coleções de narrativas míticas anteriores não se deve ao fato de simplesmente não ter sido co-letado. Tampouco podemos esperar ajuda por parte de nossos informantes, pois eles dificil-mente contariam um mito que experienciaram subjetivamente como novo. Não obstante, pa-rece-me que a categoria de “mitos esquecidos” aponta para uma fonte potencial de novos mi-tos. Se a categoria de “mitos esquecidos” toma forma à medida que o mundo muda, e conse-quentemente à medida que muda também o interesse das pessoas, deve haver uma categoria correspondente, ainda que não marcada, para “mitos potenciais” da qual podem surgir novas narrativas míticas. Os principais candidatos a isso seriam mitos ou outras histórias contados por povos vizinhos e escutados pelos Piro, pois esses poderiam, nas circunstâncias certas, ser lembrados erroneamente como “histórias dos Piro antigos”. É possível que sejam desta or-dem algumas das narrativas míticas que cons-tam no arquivo publicado, ou mesmo algumas dentre as quais pude escutar.

Evidentemente, dada a natureza do arquivo disponível, haveria dificuldade em identificar tais processos, tanto por meio do trabalho de campo quanto por pesquisa histórica. Contudo podemos identificar um fragmento de evidên-cia confirmatória, presente num subgênero das “histórias dos antigos” piro: os contos sobre Shanirawa. Trata-se de um bufão, cujas histó-rias são intencionalmente divertidas, pois são baseadas em seus constantes enganos sobre coi-sas simples. Por exemplo, Shanirawa confunde bosta de anta com veneno de peixe, e sua al-deia natal com a dos Giyakleshimane, o “povo dos peixes miraculosos”. Não obstante, todas as “histórias sobre Shanirawa” parecem ser ba-seadas em importantes mitos yaminahua, tal como os mitos de origem do veneno de peixe

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e dos alucinógenos. Cecilia McCallum infor-mou-me (comunicação pessoal) que o nome piro Shanirawa provavelmente deriva do termo pano Chanidawa, “inimigo/estrangeiro mor-to”.41 Os contos de Shanirawa podem bem ser um modo pelo qual “mitos potenciais” estão sendo importados de povos vizinhos falantes de línguas pano.

Assinalo esta possibilidade com o intuito de dissipar de uma vez por todas uma pos-sível má interpretação de minha análise. A metodologia que adotei aqui significa, inevi-tavelmente, que devo seguir as transformações ocorridas nas narrativas míticas conhecidas ao longo do tempo, e também seguir aquelas já conhecidas em suas trajetórias em direção ao esquecimento. De modo algum, penso que seja apenas isso o que esteja ocorrendo com os Piro ou com sua mitologia; decerto não acredito que essa esteja embarcando em uma viagem só de ida para o esquecimento. Isto seria apenas um mal-entendido gerado pela metodologia adotada aqui. Acredito que minha análise da mitopoiese, se conduzida em outra direção, poderia potencialmente desvelar a criatividade histórica das narrativas míticas piro, na medida em que as histórias dos antigos são inventadas não menos do que transformadas ou tornadas imemoráveis.

Velhos, líderes de aldeia e brancos corresidentes

Como estamos agora em posição de com-preender, mitos como “Um homem que foi para baixo da terra” são um tipo específico de histórias para os Piro, aquelas que teriam sido contadas pelos antigos anônimos, mortos já há muito tempo. São contadas hoje porque são in-teressantes, e porque o processo de aprender a contá-las articula aspectos importantes da for-ma como os Piro experienciam a transformação

temporal interna a suas próprias vidas. Além disso, essas histórias evocam uma característi-ca central desta temporalidade, o contato do-méstico íntimo dos avós com seus netos. Dessa maneira, as “histórias dos antigos” podem ser pensadas como estruturas de significação, apontando para longe dos seguros arredores domésticos, de modo a chamar a atenção para características importantes do mundo piro. É este processo que torna os mitos interessantes para os Piro, pois, como notou Sahlins, “in-teresse é o valor que algo tem para alguém” (1981, p. 68).

Como afirmei antes, as histórias dos antigos nunca me foram contadas no mesmo tipo de cenário no qual os Piro normalmente as con-tam e escutam. Contudo, há uma importante característica das pessoas que, como Artemio naquela noite,42 contaram-me mitos, caracte-rística que está relacionada a um aspecto chave das “histórias dos antigos” na experiência piro. Pois as pessoas que mais frequentemente me narraram mitos foram homens que eram, real ou potencialmente, gitsrukaachi, “pessoas im-portantes, grandes”, em outras palavras, líderes de aldeia. Essa palavra compartilha o mesmo radical tsru “grande, velho”, com tsrune “ve-lhos” e tsrunni, “antigos”. A palavra gitsrukaachi é a forma possessiva de tsru, e a forma na pri-meira pessoa do plural (wutsrukatenni, “nossos velhos que agora infelizmente estão mortos”) é por sua vez usada para referir-se a todos os ve-lhos Piro que já morreram e que são lembrados pessoalmente: no espanhol do Ucayali, as pes-soas dizem los finados nuestros abuelos, “nossos falecidos avós”. É precisamente essa categoria de pessoas que constitui as fontes privilegiadas de mitos para os adultos vivos.

Líderes de aldeia tais como Artemio são, nes-se sentido, prematuramente tsrune, “velhos”.43 Como discutido em outro lugar (1991, pp. 205-11), um aspecto central de ser um líder de

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aldeia é a boa oratória. Líderes de aldeia também são aqueles que tomam a iniciativa em expandir suas aldeias ao integrar os recém-chegados. Isto é em parte o que Artemio estava fazendo quan-do, naquela noite, me contou “Um homem que foi para baixo da terra”: tentava mostrar-se um bom líder ao contar-me uma “história dos anti-gos”, e demonstrando, por meio da habilidade em contar essas histórias, que ele era efetiva-mente um bom gitsrukaachi Piro.

Se missionários e antropólogos, na quali-dade de forasteiros, inevitavelmente devem ter falado principalmente com líderes de aldeia como Artemio, e se devem ter sido justamen-te essas as pessoas mais dispostas a lhes contar mitos, então isso significa que é provável que o arquivo histórico de mitos piro espelhe esse fato. Já demonstrei que isto é verdadeiro para a narrativa mítica “Tsla engolido por um ba-gre gigante”, e a proeminência da mitologia sobre Tsla nas coleções de Matteson (1951) e Ricardo Alvarez (1960) sugere que esses tipos de narrativas míticas também foram específica e preferencialmente contados por seus infor-mantes. Por contraste, “Um homem que foi para baixo da terra”, juntamente com o mito sobre o lar dos queixadas no submundo, pa-recem não ser contados muito frequentemen-te. Contudo, como notei no Capítulo 2, esse mito aponta para alguns aspectos interessantes presentes na relação entre narrador e ouvinte, pois muitas de suas narrações conhecidas, além da narrativa mítica em si, parecem trazer um interesse intrínseco para o narrador quando ele o narra para gringos.

Haveria uma conexão especial entre “Tsla engolido por um bagre gigante”, essa narrativa mítica que é tão facilmente contada para os bran-cos, e as variantes de “um homem que foi para baixo da terra”, a narrativa mítica que parece co-locar em relação os conhecimentos dos “antigos” e dos gringos? Acredito que esta conexão existe e

que os Piro experienciam ambos os mitos como complementares. Retomarei esta questão no Capítulo 9. De modo a chegar a tal conclusão, precisamos, por assim dizer, penetrar as relações internas do mundo vivido piro, acompanhan-do esses mitos do mito, que são “O nascimento de Tsla” e “As mulheres Kochmaloto”. Pois essas narrativas nos conduzirão mais intensamente a alguns aspectos do mundo vivido piro que já apareceram aqui: motivos gráficos, vestimentas, experiência alucinatória, xamanismo e o ritual de iniciação feminino. Isso nos trará eventual-mente para aquele outro mito contado na noite de 15 de janeiro de 1982, aquele sobre a lua. Se soubéssemos por que Artemio estava interessado na questão de se os norte-americanos estiveram ou não na lua, estaríamos em uma posição mui-to melhor para compreender por que aquela his-tória que sua mãe lhe contou deve tê-lo levado a me contar “Um homem que foi para baixo da terra”.

Notas

1. [N.T.] Este texto corresponde ao capítulo 3 do livro An Amazonian Myth and its History. Oxford: Oxford University Press, 2001. Para não interferir no curso do texto, resolvemos não suprimir as referências aos demais capítulos, o que exige que o leitor mais inte-ressado as busque na obra original, ainda inédita em português.

2. Como esclarecem Basso (1987) e Urban (1991), a abordagem discurso-centrada à cultura [discourse-cen-tered approach to culture] está completamente inserida no projeto da antropologia culturalista boasiana, e é um de seus campos mais férteis. Dessa forma, deve pouco à tradição sociológica europeia que levou aos trabalhos de Malinowski e Lévi-Strauss.

3. [N.T.] No original, “Ancient People’s Stories”. O ter-mo “stories” foi traduzido por “histórias”. A decisão se justifica devido ao fato do termo “estória” ter caído em desuso em português, de modo que seu emprego atual

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reforça o traço semântico original de “narrativa sem valor de verdade, ficcional”. Como afirma Peter Gow na página 8 deste capítulo, não há entre os Piro qual-quer categoria para narrativas ficcionais, de modo que a opção pelo termo “histórias”, no plural e com letra inicial minúscula (de modo a diferenciá-lo de História – a ciência ocidental, não raro ligada à noção de pro-gresso – e a aproximá-lo da concepção de historicida-des múltiplas) adequa-se melhor às concepções piro e à questão central da obra de Gow aqui traduzida, nomeadamente a busca por uma historicidade própria à mitologia piro.

4. Matteson (1954, p. 68) e Ricardo Alvarez (1970, p. 67) mencionam uma forma extinta de drama denomi-nada yimlu, na qual os velhos encenavam os diferentes personagens de um mito. Matteson menciona que, nos anos 1950, ela já não tinha sido realizada havia muitos anos. Meus informantes nos anos 1980 nun-ca tinham ouvido falar dela. O termo yimlu significa “imitação”. Presumivelmente, mesmo quando ela era realizada, yimlu não era a forma principal de contar mitos.

5. Moza gente são pessoas identificadas no baixo Urubamba como originárias de áreas ao norte da Amazônia peruana, ou seus descendentes, e normalmente são falantes nativos de quéchua ou espanhol do Ucayali. Indivíduos moza gente podem ser definidos – ou ain-da definir a si mesmos – mais especificamente como Lamista, Cocama, Jabero, Napo Quechua etc. Eles nunca são considerados gente blanca, “brancos” (vide GOW, 1991; 1993).

6. A maioria de meus informantes Campa eram jovens adultos, e minha única informante próxima mais velha passou a maior parte de sua vida jovem como uma escrava doméstica na casa de um patrão branco. Também é possível que essas pessoas sintam-se inibi-das a contar esses mitos em territórios tidos definiti-vamente como “terra dos Piro antigos”, não “terra dos Campa antigos”.

7. De qualquer forma, não estavam muito interessados neles, ou também os temiam ativamente. Além dis-so, ao passo em que as mulheres piro usavam velhos

fragmentos de vasos como componentes na produção de cerâmica, pelo que sei elas não procuravam sítios arqueológicos para encontrá-los. Usavam somente vasos e panelas recém-quebrados para este propósito. Nisto, diferem dos Shipibo-Conibo (ROE, 1982).

8. Evidentemente, os “antigos” presumivelmente ainda existem na forma de pessoas mortas na floresta, mas ninguém discutiu isso comigo.

9. Ver Capítulo 5 para uma discussão das letras das can-ções xamânicas.

10. Ao menos em relação a sapna, isso é verdadeiro para o povo Piro-Manitineri brasileiro do rio Yaco, alguns dos quais encontrei em Rio Branco (Acre) em 1987 e 1990.

11. [N.T.] Assinalo aqui o contraste entre “ancient people’s stories”, ou “histórias dos antigos”, em que a preposi-ção deve ser entendida em seu sentido possessivo – ou seja, trata-se das histórias que os antigos tinham, isto é, que contavam –, e “stories about ancient people”, isto é, histórias que, contadas pelos Piro de hoje em dia, versam sobre os antigos.

12. É claro, um narrador pode também simplesmente estar mentindo (piro, gaylota; espanhol do Ucayali, engañar). Essa é uma importante arte verbal entre os Piro (cf. BASSO, 1987, sobre os Kalapalo).

13. O relato de Ireland sobre os Waurá é particularmente revelador nesse sentido: os Waurá consideram que os mitos são os melhores exemplares de qualquer histó-ria, mas desaprovam afirmar sua veracidade porque, por definição, nenhum narrador vivo ou qualquer ou-tra pessoa conhecida pode ter testemunhado os even-tos a que eles se referem.

14. [N.T.] Isto é, que foram “transmitidas”, que não foram “criadas” ou “experienciadas” pelo próprio narrador.

15.[N.R.] Traduz-se aqui “kin” por “parente”. Note-se, no entanto, que em inglês o campo semântico de “kin” é mais restrito do que o de “parente” em portu-guês, visto que se o primeiro designa mais especifica-mente os “parentes por consanguinidade”, o último abrange também as relações de afinidade, o que no inglês compreende a ideia contida na palavra “relati-ve”. Louis Dumont apresenta discussão aprofundada

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sobre essa questão em Groupes de Filiation et Alliance de mariage: introduction a deux théories d’anthropologie sociale (Paris, Gallimard, 1997). Gow fornece uma breve descrição do sistema de denominações piro das relações de parentesco presentes no processo mitopoiético.

16. Para uma discussão sobre as narrativas históricas Piro, vide Gow (1990a, 1991).

17. [N.T.] No original, “real”. Optei por empregar a palavra “verdadeiro” devido a seu uso mais corrente na antropolo-gia brasileira: “parente verdadeiro” ou “parente mesmo”.

18.Essa é uma das piores facetas da observação parti-cipante como método: a tendência a extrapolar, a partir de uma situação imediata, para processos de transformação histórica de longo termo. Boa parte da literatura sobre “aculturação” foi marcada por essa tendência, o que dá a ela um tom ao mesmo tempo melancólico e melodramático, verdadeira he-rança de certas correntes do romantismo alemão (ver SAHLINS, 1995).

19. Ver a discussão sobre essa canção no Capítulo 6.20. Para outros mitos contados por Artemio, ver também

os Capítulo 4 e 8.21. Planejei a investigar mais a fundo essa questão em

1995, mas fui impedido pelas circunstâncias. Além da morte de Artemio, Antonio também havia se afastado de Sepahua. Sara, nesse período aos 38 anos de idade, na realidade não narrava qualquer mito, mas estava muito mais disposta a contar “histórias sobre os anti-gos” do que antes.

22. Meu uso deste conceito deriva do importante estu-do de Mimica sobre o povo Iqwaye de Papua Nova-Guiné (1988). Meu uso aqui é levemente diferente, uma vez que foco o próprio ato de narrar os mitos, ao invés das pré-condições gerais de tais narrativas. A adaptação é justificada pela natureza extremamente “exotérica” das narrativas míticas piro, se comparada com as dos Iqwaye.

23. Veja os textos no Apêndice de Mitos, e a discussão desses mitos nos capítulos 4 e 5.

24. [N.T.] No Brasil, também conhecido por jaú.25. [N.T.] Também conhecido no Brasil como piraíba.

26. Goody (1987) chega a uma conclusão muito similar em suas reflexões sobre o relato de Stanner sobre uma sociedade aborígene australiana.

27. Essas mesmas relações permanecem verdadeiras no emprego local do espanhol Ucayali, no qual todos os parentes mais novos são interpelados como papito, se homem, ou mamita, se mulher.

28. [N.T.] No original, “old dead people”.29. Nunca escutei bisabuelo/bisabuela, os termos em espa-

nhol para bisavô/bisavó, serem empregados por gente local no baixo Urubamba.

30. Isso pode dar conta do caráter de descrição genérica das histórias “sobre os antigos”: talvez originalmente contadas como histórias sobre parentes mais velhos narradas por pessoas já mortas, elas tornam-se cada vez mais anônimas e menos narrativas à medida que são repetidas ao longo do tempo e os personagens ori-ginais progressivamente escapam à memória.

31. Usei a forma completa dessa afirmação como a epígra-fe de Of Mixed Blood (1991, p.xii).

32. [N.T.] Summer Institute of Linguistics.33. Os dominicanos, singularmente, “vieram rio-abaixo”,

de sua base em Cusco para longe em direção ao sul nas cabeceiras do rio Urubamba. Os missionários do SIL “vieram rio-acima” de sua base perto de Pucalpa, assim como os outros brancos.

34.Os Piro me disseram que “a terra dos Machiguenga” encontra-se além do Pongo, no alto Urubamba, ape-sar de que muitas dessas pessoas hoje vivem abaixo dele.

35. Moisés explicou-me que os Incas não morreram, estão na verdade vivendo dentro das montanhas nos Andes. Diferentemente da maioria dos Piro, que têm aversão aos Andes e que não estão particularmente interes-sados nos Incas, Moisés viajava frequentemente para Cusco.

36. Veja, contudo, “The World on the Other Side”, de Zacaría Zumaeta (MATTESON 1965, p. 210–15, e a discussão a seguir, no Capítulo 7).

37. [N.T.] Também eles jaguares.38. Eu tinha, a essa altura, falhado em fazer a conexão en-

tre essa narrativa mítica e o tema dos queixadas.

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39. Vide a discussão no Capítulo 6. Por respeito pelo que ele tinha me contado anteriormente, não perguntei nada a Artemio.

40. Uma fruta leguminosa, chamada guaba em espanhol Ucayali (Lat. Inga Edulis). Tem um bagaço doce ao redor das sementes pretas que ficam dentro de uma longa e dura vagem verde. [N.T.] No Brasil, é conhecida como ingá.

41. [N.T.] Aqui a tradução se torna especialmente comple-xa devido à polissemia do termo “lie”, que pode signi-ficar tanto “mentir” quanto “deitar” e, por extensão ao segundo, também “morrer”, como na expressão “here lies...”. Optamos pelo último devido a seu sentido béli-co mais facilmente associável à ideia de inimigo.

42. [N.T.] Noite de 15 de janeiro de 1982, na qual Artemio contou a Peter Gow o mito “O homem que foi para baixo da terra”. É com este evento de narração que o autor inicia o livro.

43. Artemio me contou uma vez que ele na verdade não deveria ser o chefe [headman] de Santa Clara, afirman-do que “Meu pai deveria ser o chefe aqui, sendo o mais velho de nós. Mas ele não sabe ler ou escrever, então eles me fizeram chefe no lugar dele”.

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traduzido deGOW, Peter. “Myths And Mythopoiesis”. In: ____. An Amazonian Myth and its History. Oxford: Oxford University Press, 2001.

tradutor Henrique PougyMestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo (PPGAS/USP).

revisor Renato SztutmanProfessor no Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo (DA/USP).

Recebido em 06/09/2014 Aceito para publicação em 01/12/ 2014