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QUESTÕES DE FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA MARIA LEONOR XAVIER Colecção: Forum de Ideias, 27 Lisboa Edições Colibri 2007

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QUESTÕES DE FILOSOFIANA

IDADE MÉDIAMARIA LEONOR XAVIER

Colecção: Forum de Ideias, 27

LisboaEdições Colibri

2007

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ÍNDICE

Prefácio

Capítulo I: A Filosofia Medieval em Questão

1. A Idade Média na História da Filosofia . . . . . . 7

1.1. Filosofia e História da Filosofia . . . . . . 7

1.2. Entradas para o estudo da filosofia medieval . . . . . 10

1.3. O conceito de Idade Média: origem e relatividade . . . . 12

1.4. Os Renascimentos medievais . . . . . . . 16

1.5. A questão da periodização da história da filosofia . . . . 24

2. A filosofia e os outros saberes . . . . . . . 30

2.1. A questão da educação do filósofo: revisitação de Platão e Aristóteles . 30

2.2. A tradição das artes liberais: um legado helenístico e romano . . . 32

2.3. Artes liberais e filosofia em Agostinho . . . . . . 34

2.4. A descrição simbólica da filosofia em Boécio . . . . . 39

2.5. Transmissão e reorganização dos saberes . . . . . 42

2.6. A integração teológica dos saberes em Boaventura . . . . 48

3. A filosofia e a religião . . . . . . . . 56

3.1. Perspectivas de aproximação . . . . . . . 56

3.2. Filosofia e cristianismo . . . . . . . . 61

3.2.1. Relação de influências recíprocas . . . . . . 62

3.2.2. De regresso aos primeiros filósofos do cristianismo . . . . 74

3.2.2.1. Justino: uma conversão filosófica ao cristianismo . . . . 74

3.2.2.2. A filosofia patrística do Logos . . . . . . 77

3.2.2.3. Fé e conhecimento em Agostinho . . . . . . 78

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Capítulo II: Questões sobre o Conhecimento

1. A questão de magistro . . . . . . . . 89

1.1. Agostinho: o diálogo De Magistro . . . . . . 90

1.1.1. A linguagem aquém do conhecimento . . . . . 90

1.1.2. O conhecimento aquém da linguagem . . . . . 98

1.2. Tomás de Aquino: a questão disputada De Magistro . . . . 105

1.2.1. Tomás de Aquino e os argumentos de Agostinho . . . . 109

1.2.2. Os princípios do conhecimento e a possibilidade do autodidata . . 112

2. A origem e o processo do conhecimento . . . . . . 116

2.1. Os sentidos . . . . . . . . . 116

2.1.1. O valor cognitivo dos sentidos: Agostinho . . . . . 116

2.1.2. O valor espiritual dos sentidos: Pseudo-Dionísio e Boaventura . . 121

2.2. O conhecimento racional . . . . . . . 126

2.2.1. A doutrina augustiniana da iluminação . . . . . 126

2.2.2. A teoria tomista da abstracção . . . . . . . 133

3. A questão da unidade do intelecto . . . . . . . 146

3.1. Questões aristotélicas sobre a alma . . . . . . 148

3.2. A controvérsia anti-averroísta e os antecedentes árabes . . . 149

3.3. A questão da unidade do intelecto em Tomás de Aquino . . . 152

3.3.1. A questão da unidade do intelecto possível . . . . . 154

3.3.2. A questão da unidade do intelecto agente . . . . . 158

3.3.3. A individuação do conhecimento intelectivo e do intelecto . . . 161

4. A mente e o conhecimento de si . . . . . . . 163

4.1. Uma questão central em Agostinho . . . . . . 163

4.1.1. As evidências do conhecimento de si . . . . . . 164

4.1.2. O mundo da memória e o tempo interior . . . . . 170

4.1.3. O sentido do conhecimento de si . . . . . . 178

4.2. Uma questão derivada em Tomás de Aquino . . . . . 182

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Capítulo III: Questões sobre a Liberdade

1. A liberdade do homem . . . . . . . . 189

1.1. O ser humano: natureza e indivíduo . . . . . . 189

1.1.1. Em defesa da bondade da natureza humana . . . . . 189

1.1.1.1. Agostinho pós-maniqueu . . . . . . . 189

1.1.1.2. A questão: cur homo? . . . . . . . 195

1.1.2. A questão da individuação . . . . . . . 202

1.1.2.1. Soluções pré-escolásticas: Boécio e Anselmo . . . . 203

1.1.2.2. Soluções escolásticas: Tomás de Aquino e João Duns Escoto . . 206

1.2. O livre arbítrio ou a liberdade individual . . . . . 210

1.2.1. A questão da origem do mal: Agostinho . . . . . 210

1.2.2. A liberdade para além do mal: Anselmo . . . . . 215

1.2.3. A liberdade e os seus opostos: Agostinho e Anselmo. . . . 217

1.2.4. Liberdade e necessidade: Tomás de Aquino . . . . . 221

2. A liberdade de Deus . . . . . . . . 222

2.1. A questão da eternidade do mundo: versões antigas, patrísticas e escolásticas 223

2.2. A questão da eternidade do mundo em Tomás de Aquino . . . 227

Nota PréviaTodos os textos citados são traduzidos: ou por nós, nos casos em que, por ocasião da

primeira citação de cada texto, é referida a edição do texto latino, por nós utilizada;

ou por outros, devidamente mencionados, nos casos em que, por ocasião da primeira

citação de cada texto, é referida a edição do texto traduzido.

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PREFÁCIOAlgumas linhas principais de orientação norteiam este estudo de introdução geral

à filosofia na Idade Média1: a opção por uma abordagem temática; a preocupação de

abrangência temporal; a contemplação de diversidade de perspectivas; e o

encadeamento das matérias numa perspectiva integrada. O propósito destas linhas de

orientação, no seu conjunto, é conduzir a uma visão panorâmica e conexa dos grandes

temas da filosofia medieval.

A opção por uma abordagem temática da filosofia medieval justifica-se pelo

intento de colher e de sublinhar nesta bons motivos de interesse para a reflexão

filosófica de todos os tempos. Com efeito, a filosofia medieval permanece apelativa,

não tanto pela sua história irreversível, quanto pela qualidade e alcance de muitas das

suas obras na elaboração de temas perenes da reflexão filosófica, daqueles que são

motivo de interrogação incessante para o ser humano. A abordagem temática é, por

isso, sempre mediada pela leitura de obras, senão integral, pelo menos selectiva. É

nossa pretensão, de facto, trazer novos leitores às obras filosóficas da Idade Média

porque é também nossa convicção de que tais obras não deixarão de fazer pensar.

A preocupação de abrangência temporal tem por sua vez em conta a longa

duração do período histórico medieval, assim designado em função, não da sua trama

interna, mas dos extremos entre os quais medeia. Durante esse longo período, a

história do pensamento ocidental não é contínua nem uniforme, mas abarca

parcialmente duas tradições relevantes, a patrística e a escolástica, em sucessão

descontínua, embora a primeira exercendo efectiva influência sobre a segunda. Daí

que o nosso programa abranja referências quer patrísticas quer escolásticas, não

obstante os séculos de intervalo que separam umas das outras.

A contemplação de diversidade de perspectivas é outra preocupação aqui

presente. Na impossibilidade de uma análise exaustiva de tal diversidade, esta deve

ser amostrada através de, pelo menos, duas perspectivas sobre cada tema. A

amostragem de diversidade não pode, entretanto, deixar de dar prioridade a

referências fundamentais, isto é, a autores de relevância historicamente comprovada.

Por fim, a apresentação das matérias de forma filosoficamente conexa e integrada

é o propósito que determina o encadeamento das questões filosóficas aqui revisitadas,

conforme o índice.

1 Expressão cumulativa e selectiva da experiência de leccionação, entre 1982 e 2004, na disciplina deFilosofia Medieval do curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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CAPÍTULO I

A FILOSOFIA MEDIEVAL EM QUESTÃO

1. A Idade Média na História da Filosofia

1.1. Filosofia e história da filosofia

A relação entre filosofia e história da filosofia constitui uma questão já

amplamente debatida e documentada na história da filosofia, sobretudo, a partir do

segundo quartel do séc. XX. O debate de questões propriamente filosóficas não

conduz, porém, a soluções que eliminem as próprias questões, apenas permite a

sistematização das posições em confronto e das suas múltiplas variações,

permanecendo a questão um tema em aberto. Assim acontece também com a questão

da relação entre a filosofia e a sua história, que apresentamos, exactamente, como

uma disjunção entre as duas posições extremas, que nela se confrontam: ou é a

história da filosofia um acidente separável da filosofia, e, portanto, prescindível ao

exercício desta; ou é a história da filosofia uma parte essencial da filosofia, de modo

que esta não se deixa identificar nem exercer fora da relação com a sua história.

Numa primeira análise, parece que a primeira posição convida mais à criatividade

e à inovação em filosofia, enquanto a segunda zela sobretudo pela conservação e não

consegue escapar à repetição do legado do passado. Há, no entanto, um argumento

forte em favor da consideração de um vínculo essencial entre a filosofia e a sua

história, que é o da irrefutabilidade das filosofias umas pelas outras. Diversamente das

teorias científicas, que se vão eliminando umas às outras na evolução de cada

especialidade científica, as filosofias do passado não se vão deixando eliminar umas

pelas outras ao longo da história da filosofia. Este é um dado que põe em causa a

noção de progresso na história da filosofia. Não se pode aí conceder que haja

progresso, pelo menos, na mesma acepção em que ele existe na história da ciência.

Com efeito, este dado da persistência das filosofias, muito para além do respectivo

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tempo de formulação, mesmo para além da respectiva vigência como escolas ou

correntes filosóficas, não pode deixar de ser significativo acerca quer da essência da

filosofia quer da sua diferença relativamente à ciência.

O mesmo dado de resistência das filosofias umas às outras e ao tempo é o que está

na origem da consideração do valor absoluto das múltiplas filosofias, segundo Martial

Gueroult. Esta extrema valorização das filosofias, na sua diversidade histórica, é a

melhor forma de reconhecer um vínculo essencial entre a filosofia e a história da

filosofia. Martial Gueroult desenvolve a sua posição na sua obra magna,

Dianoématique, publicada postumamente, e dividida em dois livros, o L. I: Histoire

de l’histoire de la philosophie (3 vols., 1984-1988), e o L. II: Philosophie de l’histoire

de la philosophie (1979).

Também Joaquim Cerqueira Gonçalves, nosso Mestre de Filosofia Medieval, dá

total prioridade aos factos da história da filosofia de modo que estes constituem, não

acidentes separáveis, mas a realidade própria e indissociável da filosofia. Daí a sua

afirmação quer da identidade entre filosofia e história da filosofia quer da

historicidade, como propriedade essencial da filosofia. Recordemos algumas das suas

mais incisivas palavras, de acordo com o nosso testemunho2:

«A historicidade é co-natural à filosofia.» FM 82/83; «Filosofia é história dafilosofia.» FM 82/83; «Não há filosofia de direito; há filosofia de facto. A filosofianão é aquilo que ela deve ser, mas aquilo que ela foi e aquilo que ela é capaz de ser.»FM 82/83; «Se a realidade é mutável, a filosofia é mutável.» FM 85/86; «Ahistoricidade faz parte da definição de filosofia.» FM 86/87.

Por consequência, pode entender-se a diferença entre filosofia e ciência, quanto à

relação de cada uma delas com a história respectiva, discernindo entre o progresso da

ciência, que demite os antecedentes da sua história, e a historicidade da filosofia, que

não permite dispensar a sua história. Registemos de novo as palavras de Joaquim

Cerqueira Gonçalves3:

«Se a historicidade é inerente à filosofia, tal não é óbvio para a ciência, embora sejamais fácil fazer uma história da ciência. A filosofia não prescinde do passado; aciência vive renegando o passado.» FM 82/83; «Enquanto o cientista é muitas vezesinsensível à historicidade, esta é essencial ao filósofo.» FM 83/84; «A historicidade éconstitutiva da filosofia, mas talvez não seja, da ciência.» FM 83/84; «À filosofia éintrínseca a ideia de tradição, de historicidade; à ciência, não.» FM 85/86; «Todo o2 «Ditos Filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves», in Poiética do Mundo. Homenagem a JoaquimCerqueira Gonçalves, Lisboa, Edições Colibri, 2001, p.81.3 Ibidem.

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saber é insensível à história, o que não significa que o saber não seja histórico.» FM86/87; «Em ciência, um paradigma substitui outro paradigma; em filosofia e nasciências humanas, não há substituição, tudo é integrado, nada é esquecido.» FM98/99.

Podemos nós também sublinhar a necessidade filosófica do estudo da história da

filosofia, através de um modelo de ordem psicológica: tal como a memória do nosso

passado individual e familiar é parte integrante e estruturante da nossa personalidade,

assim também a memória da história da filosofia é parte constituinte e estruturante da

nossa identidade filosófica, isto é, da nossa auto-determinação em filosofia. Na

história da filosofia nós encontramos as grandes referências, os grandes modelos, os

grandes exemplos, que nos permitem discernir a nossa orientação filosófica, tal como

no nosso passado familiar encontramos as principais referências que permitem

construir a nossa identidade pessoal. Construímos a nossa autonomia de pensamento

por semelhança ou por diferença, por aproximação ou por oposição, por afinidade ou

em ruptura, em continuidade ou por superação, relativamente a referências mais ou

menos recuadas da tradição. Quanto mais curto for o nosso horizonte de referências,

menor é a nossa liberdade de escolha e mais limitada fica, por isso, a nossa

capacidade de auto-determinação em filosofia. Em contrapartida, quanto mais largo

for esse horizonte, maior é a nossa liberdade de escolha e mais informada e lúcida se

torna, por isso, a assunção da nossa orientação filosófica.

O valor filosófico da Idade Média: o argumento das obrasA Idade Média não é uma época menor da história da filosofia. Para o

reconhecermos, basta recordar algumas das grandes obras estruturantes do

pensamento ocidental, entre as quais algumas medievais. Por exemplo: tanto A

República, de Platão, quanto A Cidade de Deus, de Agostinho, nunca deixaram de

constituir referências para a filosofia política e a filosofia da história; A Metafísica, de

Aristóteles, tornou-se uma referência clássica do pensamento metafísico, e a Suma

Teológica, de Tomás de Aquino, tornou-se uma enciclopédia filosófica de

incontornável referência na posteridade; por sua vez, A Divina Comédia, de Dante,

para além ser um retrato de época e uma síntese das culturas antiga e medieval, não

deixa de ser uma obra de referência do pensamento ocidental para a meditação sobre

o destino do homem. Deste modo, não só é plausível considerar legados marcantes,

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obras antigas a par de obras medievais, como é incontornável a presença da Idade

Média em obras proeminentes da posteridade.

Importa também recordar grandes estudos de época, entre os quais também

existem aqueles que advertem para o valor da Idade Média na história da civilização

ocidental, na história da filosofia inclusive, como seja, desde logo, L’Esprit de la

philosophie médiévale (1932), de Étienne Gilson. Esta obra tornou-se tão relevante

para os medievalistas quanto a Paideia (1936), de Werner Jeager, para os classicistas,

ou Die Cultur der Renaissance in Italien (1860), de Jacob Burckhart, para os

estudiosos e os admiradores do Renascimento italiano.

1.2. Entradas possíveis e complementares para o estudo da filosofia medieval

Entendemos por entradas possíveis e complementares para o estudo da filosofia

medieval, diversas perspectivas relativas de abordagem, que são modeladas por

grandes estudos de síntese. Tais perspectivas dão, por isso, oportunidade a uma

primeira selecção bibliográfica, contemplando estudos quer pioneiros quer mais

recentes e actualizados, como ilustram as sugestões bibliográficas que acompanham

as diversas entradas.

A filosofia medieval na continuidade e por afinidade com a filosofia antigaÉ inegável a presença da filosofia antiga na filosofia medieval: Platão, por

mediação, sobretudo, do estoicismo e do neoplatonismo; e Aristóteles, embora não

uniformemente ao longo da história da filosofia medieval (através dos dois primeiros

livros do Organon, durante a Alta Idade Média, e da progressiva recuperação do

conhecimento da sua obra, a partir do séc. XII). A presença da filosofia antiga na

filosofia medieval é tão incontornável que, sem a filosofia da Idade Média, a tradição

filosófica da antiguidade clássica não teria sobrevivido até hoje. Sugestões

bibliográficas: É., Bhréhier, Histoire de la philosophie. I: Antiquité et Moyen Age,

Paris, PUF, 1931 e 1938; L. Couloubaritsis, Histoire de la philosophie ancienne et

médiévale. Figures illustres, Paris, 1998.

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A filosofia medieval na sua especificidadePara uma selecção e síntese de áreas temáticas dominantes e características da

filosofia medieval, é incontornável a revisitação da obra de É. Gilson, L’Esprit de la

philosophie médiévale, Paris, 1932. Nesta linha de estudos monográficos sobre a

especificidade da filosofia medieval, continuou a ser produzida uma extensa

bibliografia, à qual vem juntar-se a obra colectiva, predominantemente em língua

portuguesa, Idade Média: Tempo do Mundo, Tempo dos Homens, Tempo de Deus,

Porto Alegre, 2006. Para uma entrada na filosofia medieval, através da sua época de

ouro, a escolástica ou a cultura universitária dos sécs. XIII e XIV, sugerimos: L. M.

De Rijk, La philosophie au moyen âge, trad. P. Swiggers, Leiden, 1985; D.

Luscombe, Medieval Thought (A History of Western Philosophy: II), Oxford – Nova

Iorque, Oxford University Press, 1997.

A filosofia medieval por antecipação e afinidade com a filosofia modernaÉ inegável a presença da filosofia medieval na filosofia moderna. Grandes temas

do pensamento moderno encontram-se já amplamente elaborados na filosofia

medieval, como sejam a evidência do cogito e o argumento ontológico: as certezas do

cogito afloram recorrentemente nas obras de Agostinho e, a Anselmo, coube

inaugurar a tradição do argumento ontológico, assim designado após a crítica

kantiana. Gilson trata incisiva e especialmente dos antecedentes medievais destes dois

grandes temas da filosofia moderna, em Études sur le rôle da la pensée médiévale

dans la formation du système cartésien, Paris, 1930. Acerca das controvérsias e

tendências significativas do período de transição entre a filosofia medieval e a

moderna, considere-se o conjunto de conferências publicadas de A. Ghisalberti, As

Raízes Medievais do Pensamento Moderno. Trad. S. H. Ferreira, Porto Alegre, 2001.

A filosofia medieval em função da relação de influência recíproca com asreligiões, em especial, o cristianismo. Sugestões bibliográficas: J. Chevalier, Histoire

de la pensée. II. La pensée chrétienne, des origines à la fin du XVIe siècle. Paris,

Flammarion, 1956; C. Tresmontant, La métaphysique du christianisme et la naissance

da la philosophie chrétienne. Problèmes de la création et de l’anthropologie des

origines à saint Augustin. Paris, 1961; B. B. Price, Medieval Thought. An

Introduction. Oxford (GB)/ Cambridge (USA), 1992; A. De Libera, La philosophie

médiévale. Paris, 1993.

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Várias são, pois, as entradas possíveis na filosofia medieval. Todas elas são

pertinentes e complementares entre si. A nossa proposta de entrada na filosofia

medieval é, portanto, não apenas em função da sua relação quer com a Antiguidade

clássica quer com a Modernidade, o que pode omitir a sua diferença; não apenas em

função da sua especificidade, que pode ser segregadora, afastando-a para a posição de

uma ilha isolada na história da filosofia; não apenas em função da sua relação com a

religião, que tem pesado quase sempre em seu desfavor, como factor de diminuição e

quebra de autonomia; mas também em função da sua inerente qualidade filosófica,

isto é, porque encontramos, na filosofia medieval, filosofia de qualidade ou boa

filosofia.

Evidentemente, não há um só e único critério para classificar uma filosofia de boa

filosofia e desclassificar outra como má filosofia. Há, decerto, critérios vários, a partir

de diferentes correntes e tendências filosóficas. A variedade de critérios é

incontornável e irredutível, porque nenhuma filosofia, ou escola, ou corrente

filosófica anula as demais, ou consegue impor às restantes os seus critérios

exclusivos; porque cada filosofia é apenas filosofia, ou seja, é procura e não posse da

sabedoria. Mas, segundo critérios vários, é possível encontrar boa filosofia na Idade

Média. Se uma corrente ou tendência filosófica cultiva a filosofia em conformidade

com modelos do conhecimento científico, então poderá encontrar nas universidades

medievais referências de boa filosofia argumentativa, tecnicamente elaborada numa

língua própria, como é o latim escolástico. Mas, se outra corrente ou tendência

filosófica cultiva a filosofia em conformidade com modelos de revelação religiosa ou

de inspiração poética, não menos encontrará na história da cultura medieval

eminentes testemunhos de boa filosofia da espiritualidade, religiosa e mística.

1.3. O conceito de Idade Média: origem e relatividade

A origem do conceito de Idade MédiaA filosofia medieval é «medieval» por acidente, não por essência. O atributo de

medieval nada diz da forma ou do conteúdo, das tendências próprias, da qualidade

intrínseca ou, segundo a expressão de Gilson, do «espírito» da filosofia desses

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tempos. O atributo de medieval é um rótulo aplicado posteriormente e não

determinado pelo teor da filosofia que abrange.

Observe-se o significado habitual do qualificativo «medieval», na linguagem dos

media inclusive, em contraste com o significado corrente de «clássico». «Medieval»

aplica-se quotidianamente àquilo que está mais do que ultrapassado, que é

incompatível com os padrões civilizacionais da actualidade, e, portanto, é

verdadeiramente um desqualificativo para aquilo que predica. Em contrapartida,

«clássico» aplica-se habitualmente àquilo que não passa, que permanece imorredouro,

e, desse modo, constitui padrão inalterável de qualidade. Dada a repugnância do

medieval à actualidade (herança da modernidade), geram-se efeitos marginais do uso

corrente e displicente do termo «medieval», como a atracção pelo medieval, devido a

certo desencanto com o mundo actual, ou como a projecção do medieval no futuro, no

imaginário da ficção científica.

Todavia, o significado literal de «medieval» não inclui conotação alguma de

valor, pois denota apenas uma posição média ou intermédia. O significado habitual do

epíteto «medieval» não se explica, portanto, pelo seu significado literal. O significado

habitual comporta uma uma conotação depreciativa, que está completamente ausente

do significado literal. Donde essa depreciação? Ela tem uma origem histórica, que o

uso habitual do termo «medieval» não narra.

A cultura do Renascimento italiano gerou uma consciência do valor de si mesma

por oposição ou contraste com a cultura da época anterior, que passa a não merecer

menção senão como um tempo médio ou intermédio entre a Antiguidade clássica e o

seu Renascimento. Esse tempo médio não é digno de menção e, portanto, não vale

senão em função dos extremos. De facto, na cultura do Renascimento moderno,

iniciado em Itália, teve origem o conceito de Idade Média, com a negatividade que o

mesmo comunica ao atributo medieval. O significado habitual de «medieval»

comporta, ou transporta, como um preconceito cultural, o menosprezo a que o

Renascimento votou a Idade Média.

Destaques da história do conceito de Idade MédiaPetrarca foi o primeiro a usar a expressão medium tempus (1373), para o período

que medeia entre o tempo do império romano e o seu próprio tempo. Os humanistas

italianos foram os responsáveis por uma aplicação estético-literária do conceito de

tempo intermédio para o período que medeia entre o florescimento da língua, da

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literatura e das artes plásticas na Roma antiga e o reflorescimento (renascimento) das

mesmas na cultura italiana dos sécs. XV-XVI. O movimento da Reforma, por seu

turno, promoveu uma aplicação religiosa do conceito de tempo intermédio, como o

tempo da degeneração religiosa, isto é, da perda de autenticidade do cristianismo

primitivo. Durante os sécs. XVI e XVII, vulgariza-se a expressão medium aevum, de

preferência a expressões antecedentes, como media tempestas, media aetas, media

antiquitas. No séc. XVII, duas referências decisivas para a consolidação do conceito

de Idade Média: um filólogo, C. D. Du Cange, e um historiador, Christoph Keller

(Cellarius, 1634-1707). C. D. Du Cange é o autor do Glossarium ad scriptores mediae

et infimae latinitatis, publicado em 1678, no qual sanciona, do ponto de vista

estético-literário, a negatividade do conceito de Idade Média, na medida em que o faz

corresponder à época de maior decadência da latinidade. Christoph Keller é o

historiador que aplicou o conceito de tempo intermédio a um período da História geral

do Ocidente, segundo a divisão tripartida em Antiguidade, Idade Média e

Modernidade, nomeadamente, nas suas obras: Nucleus historiae inter antiquam et

novam mediae (1675); Historia medii aevi a temporibus Constantini magni ad

Constantinopolim a Turcis captam deducta (1688).

A questão das fronteiras temporais da Idade MédiaIntroduzido o conceito de Idade Média na periodização da História, não pôde

deixar de começar a constituir uma questão para os historiadores, a determinação das

fronteiras temporais desse período intermédio entre a Antiguidade e o Renascimento.

Como o conceito de Idade Média exprime, não a consciência da época que consigna,

mas uma consciência posterior e pretendidamente descontinuante, não seria de esperar

que as fronteiras históricas da Idade Média fossem obviamente sugeridas por uma

unidade estrutural da época medieval. Não existe uma unidade estrutural a determinar

os seus próprios limites, pelo que as fronteiras temporais da Idade Média não podem

ser senão convenções artificialmente impostas, variando segundo as distintas

orientações historiográficas que procuram justificá-las.

Entre os marcos convencionais, que se admitem na discussão sobre o início da

Idade Média, contam-se os seguintes: o édito de Milão, promulgado em 313, que

favoreceu decisivamente a implantação e a expansão do cristianismo no império

romano; ou a invasão de Roma por Alarico, em 410, que prenuncia dramaticamente o

fim do império, constituindo o trauma civilizacional que motiva a escrita de De

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Civitate Dei, por Agostinho de Hipona; ou a queda do império romano do Ocidente,

em 476, que vem sancionar o fim da antiga civilização romana, e que é, por isso, a

data mais frequentemente usada para marcar o início da Idade Média. Entre os

marcos, que se aventam para o fim, destacam-se os seguintes: em correlação com a

queda do império romano do Ocidente, a queda do império romano do Oriente, com a

tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, a data também mais habitualmente

referida para marcar o fim da Idade Média; ou o início da Reforma protestante, em

1517, um marco da história do cristianismo ocidental; ou, ainda, eventos que estão na

origem de grandes mudanças civilizacionais, como a invenção da imprensa, em 1443.

Por arredondamento, a Idade Média ficou a abarcar a história de dez séculos, entre

500 e 1500.

Idade Média e Renascimento: a correlaçãoTendo tido origem na cultura do Renascimento, o conceito de Idade Média

torna-se o reverso do conceito de Renascimento, não se compreendendo um senão

relativamente ao outro. O elogio da cultura do Renascimento tornou-se correlativo do

menosprezo da cultura da Idade Média.

Assim acontece com Jacob Burckhardt, cuja obra, Die Cultur der Renaissance in

Italien, Basileia, 18604, é uma referência incontornável da historiografia europeia

para o estudo da cultura do Renascimento italiano, e para a exaltação dos seus

valores, como a recuperação dos modelos da Antiguidade, a descoberta do homem e a

afirmação do indivíduo, a descoberta do mundo e o centramento da natureza.

No entanto, a perspectiva unilateral de Burckhardt estava destinada a suscitar

reacções. Johan Nordström foi um dos historiadores que mais incisiva e

decisivamente reagiu à tese de Burckhardt, fazendo recuar o próprio conceito de

Renascimento a épocas de florescimento cultural da Idade Média e às regiões

transalpinas5. A extensão do conceito de Renascimento à Idade Média é, assim, o

início da reabilitação desta. Vítima do Renascimento, a Idade Média começa a ser

recuperada à luz da própria ideia de Renascimento.

W. K. Ferguson, através da sua obra The Renaissance in Historical Thought,

Boston, 1948, que é um estudo de análise histórica do conceito de Renascimento,

4A Civilização da Renascença Italiana, trad. A. Borges Coelho, Lisboa, sd..5 Moyen Âge et Renaissance, trad. T. Hammar, Paris, 1933.

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sublinha a correlação entre os conceitos de Idade Média e de Renascimento,

correlação fora da qual nenhum dos conceitos pode ser devidamente compreendido.

A correlação entre Idade Média e Renascimento só pode, no entanto, ser nefasta

para a Idade Média. Por um lado, na ordem dos termos correlativos, cumpre à Idade

Média ser o termo menor. Por outro lado, não são as características próprias da

cultura anterior ao Renascimento, que determinam prioritariamente o conceito de

Idade Média, mas sim a negação das propriedades específicas do Renascimento.

Mesmo a extensão da ideia de renascimento à Idade Média não permite valorizar esta

senão mediante as propriedades específicas do Renascimento, como seja o retorno à

Antiguidade, aspecto que não faz sobressair a especificidade da cultura da Idade

Média, ou a sua novidade relativamente à Idade Antiga. Essa extensão tornou-se, no

entanto, uma via muito corrente de recuperação do valor cultural da Idade Média.

1.4. Os Renascimentos medievais

A conotação pejorativa da Idade Média, que se propagou por via do ensino e se

impregnou profundamente no senso comum e nos hábitos de linguagem até aos

nossos dias, não deixou porém de desencadear, entre os especialistas, a necessidade

de repor algum equilíbrio na visão do passado. Um dos caminhos mais trilhados neste

sentido tem sido, de facto, a extensão à Idade Média do próprio conceito de

Renascimento, uma vez que o prestígio da Antiguidade clássica nunca deixou de estar

presente ao longo da história da cultura medieval. Tornou-se, por isso, usual e já banal

falar de Renascimentos medievais, a respeito de períodos de maior florescimento

cultural durante a Idade Média, como o Renascimento carolíngio do séc. IX e o

Renascimento do séc. XII. A consideração destes Renascimentos tem, entretanto, a

vantagem de nos oferecer uma perspectiva panorâmica, ou uma visão sinóptica, de

grandes fases e de momentos principais do desenvolvimento da cultura medieval.

O Renascimento carolíngioO Renascimento carolíngio dos sécs. VIII-IX, como o nome indica, deve-se

especialmente à acção de dois homens, ao próprio Carlos Magno e ao seu conselheiro

Alcuíno, chamado este por aquele a organizar os estudos no reino, que se faziam

então, sobretudo, em ambiente monástico. Destaca-se, no entanto, a criação da escola

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palatina (escola do palácio) para instrução dos nobres, que eram então rudes e

iletrados.

A reforma de Alcuíno visa institucionalizar uma cultura cristã, segundo o

programa há muito delineado por Santo Agostinho, em De doctrina christiana. Esta

obra modelar recomendava a integração do estudo das artes liberais na formação do

cristão, por exigência, sobretudo, da compreensão das Escrituras. Em consonância

com a recomendação de Agostinho, ressalta, na consciência da cultura da época

carolíngia, um sentimento de integração do legado antigo na nova sabedoria cristã. O

cristianismo não entra em litígio com esse legado, mas excede-o, pelo que constitui

um acréscimo na continuidade. O Renascimento carolíngio comporta, de facto, uma

consciência muito mais de progresso na continuidade, do que, propriamente, de

renascimento.

Tal é o que se manifesta em conceitos nascidos na época, como o de translatio

imperii, o de translatio studiorum, ou os de Velha Atenas e de Nova Atenas: a

translatio imperii significava a continuação do poder imperial de Roma antiga,

através da sua deslocação espácio-temporal para os Francos; a translatio studiorum

significava a continuação da sabedoria antiga de Atenas, através da sua deslocação

espácio-temporal de Atenas para Roma, e de Roma para Paris; a Velha Atenas era o

centro da sabedoria antiga, incluindo o legado das sete artes liberais; a Nova Atenas

era o novo centro da sabedoria, integrando a sabedoria antiga, portadora das sete artes

liberais, com a sabedoria cristã, portadora dos sete dons do Espírito Santo. Assim,

para além de uma integração do antigo na actualidade da época, sob uma consciência

de continuidade, caracteriza-se, o Renascimento carolíngio, por um sentimento de

harmonia entre o mundano e o religioso, o humano e o divino, o secular e o espiritual.

Tal é o que se patenteia também na organização geral do saber segundo Alcuíno.

O saber, na sua mais larga e abrangente acepção, identificava-se com a filosofia, e

esta dividia-se em contemplativa (inspectiva) e activa (actualis). A filosofia

contemplativa coincidia com a teologia, e cuidava da contemplação ou da perfeição

da vida espiritual. A filosofia activa, por seu turno, integrava o legado antigo das sete

artes liberais, e cuidava da vida activa no mundo. Esta divisão principal da filosofia,

segundo Alcuíno, constitui um eco e uma interpretação da distinção augustiniana

entre sabedoria (sapientia), ou inteligência contemplativa do eterno, e ciência

(scientia), ou saber do mundo temporal, necessário à vida activa.

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Ao nível da filosofia, destaca-se uma figura já da segunda geração do

Renascimento carolíngio, João Escoto Eriúgena, autor de De divisione naturae e

tradutor do Corpus Areopagyticum. Na sua filosofia, destaca-se a elaboração de uma

noção universalíssima de natureza, que antecipa o conceito medieval de

transcendental (séc. XIV) e o conceito moderno de ontologia (séc.XVII). Com efeito,

a sua divisão da natureza sistematiza a diversidade pensável dos entes: a natureza que

cria e não é criada é aquela que convém a Deus, como princípio criador; a natureza

que é criada e cria é aquela que compete às ideias divinas exemplares; a natureza que

é criada e não cria é, por sua vez, aquela que cabe a todos os entes materiais e

espirituais; resta a natureza que não cria nem é criada, que é a parte mais enigmática

desta divisão da natureza, e que, ou se aplica a coisas impossíveis, como o próprio

filósofo começa por sugerir, ou se aplica a Deus, enquanto fim, de acordo com uma

linha interpretativa neoplatonizante, corrente na tradição historiográfica. Na verdade,

através da sua obra, de tradução inclusive, João Escoto Eriúgena é um dos grandes

elos da influência do neoplatonismo na filosofia medieval.

O Renascimento do séc. XIIEntre os Renascimentos medievais, o Renascimento do séc. XII é o mais

importante, e aquele que tem repercussões mais duradouras na história da cultura

ocidental. O séc. XII assiste ao desenvolvimento das cidades e, consequentemente, ao

florescimento da cultura urbana. Crescendo as escolas junto dos centros urbanos,

muitas delas tendem a associar-se em corporações de ofício (o estudo), ao longo dos

sécs. XII e XIII, dando origem às Universidades. O Renascimento do séc. XII é,

assim, o tempo do nascimento das Universidades na Europa.

Entre as escolas do séc. XII, que antecedem a formação das Universidades, duas

se destacam, exprimindo tendências significativas e opostas de pensamento, numa

época particularmente plural: uma é a escola da catedral de Chartres, representativa

de uma tendência naturalista; a outra é a escola da abadia de S. Vítor, sediada nos

arredores de Paris, e representativa de uma tendência mística. Bernardo de Chartres é

o mais ilustre dos mestres chartrenses, cuja notícia se perpetuou, não graças a um

legado escrito, que, a ter existido, não chegou até nós, mas pela marca que deixou nos

seus discípulos, nomeadamente, em João de Salisbúria, que registou as suas célebres

máximas (cuja menção será oportunamente feita mais abaixo). A escola de Chartres

ficou filosoficamente associada a um renascimento, o do Timeu, de Platão, inspirando

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então uma filosofia naturalista da criação, segundo a qual a criação é,

fundamentalmente, a instauração de uma ordem natural, regida por leis matemáticas,

como sugere o diálogo platónico, com a sua geometria do mundo. Incluída nesta

tendência naturalista, renasce a concepção antiga do homem, como uma organização

natural similar à do mundo, como um microcosmo por analogia com o macrocosmo.

Em contraposição ao naturalismo chartrense, costuma apresentar-se a tendência

mística da escola de S. Vítor. Nesta, distinguiram-se Ricardo e Hugo de S. Vítor: o

primeiro, pela reflexão desenvolvida acerca do caminho e da natureza da

contemplação; o segundo, pela reflexão pedagógica e epistemológica sobre a relação

entre a filosofia (artes liberais) e a teologia (exegese bíblica), antecipando a

ordenação escolástica da filosofia à teologia.

O séc. XII, para além de ser um século plural, é um século de tensões e de

antagonismos, como aquele que opôs entre si duas das suas mais ilustres figuras:

Abelardo e Bernardo de Claraval. Abelardo era um mestre itinerante e mundano, um

dialéctico brilhante, cujo estilo argumentativo prenuncia o género de exposição da

questão escolástica. Na sua atribulada história pessoal, Abelardo ficou ligado a Eloísa,

por um amor contrariado pela sociedade de então. Por seu turno, Bernardo de Claraval

era um espiritual e um místico, que ficou conhecido não só pela hostilidade contra

Abelardo, em especial contra a sua prática de abuso da lógica em matéria de teologia,

como, sobretudo, por ter protagonizado uma das reformas religiosas mais importantes

do século, a reforma cisterciense da ordem beneditina.

Na verdade, o séc. XII é também um século caracterizado pelos movimentos de

renovação religiosa, que rejeitam o enriquecimento eclesiástico e fazem renascer o

valor evangélico da pobreza, ou seja, o despojamento material e espiritual, que liberta

e dispõe para a relação com Deus. Neste contexto, para além da reforma de Cister,

que comporta uma admirável expressão estética de sobriedade ornamental ao nível da

arquitectura monástica, cabe salientar as ordens mendicantes, como a franciscana e a

dominicana, cuja mendicância significava a recusa de toda a acumulação de bens e o

cuidado apenas com o sustento diário. A estas ordens viriam a pertencer figuras

eminentes da filosofia dos dois séculos seguintes: Tomás de Aquino foi dominicano, e

franciscanos, foram Boaventura, João Duns Escoto e Guilherme de Ockham.

No âmbito da diversidade e dos contrastes que o configuram, o séc. XII é um

século de figuras singulares, como Joaquim de Flora e Hildegarda de Bingen. Aquele

foi um abade cisterciense do mosteiro de S. João de Flora, cujo pensamento

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filosófico-teológico ficou associado à divisão da história humana em três idades, a do

Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. Aplicando à história da humanidade o modelo

divino da Trindade, Joaquim de Flora procurou compreendê-la como uma

manifestação progressiva de Deus. Hildegarda de Bingen, por sua vez, foi uma das

mulheres mais sábias e criativas do seu tempo, como indica a abrangência da sua

obra, que revela interesse quer pelas ciências naturais quer pela composição musical.

Do ponto de vista filosófico, cabe sublinhar a sua fama de visionária, pois foi a

experiência reiterada e não intencionada das suas visões, que a conduziu a

descrevê-las por escrito e a interpretá-las simbolicamente, no que a abadessa

beneditina revela notável preparação e apuro teológicos.

Mas, para além de ser um século de movimentos de renovação e de personalidades

eminentes, o séc. XII foi um século de preparação e antecipação da fase de apogeu, o

séc. XIII. É já no séc. XII que começa o renascimento de Aristóteles, isto é, o

aparecimento nas bibliotecas europeias de obras até então desconhecidas do

Estagirita, por vias que os historiadores continuam a tentar esclarecer. Até ao séc. XII,

Aristóteles marcava já presença na instrução basilar dos medievais, através da lógica,

em especial, mediante os dois primeiros livros do Organon, Categorias e Da

Interpretação, e os comentários de Boécio. Mas as restantes obras aristotélicas, nos

domínios da física, da metafísica, da ética e da política, começavam, então, a surgir

como uma novidade, que viria a afectar profundamente a mundividência dos filósofos

dos séculos seguintes. Aristóteles não tardou a exercer um enorme fascínio entre os

seus leitores e a tornar-se um autor suspeito para as autoridades eclesiásticas, pois a

sua mundividência era, em múltiplos aspectos, incompatível com a mundividência

bíblica, que fora filosoficamente elaborada pelos primeiros teólogos do cristianismo,

cuja autoridade e influência lhes grangiaram a designação de Patres.

A herança dos Patres, ou da Patrística, foi também sintetizada no séc. XII, em

colecções de sentenças, ou citações da Bíblia e dos Patres, entre as quais a mais

célebre é a dos quatro livros de Sentenças, de Pedro Lombardo. Esta obra merece

especial menção, pois ela viria a a ser adoptada como manual universitário de teologia

ao longo dos séculos seguintes, de modo que comentá-la se tornaria trabalho escolar

obrigatório na formação dos teólogos. Este facto marcou decisivamente a evolução da

teologia do cristianismo, que era sobretudo exegética até ao séc. XII, e que tendia

então a ganhar certa autonomia relativamente aos textos sagrados, e a constituir-se

como ciência especulativa.

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A EscolásticaO séc. XIII, por sua vez, é o século florescente das escolas universitárias, nascidas

já durante o séc. XII. É esta cultura universitária que recebeu a designação de

«Escolástica». Não obstante o descrédito em que foi caindo ao longo dos séculos, a

Escolástica foi, durante o séc. XIII, fértil no debate de ideias e no progresso interno

dos saberes. São expressão disso mesmo: quer a produção de sumas, isto é, de sínteses

didácticas das disciplinas, no âmbito das quais os autores acrescentavam novos

conteúdos aos legados pela tradição; quer a forma de reflexão e de exposição, que deu

origem a um novo género literário, a questão (quaestio), na qual são sempre

consideradas e argumentadas, duas posições opostas, entre as quais o autor, enquanto

mestre universitário, é chamado a decidir-se. A obra talvez mais célebre, na tradição

filosófica, como expressão da escolástica medieval, no seu período áureo, é a Suma de

Teologia (Summa Theologiae), de Tomás de Aquino: uma suma planificada de

questões, em matérias de filosofia e de teologia.

A filosofia era, então, uma sabedoria muito abrangente, que incluía os saberes

específicos (as artes liberais) e os conteúdos teológicos acessíveis à razão natural. A

filosofia tinha, então, também uma língua técnica própria, o latim escolástico, cujo

vocabulário conceptual fora constituído, em grande medida, com base na filosofia

aristotélica. Na verdade, o renascimento de Aristóteles era, então, já irreversível e

avassalador. Aristóteles era, então, não um filósofo, não um autor ou sequer uma

autoridade do passado, mas sim «o Filósofo», isto é, a voz directa da razão. A

filosofia do séc. XIII já não se compreende sem a influência decisiva de Aristóteles.

As questões filosóficas mais controversas do séc. XIII, tais como as questões da

unidade do intelecto e da eternidade do mundo, são expressão do conflito aberto entre

a mundividência de Aristóteles, mediada pela tradição dos seus intérpretes, árabes

inclusive, como Averróis, «o Comentador», e a mundivência tradicional do

cristianismo, elaborada desde a Patrística. Deste modo, a Escolástica, marcada pelo

renascimento de Aristóteles, caracteriza-se por intensos focos de tensão e de

antagonismo entre razão e fé, sobretudo, entre a filosofia aristotélica e a teologia

cristã.

Após o seu apogeu, a cultura escolástica não teve morte súbita. Pelo contrário,

perdurou longamente, através de outras fases, porventura menos brilhantes e por certo

mais imputáveis do descrédito em que acabou por cair. A Escolástica não é medieval

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senão porque nasce e floresce dentro dos limites temporais da convencionada Idade

Média. Tal é o que nos permite reconhecer, um breve relance pela periodização da

história da Escolástica: o período pré-escolástico e da Escolástica primitiva (sécs. XI

e XII) é a época dos precursores, quer sejam personalidades, como Anselmo e

Abelardo, quer sejam escolas, como a de Chartres e a de S. Vítor; o período de

apogeu (séc. XIII), é marcado por Universidades de referência, como a de Oxford e a

de Paris, às quais, de um modo ou de outro, ficaram ligados os percursos académicos

dos principais filósofos escolásticos, como Tomás de Aquino e Boaventura, ou

Rogério Bacon e João Duns Escoto; o período da Escolástica tardia (séc. XIV) é uma

época de transição para a modernidade, na qual sobressai, como filósofo, Guilherme

de Ockham; o período da segunda Escolástica é já uma época pós-medieval da

Escolástica (sécs. XVI-XVII), que se caracteriza filosoficamente pelas grandes

sínteses do aristotelismo escolástico, como ilustram as obras de Francisco Suárez e

dos Conimbricenses; por último, o período neo-escolástico (sécs. XIX-XX)

corresponde a um movimento de revivificação, ou, se preferirmos, de renascimento,

da Escolástica medieval, ou seja, da parte melhor e mais criativa da história da

Escolástica, como ilustram os nomes que integram este movimento – Martin

Grabman, Étienne Gilson, Paul Vignaux, Ferdinand Van Steenberghen, entre outros –

que se distinguiram também como grandes medievalistas.

A consciência de modernidadeMais vivo do que o sentido de renascimento, é, na própria cultura medieval, a

consciência de modernidade. Na verdade, os autores medievais não se tomavam por

medievais, mas por modernos, acusando um sentido de modernidade, que podemos

apreender através de alguns sinais.

Entre esses sinais, figuram alguns ditos do famoso mestre chartrense, Bernardo de

Chartres. Um discípulo, João de Salisbúria, refere-se a Bernardo, como «a fonte mais

generosa das Letras nos tempos modernos» e regista, no seu Metalogicon, o seguinte

dito do mestre: «Nós somos como anões sentados nos ombros de gigantes. Nós

vemos, portanto, mais coisas e mais longe do que os antigos, não devido à penetração

da nossa própria vista ou devido à nossa altura, mas porque eles nos elevam e nos

fazem superar a sua altura gigantesca.»6. Não obstante a dimensão gigantesca dos

6 Ditos reproduzidos por É. Gilson, em La philosophie au moyen âge. Des origines patristiques à la findu XIVe siècle. 2ª ed. rev. e aum., Paris, Payot, 1986, pp.259-261.

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antigos, ela não anula, antes sustenta um sentido positivo de modernidade,

simbolicamente consignado através do aumento do alcance da visão, em conteúdo e

horizonte. Moderno é o acréscimo de conhecimento que a cultura contemporânea

aduz ao legado antigo; moderno é, portanto, o que se acrescenta ou junta ao antigo,

não o que o põe em causa e o supera, eliminando-o. O sentido medieval de

modernidade é, assim, um sentido não anulador, mas integrador do legado da

antiguidade.

Outro sinal de uma consciência de modernidade na cultura medieval, é a

composição dos saberes no séc. XIII, como ilustra, em especial, a composição da

lógica: em lógica velha (logica vetus, ou ars vetus), que era constituída pelos livros

Categorias e Da Interpretação, de Aristóteles, pelo Isagoge, de Porfírio, e pelos

escritos lógicos de Boécio; em lógica nova (logica nova), que incluía os livros

restantes do Organon, de Aristóteles (Primeiros e Segundos Analíticos, Tópicos e

Refutações sofísticas); e em lógica moderna ou dos modernos (logica moderna, ou

modernorum) lógica terminista, ou dos termos, que versa sobre as propriedades dos

termos, tais como a suposição (suppositio) e a apelação (appellatio), que são

propriedades semânticas, ou a ampliação (ampliatio) e a restrição (restrictio), que

correspondem actualmente a operadores de quantificação. O conjunto formado pela

lógica velha e pela lógica nova constituía a lógica antiga (logica antiqua ou

antiquorum). «Velha» (vetus) é a herança da lógica aristotélica ininterruptamente

conhecida ao longo da Idade Média. «Nova» (nova) é a herança da lógica aristotélica,

desconhecida durante a Alta Idade Média, e redescoberta durante o renascimento de

Aristóteles, nos sécs. XII e XIII. A lógica nova é tão antiga como a velha, perfazendo

ambas a lógica antiga. A lógica nova só é nova devido à circunstância da sua então

recente redescoberta. A novidade é aqui de ordem circunstancial e exterior à matéria

da disciplina. «Moderna» (moderna) é a nova aquisição das teorias terministas, o

contributo dos lógicos medievais para a disciplina. A modernidade é aqui a novidade

substancial desse contributo, que constitui uma parte integrante da disciplina,

acrescentada ao legado antigo. A lógica ilustra, deste modo, uma clara consciência de

modernidade nos autores medievais, aplicada aos conteúdos novos por eles

acrescentados no âmbito da disciplina.

Mais uma vez, não se trata de uma modernidade que obrigue a alguma ruptura

com o passado; trata-se de uma modernidade integradora de um renascimento dos

modelos clássicos. A modernidade significa uma diferença acrescentada e assumida

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em continuidade com o legado clássico. Deste modo, a consciência de modernidade,

na cultura medieval, não só não preconiza um corte de relação com a tradição, como

se afirma explicitamente dentro dessa relação.

Sugestões bibliográficas: – E. Gilson, La philosophie au moyen âge. Des origines

patristiques à la fin du XIVe siècle, 1922 (1ª ed.) e 1944 (2ª ed. rev. e aum.). – G.

Paré, A. Brunet e P. Tremblay, La Renaissance du XIIe siècle. Les écoles et

l’enseignement, Paris-Otava, 1933. – P. Vignaux, La pensée au moyen âge, Paris,

Librairie Armand Colin, 1938. – Ch. Brooke, The Twelfth Century Renaissance,

Londres, 1969. – L.M. De Rijk, Logica Modernorum. A Contribution to the History of

Early Terminist Logic, vol.I, Assen, 1962. – Idem, La philosophie au moyen âge, trad.

de P. Swiggers, Leiden, 1985.

1.5. A questão da periodização da história da filosofia

Uma vez que não foram os autores medievais que se classificaram a si próprios

como tais, ainda por cima com a conotação pejorativa que o atributo «medieval»

comportava desde a sua origem renascentista, importa agora saber como é que este

atributo se estendeu à classificação de um período da história da filosofia. Como

vimos, o qualificativo desqualificante de «medieval» não provém da filosofia, nem da

sua história, é-lhe imposto de fora. Foi uma importação da história ou, melhor, da

didáctica da história, para a história da filosofia. Ainda que não reveladora acerca do

conteúdo da própria filosofia medieval, esta importação tornou-se irreversível,

sobretudo, na medida em que foi ratificada pela filosofia da história da filosofia,

através de uma das suas incontornáveis referências: Hegel.

Hegel e a periodização da história da filosofiaHegel aplicou, de facto, à história da filosofia a divisão tripartida da história

segundo Keller. Essa aplicação estabeleceu a divisão tripartida da história da filosofia,

em Antiguidade, Idade Média e Modernidade, não valorizando a Idade Média

filosófica senão de forma modesta e instrumental, como preparação da filosofia

moderna. A este respeito, cabe aqui a análise de um trecho da Introdução às Lições

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sobre História da Filosofia (1816-1817), relativo à periodização da história da

filosofia ocidental:

«[128] Nós temos, portanto, por grosso, duas filosofias: a grega e a germânica.Nesta última, temos ainda de diferenciar o tempo em que a filosofia compareceuformalmente como filosofia, e o período da formação [Bildung] e preparação para ostempos modernos.

Podemos começar a filosofia germânica só no momento em que aparece comofilosofia em forma peculiar. Entre o primeiro período e os tempos modernos fica operíodo médio daquele fermentar de uma nova filosofia que, por um lado, se atém àessência substancial, não atinge a forma, [e], por outro lado, aperfeiçoa o pensamentocomo mera forma de uma verdade pressuposta até que se reconhece de novo comofundamento livre e fonte da verdade.

A História da Filosofia decompõe-se, portanto, nos três períodos: da filosofiagrega, da filosofia do tempo intermédio e da filosofia dos tempos modernos; em que aprimeira é determinada pelo pensamento, em geral; a segunda se decompõe naessência e na reflexão formal, e em que, na terceira, é, porém, o conceito que está nabase. Isto não é de entender como se a primeira só contivesse pensamento; ela contémtambém conceitos e Ideias, assim como a última começa por pensamentos abstractos,mas pelo dualismo.

Primeiro período: dos tempos de Tales (aproximadamente, 600 antes de Cristo)até à filosofia neoplatónica (Plotino, no século terceiro) e a sua ulterior continuação eaperfeiçoamento (por Proclo, no século quinto), até {132} que toda a filosofia seapaga (esta filosofia entrou mais tarde para dentro do cristianismo; muitas filosofiasno interior do cristianismo têm a filosofia neoplatónica por base) – um espaço detempo de cerca de 1000 anos, cujo termo [Ende] coincide com as emigrações depovos e a decadência do Império Romano.

{129} Segundo período: o da Idade Média; a ele pertencem os escolásticos,historicamente, são também de mencionar os árabes e os judeus; mas esta filosofia caiprincipalmente no interior da Igreja cristã – um espaço de tempo de algo mais de 1000anos.

Terceiro período: a filosofia dos tempos modernos, sobressaliente para si apenasdesde a Guerra dos Trinta Anos, com Bacon, Jacob Böhme e Descartes (este começacom a diferença: cogito ergo sum) – um espaço de tempo de um par de séculos; estafilosofia é, assim, ainda algo de novo.»7

Encontra-se aqui uma valorização, ainda que modesta, da filosofia medieval, na

medida em que esta nem é um desvio, nem se opõe ao progresso, antes prepara a

modernidade. Trata-se, no entanto, de uma valorização apenas instrumental, na

medida em que a filosofia medieval vale só como preparação da filosofia germânica.

Filosofias por excelência são a filosofia grega e a filosofia germânica. A filosofia

medieval não é senão um prelúdio da segunda.

7 Tradução, introdução e notas de José Barata-Moura, Porto, 1995, pp.167-169.

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Pertinente é decerto a menção de Plotino e da sua influência nas filosofias

interiores ao cristianismo, bem como a menção de filosofias, no plural, interiores ao

cristianismo. Também é pertinentemente considerada a diversidade do segundo

período, o medieval, contemplando árabes e judeus, para além dos escolásticos. Não

se conjuga, porém, a extensão de 1000 anos do período medieval, com a redução, pelo

menos aparente, da filosofia medieval aos escolásticos, que não surgem senão numa

fase já avançada desse extenso período.

Quanto à caracterização filosófica do período médio da história da filosofia, ela

não se compreende senão a partir do ponto de vista da própria filosofia de Hegel. A

esta luz, a filosofia medieval não é ainda uma expressão plena e madura do que seja a

filosofia, não ainda de comparência formal, ou «em forma peculiar», antes

corresponde a um período de formação da filosofia germânica, portanto, a um período

formalmente pré-filosófico. Aquilo que, sobretudo, limita a filosofia medieval,

tornando-a hegelianamente pré-filosófica, é um dualismo, o da verdade e do

pensamento, visto ser um período que «se atém à essência substancial, não atinge a

forma», que «aperfeiçoa o pensamento como mera forma de uma verdade

pressuposta», que «se decompõe na essência e na reflexão formal», pelo que «a

filosofia dos tempos modernos» «começa por pensamentos abstractos, mas pelo

dualismo».

Haverá fundamento, na filosofia medieval, para esta caracterização hegeliana da

filosofia medieval medieval relativamente à relação entre verdade e pensamento? Um

medievalista deve sublinhar a diversidade de acepções de verdade na filosofia

medieval, como ilustra, por exemplo, a diferença entre Anselmo e Tomás de Aquino,

a esse respeito: para o filósofo pré-escolástico, a verdade é a adequação de cada coisa

à sua finalidade, e tal é a sua rectitude estritamente inteligível; para o eminente

filósofo escolástico, a verdade é a adequação entre o intelecto e a realidade, e tal é,

sobretudo, uma qualidade do conhecimento. É claro que distintas acepções de verdade

implicam diferentes modos de relação com o pensamento, que não excluem formas

não hegelianas de relativização do dualismo da verdade e do pensamento.

Entretanto, a caracterização filosófica do período medieval da história da filosofia,

segundo Hegel, obviamente modelada pelo seu próprio sistema filosófico, ilustra de

forma paradigmática como uma filosofia se reflecte na concepção da história da

filosofia ou na relação com as outras filosofias. Uma filosofia da história da filosofia

não pode ser filosoficamente neutra.

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Fazer história da filosofiaSegundo Joaquim Cerqueira Gonçalves É, como um exercício filosófico, que aprendemos o sentido de fazer história da

filosofia, com Joaquim Cerqueira Gonçalves, nosso mestre de história da filosofia

medieval. Como exercício filosófico, fazer história da filosofia não pode confinar-se a

um estudo da cronologia dos autores e das épocas em que se inserem, antes relativiza

o critério da cronologia histórica e obriga ao discernimento de outros critérios,

nomeadamente filosóficos, de organização das filosofias. Este sentido filosoficamente

activo de fazer história da filosofia não deixa de se justificar a partir de orientações

filosóficas fundamentais, como sejam as que se exprimem em afirmar a

irrecusabilidade do tempo, a incontornabilidade da memória, a inseparabilidade do

passado, o anti-necessitarismo na compreensão da história, bem como a

temporalidade, a organicidade e a historicidade da razão. Destas posições filosóficas

determinantes dão testemunho as seguintes considerações interpelativas, coligidas em

«Ditos Filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves»8:

O tempo é irrecusável: «Tudo passa, só o tempo é que não pode ser ultrapassado,embora tudo tenda para a simultaneidade.» FM 82/83; «Há um cogito talvez muitomais importante do que todos os outros, que é o cogito do tempo.» FM 85/86

O tempo para além do presente: «O passado e o futuro constituem aimpossibilidade de reduzir a conceito, a realidade; esta tem passado e tem futuro, istoé, tem margens conceptualmente irredutíveis.» FM 82/83

A memória para além do passado: «A memória é um presente sem contornos, umarealidade total e viva» FM 78/79; «O mundo da humanidade é a sua memória. Nestesentido, a memória é mais do que psicológica, mais do que objectiva, é ontológica.»FM 82/83; «Não há realidade sem memória.» FM 86/87

O passado é algo a integrar, não a segregar: «Só há passado para quem não écapaz de viver o presente.» FM 78/79; «O passado não existe; existe a tradição e atradição é o mundo.» FM 83/84; «O passado não existe; aquilo que existe é umatradição viva.» FM 98/99; «Faz parte da complexidade do homem, ser uma realidadecom passado.» FM 87/88; «Importa construir o futuro, assente nas raízes do passado.»FM 87/88; «O mundo do passado esclarece-se melhor no futuro. A actualidade não écritério de valor.» FM 86/87

A história não é redutível a uma dialéctica necessitarista: «A história não édialéctica.» FM 82/83; «A historicidade não é limitada por alguma estrutura dialécticaporque é um processo criador.» FM 82/83; «Há que encontrar um modelo decompreensão da história, segundo o qual possamos compreender que dois dados estãorelacionados entre si, sem que um deles derive necessariamente do outro.» FM 83/84

8 In Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Lisboa, Colibri, 2001,pp.76-80.

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A razão não se faz sem tempo: «Nós pensamos como se …, porque pensamos numprocesso e o processo ultrapassa-nos.» FM 82/83; «A razão não existe, faz-se.» FM87/88; «Nós pensamos aquilo que tem hipótese de futuro.» FM 98/99

A razão não é substância, é organização: «A razão não é substantivo, masadjectivo: a realidade é que é racional; a razão não existe.» FM 86/87; «Razão implicaorganização, coerência entre as partes; o que é racional, não é avulso.» FM 86/87; «Arazão é um processo que se vai organizando na relação das razões finitas.» FM 86/87;«As coisas são racionais, quando estão relacionadas umas com as outras.» FM 86/87;«O conhecimento é a procura da mediação entre as coisas que não estãoimediatamente articuladas.» FM 98/99

A razão é histórica: «A razão é englobante e histórica.» FM 86/87; «A ideia deprogresso é outra característica inerente da razão, embora o progresso da razão nãoseja linear, estando sujeito a regressões.» FM 86/87; «A razão constrói-se.» FM86/87; «A razão é histórica, não pode quedar-se em alguma das suas expressões.» FM87/88

Donde se segue a admissão da historicidade e da temporalidade da filosofia, a

relativização da história cronológica da filosofia e o equacionamento dos critérios de

organização de uma história não cronológica da filosofia, como sobressai nas

seguintes considerações9:

A questão do reconhecimento da historicidade da filosofia: «Por que é que não sediscutiu durante tanto tempo o problema da historicidade da filosofia? Por causa doprestígio da filosofia grega, aliás pouco sensível à história.» FM 86/87; «Sem avivência do tempo, da nossa unidade e da nossa diferença, não entendemos a históriada filosofia, nem nos apercebemos de que a filosofia é estruturalmente histórica.» FM98/99

A filosofia tem o seu próprio tempo: «A filosofia cria o seu próprio tempo, a suaprópria história.» FM 78/79; «Fazer história da filosofia é criar um tempo filosófico»FM 82/83; «Fazer filosofia é criar tempo, é encontrar o passado e apontar para ofuturo.» FM 98/99

A história cronológica da filosofia não é a história do tempo próprio da filosofia:«Uma história cronológica da filosofia pode ter uma configuração completamentediferente de uma história em que a filosofia cria o seu próprio tempo.» FM 78/79; «Aserieção cronológica dos filósofos não corresponde, não coincide com as respectivasinter-influências.» FM 82/83; «Em filosofia, não há anacronismo.» FM 98/99

Em questão, os critérios de organização para uma história não cronológica dafilosofia: «Em filosofia, é discutível o modelo heideggeriano de progresso, segundo oqual o progresso está no desvelamento do ser encoberto pela ciência; é talvezpreferível o critério da grandeza do mundo construído pelo filósofo: quanto maior é omundo tanto mais progressivo ele é.» FM 83/84

Exemplos: «O mundo de Parménides é muito mais excessivo do que o de muitosfilósofos contemporâneos; estes passam depressa.» FM 83/84; «Por ser uma época deexcesso, a Idade Média estava fadada para ser uma época de interpelação.» FM 86/87

9 Ibidem, pp.81-82.

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Retenhamos esta consideração da Idade Média, quanto à filosofia, como «uma

época de excesso». Como interpretá-la?

Por um lado, por contraste com a antiga filosofia grega, enquanto esta prezava a

medida, o equilíbrio, a forma e o finito. Com efeito, Joaquim Cerqueira Gonçalves

apresentava, muitas vezes, a filosofia medieval em contraste com a filosofia antiga,

devido, sobretudo, à influência do cristianismo, que fora capaz de introduzir

novidades filosóficas e de alterar profundamente os valores do pensamento antigo,

admitindo, por exemplo: exceder os limites da separação entre o espírito e a matéria,

através de ideias teológicas, como as de Criação a partir do nada (ex nihilo) e de

Incarnação; ou exceder os limites da natureza física, através da ideia também

teológica de Ressurreição; ou, ainda, descentrar a prioridade ética do equilíbrio e da

justa medida em favor de factores de transgressão e de auto-superação, como a

liberdade e a graça.

Por outro lado, é também possível interpretar a Idade Média, como «uma época de

excesso» na história da filosofia, numa perspectiva de continuidade com a antiguidade

clássica, na medida em que veio a exacerbar tendências de extremação do

pensamento, que se advinhavam já nesta mais ou menos explicitamente. Assim, já os

filósofos antigos souberam pensar temas excessivos, como as origens primordiais e os

fins últimos, o transcendente e o imanente, o mais particular e o mais universal, mas

os filósofos medievais extremaram o pensamento destes temas, quer pela especial

incidência e variações que os mesmos recebem na filosofia da Idade Média, quer pela

capacidade, que esta revela, de extremar o tratamento desses opostos, como, por

exemplo, através da questão da individuação, radicalizando a inquirição sobre o modo

de ser particular, ou, mediante a questão dos universais, ampliando maximamente a

extensão dos maiores universais a uma dimensão supra-genérica ou transcendental, a

ponto de incluir o imanente e o transcendente.

Talvez estas possibilidades não esgotem e até mal se ajustem ao sentido daquela

afirmação do carácter excessivo da época medieval, que convidava à interpretação,

mas assim gostava, Joaquim Cerqueira Gonçalves, de ensinar.

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2. A filosofia e os outros saberes

2.1. A questão da educação do filósofo: revisitação de Platão e Aristóteles

Compreender o lugar da filosofia na cultura medieval é tomá-la, antes de mais,

em relação com os outros saberes. Para este efeito, útil é retomar a questão da

educação do filósofo, que fora explicitamente formulada e tratada pelos filósofos

clássicos Platão e Aristóteles.

Platão e a formação matemática do filósofoPlatão formula expressamente a questão da educação do filósofo (República II,

376 c) e concebe-a em duas fases principais: a primeira constando de ginástica para o

corpo e de música para alma, incluindo esta a literatura poética e mítica tradicional

(Rep. II, 376 e, VII, 521 c – 522 b), mas não sem uma forte crítica selectiva (Rep. II,

377 a – 383 c); a segunda constando de aritmética, geometria e astronomia (Rep. VII,

522 c – 531 d), como disciplinas que promovem a transição do sensível para o

inteligível, do mutável para o imutável, do devir para o ser. Platão privilegia,

portanto, as disciplinas matemáticas na preparação para a contemplação do inteligível

e, desse modo, na educação do filósofo.

No entanto, uma coisa é a educação do filósofo, outra é a filosofia; uma coisa é a

propedêutica da filosofia, constituída pelas disciplinas matemáticas, outra é o próprio

exercício da filosofia, que Platão identifica com a dialéctica, a arte do diálogo que

conduz à intuição daquilo que é (Rep. VII, 531 d – 533 d). Por conseguinte, as

disciplinas matemáticas são propedêuticas, não partes integrantes da filosofia.

Aristóteles e a formação lógica do filósofoAristóteles desenvolve notavelmente a lógica, e dela faz a disciplina propedêutica

da filosofia, e de todo o saber, como indica o título geral da sua obra escrita de lógica:

Organon. A lógica aristotélica divide-se em duas partes principais, a científica e a

dialéctica, em função da natureza das premissas do raciocínio silogístico: o silogismo

que parte de premissas universais e necessárias é o silogismo científico (Segundos

Analíticos); o silogismo que parte de premissas apenas prováveis é o silogismo

dialéctico (Primeiros Analíticos I, 24 a 21 – 24 b 15; Tópicos I).

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A filosofia, ainda que aspire a ser ciência, o saber por excelência, quer como

ciência dos primeiros princípios e das primeiras causas, quer como ciência do ente

enquanto ente, não consegue evitar as aporias, ou as questões difíceis, que são

enunciadas no livro III da Metafísica. Por exemplo, as questões de saber: se há apenas

substâncias sensíveis ou outras para além destas (995b 13-16) ou qual é a natureza do

uno e do ser (996a 5-10). É de questões como estas, que, segundo Aristóteles, tratam

os dialécticos a partir de premissas prováveis (995b 23-25). Resta saber se é possível

tratar de tais questões senão a partir de premissas prováveis. De acordo com o modelo

aristotélico de ciência, a filosofia não pode tornar-se ciência senão incorporando uma

lógica científica. Tendo em conta, porém, o teor das questões filosóficas, como

aquelas que são as aporias do livro III da Metafísica, a filosofia não pode senão

contentar-se com uma lógica dialéctica e renunciar ao ideal do saber perfeito.

Qualquer das prioridades da filosofia aristotélica justifica a sua vocação de

abrangência, de forma a integrar ordenadamente todos os saberes racionais. De facto,

Aristóteles concebe uma divisão geral dos saberes, hierarquicamente organizada, que

viria a marcar forte presença na cultura escolástica medieval. De acordo com essa

divisão, o saber diferencia-se em três níveis principais, por ordem decrescente de

perfeição: o teorético, o prático e o po(i)ético (Tópicos VI, 145 a 15; VIII, 157 a 10;

Metafísica VI, 1025 b 1 – 1026 a 30; Ética Nicomaqueia VI, 1139 a 5 – 1142 a 30).

Este último, o saber po(i)ético, corresponde à techne, que é já um saber de causas,

mas ainda um saber aplicado ao fazer, exercendo-se, portanto, sobre o particular. O

saber prático mantém-se ligado ao particular, uma vez é da ordem da acção, e não

atinge, por isso, o estatuto de ciência universal, aplicando-se quer à acção privada do

indivíduo (prudência), quer ao governo da casa (economia doméstica) quer ao

governo da cidade (política). Superior, na ordem do saber, ao saber prático, é o saber

teorético, que é o saber científico propriamente dito, e que se divide em três níveis,

por ordem decrescente de perfeição: a teologia, a matemática e a física. As disciplinas

matemáticas não são, portanto, disciplinas propedêuticas, mas sim partes integrantes

do saber teorético: elas constituem um nível de saber superior à física, devido a um

maior grau de separação relativamente à matéria. Contudo, dos três níveis do saber

teorético, não é a teologia nem a matemática, mas a física, o conhecimento das

espécies e dos géneros do mundo sensível, e o primeiro nível de apreensão do

universal na ordem do saber teorético, que Aristóteles desenvolve mais

extensivamente nas suas obras.

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2.2. A tradição das artes liberais: um legado helenístico e romano

Tanto as disciplinas matemáticas quanto a lógica vieram posteriormente a integrar

o ciclo das artes liberais, ou seja, a instrução básica e secundária do homem culto. A

concepção desse ciclo não é, porém, única, variando ao longo da sua história, desde a

acepção de enkyklios paideia na cultura helenística, passando pela de artes liberales

na cultura romana, até à constituição do trivium e do quadrivium na cultura medieval.

Esta breve introdução ao estudo das disciplinas liberais ocupa-se da diferenciação das

três principais acepções, que marcam a evolução desse ciclo educativo.

Enkuklios paideia

O ciclo das disciplinas liberais era, para a cultura romana, já um legado da cultura

helenística, no âmbito da qual era conhecido sob a designação de enkyklios paideia (e

outras afins: enkyklia paideumata; enkyklia mathemata). Enkyklios significa

literalmente circular e a expressão enkyklios paideia é a remota origem do conceito

moderno de enciclopédia. Será, então, plausível, assimilar a acepção helenística de

enkyklios paideia ao conceito moderno de enciclopédia? À luz deste conceito, o

qualificativo enkyklios (circular) conota a completude, a totalidade dos saberes

disponíveis numa dada época. Há, porém, outra conotação do mesmo qualificativo,

que se ajusta de forma mais fidedigna ao conceito helenístico de enkyklios paideia e

que é noção de corrente, habitual. Mais de acordo com esta conotação de circular, a

enkyklios paideia era o conjunto de disciplinas que constituía a educação corrente, a

formação geral, e que encontra algum paralelo, no ensino actual, com a formação

secundária.

Artes liberales

Na cultura romana, a enkyklios paideia recebe a designação latina de artes

liberales. Nesta expressão, a noção de artes é permutável com a de disciplinas e é

muito mais afim da acepção aristotélica de techne (nível de saber, acima da

experiência, que já comporta certo conhecimento das causas: cf. Metafísica A, 980 a

21-982 a) do que da nossa acepção actual de arte. O qualificativo de liberais

(liberales), por seu turno, provém de liber (com i longo), que significa livre, e indica a

condição social dos cultores destas artes, ou disciplinas, a condição dos homens

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livres, os cidadãos, por oposição à condição dos escravos, aos quais competiam as

artes mechanicae ou serviles, isto é, as artes do trabalho manual. As expressões

correlativas de «artes liberais» e de «artes mecânicas» conotam ambas, portanto, a

condição social dos respectivos cultores, acusando, o conceito romano de artes

liberais, o carácter elitista destas artes.

O ciclo completo das sete disciplinas liberais ficou definitivamente fixado para a

posteridade, com Terêncio Varrão (116-27 a.C.), nos seus nove livros das Disciplinas

(Disciplinarum libri IX): gramática, dialéctica, retórica, geometria, aritmética,

astronomia e música.

Nos primórdios da Idade Média, Cassiodoro (ca.490-ca.570), fundador do

mosteiro de Vivarium, no sul da Itália, e contemporâneo de Boécio, foi um dos elos

mais importantes na transmissão do legado das disciplinas liberais à cultura medieval,

através do seu livro Das artes ou disciplinas das letras liberais (De artibus ac

disciplinis liberalium litterarum: livro II, in Institutiones theologiae), que se tornou

um livro de uso corrente nas escolas monásticas posteriores. Como o título denuncia,

Cassiodoro reinterpreta o sentido das disciplinas liberais, a partir de liber (com i

breve), que significa livro. As disciplinas liberais passam assim a ser entendidas como

disciplinas do livro, isto é, disciplinas contidas e transmitidas nos livros. O

qualificativo «liberal» perde assim a sua conotação social.

Trivium e Quadrivium

As designações, para as disciplinas liberais, que se tornaram mais frequentes, na

cultura medieval, introduzem uma divisão no ciclo das sete disciplinas e novas

perspectivas epistemológicas: Trivium (séc. IX) e Quadrivium (Boécio); artes

sermonicales e artes reales (desde o séc. XII). O Trivium é o primeiro ciclo

educativo, constituído por gramática, dialéctica e retórica. De acordo com a

designação posterior de artes sermonicales, trata-se do grupo das disciplinas da

linguagem. O Quadrivium é o conjunto das quatro disciplinas matemáticas:

geometria, aritmética, astronomia e música. Como indica a designação de artes

reales, as disciplinas matemáticas eram aplicadas ao conhecimento da ordem do

mundo real, sobretudo, antes do renascimento da física de Aristóteles. Assim,

dividindo a herança das disciplinas liberais em dois ciclos educativos, a cultura

medieval tende a interpretá-los em função de dois principais domínios objectivos de

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aplicação, a linguagem e a realidade, como sugerem as respectivas designações do

séc. XII.

Grandes elos de ligação entre a Antiguidade clássica e a Idade Média, na

transmissão da tradição das artes liberais, foram Varrão e Cassiodoro, tal como

Agostinho e Boécio foram elos incontornáveis de transmissão da tradição da filosofia

grega para a cultura latina medieval.

2.3. Artes liberais e filosofia em Agostinho

A relação entre artes liberais e filosofia é um aspecto significativo não só da

evolução do pensamento de Agostinho (354-430) como da influência por ele exercida

na posteridade. Trata-se, por isso, de um tema da maior pertinência na introdução ao

estudo de Agostinho, como referência de grande influência na cultura medieval.

As artes liberais na formação de AgostinhoPara Agostinho, o ciclo romano das artes liberais era já uma tradição constituída e

foi determinante na sua educação. Das sete disciplinas liberais, a cultura romana

privilegiou e desenvolveu, sobretudo, a gramática e a retórica, a partir das quais as

restantes eram introduzidas. A retórica foi, de facto, a disciplina dominante da

formação de Agostinho; mais do que isso, ela foi o domínio da sua actividade

profissional, enquanto mestre de retórica. No âmbito da retórica, colheu, Agostinho, o

gosto pela filosofia, através de um livro perdido de Cícero, Hortensius, que Agostinho

toma, sobretudo, por uma exortação à filosofia (Confessionum III, 4, 7-8).

As artes liberais ao serviço da filosofiaA filosofia veio a suscitar, em Agostinho, um renovado interesse pelas disciplinas

liberais. Expressão desse interesse, foi o projecto, só parcialmente realizado, de

escrever livros sobre as artes liberais, projecto de que nos dá notícia em

Retractationum I, [6]. De acordo com esta notícia, Agostinho escreveu um livro sobre

a gramática, que ele próprio perdeu, seis livros sobre a música, que chegaram até nós

(De musica), e os começos dos livros sobre as restantes disciplinas, que se perderam,

exceptuando talvez o começo do livro sobre a dialéctica (De Dialectica), cuja

autenticidade é, porém, discutível.

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Cabe, então, perguntar: qual o propósito deste projecto augustiniano sobre as artes

liberais? Segundo Agostinho, no mesmo trecho de Retractationum, o estudo das artes

liberais constituía uma preparação adequada para efectuar a passagem do corpóreo

para o incorpóreo, do sensível para o inteligível. Agostinho dá vários testemunhos

deste propósito: em De Musica VI, o estudo da literatura, da poesia inclusive, conduz

à descoberta de uma ordem numérica inteligível; em De Quantitate Animae (6, 10 –

13, 22), uma digressão sobre a geometria constrói evidência a favor da tese da

imaterialidade da alma; em De Magistro, um exercício gramatical dá ocasião a um

meandroso percurso reflexivo sobre a linguagem e o conhecimento, que culmina com

a tese do Mestre interior, como causa superior do conhecimento inteligível. Deste

modo, o estudo das disciplinas liberais tinha, para Agostinho, um papel análogo

àquele que Platão atribuía às disciplinas matemáticas: eram uma propedêutica de

superação do sensível para a apreensão do inteligível.

Gramática, dialéctica e retórica: artes da razãoÀ luz do mesmo propósito, encarava, Agostinho, todo o ciclo das disciplinas

liberais, tanto as disciplinas matemáticas quanto aquelas que foram mais tarde

agrupadas sob as designações de trivium e de artes sermonicales. Na verdade, não era

como disciplinas do domínio comum da linguagem que Agostinho entendia a

gramática, a dialéctica e a retórica, mas era, sublinhando a legislação racional que as

constitui, que ele preferia tomá-las. A retratação do abuso retórico da linguagem não

permitia a Agostinho uma recuperação do valor das disciplinas da linguagem senão

do ponto de vista da razão. Daí a consideração da gramática, da dialéctica e da

eloquência como as três primeiras criações da razão, em De Ordine (II, 12, 35 – 13,

38); daí a descoberta de regras racionais do uso das palavras, para além das

classificações da gramática tradicional, em De Magistro (5, 11-16; 8, 21-24); daí o

elogio da dialéctica, como a disciplina das disciplinas, a disciplina na qual a razão

compreende a sua própria capacidade (ipsam vim) de gerar uma arte ou disciplina,

considerando os procedimentos construtivos comuns a todas as artes, como definir,

distinguir e coligir, em De Ordine (II, 13, 38); daí a promoção da dialéctica e da

retórica a ciências de instituição divina, De Doctrina christiana (II, 31, 48 – 36, 54).

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A filosofia em alternativa às artes liberaisTendo em conta que Agostinho deixou por concluir o seu projecto sobre as

disciplinas liberais, cabe naturalmente perguntar: por que razão o terá abandonado?

No trecho referido de Retractationum (I, [6]), a filosofia é a última das disciplinas a

ser mencionada, sobre as quais, Agostinho diz ter começado a escrever. A filosofia

aparece assim como mais uma disciplina do mesmo género das outras disciplinas

liberais, o que não é inconsistente com o propósito filosófico que inclinava Agostinho

ao estudo dessas disciplinas; a filosofia poderia bem coroar esse ciclo de estudos.

Entretanto, num dos primeiros escritos filosóficos de Agostinho, De Ordine, onde

o autor narra a génese racional de todo o ciclo das disciplinas liberais (II, 12, 35 – 16,

44), a relação entre estas e a filosofia revela alguma tensão. O ideal de sabedoria era,

nesse diálogo augustiniano, o ideal neoplatónico de conhecimento do Uno, que

preside à ordem de todas as coisas, podendo esse conhecimento ser conduzido quer

pelo ciclo das disciplinas liberais quer pela filosofia (De Ord. II, 16, 44; 18, 47-48).

Por um lado, Agostinho considera muito difícil a incursão nos domínios próprios da

filosofia, a alma e Deus, sem o estudo das demais disciplinas (De Ord. II, 16, 44). Por

outro lado, ele também considera muito moroso o estudo das sete disciplinas liberais,

podendo a filosofia atalhar caminho, apreendendo o essencial, isto é, a natureza do

Uno:

«Ninguém deve aspirar ao conhecimento destas matérias [questões sobre Deus e omal, a partir do maniqueísmo, enunciadas acima (17, 46)] sem aquelas duas ciências,a da boa disputa e a do poder dos números. Se alguém julgar que isto é ainda muito,então que conheça muito bem ou só os números ou só a dialéctica. E se isto é infinito,então que saiba tão perfeitamente o que seja o uno nos números quanto o consegue[saber], não ainda naquela lei suprema e ordem suprema de todas as coisas, mas nascoisas que sentimos e fazemos a cada passo quotidianamente. De facto, a própriadisciplina da filosofia contém já este saber, e nele nada mais apreende senão o queseja o uno, mas de longe de forma mais elevada e divina. A filosofia versa sobre duasquestões: uma sobre a alma, a outra sobre Deus. A primeira faz com que nós nosconheçamos a nós próprios; a segunda faz com nós conheçamos a nossa origem.» DeOrd. II, 18, 4710.

Questões filosóficas, ético-teológicas, como a questão da compatibilidade da

omnipotência divina com a existência do mal, não devem ser debatidas sem uma

educação nas disciplinas liberais, que preparam para o conhecimento do inteligível. A

educação nas artes liberais é, porém, morosa, pelo que pode ser substituída por várias

10 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 4, Paris, Desclée de Brouwer, 1948,pp.442-444. Tradução nossa.

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alternativas: uma boa preparação em lógica e aritmética; ou só em lógica ou só em

aritmética; ou só a consciência da omnipresença do uno na vida quotidiana. A

filosofia é, porém, a alternativa mais completa ao ciclo das artes liberais, pois ela

debruça-se sobre o que mais importa, que é, para Agostinho, a dupla questão da alma

e de Deus, circunscrevendo os âmbitos mais propícios à apreensão da presença do

Uno.

A divisão académico-estóica da filosofiaNão obstante esta clara bipartição da filosofia augustiniana, em psicologia e

teologia, Agostinho utiliza uma antiga divisão tripartida da filosofia – em racional

(lógica), natural (física) e moral (ética) – para dar enquadramento à exposição da

filosofia de Platão, em De Civitate Dei (VIII, 4-8). Ainda que Agostinho, entre outros,

a tenha atribuído erroneamente a Platão (De Civitate Dei VIII, 4, 10), admite-se que

as origens desta divisão tripartida da filosofia remontem, pelo menos, à Antiga

Academia, tendo sido adoptada e difundida, sobretudo, pela corrente da filosofia

estóica. Designamo-la, por isso, de «divisão académico-estóica da filosofia».

Agostinho foi, um dos principais transmissores desta antiga divisão da filosofia à

Idade Média.

Novas divisões das ciências em De Doctrina Christiana

A «carta fundamental da cultura cristã»: assim caracterizou Henri-Irénée Marrou,

o tratado de Agostinho, De Doctrina Christiana (Saint Augustin et la fin de la culture

antique. Paris, 1938, p.413), sublinhando o valor da obra no estabelecimento dos

fundamentos teóricos para a constituição de uma cultura cristã. De facto, De Doctrina

Christiana veio a desempenhar um papel modelar na história do ensino da Idade

Média, visto que nela Agostinho recupera e coloca o legado cultural do mundo antigo,

incluindo a sua perícia retórica, ao serviço da interpretação e da explicação dos livros

sagrados. Assim, no livro II, o autor faz a triagem dos conhecimentos necessários a

uma interpretação esclarecida da Bíblia, e nesses conhecimentos inclui o ciclo das

disciplinas liberais, consolidadas como disciplinas de instituição divina (De Doct.

Christ. II, 27, 41 – 39, 58). A fim de compreendermos o significado desta

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classificação das artes liberais por Agostinho, atente-se nas divisões das ciências,

segundo De Doctrina Christiana II11.

A primeira grande divisão da ciência é entre ciência dos signos (signorum) e

ciência das coisas (rerum), ou seja, entre ciências da linguagem e ciências da

realidade (De Doct. Christ. II, 1, 1 – 16, 23). A primeira sub-divisão da ciência dos

signos é conforme com a divisão do género dos signos em naturais (naturalia) e dados

(data), distinguindo-se entre si na medida em nos primeiros não existe aquilo que

existe nos segundos: a intenção de significar. Os signos dados são, portanto, os signos

intencionais, que podem ter origem divina, humana ou animal. As palavras não são os

únicos signos intencionais humanos, mas são certamente dos mais importantes (De

Doct. Christ. II, 1, 2 – 2, 3). As ciências das palavras, que são as ciências das línguas

e respectivas gramáticas, são das últimas sub-divisões da ciência dos signos. Como,

para além da intenção, a fixação da significação da palavra requer a intervenção do

consenso humano (De Doct. Christ. II, 24, 37 – 25, 38), as ciências das línguas serão,

com toda a probabilidade, ciências convencionais ou, na terminologia de Agostinho,

ciências de instituição humana.

A primeira sub-divisão das ciências da realidade é, com efeito, em ciências

convencionais e ciências descobertas. Esta divisão é conforme com a divisão das

coisas em dois géneros principais: «um das coisas que os homens instituiram» e «o

outro das coisas que os homens descobriram já feitas, ou que foram instituídas por

Deus» (De Doct. Christ. II, 19, 29; 27, 41). Das coisas descobertas pelo homem, ou

instituídas por Deus, ocupam-se as seguintes ciências: a história, (Ibid. 28, 42-44),

«pois as coisas que passaram, e que não se podem tornar não feitas, devem ser

incluídas na ordem dos tempos, dos quais Deus é o fundador e o administrador» (Ibib.

28, 44); as ciências naturais, descritivas, como a geografia, a zoologia, a botânica, e a

geologia (Ibid. 29, 45), ou demonstrativas, como a astronomia, claramente separada

da astrologia (Ibid, 29, 46); as artes mecânicas, que são saberes instrumentais da

acção de Deus, como a medicina e a agricultura (Ibib. 30, 47); a dialéctica, ciência da

disputa (Ibid. 31, 48), que versa sobre as conexões verdadeiras não só das proposições

verdadeiras como também das falsas (Ibid. 31, 49), sendo que «a própria verdade das

conexões não foi instituída pelos homens, mas foi por eles descoberta e registada,

para poderem aprendê-la e ensiná-la, pois ela está na razão perpétua das coisas e foi

11 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 11, Paris, Desclée de Brouwer,1949, pp.238-336.

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instituída por Deus.» (Ibid. 32, 50); «igualmente a ciência da definição, da divisão e

da distribuição, embora também seja muitas vezes aplicada a coisas falsas, ela não é

falsa, nem foi instituída pelos homens, mas foi descoberta na razão das coisas.» (Ibid.

35, 53); também a eloquência, cujas determinações terão sido mais propriamente

descobertas do que instituídas (Ibid. 36, 54); por fim, a aritmética, «a ciência do

número, que, mesmo para qualquer [espírito] lento, é claro que não foi instituída pelos

homens, mas antes investigada e descoberta por eles.» (Ibid. 38, 56).

O ciclo das artes liberais encontra-se, assim, praticamente todo ele reintegrado na

«carta fundamental da cultura cristã»: a conversão cristã de Agostinho legitima a

conservação da herança do saber antigo (Ibid. 40, 60), elevando artes liberais e

mecânicas ao estatuto de ciências de instituição divina, isto é, de ciências descobertas

na ordem divina das coisas.

2.4. A descrição simbólica da filosofia em Boécio

Boécio é outra personalidade proeminente do ocaso de Roma antiga (ca.480-524),

e mais um elo incontornável da transmissão do conhecimento da filosofia grega à

Idade Média, especialmente, através dos seus comentários da lógica de Aristóteles.

A sua última obra, em cinco livros Da Consolação da Filosofia (Philosophiae

Consolationis), foi escrita no cativeiro que precedeu a sua execução por ordem do rei

ostrogodo Teodorico. Nela, o autor reflecte sobre o sentido da felicidade e da

liberdade humanas em conexão com os caprichos da fortuna, com a fatalidade do

destino e com a supervisão da providência divina. Trata-se de uma das obras mais

conhecidas de Boécio, e de uma das Consolações mais célebres na tradição das obras

com o mesmo título.

Boécio começa a sua Philosophiae Consolationis por elogiar as Musas

(Camenae) da poesia, como fiéis companheiras da sua boa e má fortuna (Phil. Cons. I,

met.1)12. A filosofia, porém, expulsa as Musas da companhia de Boécio, acusando-as

de fazer sucumbir a razão pelas paixões, prejuízo tanto mais grave quanto, desta vez,

a sua presa não era um ignorante, mas sim já um iniciado na filosofia (Phil. Cons. I,

pr.1, 10). Boécio havia já sido um observador dos fenómenos celestes e um

12 Texto do CSEL 67 (Viena, 1934), reprod. em Boèce, La Consolation de la philosophie, trad. franc.de A. Bocognano, Paris, Librairie Garnier Frères, sd..

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investigador das causas da natureza (Phil. Cons. I, met.2). Boécio, porém, dá

testemunho de não abandonar completamente a poesia, pois não deixa de intercalar a

prosa com a poesia, ao longo da composição da sua obra Philosophiae Consolationis.

Se é certo que a filosofia não está ausente dos textos em verso (metrum), que integram

esta obra, não é menos verdade que a poesia também não está ausente dos textos em

prosa (prosae), que se intercalam com aquelas, todos manifestando o refinamento

literário do estilo da escrita boeciana. Todavia, é, nas prosas que se encontram as

análises filosoficamente mais densas e exaustivas.

A figura feminina da filosofiaBoécio descreve simbolicamente a filosofia como uma figura feminina, na prosa 1

de Philosophiae Consolationis I. A filosofia surge, não como uma jovem sedutora,

mas como uma anciã consoladora, ainda que austera. Analisemos os vários aspectos

da descrição.

A altura (statura). Boécio viu-a aparecer erguendo-se acima de si, mas não era

possível determinar com precisão a sua altura, pois não era constante, variando entre a

altura comum dos seres humanos e o alto dos céus. A filosofia chega a penetrar de tal

modo com a cabeça no céu, que deixa de ser acessível ao olhar humano. Em

conformidade com a altura variável entre a estatura humana e a altitude o céu, a

filosofia medeia entre o saber humano e o saber divino. Em conformidade com a

penetração da cabeça no céu, a ponto de se tornar invisível ao ser humano, a filosofia

visa algo que excede o saber humano, algo como uma razão supra-humana da

realidade.

O rosto (vultus). O rosto é muito venerável, isto é, inspira uma a atitude de

reverência, sinal da incontestável autoridade com que a filosofia se impõe a Boécio.

Os olhos são brilhantes e ultrapassam a perspicácia comum dos homens, sugerindo

que a filosofia comporta uma inteligência intuitiva mais poderosa do que a humana. A

cor viva, de inesgotável vigor, sugere, por sua vez, que a filosofia é imortal.

A idade (aetas). A idade é tão cheia de tempo que não é crível que coincida com a

nossa, ou seja, a filosofia tem uma longa história, tão longa que não pode confinar

com a história de cada um de nós. Por isso, a filosofia é representada por uma anciã,

cujo tempo excede de longe o nosso. A filosofia, como anciã, ou a filosofia, com a sua

história, não pode, por isso, deixar de ter algo a ensinar-nos.

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As vestes (vestes). As vestes mostram detalhes, que permitem discernir algumas

propriedades essenciais e acidentes de percurso da filosofia. Entre as propriedades

essenciais, contam-se: o rigor e a subtileza, como ilustram os fios muito finos das

vestes, tecidos com uma arte subtil; a perenidade, como ilustra a matéria inalterável

de que são feitas as mesmas vestes; e a autonomia, como ilustra o facto de ser a

senhora filosofia a tecer as suas vestes com as suas próprias mãos. Entre os acidentes

de percurso ou os efeitos decorrentes da sua história, contam-se: a negligência de que

padece junto das novas gerações, dada a atmosfera esfumada de uma antiguidade

abandonada, que envolve as suas vestes; e a perseguição ou a traição, como indicam

as vestes danificadas por mãos de homens violentos, que lhes arrancaram tantos

farrapos quantos puderam (Phil. Cons. I, pr.1, 5), podendo essas mãos danosas

representar quer forças exteriores e hostis à filosofia, como aquelas que outrora

condenaram Sócrates e que perseguiram muitos outros filósofos (Phil. Cons. I, pr.3, 6

e 9), porque «o seu grande propósito é desagradar aos homens piores» (Phil. Cons. I,

pr.3, 11), quer pseudo-filosofias, que de algum modo traíram a essência da filosofia,

como sejam, segundo Boécio, a dos epicuristas e a dos estóicos (Phil. Cons. I, pr.3,

7).

Ainda nas vestes da venerável filosofia, estão bordadas duas letras gregas: o Pi no

extremo inferior e o Teta no extremo superior, mediadas por uma via gradativa,

semelhante a uma escada, para subir da letra Pi para a letra Teta (Phil. Cons. I, pr.1,

4). Nesta combinação de letras, podemos adivinhar a divisão aristotélica da filosofia,

em prática e teorética. Não atingindo o grau de universalidade e de necessidade da

ciência, a filosofia prática ocupa, na ordem do saber, uma posição inferior à filosofia

teorética, e progride em direcção a esta, como sugere a escada que liga as duas letras.

Boécio conclui a sua descrição simbólica da filosofia, ocupando as mãos da anciã:

a mão direita segura os livros, isto é, o saber, e a mão esquerda segura o ceptro, isto é,

o poder (Phil. Cons. I, pr.1, 5). Como é na mão direita que está o saber, e como a mão

direita é o instrumento principal da acção, isso quer dizer que a filosofia não exerce o

seu poder senão através do seu saber.

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2.5. Transmissão e reorganização dos saberes

Isidoro de Sevilha: distinções, definições e divisõesAutor hispânico da Alta Idade Média, Isidoro de Sevilha (ca.562-636) exerceu

significativa influência na cultura medieval posterior, fornecendo a esta algo a que

podemos hoje chamar uma «enciclopédia» dos saberes provindos da Antiguidade.

Isidoro não era filósofo, mas filólogo. Do ponto de vista da filologia, não do da

filosofia, encarou todo o saber. Escreveu os vinte livros das Etimologias

(Etymologiarum), nos quais compila e transmite à Idade Média as principais tradições

do saber antigo, entre as quais o ciclo das disciplinas liberais e a filosofia. É, ao longo

dos livros I a III, que o autor se ocupa da apresentação do ciclo das sete disciplinas

liberais, e é, no âmbito da exposição sobre a dialéctica, que Isidoro aduz uma

digressão pela filosofia, na medida em que considera ser a dialéctica uma parte da

filosofia.

O livro I começa com as etimologias de «disciplina» (disciplina), «ciência»

(scientia) e «arte» (ars): as duas primeiras procedem ambas de discere,

justificando-se, em particular, a palavra disciplina porque discitur plena, isto é,

porque se aprende inteira; e a terceira, a palavra ars procede do grego arete (Etim. I,

1, 1). Portanto, a disciplina não se distingue da ciência senão por ser a ciência que se

aprende inteira. Já quanto à distinção entre disciplina e arte, Isidoro acrescenta a

seguinte dilucidação:

«Platão e Aristóteles quiseram que houvesse uma diferença entre arte e disciplina,dizendo que a arte está nestas coisas que podem ser de outro modo, enquanto édisciplina, aquela que trata das coisas que não podem acontecer de outro modo.Quando se disserta acerca de algo com argumentações verdadeiras, isso serádisciplina; quando se trata, porém, de algo verosímil e opinável, isso terá o nome dearte.» Etim. I, 1, 113.

Esta distinção não é documentada, na sua atribuição a Platão e a Aristóteles, e é

vaga e imprecisa nos termos da sua formulação. O seu conteúdo é, no entanto,

reconhecível: a arte é conotável com a acepção aristotélica de dialéctica, a lógica que

parte de premissas prováveis; e a disciplina é conotável com a acepção aristotélica de

ciência, a lógica que parte de premissas necessárias.

13 Texto da ed. Scriptorum Classicorum Biblioteca Oxoniensis (1911), reprod. em Biblioteca deAutores Cristianos 433, Madrid, 1982, p.276. Tradução nossa.

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O livro II transmite, por sua vez, algumas definições e divisões da filosofia.

Definições de filosofia:1ª) «A filosofia é o conhecimento das coisas humanas e divinas, associada ao zelo

de viver rectamente.» Etim. II, 24, 1;2ª) «A filosofia é a ciência provável das coisas divinas e humanas, tanto quanto é

possível ao homem» Etim. II, 24, 9;3ª) «A filosofia é a arte das artes e a ciência das ciências» Ibidem;4ª) «A filosofia é uma meditação da morte» Ibidem.

Também estas definições não se encontram documentadas quanto às respectivas

proveniências. Elas constituíam lugares comuns há muito repetidos acerca da

filosofia.

A primeira é uma definição que remonta ao estoicismo antigo (Zenão), e que

reaparece, na segunda definição, transformada e perpassada de cepticismo,

porventura, por influência da Nova Academia. A terceira definição fora já usada por

Agostinho, mas aplicada à dialéctica, a segunda das sete artes liberais (De ordine II,

13, 38). Como arte das artes, ou disciplina das disciplinas, a dialéctica é a disciplina

na qual a razão toma consciência de si própria, da sua natureza, do seu poder e do seu

proceder na construção de todos os saberes. Na medida em que a filosofia inclui a

dialéctica, a filosofia pode ser caracterizada pelas as funções de uma das suas partes.

Ainda que não exactamente desta forma, a filosofia vem, de facto, a ser concebida

como arte das artes, ou disciplina das disciplinas, na cultura medieval. A filosofia é,

então, a arte abrangente de todas as artes, a disciplina abrangente de todas as

disciplinas, incluindo mesmo a teologia, até ao séc. XII. A partir deste século de

viragem, e no âmbito da cultura escolástica, a filosofia mantém na sua abrangência o

ciclo das artes liberais, mas teologia autonomiza-se como disciplina, e a colocar-se

acima da filosofia e das suas disciplinas, na ordem dos saberes.

A terceira definição de filosofia, como meditação da morte, é, conforme precisa o

próprio Isidoro, aquela que mais convém ao cristão, que deve renunciar às ambições

mundanas e viver à semelhança da pátria celeste (Etim. II, 24, 9). Esta definição traz à

memória a antiga concepção platónica da filosofia, no Fédon, como preparação para a

morte. Mas a filosofia, que é preparação para a morte, não é exactamente a filosofia,

que é meditação da morte. É certo que ambas se relacionam com a morte, não como

um termo absoluto, mas como uma passagem a um estado qualitativamente superior

ao da vida terrena. No entanto, para Platão, a preparação filosófica para a morte era

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um exercício de desprendimento do corpo e da vida dos sentidos, na medida em estes

obstavam ao verdadeiro conhecimento, enquanto que, para o cristão, a que se refere

Isidoro, a meditação filosófica da morte era um exercício espiritual de desapego do

mundo, tendo presente que este não é a verdadeira morada ou o destino último do

homem.

Divisões da filosofia:

1ª) «A filosofia divide-se em três partes: a primeira, a natural, que em grego sechama física, na qual se trata da investigação da natureza; a segunda, a moral, que emgrego se diz ética, na qual se trata dos costumes; a terceira, a racional, que se chamapelo nome grego de lógica, na qual se examina o modo de procurar a verdade nascausas das coisas e nos costumes da vida.» Etim. II, 24, 3.

2ª) «Outros delimitaram a razão da filosofia em duas partes, das quais a primeira écontemplativa (inspectiva) e a segunda, activa (actualis). A contemplativa divide-seem três, isto é, em natural (naturalis), doutrinal (doctrinalis) e divina (divina). Adoutrinal divide-se em quatro, isto é, em aritmética, música, geometria e astronomia.A activa divide-se em três, isto é, em moral (moralis), economia doméstica(dispensativa) e civil (civilis).» Etim. II, 24, 10-11.

Estas são as duas principais divisões da filosofia, que Isidoro transmite à cultura

medieval posterior. A primeira é a divisão académico-estóica da filosofia, que

Agostinho atribuíra a Platão. A segunda é a divisão aristotélica da filosofia, em

teorética (contemplativa) e prática (activa). Com efeito, a filosofia contemplativa

inclui as três partes da filosofia teorética de Aristóteles: a física (natural), a

matemática (doutrinal) e a teologia (divina). A matemática (doutrinal) coincide agora

com o quadrivium, o segundo grupo do ciclo das sete disciplinas liberais. A filosofia

activa, por sua vez, inclui também as três partes da filosofia prática de Aristóteles:

prudência individual (moral), a economia doméstica e a política (civil).

Estas divisões principais viriam a reaparecer em posteriores quadros panorâmicos

dos saberes, como aqueles que se formam nos sécs. XII e XIII e se tornam expressão

característica da cultura escolástica.

Hugo de S. Vítor e a abrangência da filosofiaHugo de S. Vítor (ca.1097-1141) é uma das personalidades proeminentes da

escola de S. Vítor, e esta, uma das escolas mais relevantes do Renascimento do séc.

XII. Uma das obras mais conhecidas de Hugo de S. Vítor é aquela que, sob o título de

Didascalicon, nos oferece uma visão panorâmica dos saberes integrantes da cultura

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do seu tempo. Como o título indica, trata-se de uma obra de natureza didáctica, cujo

propósito é introduzir ao estudo de todas as disciplinas da filosofia (Iª parte: livros

I-III) e da exegese bíblica (IIª parte: livros IV-VI).

Da Iª parte, que concerne à concepção geral do saber, algumas teses fundamentais

merecem destaque.

Desde logo, uma forte afirmação da bondade do saber, que faz da ignorância uma

fraqueza, e da falta de vontade de saber, uma perversão da vontade:

«Na verdade, uma coisa é não saber (nescire), outra coisa é não querer saber(nolle scire). Não saber é decerto uma infirmidade, mas detestar a ciência é umavontade pervertida.» Didascalicon, “Praefatio”14

Aqui encontramos aquilo a que podemos chamar um «manifesto

anti-obscurantista», escrito em plena Idade Média.

Também encontramos um claro reconhecimento do papel da experiência na

origem do saber, como ressalta na seguinte descrição da origem das artes liberais:

«Antes que existisse a gramática, os homens já escreviam e falavam; antes queexistisse a dialéctica, já discerniam o verdadeiro do falso, raciocinando; antes queexistisse a retórica, já tratavam das leis civis; antes que existisse a aritmética, játinham a ciência de numerar; antes que existisse a música, já cantavam; antes queexistisse a geometria, já mediam os campos; antes que existisse a astronomia, jápercebiam as diferenças dos tempos, através dos movimentos das estrelas. Mas vieramas artes, que, apesar de terem tido início no uso, são porém melhores do que o uso.»Didasc. I, c.11.

As artes liberais têm origem no uso, isto é, os saberes constituídos têm origem na

experiência. Após terem sido as artes do homem livre (Roma antiga), as artes contidas

nos livros (Cassiodoro), as artes geradas pela razão (Agostinho), as mesmas sete

disciplinas tornam-se, na epistemologia de Hugo, os saberes que procedem da

experiência do homem no mundo.

A par da descrição da origem, também a da finalidade do saber revela tendências

filosóficas relevantes, como o anti-maniqueísmo e o antropocentrismo:

«O fim e a intenção de todas as acções humanas e estudos, que a sabedoriagoverna, devem contemplar o seguinte: que seja reparada a integridade da nossanatureza e que seja abrandada a necessidade das privações a que está sujeita a vidapresente. […]. Há duas coisas no homem, o bem e o mal, a natureza e o vício. O bem,

14 Texto da ed. crítica de Ch. H. Buttimer, Washington, The Catholic University Press, 1939, p.1.Tradução nossa.

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porque é natureza, e porque está corrompido, porque está diminuído, deve serreparado pelo exercício. O mal, porque é corrupção, porque não é natureza, deve serexcluído. Este, se não pode ser exterminado por completo, deve ser, pelo menos,debelado pelo remédio aplicado. O que deve ser feito é, pois, isto: que a natureza sejareparada e o vício, excluído.» Didasc. I, c.5.

Anti-maniqueísta é a identificação do bem com a natureza, e do mal com a

corrupção, desnivelando de tal modo o bem e o mal que os dois opostos não são

equiparáveis. O mal não tem a consistência de uma natureza, é apenas uma afecção da

natureza humana, como o vício, que pode corrompê-la, diminuindo-a, mas não

anulá-la, porque não excede a escala humana. Esta formulação anti-maniqueísta da

oposição entre o bem e o mal não é uma novidade, pois estava já feita há muito,

nomeadamente, por Agostinho, a partir de obras como De natura boni. Hugo

reassume essa formulação na configuração da sua teleologia da acção e do saber

humanos.

Com efeito, a finalidade de toda a actividade humana, incluindo o estudo, é

reparar a natureza humana, na sua integridade, isto é, eliminar o mal que a afecta.

Deste modo, a teleologia da acção e do saber humanos é, em Hugo, claramente

antropocêntrica: é o homem, enquanto natureza, que o homem serve, em todo o seu

esforço e empreendimento, individual ou colectivo, incluindo o do saber. Este realce

da natureza na concepção do homem é um acento do pensamento da época, e o

antropocentrismo da teleogia do saber é uma herança antiga, nomeadamente grega,

atendendo ao testemunho de Aristóteles, colocando as technai ao serviço do

bem-estar do homem (Metafísica I, 981b 13-25). Hugo de S. Vítor vem reforçar e

reconfigurar esse antropocentrismo, em articulação com o seu optimismo

anti-maniqueísta, mesmo que moderado, quanto à erradicação do mal humano.

A filosofia: arte das artes, disciplina das disciplinasReproduzindo as definições de arte, de disciplina e de filosofia, que Isidoro de

Sevilha registara (Didasc. II, c.1), Hugo identifica a filosofia com o domínio de todas

as artes e disciplinas, que visam a restituição da natureza humana, na sua integridade.

A filosofia torna-se assim o domínio mais abrangente do saber, onde cabem quer as

divisões clássicas da filosofia quer as artes liberais quer as artes mecânicas:

«A filosofia divide-se em teórica, prática, mecânica e lógica. A teórica divide-seem teologia, física e matemática. A matemática divide-se em aritmética, música,

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geometria e astronomia. A prática divide-se em solitária, privada e pública. Amecânica divide-se em lanifício, armadura, navegação, agricultura, caça, medicina eteatro. A lógica divide-se em gramática e dissertiva. A dissertiva divide-se emdemonstração, provável e sofística. A provável divide-se em dialéctica e retórica.»Didasc. III, c.1.

A filosofia tem, portanto, quatro divisões principais: a teórica, a prática, a

mecânica e a lógica. A filosofia teórica inclui as três partes da divisão aristotélica da

filosofia teorética: a teologia, a matemática e a física. A teologia continua assim a

fazer parte da filosofia, como disciplina proeminente da filosofia teórica. A

matemática, por sua vez, é constituída pelas quatro disciplinas liberais, agrupadas,

desde Boécio, sob a designação de Quadrivium. A filosofia prática, entretanto, inclui

também as três partes da divisão aristotélica da filosofia prática: a solitária, que

corresponde à prudência individual; a privada, que se exerce no âmbito da casa

familiar; e a pública, que se alarga à dimensão urbana. A filosofia mecânica é, por seu

turno, uma composição impensável na cultura antiga, e uma novidade da cultura

medieval. Com efeito, esta não só promoveu o valor do trabalho manual, como

estendeu o valor do trabalho (labor) ao próprio estudo, o qual era propiciado pelo

ócio (otium) do homem livre, na cultura antiga. A esta alteração do valor do trabalho,

não terá sido alheia a integração do trabalho na concepção da vida monástica,

nomeadamente, a de tradição beneditina. A divisão da filosofia mecânica num ciclo

de sete artes mecânicas, a par do ciclo das sete artes liberais, é uma perspectiva

panorâmica sobre os saberes técnicos da época. A filosofia lógica, por fim, inclui, em

subdivisões sucessivas, as disciplinas tradicionais do Trivium. A parte lógica da

filosofia é o domínio das artes sermonicais, isto é, das disciplinas da linguagem,

enquanto que o saber das coisas, aquele que se ocupa da realidade, compete,

especialmente à física e às artes mecânicas.

Interpretando a divisão geral da filosofia, que propõe na sua obra, o próprio Hugo

adopta o modelo augustiniano da distinção entre sabedoria (sapientia) e ciência

(scientia), isto é, entre a inteligência das verdades eternas e a razão aplicada à

realidade temporal (De Trinitate XII, 2, 2 – 3, 3). Excluindo a parte lógica da

filosofia, este modelo permite entender as restantes partes principais da filosofia, do

seguinte modo:

«Duas são as coisas que reparam a semelhança divina no homem: a contemplaçãoda verdade (speculatio veritatis) e o exercício da virtude (virtutis exercitium). O

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homem é semelhante com Deus na medida em que é sábio e justo, embora o homem,mutavelmente, enquanto Deus é imutavelmente sábio e justo. […]. Quandoprocuramos reparar a nossa natureza, existe a acção divina, e quando nos provemosdas coisas necessárias àquilo que é fraco em nós, existe a acção humana. Porconseguinte, toda a acção ou é divina ou é humana. Podemos, sem inconveniente,chamar à primeira “inteligência”, por se ocupar das coisas superiores; à segunda,porque se ocupa das coisas inferiores e porque necessita de conselho, podemoschamar “ciência”. Por conseguinte, se a sabedoria governa todas as coisas que sãofeitas com razão, como foi dito antes, segue-se, desde já, dizermos que a sabedoriacontém estas duas partes: a inteligência e a ciência. Voltando atrás, a inteligência,porque labora na investigação da verdade e na consideração dos costumes,dividimo-la em em duas partes: a teórica, ou especulativa, e a prática, ou activa, quetambém se chama “ética”, ou “moral”. A ciência, por seu turno, porque trata das obrashumanas, chama-se convenientemente “mecânica”, ou “adulterina”.» Didasc. I, c.8.

Assim, por um lado, o conceito augustiniano de ciência permite promover as artes

mecânicas ao estatuto de ciência, uma vez que esta trata da realidade temporal, dos

assuntos humanos inclusive. Por outro lado, o conceito augustiniano de inteligência,

que é o intelecto virado para a realidade intemporal, permite integrar as virtudes e as

razões eternas, a filosofia prática e a filosofia teórica, contribuindo decisivamente

para reduzir o desnível entre prática e teoria, tendência que viria a acentuar-se na

epistemologia bonaventuriana, na qual se faz sentir a influência de Hugo de S. Vítor.

2.6. A integração teológica dos saberes em Boaventura

A escrita bonaventurianaOs textos filosóficos do séc. XIII eram cuidadosamente estruturados, quer se

tratasse de comentários, de tratados sistemáticos ou de questões disputadas. Todas

estas formas se desenvolveram e apuraram em contexto escolástico. Tomás de

Aquino, cuja vida esteve dominantemente ligada à Universidade, é sem dúvida um

dos maiores expoentes da literatura de questões do séc. XIII. O seu contemporâneo,

Boaventura (1221-1274), que não teve senão uma experiência lectiva fugaz na

Universidade para dedicar-se à direcção da Ordem Franciscana, escreveu, não só

motivado pelas disputas universitárias, mas também e sobretudo pelas solicitações da

vida espiritual da Ordem. Por essa razão, e porventura não só, mas também por força

do seu estilo pessoal, Boaventura é mais exímio em construir arquitectonicamente os

seus textos, à imagem e semelhança das catedrais góticas, do que em decidir

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argumentadamente em questões disputadas. Com efeito, os seus textos são como

grandes projectos arquitectónicos, hierárquica e meticulosamente articulados,

reflectindo uma visão do mundo, também ela, hierarquizante e maximamente

integradora, ou, diremos mesmo, no seu caso, uma visão hierarquizante, porque

maximamente integradora.

O opúsculo intitulado Da Redução das Artes à Teologia (De Reductione Artium

ad Theologiam) ilustra bem esse tipo de construção hierárquica, que caracteriza os

textos bonaventurianos. Trata-se de um texto particularmente interpelativo acerca da

relação entre filosofia e teologia, na cultura escolástica da Idade Média, uma vez que

nele se encontra uma ordenação da filosofia à teologia, embora não em termos de uma

instrumentalização exterior, como sugere a desqualificante posição de «serva da

teologia» (ancilla theologiae), em que se tornou costume colocar a filosofia, no

contexto da Escolástica medieval. Aliás, o próprio autor esclarece em que sentido

admite que a filosofia serve a teologia:

«Também se tornou patente como todos os conhecimentos servem a teologia, namedida em que esta assume os exemplos e emprega as palavras pertencentes a todosos géneros de conhecimento.» De red. 2615.

O mesmo é dizer que todos os conhecimentos servem a teologia, na medida em

que a teologia se serve deles, precisa deles e depende deles.

Duas atitudes hermenêuticasTrata-se também de um texto que pode bem ilustrar a diferença entre uma

interpretação à luz do contexto da época e das intenções do autor e uma interpretação

à luz do contexto da nossa época e das nossas sensibilidades.

Boaventura viveu num tempo marcado pela controvérsia em torno da pobreza

evangélica, que a espiritualidade das novas ordens mendicantes prezava, pondo em

causa a opulência das tradicionais congregações religiosas. No âmbito desta

controvérsia, o desejo e a posse do saber eram, por vezes, olhados com alguma

suspeição pelos espirituais mendicantes. Boaventura vê-se, então, na exigência de

defender teologicamente todo o saber humano, sobretudo, para os seus irmãos

franciscanos.

15 São Boaventura, Recondução das Ciências à Teologia, tradução (com base na ed. Quaracchi) eposfácio de Mário Santiago de Carvalho, Porto, Porto Editora, 1996, p.27.

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Em contrapartida, nós vivemos num tempo de grande separação entre a teologia e

os restantes saberes que compõem o panorama da cultura contemporânea, de modo

que nos parece indevida qualquer tentativa de tutela da teologia sobre os restantes

saberes. Neste contexto compreender o texto bonaventuriano significa, para nós,

recuperar a capacidade da teologia se relacionar construtivamente com os outros

saberes, sem afectar a autonomia deles, bem como o respectivo alcance próprio e

significado humano, mas acrescentando-lhes, de outro ponto de vista, o teológico, um

significado simbólico. Assim compreendemos que a teologia não só não tema os

outros saberes, como seja capaz de lhes acrescentar sentido, ou sentidos, que não cabe

aos próprios saberes poder adivinhar. Há, no entanto, uma condição, que a teologia

tem de satisfazer para se relacionar assim com os outros saberes: não pode confinar-se

ao sentido literal dos textos sagrados, admitindo sentidos espirituais, que possam

ultrapassar as fronteiras dos textos e projectar-se como significados simbólicos dos

saberes humanos. Esta condição é explicitamente satisfeita pela teologia, tal como é

concebida e apresentada no opúsculo de Boaventura.

As duas atitudes hermenêuticas são, para nós, complementares na interpretação da

redução (reductio) bonaventuriana dos saberes à teologia. À luz do contexto da sua

época, o programa teológico de Boaventura significa uma justificação teológica dos

saberes humanos, na medida em que estava em questão o valor destes16. À luz do

contexto actual da nossa leitura, o mesmo programa significa uma orientação

anti-fundamentalista da teologia, que permite a esta integrar e dar sentido acrescido às

múltiplas expressões culturais, ou civilizacionais, do engenho humano.

A luz do conhecimento e a diversidade dos saberesLogo no início de De Reductione Artium ad Theologiam, o autor apresenta o

conhecimento como uma luz. A concepção do conhecimento como luz não é nova, é

de tradição platónica, neoplatónica e, em especial, augustiniana. Todavia, a descrição

do conhecimento em termos de iluminação não favorece, em princípio, nem a

concepção do conhecimento como construção nem o papel activo do sujeito

cognoscente, antes acentua o papel eficiente e suficiente de uma causa superior de

conhecimento, a fonte da luz, e sugere que o conhecimento é originalmente um dom.

No entanto, a concepção bonaventuriana da luz do conhecimento não é indiferente a

16 Significação que julgamos ser bem sugerida pela tradução de reductio por «recondução», segundoMário Santiago de Carvalho: Op. Cit. p.83.

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este tipo de objecções. Por um lado, trata-se de uma concepção que não exclui, antes

integra a acepção do conhecimento como construção, do que dá testemunho, a

inclusão das artes mecânicas entre os lumes do conhecimento. Por outro lado, trata-se

de uma concepção que não diminui, antes acentua o papel das faculdades cognitivas

humanas, como focos de actividade procedentes da luz fontal. Nessa medida, a

doutrina da iluminação, segundo Boaventura, não só admite a «luz fontal», a causa

primeira e divina da luz do conhecimento, como integra, na expressão difusiva desta

luz, como causas segundas e respectivos efeitos, a diversidade das operações

cognitivas e dos saberes resultantes. A difusão da luz fontal não se cumpriria sem a

expressão dos lumes, os saberes, que são efeito das causas segundas do conhecimento.

O valor dos saberesBoaventura começa por discernir quatro lumes, ou saberes principais: o lume

exterior da arte mecânica, o lume inferior do conhecimento sensitivo, o lume interior

da filosofia e o lume superior da teologia bíblica (De Red. 1). A ordenação

hierárquica dos lumes, ou dos saberes, é feita em conformidade com o itinerário

augustiniano que conduz do exterior para o interior, passando pelos sentidos, e do

interior para o superior. O lume exterior integra o ciclo das sete artes mecânicas,

segundo Hugo de S. Vítor. Tal como Hugo, na esteira de Aristóteles, também

Boaventura defende o valor antropocêntrico das artes mecânicas: estas valem pela sua

utilidade, ao serviço do bem-estar do homem, seja a sua comodidade seja o seu

aprazimento (De Red. 2). O lume inferior do conhecimento sensitivo integra as

operações dos cinco sentidos, e vale pela percepção do mundo. O lume interior da

filosofia integra todas as divisões desta, incluindo o ciclo das artes liberais, e vale

precisamente pela sua «interioridade», que significa profundidade, na epistemologia

de Boaventura. Assim, todos os lumes, ou níveis de saber, têm uma autonomia, um

alcance e um valor próprios. Nada disto lhes é retirado pelo lume superior da teologia.

A interioridade da filosofiaToda a iluminação cognitiva é interior, mas a do conhecimento filosófico é mais

interior do que as outras. Vejamos como:

«O terceiro lume, que ilumina na perscrutação das verdades inteligíveis, é o lumedo conhecimento filosófico, que se chama interior porque inquire as causas interiores

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e latentes, e fá-lo por meio dos princípios dos vários ramos do saber e da verdadenatural, que estão impressos de maneira natural no homem.» De Red. 417.

O conhecimento filosófico é duplamente interior. Antes de mais, é interior ao

objecto, porquanto não se atém ao manifesto e aparente, procura as causas interiores e

latentes das coisas. Por isso, é mais interior do que os outros, ou seja, mais profundo

na aproximação do real. Mas o conhecimento filosófico é também interior ao sujeito,

uma vez que parte de princípios naturalmente impressos na mente humana, que

precedem a diversificação dos saberes.

A filosofia natural ilustra bem os dois sentidos da interioridade da filosofia, o da

aproximação do real em profundidade e o da interioridade ao sujeito de

conhecimento. As razões formais constituem o objecto da filosofia natural, mas elas

podem ser tomadas a vários níveis: enquanto são interiores à realidade material, e

constituem o objecto da física; enquanto são formas abstractas ou razões inteligíveis,

interiores ao intelecto, e constituem o objecto da matemática; enquanto são razões

ideais, interiores à sabedoria divina, e constituem o objecto da metafísica (De red. 4).

Deste modo, o conhecimento filosófico, em vez de ser uma abstracção que se

afasta da realidade, é um caminho de aproximação e de penetração no interior do real,

perscrutando a operatividade das formas no interior da matéria, e, quando abstraídas

da matéria, desenhando a funcionalidade delas no interior do intelecto. Mesmo este

nível de interiodade não é um afastamento do real, porquanto o intelecto não está fora

da realidade, é antes um lugar de assento das formas na ordem do real. Só que o

intelecto não é o lugar onde as formas possuem força de causalidade, como seja a

força da causalidade exemplar, capaz de causar semelhanças operantes na matéria.

Esta força pertence às ideias exemplares que residem na inteligência divina. Por isso é

que o processo de interiorização, ou de aprofundamento, do conhecimento filosófico

avança em direcção à metafísica.

As divisões da filosofiaOs três níveis discriminados da interioridade da filosofia natural correspondem,

como vimos, a uma divisão desta em três partes: a física, a matemática e a metafísica.

Encontra-se aqui uma divisão muito semelhante à divisão aristotélica da filosofia

teorética, embora com uma diferença notória: a teologia, em Aristóteles, é substituída

17 Op. Cit., p.16.

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pela metafísica, em Boaventura. A teologia separa-se e autonomiza-se da filosofia,

ficando a caber à metafísica a consideração filosófica do tema de Deus. Esta é uma

alteração que acontece no contexto escolástico do séc. XIII.

A filosofia natural é, no entanto, apenas uma das três partes principais da filosofia.

Boaventura adopta, como divisão principal da filosofia, a divisão tripartida, de

proveniência académico-estóica, em filosofia racional, natural e moral. A filosofia

racional inclui as disciplinas que compõem o Trivium: a gramática, a lógica e a

retórica. Esta classificação das primeiras três disciplinas liberais coloca-se numa linha

de continuidade com a epistemologia augustiniana de De ordine, que tomava essas

três disciplinas pelas primeiras gerações da razão. A filosofia natural inclui a

subdivisão tripartida, acima antecipada, em física, matemática e metafísica. A

matemática inclui, por sua vez, as diciplinas tradicionais do Quadrivium. Por fim, a

filosofia moral inclui a subdivisão tripartida, também de proveniência aristotélica,

embora adaptada a um novo contexto cultural, em monástica (individual), económica

(familiar) e política (De Red. 4). Assim se cruzam distintas tradições e influências no

panorama geral da filosofia, segundo Boaventura.

Não é, todavia, acriticamente que Boaventura adopta modelos tradicionais de

organização do saber. O modelo tripartido da divisão principal da filosofia é

reiteradamente justificado por razões filosóficas, isto é, por razões inerentes ou ao

objecto ou ao sujeito do conhecimento filosófico: por razões inerentes ao objecto,

como os lugares da verdade, nas palavras, nas coisas e nos costumes, e como os

modos da causalidade divina, eficiente, exemplar e final; e por razões inerentes ao

sujeito, como as aplicações do intelecto a interpretar as palavras, a conhecer as coisas

e à vontade de agir (De Red. 4). Este processo justificativo da divisão tripartida da

filosofia é ilustrativo do estilo bonaventuriano de fazer filosofia: quando Boaventura

se empenha em dar razão de alguma coisa, ele não costuma dar uma só, mas várias,

não porque uma só não fosse bastante, mas, porventura, porque uma não exclui as

outras. A razão filosófica de Boaventura é assumidamente plural.

Entretanto, a divisão tripartida da filosofia permite um desdobramento dos quatro

lumes iniciais do saber, em seis lumes: o da teologia, o do conhecimento sensitivo, o

da arte mecânica, o da filosofia racional, o da filosofia natural, o da filosofia moral

(De Red. 6). Nesta reordenação dos saberes, o lume superior da teologia aparece no

início da série, justaposto ao lume inferior do conhecimento sensitivo, indicando o

ponto de vista a partir do qual se procede à «redução» dos saberes. Neste processo,

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contudo, é a filosofia moral que obtém maior proximidade da teologia, o que acusa a

promoção da filosofia prática a um nível superior ao da toórica (natural), invertendo

assim a ordem aristotélica tradicional da superioridade da teoria à prática.

O processo da «redução» bonaventurianaA teologia, de que aqui se trata, não é uma parte da filosofia, mas a teologia

exegética dos livros sagrados da Bíblia, que não resulta de investigação, mas de

revelação divina, pelo que é supra-racional e, desde logo, supra-filosófica. Ao nível

da teologia revelada, Boaventura convoca também uma tradição, que é a da exegese

dos quatro sentidos: um literal e três espirituais, o alegórico, o moral e o anagógico.

De acordo com esta tradição, cada passo das Escrituras pode suportar os três sentidos

espirituais, sobrepostos, para além do sentido literal. Os três sentidos espirituais são

essenciais à concepção bonaventuriana da «redução» (reductio) dos saberes à

teologia: a «redução» consiste em fazer corresponder os três sentidos espirituais a três

aspectos constituintes de cada nível de saber, os quais são previamente discriminados

a fim de propiciar essa correspondência. Fazer, porém, corresponder três sentidos

espirituais da Bíblia a três aspectos próprios de cada saber, é ousar associar ideias

apartadas entre si à partida, como ousa fazer a razão arquitectónica de Boaventura.

Essa correspondência apenas acrescenta um sentido teológico a cada elemento

cognitivo discriminado, como se este fosse um versículo da Bíblia. Em nada, porém,

tal acréscimo diminui a autonomia e o alcance próprios dos saberes humanos.

O primeiro passo da «redução» é a análise de cada um dos seis lumes, ou saberes

discriminados, em três componentes: o meio, o exercício e o prazer de conhecer, ao

nível do conhecimento sensitivo (De Red. 8-10); a produção, a qualidade do efeito e a

utilidade do fruto, na arte mecânica (De Red. 11-14); a tripla consideração do discurso

em relação ao falante, em si mesmo e em relação ao ouvinte, ao nível da filosofia

racional e (De Red. 15-18); a tripla consideração das razões formais, segundo a

relação proporcional entre elas, o efeito de causalidade e o meio de união, ao nível da

filosofia natural (De Red. 19-22); a tripla acepção da rectidão, como meio entre dois

extremos, conformidade com uma instância directora e elevação ou inclinação para o

alto, ao nível da filosofia moral (De Red. 23-25); por fim, os três sentidos espirituais

da Escritura, a saber, a geração eterna e a incarnação do Verbo (sentido alegórico), a

norma de viver (sentido moral) e a união de Deus e da alma (sentido anagógico) (De

Red. 5).

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A análise da composição triádica dos saberes dá lugar à interpretação teológica

das tríades, isto é, a correspondência entre cada uma das tríades e os três sentidos

espirituais da Escritura. Podemos descrever essa correspondência, discriminando os

elementos dos saberes humanos, que podem suportar, sugerindo, cada um dos três

sentidos espirituais. Assim, o sentido alegórico – a geração eterna e a incarnação do

Verbo – é associado: ao meio, no conhecimento sensitivo (De Red. 8); à produção, na

arte mecânica (De Red. 12); ao discurso relativo ao falante, na filosofia racional (De

Red. 16); à relação proporcional entre as razões formais, na filosofia natural (De Red.

20); e à rectidão como meio entre dois extremos, na filosofia moral (De Red. 23). Por

sua vez, o sentido moral – a norma de viver – é associado: ao exercício, no

conhecimento sensitivo (De Red. 9); à qualidade do efeito, na arte mecânica (De Red.

13); ao discurso em si mesmo, na filosofia racional (De Red. 17); ao efeito causal das

razões formais, na filosofia natural (De Red. 21); e à rectidão como conformidade a

uma instância directora, na filosofia moral (De Red. 24). Por fim, o sentido anagógico

– a união de Deus e da alma – é associado: ao prazer, no conhecimento sensitivo (De

Red. 10); à utilidade do fruto, na arte mecânica (De Red. 14); ao discurso relativo ao

ouvinte, na filosofia racional (De Red. 18); ao meio de união das razões formais, na

filosofia natural (De Red. 22); e à rectidão como elevação ou inclinação para o alto,

na filosofia moral (De Red. 25).

Deste modo, a interpretação teológica dos saberes saberes humanos, segundo

Boaventura, não só nada lhes retira, não só nada lhes interdita, não só em nada os

limita, como é uma significação simbólica, que só lhes acrescenta mais sentido,

mesmo que não necessário.

Sugestões bibliográficas: Henri-Irénée MARROU, Saint Augustin et la fin de la

culture antique, Paris, 1938. – Étienne GILSON, La philosophie de saint

Bonaventure, 3 ª ed., Paris, 1953. – Henri de LUBAC, L’Exégèse Médiévale, Paris,

1959-1964. – Pierre COURCELLE, La consolation de la philosophie dans la

tradition littéraire. Antécédents et postérité de Boèce, Paris, 1967. – AAVV, Arts

libéraux et philosophie au moyen âge. Actes du IVe Congrès International de

Philosophie Médiévale (SIEPM), Montereal-Paris, 1969. – Joaquim Cerqueira

GONÇALVES, em Homem e Mundo em São Boaventura, Braga, 1970. – Maria

Cândida PACHECO, Ratio e Sapientia. Ensaios de filosofia medieval, Porto, 1985. –

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AAVV, IV Congresso Internacional de Latim Medieval Hispânico. Actas, coords.

Aires A. Nascimento e Paulo F. Alberto, Lisboa, 2006.

3. A filosofia e a religião

3.1. Perspectivas de aproximação

Nem sempre a filosofia teve aversão à religião, bem como nem sempre a religião

teve a filosofia sob suspeição. A história do pensamento ocidental regista, em

diversos momentos, múltiplas perspectivas de aproximação e até de harmonia, que

não significam anulação nem da filosofia pela religião nem da religião pela filosofia.

Essas perspectivas não teriam sido possíveis, se a filosofia tivesse excluído do seu

horizonte matérias que são incontornáveis no foro da religião, como o sentido da

divindade, a exigência de ética e os caminhos da espiritualidade. De igual modo, a

aproximação não seria possível, se também a religião se tivesse furtado por completo

ao horizonte da racionalidade filosófica, inclusivamente, quando se trate de religiões

reveladas, providas de livros sagrados. Nas religiões do livro, uma exegese permeável

à filosofia não pode satisfazer-se com o sentido literal, tem de admitir outros sentidos

e desenvolver a interpretação alegórica. Assim aconteceu com grandes exegetas, que

não encontraram incompatibilidade em ser também filósofos, como Fílon de

Alexandria, judeu e filósofo platónico (séc.I), Orígenes, cristão e filósofo platónico

(sec.II-III), ou Averróis, muçulmano e filósofo aristotélico.

Entre os textos que podem ilustrar diversas perspectivas de aproximação entre

filosofia e religião, destacamos por ora os seguintes: De Deo Socratis, de Apuleio,

oferecendo um desenvolvimento teológico da filosofia platónica; O Protréptico, de

Clemente de Alexandria18, propondo uma concepção de Logos divino, revelado

através da filosofia, da profecia, da poesia e da própria pessoa de Cristo; o Tratado

18 Le Protreptique, introd., trad. e notas de C. Mondésert, 2ª ed. rev. e aum. do texto grego estab. apartir das eds. Potter-Migne e Staehlin, com a colab. de M.A. Plassart, Paris, 1949, em SourcesChrétiennes 2, Paris, Cerf, 1949.

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decisivo, determinando a natureza da relação entre religião e filosofia, de Averróis19,

defendendo a legitimidade e a plausibilidade da exegese filosófica do Corão; o

Dialogus inter Iudaeum et Philosophum et Christianum, de Abelardo, evidenciando

que a ética é um domínio de interesse comum para filosofia e religião. Todas estas

perspectivas exemplificativas são datadas, respondendo às interpelações de contextos

histórico-culturais determinados e muito diferenciados, mas nem por isso deixam de

dar em comum testemunho profícuo do diálogo entre filosofia e religião.

A teologia platónica de ApuleioApuleio, filósofo latino do séc.II (ca.125-ca.170), dá testemunho, em particular,

de uma tendência para a religião a partir da filosofia, de modo que pode

caracterizar-se o seu pensamento como um platonismo de acentuado pendor religioso.

O filósofo platónico aproxima a tal ponto a filosofia da piedade, a verdadeira atitude

religiosa, que opõe a ambas tanto a superstição como a impiedade, em De Deo

Socratis (DDS 3, 122-123).

Nesta obra, Apuleio expõe as suas ideias teológicas, elaboradas a partir dos

elementos colhidos nos diálogos de Platão (Banquete 202 d – 203 a; Fédon 107 d 5;

República X, 617 d-e, 620 d-e). A sua teologia de inspiração platónica compõe-se de

duas partes principais: a teologia dos deuses superiores, e a teologia dos deuses

inferiores, chamados «demónios» (daemones), mediadores entre os deuses superiores

e os homens, no exercício da providência divina. Devido à inacessibilidade dos

deuses superiores, não é possível dizer muito sobre eles, sendo a parte superior da

teologia, pouco desenvolvida em Apuleio. Em contrapartida, a teologia dos deuses

inferiores, a demonologia, é a parte em que mais se alarga o discurso do teólogo

platónico. A demonologia foi, aliás, uma área teológica especialmente prezada no

séc.II, que ficou, por isso, conhecido como o século do demonismo. Entre os

principais demonólogos do séc.II, contam-se Plutarco, Máximo de Tiro, Celso e

Apuleio, tendo este introduzido na cultura latina a noção grega de demónio (daemon).

Segundo Apuleio, a ordem dos deuses integra-se na ordem da natureza do real. O

opúsculo De Deo Socratis começa por descrever a ordem dos deuses, isto é, a ordem

dos seres animados superiores (animalia praecipua), dividindo-a em três níveis

hierárquicos, o superior, o médio e o inferior (DDS 1, 115-116). No nível superior,

19 On the Harmony of Religion and Philosophy, UNESCO Collection of Great Works, Arabic Series,trad., introd. e notas de G.F. Hourani, Londres, 1976.

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que corresponde ao céu, residem os deuses imortais ou celestes. Destes, uns são

visíveis, como os astros, e outros são inteligíveis, como os deuses da cidade, Juno,

Vesta, Minerva, Ceres, Diana, Vénus, Marte, Mercúrio, Júpiter, Neptuno, Vulcano e

Apolo (DDS 1-2, 116-122). Atenda-se ao que diz Apuleio sobre os deuses

inteligíveis:

«Platão considera estes deuses naturezas incorporais, animadas, sem fim nemprincípio, mas eternas tanto no sentido do futuro como no do passado, afastadas porsua própria natureza do contacto do corpo, [dotadas] de uma capacidade perfeita paraa beatitude suprema, sem participação de algum bem exterior, mas boas por simesmas e com fácil, simples, livre e absoluto acesso a tudo aquilo que lhes compete.»DDS 3, 12320.

Os deuses inteligíveis caracterizam-se assim pela total separação da matéria e pela

perfeita auto-suficiência. No entanto, a pluralidade dos deuses inteligíveis não obsta

ao monismo fundamental da teologia de Apuleio, que se evidencia na consideração do

«pai dos deuses». Sobre o Deus supremo, são, porém, parcas as suas palavras:

«A respeito do pai destes [deuses], que é o autor e o senhor de todas as coisas,desligado de todos os laços de padecer ou de fazer algo, que nenhuma condiçãoobriga ao dever de alguma coisa, por que razão começaria eu agora a falar, uma vezque Platão, dotado de celeste eloquência, dissertando ao nível dos deuses imortais,proclama frequentissimamente que este único, pela superabundância incrível einefável da sua grandeza, não pode ser compreendido em qualquer discurso exíguo,dada a penúria da linguagem humana? Difícil [é] aos homens sábios, quando, com ovigor do espírito, se apartaram do corpo tanto quanto possível, atingir a inteligênciadeste deus, o que só acontece às vezes, como uma luz brilhando intermitentemente,com um rapidíssimo fulgor, nas densíssimas trevas.» DDS 3, 12421.

O Deus supremo caracteriza-se pela impassibilidade e pela superabundância, que

contrasta com a exiguidade do discurso humano. Este deve, pois, render-se ao silêncio

perante tal incomensurável grandeza, que a sabedoria humana não consegue

vislumbrar senão fugazmente. Apuleio renuncia, assim, à teologia do deus supremo.

De que deuses se propõe, então, Apuleio falar? Dos deuses intermediários e

mediadores entre os deuses superiores e os homens: os demónios, que desempenham a

função de exercer a providência divina sobre os homens, como é manifesto nos

seguintes passos:20 Texto estabelecido, traduzido e comentado por Jean Beaujeu, em Apulée, Opuscules Philosophiques(Du Dieu de Socrate, Platon et sa doctrine, Du monde) et Fragments, Paris, Les Belles Lettres, 1973,pp.22-23.21 Op. Cit., p.23.

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«A estes, os gregos deram o nome de “demónios”. Entre os habitantes da terra eos habitantes do céu, eles transportam as preces daqui e os dons do alto, (…). Poreles, como afirma Platão no Banquete, são regidas todas as revelações (denuntiata),bem como os diversos milagres dos magos e todas as espécies de presságios.» DDS 6,13322; «Não cabe aos deuses superiores descer até aqui; esta sorte coube às divindadesintermédias, que se movem nas regiões aérias, que têm fronteira com a terra e com océu, assim como em cada parte da natureza [residem] seres animados próprios, os querolam no éter, [ou] os que caminham na terra.» DDS 7, 13723.

Estes deuses intermédios, dados pelo nome de «demónios», caracterizam-se:

quanto ao lugar, por serem habitantes do ar (DDS 8, 137-140); quanto à natureza, pela

mistura de elementos superiores e inferiores (DDS 9, 140 – 10, 143), e por ser

corpórea, ainda que leve e subtil (DDS 11, 143-145); quanto às propriedades

essenciais, por serem imortais, como os deuses superiores, e passíveis, como os seres

humanos e ao contrário dos deuses superiores (DDS 13, 147-148). Na medida em que

são passíveis, os demónios necessitam e solicitam grande variedade de formas rituais

de culto (DDS 14, 148-150). A diversidade de cultos religiosos é assim compreendida

à luz da passibilidade dos demónios.

Em suma, Apuleio define os demónios como seres animados, racionais, passíveis,

com corpos aérios e vida eterna (DDS 14, 148). Este género de seres animados

divide-se em duas espécies: a dos demónios com ligação ao corpo humano, como seja

a alma humana, que pode receber o nome de “génio” (DDS 15, 150-152), ou a alma

humana separada do corpo após a morte, como sejam as almas dos antepassados ou os

deuses familiares, os Lemures ou os Manes, os Lares (benfazejos) e as Larvas

(malfazejas), no contexto da cultura romana (DDS 15, 152-154); e a dos demónios

independentes do corpo humano e de natureza superior, como sejam o Sono, o Amor,

o demónio de Sócrates (DDS 16, 154-156).

Estes demónios superiores é que constituem o objecto específico de De Deo

Socratis e são alvo do empenho apologético de Apuleio. Eles são os guardiães

particulares dos seres humanos, exercendo sobre estes uma acção ou uma influência

providente. Eles conhecem inteiramente o interior da alma humana e nela exercem

também o papel de consciência moral, aprovando o bem e reprovando o mal. Eles são

testemunhos activos da alma que guardam, advertindo, apoiando ou repreendendo,

antes e depois da morte, diante do tribunal que julga os méritos da vida terrena (DDS

22 Op. Cit., p.26.23 Op. Cit., pp.27-28.

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16, 155-156). O demónio de Sócrates, manifesto através de uma espécie de voz, teria

exercido a sua influência providente, através de advertências no sentido de impedirem

uma ou outra acção de Sócrates, que comportasse perigo (DDS 17-20, 157-167).

Esta demonologia filosófica de inspiração platónica corresponde à necessidade de

mediação entre a esfera dos deuses superiores e a dos seres humanos, dada a distância

que separa aqueles destes (DDS 4, 127-128), e a natural impassibilidade dos deuses

superiores, que os impede de exercer providência directa sobre os humanos (DDS 12,

146-147). Esta concepção da providência divina exercida através dos demónios

permite, aliás, contornar a objecção que, inevitavelmente, se coloca à providência

exercida por um deus único: dadas as injustiças que abundam no mundo, o deus único

providente ou será injusto ou não será omnipotente. Ora, os demónios de Apuleio são

múltiplos e não são omnipotentes, exercendo uma providência de prevenção, à qual

não serão imputáveis os desequilíbrios e as desarmonias do mundo humano. Nessa

medida, o politeísmo de Apuleio oferece, na questão da providência divina, uma

resposta filosoficamente preferível à do monoteísmo providencialista.

No entanto, por influência da tradição judaico-cristã, a cultura ocidental não

conservou a noção grega de demónio benfazejo. Fílon de Alexandria, no séc.I, tinha já

fundido a noção grega de demónio com a noção bíblica de anjo24, e a tradição cristã,

adoptando a assimilação feita por Fílon, identificou os anjos caídos do judaísmo com

os deuses e os demónios das religiões pagãs, como ilustram os textos de Justino de

Roma ou de Agostinho de Hipona.

Agostinho: crítico de ApuleioEm De Civitate Dei (413-426), Agostinho desenvolve uma extensa crítica à

demonologia platónica, desde logo a de Apuleio (DCD VIII, 16-22; IX, 1-17; X, 27).

A partir da definição de demónio segundo Apuleio, Agostinho questiona-se acerca do

privilégio da condição dos demónios relativamente a homens e deuses, e encontra

mais inconvenientes do que privilégios: como o inconveniente da passibilidade,

segundo a qual os demónios são seres sujeitos a paixões, tal como os homens (DCD

VIII, 16 e 17; IX, 3 e 6-7; X, 27); ou como a ausência de virtude, de sabedoria e de

felicidade, entre os atributos dos demónios, na definição de Apuleio (DCD VIII, 16;

IX, 8-10 e 12-13). Agostinho questiona também o papel mediador dos demónios entre

24 Cf. E. Bréhier, Les idées philosophiques et religieuses de Philon d’Alexandrie, 2ª ed., Paris, 1925,p.126.

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os deuses superiores e os homens, considerando que a atribuição de um papel

mediador aos demónios diminui a dignidade humana (DCD VIII, 18 e 20), e que a

mediação dos demónios não é necessária aos deuses superiores, porquanto estes têm a

capacidade de conhecer o espírito do homem (DCD VIII, 21).

Por outro lado, Agostinho identifica a noção platónica de demónio, com a noção

judaico-cristã de anjo caído (DCD VIII, 22). A acção dos demónios não pode assim

ser uma acção benfazeja. E mesmo a acção dos anjos perseverantes não parece

indispensável na teologia de Agostinho. Com efeito, Agostinho não substitui a

demonologia platónica por uma angelogia de inspiração judaico-cristã. À

demonologia platónica, o bispo de Hipona contrapõe, especialmente, a doutrina de

Cristo mediador, homem e Deus, só transitoriamente mortal, a fim de conduzir os

homens da mortalidade para a imortalidade (DCD IX, 15 e 17). É, assim, que a

cristologia de Agostinho se impõe no cerne da sua teologia, oferecendo uma resposta

alternativa à platónica, na questão da mediação entre Deus e os homens, e

reconfigurando o sentido da providência divina.

3.2. Filosofia e cristianismo

O cristianismo e a filosofia são duas tradições milenares que se cruzaram na

história da civilização ocidental. Não fosse este cruzamento, teria sido outra quer a

história da filosofia quer a história do cristianismo, sobretudo, a história da teologia

cristã. O cruzamento da herança grega da filosofia com a herança religiosa

judaico-cristã é um facto tão incontornável e de tal modo configurante da cultura e do

pensamento ocidentais que não é possível compreender como é que a filosofia

perdurou e se transformou até aos nossos dias, sem a influência do cristianismo, nem

compreender a inteligência teológica que o cristianismo adquiriu acerca de si mesmo,

sem a influência da filosofia.

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3.2.1. Relação de influências recíprocas

O teoantropocentrismoUma das vertentes mais relevantes da influência do cristianismo na filosofia

parece-nos ser a acentuação de certas dominâncias temáticas, como sejam as

dominâncias correlativas do tema de Deus e do tema do homem. A filosofia, sob

influência do cristianismo, tendeu a centrar-se quer em Deus quer no homem,

oscilando pendularmente entre o teocentrismo e o antropocentrismo. Se quisermos

sintetizar, numa só palavra, esta dupla preferência temática, diremos que a filosofia de

influência cristã é teoantropocêntrica, e não poderia deixar de o ser. Objectar-nos-ão,

porventura, que isso não é uma novidade ou uma diferença significativa, porquanto a

tradição da filosofia grega não era alheia nem ao divino nem ao humano. Sem dúvida

que não, mas, na antiga filosofia grega, o divino era necessário, sobretudo, à

explicação da ordem do universo, não correspondia directamente às solicitações

humanas. Daí a crítica dos primeiros filósofos do cristianismo aos limites, senão

mesmo à ausência do sentido de providência na antiga teologia filosófica grega,

crítica especialmente dirigida a Aristóteles e a Epicuro25. A relação entre o humano e

o divino dar-se-ia, privilegiadamente, por via das mediações necessárias do processo

de conhecimento. Em contrapartida, o cristianismo transmite o sentido de uma

solicitude directa do divino para com o humano.

É verdade que, por um lado, o cristianismo não poderia deixar de estimular o

teocentrismo, pois é Deus que está no princípio (Gn. 1, 1; Jo. 1, 1). Mas Deus não

ficou apenas no princípio, ele continuou velando providentemente por toda a

realidade decorrente, em especial, pelo ser humano, cujas dimensões interior e

histórica elegeu como domínios privilegiados de intervenção e manifestação. Por essa

razão, o cristianismo não poderia deixar de estimular, por outro lado, o

antropocentrismo.

Entretanto, como se verifica, na filosofia marcada por assumida influência do

cristianismo, esse duplo centrismo que damos pelo nome de teoantropocentrismo?

Verifica-se na correlação entre a compreensibilidade de Deus e a do homem: Deus é

pensável através da compreensão do ser humano e este é compreensível através do

que sobre Deus é possível pensar. Esta correlação era autorizada pela afirmação

25 Cf. Clemente de Alexandria, Protréptico V, 66, 4-5, que exemplifica de forma nítida e incisiva estacrítica.

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bíblica de que o homem fora feito à imagem e semelhança de Deus (Gn. 1, 26-27).

Embora a afirmação da semelhança entre o humano e o divino não seja um legado

exclusivo da tradição judaico-cristã, sob influência desta tradição, tal afirmação

obteve relevância especial e apreciável elaboração filosófica.

Sementes de ateísmoUma das teses maiores da filosofia da criação, elaborada por influência da

tradição judaico-cristã, é a afirmação de um Criador livre: Deus não criou por

necessidade, mas por livre vontade. A concepção de uma criação livre permite pensar

Deus absolutamente, isto é, abstraindo da relação com a criação. Deus torna-se, então,

pensável independentemente do mundo da criação. Esta foi uma possibilidade

desenvolvida pela teologia negativa, que preconiza serem mais adequadas a Deus as

negações do que as afirmações dos atributos construídos por analogia com o mundo

da criação, com o ser humano inclusiva e privilegiadamente26. Contudo, os teólogos

de confissão cristã, que elaboraram abundantemente teologia afirmativa, sentiram por

vezes a necessidade de relativizá-la através das negações. Porquê? Porventura, porque

pensar Deus, sobretudo, pela sua solicitude para com o homem e por via de analogias

com o ser humano, conduzia a conceber um Deus para o homem e à medida do

homem. Pensar Deus, sobretudo, em relação com o homem, conduzia a

instrumentalizar Deus ao serviço dessa relação, e, desse modo, a diminuí-lo. Daí a

necessidade de abstrair da relação privilegiada com o homem, para pensar Deus

absolutamente, de modo conforme com a sua originária liberdade criadora.

Esta necessidade de aprofundamento do pensar teológico não deixou de ter, a

nosso ver, significativas repercussões filosóficas de longo prazo. A possibilidade de

pensar Deus fora da relação com o homem, a fim de libertá-lo de uma concepção

excessivamente condicionada por essa relação, terá dado lugar, de forma mediata, à

possibilidade simétrica: a de pensar o homem fora da relação com Deus, a fim de

libertá-lo de uma concepção excessivamente condicionada por essa relação. Se não é

necessário pensar Deus em relação com o homem, também se pode tornar

26 Como preconiza Dionísio, o Pseudo-Areopagita, referência incontornável da tradição da teologianegativa. Sublinhe-se, todavia, que, de acordo com a ordem dionisiana das teologias, as negações nãodevem começar senão quando acabarem as afirmações, isto é, depois de esgotadas todas aspossibilidades da teologia afirmativa: cf. Teologia mística <3-5> (texto da ed. crítica de G. Heil e A.M.Ritter, reprod. em Mediaevalia 10, Porto, 1996, pp.18-24). Quer isso dizer que Deus não é pensávelpara além do mundo senão depois de esgotadas todas as possibilidades de pensá-lo por analogia com omundo.

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desnecessário pensar o homem em relação com Deus. É certo que, na concepção de

uma criação livre ou incondicionada, o criador não depende da criatura mas a criatura

depende do criador. Logo, é possível pensar Deus separado do homem mas não

pensar o homem separado de Deus. Não há assim perfeita reciprocidade ou simetria

na relação entre Deus e o homem. Esta relação inclui uma diferença irredutível entre

os seus termos, que, quanto mais acentuada for, maior desnível estabelece entre os

diferenciados, e quanto maior for o desnível maior será a tensão entre o termo

superior e o termo inferior. Se, dentro desta tensão, a grandeza superior de Deus corre

o risco de ser diminuída pela própria relação com o homem, a grandeza inferior do

homem não é tal senão na relação com Deus. Na tensão entre Deus e o homem, se

Deus pode sair diminuído, o homem está já à partida diminuído, dada a sua originária

dependência. Libertar o homem desta dependência não será uma possibilidade

teologicamente ratificável, mas pode ser uma reivindicação antropologicamente

tentadora. A reciprocidade, que a afirmação da relação entre Deus e o homem não

assegura, pode ser de certo modo alcançada pela negação dessa relação: assim como

tal negação permite pensar Deus absolutamente, assim também ela permitirá, de

forma simétrica, pensar o homem absolutamente. Esta possibilidade torna-se pensável

através da radicalização do pensar teológico. Deste modo, o desenvolvimento

teológico do cristianismo comporta sementes de ateísmo, que vieram realmente a

frutificar na história recente da filosofia ocidental, como ilustra o tema da morte de

Deus27. De facto, sem a influência directa e indirectamente exercida pelo cristianismo

na filosofia, as modernas negações de Deus seriam, para nós, incompreensíveis.

Novos modelos de inteligibilidadeMas, não só através do aprofundamento da reflexão sobre Deus e sobre o homem,

como mediação privilegiada da relação com Deus, o cristianismo exerceu influência

na filosofia. Essa influência fez-se sentir também de outro modo, a saber, através do

provimento de novos modelos de inteligibilidade, constituídos pelo esforço de

elaboração teológica, que a evolução cultural do próprio cristianismo suscitou. Esses

modelos são, na realidade, temas teológicos que se projectam como formas de

organização e de inteligibilidade de matérias não teológicas. Ora, há dois temas

nucleares da teologia tradicional do cristianismo que se constituíram como modelos27 Não se pretende aqui dar uma razão exclusiva ou cabal da emergência do tema da morte de Deus nahistória do pensamento ocidental, mas sim sugerir apenas que a possibilidade deste tema se inscreve nopróprio desenvolvimento da teologia do cristianismo.

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para a inteligibilidade de outros temas da compreensão filosófica: a Trindade e a

Incarnação.

A conversão destes dois temas teológicos em modelos de inteligibilidade de

outros temas filosóficos deixa-se verificar muito expressivamente no pensamento de

Agostinho de Hipona. Com este teólogo e filósofo, o tema da Trindade tornou-se

modelo de inteligibilidade de um dos temas clássicos da filosofia grega: a alma.

Concomitantemente, o tema da Incarnação tornou-se modelo de inteligibilidade de um

tema incontornável para o antigo retórico: a linguagem. Pertinente se torna, para nós,

apreciar o alcance dessa aplicação dos modelos teológicos da Trindade e da

Incarnação à compreensão, respectivamente, dos temas filosóficos da alma e da

linguagem.

De acordo com a teologia augustiniana da Trindade, elaborada ao longo dos

primeiros sete livros da obra De Trinitate, cerca de três quartos de século volvidos

sobre o concílio de Niceia (325), a unitrindade divina deixa-se traduzir

conceptualmente do seguinte modo: a unidade divina pode ser tomada por uma

unidade de substância, ou de essência; a trindade pessoal corresponde, por sua vez, a

uma pluralidade de relações no interior de uma só substância ou essência. Esta

tradução conceptual da unitrindade divina, longe de esclarecer o mistério da Trindade,

conduziu Agostinho a procurar nas naturezas criadas analogias possíveis com a

unitrindade divina, a fim de aprofundar o grau de compreensão da sua fé em Deus uno

e trino. Entre as naturezas criadas, Agostinho elegeu a alma humana, como lugar das

melhores analogias com a unitrindade divina. Ao fazê-lo, Agostinho quis encontrar a

chave, não só do enigma da Trindade, como do mistério que o homem é para si

próprio.

A psicologia trinitária desenvolve-se ao longo dos oito restantes livros (VIII-XV)

de De Trinitate, reorganizando as diversas faculdades humanas e integrando múltiplos

níveis da experiência cognitiva. A formulação conceptual da unitrindade divina

converte-se, então, em modelo de inteligibilidade da alma humana: à luz do modelo

divino, constituído por uma substância e três relações, a alma humana é

substancialmente una e relacionalmente trina, ou seja, é uma só substância, composta

por três partes funcionalmente inter-relativas e interactivas. Especificando, a alma

racional, ou seja, a mente, na linguagem augustiniana, é substancialmente una e trina

quanto às faculdades, a memória, a inteligência e vontade. Nesta trindade da mente,

ou também do homem interior, Agostinho sublinha que não há acto de memória que

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não comporte um acto de inteligência e outro de vontade, como não há acto de

inteligência que não mobilize a memória e a vontade, ou acto de vontade que não

mobilize as duas outras funções mentais (De Trin. X, 11, 17-18; XV, 7, 11-13; 20, 39

- 23, 43). De acordo com esta inter-dependência funcional, as faculdades deixam de

ser pensadas separadamente, como virtualidades autónomas, e tornam-se funções

inteiramente correlativas entre si, de modo que uma nunca age sem o concurso de

outras duas, o que só por si constitui uma revisão crítica do seu estatuto tradicional.

O mesmo modelo trinitário estende-se à filosofia augustiniana da linguagem, no

que concerne à noção de verbo mental, elaborada também em De Trinitate. Tal noção

de verbo é ainda uma parte componente da teoria da alma trinitária, como expressão

directa de conhecimento adquirido, que é, conforme acabámos de descrever, um

processo trinitário. Não é, entretanto, infundadamente que a noção de verbo mental

vem sancionar tão estreita relação entre linguagem e conhecimento. No diálogo De

Magistro, anterior àquele tratado teológico, o autor efectua algumas finas análises da

nossa experiência de comunicação verbal, e, com base nelas, defende que o

conhecimento é um factor constituinte e condicionante da linguagem. Ora, o modelo

trinitário da alma permite dar conta deste estreito vínculo da linguagem ao

conhecimento: tal como, na Trindade modelar, é gerado o Verbo (Logos), que

exprime constitutivamente a sabedoria divina, assim também, na alma trinitária, é

gerado um verbo, que exprime inerentemente o conhecimento adquirido, seja a que

nível for (De Trin. IX, 6, 9 - 11, 16; XV, 10, 17 - 11, 20). Tal é o verbo mental, que se

define, antes de mais, pelo seu conteúdo cognitivo. Sendo um verbo cognitivo, quanto

ao conteúdo, o verbo mental é também um verbo cogitativo, quanto à sua índole ou

natureza (De Trin. XV, 10, 17 - 18; 11, 20; 15, 25). Quer isso dizer que o verbo

mental é feito de cogitação, ou pensamento. Exprimir mentalmente dado

conhecimento é, então, o mesmo que pensá-lo. Assim entendida, a noção augustiniana

de verbo mental permite conceber o pensamento como uma linguagem interior da

mente, mas não a torna comunicante, isto é, sensivelmente perceptível aos outros.

Para esse efeito, Agostinho convoca outro modelo teológico, intimamente conexo

com o da Trindade, que é o da Incarnação: tal como o Verbo se fez carne (Jo. 1, 14), e

nela se manifestou sensivelmente ao homem, assim também o verbo mental se fez

voz, para que nela se manifestasse aos sentidos humanos (De Trin. XV, 10, 19 - 11,

20; De Doctrina Christiana I, 13, 12). A fala é, portanto, a incarnação do verbo

mental. Cabe, então, perguntar: que vantagens e virtualidades deste modelo

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incarnacional, para a filosofia da linguagem? Por um lado, este modelo realça o papel

do conhecimento na origem da fala e, desse modo, permite aprofundar a questão

clássica da origem da linguagem verbal. Esta questão era tradicionalmente debatida

entre duas possibilidades opostas: a hipótese naturalista, segundo a qual as palavras

são constituídas por semelhança com a natureza das coisas; e a hipótese

convencionalista, segundo a qual as palavras não procedem senão de convenções

humanas. Agostinho dá indícios de não prescindir, pelo menos em parte, de qualquer

destas duas hipóteses extremas. Todavia, a aplicação do modelo incarnacional à fala

obriga a considerar a mediação da mente (através do conhecimento), quer entre as

palavras e as coisas quer entre as palavras e as convenções: as palavras não são sinais

imediatos das coisas, mas sinais mediatos das coisas que são conhecidas; as palavras

não resultam de convenções arbitrárias, mas de convenções fundamentadas no

conhecimento da realidade. Por outro lado, o modelo incarnacional da fala sublinha

um aspecto da linguagem, que é porventura uma das principais razões do seu valor: a

capacidade de unir o interior e o exterior, de tornar sensível o conhecimento invisível,

ou audível a significação inteligível. Sem esta capacidade, a linguagem verbal não

poderia prover à comunicação inter-subjectiva. Por conseguinte, o modelo teológico

da Incarnação contribui significativamente para discernir as componentes do processo

de constituição da linguagem verbal. A proposta augustiniana de aplicação do modelo

incarnacional à fala não é, pois, desprovida de razões de pertinência filosófica.

A teologia do cristianismo filosoficamente ditaApós a consideração de várias vertentes de influência do cristianismo na tradição

filosófica, convém não esquecer que a influência é recíproca, ou seja, que também a

filosofia teve um papel não despiciendo na elaboração teológica do cristianismo. Se

ocorreu uma apropriação filosófica de modelos teológicos, não menos se verificou

também uma apropriação teológica de elementos da herança filosófica grega. Se os

modelos trinitário e incarnacional constituíram formas para a compreensão da mente e

da linguagem, os próprios temas da Trindade e da Incarnação não foram

teologicamente reflectidos sem o concurso e os recursos da filosofia. Não fosse a

influência da filosofia, a teologia do cristianismo teria, porventura, sido outra. Não

nos compete dizer como é que, nessa hipótese, a teologia teria sido; cabe-nos, sim,

perceber como é que a filosofia contribuiu para que a teologia cristã se definisse,

como efectivamente se definiu, ao nível das suas fundamentais doutrinas.

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Atente-se, antes de mais, no facto de que a teologia do cristianismo começou por

dizer-se em grego: os primeiros grandes teólogos cristãos falavam em grego e tinham

formação filosófica; as primeiras grandes reuniões conciliares tiveram lugar em

cidades do mundo helenístico de então, e estabeleceram as principais doutrinas

teológicas em língua grega. Entre essas doutrinas, encontram-se, em primeira linha,

aquelas que começam a interpretar a acepção de Deus como Trindade e a identidade

de Jesus Cristo como o Verbo (Logos) incarnado. Ora, essas interpretações doutrinais

não só são expressas em língua grega como são formuladas em linguagem filosófica,

isto é, na linguagem nocional ou conceptual da tradição da filosofia grega.

A primeira doutrina estruturante da teologia da Trindade foi aprovada no concílio

de Niceia (325) e estabelece a consubstancialidade do Verbo ao Pai. Urgia fixar esta

doutrina para combater uma forte corrente de interpretação, encabeçada por Ário, que

negava a divindade do Verbo. Posto que Deus é ingénito, o Verbo gerado pelo Pai não

pode ser divino na mesma medida em que o Pai ingénito o é. Daí a acepção do Verbo

como primeira criatura de Deus.

A interpretação ariana tem clara pertinência filosófica, porquanto mais não faz do

que aplicar um princípio amplamente assumido na tradição da filosofia grega, a saber,

o princípio da superioridade do originante ao originado, ou, em termos mais habituais,

da causa ao efeito. A superioridade do originante será ainda reforçada pela condição

de ser um originante não originado, condição que assinala a divindade do Pai. Por

conseguinte, um originante não originado, isto é, um princípio divino não pode

igualar-se àquilo a que dá origem, nem que seja o seu originado mais próximo, como

é o caso do Verbo de Deus. Todavia, esta versão da relação entre Deus Pai e o seu

Verbo não permitia afirmar a unidade divina de ambos, o que era grave inconveniente

teológico para muitos, como o comprovam a dimensão e as repercussões da

controvérsia anti-ariana.

Na verdade, a unidade divina dos dois membros da Trindade era crucial a dois

títulos: por um lado, só essa unidade podia prover à dignidade divina do Verbo, ao

mesmo nível da sua origem; por outro lado, só essa unidade podia acautelar a

unicidade de Deus trino, isto é, salvaguardar a orientação monoteísta da teologia da

Trindade. Essa unidade devia, pois, ser tão forte que assegurasse a comum divindade

dos membros da Trindade, sem que tal implicasse uma trindade de deuses. Mas, como

conceber nocionalmente e exprimir verbalmente uma unidade capaz de satisfazer

estas exigências? Para alguns, poderia talvez bastar uma unidade de semelhança.

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Note-se, porém, que a noção de semelhança é passível de graus, dispondo-se a cobrir

diferenças acentuadas, pelo que não bastaria para impedir uma trindade graduada de

deuses. Impunha-se uma forma de unidade mais forte e estreita, a forma de unidade

mais forte e estreita que fosse racionalmente concebível. Assim era a unidade de

substância (ousia), para os que aprovaram a doutrina nicena da consubstancialidade

do Verbo ao Pai (homoousios). A unidade de substância era, com efeito, a forma de

unidade mais forte e estreita que a filosofia permitia conceber. A noção de substância

era, na verdade, um legado da tradição filosófica greco-latina, não era uma noção

bíblica.

Foi, portanto, com recurso à tradição filosófica, que os teólogos presentes em

Niceia começaram a delinear uma teologia da Trindade, em alternativa à teologia do

arianismo, que dissolvia a unidade e a igual divindade do Verbo e do Pai. Se a

teologia ariana não era filosoficamente impertinente, a teologia nicena também não se

elaborou sem o contributo da filosofia. A formulação e o confronto entre as duas

teologias não poderia, aliás, ter decorrido fora do contexto cultural em que a filosofia

era uma tradição enraizada.

Entretanto, a teologia da Trindade não se constituiu apenas no âmbito da

controvérsia anti-ariana. Uma outra corrente teológica tomava fôlego ao longo dos

sécs. II e III, culminando com a figura de Sabélio, de quem recebeu o nome com que

ficou conhecida. No extremo oposto ao arianismo, o sabelianismo prezava de tal

modo o imperativo da unidade divina da Trindade que dissolvia a diversidade das três

pessoas divinas. Para além da unidade divina, isto é, da unidade de substância ou de

essência, a interpretação sabeliana defendia a unidade pessoal da Trindade. Deus trino

era uma só substância e uma só pessoa. Mas, se não se tratava de uma pluralidade de

pessoas, em que consistia então a Trindade? Tratava-se de uma pluralidade de rostos

da mesma pessoa, de aspectos do mesmo Deus, em função de modos distintos da

relação de Deus com o mundo: o Pai seria o rosto de Deus criador; Jesus Cristo, o

rosto de Deus incarnado; e o Espírito Santo, o rosto de Deus santificador. A Trindade

seria assim a pluralidade de rostos que Deus, unipessoal, teria assumido por exigência

da sua relação com o mundo. Esta sensibilidade teológica, que sacrifica a diversidade

trinitária, esvaziando-a de densidades pessoais, em favor da unicidade pessoal de

Deus, não deixa de ser filosoficamente atractiva.

Na tradição filosófica ocidental, o uno foi sempre mais inteligível do que o

múltiplo, e a grande dificuldade foi sempre a de integrar o múltiplo num todo

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abrangente e organizado. Esta principal dificuldade tem sido também o grande desafio

da filosofia. Será, pois, filosoficamente mais inteligível que Deus seja uno a todos os

títulos do que múltiplo a algum título determinante, como no caso de ser pluripessoal.

Daí que a influência do sabelianismo se tenha feito sentir persistentemente ao longo

dos séculos, nas tradições cruzadas da filosofia e do cristianismo ocidentais, quer em

acepções mais filosoficamente elaboradas de Deus quer em versões menos

autorizadas da teologia cristã da Trindade.

No entanto, a teologia sabeliana não anulava pura e simplesmente a Trindade,

apenas a reduzia a uma pluralidade de rostos de Deus para nós. Ora, não bastaria tal,

para articularmos entre si os três nomes divinos que sobressaem nos textos do Novo

Testamento? Que inconveniente poderá ocultar-se em tal interpretação? Do ponto de

vista devocional, ela não impediria nem devoções preferenciais a uma ou outra pessoa

divina nem a prestação de culto diferenciado a cada uma das pessoas divinas, como

veio a ser consagrado liturgicamente, e relevado pela religiosidade popular. Mas, do

ponto de vista mais estritamente teológico, haverá, porventura, uma razão decisiva

para reconhecer densidade pessoal nos três rostos de Deus: a possibilidade de

considerá-los fundamentalmente ao nível das respectivas relações inter-pessoais, e

não só em função da relação com o mundo. Na verdade, o sabelianismo tornava

impossível essa consideração das pessoas divinas em relação umas com as outras,

independentemente da criação. Na teologia sabeliana, a concepção da Trindade estava

inteiramente condicionada pelo dado da criação. Não fosse a criação, a Trindade

perderia todo o sentido. Ora, a fim de que a Trindade não redundasse numa

pluralidade de aspectos divinos relativos e exteriores à essência de Deus, era preciso

adensar e aprofundar o sentido da respectiva diversidade pessoal.

Não bastava para tal, apelar a uma das acepções mais antigas do termo «pessoa»

(prosopon; persona), a de máscara, visto que as três pessoas divinas não são apenas

três rostos de Deus. As pessoas divinas devem ser análogas a indivíduos. Mas cada

indivíduo é uma substância e as três pessoas divinas integram uma só e única

substância. Por conseguinte, as pessoas divinas não poderiam ser diferenciadas

através da noção de substância (ousia), que se tornou permutável com a noção latina

de essência (essentia). A teologia cristã oriental, de expressão grega, aplicou à

pluralidade trina de Deus a noção de hipóstase (hypostasis), que significa substância,

entendida como algo subjacente (o que está sob), e que confere maior espessura à

diversidade pessoal da Trindade. Mas, quer se diga em termos de três hipóstases quer

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de três pessoas, a Trindade requeria ser concebida em razão de si mesma, não apenas

em função do mundo da criação.

Para esse efeito, a teologia da Trindade valorizou e incorporou uma outra noção

filosófica, presente no rol das categorias de Aristóteles: a relação. Nomes trinitários,

como «Pai» e «Filho», são nomes relativos, dado que são nomes das relações,

respectivamente, de paternidade e de filiação. Estes nomes poderão, então, querer

dizer que há relações na Trindade, que a sustentam e que não dependem do evento da

criação. Essas relações permitem ainda diferenciar o perfil particular de cada pessoa

divina, como se verificou com especial ênfase na teologia latina da Trindade. Aquilo

que distingue o Pai é ser a origem do Filho e aquilo que distingue o Filho é ter origem

no Pai. A teologia do Espírito Santo seguiu rumos similares, ou seja, também a

distinção da terceira pessoa da Trindade foi imputada à sua relação de origem, embora

a concepção da origem do Espírito Santo se tenha tornado objecto de divergências

significativas entre o cristianismo ocidental e o oriental. Em qualquer caso, a teologia

da Trindade não se constituiu senão apropriando-se de recursos conceptuais da

filosofia, acusando incontornável a influência da tradição filosófica na teologia do

cristianismo.

Assim, a teologia da Trindade configurou-se através da compatibilização de duas

exigências opostas entre si, a saber, salvaguardar, por um lado, a unidade substancial

ou essencial de Deus, e, por outro, a trindade pessoal. O arianismo desencadeou a

exigência de salvaguardar a unidade substancial de Deus trino, enquanto o

sabelianismo motivou a exigência oposta de acentuar a diversidade pessoal da

Trindade. A teologia da Trindade definiu os seus principais contornos na busca de um

ponto de equilíbrio entre dois extremos, o arianismo e o sabelianismo.

Algo similar ocorreu noutra área não menos fulcral da teologia do cristianismo: a

cristologia. Recordemos a pergunta que, nos Evangelhos, Jesus dirigiu aos seus

discípulos: «“Mas para vós, quem sou eu?” Simão Pedro respondeu: “Tu és o Cristo,

o Filho do Deus vivo”» (Mt. 16, 15-16). Esta resposta de Pedro, não menos

humanamente enigmática do que divinamente revelada (Mt. 16, 17), tornou-se fonte

de inspiração para a teologia. Como compreender tal resposta? Como secundar Pedro,

na sua resposta? A teologia procurou, de facto, secundar a resposta de Pedro, mas não

sem o concurso da filosofia.

A resposta de Pedro, reconhecendo a filiação divina de Jesus, suscitava a seguinte

pergunta: em Jesus, o Cristo, o que é que era humano e o que é que era divino? Para

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uns, como Nestório, havia duas pessoas em Jesus, uma humana e outra divina; para

outros, como Eutiques, Jesus tinha uma só natureza, a divina, na qual se subsumia a

sua humanidade. Nenhuma destas duas interpretações vingou: o nestorianismo foi

condenado no concílio de Éfeso (431) e o monofisismo de Eutiques foi igualmente

rejeitado no concílio de Calcedónia (451). Os teólogos conciliares procuraram um

ponto de equilíbrio entre as duas interpretações extremas, isto é, entre a consideração

de duas pessoas de naturezas distintas e a redução da dualidade de naturezas à

unidade da natureza superior. Esse ponto de equilíbrio, que tornou heréticas estas

versões, traduziu-se pela seguinte doutrina: em Jesus, há duas naturezas e uma só

pessoa. Assim se definiu a identidade de Jesus, pelo consenso dos teólogos, no

concílio de Calcedónia (451). Assim definiu a teologia, conciliarmente autorizada, a

identidade de Jesus. Essa definição não prescinde, porém, de noções filosóficas: a

noção de natureza (fysis), para exprimir a irredutibilidade dos elementos humano e

divino em Jesus; e as noções de pessoa (prosopon) ou de hipóstase (hypostasis), para

traduzirem a unicidade singular de Jesus. A teologia muniu-se, assim, de recursos

conceptuais da tradição filosófica, também para dizer conjuntamente a humanidade e

a divindade de Jesus. A identificação teológica de Jesus foi, deste modo, um

reconhecimento filosoficamente dito.

Em suma, tanto a teologia da Trindade quanto a cristologia, as duas áreas mais

peculiares da teologia do cristianismo, definiram as respectivas orientações axiais em

clima de controvérsia, buscando um ponto de equilíbrio, um meio equidistante de

posições extremas, que se tornaram, por consequência, desviantes. Em ambas as áreas

teológicas, tanto as doutrinas conciliarmente ratificadas quanto as desviantes

formularam-se em termos colhidos da tradição filosófica. A teologia do cristianismo

começou, pois, desde cedo, a partir dos primeiros movimentos e formulações

doutrinais, a dizer-se filosoficamente.

O cristianismo como filosofia em questãoA relação entre a filosofia e o cristianismo atravessou um momento especial de

consciência crítica no âmbito da controvérsia dos anos 30 do séc. XX, em torno da

questão da existência de uma filosofia cristã, ou seja, a questão de saber se o

cristianismo pode ser considerado uma filosofia. Esta questão envolveu, como

protagonistas, dois historiadores da filosofia, Émile Bréhier e Étienne Gilson.

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Em 1928, Bréhier profere, em Bruxelas, três conferências subordinadas ao título:

«Haverá uma filosofia cristã?». A sua resposta é negativa, o que se repercute

desfavoravelmente na avaliação da filosofia medieval, na medida em que esta integra

a influência do cristianismo28. Bréhier confina o cristianismo a uma forma de

solidariedade social e a uma espiritualidade caracterizada pela imprevisibilidade de

iniciativas que não têm de obedecer a um plano racional. Esta perspectiva de um

cristianismo, sobretudo, social e espiritual, mas não filosófico, não pôde deixar de se

repercutir negativamente na avaliação da filosofia medieval, mas não ficou sem

protesto.

O interlocutor mais imediato de Émile Bréhier foi Étienne Gilson, defendendo

teses opostas às de Bréhier, na Sociedade Francesa de Filosofia, em 1931. Nesse

mesmo ano e no ano seguinte, 1932, na Universidade de Aberdeen e no âmbito das

Gifford Lectures, Gilson profere as séries de lições, que dão origem à obra L’Esprit

de la Philosophie Médiévale. Obra escrita no contexto da controvérsia com Bréhier,

ela é uma espécie de carta de apresentação da filosofia medieval, a partir da qual se

torna impossível negar a esta, existência e valor.

A controvérsia repercutiu-se de imediato em pensadores de confissão cristã,

sobretudo de expressão francófona, que vieram acrescentar múltiplas versões do que

se possa entender por filosofia cristã. Essas versões deixam-se aglutinar em duas

principais linhas de interpretação: uma preconiza que filosofia cristã é uma concepção

do universo elaborada com base nos textos bíblicos29; a outra identifica filosofia cristã

com uma filosofia que parte dos seus próprios recursos e atinge resultados afins ou

próximos do cristianismo30. Na primeira linha de interpretação, uma filosofia é cristã

quanto ao seu princípio nas Escrituras, enquanto, na segunda linha de interpretação,

uma filosofia é cristã no fim, isto é, no apuramento de teses compatíveis com o

cristianismo.

Estas duas grandes linhas de interpretação do conceito de filosofia cristã não são

inteiramente novas nem originais; ambas encontram correspondentes remotos em

referências dos primeiros séculos de implantação do cristianismo no mundo

mediterrânico. Com efeito, a admissão de que o cristianismo comporta uma filosofia

própria foi partilhada por autores, como Justino de Roma, Clemente de Alexandria,

28 Posição expressa e revista em É. Bréhier, Histoire de la Philosophie. I: Antiquité et Moyen Âge, 2ªed. rev. Paris, Quadrige/ PUF, 1983, II, c.VIII, s.I, pp.429-437.29 Nesta linha, inscrevem-se autores, como É. Gilson, J. Maritain e G. Marcel, por exemplo.30 Nesta linha, inscrevem-se autores, como M. Blondel, M.-D. Chenu e M. Nédoncelle, por exemplo.

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Orígenes e Agostinho de Hipona. A par dessa admissão, havia outra também corrente

entre os mesmos autores: a de que a tradição filosófica oferecia filosofias, umas mais

próximas ou afins do cristianismo, outras menos, tendo sido as filosofias de estirpe

platónica, aquelas que foram eleitas, pelos primeiros filósofos cristãos, como as mais

semelhantes e compatíveis com o cristianismo.

Há, contudo, uma diferença de fundo a considerar entre o passado recente e o

passado remoto, quanto à defesa da noção de filosofia cristã: os autores do passado

recente defenderam a noção de filosofia cristã num contexto de separação crítica entre

filosofia e religião, enquanto os autores do passado remoto defenderam uma noção

afim de filosofia cristã num contexto de normal proximidade entre filosofia e religião.

3.2.2. De regresso aos primeiros filósofos do cristianismo

3.2.2.1. Justino: uma conversão filosófica ao cristianismo

Na civilização helenística, que se estendia pelas regiões da bacia do Mediterrâneo,

nos primeiros séculos da nossa era, filosofia e religião não eram domínios entre si

incomunicáveis. Daí que a conversão de filósofos ao cristianismo não obrigasse a uma

ruptura com a filosofia, antes proporcionasse a elaboração de um sentido de

continuidade entre filosofia e cristianismo. É esse o caso de Justino, uma das mais

antigas e ilustrativas referências da história cruzada do cristianismo e da filosofia. Na

tradição do cristianismo, Justino é mencionado como um dos primeiros apologistas.

Mas, ao fazer apologia do cristianismo, Justino fez também apologia do cristianismo

como filosofia.

No início do seu Diálogo com Trifão (1-8)31, Justino narra simbolicamente a sua

conversão ao cristianismo, como resultante do encontro com um ancião, que lhe dá a

conhecer uma nova filosofia. Antes desse encontro, Justino tinha já um percurso de

busca em filosofia, visto que tentara frequentar diversas escolas filosóficas. A

filosofia de que Justino parece ter conhecimento mais desenvolvido e assumido, por

ocasião do seu encontro com o ancião, é uma filosofia de linhagem platónica (Diál.

Trif. 2).

31 Texto da ed. de Archambault, reprod. e trad. por Daniel Ruiz Bueno, em Biblioteca de AutoresCristianos 116, Madrid, 1954, pp.300-316.

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São lugares comuns da filosofia platónica, como a natureza divina e

transmigratória da alma ou a contemplação puramente inteligível do divino, que o

ancião contesta, no seu diálogo com Justino platónico (Cf. Diál. Trif. 4). Essa

contestação, que conduz Justino a questionar o seu platonismo, faz parte do seu

processo de conversão ao cristianismo.

Outra parte desse processo é a contraposição de novas teses, em alternativa às

teses rejeitadas do platonismo: à natureza divina e transmigratória da alma, o ancião

contrapõe a natureza mortal da alma criada (Diál. Trif. 5-6); à contemplação

inteligível do divino, o ancião contrapõe a possibilidade de um conhecimento apenas

mediato e indirecto de Deus (Diál. Trif. 4). Estas teses, que o ancião contrapõe ao

platonismo de Justino, são teses de uma nova filosofia: o cristianismo.

O ponto de vista crítico do cristianismo sobre o platonismo, no texto de Justino,

mostra que não foi sem reservas que a tradição do cristianismo veio a adoptar a tese

platónica da imortalidade da alma, bem como a possibilidade de uma visão directa de

Deus. Nestas matérias, o cristianismo surge filosoficamente mais céptico do que o

platonismo. De qualquer modo, é na relação com o platonismo que, segundo Justino,

o cristianismo afirma a sua diferença, como filosofia.

Terá sido, então, o encontro entre Justino platónico e o ancião cristão que originou

a adesão de Justino a uma nova filosofia. Através desse simbólico encontro, Justino

sugere-nos que ele próprio assumia a sua adesão ao cristianismo como uma conversão

filosófica, o que não afectava de superficialidade, o sentido da conversão religiosa,

uma vez que filosofia e religião não eram de natureza díspar.

Filosofia e religião cruzavam-se em áreas de interesse comum, como as da

reflexão teológica e ética. Questões pertinentes da filosofia sobre a divindade eram,

segundo Justino, a questão da unicidade ou da multiplicidade divina, bem como a

questão da extensão da providência divina ao particular (Diál. Trif. 1). Justino

considera, porém, que a tradição da filosofia grega não foi muito longe no

aprofundamento destas questões, e não é sem argumentação que ele indica as suas

decisões no âmbito das mesmas questões.

Com respeito à primeira, a filosofia do cristianismo pronuncia-se, pela voz do

ancião, a favor da unicidade divina, argumentando por redução ao absurdo, ou seja,

denunciando as dificuldades racionais de uma investigação das causas para as

diferenças a supor entre múltiplos hipotéticos incriados (Diál. Trif. 5). Este

procedimento ilustra bem que, a propósito de uma das questões basilares de teologia

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filosófica, o cristianismo de Justino está ainda longe de se assemelhar a uma teologia

dogmática, comportando-se de facto como uma filosofia que assume o ónus da prova.

Com respeito à segunda questão teológica mencionada, a questão relativa à

extensão da providência divina, Justino preconiza a extensão da providência divina ao

indivíduo, e fá-lo, não por razões de ordem teológica, mas em razão da ética: se Deus

não se interessasse pelos indivíduos, de forma a premiá-los pelos actos bons e a

puni-los pelos maus actos, tornar-se-ia indiferente, para o destino humano, agir bem

ou mal, e, por conseguinte, perderia sentido e eficácia qualquer exigência de ordem

ética (Diál. Trif. 1). Nós podemos decerto contra-argumentar, advertindo de que a

extensão individual da providência divina, assim preconizada por Justino,

condicionaria a ética pelo interesse nos seus frutos, tornando-a interesseira. Mais

exigente, seria uma ética não retributiva. Justino não parece prever esta objecção.

Talvez supusesse que uma ética não retributiva não fosse humanamente exequível.

Tal é, pelo menos, uma suposição que condiz com a sua argumentação a favor da

extensão individual da providência divina.

A rectidão de vida não é, aliás, uma preocupação opcional do filósofo, é a sua

indeclinável prioridade. Ora, esta exigência filosófica de rectidão não difere, para

Justino, do ideal religioso de santidade, visto que ele identifica os filósofos com os

santos (Diál. Trif. 2). De acordo com essa identificação, o estatuto de filosofia não

diminuía, ao olhar de Justino, o valor do cristianismo. Caso contrário, ele não teria

tentado criar uma escola de filosofia cristã em Roma, conforme reza a tradição.

Ora, o que é que permitia essa tão estreita comunicação, senão mesmo

coincidência, entre filosofia e religião, que se verifica na concepção justiniana do

cristianismo como filosofia? A consideração de uma fonte comum de sabedoria. Mas

era possível que a filosofia e o cristianismo partilhassem a mesma fonte de sabedoria?

Os primeiros filósofos do cristianismo admitiram que sim, preconizando que o

cristianismo não veio senão manifestar plenamente a mesma fonte que havia

alimentado a tradição da filosofia grega.

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3.2.2.2. A filosofia patrística do Logos

Na tradição da filosofia grega, a fonte de sabedoria, que era princípio de

inteligibilidade do universo, recebera por vezes o nome de Logos, como na filosofia

de Heraclito e na dos Estóicos.

A tradição do cristianismo podia adoptar um princípio similar, no seguimento de

um dos textos mais célebres e, filosoficamente, mais interpelativos do Novo

Testamento: o “Prólogo” do Evangelho de João. Este texto começa dizendo: «No

princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus e o Logos era Deus. Ele estava no

princípio com Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito» (Jo. 1, 1-3). Este

enigmático início do Evangelho joanino permite conceber um Logos primordial e

divino, que está na origem de todas as coisas. Assim concebido, o Logos divino podia

agir, desde o princípio, em todas as coisas, no ser humano inclusive. O Prólogo

joanino elege, aliás, o ser humano como destinatário privilegiado da actividade do

Logos.

Por um lado, «o Logos era a luz verdadeira, que ilumina todo o homem» (Jo. 1, 9).

Em virtude desta acção iluminadora, o Logos podia ser identificado com a fonte

universal de sabedoria no homem. Assim o entenderam os primeiros filósofos

cristãos, como Justino, através da sua noção de Logos seminal (Apologia I, 32, 44, 46;

Apologia II, 7, 10, 13)32; como Clemente de Alexandria, através das múltiplas

revelações do Logos, na filosofia, na profecia e na poesia (Protréptico V-VIII); ou

como em Agostinho de Hipona, através da sua noção de Mestre interior ou de

Verdade iluminadora (De Magistro 1, 2 ; 11, 38; 14, 45-46)33. Atente-se em que a

acepção augustiniana de Mestre interior, identificado com a pessoa de Jesus Cristo,

não se compreenderia sem supor também a incarnação do Logos iluminador, segundo

Jo. 1, 9-14).

Por outro lado, «o Logos fez-se carne e habitou entre nós» (Jo. 1, 14). Em virtude

desta incarnação do Logos, ele deu-se a conhecer em pessoa, e, desse modo,

manifestou-se totalmente. Daí a noção de Logos total, em Justino, para quem a

religião de Cristo era a filosofia do Logos total, e, por isso, a mais verdadeira filosofia

32 Textos da ed. de Rauschen, reprods. e trads. por Daniel Ruiz Bueno, em Biblioteca de AutoresCristianos 116, Madrid, 1954, pp.216, 230, 232-233, 269, 272-273, 276-277.33 Texto da ed. de K.D. Daur, CC 29, rev. e cor. em Bibliothèque Augustinienne 6, Paris, Desclée deBrouwer, 1976, pp.44-46, 136, 150-152.

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(Apol. II, 7 e 10; Diál. Trif. 8). Daí também a acepção de Cristo mediador, em

Agostinho, que ele contrapôs, como vimos, à demonologia de Apuleio.

Acresce que admitir a incarnação do Logos tem como consequência a valorização

da história e da cultura, para além da natureza, como meio de manifestação do Logos

primordial. Daí a pluralidade de revelações do Logos, ao longo da história e em

contextos culturais diversos, como sejam a revelação filosófica, poética e profética,

antes da revelação pessoal e total, que Justino e Clemente de Alexandria discriminam.

Assim, os antigos defensores do cristianismo como filosofia, ou em estreita

conexão com a filosofia, entenderam-no com uma vocação comunicante e inclusiva,

capaz de assumir a confluência de, pelo menos, duas tradições distintas, a filosofia

grega e a profecia judaica, a partir de uma fonte comum de sabedoria.

O que terá sido feito dessa fonte de sabedoria, comum à filosofia e ao

cristianismo, que era dada pelo nome de Logos? Terá deixado de ser participada pela

razão e pela fé? De facto, a teologia joanina do Logos iluminador obteve alguns ecos

na tradição patrística, mas estes não tiveram continuidade.

Apesar de ser possível detectar uma ou outra tentativa singular de reencontrar uma

fonte comum e originária de sabedoria, ao longo da história do pensamento ocidental,

aquilo que veio a predominar foi a substituição dessa fonte supra-humana de

sabedoria, diversamente participada, pela dualidade, à escala humana, entre razão e

fé, ambas envolvidas num processo de disputa do primado e de conquista de

autonomia relativa, que tendeu por vezes a extremar-se.

3.2.2.3. Fé e conhecimento em Agostinho

Da fé no visível à fé no invisívelNa linha da ordem do conhecimento, que Platão descreve na República (VI, 509 d

– 511 e), há lugar para a fé, e não é o mais o elevado nem o ínfimo. A linha do

conhecimento tem dois lados: um relativo aos domínios de cognoscíveis; outro

relativo aos géneros de conhecimento que correspondem respectivamente àqueles

domínios.

Quanto aos domínios de cognoscíveis, a linha divide-se em dois principais

segmentos, desiguais entre si: o de menor extensão é o domínio dos visíveis e o maior

é o domínio dos inteligíveis. Ambos estes segmentos da ordem do cognoscível

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dividem-se ainda em dois sub-segmentos desiguais entre si. O segmento dos visíveis

divide-se em dois de extensão desigual: o menor é o domínio das sombras e dos

reflexos e o maior é o domínio dos seres vivos. Por sua vez, o segmento dos

inteligíveis divide-se também em dois de desigual extensão: o menor é o domínio dos

inteligíveis tomados como hipóteses e o maior é o domínio dos inteligíveis

apreendidos como tais.

Estes segmentos e sub-segmentos da linha dos cognoscíveis têm correspondência

com diversos géneros de conhecimento. Ao domínio dos inteligíveis, corresponde o

género de conhecimento racional, o qual se divide: em razão dianoética (dianoia), que

toma os inteligíveis como hipóteses, como acontece ao nível do conhecimento

matemático que não atingiu ainda a intuição inteligível das entidades matemáticas; e

em inteligência noética (nous), que intui os inteligíveis como tais e constitui o nível

superior do conhecimento. Ao domínio dos visíveis, entretanto, concernem dois

géneros de conhecimento dependentes dos sentidos: a conjectura (eikasia), relativa a

sombras e reflexos, na medida em que estes fazem supor ou conjecturar aquilo de que

são imagens; e a crença ou fé (pistis), relativa, especialmente, aos seres vivos, na

medida em que estes fazem crer nas formas inteligíveis de que são imagens e de que

participam. A fé é, assim, a forma de conhecimento do visível, que pressente o

inteligível.

A relevância filosófica e religiosa, que a fé entretanto adquiriu, não se

compreende, porém, sem a influência do cristianismo. No antigo mundo romano, não

cabia à fé, mas à piedade (pietas) definir a atitude religiosa. Sob a influência do

cristianismo, a fé não só passa a conotar a adesão religiosa como obtém um papel de

maior destaque na ordem do conhecimento, mediando entre a ignorância e a

inteligência. A fé torna-se, com efeito, uma mediação da inteligência. Como vimos, já

em Platão a fé era um pressentimento do inteligível, mas a aliança da fé com a

inteligência é decisivamente favorecida pela transferência da fé do domínio do visível

para o do invisível, na ordem dos cognoscíveis. Ora essa transferência é declarada em

alguns textos do Novo Testamento. Tomé e Paulo são os discípulos de Cristo mais

recorrentemente associados a esta orientação da fé para o invisível.

Tomé é o descrente, entre os discípulos de Jesus, porque não acreditou senão

depois de ver (Jo. 20, 24-29): «Porque tu me vês, acreditas. Felizes aqueles que não

viram e acreditaram» (Jo. 20, 29). A fé de Tomé, através da visão, perde o mérito e o

valor. A fé vale, sobretudo, sem visão. A fé por excelência deve ocorrer sem visão

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sensível. Nesta condição, a fé orienta-se para o conhecimento do invisível, conforme

estabelece a definição paulina da fé: «Ora a fé é a garantia dos bens que se esperam, a

prova das realidades que não se vêem.» (Heb. 11, 1-3). Na medida em que garante os

bens que se esperam, a fé torna-se parte integrante da esperança. Na medida em que é

«a garantia dos bens que se esperam», que não se vêem ainda, e «a prova das

realidades que não se vêem», a fé torna-se critério de assentimento no invisível. Deste

modo, Paulo afirma decisivamente a vocação da fé para o domínio do invisível.

Como compreender, entretanto, esta vocação da fé para o invisível, na

espiritualidade cristã? Por um lado, a invisibilidade de Deus e a historicidade das suas

manifestações, na tradição judaico-cristã, concorrem para essa orientação da fé. Com

efeito, nem a essência de Deus é presencialmente testemunhável, nem a história das

suas manifestações sobrenaturais (sinais, profecias, milagres) o pode ter sido senão

por alguns. A história, na medida em que se cumpre e se converte em passado, deixa

definitivamente de ser presencialmente testemunhável. Daí que Agostinho, situe a

história no domínio dos credíveis. Por outro lado, a natureza pessoal de Deus, na

mesma tradição, favorece igualmente a orientação da fé para o invisível. Com efeito,

a relação entre o homem e Deus, na medida em que é uma relação inter-pessoal, não

pode dispensar a fé no invisível, pois não pode haver relação inter-pessoal de amor ou

de amizade, sem um acto de fé, que é a confiança nos sentimentos e intenções

invisíveis da pessoa amada ou amiga. Tal é o que Agostinho não se cansou de

sublinhar, argumentando contra o desprezo maniqueísta da fé, na sua qualidade de

ex-maniqueu:

«Se é vergonhoso crer em alguma coisa, ou procede vergonhosamente aquele quecrê no amigo ou não vejo como é que aquele que não crê no seu amigo possa chamaramigo quer a si quer ao outro.» De Utilitate Credendi 10, 2334; «Se não devo crernaquilo que não vejo, quem seria amado por alguém com mútuo amor, sendo invisívelo próprio amor?» De Fide Rerum quae non videntur 2, 435.

De acordo com a reflexão augustiniana sobre a necessidade da fé no amor, a fé

revela ser uma atitude religiosa especialmente pertinente no caso da religião

entendida como uma religação da pessoa humana a um Deus pessoal. Assim é a

religião assumida por Agostinho:34 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 8, Paris, Desclée de Brouwer, 1951,p.260. Vd. também: De util. cred. 10, 23-24; 12, 26.35 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 8, Paris, Desclée de Brouwer, 1951,p.316. Vd. também: De fide… 1, 2 – 2, 4; De Trin. VIII, 4, 6; XIII, 20, 26.

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«Religue-nos a religião ao Deus único e omnipotente, pois entre a nossa mente,pela qual o inteligimos como Pai, e a verdade, isto é, a luz interior pela qual ointeligimos, nenhuma criatura foi interposta.» De Vera Religione 55, 11336.

Aqui, porém, a religião surge como relação de inteligência, não de fé. Serão

inteligência e fé duas modalidades possíveis e alternativas entre si da verdadeira

religião, segundo Agostinho? Se tal se encontra por vezes sugerido nos textos da

controvérsia anti-maniqueia, a evolução e o aprofundamento do pensamento de

Agostinho sobre a fé conduziram, não a separá-la, mas a (re)ligá-la com a

inteligência.

O domínio dos credíveis«Dos credíveis» (De credibilibus), assim se intitula a questão 48 do Livro das

oitenta e três questões diversas (De diversis quaestionibus octoginta tribus liber

unus), de Agostinho, e que confina com o seguinte parágrafo:

«Três são os géneros de credíveis: uns são aqueles que são sempre cridos e nuncasão inteligidos, assim como é toda a história, que percorre os eventos temporais ehumanos; outros são aqueles que, quando são cridos, são imediatamente inteligidos,assim como são todas as razões humanas, quer acerca dos números, quer acerca dequaisquer disciplinas; o terceiro [género é] o daqueles que primeiro são cridos edepois são inteligidos, tais como são aqueles que não podem ser inteligidos acerca dascoisas divinas senão por aqueles que têm o coração puro (Mat. 5, 8), o que acontecemediante a observância dos preceitos, que são aceites acerca de bem viver.»37

À luz deste texto, o domínio dos credíveis não se define simplesmente como o

domínio do invisível, mas analisa-se em função da respectiva inteligibilidade: há os

credíveis nunca inteligíveis, os credíveis imediatamente inteligíveis e os credíveis

mediatamente inteligíveis.

Entre os credíveis nunca inteligíveis, Agostinho coloca a história: porquê? É certo

que a história, tanto quanto se converte em passado, se torna definitivamente

invisível. Mas o facto de ser invisível não é condição suficiente para nunca ser

inteligível. é ao domínio do invisível que pertencem propriamente os inteligíveis. Por

que será, então, que Agostinho terá colocado a história como realidade

36 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 8, Paris, Desclée de Brouwer, 1951,p.188.37 Texto de PL 40, reprod. em Biblioteca de Autores Cristianos 551, Madrid, 1995, p.126.

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exemplificativa de credíveis completamente fora do alcance da inteligência? Este

extremo cepticismo acerca da inteligibilidade da história não pode deixar de causar

alguma perplexidade, tendo em consideração o testemunho de Agostinho, em De

Doctrina Christiana, colocando a história entre as ciências de instituição divina,

porquanto a ordem dos tempos não fora instituída pelos homens. Mesmo que esta

ordem não seja acessível à inteligência humana, Agostinho não desistiu de

compreendê-la, como atesta a sua obra magna De Civitate Dei, escrita no rescaldo de

um dos acontecimentos mais perturbadores da história do seu tempo, o saque de

Roma pelas tropas de Alarico em 410.

Entre os credíveis imediatamente inteligíveis, Agostinho inclui as razões das

disciplinas racionais, como são as disciplinas matemáticas. É, no entanto, de admitir

que, no processo de aprendizagem das disciplinas, as razões possam ser cridas

primeiro para virem depois a ser inteligidas, de modo que não seja forçoso que haja

uma inteligência imediata de tais razões, mal elas se tornem objecto de crença.

Finalmente, entre os credíveis mediatamente inteligíveis, Agostinho considera

especialmente os postulados teológicos. Mas a inteligência destes postulados é menos

condicionada por limites de ordem intelectual do que por exigências de ordem ética.

O conhecimento de Deus não é alheio à qualidade moral do homem. A teologia é,

assim, o domínio do conhecimento que não pode deixar supor condições éticas.

Desta análise resulta que o domínio dos credíveis inclui e excede o domínio dos

inteligíveis. A relação entre fé e inteligência torna-se, por isso, inevitável.

A distinção entre inteligir, crer e opinarEm De Utilitate Credendi, uma apologia da fé contra o maniqueísmo, Agostinho

elabora esta distinção:

«Três são [as coisas] confinantes entre si nas almas dos homens, que sãomaximamente dignas de distinção: inteligir (intelligere), crer (credere) e opinar(opinari). Considerando-as, cada uma por si mesma: a primeira é sempre sem erro(sine vitio); a segunda é, por vezes, com erro (cum vitio); a terceira nunca é sem erro.(…). Aquilo que inteligimos, devemos à razão (rationi); aquilo em que cremos,devemos à autoridade (auctoritati); aquilo que opinamos, devemos ao erro (errori).Mas todo aquele que tem inteligência (intelligens omnis) também crê, crê tambémtodo aquele que opina; nem todo aquele que crê tem inteligência; ninguém que opinatem inteligência.» De Util. Cred. 11, 25.

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Há, nestes passos, uma tripla caracterização das três funções distintas na alma –

inteligir, crer e opinar –, segundo a relação com o erro, a discriminação de uma

instância respectivamente tutelar e a relação de inclusão ou exclusão recíproca:

quanto ao erro, a inteligência não o admite, a crença admite-o e a opinião é dele

indissociável; quanto à instância tutelar, a inteligência é devida à razão, a crença à

autoridade, a opinião ao erro; quanto à respectiva inter-comunicação: a inteligência

inclui a crença como um passo pré-intelectivo, a opinião inclui também a crença como

um elemento constitutivo, a crença pode comportar ou não inteligência, mas a opinião

e a inteligência excluem-se reciprocamente.

Desta tripla caracterização, resultam: a redundância da opinião, que é redutível,

em última análise, a uma falsa crença, uma vez que o erro e a crença fazem

inseparavelmente parte da opinião; e a ordenação da crença à inteligência, ou da fé à

razão, como um limiar ou um passo preparatório.

A questão do primado da fé ou da razãoNo âmbito desta questão, Agostinho pode ser tomado por defensor quer do

primado da fé quer do primado da razão.

Por um lado, Agostinho cita à saciedade, no conjunto da sua obra, Isaías 7, 9,

segundo a versão dos Setenta: Nisi credideritis, non intelligetis. De acordo com este

passo, a fé é uma condição necessária da inteligência; sem fé não há inteligência

possível. A afirmação da necessidade da fé à inteligência pode ser apenas uma tese de

pedagogia geral, segundo a qual crer faz parte do processo de inteligir, como um

momento psicologicamente pré-intelectivo. Assim a entende também Agostinho, ao

reconhecer a prioridade temporal da autoridade sobre a razão, não obstante a

superioridade cognitiva desta àquela (De Ordine II, 9, 26). Mas Is. 7, 9 não não

significa apenas que a fé é necessária à inteligência, significa também que a fé se

destina necessariamente à inteligência. Assim o entende Agostinho, ao dizer, segundo

o mesmo versículo, que a fé procura, mas é o intelecto que encontra (De Lib. Arb. II,

2, 5-6; De Trin. XV, 2, 2). A fé não é para ficar em si mesma; a fé não é um fim em si

mesma. Na ordem dos fins da vida espiritual, a fé não é senão um meio para atingir a

razão ou a inteligência. Deste modo, Agostinho afirma que a razão é superior à fé, na

medida em que o fim é superior ao meio, que serve para o alcançar. Na verdade,

Agostinho nunca deixou de colocar a razão acima da fé na ordem do conhecimento,

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bem como na ordem dos meios e dos fins, no que se pode reconhecer também a defesa

de um primado da razão sobre a fé.

O paradoxo da féA questão do primado da razão ou da fé, em Agostinho, não se esgota, porém, na

análise do versículo de Isaías. Há ainda outro primado da razão relativamente à fé, ou

da inteligência relativamente à crença, a considerar a partir de De Trinitate (VIII, 4, 6

– 6, 9; XIII, 1, 3-4; 2, 5; 20, 26; XIV, 2, 4 – 3, 5; 8, 11). Trata-se de reconhecer que

não há fé sem prévias condições de conhecimento racional, ou de não há conteúdo de

crença que não suponha a inteligência de outros conteúdos. O primado da razão ou da

inteligência é aqui o primado de uma condição de possibilidade. Ao contrário dos

primados anteriormente considerados, quer da fé sobre a razão (primado pedagógico),

quer da razão sobre a fé (primado axiológico do fim sobre o meio), nos quais se supõe

que fé e razão concernem aos mesmos conteúdos, a acepção de um primado da razão,

como condição possibilitante da fé, obriga a considerar ambas com conteúdos

distintos, uma vez que a afirmação deste primado é o reconhecimento de laços de

dependência dos conteúdos da fé relativamente a conteúdos distintos de razão.

Para o entendimento deste primado da razão com respeito à fé, atenda-se ao

paradoxo da fé, por analogia com o clássico paradoxo da procura. No essencial,

Agostinho coloca, acerca da fé e do amor, a mesma questão que os filósofos gregos

clássicos formularam acerca da procura do saber: como é possível procurar saber

aquilo que se ignora completamente? (Platão, Ménon 80 b – 86 c; Aristóteles,

Segundos Analíticos I, 71 a 1 – 71 b 8). Em resposta a esta questão, a filosofia tem

reconhecido sempre a necessidade de algum saber prévio em toda a aquisição de

saber, embora varie no modo de conceber esse saber prévio.

Reformulando a questão para o caso do amor:

«Mas quem ama aquilo que ignora? Pode-se saber algo que não se ame; maspergunto se pode ser amado aquilo que se ignora» De Trin. VIII, 4, 638.

Portanto, não se pode amar o desconhecido (De Trin. X, 1, 1). O paradoxo da

procura do saber é, então, para Agostinho, um caso do paradoxo do amor, o do

próprio amor ao saber:

38 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 16, Paris, 1955, p.38.

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«Por isso, todo o amor da alma que estuda, isto é, que quer saber aquilo queignora, não é o amor disto que ignora, mas daquilo que sabe, por causa do qual quersaber aquilo que ignora.» De Trin. X, 1, 3.

Reformulando a questão para o caso da fé: como é possível crer naquilo que se

ignora completamente? Também a fé é uma procura, e uma procura do desconhecido,

que não é possível senão a partir do conhecido, isto é, senão com base em condições

de conhecimento. Que tipo de conhecimento pode ser esse? Agostinho conduz-nos a

discernir três tipos de conhecimento necessários à fé: o conhecimento de géneros e

espécies; o conhecimento de qualidades morais ou espirituais; e o conhecimento de si

ou o auto-conhecimento da mente (De Trin. VIII, 5, 7 – 6, 9).

A necessidade de cada um destes tipos de conhecimento pode ser evidenciada a

partir de crenças comuns e triviais. A fé no testemunho oral ou escrito de outrem,

acerca de factos passados ou acerca de lugares longíncuos, supõe um conhecimento

prévio dos géneros e das espécies, que enquadram tais factos e lugares. Exemplos: a

fé no testemunho de um amigo acerca de uma cidade distante supõe o conhecimento

genérico do que seja uma cidade; a fé no testemunho de um sobrevivente de uma

batalha supõe um conhecimento genérico do que seja viver, do que seja morrer, e do

que seja uma batalha. Por sua vez, a fé nas qualidades morais ou espirituais de uma

pessoa determinada supõe um conhecimento prévio dessas qualidades e da sua

morada, a mente. Por exemplo, crer que o apóstolo Paulo ou o filósofo Sócrates eram

justos e sábios supõe ter noções prévias de justiça e de sabedoria, bem como algum

auto-conhecimento da mente.

Tanto o auto-conhecimento da mente como o conhecimento de qualidades morais

ou espirituais são, para Agostinho, conhecimentos estritamente inteligíveis. Já o

conhecimento de géneros e espécies depende do concurso da razão e da sensibilidade.

Os três tipos de conhecimento são, porém, conjunta e inequivocamente de ordem

racional.

Sublinhe-se, entretanto, que o conhecimento condicionante não é o conhecimento

comprovativo da fé. A fé pode não chegar a ser comprovada, mas é sempre

condicionada por conhecimentos prévios. Estes são condições de possibilidade, não

são provas de verdade. De qualquer modo, a necessidade de condições de

conhecimento racional prova que a experiência de crer não pode ter lugar senão numa

mente racional.

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Ora, se as nossas crenças comuns e triviais dependem de conhecimentos racionais,

o que dizer das crenças religiosas, de ineludível teor metafísico? Muito menos estas

crenças poderiam dispensar tais conhecimentos. Assim o reconhece também

Agostinho, a propósito das crenças cristãs na Incarnação, na Ressurreição e nos

milagres: tal como a crença na Incarnação supõe um conhecimento específico da

natureza humana (De Trin. VIII, 4, 7 – 5, 7), a crença na Ressurreição supõe um

conhecimento genérico do que seja viver e do que seja morrer (De Trin. VIII, 5, 8); tal

como a crença na Ressurreição, a crença nos milagres supõe previamente uma noção

do que seja a omnipotência (De Trin. VIII, 5, 7). Por conseguinte, estas crenças cristãs

não só supõem a mesma ordem de conhecimentos racionais, que condiciona as nossas

crenças triviais, como exigem mais. Com efeito, a omnipotência é mais do que uma

qualidade superior do homem, é um atributo divino, que não é comensurável com o

poder humano, mas cuja inteligibilidade condiciona a fé em Deus.

Na verdade, como seria possível crer que há Deus, sem alguma inteligência prévia

do que seja a divindade, ou dos atributos que a constituem? E como seria possível

acreditar que Deus é bom, justo, providente, omnipotente, omnipresente, etc., sem

alguma inteligência prévia destes atributos? Na medida em que a fé objectiva em

Deus é uma crença do maior alcance metafísico, ela não pode deixar de supor o

exercício da razão intelectiva, através da metafísica e até da teologia, uma teologia

precedente da fé. Há realmente já uma boa porção de teologia elaborada entre as

condições que provêem à constituição da fé objectiva em Deus. Com base no

reconhecimento deste primado da razão, como condição de possibilidade na fé em

Deus, podemos inverter a ordem do versículo citado de Isaías e dizer «se não tiverdes

inteligência, não acreditareis». Agostinho não o diz, mas conduz-nos a dizê-lo.

A fé subjectivaEntretanto, para além do que designámos de “fé objectiva”, crença ou conteúdo

doutrinário da fé, há um aspecto mais reservado da fé, que Agostinho não só não

subestima como até enfatiza nas suas análises: a experiência interior da fé, a que

podemos chamar também “fé subjectiva”. Encontramos fundamento para a distinção

entre um aspecto objectivo e um aspecto subjectivo da fé no seguinte passo:

«Com verdade dizemos que é de uma doutrina que procede a fé impressa nocoração de cada um dos crentes, mas uma coisa é aquilo em que eles crêem (sed aliud

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sunt ea quae creduntur), outra a fé pela qual crêem, (aliud fides qua creduntur).Aquilo está nas coisas presentes, passadas e futuras; esta está na alma do crente, e sópara aquele que a possui é visível; embora esteja também noutros, não é a mesma,mas uma semelhante.» De Trin. XIII, 2, 5.

A fé subjectiva é uma experiência interior, única e singular de cada crente, e é, por

isso incomunicável, por semelhante que seja com a fé dos outros, ao nível de

conteúdos objectivos. A fé subjectiva é comum e singular à semelhança da

comunidade e da singularidade do rosto humano:

«Esta fé é comum: […]: mas tal como se pode dizer que todos os homens têm emcomum um rosto humano (facies humana); na verdade, isto diz-se na medida em quecada um tem o seu.» De Trin. XIII, 2, 5.

Há, no entanto, uma grande diferença entre a fé e o rosto: o rosto não se deixa ver

pelo seu próprio olhar senão através de um espelho, enquanto que a fé se deixa

conhecer directamente pela mente. É certo que a fé também necessita da mediação de

um espelho para ver num reflexo aquilo que não pode ver directamente. Recorde-se o

célebre passo paulino: «hoje vemos num espelho, em enigma, mas então veremos face

a face.» (1 Cor. 13, 12). Mas a fé precisa de um espelho para ver o reflexo do

invisível, não para se ver pelo olhar da mente, enquanto que o rosto precisa de um

espelho para se ver pelo seu próprio olhar. Para mais, o rosto é directamente visível

para os olhares dos outros rostos, sendo só indirectamente visível para o seu próprio

olhar, enquanto que a fé, pelo contrário, não é directamente visível para os olhares

interiores dos outros crentes, sendo só directamente visível para o olhar da mente que

a sente. Esta é uma tese forte de Agostinho:

«Ainda que sejamos conduzidos a crer porque não podemos ver aquilo que somosconduzidos a crer, a própria fé, quando existe em nós, nós vemo-la em nós.» De Trin.XIII, 1, 3; «Cada um vê a sua fé em si mesmo; num outro, porém, crê que ela existe,não vê.» De Trin. XIII, 2, 5; «[…] pois esta [a fé] é uma realidade do coração, não docorpo; não está fora de nós, mas no nosso interior; nenhum homem a vê noutro, mascada um em si mesmo.» Ibidem.

Esta fé que só cada um vê em si mesmo, a que chamamos fé subjectiva, fica

completamente fora do alcance de qualquer juízo crítico ou censório alheio. Ninguém

pode julgar a fé do outro, ao nível da fé subjectiva.

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No entanto, Agostinho procura descrever a fé subjectiva. Como poderá fazê-lo?

Tal como se pode descrever genericamente o rosto humano, mediante a observação de

qualquer rosto singular, assim também é possível descrever genericamente a

experiência singular da fé, mediante a introspecção e visão interior da experiência de

crer em cada um de nós. Assim procede, de facto, Agostinho, no âmbito da sua

psicologia trinitária.

É ao nível da trindade mental de memória, inteligência e vontade que Agostinho

situa a fé subjectiva. Segundo a análise augustiniana da trindade mental da fé, há pelo

menos três funções mentais entrelaçadas ou correlativas entre si na experiência de

crer: há uma retenção (retentio), que é uma função da memória; há uma contemplação

(contemplatio), que é uma função da cogitação, ou do pensamento; há também uma

dilecção (dilectio), que é uma função da vontade (De Trin. XIII, 20, 26; XIV, 3, 5).

Estas três funções da análise trinitária da fé têm por objecto o mesmo conteúdo, que é

o teor da fé objectiva e que se encontra no domínio dos credíveis, inicialmente,

especificados. É, portanto, uma experiência complexa da mente, a fé que se descobre

ao olhar interior do crente, e que o modelo trinitário de análise permite fazer

sobressair.

Segundo esta análise, a fé convoca as funções superiores da mente, o que põe em

questão o preconceito da menoridade intelectual do crente. No entanto, a fé não é,

como vimos, a perfeição da vida da mente, posto que ela tem por fim a inteligência.

Concordantemente, a fé não é algo imutável, mas uma experiência mutável da mente,

adventícia e perecível, tal como Agostinho salienta:

«A fé, de facto, não é aquilo em que se crê, mas aquilo pelo qual se crê: aquilo éobjecto de fé, a fé é vista. Porém, uma vez que começou a existir na alma (animus),que já era alma antes que nele começasse a existir a fé, esta parece ser algo adventícioe pertencerá ao passado, quando deixar de existir sucedendo-lhe a visão» De Trin.XIV, 8, 11.

A fé pode perecer em três circunstâncias possíveis: quando o crente se torna

descrente (De Trin. XIII, 1, 3); quando a fé dá origem à descoberta da verdade

(Ibidem); quando a fé dá lugar à visão face a face (1 Cor 13, 12; De Trin. XIV, 2, 4).

Deste modo, a fé inteiramente relativa à condição humana, e é uma relação superável.

Agostinho é um pensador da fé, como expressão de humanidade.

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CAPÍTULO II

QUESTÕES SOBRE O CONHECIMENTO

1. A questão de magistro

Linguagem e conhecimento são duas áreas temáticas, não só basilares na ordem

da reflexão filosófica, como reciprocamente condicionantes: tanto a linguagem afecta

o conhecimento (nós conhecemos as coisas pelos seus nomes) como o conhecimento

afecta a linguagem (nós de nada poderíamos falar se de nada tivéssemos

conhecimento); ambos co-determinam o pensamento (aquilo que podemos pensar não

é independente daquilo que podemos conhecer e dizer). A relação entre linguagem e

conhecimento é, assim, estruturante do pensamento. A questão de magistro ilustra

como a filosofia da Idade Média reflectiu em profundidade sobre a relação entre

linguagem e conhecimento. No âmbito da questão de magistro, pergunta-se, por um

lado, se nós conhecemos realmente as coisas pelos seus nomes (Agostinho), e, por

outro lado, quais condições prévias de conhecimento provêem à comunicação verbal

(Tomás de Aquino). No diálogo filosófico, intitulado De Magistro, Agostinho analisa

especialmente a primeira parte da questão, conduzindo-nos a concluir que nós não

conhecemos realmente as coisas pelos seus nomes, mas reconhecemo-las pelos seus

nomes, com base em conhecimentos prévios. Por sua vez, na questão disputada De

Magistro, Tomás de Aquino ocupa-se, sobretudo, da segunda parte da questão,

definindo as condições de conhecimento que são necessárias à eficácia do ensino

verbal, portanto, à força comunicativa da fala e, em geral, a toda a aquisição de

conhecimento. Deste modo, a questão de magistro recebe de Agostinho e de Tomás

de Aquino abordagens e desenvolvimentos distintos, embora com pontos de contacto,

uma vez que Tomás de Aquino não formula a sua questão disputada sem referência ao

teor do diálogo augustiniano.

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1.1. Agostinho: o diálogo De Magistro

1.1.1. A linguagem aquém do conhecimento

O diálogo De Magistro (389-390) é um texto exemplificativo e exemplar de

questionamento filosófico sobre a linguagem em relação com o conhecimento:

exemplificativo, porque exemplifica; exemplar, porque radicaliza o questionamento e,

por essa razão, questiona modelarmente.

A finalidade da fala em questãoA pergunta inicial do diálogo formula, desde logo, a questão da finalidade da fala:

«Ag.- Que te parece que queremos levar a efeito, quando falamos?» De Mag. 1, 139.

Esta pergunta comporta uma outra implícita: o que se entende por fala, ou

locução? A esta, o texto dá uma resposta imediata, através da definição da fala

(locutio), como um acto intencional de significação (De Mag. 1, 2). Ora, na medida

em que exprime intenções, a fala não pode ser um sinal simples, mas sim uma

expressão complexa. Em conformidade com esta concepção da fala, a abordagem

augustiniana da linguagem, neste diálogo, não confinará com a consideração das

palavras fora de contexto, mas atingirá o nível da constituição do discurso.

Assim entendida, como um acto intencional, a fala dispõe-se a ser orientada

segundo finalidades. Adeodato40, o interlocutor de Agostinho no diálogo, assume a

tarefa de discriminar várias finalidades em função dos diversos tipos de discurso: a

declaração destina-se a ensinar (De Mag. 1, 1); a interrogação, a aprender (Ibid.); o

canto, a deleitar (Ibid.); a oração exterior, a rememorar, não a fazer Deus rememorar

(De Mag. 1, 2), mas a fazer os homens rememorar a quem se deve orar e o que deve

ser pedido em oração (Ibid.); e a locução interior, a oração interior inclusive, a

rememorar (Ibid.).

Agostinho, por seu turno, empenha-se em reduzir ao mínimo a pluralidade das

finalidades discriminadas.

39 Santo Agostinho, O Mestre (De Magistro), Colecção Filosofia. Textos, 8, tradução de AntónioSoares Pinheiro, introdução e comentários de Maria Leonor Xavier, Porto, Porto Editora, 1995, c.1,p.57.40 Nome do filho de Agostinho, falecido na adolescência. O diálogo De Magistro faz-lhe homenagem.

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Antes de mais, a finalidade da interrogação (aprender) é redutível à da declaração

(ensinar), na medida em que interrogar é já, de algum modo, ensinar o que se quer

saber, ou aprender (De Mag. 1, 1). Ora, cabendo o motivo de dar a conhecer a nossa

particular intenção de aprender, na acepção augustiniana de ensinar, esta revela ser

uma acepção muito lata de ensinar, para a qual podemos adoptar a expressão genérica

de «dar a conhecer», à partida, sem circunscrição alguma do domínio do que se pode

dar a conhecer. A interrogação obtém, aliás, no diálogo augustiniano, um papel

pedagógico especial: o de conduzir por passos e por partes à apreensão de uma

verdade complexa, como o próprio diálogo ilustra a respeito da questão central, a

questão de saber se nada se pode ensinar por palavras (De Mag. 12, 40).

O canto, entretanto, não é propriamente um género de locução, ou um tipo de

discurso; o canto é um composto de locução e música, e aquilo que tem a finalidade

de dar prazer, no canto, não é a locução, ou o discurso, mas a música (De Mag. 1, 1).

Deste modo, descentra-se o prazer na fala e centra-se a fala no conhecimento, como

se pressente nesta redução de finalidades. Estas eram as exigências da fase

auto-crítica de Agostinho, como ex-professor de retórica. O fim de agradar sem

conhecimento não poderia justificar por si só o exercício da linguagem, mas poderia

pervertê-lo; só o conhecimento pode justificá-lo positivamente. Seria preciso esperar

por uma obra, como De Doctrina Christiana (427), para serem plenamente

recuperados os objectivos da retórica clássica, segundo Cícero – ensinar, agradar e

persuadir –, mas não sem reafirmar o primado da finalidade de ensinar (IV, 12, 27).

Em estado de hipótese, fica a redução de rememorar a uma forma de ensinar (De

Mag. 1, 1). A rememoração, como forma de ensino, só é retomada, no diálogo De

Magistro, a propósito da suscitação, por efeito da interrogação, de imagens de coisas

anteriormente sensoriadas (De Mag. 12, 39). Não há ainda, neste diálogo, nem uma

posição expressa sobre o conhecimento por reminiscência, como surgirá de forma

crítica em De Trinitate (XII, 15, 24), nem uma teoria da memória, associada ao

conhecimento inteligível, como virá a ser proposta em Confessionum (X, 8, 12 – 27,

37).

A hipótese de trabalho, que resulta da primeira fase do diálogo De Magistro, em

torno da questão da finalidade da fala, é a admissão de duas finalidades irredutíveis da

locução: ou ensinar ou rememorar (De Mag. 1,1). Destas duas finalidades, apenas a de

ensinar permanece determinante nas análises de De Magistro. A outra, a de

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rememorar, fica, entretanto, reservada para os casos de fala solitária ou interior,

irredutíveis à finalidade de ensinar.

A finalidade de ensinar agrupa todas as espécies e casos de fala dialógica. Com

efeito, dada a acepção lata de ensinar, acima advertida, De Magistro não se converte

num diálogo especializado de pensamento pedagógico, antes desenvolve uma reflexão

fundamental de filosofia da linguagem e do conhecimento. Com efeito, a reflexão

sobre o ensino transforma-se, por um lado, numa avaliação da eficácia da fala no

cumprimento da sua finalidade de dar a conhecer, e, por outro lado, numa

investigação das causas eficientes do conhecimento.

A opacidade das palavras a respeito das coisasAgostinho começa por avaliar a eficácia da palavra (verbum) no cumprimento da

finalidade de dar a conhecer aquilo que significa, dada a definição geral da palavra

como sinal (signum) de alguma coisa (De Mag. 2, 3). O ponto de partida da análise é

um elementar exercício gramatical de descrição do significado de cada palavra de um

verso da Eneida (II, v.659), de Virgílio: Si nihil ex tanta Superis placet urbe relinqui

(De Mag. 2, 3). A descrição do significado da preposição ex é o exemplo que conduz

a uma viragem decisiva da análise, fazendo-a transitar do plano puramente gramatical

para o plano radical do questionamento filosófico. Adeodato resolve gramaticalmente

o exercício proposto por Agostinho, descrevendo o significado da partícula ex quer

por permuta com um possível sinónimo, a partícula de, quer pela descrição verbal da

relação de procedência, que ex parece significar no contexto do verso citado (De Mag.

2, 4). Em qualquer dos casos, porém, Adeodato confronta-se com a insatisfação de

Agostinho: na primeira solução, Adeodato substitui uma palavra (ex) por outra (de),

mas o que Agostinho quer saber é aquilo que ambas significam; na segunda solução,

Adeodato substitui uma palavra (ex) por várias outras palavras, descrevendo

perifrasticamente o significado daquela, mas aquilo que quer Agostinho, é que o seu

interlocutor lhe mostre (ostendere) aquilo que é significado pela partícula e pela

perífrase (Ibid.). Agostinho reclama uma ostensão das coisas significadas. A

explicação do significado das palavras dá lugar à exigência de ostensão das coisas.

Tal é a exigência que as palavras parecem ficar aquém de cumprir. A fim de

discernir a função própria das palavras, Agostinho analisa os efeitos da força da

palavra (vis verbi) no ouvinte. Dois são os efeitos que Agostinho considera em

alternativa: ou a rememoração ou o desejo de saber. A rememoração é o efeito

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condicionado pelo conhecimento prévio do significado da palavra na mente do

ouvinte, enquanto que o desejo de saber é o efeito condicionado pelo

desconhecimento prévio do significado da palavra na mente do ouvinte. Ambos os

efeitos são, portanto, condicionados por circunstâncias prévias de conhecimento na

mente do ouvinte (De Mag. 10, 33; 11, 36). Mas, em qualquer dos casos, a palavra

não dá a conhecer aquilo que significa. Porquê?

Agostinho responde a esta pergunta, a propósito da palavra sarabarae (Dan. 3,

34), uma palavra estranha ao latim corrente e que significa uma peça de costume

oriental para cobrir a cabeça. A palavra sarabarae serve para exemplificar a força da

palavra, em qualquer das duas circunstâncias prévias de conhecimento na mente do

ouvinte. Na primeira circunstância, isto é, se o ouvinte desconhecer previamente o

significado da palavra, como é plausível acontecer na recepção de palavras inusitadas,

como esta, esclarece Agostinho que: «esta palavra não me mostra a coisa que

significa» («non enim mihi rem quam significat ostendit verbum» De Mag. 10, 33).

Não só, porém, a palavra inusitada sarabarae (sarabalas), mas também a palavra

latina usual caput (cabeça), por ocasião da primeira audição pelo ouvinte, não mostra

aquilo que significa (Ibid.). Só a ostensão sensível da coisa pode dá-la a conhecer por

percepção sensível ao ouvinte da palavra. Portanto, a palavra não dá a conhecer

aquilo que significa porque não mostra a coisa significada. Deste modo, a falta de

ostensão é a razão apontada para a ineficácia da palavra em dar a conhecer aquilo que

significa. A opacidade da palavra é a explicação da sua ineficácia cognitiva.

Entretanto, na segunda circunstância, isto é, se o ouvinte conhecer previamente o

significado da palavra, considerando de novo o exemplo sarabarae, esta palavra não

vem obviamente causar o conhecimento antes adquirido, por percepção sensível, da

coisa significada (Ibid.).

Em nenhuma das duas circunstâncias cognitivas de recepção da palavra, esta é

ostensiva a respeito da coisa que significa. Da opacidade das palavras a respeito das

coisas significadas, resulta, segundo Agostinho, que pelas palavras nada aprendemos

(De Mag. 10, 34). Não conhecemos as coisas pelos seus nomes. As palavras ficam

aquém de cumprir a finalidade de dar a conhecer as coisas significadas.

A opacidade do gestoEntretanto, a opacidade, ou seja, a incapacidade de ostensão, não é um defeito

exclusivo das palavras, é antes uma privação comum a toda a linguagem significante.

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Dão testemunho disso, as reflexões pontuais de De Magistro sobre a linguagem

gestual. Este género de linguagem começa a ser considerado, no diálogo augustiniano,

por via do gesto de apontar o dedo (intentio digiti). Este gesto surge como um gesto

ostensivo, e, desse modo, como alternativa às palavras, que não são ostensivas. Como

vimos, a descrição verbal do significado de uma palavra não ultrapassa o domínio das

palavras, enquanto que o gesto de apontar o dedo para uma parede parece poder

mostrar de imediato a coisa significada pela palavra paries (De Mag. 3, 5). Mas não

só uma realidade visível, como uma parede, pode ser advertida através de um gesto,

pois também uma relação abstracta, como a relação de procedência, supostamente

significada pela partícula ex, pode ser representada por linguagem gestual. Só que esta

representação não é, em rigor, uma ostensão, mas é outra forma de significação, de

modo que a palavra ex se deixa permutar, não apenas pelo conjunto de palavras da

descrição perifrástica do seu significado, mas também pelo conjunto de movimentos

do corpo, que compõem a descrição gestual do seu significado (De Mag. 3, 6).

Entendida como forma de significação, a representação gestual do significado das

palavras não é mais ostensiva do que as próprias palavras. O gesto é um sinal como a

palavra e, portanto, padece da mesma opacidade da palavra.

Que dizer, no entanto, a respeito do gesto de apontar o dedo, que se apresentara

como exemplo de gesto ostensivo? Agostinho sente necessidade de reavaliar o caso.

Para o efeito, retoma o exemplo da palavra caput, por ocasião de uma primeira

audição desta palavra, seguida de uma demonstração do seu significado por via do

gesto de apontar o dedo para uma cabeça: por um lado, apontando para uma cabeça, o

gesto assinala uma realidade já previamente percepcionada, e, portanto, não a dá a

conhecer, apenas faz reconhecê-la; por outro lado, não apontando para a palavra

caput, o mesmo gesto não pode também dar a conhecer a palavra, que o laço da

significação associa com a cabeça apontada (De Mag. 10, 34). Nem ostensivo a

respeito das coisas apontáveis, nem ostensivo a respeito de outros sinais dessas coisas,

resta ao sinal gestual de apontar o dedo, ser sinal do próprio acto de mostrar, e, desse

modo, um sinal gestual sinónimo do advérbio ecce (eis). É costume até juntar o gesto

à palavra, como se apenas um sinal não fosse sinal suficiente de ostensão (De Mag.

10, 34). O gesto de apontar o dedo revela, assim, ser um sinal de ostensão, não

ostensivo. Por ser um sinal, o gesto de apontar o dedo não é ostensivo, padecendo da

mesma opacidade, que afecta a palavra.

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De acordo com os exemplos tratados, a linguagem gestual não tem privilégio

relativamente à linguagem verbal. Ambas são linguagens significantes e, portanto,

não ostensivas. No entanto, o gesto é analisado à semelhança da palavra. Esta

constitui o paradigma do comportamento dos sinais.

A opacidade do discurso a respeito da verdadeA crítica augustiniana da eficácia cognitiva da linguagem verbal não se detém na

análise dos efeitos da recepção da palavra separadamente considerada, mas

prolonga-se por uma análise também dos efeitos da recepção do discurso susceptível

de verdade. Esta análise é feita por analogia com a primeira: tal como a coisa

significável é o conteúdo cognitivo da palavra, a verdade declarável é o conteúdo

cognitivo do discurso declarativo; tal como a palavra, enquanto sinal de alguma coisa,

não mostra aquilo que significa, assim também importa saber se o discurso

declarativo, susceptível de verdade ou de falsidade, mostra ou não se é verdadeiro ou

falso, ou seja, mostra ou não o seu valor de verdade. Trata-se agora de saber se o

discurso se comporta relativamente à verdade declarável da mesma forma que a

palavra relativamente à coisa significável, isto é, se o discurso também é opaco, ou

não ostensivo, a respeito da verdade ou falsidade do que é declarado, tal como a

palavra é opaca, ou não ostensiva, a respeito da coisa que é significada.

Agostinho analisa, então, os efeitos da fala, em discurso declarativo, na mente do

ouvinte. Cinco são os efeitos possíveis: a certeza, a contradição, a crença, a opinião e

a dúvida. Todos estes efeitos são, porém, condicionados por circunstâncias prévias de

conhecimento na mente do ouvinte: a certeza de aprovação ou de desaprovação é o

efeito condicionado pelo conhecimento prévio, respectivamente, da verdade e da

falsidade do discurso percebido; a crença, a opinião e a dúvida são os três efeitos

possíveis do discurso recebido na condição de desconhecimento do seu valor de

verdade (De Mag. 12, 40). Refiram-se os exemplos: a leitura de uma narração bíblica

de um milagre (Dan. 3, 12-100) produz, em Agostinho, o efeito da crença,

condicionado pelo desconhecimento directo dos factos (De Mag. 11, 37); a

enunciação de um facto inverosímil, como ver um homem a voar (sem suporte

técnico), pode produzir no ouvinte a crença ou, mais provavelmente, a descrença,

ambas efeitos condicionados pelo desconhecimento directo do facto (De Mag. 12,

40); em contrapartida, a enunciação de um juízo universal de valor, como dizer que a

sabedoria é melhor do que a ignorância, não pode produzir no ouvinte, segundo

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Agostinho, senão a certeza, efeito condicionado, neste caso, pelo conhecimento

prévio e inteligível da bondade da sabedoria (Ibid.).

A análise dos efeitos condicionados da recepção do discurso mostra que em caso

nenhum o discurso dá a conhecer ao ouvinte, ou ao leitor, o seu valor de verdade: por

um lado, a certeza é um efeito de reconhecimento, ou de rememoração, não um efeito

de aquisição de novo conhecimento; a crença ou a descrença, a opinião e a dúvida,

por outro lado, são efeitos indissociáveis da condição de desconhecimento, que a

força do discurso não logra ultrapassar. Por analogia com a ineficácia cognitiva da

palavra a respeito do significável, em virtude da opacidade da palavra, podemos

compreender a ineficácia cognitiva do discurso declarativo a respeito do seu valor de

verdade, em virtude da opacidade do próprio discurso: este não dá a conhecer o seu

valor de verdade porque não mostra se é verdadeiro ou falso. O discurso declarativo

não é um meio de ostensão da sua verdade ou falsidade.

A opacidade do discurso a respeito da menteResta ainda averiguar se o discurso verbal é capaz de dar a conhecer a mente

invisível do falante. A expressão do pensamento é uma tarefa tradicionalmente

associada à linguagem verbal, cabendo no propósito amplo de dar a conhecer, que

Agostinho e Adeodato admitiram como finalidade da fala dialógica. A fala é um meio

sensível, que se habilita por isso a tornar sensíveis os conteúdos da mente do falante.

Nem sempre isso acontece porém, como as análises de Agostinho permitem verificar.

As falhas que se descobrem na relação de adequação entre a fala e a mente do falante

impedem-nos de considerar a fala uma expressão infalível do pensamento. Entre essas

falhas, contam-se casos de inadequação acidental entre o discurso e a mente do

falante, como o caso de recitar um discurso decorado a pensar noutras coisas que não

no que se está a dizer, ou o caso de troca involuntária de palavras (De Mag. 13, 42).

As falhas que se descobrem na relação de adequação entre a fala e a mente do

ouvinte impedem-nos também de considerar a fala um meio eficaz de comunicação do

pensamento. Entre essas falhas, contam-se também casos de inadequação acidental

entre o discurso e a mente do ouvinte, isto é, de mal-entendidos: seja por deficiente

audição do discurso do falante, como no caso em que Agostinho diz ter ouvido uma

palavra bem diferente da que foi a proferida pelo seu interlocutor (De Mag. 13, 44);

seja por equivocidade das palavras quanto ao significado, como ilustra, no diálogo

augustiniano, o exemplo da palavra virtus (De Mag. 13, 43). Esta palavra não pode

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significar o mesmo para quem afirma que o homem é superado em virtus por alguns

animais e para quem recebe com imediata rejeição essa afirmação: para o primeiro,

virtus significará força física, enquanto para o segundo, a mesma palavra significará

uma qualidade espiritual superior, como a virtude moral. A fim de obviar à

dificuldade do equívoco, Agostinho admite o recurso à definição do significado das

palavras, embora sem lhe reconhecer total eficácia (Ibid.). Os debates filosóficos, em

que se confrontam não só posições doutrinárias inconciliáveis como também

divergentes orientações de fundo, dão abundante testemunho da dificuldade do

equívoco no diálogo verbal, bem como da necessidade de recorrer à definição do

significado das palavras, mas também da impossibilidade de usar exaustivamente esse

recurso.

No entanto, as inconformidades mais relevantes, na relação entre a fala e a mente,

são casos de inadequação intencional ou deliberada entre o discurso e a mente do

falante, como acontece quer na mentira quer no discurso imparcial. Vejamos o que

aproxima e o que distingue entre si os dois discursos: em ambos, a inadequação entre

o discurso e a mente é parcial; em ambos, há ocultação e manifestação da mente. Com

efeito, tanto no discurso imparcial como no mentiroso, há manifestação do

pensamento que corresponde ao conteúdo do discurso, posto que é plausível supor

que, em qualquer dos casos, o falante está a pensar no que está a dizer. Agostinho

reconhece-o explicitamente a respeito da mentira (De Mag. 13, 42).

Os dois casos diferem, porém, quanto àquilo que ocultam. O discurso imparcial

oculta o assentimento ou o dissentimento do falante a respeito do que diz, que pode

ser verdadeiro ou falso. Exemplo de discurso imparcial é o do professor epicurista,

que oculta o seu dissentimento, ao expor os argumentos a favor da imortalidade da

alma (De Mag. 13, 41-42). A mentira, por seu turno, oculta a verdade com o

conhecimento que dela tem o mentiroso. Por ocultar o conhecimento da verdade na

mente do mentiroso, a mentira figura como um caso específico de ocultação da mente

pelo discurso (De Mag. 13, 42). Sobre a mentira, mais não se diz De Magistro.

Todavia, de acordo com os esclarecimentos de De Mendacio (395), um opúsculo de

Agostinho sobre a mentira, esta só se verifica indiscutivelmente, quando há não só

ocultação da verdade mas também intenção de enganar. Nessa medida, o discurso

mentiroso oculta, para além do conhecimento da verdade, a intenção de enganar, da

mente do falante. Através desse duplo ocultamento, mentira é o mais forte desmentido

de que o discurso verbal seja uma expressão ostensiva da mente. Uma linguagem, em

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que a mentira pode ter lugar, não pode ser ostensiva a respeito da mente. A mentira

denuncia especialmente a opacidade do discurso a respeito da mente, e, portanto, até

que ponto a fala pode ficar aquém de dar a conhecer a mente do falante.

1.1.2. O conhecimento aquém da linguagem

Entre os efeitos condicionados da força da palavra, descobre-se o desejo de saber.

Como vimos, as palavras não são capazes de mostrar os respectivos significáveis aos

ouvintes que os desconhecem, mas são capazes de despertar nos ouvintes o desejo de

saber, advertindo-os para a necessidade de indagar. A força das palavras não é

ostensiva, mas é admonitiva (admonent tantum: De Mag. 11, 36; 14, 46). Mas se as

palavras ficam aquém de dar a conhecer os seus significáveis, como explicar a força

de advertimento que lhes reconhece, contudo, Agostinho? Pelo conhecimento que se

encontra já suposto na constituição das palavras. Estas são já feitas de conhecimento.

Tal é o que revelam as regras da linguagem, que o diálogo filosófico De Magistro

conduz a apurar: a regra da nominação e a regra da fala, ou da comunicação. Estas

duas regras evidenciam que o conhecimento é uma condição precedente da linguagem

verbal.

As palavras como nomes: a regra da nominaçãoDe acordo com a definição geral da palavra como sinal (signum), toda a palavra é

sinal de alguma coisa, isto é, significa alguma coisa (De Mag. 2, 3). Vimos já a

dificuldade da aplicação desta definição à partícula ex, e seguimos o rumo da reflexão

daí decorrente. Retomando o exercício gramatical inicial, a partir de um verso da

Eneida, outras palavras, para além de ex, como sejam si e nihil, colocam também, a

Adeodato, dificuldades de aplicação da definição da palavra como sinal. À

semelhança de ex, que é uma preposição, portanto, uma partícula de ligação entre

palavras, si é uma conjunção, portanto, uma partícula de ligação entre frases:

nenhuma das partículas é morfologicamente um nome, o que torna difícil de

compreender como possam ambas desempenhar a função de sinais de coisas.

Admitiu-se, entretanto, que ex significa uma relação de procedência, de modo que é

de esperar uma solução semelhante para o significado de si. Este caso, porém, é

resolvido, menos por analogia com a partícula ex, do que com o nome nihil. A esta

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palavra, apesar de ser um nome, não parece possível apontar alguma coisa como seu

significável, uma vez que «nada» nada significa. Os significados de si e de nihil

recebem, de facto, um tratamento análogo: à semelhança de si, que significa dúvida,

portanto, um estado de espírito, nihil nada significa fora do espírito, mas significa a

percepção de uma ausência onde se esperava encontrar algo, portanto, também um

estado de espírito (De Mag. 2, 3). Não obstante a diferença morfológica entre si e

nihil, estas duas palavras são igualmente sinais de coisas significáveis.

Assim se começa a preparar a tese mais controversa da filosofia da linguagem de

De Magistro: a generalização do conceito de nome a todas as palavras. Com efeito, a

relação de significação – ser sinal de alguma coisa – não é concebida senão em

conformidade com o modelo da nomeação – ser nome de alguma coisa –, de modo

que o nome dá verdadeiramente a norma do que é o sinal (signum) para Agostinho.

Mas, como pode o nome desempenhar este papel normativo na concepção da relação

de significação, se a gramática tradicionalmente ensina que nem todas as palavras são

nomes? Agostinho necessita, por isso, de empenhar-se num apreciável esforço

argumentativo para tornar evidente que todas as palavras podem ser concebidas como

nomes. Esse esforço desenvolve-se mediante a análise da relação e diferença entre as

palavras verbum (palavra) e nomen (nome).

A análise começa por aproximar estas duas palavras, através de duas

propriedades comuns relativas à significação: a reflexividade e a simetria (ou

reciprocidade). De facto, verbum e nomen são palavras que se significam a si mesmas:

verbum é uma palavra entre todas as palavras que caem sob a significação de verbum;

e nomen é um nome entre todos os nomes que caem sob a significação de nomen (De

Mag. 4, 10). Ambas as palavras, verbum e nomen, significam, pois, reflexivamente,

ou seja, significam-se a si mesmas, entre as demais palavras por elas significáveis.

Mas, para além de ser reflexiva, a significação de verbum e nomen é também

simétrica. A simetria é uma propriedade da significação inter-relativa das duas

palavras: verbum é um nome que cai sob a significação de nomen e nomen é uma

palavra que cai sob a significação de verbum (De Mag. 5, 11). Ambas as palavras,

verbum e nomen, significam, pois, simétrica ou reciprocamente, ou seja, significam-se

uma à outra. A reflexividade e a simetria da significação de verbum e nomen

aproximam entre si os significados das duas palavras, e, portanto, também os

conceitos de palavra e nome.

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Há, no entanto, uma diferença entre verbum e nomen, que Agostinho não podia

ignorar, uma vez que era uma diferença tradicionalmente ensinada pela gramática.

Trata-se da diferença de extensão entre um género e uma espécie, segundo a qual o

género da palavra é mais extenso do que a espécie do nome, tal como o género animal

é mais extenso do que a espécie do cavalo (De Mag. 4, 9). De acordo com esta

diferença de extensão, nem todas as palavras são nomes, mas só aquelas que

desempenham a função de sujeito na frase. Esta é a diferença de compreensão da

espécie do nome, que corresponde à diferença de extensão entre o género da palavra e

a espécie do nome, corresponde.

Outra é, porém, a diferença de compreensão que distingue verbum e nomen,

segundo Agostinho. Trata-se de uma diferença análoga àquela que distingue visibile

(visível) e coloratum (ter cor): tal como visibile e coloratum significam o mesmo

universo de coisas, salientando aspectos distintos das mesmas, como ser acessível à

vista e ser passível de cor, assim também verbum e nomen significam o mesmo

universo de palavras, salientando aspectos distintos das mesmas, como sejam a

capacidade de percutir o ouvido, que se diz pelo termo verbum (a verberando), e o

conteúdo de conhecimento, que se diz pelo termo nomen (a noscendo). À luz desta

diferença, verbum designa a palavra, como sendo capaz de impressionar os sentidos,

enquanto nomen designa a palavra, como sendo capaz de conhecimento das coisas;

verbum significa a palavra realçando o seu lado sensível, enquanto nomen significa a

palavra, realçando o seu lado inteligível, isto é, aquele que é relativo ao conhecimento

das coisas (De Mag. 5, 12). Verbum e nomen significam o universo das palavras sob

aspectos distintos. Palavra e nome compreendem o mesmo universo de sinais de

modos diferentes. O mesmo universo de sinais é o género da palavra. Assim sendo,

óbvio se torna que esta diferença de compreensão entre palavra e nome supõe a

co-extensão dos dois termos, isto é, a redução de ambos à mesma extensão ou a

ampliação da extensão do nome à extensão genérica da palavra. Ora, isto é o que não

está ainda adquirido (De Mag. 5, 12-13). Novo fôlego argumentativo se impõe.

Agostinho empenha-se, então, em formular uma série de argumentos até

convencer Adeodato da sua tese: todas as palavras são nomes.

O primeiro argumento constitui a possibilidade de empregar pronomes, não só em

vez de nomes, em conformidade com a própria definição de pronome, mas também

em vez de conjunções, como ilustra o emprego do pronome demonstrativo haec

(essas) em vez das conjunções et (e), que (ou), at (mas) e atque (também), na frase:

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haec omnia quae dixisti, «todas essas coisas, que disseste» (De Mag. 5, 13). Este

argumento não convence ainda Adeodato, que objecta do seguinte modo: a

substituição de conjunções por pronomes pode explicar-se pela mediação do termo

verbum (palavra), isto é, os pronomes podem substituir conjunções porque as

conjunções são verba (palavras) e verbum (palavra) é um nome, sem que isso obrigue

a conceder que as conjunções são nomes. A objecção de Adeodato obriga Agostinho a

formular novo argumento.

O segundo argumento constitui a possibilidade de empregar verbos com a função

semântica de nomes numa frase, como ilustra, por exemplo, o emprego do verbo est

(é), na frase: Non erat in Christo est et non, sed est in illo erat, «não estava em Cristo

o é (est) e o não é (non), mas somente o é (est) estava nele» (2 Cor. 1, 19). O emprego

do verbo est (é) é aqui análogo ao emprego do nome virtus (virtude), na frase: virtus

in illo erat, «a virtude estava nele» (De Mag. 5, 14). Esta analogia não obriga a

identificar o significado do verbo est com o significado do nome virtus na mesma

frase, apenas permite perceber que um verbo significa como um nome, quando

desempenha na frase a função de sujeito, que é uma função sintáctica dos nomes. Este

exemplo dá origem à primeira indução da regra da nominação: tal como um verbo

significa como um nome, quando desempenha funções sintácticas dos nomes, assim

também todas as outras palavras, das restantes classes morfológicas, significam como

nomes, em circunstâncias análogas (Ibid.). Todavia, o próprio Agostinho aduz aqui

uma objecção ao seu argumento: o exemplo foi extraído de uma carta de S. Paulo, e

este apóstolo pode ser uma autoridade em moral e de religião, mas não em gramática

e retórica, de modo que, deste ponto de vista, a sua escrita pode ser considerada

bárbara (De Mag. 5, 15).

Segue-se, por isso, um argumento exclusivamente de razão, sem qualquer reforço

de autoridade: a possibilidade de tradução atomística das palavras de uma língua por

palavras de outra língua, abstracção feita do contexto frásico, isto é, a possibilidade de

construção de dicionários de línguas. Se cada nome, pronome, verbo, advérbio,

conjunção, preposição e interjeição de uma qualquer língua pode ser traduzido por

uma palavra congénere de outra língua, isso não acontece senão porque as palavras

correspondentes de línguas distintas significam uma mesma coisa, ou seja, são nomes

de um mesmo significável (De Mag. 5, 15). Os dicionários de línguas revelam que as

palavras se comportam semanticamente como nomes. Nessa medida, os dicionários de

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102

línguas constituem uma ponderosa razão a favor da regra da nominação: todas as

palavras são nomes.

Mas, como se a razão não chegasse, Agostinho acrescenta um argumento de

autoridade: Cícero terá chamado nomen à preposição latina coram (Verrinas II, 42,

104). O exemplo perde força, porém, na medida em que Agostinho admite a

falibilidade da sua própria interpretação do texto de Cícero (De Mag. 5, 16).

Por fim, Agostinho elabora, ele próprio, um exemplo, a partir de uma situação

imaginada, a seguinte: Agostinho e Adeodato avistam ao longe um vulto de contornos

pouco definidos, e Agostinho diz quia homo est, animal est (porque é um homem, é

um animal), enquanto que Adeodato diz si homo est, animal est (se é um homem, é

um animal). Qual deles se pronuncia melhor, ou de forma mais adequada à situação?

Adeodato certamente, uma vez que é mais prudente, ao preferir empregar a conjunção

si (se) à conjunção quia (porque): placet si (agrada o se); displicet quia (desagrada o

porque). Obtêm-se, assim, duas frases completas, compostas por sujeito e predicado,

nas quais as conjunções si e quia desempenham a função de sujeito (De Mag. 5, 16).

Em contexto frásico, as duas conjunções, e, induzindo, qualquer outra palavra,

qualquer que seja a sua classificação morfológica, podem desempenhar as funções

sintácticas dos nomes. Mas não só as funções sintácticas, como também as funções

semânticas dos nomes. No exemplo concebido, cada uma das duas conjunções pode

ser nome de duas coisas: a conjunção si tanto pode ser nome de si própria, na medida

em que agrada a sua aplicação na situação descrita, como do estado de dúvida, que

recomenda essa aplicação; de igual modo, a conjunção quia tanto pode ser nome de si

própria, na medida em que desagrada a sua aplicação na situação descrita, como do

estado de certeza, que é inadequado a essa situação. Esta duplicação da função

semântica das palavras, como nomes de si mesmas e nomes de outras coisas, exige

regulação, como se torna evidente mediante a descoberta da regra que se segue.

A regra da fala, ou da comunicaçãoAgostinho coloca a Adeodato uma pergunta impertinente: Et primum dic mihi,

utrum homo est homo, «E, antes de mais, diz-me se homem é homem.» (De Mag. 8,

22). Estará, Agostinho, a pôr em causa o princípio da identidade? Não, está apenas a

provocar, ou, melhor, a forçar uma ambiguidade: a ambiguidade entre significação

habitual e significação reflexiva das palavras. Dizemos «forçar» esta ambiguidade,

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103

porque ela é normalmente evitada, sem querermos, pela ordem interna da linguagem,

através da regra da fala.

Vejamos as consequências da actualização desta ambiguidade da significação,

para o caso da palavra «homem», considerando as duas ocorrências desta palavra na

pergunta formulada por Agostinho. Se actualizarmos cada uma das duas

possibilidades de significação, a habitual e a reflexiva, nessas duas ocorrências

igualmente, obtemos duas respostas possíveis: ou o homem real é o homem real, ou a

palavra «homem» é a palavra «homem». Há, pois, duas interpretações da pergunta

que pedem uma resposta afirmativa: uma tomando a palavra «homem», nas duas

ocorrências, segundo a sua significação habitual; a outra tomando-a, nas mesmas duas

ocorrências, segundo a sua significação reflexiva. Mas, se actualizarmos cada uma

das duas possibilidades de significação, a habitual e a reflexiva, nas duas ocorrências

diferenciadamente, obtemos mais duas respostas, desta vez negativas: ou o homem

real não é a palavra «homem», ou a palavra «homem» não é o homem real. Há, pois,

duas interpretações da pergunta que pedem uma resposta negativa: uma tomando a

palavra «homem» com significação habitual na primeira ocorrência e com

significação reflexiva na segunda; a outra, inversamente, tomando a mesma palavra

com significação reflexiva na primeira ocorrência e com significação habitual na

segunda (De Mag. 8, 22). Quatro são, portanto, as respostas possíveis à pergunta de

Agostinho, que resultam de quatro combinações possíveis das duas significações,

habitual e reflexiva, nas duas ocorrências da palavra «homem» naquela pergunta.

Mas será, a ambiguidade entre as duas possibilidades de significação, uma

ambiguidade sempre em acto na emissão e na recepção das palavras? Temos de optar,

a todo o momento que proferimos ou ouvimos uma palavra, entre a própria palavra

(significação reflexiva) e a coisa que ela significa para além de si mesma (significação

habitual)? Efectivamente não, devido a uma disposição naturalmente reguladora da

linguagem verbal, segundo a qual a nossa atenção é conduzida prioritariamente, não

para as palavras, mas para as coisas, que as palavras significam. A significação

reflexiva das palavras, pela qual estas chamam a atenção para si mesmas, não é a

significação habitual das mesmas em virtude dessa disposição reguladora do uso

habitual das palavras; a significação reflexiva das palavras é uma significação

potencial das mesmas, cuja actualização excepcional tem que ser explícita na fala e na

escrita (De Mag. 8, 24).

A essa disposição reguladora, Agostinho chama «regra da fala» (loquendi regula):

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«Se, porém, perguntasse simplesmente: que é homem? Silenciando nome eanimal, o espírito (animus) dirigir-se-ia para aquilo que é significado pelas duassílabas, por essa lei da fala (loquendi regula) por nós aceite, e nada mais responderiasenão animal, ou mesmo pronunciar-se-ia a definição completa, ou seja, animalracional mortal.» De Mag. 8, 2441.

Esta regra da fala é necessária, desde logo, em função da comunicação verbal. Por

isso a designamos também de «regra da comunicação». Com efeito, se a fala não

fosse regida pela prioridade da significação habitual das palavras sobre a respectiva

significação reflexiva, a comunicação verbal ficaria inviabilizada. Retomando o

exemplo da pergunta de Agostinho: se tomássemos todas as palavras da pergunta

segundo a respectiva significação reflexiva, porventura nem sequer entenderíamos

tratar-se de uma pergunta; e, se tropeçássemos com a ambiguidade entre a

significação reflexiva e a habitual, na interpretação de cada palavra,

multiplicar-se-iam a tal ponto as interpretações do enunciado que, sem critério de

escolha, ficaria paralisada a nossa capacidade de resposta (De Mag. 8, 22-23).

Mas não só em função da comunicação verbal como também em função do

exercício do pensamento, a regra da fala é necessária. Na verdade, se a judicação é

uma operação constituinte do nosso pensar, e se, a todo o passo, tivéssemos de decidir

interiormente se estamos ajuizar acerca das palavras ou das coisas que elas

significam, ficaria paralisada a nossa faculdade de julgar. A regra da fala é, por isso,

também uma exigência do exercício da nossa faculdade de julgar (De Mag. 8, 23-24).

A regra da fala é, no entanto, uma regra implícita da linguagem verbal. Sem ela

não poderíamos comunicar nem discorrer fluentemente, mas não a aprendemos com o

ensino da gramática. Foi preciso um esforço de desconstrução dos nossos hábitos de

interpretação, para descobri-la como regulação profunda da fala e do pensar.

Agostinho considera-a, por isso, uma regra natural, cuja força necessitante provém da

ordem da natureza:

«Ad.- […]. Mas por que nos fere então o espírito quando se diz – portanto não éshomem – uma vez que, segundo o que foi admitido, nada de mais verdadeiro se podiadizer? – Ag.- Porque não posso deixar de supor (Quia non possum non putare),apenas soam tais palavras, que a conclusão se refere ao que é significado por essasduas sílabas, em virtude daquela lei que tem muita força na ordem da natureza (ea

41 Op. Cit., c. 8, p.83.

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scilicet regula, quae naturaliter plurimum valet), a saber, que, ouvidos os sinais, opensamento se dirija para as coisas significadas.» De Mag. 8, 2442.

Esta regra natural da fala, que a filosofia augustiniana da linguagem tornou

explícita, é do maior alcance acerca da natureza da nossa linguagem verbal. A regra

da fala revela que a nossa linguagem verbal está prioritariamente vocacionada, não

para falar de si mesma (significação reflexiva das palavras), mas sim para falar das

outras coisas (significação habitual das palavras). É certo que a regra da fala não

anula a capacidade metalinguística da linguagem verbal, isto é, a capacidade de falar

de si mesma através da significação reflexiva das palavras. Esta é uma possibilidade

real da fala, mas não é a habitual, de modo que, para se tornar efectiva, o discurso tem

que tornar explícita a intenção de actualizá-la. A regra da fala significa um

descentramento da própria linguagem na ordem das suas finalidades: a fala não se

destina sobretudo a dar a conhecer a linguagem, mas antes a realidade que a excede.

Sabemos que não o pode fazer ostensivamente, isto é, mostrando. Cabe à fala dar a

conhecer admonitivamente, isto é, advertindo para as coisas que as palavras nomeiam,

e cujo conhecimento as palavras, como nomes, supõem e comportam. Através da

regra da fala, descobre-se de novo o conhecimento aquém da linguagem,

determinando a vocação natural desta, ou a sua orientação final, e, desse modo,

confirmando a hipótese de trabalho do capítulo inicial de De Magistro, sobre a

questão da finalidade da fala.

1.2. Tomás de Aquino: a questão disputada De Magistro

Introdução à questão escolásticaA cultura medieval era uma cultura predominantemente literária. A leitura de

textos, a lectio, era a base do estudo das artes liberais e da filosofia, bem como a

lectio divina, ou a leitura das Escrituras era a base da teologia. Em ambiente

monástico, a lectio divina devia propiciar a meditatio, a meditação solitária dos textos

sagrados. A meditação podia ou não obter uma expressão escrita, podia permanecer

mais ou menos próxima dos textos, podia assumir a forma de comentário ou

42 Op. Cit., c.8, p.83.

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desprender-se dos textos e tomar a forma de suma de temas, problemas e soluções.

Em ambiente propriamente escolástico, isto é, universitário, a lectio dava lugar à

disputatio, a discussão pública de um tema, mediante a formulação de posições

antagónicas sobre o mesmo e das razões, os argumentos, que as sustentam

respectivamente. A disputatio era, em suma, a discussão pública e argumentada de um

tema. O tema em discussão ou em debate era quaestio.

Os cursos universitários integravam, então, regularmente a discussão pública de

questões: eram as questões disputadas (quaestiones disputatae). A questão era

antecipadamente escolhida pelo mestre (magister), para ser discutida publicamente ao

longo de 2 sessões: a 1ª sessão, durante a qual eram argumentadas pelo bacharel as

posições em confronto no âmbito da questão, era a disputa (disputatio) propriamente

dita; a 2ª sessão, durante a qual o mestre definia a sua posição também

argumentadamente, era a determinação (determinatio), isto é, a resposta decisiva do

mestre. A extensa colecção de questões disputadas sobre a verdade, Quaestiones

Disputatae de Veritate, de Tomás de Aquino, dá testemunho desse exercício regular

da disputa de questões no ambiente universitário do seu tempo.

No género das questões disputadas, cabe destacar as questões quodlibéticas

(quaestiones quodlibetales): eram questões publicamente debatidas, uma ou duas

vezes por ano, fora da leccionação regular dos cursos, num espaço exterior da

Universidade, com entrada livre. A questão não era antecipadamente escolhida pelo

mestre, mas era tema livre (de quolibet), proposto no momento por qualquer pessoa

da assistência (ad voluntate cuiuslibet). A questão não era disputada primeiro por um

bacharel e depois determinada pelo mestre, mas era disputada pelo mestre e pelos

membros da assistência, que podiam objectar livremente, para ser por fim

determinada pelo mestre. Tomás de Aquino também se distinguiu no exercício

especialmente exigente e arriscado destas questões de tema livre, deixando-nos uma

colecção de doze questões quodlibéticas, Quodlibeta I-XII.

Sugestões bibliográficas: M.-D. Chenu, Introduction à l’étude de saint Thomas

d’Aquin, 3ª ed., Montereal-Paris, 1974; L.M. De Rijk, La philosophie au moyen âge,

trad. de P. Swiggers, Leiden, 1985; M. Santiago de Carvalho, A Síntese Frágil,

Lisboa, 2002, pp.168-187.

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A história da filosofia e a prática hermenêutica na questão escolásticaA questão escolástica comporta, entretanto, uma prática hermenêutica e uma

atitude perante a história da filosofia, sobre as quais vale a pena reflectir.

Acerca da relação da filosofia escolástica com a história da filosofia, considere-se

o parecer de Martial Gueroult, eminente pensador da relação da filosofia com a sua

história:

«§53. Mas se a filosofia medieval parece mostrar menor interesse do que apatrística no que concerne à posição do problema das relações da filosofia com o seupassado e à questão geral do valor da tradição, ela parece mostrar um outro totalmenteconsiderável.

A conciliação entre a filosofia e a sua história parece de tal modo bem adquiridaque dir-se-ia agora que a filosofia está inteiramente reduzida à sua própria história,que ela é por esta absorvida, não se identificando consigo mesma senão na medida emque se redescobre no seu passado. A este respeito, poder-se-ia dizer que a IdadeMédia é a idade de ouro da História da filosofia, uma vez que toda a filosofia parecereduzir-se a ela.»43

A filosofia medieval escolástica não tematiza a questão da relação entre a filosofia

e a sua história, nem faz parte, integrante ou adjacente, da produção filosófica da

época, a elaboração de histórias da filosofia. No entanto, há uma relação muito

estreita e não reflectida entre filosofia e história da filosofia; uma relação tão estreita

que a filosofia se confunde com a sua própria história, ou se reduz à sua própria

história, segundo as palavras de Gueroult. Ora tal redução constitui, segundo o mesmo

filósofo, a máxima valorização da história da filosofia, de modo que a filosofia

medieval escolástica pode ser considerada a época de ouro da história da filosofia.

Esta «redução da filosofia à sua história» é especialmente verificável na quaestio

escolástica, cuja disputa convocava os filósofos contemporâneos a par dos filósofos

do passado mais ou menos remoto, abstracção feita do diferimento histórico entre

eles. Na questão escolástica, não há fronteiras temporais que impeçam os filósofos do

passado de trocar argumentos com os filósofos escolásticos.

Tal supõe naturalmente que estes conheçam a filosofia daqueles, através das suas

obras ou da tradição. Há, de facto, uma prática hermenêutica na questão escolástica.

Trata-se de uma prática, que a hermenêutica actual valoriza, descentrando o autor e o

seu mundo em favor do leitor e do seu mundo na interpretação de textos, como

acontece na hermenêutica de Paul Ricoeur. Restituindo o autor ao reino da escrita e

43 Histoire de l’Histoire de la Philosophie I, Paris, 1983, C.IV, p.112.

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outorgando o reino da leitura ao leitor, a hermenêutica ricoeuriana promove a

interpretação dos textos à luz do mundo do leitor, constituindo uma perspectiva

alternativa à hermenêutica clássica, que preconiza a interpretação dos textos à luz da

intenção do autor, e do seu contexto histórico.

Por conseguinte, de acordo as modernas tendências da hermenêutica, não é um

escândalo hermenêutico que os filósofos escolásticos citem e retomem posições de

filósofos do passado no debate de questões contemporâneas, independentemente das

respectivas intenções e contextos históricos condicionantes. Com efeito, a questão

escolástica não lê os textos nos respectivos contextos, nem procura perscrutar as

intenções dos respectivos autores. Os textos e os autores são separados dos seus

contextos primitivos, são inseridos no contexto do leitor escolástico, e postos em

confronto na disputa da questão. O tratamento de Aristóteles, no contexto escolástico,

é paradigmático. Aristóteles não era, então, um filósofo antigo, era o «Filósofo», a

voz da razão, independentemente do lugar e do tempo em que viveu. O «Filósofo»

intervém na questão escolástica, propondo posições doutrinárias e argumentos, como

se fosse um contemporâneo dos seus leitores escolásticos.

Não obstante esta forma de aproximação das fontes remotas, a prática

hermenêutica da questão escolástica não ignora a tradição. As grandes fontes clássicas

geraram a tradição dos comentários e dos comentadores, que são igualmente

convocados na disputa da questão escolástica. Na tradição da filosofia de Aristóteles,

encontram-se comentadores, como Temístio, Teofrasto e Alexandre, que os

escolásticos não ignoram, e também se encontra Averróis, o «Comentador», isto é,

aquele que melhor compreende o «Filósofo». A cultura escolástica tinha, de facto,

uma acepção positiva do comentário, que não conflituava com a racionalidade da

questão disputada, antes se integrava constitutivamente nela.

A nossa prática hermenêuticaE, quanto a nós, que nos debruçamos sobre textos de filosofia da Idade Média, que

rumo dar à nossa prática hermenêutica? Três orientações hermenêuticas se perfilam:

uma que dá prioridade à relação do texto com a intencionalidade do autor e o seu

contexto histórico; outra que dá prioridade à relação do texto com a intencionalidade

do leitor e o seu contexto; outra que integra a relação do texto com a tradição dos seus

comentários. Considerar a complementaridade das três orientações entre si é, para

nós, um factor indispensável de auto-correcção: regressando às motivações do autor e

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ao seu contexto histórico, sempre que a nossa leitura for suspeitável de anacronismo

ou de incompreensão do autor; afirmando as nossas motivações de leitura, sempre que

a idade de um texto obste ao seu poder interpelativo na actualidade; regressando à

letra do texto, sempre que a tradição de comentários faz suspeitar de deformação;

retomando a tradição de comentários, sempre que nos parecer absolutamente original

a nossa interpretação.

1.2.1. Tomás de Aquino e os argumentos de Agostinho

A questão De Magistro44 é a questão 11 da colecção de questões disputadas sobre

a verdade, Quaestiones Disputatae de Veritate, de Tomás de Aquino (1225-1274).

Como qualquer questão disputada, a questão De Magistro é composta por vários

artigos, isto é, pelas questões particulares que permitem analisar a questão genérica,

evidenciando a sua complexidade. A questão De Magistro é, assim, constituída por

quatro artigos: o a.1 pergunta se o homem pode ensinar e dizer-se mestre ou só Deus

pode, isto é, coloca a questão da possibilidade do ensino humano, ou da transmissão

humana do saber por via da linguagem; o a.2 pergunta se alguém pode dizer-se mestre

de si próprio, isto é, coloca a questão da possibilidade do autodidata; o a.3 pergunta se

o homem pode ser ensinado pelo anjo, isto é, coloca a questão da possibilidade de

causas inteligentes intermédias, entre Deus e o homem, na aquisição humana do

saber; e o a.4 pergunta se ensinar é um acto da vida activa ou contemplativa, isto é,

coloca a questão do valor social ou espiritual do ensino. Dos quatro artigos, a nossa

análise confina-se ao a.1, que contém o essencial da filosofia do conhecimento, que

Tomás de Aquino desenvolve no âmbito da questão De Magistro.

Todos os artigos de uma questão disputada têm uma estrutura comum, como

ilustra o a.1 da questão De Magistro. À pergunta que intitula o artigo – se o homem

pode ensinar e dizer-se mestre ou só Deus pode –, segue-se a hipótese a rejeitar:

parece que o homem não pode ensinar e dizer-se mestre. Esta hipótese é sustentada

por uma série de dezoito argumentos. Segue-se um argumento de autoridade, neste

caso, a do apóstolo Paulo (2 Tim. 1, 11), a favor da hipótese oposta: o homem pode

ensinar e dizer-se mestre. Uma série de seis argumentos de autoridade (citações de44 Texto latino da ed. leonina, reprod. em: Saint Thomas d’Aquin, Questions Disputées sur la Vérité.Question XI: Le Maître (De Magistro), pref. de Jean Chatillon, introd., trad. francesa e notas deBernadette Jollès, Paris, Vrin, 1983.

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autores reconhecidos) corroboram esta posição. Segue-se a parte fulcral do artigo: a

resposta (responsio), isto é, a decisão argumentada de Tomás de Aquino, a favor da

possibilidade do ensino humano. Remata o artigo, uma série de dezoito argumentos,

fundamentados na resposta, e formulados como contra-argumentos refutando os

dezoito argumentos da primeira série, que sustentavam a hipótese inicial.

Nessa primeira série de dezoito argumentos, há três (2º, 3º e 12º) que importa aqui

destacar, uma vez que têm origem no diálogo augustiniano De Magistro. Situados

nessa primeira série, os argumentos de Agostinho militam a favor da hipótese inicial,

que é a negação da possibilidade do ensino do homem pelo homem. Tomás de Aquino

coloca, assim, Agostinho entre aqueles que defendem que o ensino é uma tarefa que

excede os recursos que o homem possui para exercê-la.

O primeiro dos argumentos de Agostinho é o 2º da primeira série, e é um

argumento complexo contra a eficácia quer do ensino ostensivo quer do ensino verbal.

Antes de mais, trata-se de um argumento contra a eficácia do ensino ostensivo, em

virtude da equivocidade da ostensão. Como vimos, a ostensão das coisas, da verdade

e da mente é uma tarefa que a fala não consegue realizar. Descentrando a linguagem

na sua análise, Agostinho considera a possibilidade da ostensão directa, isto é, não

mediada por sinais. Podendo esta possibilidade ser ilustrada por qualquer acção

humana sensível, que um agente humano possa exercer com o propósito de mostrá-la,

surge um exemplo, que se faz acompanhar da possibilidade de equívoco: a ostensão

da acção visível de andar. Esta ostensão pode ser equívoca, sobretudo, se o agente

humano que é inquirido sobre o que seja andar, se encontrar na circunstância de

exercer a acção de andar, no momento em que é solicitado para mostrá-la. Nessa

circunstância, o agente terá a tentação de modificar a sua acção, a fim de assinalar a

sua intenção de mostrá-la. Poderá apressar-se, por exemplo, e assim provocar no

observador a confusão entre andar e apressar-se. A circunstância focada neste

exemplo não é propícia à eficácia da ostensão humana, mas não é suficiente para

negá-la (De Mag. 3, 6).

Entretanto, na circunstância propícia à eficácia da ostensão humana, isto é,

quando o agente inicia a acção com a intenção de mostrá-la, sem necessidade de

introduzir modificação alguma no seu comportamento, o mesmo exemplo da ostensão

de andar parece comportar outra possibilidade de equívoco: a confusão entre o

conjunto finito de passos mostrados, que é a ostensão sensível da acção, e a própria

acção, que é uma noção universal, susceptível de ser reconhecida em todas as demais

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exemplificações. Agostinho não se incomoda muito com este tipo equívoco, que se

aplica à ostensão de todas as acções humanas sensíveis, confiando na inteligência do

observador, capaz de induzir o universal a partir da amostra observada (De Mag. 10,

32). De modo nenhum as possibilidades de equívoco analisadas inviabilizam o ensino

ostensivo, no diálogo De Magistro, de Agostinho.

Não é esta, porém, a percepção de Tomás de Aquino. Este filósofo, aliás,

interpreta de forma completamente diferente o equívoco da ostensão humana de uma

acção sensível: a ostensão é equívoca porque não mostra apenas a acção que visa

mostrar, mas também o agente, que é o sujeito ou a substância de que a acção é o

acidente. Tomar a acção ostensível pelo agente ostensor, ou por outro acidente do

mesmo ostensor, concomitante com aquela acção, constitui o género de equívoco que

condiciona a eficácia do ensino ostensivo, na versão tomista do argumento

augustiniano.

Ora, neste argumento da questão tomista, é a equivocidade do ensino humano por

ostensão que exige o uso de sinais (signa). Mas os sinais não podem causar o

conhecimento das coisas, porque o conhecimento dos sinais é inferior ao

conhecimento das coisas, e, por isso, não pode causar um efeito superior. Esta

impossibilidade justifica-se pelo princípio (dignitas), segundo o qual uma causa nunca

pode ser inferior ao seu efeito, que Agostinho enunciara no seu diálogo com

Adeodato (De Mag. 9, 25). A segunda parte do argumento de Agostinho em versão

tomista vira-se assim contra a possibilidade do ensino verbal.

Como é que Tomás de Aquino refuta este argumento? Contrapondo que o

conhecimento das coisas em nós não se realiza através do conhecimento dos sinais,

mas dos princípios, que podemos apreender com o auxílio dos sinais dados pelo

agente do ensino (2º contra-argumento da série final de dezoito contra-argumentos).

O terceiro argumento da primeira série também procede do diálogo augustiniano

(De Mag. 10, 33), mas de forma mais fidedigna, retomando a análise dos efeitos

condicionados das palavras na mente do ouvinte, que evidenciava a opacidade das

palavras a respeito das coisas: quer na condição de conhecer previamente as coisas

que as palavras significam, quer na condição de não as conhecer previamente, o

ouvinte nada aprende com as palavras. O ensino verbal não é, por isso, eficaz.

Como é que Tomás de Aquino refuta este argumento? Contrapondo que nós

conhecemos parcialmente e desconhecemos parcialmente as coisas significadas, de

modo que há sempre um conhecimento pré-existente, a começar nos princípios

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universais, que condiciona toda a posterior aquisição de conhecimento (3º

contra-argumento da série final de dezoito contra-argumentos).

O décimo segundo argumento da primeira série diminui o ensino humano,

denunciando que este só exorta ao saber, não causa o saber, tal como um aviso para

ver não causa a visão, como notara Boécio (Philosophiae Consolationis V, met. 4 e

pr. 5), e também Agostinho (De Mag. 11, 36 e 14, 46).

Como é que Tomás de Aquino refuta este argumento? Contrapondo que o nosso

intelecto tem mais necessidade de estímulo do que o sentido. Com efeito, o intelecto

não se relaciona com os inteligíveis da mesma forma que um sentido com os

sensíveis, como a vista com os visíveis: este sentido dispõe-se habitualmente para ver

todos os visíveis de igual modo; o intelecto, porém, não se dispõe habitualmente para

conhecer todos os inteligíveis de modo igual, conhecendo uns mais imediatamente do

que outros. Daí que o intelecto necessite de um agente essencial, que é o próprio

intelecto agente, e o sentido, apenas de um agente acidental, para passar da potência a

acto. Por conseguinte, o intelecto humano precisa mais de estímulo exterior do que o

sentido, porque este só precisa de estímulo exterior para passar da potência ao acto,

enquanto que o intelecto precisa não só de estímulo exterior como de um agente

interior para passar da potência ao acto. Deste modo, Tomás de Aquino afirma a

necessidade de um agente essencial, o intelecto agente, para com ele afirmar também

a necessidade de um agente acidental, o mestre. É, no entanto, o intelecto agente que

dispõe dos princípios do conhecimento, os inteligíveis que o intelecto conhece mais

imediatamente, e que constituem as condições precedentes de toda a aquisição de

conhecimento, e também da efectivação do ensino verbal.

1.2.2. Os princípios do conhecimento e a possibilidade do autodidata

A posição de Tomás de Aquino a favor da possibilidade do ensino humano é uma

via média entre dois extremos: o daqueles que valorizam extremamente as causas

extrínsecas, como a inteligência agente universal, segundo Avicena; e o daqueles que

as desvalorizam extremamente, como no conhecimento por reminiscência, segundo

Platão, que reduz a mero estímulo acidental, a influência do mestre.

Qual o erro das duas posições extremas?

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«Nenhuma destas duas opiniões tem razão: a primeira opinião exclui as causaspróximas, uma vez que atribui às causas primeiras todos os efeitos produzidos nos[graus] inferiores [da realidade], o que lesa a ordem do universo, que é constituída poruma ordem e uma conexão de causas, contanto que a causa primeira, pela eminênciada sua bondade, concede às outras coisas não só que sejam mas também que sejamcausas; a segunda opinião redunda quase no mesmo inconveniente, pois, como aquiloque remove um obstáculo, não move senão por acidente, como se diz no livro VIII daFísica (254 b 7, 255 b 24), se os agentes inferiores nada mais fazem do que tornarmanifesto o latente, removendo os impedimentos que ocultavam as formas, bem comoos hábitos das virtudes e das ciências, seguir-se-ia que todos os agentes inferiores nãoagiriam senão por acidente.» De Mag., a.1, Resposta.

O erro das duas posições extremas é anular ou, pelo menos, diminuir o papel das

causas segundas, não só na ordem do conhecimento, como na ordem do real em geral.

A valorização das causas segundas é, em contrapartida, uma das orientações

fundamentais da filosofia de Tomás de Aquino.

Como é que Tomás de Aquino entende a sua via média?

«E, portanto, segundo o ensinamento de Aristóteles, é preciso encontrar uma viamédia entre estas duas, acerca de todos os [assuntos] referidos [a origem das formas ea aquisição da virtude e da ciência]. As formas naturais pré-existem decerto namatéria, não em acto, como diziam uns, mas só em potência, da qual passam a actopor um agente extrínseco próximo, não apenas por um primeiro agente, comodefendia a outra opinião. De modo similar, também segundo as palavras do próprio[Aristóteles], no livro VI da Ética (Nicomaqueia, 1144 b 4), os hábitos das virtudespré-existem em nós, antes da respectiva consumação, em algumas inclinaçõesnaturais, que são começos das virtudes, e depois, pela prática das acções, são levadasà devida consumação. De modo similar, também é preciso dizer, acerca da aquisiçãoda ciência, que pré-existem em nós algumas sementes das ciências (scientiarumsemina), a saber, as primeiras concepções do intelecto (primae conceptionesintellectus), que são imediatamente conhecidas pela luz do intelecto agente atravésdas espécies abstraídas dos sentidos, quer sejam complexas, como os axiomas(dignitates), quer sejam incomplexas, como a noção (ratio) de ente, de uno, e outrassemelhantes, que o intelecto apreende imediatamente. Nestes princípios universais,incluem-se todas as consequências, assim como em algumas razões seminais: quandoa mente é conduzida, a partir destes conhecimentos universais, para conhecer em actoos particulares, que eram antes conhecidos como que em potência no universal, entãodiz-se que alguém adquire a ciência.» De Mag., a.1, Resposta.

A via média de Tomás de Aquino sublinha o papel das causas segundas do

conhecimento, e, entre elas, antes de mais, o intelecto agente e as primeiras

concepções do intelecto, que são os princípios universais do conhecimento. Estes são

de dois géneros: ou são princípios incomplexos, como as noções (rationes)

universalíssimas de ente e de uno; ou são princípios complexos, isto é, proposições

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por si evidentes, como o todo é maior do que a parte, duas quantidades iguais a uma

terceira são iguais entre si, ou uma declaração e a sua negação não podem ser

simultaneamente verdadeiras. Estes princípios universais do conhecimento são

imediatamente conhecidos pelo intelecto por ocasião do processo de abstracção,

através do qual o intelecto conhece o mundo exterior.

Mas, se o próprio sujeito do conhecimento se encontra equipado com o intelecto e

os seus princípios universais, resta algum papel a desempenhar por um agente

extrínseco próximo, como o mestre?

«O processo da razão que atinge o conhecimento do desconhecido descobrindo(inveniendo) consiste em aplicar os princípios comuns por si conhecidos (principiacommunia per se nota) a matérias determinadas, daí deduzir algumas conclusõesparticulares, e, destas, outras. De acordo com isto, diz-se que um ensina outro, porqueexpõe por sinais ao outro, este processo da razão, que em si faz pela razão natural, eassim a razão natural do discípulo, através do que lhe foi proposto desse modo, comoatravés de um instrumento, atinge o conhecimento do desconhecido.» De Mag., a.1,Resposta.

O ensino é concebido à semelhança da descoberta (inventio). Exemplar é o

processo autónomo de conhecimento pela razão natural; exemplificativo é o ensino,

através do qual o mestre expõe por sinais o processo racional que ele próprio já

realizou em si mesmo, e que o discípulo tem a realizar. Desse modo, o ensino tem um

papel instrumental no processo de aquisição do saber. Tanto no mestre como no

discípulo, a aquisição do saber é um processo de dedução do conhecimento específico

e particular a partir dos princípios universais do conhecimento, e não pode realizar-se

sem eles nem, acrescente-se, sem o concurso da experiência sensível.

Tomás de Aquino pretende valorizar as causas segundas no conhecimento

humano, mas não todas de igual modo. Considere-se as duas causas segundas aqui em

foco: a razão natural, do discípulo ou do mestre, e o próprio mestre, ou seja, o agente

extrínseco próximo. Entre as duas, é a razão natural que é decisiva, sendo-lhe

atribuída real autonomia na aquisição do conhecimento. Ao agente de ensino não cabe

senão um papel instrumental, que é o de descrever discursivamente a aquisição de

conhecimento em si já efectuada, e, desse modo, estimular e acelerar o mesmo

processo no destinatário. Assim sendo, Tomás de Aquino reaproxima-se de Platão, em

matéria de filosofia do ensino: o mestre tem um papel tão instrumental na didáctica

tomista quanto na maiêutica platónica. Não será, pois, justo que Platão permaneça no

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extremo, em que fora inicialmente colocado, como um extremo a evitar pela via

média de Tomás de Aquino. Dado que esta via preza sobretudo a autonomia da razão

natural do sujeito cognoscente, a função do agente de ensino não pode ser senão

relegada para segundo plano, tornando-se meramente instrumental, como acontece

também na maiêutica platónica. Por conseguinte, embora Tomás de Aquino divirja

assumidamente de Platão, no que concerne à descrição do processo de conhecimento

humano, o filósofo escolástico converge inadvertidamente com o filósofo clássico,

quanto ao valor instrumental da mediação do ensino.

Solidária com esta valorização moderada do mestre, é, aliás, a afirmação da

possibilidade do autodidata, claramente fundamentada na filosofia tomista do

conhecimento. Como?

«É preciso saber que, nas realidades naturais, algo pré-existe de dois modos: empotência activa completa, quando o princípio intrínseco é suficiente para conduzir aoacto perfeito, como é evidente na cura, pois, pela força natural que está no doente,este é conduzido à cura; ou em potência passiva, quando o princípio intrínseco não ésuficiente para conduzir ao acto, como é evidente quando do ar se faz o fogo, poiseste não poderia ser feito através de alguma força existente no ar. Portanto, quandoalgo pré-existe em potência activa completa, o agente extrínseco não age senão comoum adjuvante do agente intrínseco, ministrando-lhe aquilo que lhe permita atingir oacto, como o médico, na cura, é o auxiliar da natureza, que é o agente principal,fortificando a natureza e fornecendo medicamentos, que a natureza utiliza comoinstrumentos para a cura. Porém, quando algo pré-existe em potência passiva apenas,o agente extrínseco é o principal factor da passagem de potência a acto, como o fogofaz do ar, que é potência do fogo, fogo em acto. Por conseguinte, a ciência pré-existeem potência não puramente passiva mas activa naquele que aprende, senão o homemnão poderia adquirir a ciência por si mesmo.» De Mag., a.1, Resposta.

A possibilidade do autodidata é assegurada pelos princípios universais do

conhecimento, nos quais pré-existe a ciência, não em potência passiva apenas, mas

em potência activa completa. Só nesta condição, aqueles princípios constituem

princípios suficientes de ciência, provendo à aquisição desta sem a intervenção de um

agente extrínseco. A distinção entre estas duas modalidades da potência é, assim, o

fundamento conceptual, no horizonte da filosofia aristotélica, da autonomia do

intelecto solitário na aquisição do conhecimento, e, com ela, da possibilidade do

autodidata.

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2. A origem e o processo do conhecimento

2.1. Os sentidos

É frequente assinalar o desprezo do mundo (contemptus mundi), como atitude

significativa do pensamento medieval, em consonância com a pujança de vias

espirituais que também o caracteriza. Não se deve, porém, confundir uma atitude, que

é uma exigência moral e espiritual de desapego dos bens perecíveis, com uma

negação do valor do conhecimento sensitivo do mundo. Pelo contrário, a afirmação

do valor cognitivo, e até espiritual, dos sentidos e do sensível, é algo que se pode

igualmente contar como característica significativa do pensamento medieval. Essa

afirmação sobressai mesmo em pensadores eminentes, que delinearam vias espirituais,

como Agostinho e o Pseudo-Dionísio Areopagita.

2.1.1. O valor cognitivo dos sentidos: Agostinho

A princípio, Agostinho parece pôr em questão a possibilidade do conhecimento

sensitivo e, com ela, o valor cognitivo dos sentidos, ao distinguir entre sentir e

conhecer:

«E ele [Trigécio] diz: parece-me que ninguém conhece estas coisas que pertencemaos sentidos. De facto, uma coisa é sentir (sentire), outra conhecer (nosse). Por isso,se conhecemos algo (si quid novimus), julgo que só pode estar contido (contineri) nointelecto e por ele só ser compreendido (comprehendi).» De ordine II, 2, 5.

De acordo com esta distinção, sentir não é conhecer e, portanto, não há em rigor

conhecimento ao nível dos sentidos, ou seja, não há conhecimento propriamente

sensitivo do sensível. Conhecer é uma função exclusiva do intelecto.

Porquê dissociar o sentir do conhecer?

Uma hipótese: porque os sentidos enganam. Os erros dos sentidos constituem um

dos argumentos tradicionais da corrente céptica contra a possibilidade de um

conhecimento certo. Não é, porém, esta a resposta de Agostinho, segundo Contra

Academicos. Neste texto, Agostinho empenha-se em refutar o cepticismo da Nova

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Academia. Contra os cépticos, Agostinho defende os sentidos, redefinindo o papel

destes no conhecimento. A função dos sentidos é manifestar o que aparece, não é

julgar sobre o que aparece. No exercício do juízo acerca do que aparece é que começa

a possibilidade de erro, não antes, ao nível da aparência sensitiva, isto é, ao nível do

provimento de sense data (Cont. Acad. III, 11, 24-26).

A distinção entre sentir e conhecer justifica-se antes, segundo Agostinho, porque

os sentidos não captam a unidade do mundo sensível (De Ord. I, 1, 2-3). Os sentidos

apreendem a multiplicidade do mundo sensível, não a sua unidade. A apreensão

sensitiva do mundo é dispersão na multiplicidade. Não há, por isso, conhecimento ao

nível da apreensão sensitiva do múltiplo. No mundo sensível, não há só a

multiplicidade avulsa para apreender, há também uma beleza secreta para

compreender, a qual não é acessível aos sentidos. É necessário um regresso da alma a

si, para compreender o mundo; é necessária uma viragem para o interior, a fim de

conhecer a unidade do mundo exterior. Este conhecimento é, pois, uma das razões do

imperativo augustiniano da viragem para o interior.

É certo que o conhecimento do sensível não se queda nos dados imediatos dos

sentidos (De Ord. I, 2, 3 e II, 2, 5), mas aquilo que se passa ao nível da sensação e da

imaginação não merece por isso menos atenção. Agostinho tem mesmo uma

concepção elaborada do nível sensitivo do conhecimento, embora não seja essa parte,

aquela que se enfatiza mais habitualmente no seu legado.

Há, pelo menos, três linhas de desenvolvimento da teoria do conhecimento

relativamente aos sentidos na filosofia de Agostinho: uma análise da sensação, como

um composto de afecção do corpo e de acção da alma, que se inscreve na linhagem do

pensamento neoplatónico (De Ord. II, 2, 6; De Musica VI, 5, 8-15); uma reelaboração

do tema aristotélico dos sensíveis comuns e da hipótese de um sentido interior (De

Libero Arbitrio II, 3, 8 – 4, 10); e uma análise das trindades do homem exterior, a da

visão externa e a da visão interna, que podemos considerar duas sínteses do

conhecimento sensitivo, hierarquicamente articuladas entre si (De Trin. XI, 2, 2 – 3,

6). Esta última análise será, porventura, a abordagem mais apuradamente augustiniana

do tema do conhecimento sensitivo.

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A sensaçãoAgostinho considera a sensação na sua dupla relação com a alma e com o corpo,

privilegiando a relação da sensação com a alma. A sensação pertence à alma, não ao

corpo; a sensação é uma função da alma, não do corpo:

«De facto, não são os próprios olhos ou ouvidos, mas é não sei que outra coisa quesente pelos olhos. Se não atribuímos o próprio sentir ao intelecto, não o atribuímos aalguma parte da alma. Resta que o atribuamos ao corpo; entretanto nada me parecepoder dizer-se mais absurdo do que isso.» De Ord. II, 2, 6.

Sendo pertença da alma, a sensação não é, porém, uma afecção da alma, porque,

nesse caso, a sensação seria o efeito de uma acção do corpo sobre alma, o que

Agostinho rejeita. Porquê? Por causa de um princípio geral da filosofia augustiniana,

herdado da filosofia grega, nomeadamente, neoplatónica, segundo o qual aquilo que é

inferior por natureza não pode agir sobre o que é superior De Musica VI, 5, 8.

A sensação não é uma afecção da alma pelo corpo, mas comporta uma afecção do

corpo por um corpo exterior. A sensação é um composto de afecção do corpo e de

acção da alma: afecção do corpo pela realidade exterior e acção da alma em resposta à

afecção do corpo. A definição: «o próprio sentir é mover o corpo em resposta

(adversus) ao movimento que nele foi produzido, […].» De Mus. VI, 5, 1545. A

sensação é, assim, um duplo movimento do corpo sensitivo: um por acção do corpo

exterior, outro por acção da alma. Há, por isso, dois princípios activos na sensação: o

corpo exterior e a alma. Esta nunca é passiva. Passivo é o corpo sensitivo ou o sentido

do corpo.

Em conclusão:

«E, para ser breve, parece-me que a alma (anima), quando sente no corpo, não

padece algo por ele, mas age atentamente sobre as paixões do corpo, e estas acções,

quer sejam fáceis por causa da conveniência quer sejam difíceis por causa da

inconveniência, não se lhe ocultam. Ora, tudo isto é o que se diz sentir.» De Mus. VI,

5, 10.

45 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 7, Paris, Desclée de Brouwer, 1947,p.390.

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A sensação não é pura acção nem pura afecção, mas é uma acção da alma sobre a

afecção do corpo. A sensação pode ser uma acção fácil por conveniência, isto é, por

harmonia entre o sensível e o órgão sensitivo, como pode ser uma acção difícil por

inconveniência, isto é, por desarmonia entre o sensível e o órgão sensitivo. Será uma

acção fácil por conveniência, a sensação de prazer, bem como será uma acção difícil

por inconveniência, a sensação de dor. Uma e outra, porém, não são acções ocultas

para a própria alma, isto é, prazer e dor não são reacções inconscientes da alma. Esta

tem conhecimento das suas sensações. A consciência da sensação é tão irrecusável

para Agostinho, que ele a usou, desde logo, como argumento contra o cepticismo, em

Contra Academicos (III, 11, 26). A consciência da sensação é, entretanto, uma das

razões para a consideração de um sentido interior.

Sentidos exteriores e sentido interiorHá duas razões para se considerar um sentido interior, para além dos cinco

sentidos exteriores: a existência de sensíveis comuns, para além dos sensíveis

próprios, e a consciência da sensação (De Libero Arbitrio II, 3, 8 – 6, 13).

Os sensíveis próprios são aqueles que são respectivamente perceptíveis pelos

sentidos exteriores: a cor pela vista; o som pelo ouvido; o odor pelo olfacto; o sabor

pelo gosto; o mole e o duro, o liso e o áspero, pelo tacto. Os sensíveis comuns são

aqueles que são perceptíveis por mais do que um sentido externo, como sejam o

grande e o pequeno, o longo e o curto, o recto e o curvo, o rápido e o lento, etc… A

distinção e a associação dos sensíveis entre si, incluindo a consideração de sensíveis

comuns, são funções que excedem a competência dos sentidos exteriores, pelo que

requerem a acepção de um sentido interior, superior àqueles (De Lib. Arb. II, 3, 8).

A consciência da sensação, isto é, a função reflexiva do sentir, o sentir do sentir,

que sente os sensíveis e os sentidos, excede também a competência de cada um destes,

pelo que exige um sentido interior, superior a eles (De Lib. Arb. II, 4, 10).

O sentido interior não é, porém, um elemento persistente na evolução da filosofia

do conhecimento em Agostinho. O sentido interior é já uma faculdade de julgar, mas

julgar é próprio da razão. Cremos, por isso, que a noção de sentido interior acaba por

fundir-se com a noção de razão (ratio), que fica vocacionada para o conhecimento do

mundo temporal, sensível inclusive (scientia) e, como tal, torna-se discernível do

intelecto (intellectus), vocacionado para a contemplação do eterno, exclusivamente

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inteligível (sapientia), como é preconizado já num tratado expressivo da madurez do

pensamento de Agostinho, De Trinitate (XII, 2, 2 – 3, 3; 14, 21-23).

O homem exteriorAs categorias mais relevantes e significativas da antropologia filosófica de

Agostinho são não tanto as de alma e corpo quanto as de homem interior e de homem

exterior. Na verdade, a dualidade do homem exterior e interior não é redutível à

dualidade de corpo e alma: o homem exterior é um composto de corpo e alma; o

homem interior é uma vida de certo modo autónoma relativamente ao corpo. De

Trinitate é a obra na qual Agostinho desenvolve mais amplamente estas duas

categorias antropológicas, centrando-se o livro X no homem interior e o livro XI, no

homem exterior. O homem exterior é o sujeito do conhecimento sensível (percepção e

imaginação), tal como o homem interior é o sujeito do conhecimento inteligível.

Todo o conhecimento, em qualquer grau, é uma síntese de, pelo menos, três

factores. O conhecimento sensível não escapa à regra e é passível de análise em dois

graus: o da percepção e o da imaginação (De Trin. XI, 1, 1 - 4, 7). Cada um destes

dois graus é, por sua vez, decomponível em três componentes correlativos entre si: a

percepção visual inclui o visível exterior, a visão (visio) e a intenção da alma (animi

intentio), que é uma função da vontade e que une o sentido da vista ao visível (De

Trin. XI, 2, 2); a imaginação, por sua vez, inclui a imagem do sensível (similitudo),

que é formada na memória, a visão interna (interna visio) e a vontade que une a visão

interna à imagem. Esta trindade da imaginação recebe o nome de «cogitação»

(cogitatio), palavra derivada de cogo, cogere, que significa juntar, reunir:

«Assim se constitui aquela trindade de memória, de visão interna e de vontade,que une uma à outra. Como estas três coisas estão juntas numa só (cum in unumcoguntur), devido à própria junção (ab ipso coactu), diz-se cogitação (cogitatio).» DeTrin. XI, 3, 646.

Entretanto, cogitar, tal como querer, não são funções exclusivas do homem

exterior, mas são funções que perpassam toda a ordem do conhecimento, quer ao

nível do homem exterior quer ao nível do homem interior. Cogitação e vontade

acusam, por isso, a real inseparabilidade entre homem exterior e interior na

antropologia augustiniana.

46 Vd. também Confessionum X, 11, 18.

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2.1.2. O valor espiritual dos sentidos: Pseudo-Dionísio Areopagita e Boaventura

Os sentidos e os sensíveis no itinerário dionisiano das teologiasPseudo-Dionísio, ou Dionísio Pseudo-Areopagita, é o enigmático autor do Corpus

Areopagiticum, um pensador neoplatónico, cronologicamente situável entre o séc.III e

o séc.V, mas que se julgou, durante séculos, ter sido o convertido pelo apóstolo Paulo

no Areópago de Atenas (Act. 17, 34). Equivocamente conotado com um autor da era

apostólica, Dionísio grangiou imenso prestígio na cultura latina medieval, sobretudo,

depois de ter sido traduzido por João Escoto (séc.IX).

Nas suas obras, Dionísio assume-se como um teólogo e concebe a teologia como

um exercício de louvor a Deus. Ora a teologia pode louvar a Deus, quer através do

conhecimento do mundo sensível e das paixões humanas (teologia simbólica) quer

através do conhecimento mundo inteligível (teologia inteligível), porque tanto este

como aquele procedem de Deus.

Na sua obra menos extensa, intitulada Teologia Mística, o autor evoca outras

obras suas, algumas porventura perdidas, entre as quais uma intitulada Teologia

Simbólica, acerca da qual diz o seguinte:

«Na Teologia Simbólica explicámos as metonímias que a partir dos sentidospodem ser conformes com a divindade, quais são as formas divinas, as suas figuras,partes e órgãos; quais são os lugares divinos e as suas disposições, e os ímpetos, quaisas penas e as cóleras, quais os excessos e os desregramentos, quais as juras e asimprecações, quais os sonos e os despertares, e todas as outras formas e configuraçõessagradas que representam simbolicamente Deus.» Teol. Míst. 3.47

A teologia simbólica, portanto, louva a Deus por via do que é sensível e das

paixões próprias da vida sensitiva. Nesta forma de louvor teológico, o mundo sensível

e a vida sensitiva tornam-se capazes de dizer a divindade. Ora tal não seria possível,

se o mundo sensível e a vida sensitiva fossem um mal em si ou algo absolutamente

desprezível. Tal não seria igualmente possível sem a suposição do valor cognitivo dos

sentidos. Este valor não está em causa na espiritualidade do Pseudo-Dionísio. Não só

não está em causa a conveniência dos sentidos a um domínio próprio de

conhecimento como até se acrescenta a pertinência dos sentidos para a consideração

47 Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, texto grego da ed. crítica de G. Heil e A. M. Ritter,versão do grego e estudo complementar de Mário Santiago de Carvalho, Mediaevalia. Textos eEstudos, 10 (Porto, 1996), p. 19.

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simbólica de algo que não lhes pertence conhecer. Os sentidos obtêm valor espiritual,

para além do valor cognitivo que lhes é próprio.

A par da Teologia Simbólica, o autor da Teologia Mística menciona outras obras,

uma das quais, Os Nomes Divinos, chegou efectivamente até nós integrada no Corpus

Areopagiticum. Esta obra privilegia, segundo o autor, a dizibilidade de Deus através

dos nomes dos inteligíveis, como o bem, o ser, a vida, a sabedoria, e outros, que

pertencem a outro domínio de conhecimento, inacessível e superior aos sentidos. Os

nomes divinos inteligíveis são os nomes dos cognoscíveis mais nobres aquém de

Deus, constituindo as emanações mais próximas da divindade, segundo a metafísica

de Os Nomes Divinos. Por conseguinte, os nomes divinos inteligíveis são

propriamente nomes de emanações divinas, não de atributos divinos. Em rigor,

portanto, a teologia inteligível do Pseudo-Dionísio não se confunde com uma teologia

dos atributos divinos, não obstante a afinidade de conteúdo entre ambas.

Cabe agora perguntar: não terá a teologia inteligível prioridade sobre a teologia

simbólica, visto que nesta Deus é dito através do que está mais distante dele enquanto

naquela Deus é dito através do que está mais próximo dele? A ordem entre as duas

teologias, simbólica e inteligível, depende da ordem das afirmações e das negações.

Uma vez que todos os nomes divinos são propriamente, não nomes da divindade,

mas nomes de emanações mais ou menos próximas dela, o que é que será melhor, do

ponto de vista do louvor teológico: afirmar ou negar esses nomes de Deus? Para o

Pseudo-Dionísio, é melhor começar por afirmar de Deus os nomes dos inteligíveis, ou

seja, das emanações mais próximas de Deus, e acabar por afirmar dele os nomes dos

sensíveis, que dele procedem mais mediatamente. Mas como nenhum dos nomes

divinos convém à essência da divindade, melhor do que proceder por afirmações será

proceder por negações, a fim de obter maior proximidade dela. Ora, na via das

negações, é melhor começar por negar de Deus os nomes das perfeições inferiores do

mundo sensível e acabar por negar os nomes das perfeições superiores do mundo

inteligível. Tal é o que nos recomenda o Pseudo-Dionísio, do seguinte modo:

«Mas porque é então – dirás –, quando partimos do princípio mais elevado,estabelecemos sobre Deus afirmações e quando partimos das coisas procedemos pornegações? É que, ao termos em vista o que está para além de toda a afirmação,tínhamos de fundamentar os nossos pressupostos afirmativos a partir do que lhe émais conatural; enquanto que, ao ter em vista o que está acima de toda a aférese,temos de proceder por eliminações, negando os aspectos que lhe são mais alheios. Ounão será ele mais “vida” e “bondade” do que “ar” e “pedra”? E mais “não

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embriagado” e “não ressentido pelo ódio” do que “não se deixa dizer” ou sequer “nãose deixa pensar”?» Teol. Míst. 348.

Há assim dois caminhos na teologia dionisina: o caminho descendente das

afirmações que começa com a teologia inteligível e termina com a teologia simbólica;

e o caminho ascendente das negações, que começa com as negações dos nomes

simbólicos e termina com as negações dos nomes inteligíveis. No cumprimento do seu

itinerário teológico, o autor da Teologia Mística procede, no c.4, às negações de

nomes de sensíveis e de aspectos da vida sensitiva, e, no c.5, às negações de nomes de

inteligíveis e de aspectos da vida intelectiva. A teologia mística é a meta superadora

dos caminhos teológicos que assumem a mediação dos conhecimentos sensível e

inteligível. Se ainda há nomes na teologia mística, são já apenas sínteses

contraditórias das afirmações e das negações, como “a treva mais que luminosa” ou “a

treva mais que substancial”.

Saliente-se, por fim, que a teologia mística do Pseudo-Dionísio não supera todo o

conhecimento sensível e inteligível senão por mediação de todo o conhecimento

sensível e inteligível, primeiro, no caminho descendente das teologias inteligível e

simbólica afirmativas e, depois, no caminho ascendente das teologias simbólica e

inteligível negativas. A teologia dionisina é, portanto, uma forma de afirmação e de

integração do valor espiritual dos sentidos.

Os sentidos no itinerário bonaventuriano da mente para DeusA capacidade dos sentidos prenunciarem mais do que aquilo que dão a conhecer é

particularmente sublinhada pela filosofia da espiritualidade de São Boaventura. O

Doutor Seráfico é, na verdade, um dos filósofos que, no contexto da latinidade,

melhor soube afirmar o valor espiritual dos sentidos a partir e para além do

reconhecimento do respectivo valor cognitivo. Tal é o que evidencia eloquentemente

um dos seus opúsculos mais célebres, Itinerarium Mentis in Deum.

Antes de mais, o autor não deixa de reconhecer o valor cognitivo dos sentidos. Os

cinco sentidos são as portas de entrada do mundo na alma:

48 Op. Cit., p.21.

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«Deve notar-se que este mundo, denominado macrocosmo (macrocosmus), entrana nossa alma, que se chama microcosmo (minor mundus), pelas portas dos cincosentidos (per portas quinque sensus).» Itin. c.2, 249.

Os sentidos são as portas que dão entrada no mundo menor da alma ao mundo

maior que está fora dela. Sem essas portas, não haveria comunicação entre os dois

mundos. Os sentidos são os canais de conhecimento do macrocosmo.

A diversidade dos cinco sentidos é concebida em função da diversidade natural

dos corpos, ou melhor, em função do maior ou menor grau de subtileza dos corpos

que os sentidos respectivamente apreendem: pela vista entram os corpos mais subtis e

pelo tacto os mais pesados; entre uma e outro, ordenam-se os sentidos intermédios e

os corpos sensíveis respectivamente adequados. Boaventura retoma ainda a distinção

clássica entre sensíveis particulares (ou próprios) e sensíveis comuns, e adverte no

conhecimento dos sensíveis comuns, como o movimento, o prenúncio do

conhecimento do incorpóreo, como as causas imateriais do movimento (Itin. c.2, 3).

Deste modo, os sentidos não só dão a conhecer o mundo material como medeiam o

conhecimento do mundo espiritual.

A apreensão sensitiva não é, porém, uma entrada dos sensíveis em si mesmos

pelas portas dos sentidos; é sim um processo de transição de uma semelhança do

sensível, formada no meio, portanto, fora do sensível e do sentido, passando de

seguida para o sentido exterior, depois para o interior, e, por fim para a potência

sensitiva. Neste processo, há uma confluência de movimentos: por um lado, do

sensível, que emite uma semelhança ou simílio; por outro lado, da potência apreensiva

em direcção a essa semelhança do sensível. A apreensão sensitiva é o resultado desta

confluência (Itin. c.2, 4).

A consideração do valor espiritual dos sentidos é, por sua vez, correlativa da

concepção do mundo sensível como vestígio do primeiro princípio. O vestígio

(vestigium) é aquilo que se opõe, por natureza (corporal e temporal) e posição

relativamente a nós (exterior a nós), ao primeiro princípio, que é de natureza espiritual

e eterna, e posição superior relativamente a nós (Itin. c.1, 2). De acordo com a

diversidade do mundo sensível, a noção bonaventuriana de vestígio é multiforme, de

modo que, entre os vestígios, há sombras (umbrae), ecos ou ressonâncias

(resonantiae), pinturas ou painéis (picturae), figuras ou simulacros (simulacra),

49 S. Boaventura, Itinerário da Mente para Deus, texto latino da ed. crítica dos Padres do Colégio de S.Boaventura, de Quaracchi, introd., trad. e notas de António Soares Pinheiro, Braga, 3 ª ed.,1986, p.85.

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panoramas ou espectáculos (spectacula), imitações (exemplata), e sinais (signa

divintus data). Estas múltiplas formas de vestígio privilegiam quase todas o sentido da

vista, embora não excluam outros sentidos, como o ouvido (ecos ou ressonâncias), e

tanto incluem formas artificiais (pinturas ou painéis) quanto formas extensivas à

natureza (sombras), aproximando a natureza e a arte (Itin. c.2, 11). O propósito não é,

decerto, confundi-las, mas é, porventura, conceber o mundo sensível, por analogia

com a arte humana, como expressão de uma arte divina.

A consideração do mundo e dos sensíveis como vestígios é, assim, uma forma

mediata de contemplação de Deus, aquela que, segundo Boaventura, preenche

incontornavelmente os primeiros dois graus do seu itinerário espiritual, o da sensação

e o da imaginação (Itin. c.1, 6). A contemplação de Deus mediada pelos vestígios é

também, na linguagem bonaventuriana, uma contuição de Deus, isto é, uma intuição

indirecta de Deus e conjunta com a intuição sensível ou a apreensão sensitiva do

mundo.

Daí a admissão de cinco sentidos espirituais para sediar essa aptidão humana de

contuir Deus juntamente com o mundo:

«Por conseguinte, está cego aquele que não é iluminado por tão grandesesplendores das coisas criadas; está surdo aquele que não desperta com tão grandesclamores; está mudo aquele que, com todos estes efeitos, não louva a Deus; é umnéscio aquele que, com tantas indicações, não se apercebe do Primeiro Princípio.Abre pois os olhos, aproxima os ouvidos espirituais, solta os teus lábios e “aplica oteu coração” (Prov. 22, 17), para em todas as criaturas veres, ouvires, louvares,amares, cultuares, exaltares e honrares o teu Deus» Itin. c.1, 1550.

É como que privado de sentidos espirituais, aquele que não pressente Deus através

do mundo sensível. Tal como é indesejável a privação dos sentidos corporais, assim

também é indesejável a privação dos sentidos espirituais, que pressentem aquilo que

aqueles não sentem. Tal privação não seria, porém, indesejável, se os sentidos não

fossem uma perfeição. A fim de superar essa privação, Boaventura exorta a uma

contemplação espiritualmente sensitiva de Deus, através da presença sensível do

mundo, ou a uma contuição espiritual de Deus com a percepção sensitiva do mundo.

Esta contuição de Deus com o mundo, através dos sentidos espirituais, não se realiza,

todavia, sem a razão. Com efeito, os sentidos espirituais não são propriamente uma

50 Op. Cit., p.81.

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duplicação dos sentidos corpóreos, mas representam, a nosso ver, a capacidade de

pressentir racionalmente o supra-sensível.

2.2. O conhecimento racional

Há duas grandes linhas de orientação em teoria do conhecimento, ao longo da

história da filosofia ocidental: uma postula que todo o conhecimento humano procede

dos sentidos; a outra, em contrapartida, postula que nem todo o conhecimento humano

procede dos sentidos. Na primeira, o conhecimento intelectivo não pode ser

concebido senão como uma construção com base nos dados dos sentidos; na segunda,

o conhecimento intelectivo, que não dependa dos sentidos, tem que ter outra origem e

explicação. Na primeira linha, inscrevem-se filósofos como Aristóteles, Tomás de

Aquino e Kant. Tratamos aqui naturalmente da teoria da abstracção, segundo Tomás

de Aquino. Na segunda linha, inscrevem-se filósofos como Platão, Agostinho e

Descartes. Agostinho é o autor aqui em foco, com a sua ideia de iluminação divina,

para explicar a origem do conhecimento intelectivo, que não depende dos sentidos.

2.2.1. A doutrina augustiniana da iluminação

O Sol inteligívelSoliloquia (386-387) é o título de um dos textos mais platónicos de Agostinho.

Em conformidade com o título, o texto assume a forma literária de um diálogo de

Agostinho a sós com a sua razão (solilóquio), e obedece à finalidade de demonstrar a

imortalidade da alma com base na imutabilidade da verdade. Trata-se também de um

dos textos mais significativos acerca da personalização augustiniana da ideia de

iluminação inteligível:

«Deus, luz inteligível, no qual, pelo qual e através do qual luzem inteligivelmente,todas as coisas que luzem inteligivelmente.» Sol. I, 1, 351.

51 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 5, Paris, Desclée de Brouwer, 1948,p.28.

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Deus é a luz inteligível que ilumina todos os inteligíveis e, desse modo, é a causa

superior, também ela inteligível, de todo o conhecimento inteligível. Há, no entanto,

uma diferença entre Deus e os restantes inteligíveis:

«Deus é decerto inteligível e inteligíveis são também os conteúdos comprovadosdas disciplinas. No entanto, diferem muito entre si. De facto, a terra é visível, bemcomo a luz, mas a terra não pode ser vista a não ser iluminada pela luz. Portanto,quem quer que tenha inteligência daquelas coisas que são ensinadas nas disciplinasconcede sem dúvida alguma que são inteiramente verdadeiras, e deve-se crer que asmesmas não podem ser inteligidas a não ser por outro sol como que próprio.» Sol. I, 8,15.

A diferença entre Deus e os outros inteligíveis é comparável com a diferença entre

o Sol e os outros visíveis: tal como o Sol e os outros visíveis são todos visíveis, mas

do Sol dependem os outros visíveis para serem visíveis, assim também Deus e os

outros inteligíveis são todos inteligíveis, mas de Deus dependem, como de um Sol

próprio, os outros inteligíveis para serem inteligíveis. A diferença entre Deus e os

outros inteligíveis é, portanto, aquela que obriga a supor, a relação de dependência da

inteligibilidade de todos os inteligíveis relativamente a Deus. A comparação de Deus,

como Sol inteligível, com o Sol visível permite ainda a seguinte análise:

«Portanto, tal como é possível advertir neste Sol três aspectos, [a saber,] queexiste (quod est), que fulge (quod fulget), e que ilumina (quod illuminat), assimtambém naquele Deus secretíssimo, que tu queres inteligir, há três aspectos, [a saber,]que existe (quod est), que é inteligido (quod inteligitur) e que faz todo o resto serinteligido (quod caetera facit intelligi).» Sol. I, 8, 15.

Tal como no Sol visível há três aspectos – existir, brilhar e iluminar –, assim

também no Sol inteligível há três aspectos – existir, ser inteligível e tornar inteligíveis

os restantes inteligíveis. Deus, como Sol inteligível, existe, é inteligível e assegura a

inteligibilidade de todos os inteligíveis. O conhecimento inteligível não se explica

sem a sua causa superior e divina. Como é, então, que o homem acede a esse

conhecimento?

«Promete a razão, que fala contigo, que Deus se mostrará à tua mente tal como oSol se mostra aos olhos. Na verdade, os sentidos da alma são como que os olhos damente. E tais são as coisas certíssimas das disciplinas quais são as coisas que sãoiluminadas pelo sol, para que possam ser vistas, assim como a terra e todas as coisasterrenas. Ora, Deus é aquele que ilumina (Deus autem est ipse qui illustrat). Eu, a

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razão, estou nas mentes como o olhar está nos olhos (Ego autem ratio ita sum inmentibus, ut in oculis est aspectus).» Sol. I, 6, 12.

Tal como o Sol é visível para os olhos, Deus é inteligível para a mente; tal como

há os olhos do corpo, há os olhos da mente, que são os sentidos da alma; e tal como

há o olhar dos olhos do corpo, há o olhar da mente: a razão. De acordo com esta

descrição, a razão que capta as coisas iluminadas pelo Sol inteligível é uma razão

intuitiva, não apenas raciocinante e discursiva.

Fontes da doutrina augustiniana da iluminação

Em De Civitate Dei, Agostinho indica as fontes da sua ideia de iluminação:

Plotino e o Evangelho de João. Agostinho considera haver convergência entre o

neoplatonismo e o cristianismo quanto à distinção entre um princípio divino de toda a

luz inteligível e o género dos seres intelectuais, que participam dessa luz para

conhecer (DCD X, 2). Pertencem a esse género, a alma do mundo, segundo Plotino,

as almas dos seres imortais e bem-aventurados (os anjos) e as almas humanas, como a

do próprio João Baptista, que veio dar testemunho da luz (Jo. 1, 6-10).

Também em Confessionum (397-400), o autor denuncia a concordância entre as

influências neoplatónica e cristã da sua ideia de iluminação inteligível:

«E, primeiramente, querendo mostrar-me quanto resistes aos soberbos e, pelocontrário, dás a tua graça aos humildes, e com quanta misericórdia tua foi indicadoaos homens o caminho da humildade, porque o teu Verbo se fez carne e habitou entreos homens (Jo. 1, 14), proporcionaste-me, por intermédio de um certo homeminchado de enormíssimo orgulho [Teodoro?], uns certos livros dos Platónicostraduzidos da língua grega para a latina, e aí li, não exactamente nestas palavras, mascom muitas e variadas razões, que, no conjunto, se argumentava isto mesmo: noprincípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus e Deus era o Verbo: esteestava, no princípio, junto de Deus; todas as coisas foram feitas por ele, e sem elenada foi feito; o que foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilhanas trevas, e as trevas não a dominaram (Jo. 1, 1-5); e que a alma humana, embora dêtestemunho da luz, todavia ela própria não é a luz, mas o Verbo, Deus, é que é a luzverdadeira, que ilumina todo o homem que vem a este mundo (Jo. 1, 8-9); e queestava neste mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu (Jo. 1,10). Mas que veio para o que era seu e os seus não o receberam, e que a todosquantos o receberam deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, a eles quecrêem no seu nome (Jo. 1, 11-12), isso não o li eu aí.» Conf. VII, 9, 1352.

52 Santo Agostinho, Confissões, edição bilingue, texto da ed. crítica de Karl Heinz Chelius, tradução enotas de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina Pimentel, introdução de Manuel daCosta Freitas, notas de âmbito filosófico de Manuel da Costa Freitas e de José Rosa, Lisboa, Centro deLiteratura e Cultura Portuguesa e Brasileira/ Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000, pp.289-291.

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O que é que Agostinho leu e não leu nos livros dos Platónicos? Leu por outras

palavras aquilo que lia também em Jo. 1, 1-10, ou seja, a consideração de um

princípio divino Deus-Verbo ou o Verbo de Deus, na origem do mundo e da

iluminação do homem. Neoplatonismo e cristianismo convergem entre si em duas

teses fundamentais, uma relativa à criação e outra relativa à iluminação: Deus é o

princípio da criação do mundo e o princípio da iluminação do homem. Nem quanto à

criação nem quanto à iluminação, Agostinho reconhece haver divergência de fundo

entre neoplatonismo e cristianismo.

No que concerne à iluminação, importa, no entanto, reconhecer uma diferença

relevante que Agostinho não advertira, embora tivesse tido conhecimento da primeira

doutrina da teologia cristã da Trindade, estabelecida no concílio de Niceia (325), a

doutrina da consubstancialidade do Verbo com o Pai. De acordo com esta doutrina, o

princípio iluminador, o Verbo (Logos) segundo João e Agostinho, é consubstancial ao

princípio divino primordial. Diversamente, segundo Plotino, o princípio divino da

iluminação, o Intelecto (Nous), é substancialmente distinto do princípio divino

primordial, o Uno (Enéada V). A trindade divina do neoplatonismo não é

efectivamente redutível à do cristianismo, como Agostinho julgou que fosse.

Não leu, porém, Agostinho, nos livros dos Platónicos, a consideração de alguma

manifestação de Deus no mundo, para além da sua presença necessária na ordem

inteligível do mundo; não leu, em particular, a incarnação do Verbo em Jesus Cristo, a

que o Evangelho de João parece aludir a partir de 1, 11. O ponto de divergência

incontornável entre neoplatonismo e cristianismo é, para Agostinho, a falta de

reconhecimento, pelos neoplatónicos, da incarnação do princípio divino da criação e

da iluminação na pessoa de Jesus Cristo. Em suma, a rejeição da doutrina da

Incarnação, doutrina central, como vimos, na crítica augustiniana da demonologia dos

platónicos.

O Mestre interiorA doutrina cristã da Incarnação é, entretanto, crucial para a compreensão da noção

augustiniana de Mestre interior, que constitui a versão mais cristianizada da ideia de

iluminação divina em Agostinho. Com efeito, a noção de Mestre interior, formulada

em De Magistro, significa a conversão cristã do tema da iluminação divina, em

Agostinho. O diálogo identifica o princípio divino de iluminação com a Verdade, e

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esta, com a pessoa de Jesus Cristo (De Mag. 11, 38). Jesus Cristo é o Mestre interior.

Mas Jesus Cristo não pode identificar-se com o princípio divino da iluminação, a

Verdade ou a Sabedoria, senão na medida em que se identificar substancialmente com

Deus, como incarnação do próprio Deus. A doutrina da Incarnação é, assim,

incontornável na compreensão da doutrina augustiniana do Mestre interior.

Mas se Deus ilumina interiormente todo o homem vindo a este mundo (Jo. 1, 10),

donde a necessidade de incarnar no Jesus Cristo histórico? Em De Magistro, nenhuma

razão soteriológica é dada ainda para a Incarnação. O papel do Jesus Cristo histórico

não é aí o de Salvador, mas antes o de Mestre exterior e, como tal, o de admonitor

exemplar: aquele que veio avisar ou advertir o homem, por meio da linguagem

humana e exterior das palavras, que ele próprio, enquanto Mestre interior, habita no

interior do homem (De Mag. 14, 46). Por conseguinte, Deus assumiu a humanidade

em Cristo e este, a linguagem humana, a fim de apelar à viragem do homem para o

interior, porque é no homem interior que Deus pode ser encontrado.

Enquanto a pregação de Cristo-Mestre exterior veio advertir da presença

humanamente inadvertida de Deus no homem interior, a acção iluminadora de

Cristo-Mestre interior exerce-se desde sempre como fonte perene de uma parte do

conhecimento humano, aquela parte que não procede dos sentidos. Em De Magistro,

o conhecimento, que procede do Mestre interior, é o conhecimento dos inteligíveis

(De Mag. 12, 39-40). O sujeito do conhecimento dos inteligíveis é o homem interior,

distinto, embora não separado do homem exterior. Tal como para a ideia de

iluminação, também para ideia de homem interior, Agostinho podia contar com fontes

cristãs e neoplatónicas: Paulo (Rom. 7, 22; 1 Cor. 3, 16; Ef. 3, 16-17) e Plotino

(Enéada V, I, 10).

Quais são, entretanto, os inteligíveis que o homem interior pode conhecer

consultando o Mestre interior? São ideais de bondade irrecusável, como a sabedoria,

que nos permite julgá-la melhor do que o seu contrário, sem dúvida alguma (De Mag.

12, 40). São também crenças metafísicas, como a da imortalidade da alma, cuja

inteligibilidade, porventura, nos permite ajuizar sobre os argumentos que a sustentam

(De Mag. 13, 41). A nossa capacidade de julgar, ou de ajuizar, nestas matérias e suas

congéneres, é, segundo Agostinho, o indício mais incontornável da realidade do

conhecimento inteligível no homem interior, que se dá, em De Magistro, pela

consulta do Mestre interior.

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Iluminação divina e judicação humanaEm De Civitate Dei, Agostinho continua a associar estreitamente a sua ideia de

iluminação ao exercício do juízo, em especial, a juízos de certeza indubitável, que não

dependem do concurso dos sentidos:

«Pois bem: quanto se ama o conhecer e como repugna à natureza humana serenganada, pode concluir-se do facto de que ninguém há que não prefira afligir-se emsão juízo a alegrar-se na demência. Esta grande e admirável força não se encontra,fora do homem, em qualquer animal destinado à morte. É certo que alguns, paracontemplarem a nossa luz, têm o sentido da vista mais agudo que o nosso; mas nãopodem atingir aquela luz incorpórea que na nossa mente brilha de certo modo paraque possamos emitir acerca de todas as coisas um juízo correcto; porque é na medidaem que a possuímos que desse juízo somos capazes. Todavia, se não há ciência nassensações dos animais privados de razão, há neles, porém, pelo menos uma certasemelhança de ciência. Os outros seres corpóreos chamam-se sensíveis, não porquesintam mas porque são sentidos. Entre eles os vegetais imitam a sensibilidade peloacto de se nutrirem e se reproduzirem. Todavia, estes e todos os seres corporais têmna natureza as suas causas latentes. Quanto às suas formas, que embelezam a estruturadeste mundo visível, eles apresentam-nas aos nossos sentidos para serem percebidas,parece que como se quisessem dar-se a conhecer para compensarem o conhecimentoque não têm. Nós captamo-los com os sentidos do corpo, mas não é com essessentidos do corpo que os julgamos. Com efeito, um outro sentido do homem interior,muito superior aos outros, permite-nos sentir não só o justo mas também o injusto: - ojusto pela sua beleza, o injusto pela privação dessa beleza. Para o exercício destesentido não chega nem a agudeza da pupila, nem a abertura dos ouvidos, nem osrespiradouros do nariz, nem a abóbada do palatino, nem tacto algum corpóreo. Énesse sentido que encontro a certeza de que existo e de que conheço; é nesse sentidoque encontro a certeza de que amo tudo isso e de que amo.» DCD XI, 2753.

De que força aqui se trata? Da força da luz inteligível que faz a natureza humana

amar o conhecimento e detestar a ignorância; que brilha no interior da mente e provê

à sua capacidade de julgar correctamente. A luz inteligível é a perfeição maior, mas,

na ordem do real, todos os seres são dotados de perfeição, de modo que as perfeições

dos seres inferiores são imitações das perfeições dos seres superiores: os seres

sensitivos imitam os seres racionais através de uma semelhança de ciência; a beleza

das formas sensíveis é a força dos seres corpóreos e, desse modo, é uma espécie de

compensação da força que não possuem, a luz do conhecimento inteligível.

E que sentido pode ser esse, do homem interior, capaz de sentir o justo ou o

injusto na mente iluminada? A razão, esse olhar da mente, como vimos em Soliloquia.

O sentido que sente o justo e o injusto é o mesmo pelo qual o homem interior se sente

53 Santo Agostinho, A Cidade de Deus, tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições de João DiasPereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, vol.II (livros IX-XV), pp.[1054-1055].

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a si mesmo. Não é o sentido interior do homem exterior, que apenas sente que sente, é

o sentido do homem interior, que também sente que pensa, que ama e, entre tudo o

mais, sente que existe. Juízos de certeza indubitável, que supõem a força da luz

inteligível e a intuição racional da mente, são, portanto, juízos de ordem moral e

afirmações do conhecimento de si.

É. Gilson, na sua interpretação da iluminação augustiniana, valoriza

especialmente esta aplicação da iluminação ao exercício do juízo:

«O que é certo, e ninguém até ao momento descobriu um único texto em sentidocontrário, é que nenhuma das “noções” que nós devemos à iluminação contém,enquanto é devida à iluminação, algum elemento empírico. O que é igualmente certo,é que todas estas “noções” não possuem outro conteúdo senão o juízo pelo qual elasse explicitam: a justiça é atribuir a cada um o que lhe é devido; a sabedoria é preferiro eterno ao temporal; a caridade é amar Deus acima de todas as coisas, e assim pordiante. Aquilo que por fim é não menos certo, é que o próprio Santo Agostinhoqualifica frequentemente estas noções como regras segundo as quais nós julgamos.»54.

Admitimos, com Gilson, que o juízo é o lugar próprio da intervenção da luz divina

no conhecimento humano, segundo Agostinho. Duvidamos, no entanto, de que as

definições aparentemente analíticas, que Gilson formula das noções inteligíveis de

Agostinho, constituam critérios universais de juízo. As definições de Gilson são

passíveis do mesmo processo socrático de desconstrução a que eram submetidas as

definições nos diálogos aporéticos de Platão. As regras inteligíveis do juízo humano

não se definem por juízos, porque antecedem e condicionam o acto judicativo.

Estudos clássicos sobre a iluminação augustiniana: É. Gilson, Introduction à

l’Étude de Saint Augustin, Paris, Vrin, 1929; F. Cayré, La Contemplation

Augustinienne. Principes de la spiritualité de saint Augustin, Paris, André Blot, 1927;

Idem, Initiation à la philosophie de saint. Augustin, Paris, Desclée de Brouwer, 1947;

R. Jolivet, Dieu: Soleil des Esprits ou la doctrine augustinienne de l’illumination,

Paris, Desclée de Brouwer, 1934.

54 Étienne Gilson, Introduction à l’Étude de Saint Augustin, 2ª ed. – 3ª tir., Paris, Vrin, 1982,pp.123-124.

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2.2.2. A teoria tomista da abstracção

À doutrina augustiniana da iluminação opõe-se a teoria tomista da abstracção.

Trata-se, com efeito, de duas concepções discordantes entre si acerca do

conhecimento intelectivo: segundo a teoria augustiniana da iluminação, o

conhecimento inteligível é um dado de origem transcendente à mente humana, mas

disponível para ser captado pela razão intuitiva da mente; segundo a teoria tomista da

abstracção, o conhecimento intelectivo é um processo de construção do universal com

base na imaginação e origem nos sentidos.

Tomás de Aquino diverge, pois, de Agostinho quer quanto ao ponto de partida

quer quanto ao processo do conhecimento intelectivo: por um lado, a admissão do

ponto de partida sensitivo do conhecimento intelectivo é solidária com a defesa de um

vínculo substancial do intelecto com o composto humano de alma e corpo; por outro

lado, a concepção do conhecimento intelectivo em termos de processo de abstracção

assegura uma actividade própria ao intelecto humano, que parecia não desempenhar

senão um papel passivo na doutrina da iluminação divina55.

A posição de Tomás de Aquino sobre a natureza do conhecimento intelectivo

encontra-se elaborada de modo sistemático, ao longo das questões sobre o

conhecimento, na Suma de Teologia (Summa Theologiae).

Breve introdução à Summa Theologiae, de Tomás de Aquino56

A Suma (Summa), no contexto da Escolástica medieval, era uma síntese

sistemática de uma disciplina, marcada pelo cunho pessoal do seu autor. Exemplos:

Summa grammaticalis, de João de Dácia; Summulae logicales, de Pedro Hispano,

adoptadas como manual de lógica nas Universidades europeias, ao longo dos sécs.

XIV-XVI (embora originariamente intituladas Tractatus, segundo a ed. crítica de

L.M. De Rijk). Em teologia, as Sumas foram precedidas pelos livros de Sentenças

(Sententiae): colecções de sentenças, de teses, de questões et de tratados oriundas de

fontes patrísticas, teológicas e canónicas. A mais célebre e comentada colecção de

Sentenças foi a dos Quatro Livros de Sentenças (Libri quattuor Sententiarum), de

55 Como sublinha É. Gilson, em «Pourquoi saint Thomas a critiqué saint Augustin», Archives d’histoiredoctrinale et littéraire du moyen âge I (1926-1927), pp.5-127.56 Tanto para as considerações contextuais como para a análise estrutural da obra, recorremos ao estudode especialidade de M. Grabmann, La Somme Théologique de saint Thomas d’Aquin. Introductionhistorique et pratique, trad. de E. Vansteenberghe, Paris, 1930.

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Pedro Lombardo (m. 1164). Ainda que esta obra se tenha mantido, como manual

corrente de teologia até ao séc. XVI, as Sumas tendem gradualmente a substituir os

livros de Sentenças, determinando a evolução das sínteses teológicas no sentido de

uma maior personalização de autor. O caso mais célebre é, sem dúvida, o da Summa

Theologiae, de Tomás de Aquino. Todavia, o êxito desta obra não foi imediato. Entre

os sécs. XIII-XV, desenvolvem-se os comentários e os resumos didácticos da mesma,

nas escolas tomistas (dominicanas). Só no séc. XVI os quatro livros de Sentenças, de

Pedro Lombardo, cedem lugar à Summa Theologiae, de Tomás de Aquino, como

manual escolar de teologia. Os sécs. XVI-XX são os séculos da tradição dos grandes

comentários da Summa Theologiae, de Tomás de Aquino.

Na cronologia das suas obras principais57, a Summa Theologiae é uma obra escrita

ao longo dos seus últimos anos de vida (1266-1273). Trata-se, por isso, de uma

síntese expressiva do pensamento amadurecido do seu autor. A Summa Theologiae

não é, porém, o registo escrito de disputas universitárias, como é o caso das

Quaestiones Disputatae de Veritate; é, sim, uma exposição didáctica para introdução

à teologia. A questão (quaestio) é a unidade molecular da exposição, porquanto a

questão se convertera já em forma literária de análise de qualquer assunto

filosófico-teológico. Como a Summa Theologiae é uma obra escrita de raiz, as

questões que a compõem obedecem a um plano geral.

A estrutura principal é uma divisão tripartida, anunciada pelo autor numa questão

inicial da Summa Theologiae, I, q.2, a.1:

«Uma vez que a intenção principal desta ciência sagrada (huius sacrae doctrinae)é transmitir o conhecimento de Deus, e não só segundo o que é em si, mas tambémsegundo o que é como princípio e fim das coisas, especialmente da criatura racional,como é manifesto a partir do que foi dito (q.1, a.7); tencionando nós expor estaciência, trataremos primeiro de Deus (p.I), em segundo lugar, do movimento dacriatura racional para Deus (p.II), e, em terceiro lugar, de Cristo, que, segundo a suahumanidade, é para nós via de acesso a Deus (p.III).»58

Parte I, sobre Deus e o mundo como obra de Deus: sobre Deus, segundo o que é

em si (secundum quod in se est), isto é, na sua existência, na sua essência e na

Trindade; e sobre Deus, como princípio e fim de todas as coisas, inclusiva e

57 Comentário das Sentenças (de Pedro Lombardo) e O ente e a essência (1252-1256); Questõesdisputadas sobre a verdade (1256-1259); Suma contra os Gentios e Comentários das obras deAristóteles (1259-1268); Suma de Teologia (1266-1273).58 Texto da edição crítica leonina, reprod. em Biblioteca de Autores Cristianos 77, Madrid, 1951, p.14.

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especialmente, a criatura racional, isto é, sobre a Criação e o género mais nobre de

criaturas, as de natureza racional (cosmologia e antropologia filosóficas). I, qq.1-26,

sobre a existência e a essência de Deus. I, qq.27-43, sobre a Trindade. I, qq.44-102,

sobre a criação, incluindo áreas de antropologia filosófica, como o composto humano

de alma e corpo, bem como a liberdade e o conhecimento no homem. I, qq.103-119,

sobre a providência divina.

Parte II, sobre o movimento da criatura racional para Deus, isto é, os fins últimos

(escatologia), a acção e a graça (ética e espiritualidade), as virtudes e as leis (moral,

religião e política). I-II (Prima Secundae), qq.1-5, sobre a felicidade. I-II, qq.6-26,

sobre a acção humana. I-II, qq.22-48, sobre as paixões. I-II, qq.49-70, sobre os

princípios interiores da acção, isto é, as virtudes morais e teologais. I-II, qq.71-89,

sobre os vícios e os pecados. I-II, qq.90-114, sobre os princípios exteriores da acção,

isto é, a lei (qq.90-108) e a graça (qq.109-114). II-II (Secunda Secundae), qq.1-46,

sobre as virtudes teologais. II-II, qq.47-170, sobre as virtudes morais, cardeais

inclusive. II-II, qq.171-189, sobre os graus da vida espiritual.

Parte III (inacabada), qq.1-88, sobre Cristo, como via de acesso a Deus e de

redenção do homem, incluindo a teologia da Incarnação e dos sacramentos.

As questões filosóficas sobre o conhecimento pertencem à Parte I: qq.78-89. No

âmbito desta série, vamos fazer o seguinte percurso selectivo: a importância da

imagem (phantasma), q.78, a.4 e q.84, a.7; o processo de abstracção, q.85, a.1; e o

papel da espécie inteligível (species intelligibilis), q.85, a.2.

A importância da imagem (phantasma)É conveniente distinguir entre diversos sentidos interiores (Sum. Theol. I, q.78,

a.4)? Parece que não. Mas contra esta posição, Avicena considera, no livro De anima

(p.4, c.1), cinco potências sensitivas interiores, a saber, o sentido comum (sensus

communis), a fantasia (phantasia), a imaginativa (imaginativa), a estimativa

(aestimativa) e a memorativa (memorativa). Tomás de Aquino responde a favor da

distinção de várias potências sensitivas interiores, atendendo à noção de potência da

alma, como princípio próximo da operação e à necessidade de considerar diversas

operações na vida animal. Personalizando a distinção de Avicena: aos sentidos

próprios e ao sentido comum, cabe a função de receber as formas sensíveis; à fantasia

(phantasia) ou imaginação (imaginatio), cabe reter ou conservar as formas recebidas

pelos sentidos; à potência estimativa (vis aestimativa), cabe apreender as intenções

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que os sentidos não apreendem, como o útil e o nocivo – no ser humano, esta potência

chama-se “cogitativa” (cogitativa) ou razão particular (ratio particularis); à potência

memorativa (vis memorativa), cabe conservar essas intenções – o ser humano tem

também a reminiscência (reminiscentia), que corresponde a uma forma de recordação

mediata, isto é, a um processo quase dedutivo de rememoração através das intenções

individuais.

Pode o intelecto inteligir em acto através das espécies inteligíveis que tem em si,

sem atender às imagens (Sum. Theol. I, q.84, a.7)? Parece que sim. Com efeito, a

imaginação depende mais dos sentidos do que o intelecto da imaginação. Se a

imaginação pode imaginar na ausência dos sensíveis, a fortiori o intelecto pode

inteligir na ausência das imagens. Além disso, a inteligibilidade de naturezas

incorpóreas, como a verdade, Deus e os anjos, não depende das imagens do mundo

sensível. Mas contra esta posição, diz o Filósofo, em De Anima III (431 a 16), que a

alma nada pode inteligir sem imagens.

Tomás de Aquino responde defendendo que é impossível ao nosso intelecto,

unido com um corpo passível, no estado da vida presente, inteligir algo em acto, sem

atender às imagens (phantasmata). Por duas razões: porque as lesões físicas nos

órgãos dos sentidos, que afectam as potências sensitivas interiores, impedem também

o acto do intelecto, como, por exemplo, alguém afectado na sua potência memorativa

por efeito de um acidente traumático, fica impedido de inteligir até o saber

anteriormente adquirido; porque qualquer pessoa pode experimentar em si o facto de,

ao tentar inteligir algo, formar algumas imagens para si, a título de exemplos, como

que para olhar aquilo que procura inteligir. O uso de exemplos no ensino

compreende-se à luz deste princípio de necessidade da imaginação para a inteligência.

De acordo com esta resposta de Tomás de Aquino, os dois argumentos

considerados a favor da tese oposta devem ser contra-argumentados. Por um lado,

deve dizer-se que não é verdade que a imaginação dependa mais dos sentidos do que

o intelecto da imaginação. Com efeito, a imagem (phantasma) é uma semelhança da

coisa particular, pelo que a imagem não carece da semelhança do particular, como

carece o intelecto. Por conseguinte, para conhecer de algum modo os particulares, o

intelecto depende mais da imaginação do que esta dos sentidos. Por outro lado, deve

dizer-se que as coisas incorpóreas, das quais não há imagens, são por nós conhecidas

por comparação com os corpos sensíveis, dos quais há imagens. Assim, o

conhecimento do incorpóreo, de Deus inclusive, é sempre indirecto e mediado pelo

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conhecimento do mundo corpóreo, que depende das imagens. O conhecimento

intelectivo daquilo que não tem imagem é mediado pelo conhecimento daquilo que

tem imagem. A imagem é, pois, um elemento indispensável do conhecimento

intelectivo.

O processo de abstracção: texto e análise de Summa Theologiae I, q.85, a.1O nosso intelecto conhece abstraindo (abstrahendo) as espécies das imagens?

Parece que não. Com efeito:

«1. Qualquer intelecto que inteligir uma coisa diferentemente do que ela é, é falso.Entretanto, as formas das coisas materiais não são abstraídas dos particulares, dosquais as imagens são semelhanças. Portanto, se inteligirmos as coisas materiais porabstracção das espécies a partir das imagens, haverá falsidade no nosso intelecto.»

Ou seja, inteligir as coisas materiais por abstracção das espécies a partir das

imagens dos particulares seria conhecê-las de modo diferente do que elas são, pois, na

realidade, as coisas materiais e particulares não se encontram separadas das formas

respectivas. A abstracção produziria, assim, um falso conhecimento.

«2. Além disso, as coisas materiais são coisas naturais, em cuja definição cai amatéria. Mas nada pode ser inteligido sem aquilo que cai na sua definição. Portanto,as coisas materiais não podem ser inteligidas sem matéria. Mas a matéria é o princípiode individuação. Portanto, as coisas materiais não podem ser inteligidas porabstracção do universal a partir do particular, o que é abstrair as espéciesinteligíveis.»

Ou seja, inteligir as coisas materiais por abstracção seria ignorar um dado

constituinte da sua definição, a matéria individuante, pelo que não seria uma

verdadeira intelecção.

«3. Além disso, no livro III de De Anima (431 a 14), diz-se que as imagens estãopara a alma intelectiva assim como as cores para a vista. Mas a visão não se faz porabstracção de algumas espécies a partir das cores, mas por aquilo que as coresimprimem na vista. Portanto, também o inteligir não acontece por algo ser abstraídodas imagens, mas por aquilo que as imagens imprimem no intelecto.»

Ou seja, por analogia com a visão, a intelecção deve ser mais um modo de

impressão do que um processo de abstracção.

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«4. Além disso, como se diz no livro III de De Anima (430 a 14), há, na almaintelectiva, dois intelectos, a saber, o possível e o agente. Mas abstrair das imagens asespécies inteligíveis não pertence ao intelecto possível, mas sim receber as espécies jáabstraídas. Mas também não parece que pertença ao intelecto agente, que está para asimagens assim como a luz para as cores, que não abstrai algo das cores, antes influinelas. Portanto, de modo nenhum inteligimos abstraindo das imagens.»

Ou seja, a abstracção não se adequa como função quer do intelecto possível quer

do intelecto agente, porquanto a função daquele é receber e a deste é influir, por

analogia com a influência que a luz exerce nas cores.

«5. Além disso, o Filósofo, no livro III de De Anima (431 b 2), diz que o intelectoconhece as espécies nas imagens. Portanto, não as abstraindo.»

Ou seja, inteligir as espécies nas imagens não é abstrair as espécies a partir das

imagens.

«Mas contra isto, está aquilo que se diz no livro III de De Anima (429 b 21), asaber, que assim como as coisas são separáveis da matéria, assim são para com ointelecto. Portanto, é necessário que as coisas materiais sejam inteligidas enquanto sãoabstraídas da matéria, e das semelhanças materiais, que são as imagens.

Resposta: deve dizer-se que, assim como foi dito acima (q.84, a.7), o objectocognoscível é proporcionado à capacidade cognoscitiva. Ora, há três graus dacapacidade cognoscitiva. Uma é a capacidade cognoscitiva do acto do órgão corporal,a saber, do sentido. E, por isso, o objecto de qualquer potência sensitiva é a forma talcomo existe na matéria corporal. E, porque esta matéria é o princípio de individuação,toda a potência da parte sensitiva [da alma] conhece apenas os particulares. – Outracapacidade cognoscitiva é aquela que nem é acto de um órgão corporal nem está dealgum modo unida à matéria corporal, assim como o intelecto angélico. E, por isso, oobjecto desta capacidade cognoscitiva é a forma subsistente sem matéria. Com efeito,embora [os anjos] conheçam o que é material, eles não o intuem senão no imaterial, asaber, ou em si mesmos ou em Deus. – Entretanto, o intelecto humano encontra-senum meio termo: de facto, não é o acto de algum órgão, mas, no entanto, é umacapacidade (virtus) da alma, que é forma do corpo, como é manifesto a partir do queacima foi dito (q.76, a.1). E, por isso, é próprio dele conhecer a forma existenteindividualmente na matéria corporal, embora não tal como está nesta matéria. Ora,conhecer aquilo que está na matéria individual, não como está nesta matéria, é abstraira forma da matéria individual, que as imagens representam. E, por isso, é necessáriodizer que o nosso intelecto obtém inteligência da realidade material abstraindo dasimagens. E, através da realidade material, assim considerada, atingimos algumconhecimento da realidade imaterial, tal como os anjos, em sentido contrário,conhecem o que é material através do imaterial.

Platão, na verdade, atendendo apenas à imaterialidade do intelecto humano, nãoao facto de estar de algum modo unido a um corpo, postulou, como objecto dointelecto, as ideias separadas e que inteligimos, não abstraindo, mas participando das[ideias] abstractas, como foi dito acima (q.84, a.1).»

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Ou seja, o nosso conhecimento intelectivo depende não só da natureza imaterial

do nosso intelecto como do seu estado unido a um corpo. Platão só terá atendido à

natureza imaterial do intelecto. De acordo com o estado presente do nosso intelecto,

«é próprio dele conhecer a forma existente individualmente na matéria corporal», isto

é, por meio das potências sensitivas, «embora não tal como está nesta matéria», isto é,

abstraindo a forma da matéria individual.

Contra-argumentos:

«Quanto ao primeiro argumento, deve dizer-se que há dois modos de abstrair. Ummodo é por composição e divisão, assim como quando inteligimos que algo não estánoutra coisa, ou que está separado dela. Outro modo é por simples e absolutaconsideração, assim como quando inteligimos um [aspecto], nada considerando deoutro. Abstrair pelo intelecto as coisas que realmente não estão abstraídas, segundo oprimeiro modo de abstracção, não vai sem falsidade. Mas, no segundo modo deabstrair pelo intelecto as coisas que não estão abstraídas realmente, não há falsidade,como é manifesto nas coisas sensíveis. Se inteligirmos ou dissermos que a cor nãoestá no corpo que tem cor, ou que está separada dele, haverá falsidade na opinião ouna enunciação. Se considerarmos, porém, a cor e as suas propriedades, nadaconsiderando do fruto que tem cor, aquilo que assim inteligirmos, e tambémexprimirmos com a voz, será desprovido de falsidade, quer ao nível da opinião querda enunciação. O fruto não pertence à razão da cor e, por isso, nada proibe que a corseja inteligida, nada inteligindo do fruto. – De modo similar, digo que aquilo quepertence à razão da espécie de alguma coisa material, como a pedra, ou o homem, ouo cavalo, pode ser considerado sem os princípios individuais, que não pertencem àrazão da espécie. E isto é abstrair o universal do particular, ou a espécie inteligíveldas imagens, a saber, considerar a natureza da espécie sem consideração dosprincípios individuais, que são representados através das imagens.

(…). Não há de facto falsidade em que o modo do sujeito inteligente no inteligirseja diferente do modo da realidade no existir, porque o inteligido está imaterialmenteno inteligente, pelo modo do intelecto, não materialmente, pelo modo da realidadematerial.»

Ou seja, inteligir as coisas materiais por abstracção será conhecê-las de modo

diferente do que elas são, pois é conhecê-las segundo o modo do sujeito inteligente no

inteligir, e, por isso, tal não constitui um falso conhecimento.

«Quanto ao segundo argumento, deve dizer-se que alguns postularam que aespécie de uma coisa natural é apenas forma, e que a matéria não é uma parte daespécie. Mas, segundo esta [opinião], não se poria a matéria nas definições das coisasnaturais. E, por isso, deve dizer-se de outro modo, que há duas [acepções] de matéria,a saber, comum e designada (signata) ou individual: [a matéria] comum, como a carnee o osso; [a matéria] individual, como esta carne e estes ossos. O intelecto abstrai a

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espécie da realidade natural da matéria sensível individual, não da matéria sensívelcomum. Assim como a espécie homem abstrai desta carne e destes ossos, que nãopertencem à razão da espécie, como se diz no livro VII da Metafísica (1035 b 28), epor isso pode ser considerada sem eles. Mas a espécie homem não pode ser abstraídapelo intelecto da carne e dos ossos.

As espécies matemáticas podem ser abstraídas pelo intelecto da matéria sensível,não apenas individual mas também comum, não porém da matéria inteligível comum,mas apenas da individual. A matéria sensível diz-se matéria corporal na medida emque subjaz às qualidades sensíveis, a saber, o quente e o frio, o duro e o mole, e outrasdo género. A matéria inteligível diz-se substância na medida em que subjaz àquantidade. Ora, é evidente que a quantidade está na substância primeiro do que asqualidades sensíveis. Donde quantidades, como os números, as dimensões e asfiguras, que são delimitações de quantidades, podem ser consideradas sem qualidadessensíveis, o que é serem abstraídas da matéria sensível, mas não podem serconsideradas sem inteligir a substância subjacente à quantidade, o que seria seremabstraídas da matéria inteligível comum. Podem, no entanto, ser consideradas semesta ou aquela substância, o que é serem abstraídas da matéria inteligível individual.

Há, entretanto, algumas [coisas] que podem ser abstraídas também da matériainteligível comum, como o ente, o uno, a potência e o acto, e outras do género, quetambém podem ser completamente desprovidas de matéria, como é evidente nascoisas imateriais.»

Ou seja, inteligir as coisas materiais por abstracção não significa ignorar um dado

constituinte da sua definição, a matéria individuante, porque a matéria assim

considerada não faz parte da definição da espécie de uma realidade natural. O

processo de abstracção não abstrai de toda e qualquer matéria: a abstracção das

espécies naturais abstrai da matéria sensível designada ou individual, não abstrai da

matéria sensível comum; a abstracção das espécies matemáticas abstrai de toda a

matéria sensível, comum e individual, bem como da matéria inteligível individual

(substância individual), mas não da matéria inteligível comum (substância em geral,

sujeito de acidentes); só a abstracção dos transcendentais, isto é, dos universais

supra-genéricos (ente, uno, etc.), pode abstrair de toda a matéria.

«Quanto ao terceiro argumento, deve dizer-se que as cores têm o mesmo modo deexistir que a potência visiva, uma vez que estão na matéria corporal individual, e, porisso, podem imprimir a sua semelhança na vista. Mas as imagens, uma vez que sãosemelhanças dos indivíduos, e existem em órgãos corpóreos, não têm o mesmo modode existir que o intelecto humano, como é manifesto a partir do que foi dito, e, porisso, não têm capacidade de imprimir no intelecto possível. Mas devido à capacidadedo intelecto agente, resulta certa semelhança no intelecto possível da aplicação dointelecto agente às imagens, [semelhança] que representa as coisas que estão naorigem das imagens, apenas quanto à natureza da espécie. E, deste modo, diz-se que aespécie é abstraída das imagens, não que a mesma forma em número, que esteve

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primeiro nas imagens, se fizesse depois no intelecto possível, à maneira de um corporecebido por um lugar e transferido para outro.»

Ou seja, a intelecção não pode ser, por analogia com a visão, um modo de

impressão, porque as imagens não podem agir sobre o intelecto possível, de acordo

com o princípio de que o inferior não pode agir sobre o superior, princípio

característico da filosofia neoplatónica, cuja intervenção já tivemos oportunidade de

detectar na filosofia augustiniana do conhecimento. Só um agente com o mesmo

modo de existir, ou o mesmo grau de perfeição do intelecto, pode agir sobre o

intelecto. Esse agente é o próprio intelecto agente, que tem a função de abstrair a

espécie das imagens. A espécie é também uma semelhança das coisas, mas,

diversamente das imagens, desprovida de traços individuais. A abstracção, como se

faz notar no fim, não é a transferência da mesma forma sensível de um lugar para

outro, mas é a transformação de semelhanças particulares (imagens) numa semelhança

comum (espécie).

«Quanto ao quarto argumento, deve dizer-se que as imagens são iluminadas pelointelecto agente e, de novo, a partir delas, as espécies inteligíveis são abstraídas pelacapacidade do intelecto agente. São iluminadas porque, assim como a parte sensitivase torna mais eficiente pela união com a intelectiva, assim também as imagens ficamhabilitadas pela capacidade do intelecto agente, para que delas sejam abstraídas asintenções inteligíveis. O intelecto agente abstrai as espécies inteligíveis das imagens,na medida em que pela capacidade do intelecto agente podemos receber na nossaconsideração as naturezas das espécies sem condições individuais, por cujassemelhanças o intelecto possível é informado.»

Ou seja, a abstracção não é incompatível com a função iluminadora do intelecto

agente. Neste contra-argumento, precisa-se que a função iluminadora do intelecto

agente é uma função preparadora ou habilitadora das imagens, para que nelas o

mesmo intelecto possa exercer a sua função abstractiva.

«Quanto ao quinto argumento, deve dizer-se que o nosso intelecto abstrai asespécies inteligíveis das imagens, na medida em que considera as naturezas das coisasno universal, e, no entanto, obtém inteligência delas nas imagens, porque não podeinteligir as coisas cujas espécies abstrai senão aplicando-se às imagens, como foi ditoacima.»

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Ou seja, abstrair das imagens não é incompatível com a expressão «inteligir nas

imagens»: o intelecto agente abstrai das imagens o universal, inteligindo as coisas nas

imagens, isto é, por mediação necessária das imagens.

A espécie inteligível: texto e análise de Summa Theologiae I, q.85, a.2As espécies inteligíveis (species intelligibiles) abstraídas das imagens estão para o

nosso intelecto como aquilo que é inteligido? Parece que sim, ou seja, parece que as

espécies inteligíveis, que resultam do processo de abstracção, são o objecto do

conhecimento intelectivo. Com efeito:

«1. O inteligido em acto está no [sujeito] inteligente, porque o inteligido em acto éo próprio intelecto em acto. Mas nada da realidade inteligida está no inteligido emacto no [sujeito] inteligente, a não ser a espécie inteligível abstraída. Portanto, estaespécie é o próprio inteligido em acto.»

Ou seja, a espécie inteligível é aquilo que, da realidade, pode ser efectivamente

conhecido no intelecto, pelo que ela será o objecto do nosso intelecto.

«2. Além disso, é necessário que o inteligido esteja em algo, pois, de contrário,nada seria. Mas não está na realidade que está fora da alma, porque, como a realidadefora da alma é material, nada do que está nela pode ser inteligido em acto. Resta,portanto, que o inteligido em acto esteja no intelecto. E, assim, não é senão a espécieinteligível referida.»

Ou seja, uma vez que o inteligido é um relativo, ele tem de estar num sujeito, que

não pode ser a realidade material exterior, precisamente pela sua materialidade, e que

só pode ser por isso o intelecto. Ora, o inteligido que está no intelecto não é senão a

espécie inteligível, a qual será por isso o objecto próprio do conhecimento intelectivo.

«3. Além disso, o Filósofo diz, no livro I de Da Interpretação (16 a 3), que aspalavras (voces) são sinais (notae) das impressões que estão na alma. Mas as palavrassignificam as coisas inteligidas. De facto, significamos pela palavra aquilo queinteligimos. Portanto, as próprias impressões da alma (passiones animae), a saber, asespécies inteligíveis, são aquelas que são inteligidas em acto.»

Ou seja, diz Aristóteles que as palavras significam impressões na alma; diz o

adversário de Tomás de Aquino, pela pena de Tomás de Aquino, que as palavras

significam as coisas inteligidas. Ora, as espécies inteligíveis são, conjuntamente, as

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impressões na alma e as coisas inteligidas, que as palavras significam. Uma vez que é

referência da palavra, a espécie inteligível não pode deixar de ser objecto próprio do

conhecimento intelectivo.

«Mas contra isto: a espécie inteligível está para o intelecto, assim como a espéciesensível está para o sentido. Mas a espécie sensível não é aquilo que é sentido, mas émais aquilo pelo qual o sentido sente. Portanto, a espécie inteligível não é aquilo queé inteligido em acto, mas aquilo pelo qual o intelecto intelige.»

Ou seja, uma analogia com a sensibilidade provê a uma concepção diferente da

espécie inteligível, não como objecto, mas como meio do conhecimento intelectivo.

Resposta:Formulação em tese geral da posição oposta: «alguns admitiram que as forças

cognitivas que estão em nós nada conhecem a não ser as próprias impressões(propriae passiones), por exemplo, que o sentido não sente senão a impressão(passio) do seu órgão. E, de acordo com isto, o intelecto nada inteligirá a não ser a suaimpressão, isto é, a espécie inteligível em si recebida. E, de acordo com isto, estaespécie é isso mesmo que é inteligido.»

Refutação por redução ao absurdo da posição oposta: «Mas esta opinião éevidentemente falsa por duas razões. Primeiro, porque são as mesmas as [coisas] queinteligimos e aquelas acerca das quais são as ciências. Por isso, se as [coisas] queinteligimos fossem apenas as espécies que estão na alma, seguir-se-ia que todas asciências não seriam acerca das coisas que estão fora da alma, mas somente dasespécies inteligíveis que estão na alma, assim como, segundo os platónicos, todas asciências são acerca das ideias, que eles postulavam serem inteligidas em acto. – Emsegundo lugar, porque seguir-se-ia o erro dos antigos que diziam que tudo o queparece é verdadeiro, e, assim, que duas contraditórias seriam simultaneamenteverdadeiras. Se, de facto, uma potência não conhece senão a sua própria impressão,ela só julga acerca desta. Assim, algo parece conforme é afectada a potênciacognoscitiva. Portanto, o juízo da potência cognoscitiva será sempre acerca daquiloque julga, ou seja, da própria impressão, segundo o que é, e assim todo o juízo seráverdadeiro. Por exemplo, se o gosto não sente senão a própria impressão, quandoalguém que tem o gosto são julga que o mel é doce, julgará com verdade; e, de modosimilar, se aquele que tem o gosto doente julgar que o mel é amargo, julgará comverdade: um e outro, de facto, julga conforme o seu gosto é afectado. E, assim,segue-se que todas as opiniões serão igualmente verdadeiras e, universalmente, todasas concepções.»

Ou seja, da posição oposta decorrem duas consequências absurdas: negar que as

ciências versem sobre a realidade exterior à alma; e infringir o princípio de não

contradição, admitindo que duas proposições contraditórias possam ser

simultaneamente verdadeiras e que todas as posições sejam igualmente verdadeiras.

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Resposta (continuação):Redefinição do papel da espécie inteligível no conhecimento intelectivo: «Por

isso, deve dizer-se que a espécie inteligível está para o intelecto como aquilo peloqual o intelecto conhece. O que é evidente pelo seguinte. Uma vez que há dois [tipos]de acção, como se diz no livro IX da Metafísica (1050 a 23), uma que permanece noagente, como ver e inteligir, e outra que transita para a realidade exterior, comoaquecer e cortar, uma e outra fazem-se segundo alguma forma. E, assim como aforma, segundo a qual se produz a acção que tende para a realidade exterior, é umasemelhança do objecto da acção, como o calor do que aquece é uma semelhança doaquecido; de modo similar, a forma segundo a qual se produz a acção que permaneceno agente é uma semelhança do objecto. Donde, a semelhança da coisa visível é aforma segundo a qual a vista vê e a semelhança da coisa inteligida, que é a espécieinteligível, é a forma segundo a qual o intelecto conhece.»

Ou seja, a espécie inteligível é a forma da intelecção, forma que é uma

semelhança do objecto, de acordo com a concepção tomista da forma da acção, quer

daquela que permanece no agente quer daquela que transita para fora dele.

Resposta (conclusão):Caso em que a espécie inteligível é objecto do conhecimento intelectivo: «Mas,

porque o intelecto reflecte sobre si mesmo, no âmbito desta mesma reflexão, eleintelige o seu inteligir e a espécie pela qual intelige. E, assim, a espécie intelectiva é oque é inteligido em segundo lugar. Mas aquilo que é inteligido em primeiro lugar é arealidade da qual a espécie inteligível é semelhança.

E isto também é evidente a partir da opinião dos antigos, que preconizavam que osemelhante é conhecido pelo semelhante. Preconizavam, com efeito, que a almaconheceria, pela terra que nela existia, a terra que fora dela existia, e, do mesmomodo, acerca das outras coisas (De Anima I, 404 b 11; 409 b 26). Se aceitarmos,portanto, a espécie da terra no lugar da terra, segundo o ensinamento de Aristóteles,que diz que a pedra não está na alma, mas a espécie da pedra (De An. III, 431 b 29),seguir-se-á que a alma conhece pelas espécies inteligíveis as coisas que existem forada alma.»

Ou seja, na ordem do conhecimento de si, a espécie intelígivel vem em segundo

lugar, a seguir ao próprio inteligir, e, nesse caso, é objecto do conhecimento

intelectivo, com o próprio inteligir. Na ordem habitual do conhecimento, o primeiro

objecto a considerar é a realidade da qual a espécie inteligível é uma semelhança;

esta, por sua vez, não é um segundo objecto de conhecimento, mas é o meio do

conhecimento intelectivo da realidade exterior. Deste modo, a espécie inteligível é

uma noção funcional, uma função, não um objecto. Restringindo a objectivação da

espécie inteligível, a teoria tomista do conhecimento recusa o idealismo.

Sem pôr em causa a tese antiga da filosofia grega, segundo a qual se conhece o

semelhante pelo semelhante, Tomás de Aquino identifica com a espécie inteligível

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este semelhante funcional, pelo qual se conhece o semelhante externo. A espécie

inteligível é semelhante ao semelhante externo, mas não é material como este; ela é

uma semelhança imaterial de uma coisa material, que é o objecto de conhecimento. A

imaterialidade da espécie inteligível assemelha-a ao intelecto, que é o sujeito do

conhecimento, e faz dela, não um objecto inteligível, mas o meio do conhecimento

intelectivo do objecto material.

Contra-argumentos:

«Quanto ao primeiro argumento, deve dizer-se que o inteligido está no [sujeito]inteligente pela sua semelhança. E, deste modo, diz-se que o inteligido em acto é ointelecto em acto, porquanto a semelhança da coisa inteligida é forma do intelecto,assim como a semelhança da coisa sensível é forma do sentido em acto. Donde, nãose segue que a espécie inteligível abstraída seja aquilo que é inteligido em acto, masque seja uma semelhança sua.»

Ou seja, o inteligido em acto não se identifica imediatamente com o intelecto em

acto, tal como o objecto conhecido não se confunde com o sujeito de conhecimento.

O inteligido em acto não se identifica com o intelecto em acto senão mediante a

espécie inteligível, que é uma semelhança do objecto, não o próprio objecto exterior

de conhecimento.

«Quanto ao segundo argumento, deve dizer-se que, quando se diz inteligido emacto, duas coisas são conotadas, a saber: a realidade que é inteligida e isto que é opróprio ser inteligido. E, de modo similar, quando se diz universal abstracto(universale abstractum), há inteligência de duas coisas, a saber: da própria naturezada realidade e da abstracção ou universalidade. A própria natureza a que acontece serser inteligida ou abstraída, ou a intenção de universalidade, não está senão nossingulares, mas isto mesmo que é ser inteligido ou abstraído, ou a intenção deuniversalidade, está no intelecto. E nós podemos ver isto por símile no sentido. Defacto, a vista vê a cor de um fruto sem o seu odor. Se, portanto, se perguntar onde estáa cor que é vista sem odor, é evidente que a cor que é vista não está senão no fruto,mas que seja percebida sem odor, isso acontece-lhe da parte da vista, porquanto navista está a semelhança da cor, não do odor. De modo similar, a humanidade que éinteligida não está senão neste ou naquele homem, mas que a humanidade sejaapreendida sem condições individuais, o que é a própria abstracção, a que se segue aintenção de universalidade, acontece à humanidade na medida em que é percebidapelo intelecto, no qual está a semelhança da natureza da espécie, e não dos princípiosindividuais.»

Ou seja, aquilo que é inteligido, o objecto do conhecimento intelectivo, inclui a

natureza da realidade cognoscível e o próprio inteligir, do qual faz parte a semelhança

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daquela natureza, que é a espécie inteligível. Assim, aquilo que é inteligido está, por

um lado, na realidade exterior à alma (a natureza dessa realidade) e, por outro lado,

está na alma, isto é, no intelecto pelo próprio inteligir através da espécie inteligível,

isto é, submetido ao modo do conhecimento intelectivo, que é a abstracção.

«Quanto ao terceiro argumento, deve dizer-se que na parte sensitiva encontram-seduas operações. Uma só segundo a afecção (immutatio), e assim perfaz-se a operaçãodo sentido pelo facto de ser afectado pelo sensível. A outra operação é uma formação(formatio), na medida em que a força imaginativa forma para si uma imagem (idolum)da realidade ausente, ou mesmo nunca vista. E estas duas operações reúnem-se nointelecto. Na verdade, primeiro considera-se a afecção (passio) do intelecto possível,na medida em que é informado pela espécie inteligível. Informado (formatus) poresta, ele forma segundo a definição ou a divisão ou a composição que é significadapela palavra. Donde, a razão que o nome significa é a definição; e a enunciaçãosignifica a composição e a divisão do intelecto. Portanto, as palavras não significamas próprias espécies inteligíveis, mas aquilo que o intelecto forma para si a fim dejulgar acerca da realidade exterior.»

Ou seja, as palavras não são expressão imediata das espécies inteligíveis, mas são

expressão de formações derivadas das espécies inteligíveis, como a definição, que o

nome significa, e a composição e a divisão, que a construção do discurso, por sua vez,

significa. A linguagem é uma expressão mediata e elaborada de conhecimento.

3. A questão da unidade do intelecto

Uma das questões fundadoras e estruturantes da filosofia ocidental é a questão do

uno e do múltiplo, suposta nas posições antagónicas de Heraclito e de Parménides, e

tematizada no diálogo Parménides, de Platão. Trata-se da questão no âmbito da qual

se decidem as nossas fundamentais atitudes perante o real, o todo, o ser, o universo ou

o mundo: ou tudo é um, na origem ou em profundidade, ou tudo é irredutivelmente

diverso. Entre as concessões de Heraclito à evidência do múltiplo e do movimento e a

decisão exclusiva de Parménides a favor da unidade do ser, a tradição da filosofia foi

sempre construindo soluções de compromisso entre o uno e o múltiplo. A teoria

platónica das ideias constitui uma dessas soluções, quer ao nível da unificação do

mundo das ideias através da ideia de Bem (República) quer ao nível da

irredutibilidade dos cinco géneros supremos, o Ser, o Uno, o Outro, o Repouso e o

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Movimento (Sofista). Na tradição da filosofia platónica, a solução de Plotino é

porventura a mais marcante e amplamente estruturada, atribuindo total primazia ao

Uno, o princípio mais originário, do qual procede mediata e gradualmente todo o

múltiplo. De um modo geral, as filosofias de pendor racionalista dão primazia à

unidade, o que é significativo acerca da exigência de unidade que a razão comporta;

em contrapartida, as filosofias de pendor empirista valorizam o múltiplo, dada a

irredutível diversidade do que aparece aos sentidos.

A filosofia medieval, em especial, expressão de confluência da tradição da

filosofia grega e da tradição judaico-cristã, não podia ignorar a questão do uno e do

múltiplo. Sob a influência da tradição judaico-cristã, a filosofia medieval admitia a

tese da existência de um Deus criador, que é causa directa da existência do universo.

Esta tese reforçava decerto a primazia do uno sobre o múltiplo, uma vez que no

princípio era o Deus único. Todavia, segundo a orientação dominante da filosofia da

criação, de influência judaico-cristã, a criação é uma manifestação da bondade do

Criador, do que decorre uma conotação positiva da diversidade das criaturas.

Assinalando esta renovada forma de valorização do múltiplo, surgem questões

amplamente debatidas na filosofia da Idade Média, como a questão da individuação e

a própria questão da unidade do intelecto.

A questão da unidade do intelecto consiste em saber se o intelecto, através do qual

o ser humano conhece, é uno ou é múltiplo. A tese da unidade do intelecto é aquela

que postula que o intelecto é uma substância separada cuja actividade é de algum

modo participada por todos os indivíduos de natureza racional. A tese da

multiplicidade dos intelectos é, em contrapartida, aquela que asume que todos os

indivíduos de natureza racional possuem intelectos distintos. A tese da unidade do

intelecto facilita a explicação do conhecimento dos universais, que não é senão o

reconhecimento da unidade no seio do múltiplo. A tese da multiplicidade dos

intelectos, por seu turno, defende o valor do indivíduo e complica as questões do

conhecimento extremando a oposição entre subjectivo e objectivo. Tomás de Aquino

é, na história da filosofia, um dos mais proeminentes defensores da tese da

multiplicidade dos intelectos, concebendo a sua posição em harmonia com a filosofia

aristotélica do intelecto. Houve, no entanto, filósofos árabes, como Averróis, e

seguidores latinos, como Sigério de Brabante, que se decidiram a favor da tese da

unidade do intelecto, concebendo esta posição também em harmonia com a filosofia

de Aristóteles. Impõe-se, por isso, um regresso à obra de Aristóteles, De Anima, que

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forneceu argumentos a todos aqueles que disputaram a questão da unidade do

intelecto.

3.1. Questões aristotélicas sobre a alma

Aristóteles não formula explicitamente a questão da unidade do intelecto, mas

considera diversas questões sobre a alma, que revelam ser condicionantes ou estar

estreitamente associadas àquela, de modo que os três livros sobre a alma, De anima,

de Aristóteles, abundante e multimodamente interpretados pela tradição filosófica

posterior59, são a fonte remota e incontornável da questão da unidade do intelecto.

A alma é divisível ou indivisível? Esta é uma questão claramente formulada em

De Anima (I 402 b 1-3, 10, 411 a 26 – 411 b 18; II, 413 b 10 – 414 a 4). Embora

Aristóteles não formule uma resposta inequívoca, ele tende a privilegiar a tese da

divisibilidade da alma, na medida em que discrimina e analisa as diversas funções ou

operações que a alma pode realizar, ampliando a diversidade já contemplada por

Platão. Não fica, todavia, claro se essa diversidade funcional corresponde a uma

pluralidade de partes da alma ou de almas.

A alma é separável ou inseparável do corpo? Esta é também uma questão

claramente formulada em De Anima (I, 403 a 7-28, 411 b 7-9), e claramente

respondida em prol da tese da inseparabilidade da alma (De An. II, 413 a 4-7).

Consequência tácita é a posição contra a imortalidade da alma, pelo menos, das partes

da alma, ou das almas, inseparáveis de órgãos corporais. Aristóteles rejeita assim duas

teses principais da antropologia platónica, que ele próprio representa através da

imagem da alma, como piloto de um navio (De An. II, 413 a 8-9).

O intelecto é separável ou inseparável do corpo? Aristóteles formula claramente

esta questão (De An. I, 407 b 2-5; II, 413 a 6-7), e pronuncia-se reiteradamente a favor

da separabilidade do intelecto em relação a algum órgão corporal (De An. II, 413 b

26-27; III, 429 b 5, 21-22), o que convém a fortiori ao intelecto activo (De An. III,

430 a 17-18, b 25-26). Consequência expressamente admitida é a afirmação da

imortalidade do intelecto, pelo menos, do intelecto activo, uma vez que o intelecto

passivo é corruptível (De An. III, 430 a 22-25).

59 Nomeadamente, a tradição da filosofia latina escolástica, responsável pela latinidade do título sob oqual se tornou corrente referir este tratado de Aristóteles.

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Que relação e diferença existem entre alma e intelecto? Aristóteles pronuncia-se

claramente a favor da distinção entre alma e intelecto, criticando os filósofos

anteriores por indefinição a este propósito: Demócrito (De An. I, 404 a 27-28, 405 a

8-9); Anaxágoras (De An. I, 404 a 25 – b 7, 405 a 13-23); e Platão (De An. I, 407 a 3 –

b 1). Aristóteles defende também claramente a superioridade do intelecto à alma (De

An. I, 410 b 12-15). Além disso, concede a pertença do intelecto à alma (De An. I, 410

b 24-25, 411 b 18), mas somente do intelecto potencial (De An. III, 429 a 22-29).

Qual é a natureza do intelecto? Aristóteles não formula uma definição da natureza

do intelecto, mas tece algumas considerações significativas a esse respeito, dizendo

que o intelecto é substância e é incorruptível (De An. I, 408 b 18-19 e II, 413 b

24-27), e que é divino e impassível (De An. I, 408 b 29-30 e III, 429 a 15, 29 – 429 b

10). A partir da distinção do intelecto entre activo e passivo, tais atributos parecem

adequar-se, sobretudo, ao intelecto activo, aquele do qual Aristóteles afirma

claramente o carácter separado (De An. III, 430 a 10-25).

3.2. A controvérsia anti-averroísta e os antecedentes árabes

A questão da unidade do intelecto é uma das questões disputadas no âmbito da

controvérsia anti-averroísta, que decorreu, sobretudo, na Universidade de Paris,

durante a segunda metade do séc. XIII. Averroístas eram os filósofos que então

defendiam posições de Averróis, na Europa de expressão culta latina, entre os quais se

destacou Sigério de Brabante (1240-1284? Ducado de Brabante, Bélgica). Mestre de

Artes da Universidade de Paris, Sigério teve aí oportunidade de defender teses

controversas, como a da eternidade do mundo, de inspiração aristotélica, e como a

tese averroísta do monopsiquismo, isto é, a posição de Averróis a favor da unidade do

intelecto. Sigério encontrou em Tomás de Aquino, um sério oponente, não tanto a

respeito da tese da eternidade do mundo, que a filosofia tomista admite com uma

singular compreensão, mas, especialmente, no que concerne ao monopsiquismo

averroísta. Contra este, Tomás de Aquino escreveu o seu célebre opúsculo De Unitate

Intellectus contra Averroistas (1270). Em resposta, Sigério terá escrito De Intellectu

(1270-1271), que todavia se perdeu60. As posições de Sigério foram visadas pelas

60 Outras obras de Sigério, relevantes para a questão da unidade do intelecto: Quaestiones in tertium deAnima e De Anima Intellectiva.

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condenações de 1270 e de 1277. Depois desta última, Sigério teve de abandonar Paris.

Em que consiste o monopsiquismo averroísta? Numa versão forte da tese da

unidade do intelecto. Dizemos «versão forte», porque se trata de uma dupla afirmação

da unidade do intelecto: há um só intelecto agente separado, que coincide com a

inteligência da esfera lunar; e há um só intelecto possível ou material, também

separado, que é a inteligência da espécie humana. A versão averroísta da tese da

unidade do intelecto é, pois, relativa à dupla acepção de intelecto, que Aristóteles

distinguira em função da aplicação ao intelecto dos princípios de acto e potência.

Com base nessa aplicação aristotélica, Tomás de Aquino também elaborou uma dupla

acepção do intelecto, distinguindo entre intelecto agente e intelecto possível, mas

tanto a respeito de um quanto a respeito do outro, Tomás de Aquino defendeu

firmemente a tese da multiplicidade individual do intelecto: há tantos intelectos

possíveis quantos indivíduos humanos houver, bem como há tantos intelectos agentes

quantos forem os indivíduos humanos. Intelecto agente e intelecto possível são, pois,

intelectos próprios do indivíduo. Esta tese não era explícita em Aristóteles, e,

porventura, alguns dos passos que salientámos de De Anima favorecem mais a

posição averroísta do que a posição tomista. Para Tomás de Aquino, a defesa da

multiplicidade individual do intelecto era um imperativo do valor do indivíduo, como

sujeito quer de conhecimento quer de responsabilidade moral.

Entretanto, se Averróis (1126-1198, Córdova) encontrou seguidores e críticos na

Europa latina, ele próprio não é um expoente incontroverso da tradição da filosofia

árabe. Significativa a este propósito, é a oposição de Averróis a Algazel (1058-1111,

Pérsia), um teólogo que não encontrava harmonia possível entre a filosofia e a

mundividência de acordo com os princípios do Corão. Escreveu, por isso, uma obra

intitulada Destruição dos Filósofos. Da filosofia, rejeitou em especial a hipótese

aristotélica da eternidade do mundo e a consideração platónica de uma alma do

mundo. No essencial, Algazel rejeitara, na tradição islâmica do pensamento árabe,

teses idênticas àquelas que os teólogos cristãos vieram posteriormente a condenar no

âmbito da controvérsia anti-averroísta. Algazel era um teólogo, que conhecia bem a

filosofia grega clássica, mas como quem conhece bem o inimigo para melhor dele se

defender. Com efeito, filosofia e teologia, entendida esta como exegese do Corão,

eram domínios distintos, que deviam permanecer separados. Numa geração posterior,

um outro muçulmano, Averróis, vem defender uma posição oposta, preconizando uma

perfeita concordância entre filosofia e teologia, nomeadamente, entre Aristóteles e o

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Corão, de modo que seria mesmo a filosofia a prover à interpretação mais profunda

do texto sagrado. Consonantemente, Averróis assume doutrinas, que ele considera

encontrar nos textos de Aristóteles, como a tese forte da unidade do intelecto e a tese

da eternidade do mundo, não as considerando incompatíveis com a mundividência do

Corão. Apesar da grande contestação de que foram alvo as suas posições e dos seus

seguidores no Ocidente latino, Averróis grangeou imenso prestígio na Escolástica

medieval, como o Comentador por excelência do Filósofo por excelência, Aristóteles.

Mas não só Algazel e Averróis exerceram influência na filosofia escolástica

latina. Esta revela as marcas de um outro filósofo árabe mais recuado no tempo:

Avicena (980-1037, Pérsia). Entre as suas obras, algumas perdidas, outras

conservadas e traduzidas em latim, a mais importante e abrangente intitula-se A Cura

(título latino: Sufficientia), na qual se insere o famoso tratado De Anima. Neste,

Avicena expõe uma teoria da alma e do intelecto, que não é exclusiva nem

preponderantemente aristotélica, mas que combina elementos platónicos, e

neoplatónicos, com elementos aristotélicos. Assim, não é aristotélica, mas platónica, a

rejeição da acepção da alma como forma de um corpo em prol da acepção da alma

como substância espiritual, simples e indestrutível. Por conseguinte, a alma não

depende do corpo para existir; a alma só depende do corpo para nele exercer a

actividade que lhe compete. A alma é, além disso, um princípio único de emanação de

faculdades diversas. Avicena distingue entre várias espécies de alma, na linha da

filosofia aristotélica: a alma vegetativa (nutritiva, aumentativa e generativa); a alma

sensitiva (motora e apreensiva) e a alma racional (activa e contemplativa). O intelecto

é a faculdade contemplativa da alma racional.

A concepção do intelecto, em Avicena, é uma das mais complexas que a filosofia

medieval conheceu. Avicena distingue entre várias acepções de intelecto, segundo

diversos estados de relação com os inteligíveis: o intelecto material, que está em

potência (in potentia) relativamente aos inteligíveis; o intelecto eficaz (in effectu), que

se encontra na posse de alguns inteligíveis, os primeiros princípios; o intelecto

habitual (in habitu), que se encontra na posse da ciência, de modo que é capaz de

considerá-la; e o intelecto adquirido (adeptus), que considera actualmente os

inteligíveis. Em qualquer dos quatro estados, o intelecto é pertença da alma. Nenhum,

porém, dos intelectos discriminados é agente, nem o eficaz nem o adquirido. Este

último é o estado mais perfeito do intelecto, mas, mesmo assim, é um estado recebido.

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Aquilo que desempenha, para Avicena, o papel de intelecto agente é uma

inteligência separada da alma, a inteligência da esfera celeste que rege o mundo

sub-lunar. Para além da sua função cósmica, essa inteligência agente tem a função de

dar as formas inteligíveis ao intelecto humano. A inteligência agente é a fonte dadora

das formas inteligíveis ao intelecto. A inteligência agente emana para o intelecto a

forma inteligível, sempre que este se encontra preparado para tal, através da

actividade comparativa da faculdade cogitativa. Deste modo, o conhecimento

intelectivo é de origem superior, uma vez que advém ao intelecto por influência de

uma inteligência separada, mas é condicionado pela alma sensitiva.

Sem o saber, Avicena veio a promover uma outra perspectiva sobre a questão da

unidade do intelecto na filosofia escolástica: a de uma tendência, que os medievalistas

consideram sob a designação de «augustinismo avicenizante». Inscrever-se-ão nesta

tendência todos os filósofos e teólogos da época, que aproximam a ideia de uma

inteligência agente separada da ideia augustiniana de iluminação divina. Esta

tendência dá, assim, origem a uma «versão fraca» da tese da unidade do intelecto,

aquela que afirma apenas a unidade do intelecto agente. Contra esta, também se

pronunciou Tomás de Aquino, como veremos a seguir.

Sugestões bibliográficas: É. Gilson, «Les sources gréco-arabes de l’augustinisme

avicennisant», Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen âge IV

(1929-1930); C. Tresmontant, La métaphysique du christianisme et la crise du XIIIe

siècle, Paris, 1964; F. Van Steenberghen, La philosophie au XIIIe siècle,

Lovaina-Paris, 1966; E.-H. Wéber, La controverse de 1270 à l’Université de Paris et

son retentissement sur la pensée de saint Thomas d’Aquin, Paris, 1970.

3.3. A questão da unidade do intelecto em Tomás de Aquino

Tomás de Aquino distingue entre um intelecto possível e um intelecto agente, com

base na distinção aristotélica entre um intelecto passivo, ou em potência, e um

intelecto activo (De Anima III, 429 b 30 – 430 a 25). Importa considerar, por isso,

como é que Tomás de Aquino concebe essa sua distinção, de inspiração aristotélica,

porquanto ela está na base da análise tomista da questão da unidade do intelecto em

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duas partes principais, a primeira situando a questão ao nível do intelecto possível e a

segunda situando-a ao nível do intelecto agente.

Não obstante a reverência por Aristóteles, o Filósofo, Tomás de Aquino não se

limita a receber acriticamente a distinção aristotélica entre os dois intelectos. O

filósofo escolástico interroga-se acerca da natureza do intelecto humano,

questionando se este é a essência ou uma potência da alma (Summa Theologiae I,

q.79, a.1). O intelecto não é a essência da alma, mas é a essência de Deus, porque o

ser da alma não é inteligir, enquanto que o ser de Deus se identifica com o inteligir, o

mais nobre na ordem da acção. Em todos os seres inteligentes, para além de Deus, há

composição de potência e acto, isto é, há sempre uma parte maior ou menor do

intelecto que está em potência (Sum. Theol. I, q.79, a.1, Resp.). Há, portanto, um

intelecto potencial na alma humana.

Tomás de Aquino também se interroga sobre a passividade deste intelecto

potencial, dado que Aristóteles dissera que inteligir é um certo padecer (De Anima III,

429 b 24). No entanto, a passividade é mais própria da matéria do que da potência

imaterial do intelecto. Interpretando o dito de Aristóteles, Tomás de Aquino distingue

entre três acepções de «padecer» (pati), a fim de discernir qual delas convém à

potência intelectiva: numa acepção propriíssima, «padecer» significa separar-se de

algo conveniente por natureza; numa acepção menos própria, «padecer» significa

separar-se de algo conveniente ou não por natureza; e na acepção comum, «padecer»

significa receber aquilo relativamente ao qual o receptor estava em potência. Nas duas

primeiras acepções, padecer implica perder algo. Só na terceira acepção é que

«padecer» significa receber sem perda alguma. Portanto, só nesta acepção se deve

entender que inteligir é padecer, sem atentar contra a nobre qualidade do processo

intelectivo (Sum. Theol. I, q.79, a.2, Resp.). No mesmo sentido, deve admitir-se que o

intelecto humano é uma potência passiva.

O intelecto humano é mesmo o mais passivo dos intelectos. Com efeito, Tomás de

Aquino tem uma noção transcendental de intelecto, que inclui distintos géneros de

intelecto: aquele que é acto puro, que só a Deus pertence; aquele que está sempre em

acto relativamente aos inteligíveis, que constituem o seu domínio próprio de

conhecimento, como no caso do intelecto separado do anjo; e aquele que está em

potência relativamente aos inteligíveis, como é o caso do intelecto humano, unido a

um corpo. Nesta ordem dos intelectos, é o intelecto humano que tem maior grau de

potência e é, portanto, aquele a que melhor convém a condição de potência passiva

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(Sum. Theol. I, q.79, a.2, Resp.). Ao intelecto potencial humano cabe, portanto, a

imagem aristotélica da tábua rasa (De anima III, 429 b 24).

Tomás de Aquino fixa, então, o seu vocabulário. O intelecto que está em potência

para os inteligíveis, como o intelecto humano, não é passivo em qualquer acepção,

mas só na medida em que ser passivo é ser receptivo, sem perda alguma. Nesta

medida, passivo diz-se mais propriamente «possível». Por isso, a noção aristotélica de

intelecto em potência diz-se mais propriamente, na linguagem tomista, «intelecto

possível» (Sum. Theol. I, q.79, a.2, 2º contra-argumento).

Contudo, um intelecto exclusivamente receptivo não teria a capacidade de

conhecer as formas do mundo natural. Só se estas formas subsistissem separadas da

matéria e fossem por si inteligíveis, é que um intelecto puramente receptivo poderia

inteligi-las. Mas isto é o que Tomás de Aquino rejeita, na esteira de Aristóteles, como

perspectiva platónica. Na realidade, as formas naturais não subsistem separadas da

matéria nem são por si inteligíveis. As formas não separadas do mundo natural não se

tornam inteligíveis em acto senão por acção de algum intelecto, como seja pela acção

de abstrair do intelecto humano. A acção de abstrair é, como vimos, a função de um

intelecto agente. Um intelecto activo ou agente é, pois, imprescindível para o

conhecimento humano do mundo natural (Sum. Theol. I, q.79, a.3).

3.3.1. A questão da unidade do intelecto possível

Considere-se, então, a questão da unidade do intelecto, antes de mais, a respeito

do intelecto possível, aquele que está em potência relativamente aos inteligíveis.

Tomás de Aquino toma posição contra a unidade do intelecto possível, e a favor da

multiplicidade individual deste, em várias obras, como Da unidade do intelecto

contra os Averroístas (De Unitate Intellectus contra Averroistas) e Summa contra os

Gentios (Summa contra Gentiles), para além da Summa Theologiae. Nestas obras, o

autor expõe as razões da sua posição contra a tese averroísta da unidade do intelecto

possível, entre as quais realçamos duas: a insuficiência da explicação averroísta para

o carácter individual do conhecimento intelectivo (De Unit. Intel. c.3; Sum.c.Gent. II,

c.70; Sum. Theol. I, q.76, a.1), e a negação da liberdade individual (De Unit. Intel.

c.4).

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Antes de mais, Tomás de Aquino assume que inteligir é um acto individual, no

que se considera estar de acordo com Aristóteles:

«É de facto evidente que este homem singular conhece inteligindo (intelligit).Nunca nos interrogaríamos acerca do intelecto, se não inteligíssemos; nem, quandonos interrogamos acerca do intelecto, procuramos outro princípio que não aquele peloqual inteligimos. Donde, diz Aristóteles: “Digo intellecto, aquilo pelo qual a almaconhece inteligindo” (De An. III, 429 a 23).» De Unitate Intellectus contraAverroistas, c.3, §21661.

Ainda que defendendo a unidade do intelecto possível, os averroístas não negam a

individualidade do conhecimento intelectivo e procuram também explicá-la. Tomás

de Aquino descreve do seguinte modo a explicação averroísta:

«Averróis, considerando que o princípio do inteligir, que se diz “intelectopossível”, não é a alma nem parte da alma, senão equivocamente, mas que é antesuma substância separada, diz que o inteligir dessa substância separada é o meu ou oteu inteligir, enquanto esse intelecto possível se une a mim ou a ti, através dasimagens que estão em mim e em ti. O que acontece, conforme dizia, do seguintemodo: a espécie inteligível, que faz unidade com o intelecto possível, uma vez quedele é forma e acto, tem dois sujeitos, um coincide com as próprias imagens e o outroé o intelecto possível. Assim, portanto, o intelecto possível é continuado em nós(continuatur nobiscum) pela sua forma mediante as imagens (mediantibusphantasmatibus); e assim, enquanto o intelecto possível conhece, este homemconhece.» De Unit. Intel., c.3, §217.

A mesma explicação abreviada, e logo contestada, na Summa Theologiae:

«Diz o Comentador, [comentando] De anima III (com.5, 5), que esta união [dointelecto com o corpo de Sócrates] dá-se por meio da espécie inteligível. De facto,esta tem dois sujeitos: um é o intelecto possível; o outro [coincide] com as própriasimagens que estão nos órgãos corpóreos. E assim, pela espécie inteligível, o intelectopossível é continuado no corpo deste ou daquele homem. – Mas esta continuação ouunião não é suficiente para que a acção do intelecto seja a acção de Sócrates. E isto épatente por semelhança com o sentido, a partir do qual procede Aristóteles, paraconsiderar as coisas que são do intelecto. Ora, como se diz em De Anima III (430 a10), as imagens (phantasmata) estão para o intelecto assim como as cores para a vista.Portanto, as espécies das imagens (species phantasmatum) estão no intelecto possívelassim como as espécies das cores estão na vista. É, no entanto, evidente que pelofacto de estarem as cores na parede, cujas semelhanças estão na vista, a acção da vistanão é atribuída à parede. De facto, não dizemos que a parede vê, mas que é vista. Porconseguinte, do facto de estarem as espécies das imagens no intelecto possível, não se

61 Texto e divisões da ed. de P. Keeler.

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segue que Sócrates, no qual estão as imagens, conheça inteligindo, mas que elepróprio, ou as suas imagens sejam inteligidos.» Sum. Theol. I, q.76, a.1, Resposta.

Por sugestão de Aristóteles, as imagens estão para o intelecto assim como as cores

estão para a vista. Mas onde estão as imagens e as cores? As imagens estão no sujeito

individual, como em Sócrates por exemplo, tal como as cores estão na realidade

exterior, como por exemplo numa parede. Se o intelecto possível, no qual estão as

espécies das imagens, for um intelecto separado do sujeito individual das imagens,

então este mesmo sujeito individual tornar-se-ia tão exterior ao intelecto quanto a

parede é exterior ao sentido da vista: o sujeito individual e as suas imagens

tornar-se-iam objecto de conhecimento do intelecto possível, tal como a parede é

objecto da visão. Desse modo, o sujeito individual seria objecto, não sujeito do

conhecimento intelectivo. Não satisfaz, por conseguinte, a explicação da

individualidade do conhecimento intelectivo, pela continuação (continuatio) do

intelecto possível no sujeito individual das imagens, através da espécie inteligível,

que está no intelecto e nas imagens como em dois sujeitos. A tese averroísta da

unidade do intelecto possível não assegura a individualidade do conhecimento

intelectivo.

A diversidade das imagens segundo a multiplicidade dos sujeitos individuais

também não garante por si só a individualidade do conhecimento intelectivo:

«Poderia diversificar-se, a minha e a tua acção intelectual, pela diversidade dasimagens, porque uma é a imagem da pedra em mim e outra é em ti, se a própriaimagem, devido ao facto de ser uma em mim e outra em ti, fosse a forma do intelectopossível, porque o mesmo agente produz acções diversas segundo formas diversas,assim como há visões diversas segundo formas diversas das coisas, a respeito domesmo olho. Só que a própria imagem não é a forma do intelecto possível, mas é aespécie inteligível que é abstraída das imagens. Num intelecto, a partir de imagensdiversas da mesma espécie, não é abstraída senão uma espécie inteligível. Assimcomo é claro num homem, no qual possa haver diversas imagens de pedra, e, noentanto, de todas elas é abstraída uma espécie inteligível de pedra, pela qual ointelecto de um homem conhece por uma operação a natureza da pedra, não obstante adiversidade das imagens. Se, portanto, existisse um intelecto de todos os homens, adiversidade das imagens, que estão neste e naquele, não poderia causar a diversidadeda operação intelectual deste e daquele homem, como julga o Comentador[comentando] De Anima III (com.5, 5). – Resulta, portanto, que é totalmenteimpossível e inconveniente admitir um intelecto de todos os homens.» Sum. Theol. I,q.76, a.2, Resposta.

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Na solução averroísta, basta a diversidade das imagens, segundo os indivíduos,

para assegurar a diferenciação individual do conhecimento intelectivo. Tomás de

Aquino contesta, de novo, por via de uma comparação: tal como, num homem,

diversas imagens do mesmo género de realidade não dão origem a diversas espécies

inteligíveis, mas a uma só espécie inteligível, como por exemplo a natureza da pedra,

assim também, em homens diversos, diversas imagens do mesmo género de realidade

não dão por si só origem a diversas operações intelectuais, segundo a diversidade dos

indivíduos, que produzam diversas espécies inteligíveis. A diversidade das espécies

inteligíveis e das operações intelectuais, segundo os indivíduos, só pode ser

assegurada pela multiplicidade individual dos intelectos.

Mas, para além da individualidade do conhecimento intelectivo, também a

responsabilidade moral do indivíduo não é devidamente acautelada pela posição

averroísta a favor da unidade do intelecto possível:

«É evidente que o intelecto é aquilo que é principal no homem e que usa todas aspotências da alma e os membros do corpo, como órgãos. Por isso, Aristóteles dissesubtilmente que o homem é o intelecto, “ou maximamente” (Ética Nicomaqueia IX,1169 a 2). Por isso, se existe um intelecto de todos, segue-se necessariamente queexiste um inteligente e, por consequência, um volente, e um utente, pelo arbítrio dasua vontade, de tudo aquilo segundo o qual os homens se diversificam entre si; daísegue-se ainda que nenhuma diferença existe entre os homens, quanto à livre eleiçãoda vontade, mas é a mesma de todos, se o intelecto, no qual unicamente reside aproeminência e o domínio do uso de todo o resto, é uno e indiviso em todos: o que émanifestamente falso e impossível. Repugna, de facto, por estas razões óbvias, edestrói toda a ciência moral e tudo o que pertence à convivência civil, como dizAristóteles (Política I, 1253 a 2-3).» De Unit. Intel., c.4, §239.

Na medida em que a vontade se situa ao nível do intelecto, como potência

desiderativa racional, não havendo intelectos individuais, não haveria vontades

individuais. A tese da unidade do intelecto implica a unidade da vontade, e, com ela, a

anulação do livre arbítrio da vontade individual, que está na base da responsabilidade

moral e civil dos indivíduos. É, pois, um imperativo de ordem ética e política, a

rejeição da tese da unidade do intelecto.

Sublinhe-se, por fim, que, tal como a tese averroísta da unidade do intelecto

possível supõe que este seja uma substância separada, a tese tomista da multiplicidade

individual do intelecto possível supõe que este seja parte integrante do composto

humano de alma e corpo. Tomás de Aquino não negligencia tornar explícita esta

condição, argumentando abundantemente a favor da tese antropológica da união

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substancial do intelecto possível com o composto humano (De Unit. Intel. cc.1-2;

Sum.c.Gent. II, cc.56-59, 68-69; Sum. Theol. I, q.76, aa.1-2). Na linguagem filosófica

de Tomás de Aquino, o intelecto possível é uma potência da alma, que é forma de um

corpo. De acordo com esta tese antropológica, o intelecto possível não é separado e

uno, mas unido ao composto de alma e corpo, e múltiplo segundo a multiplicidade dos

compostos individuais.

3.3.2. A questão da unidade do intelecto agente

Dada a acepção tomista da distinção do intelecto entre possível e agente, não

bastava argumentar contra a unidade do intelecto possível e a favor da multiplicidade

dos intelectos possíveis para responder cabalmente na questão da unidade do

intelecto. Era preciso argumentar também contra a unidade do intelecto agente e a

favor da multiplicidade individual dos intelectos agentes. Entre as razões de Tomás de

Aquino contra a unidade do intelecto agente, sobressai a negação de actividade

autónoma do ser humano ao nível do conhecimento intelectivo (Sum.c.Gent. II, c.76).

A salvaguarda dessa actividade era, por seu turno, a principal razão a favor da

multiplicidade individual dos intelectos agentes.

Para defender positivamente esta tese, Tomás de Aquino tinha, entretanto, de

argumentar a favor de união substancial do intelecto agente com o intelecto possível e

com a alma, mais ainda, com o composto de alma e corpo (Sum.c.Gent. II, cc.77-78;

Sum. Theol. I, q.79, aa.4-5), forçando até Aristóteles a dar-lhe razão, através de uma

interpretação restritiva da acepção aristotélica do intelecto agente, como sendo

separado. Na Summa Theologiae I, q.79, o a.5 coloca expressamente a questão da

unidade do intelecto agente, perguntando se o intelecto agente é um em todos. Parece

que o intelecto agente é um em todos. O primeiro argumento, em favor desta hipótese

da unidade do intelecto agente, convoca Aristóteles, ao afirmar que o intelecto activo

é separado:

«Nada do que é separado do corpo se multiplica segundo a multiplicidade doscorpos. Mas o intelecto agente é separado, como se diz em De Anima III (430 a 17).Logo, não se multiplica nos muitos corpos dos homens, mas é um em todos.» Sum.Theol. I, q.79, a.5, 1º argumento.

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Contra-argumentando, Tomás de Aquino interpreta de forma maximamente

restritiva a afirmação de Aristóteles:

«Quanto ao primeiro, deve dizer-se que o Filósofo estima que o intelecto agente éseparado porque o intelecto possível é separado, pois, como ele próprio diz (ibid.), oagente é mais nobre do que o paciente. Ora, o intelecto possível diz-se separadoporque não é o acto de algum órgão corporal. E do mesmo modo se diz separadotambém o intelecto agente, não como se fosse uma substância separada.» Sum. Theol.I, q.79, a.5, 1º contra-argumento.

Tomás de Aquino dá-nos aqui a sua interpretação restritiva da afirmação

aristotélica da separação do intelecto activo: este é separado do mesmo modo que o

intelecto possível, enquanto não é o acto de algum órgão corporal, ainda que a

fortiori, uma vez que o agente sobreleva em nobreza o paciente. Recorde-se que o

conhecimento intelectivo depende dos sentidos, mas a acção do intelecto não se

exerce directamente sobre os órgãos sensitivos, nem sobre as sensações, mas apenas

já sobre as imagens.

Tão estreita é a relação entre a unidade e a separação do intelecto agente que

Tomás de Aquino entende a unidade do intelecto como consequência directa da sua

separação:

«Se o intelecto agente não fosse algo da alma, mas fosse uma substância separada,haveria um só intelecto agente de todos os homens. E assim entendem os que afirmama unidade do intelecto agente. – Se, porém, o intelecto agente é algo da alma, comouma capacidade sua, necessário é dizer que há múltiplos intelectos agentes, segundo apluralidade das almas, que se multiplicam segundo a multiplicação dos homens, comofoi dito acima (q.76, a.2). Não pode, de facto, acontecer que uma e a mesmacapacidade em número seja de diversas substâncias.» Sum. Theol. I, q.79, a.5,Resposta.

A tese da unidade do intelecto agente é uma consequência imediata da sua

separação, bem como a tese da multiplicidade dos intelectos agentes é uma

consequência imediata da respectiva pertença às almas humanas. Tomás de Aquino

defende assim a tese da multiplicidade dos intelectos agentes em consequência da

respectiva pertença às almas humanas, unidas aos corpos como formas, isto é,

segundo o forte vínculo que une a forma à matéria.

Mas donde a recusa tomista de um intelecto agente separado? Em defesa das

causas segundas no conhecimento humano, como expressão de uma orientação

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fundamental da filosofia de Tomás de Aquino. É certo que o inteligir no homem tem

limitações que acusam não ser o intelecto humano a fonte primordial de todo o

inteligir, ou seja, a causa primeira do conhecimento intelectivo. É, pois, necessário

que haja um intelecto superior à alma humana:

«Para que tal se torne evidente, deve considerar-se que acima da alma intelectivahumana deve colocar-se um intelecto superior, do qual a alma obtenha a capacidadede inteligir. De facto, o que participa de algo, o que é móvel e o que é imperfeitopré-exige sempre antes de si algo que pela sua essência é tal que é imóvel e perfeito.A alma humana diz-se intelectiva por participação da capacidade intelectual. Sinaldisso é o facto de não ser totalmente intelectiva, mas apenas numa sua parte. Tambémchega à inteligência da verdade com discurso e movimento, argumentando. Tambémtem uma inteligência imperfeita, ora porque não conhece todas as coisas ora porque,nas coisas que conhece, procede da potência para o acto. É, por isso, necessário quehaja um intelecto mais elevado, pelo qual a alma seja levada a inteligir. – Algunspostularam que este intelecto substancialmente separado é o intelecto agente.» Sum.Theol. I, q.79, a.4, Resposta.

Mas a necessidade de um intelecto superior não anula a necessidade do intelecto

próprio da alma humana:

«Mas concedendo que haja um tal intelecto agente separado, é não menosnecessário postular na alma humana uma capacidade que participe desse intelectosuperior, pela qual a alma humana põe os inteligíveis em acto. De igual modo, nasoutras coisas perfeitas da natureza, há, para além das causas agentes universais, forçaspróprias inerentes a cada uma das coisas perfeitas, e derivadas dos agentes universais:de facto, não só o sol gera o homem, mas há também no homem uma capacidadegenerativa do homem, e de modo similar nos outros animais perfeitos. Nada, porém, émais perfeito nas coisas inferiores do que a alma humana. Donde, é necessário dizerque, na própria alma, há uma capacidade derivada do intelecto superior, pela qualpossa iluminar as imagens. – (…) Mas o intelecto separado, segundo os documentosda nossa fé, é o próprio Deus, que é o criador da alma, no qual apenas esta alcança abeatitude, como abaixo se tornará patente.» Sum. Theol. I, q.79, a.4, Resposta.

O intelecto superior, substancialmente separado da alma, e do qual esta recebe a

capacidade de inteligir, é o intelecto divino, criador da alma. Mas a necessidade de

uma causa superior e universal de toda a capacidade intelectiva não inibe a

necessidade de causas segundas – os intelectos agentes – em função da perfeição da

alma humana. A necessidade dos intelectos agentes não separados é, assim, um

imperativo da perfeição da natureza humana.

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3.3.3. A individuação do conhecimento intelectivo e do intelecto

Vimos que Tomás de Aquino considerava insuficiente a explicação averroísta da

individualidade do conhecimento intelectivo, pela continuação do intelecto possível

nas imagens, através da espécie inteligível. Qual é, então, a proposta alternativa de

Tomás de Aquino, para conceber a individualidade do conhecimento intelectivo? É

individuar a espécie inteligível:

«Um é aquilo que é inteligido por mim e por ti, mas por um é inteligido por mim epor outro [é inteligido] por ti, isto é, por outra espécie inteligível. Um é o meuinteligir, outro o teu. Um é o meu intelecto, outro o teu. (…). Daí que o meu intelecto,quando conhece o seu inteligir, conhece um acto singular; quando, porém, conhece ointeligir simplesmente, conhece algo universal. De facto, não repugna àinteligibilidade a singularidade, mas a materialidade. (…).

É, por conseguinte, evidente de que modo se trata da mesma ciência no discípulo eno doutor: é a mesma quanto ao objecto do saber (quantum ad rem scitam), nãoquanto às espécies inteligíveis pelas quais um e outro conhecem; quanto a isto, aciência individua-se em mim e naquele.» De Unit. Intel., c.5, §§257-258.

Sabemos, a partir da descrição da teoria tomista da abstracção, que a espécie

inteligível é o universal abstraído pelo intelecto agente das imagens. Nessa medida, a

espécie inteligível é o inteligível em nós, ou seja, o inteligível que o intelecto agente

põe em acto na alma. Mas, enquanto tal, a espécie inteligível não é o objecto, mas é o

meio do conhecimento intelectivo: o intelecto humano conhece as coisas particulares

por meio de universais. Acrescente-se agora que a espécie inteligível, enquanto meio

do conhecimento intelectivo, é não só universal mas também individual: universal,

relativamente aos particulares cognoscíveis; individual, segundo a individualidade do

intelecto cognoscente. Assim nos advertimos da complexidade da noção de espécie

inteligível, sem a qual não podemos compreender a singularidade do realismo tomista:

os universais existem de facto, mas individuados em cada intelecto individual.

A individualidade da espécie inteligível não é, porém, senão uma consequência da

individualidade do intelecto, que Tomás de Aquino assume no âmbito da questão da

unidade do intelecto. Resta explicar o que é que individua o intelecto. Essa explicação

pode ser problemática, na medida em que o intelecto é por natureza imaterial, mas é

na matéria que reside, segundo Tomás de Aquino, o princípio da individuação. Será,

então, que as naturezas imateriais não podem ser individuadas? Podem, de modo

análogo àquele como a matéria individua as naturezas materiais:

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«Um diz-se de quatro modos, em Metafísica V (1016 b 31-35), a saber, emnúmero, em espécie, em género e em proporção. Não deve dizer-se que umasubstância separada é um apenas em espécie ou em género, porque isto não é ser umsimplesmente. Resta, portanto, que qualquer substância separada seja um em número.E algo não se diz um em número, porque seja um devido ao número (quia sit unum denumero); não é o número a causa do um, mas inversamente, porque [o um] não sedivide no processo de numerar. Um, de facto, é aquilo que não se divide.

E não é verdade que todo o número seja causado pela matéria: em vão teriaAristóteles procurado o número das substâncias separadas. Aristóteles postulatambém, em Metafísica V (1016 b 35 – 1017 a 6), que muito se diz não só emnúmero, mas em espécie e género.

E também não é verdade que a substância separada não seja singular e algoindividual; de contrário, não teria operação alguma, uma vez que os actos são apenasdos singulares, como diz o Filósofo (Cat., 2 b 4-6; Metaf. I, 981 a 17). Daí que seargumente contra Platão, na Metafísica (VII, 1040 a 22-29), [dizendo] que, se asideias são separadas, a ideia não será predicada de muitos, nem poderá ser definida,assim como também não os outros indivíduos que são únicos na sua espécie, como osol e a lua. A matéria não é princípio de individuação nas coisas materiais senãoenquanto a matéria não é participável por muitos, uma vez que é o primeiro sujeitoque não existe noutro. Daí que Aristóteles diga, acerca da ideia, que, se a ideia fosseseparada, seria alguma (quaedam), isto é, individual (individua), que não poderia serpredicada de muitos.

As substâncias separadas e singulares são, portanto, individuais. Não sãoindividuadas pela matéria, mas pelo facto de que não começaram a existir noutro,nem, por consequência, a serem participadas por muitos.» De Unit. Intel., c.5,§§247-249.

Tomás de Aquino preconiza a individuação das substâncias separadas, mas não a

define senão negativamente, isto é, por não serem predicáveis de muitos, nem

participáveis por muitos, como acontece com a matéria das substâncias materiais.

Deste modo, a individuação das substâncias separadas não é concebida senão por via

negativa e por analogia com a matéria.

E quanto ao intelecto humano: é individuado como as substâncias separadas ou

como as substâncias materiais? Como as substâncias materiais, visto que o intelecto

humano não é um intelecto separado:

«Daí segue-se que, se uma forma começa a ser participada por algo, assim queseja acto de alguma matéria, ela pode ser individuada e multiplicada por comparaçãocom a matéria. Já foi acima mostrado que o intelecto é uma capacidade da alma, que éacto de um corpo. Por isso, em muitos corpos estão muitas almas, e em muitas almasestão muitas capacidades intelectuais, que se chamam “intelectos”, mas, por causadisto, não se segue que o intelecto seja uma força material, como foi mostradoacima.» De Unit. Intel., c.5, §249.

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O intelecto humano é individuado segundo o mesmo princípio de individuação

dos compostos de matéria e forma: a matéria designada pela quantidade. Voltaremos a

este princípio tomista, a propósito da questão da individuação, na medida em que esta

é indissociável do valor do ser humano no pensamento medieval.

4. A mente e o conhecimento de si

A mente é, actualmente, um tema central da reflexão filosófica e do conhecimento

científico acerca do homem, mas nem por isso é um tema novo; é um tema tão antigo

quão antigas são as interrogações do ser humano acerca de si próprio. Na filosofia

grega clássica, encontra-se abundante e subtil reflexão em torno do tema da alma, e a

filosofia latina da Idade Média permanece fiel a essa herança, mesmo antes da

proeminência do tema do sujeito na filosofia moderna. O interesse pelo tema da mente

é de qualquer modo uma linha de continuidade na história da filosofia e um forte

indício da tendência antropocêntrica do pensamento ocidental. Na filosofia grega

clássica, esboçam-se já as duas grandes hipóteses, entre as quais oscilará toda a

filosofia posterior, relativamente à mente e ao conhecimento de si: ou a mente se

conhece directamente a si mesma, sem a mediação do conhecimento do mundo

exterior; ou, pelo contrário, a mente não se conhece senão indirectamente, por

mediação do conhecimento do mundo exterior. Não é difícil perscrutar a primeira

hipótese em Platão, bem como a segunda em Aristóteles. Na filosofia medieval, as

duas hipóteses são claramente postuladas e argumentadas: a primeira, por Agostinho;

a segunda, por Tomás de Aquino.

4.1. Uma questão central: Agostinho

A actualidade do tema da mente não pode deixar de nos chamar de novo a atenção

para a importância de Agostinho na história da filosofia. Desde cedo, Agostinho

elegera a alma e Deus, como os motivos principais e, portanto, os temas centrais do

seu pensamento filosófico. Deus, por causa do enigma da origem e da unidade de

todas as coisas, ou por causa do ideal de uma sabedoria imortal, capaz de satisfazer o

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desejo humano de uma felicidade indefectível. E a alma: porquê? Desde cedo,

Agostinho manifestara a urgência de uma mudança de atitude, a saber, de uma

viragem da atenção do exterior para o interior. Essa viragem impunha-se, antes de

mais, por exigência da compreensão da unidade do mundo exterior, unidade essa, que

não é acessível aos sentidos. Por sua vez, a compreensão da unidade do mundo

exterior conduzia a inferir a existência superior de um princípio divino. A alma, o

interior, tornava-se então, cada vez mais, o elo privilegiado de ligação quer ao mundo

quer a Deus, ao exterior e ao superior. Daí o centramento da alma na filosofia de

Agostinho. Entretanto, a fim de desempenhar essa função de ligar o homem ao mundo

e a Deus, a alma não podia ser um elo frágil ou inseguro, devia antes constituir um

ponto de partida seguro. Daí o empenhamento de Agostinho, reiterado em múltiplos

dos seus textos, em trazer à evidência a irrecusabilidade ou a necessidade de certo

conhecimento de si.

4.1.1. As evidências do conhecimento de si

A evidência de vidaSei, logo vivo. Sei algo, logo sei que vivo. Se sei algo, então é porque vivo. Estas

são formulações possíveis da primeira evidência do conhecimento de si, em

Agostinho, a da condição de viver, a partir da experiência pessoal de saber algo: esta

experiência é condição suficiente de viver e viver é condição necessária de saber.

Não pode haver uma afirmação pessoal de saber sem a condição de viver. Esta

evidência de vida, a partir de uma afirmação pessoal de saber, emerge nas obras de

Agostinho, a vários propósitos.

Desde logo, como argumento contra o cepticismo: «Mas como não se perturbariaele [o académico], se nada disso [que não tenha sinais comuns com o falso] pode serencontrado, e se nada a não ser isso pode ser percebido? Se assim é, seria preferíveldizer que ao homem não compete a sabedoria do que [admitir] que o sábio não saibaporque vive, não saiba de que modo vive, não saiba se vive, e, por fim, nada de maisperverso, delirante e insano se pode dizer do que isto: ser sábio e, simultaneamente,ignorar a sabedoria.» Contra Academicos III, 9, 1962.

62 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 4, Paris, Desclée de Brouwer, 1948,p.148.

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Também como ponto de partida para uma reflexão antropológica: «Agostinho.Parece-vos evidente que somos compostos de uma alma e de um corpo? – Comotodos concordaram, excepto Navígio, que declarou ignorar esse assunto, eu disse-lhe:– Não sabes nada, absolutamente nada, ou devemos considerar um tal assunto entreas coisas que desconheces? – Não acho, disse ele, que desconheço tudo. – Podesdizer-nos alguma coisa que conheças? – Posso. – Di-lo então, se não te importas. – Eporque hesitava, perguntei-lhe: – Sabes, ao menos, que vives? – Sei. – Logo, sabesque tens vida, uma vez que ninguém pode viver sem vida. – Isso também eu sei,respondeu. – Sabes igualmente que tens um corpo? – Concordou. – Já sabes,portanto, que és composto de um corpo e de uma vida.» De Beata Vita 2, 763.

Também como ponto de partida para uma reflexão ética: «Agostinho. Vejamosagora de que modo o homem em si mesmo está perfeitamente ordenado. Na verdade,da associação dos homens por uma lei, resulta o povo, lei essa, que é, como se disse,a lei temporal. Diz-me então se é perfeitamente certo para ti que tu vives (dic mihiutrum certissimum tibi sit vivere te). – Evódio. Que poderia eu responder de maiscerto do que isso? – Ag. E podes discernir que uma coisa é viver e outra conhecerque se vive? – Ev. Sei certamente que ninguém conhece que vive senão vivendo, masignoro se todo o vivente conhece que vive.» De Libero Arbitrio I, 7, 1664.

A evidência de existência e de pensamentoSei, logo existo; sei, logo penso. Sei algo, logo sei que existo; sei algo, logo sei

que penso. Estas são formulações possíveis de outra evidência do conhecimento de

si, em Agostinho, a das condições de existir e de pensar, a partir da experiência

pessoal de saber algo: esta experiência é condição suficiente de existir e de pensar,

bem como existir e pensar são condições necessárias de saber. Não pode haver

afirmação pessoal de saber, sem as condições de existir e de pensar.

Agostinho aplica esta evidência de existência e de pensamento, a partir de uma

afirmação pessoal de saber, como ponto de partida de uma argumentação a favor da

imortalidade da alma:

«Razão. Tu que queres conhecer-te, sabes que existes? – Agostinho. Sei. – R.Donde sabes? – Ag. Não sei. – R. Sentes que [és um ser] simples ou composto? – Ag.Não sei. – R. Sabes que te moves? – Ag. Não sei. – R. Sabes que pensas? – Ag. Sei. –R. Portanto, é verdade que tu pensas. – Ag. É verdade. – R. Sabes que és imortal? –Ag. Não sei. – R. De tudo aquilo que disseste não saber, o que é que preferes saberprimeiro? – Ag. Se sou imortal.» Soliloquia II, 1, 1.

63 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 4, Paris, Desclée de Brouwer, 1948,pp.232-234.64 Texto do CC 29, rev. e cor. em Bibliothèque Augustinienne 3, Paris, Desclée de Brouwer, 1976,p.220.

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A evidência de existência, de vida e de inteligênciaEngano-me, logo existo. Engano-me, logo vivo. Estas são formulações possíveis

de outra evidência do conhecimento de si, em Agostinho, a das condições de existir e

de viver, a partir da experiência pessoal de enganar-se: esta experiência é condição

suficiente de existir e de viver, bem como a existência e a vida são condições

necessárias para haver engano. Não pode haver reconhecimento pessoal de erro, sem

as condições de existir e de viver.

Agostinho insere esta evidência de existência e de vida, a partir de uma

retratação pessoal de erro, no âmbito de uma argumentação a favor da existência de

Deus e do valor da vontade livre:

«Agostinho. Se estiveres de acordo, investiguemos por esta ordem: primeiro, deque modo é manifesto que Deus existe? Depois, se dele provêm todos os bens, namedida em que são bens; por fim, se, entre esses bens, deve incluir-se a vontadelivre. Esclarecidas estas questões, tornar-se-á claro, como julgo, se [a vontade livre]terá sido dada ao homem correctamente. Para começarmos pelo que é maismanifesto, pergunto-te, primeiramente, se tu mesmo existes. Receias tu, porventura,enganares-te nesta questão, quando, se não existisses, de modo nenhum te poderiasenganar? – Evódio. Prefiro que passes adiante. – Ag. Portanto, uma vez que émanifesto que tu existes, nem isso seria manifesto para ti de outro modo, se nãovivesses, também isto é manifesto, que tu vives. Tens inteligência de que estas duascoisas são perfeitamente verdadeiras? – Ev. Tenho, sem dúvida. – Ag. Portanto,também é manifesta uma terceira, isto é, que tu tens inteligência. – Ev. – Émanifesto.» De Libero Arbitrio II, 3, 7.

A evidência de existência e de auto-conhecimentoEngano-me, logo existo. Engano-me, logo conheço-me. Estas são formulações

possíveis de outra evidência do conhecimento de si em Agostinho, a das condições da

existência e do auto-conhecimento, a partir da experiência pessoal de enganar-se: esta

experiência é condição suficiente de existir e de conhecer-se, bem como existir e

conhecer-se são condição necessária de enganar-se. Não pode haver reconhecimento

pessoal de erro, sem as condições de existir e de conhecer-se. A própria evidência de

existência é também evidência de auto-conhecimento, porquanto a existência é um

dos dados irrecusáveis do auto-conhecimento.

Agostinho insere esta evidência de existência e de auto-conhecimento, a partir de

uma retratação pessoal de erro, no âmbito de uma reflexão sobre a imagem de Deus

trino no ser humano:

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«Efectivamente, somos e sabemos que somos e amamos esse ser e esse conhecer.E nestas três coisas que acabo de referir nenhuma falsidade parecida com a verdadenos perturba. De facto, não as atingimos, como às realidades exteriores, por qualquersentido corporal, como as cores pela vista, os sons pelo ouvido, os perfumes peloolfacto, os sabores pelo gosto, o duro e o mole pelo tacto. Destas coisas sensíveistemos também imagens que muito se lhes assemelham, mas são corporais:consideramo-las no pensamento, conservamo-las na memória e somos por elasincitados a desejarmos as próprias coisas; mas sem qualquer imagem enganosa dafantasia ou da imaginação, é coisa absolutamente certa que sou, que conheço e queamo. Nestas verdades nenhum receio tenho dos argumentos dos académicos quedizem: que será se te enganares? Pois se me enganar, existo. Realmente, quem nãoexiste de modo nenhum se pode enganar. Por isso, se me engano é porque existo.Porque, portanto, existo se me engano, como poderei enganar-me sobre se existo,quando é certo que existo quando me engano? Por conseguinte, como seria eu quemse enganaria, mesmo que me engane não há dúvida de que não me engano nisto: queconheço que existo. Mas a consequência é que não me engano mesmo nisto: queconheço que me conheço. De facto, assim como conheço que existo, assim tambémconheço isso mesmo: que me conheço.» De Civitate Dei XI, 2665.

As evidências de vida, de pensamento e de múltiplos actos mentaisDuvido, logo vivo. Duvido, logo recordo (donde provém a dúvida). Duvido, logo

tenho inteligência (da dúvida). Duvido, logo quero (ter certeza). Duvido, logo penso.

Duvido, logo sei que não sei. Duvido, logo sei que não devo conceder

inconsideradamente. Estas são formulações muito próximas das múltiplas evidências

do conhecimento de si, em Agostinho, que acompanham inseparavelmente a

experiência pessoal de duvidar: esta experiência é condição suficiente de viver e de

múltiplos actos mentais, que a norteiam, como recordar, inteligir, querer, pensar e

saber, bem como todos estes actos são condição necessária do acto racional de

duvidar. Não pode haver reconhecimento pessoal de dúvida, sem a condição de viver

e dos todos os actos mentais precedentes ou concomitantes.

Agostinho insere estas evidências de vida e de múltiplos actos da vida mental, a

partir da experiência pessoal de duvidar, em De Trinitate X, o livro que expõe a sua

análise mais subtil e apurada do tema da mente e do conhecimento de si:

«Mas porque se trata da natureza da mente, retiremos da nossa consideraçãotodos os conhecimentos que provêm do exterior através dos sentidos do corpo, eatendamos mais diligentemente àquilo que estabelecemos: que todas as mentes seconhecem a si mesmas com certeza. Os homens duvidaram se pertence ao ar o poderde viver, de recordar, de inteligir, de querer, de pensar, de saber, de julgar; ou sepertence ao fogo, ao cérebro, ao sangue, aos átomos, ou a não sei que quinto corpopara além dos habituais quatro elementos; ou se é a conexão ou a combinação da65 Op. cit. Vol. II, pp.[1051-1052].

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nossa própria carne que consegue efectuar todas essas operações: esforçava-se um porafirmar uma coisa, eforçava-se outro por afirmar outra coisa. No entanto, quemduvida de que vive, de que recorda, de que tem inteligência, de que quer, de quepensa, de que sabe, e de que julga? Certamente que, se duvida, vive; se duvida dondeprovém a sua dúvida, recorda; se duvida, tem inteligência de que duvida; se duvida,quer ter a certeza; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, sabe queé preciso não conceder inconsideradamente. Portanto, quem duvida de outra coisa,não deve duvidar de todas estas, que se assim não fossem, de coisa nenhuma poderiaduvidar.» De Trinitate X, 10, 14.

Saliente-se que os diversos actos mentais discriminados integram aquilo que

Agostinho designa propriamente por “mente” (mens), a alma racional e superior do

homem, também permutável com a noção augustiniana de homem interior (interior

homo). Agostinho considera ainda outras duas acepções de alma: anima, conotando-a,

sobretudo, com o nível da vida sensitiva (traduz-se habitualmente por “alma”); e

animus, mediando entre a alma sensitiva (anima) e a alma racional (mens), e

incluindo, por isso, funções de ambas (traduz-se habitualmente por “espírito”).

A consciência de sentirVejo, logo sinto que vejo. Oiço, logo sinto que oiço. Cheiro, logo sinto que

cheiro. Palpo, logo sinto que palpo. Saboreio, logo sinto que saboreio. Há um sentir

do sentir, um sentir do que se sente pelos cinco sentidos, um sentir que acompanha o

sentir dos cinco sentidos, e que repercute interiormente o sentir dos sentidos

exteriores. A este sentir interior do sentir exterior, podemos nós chamar “consciência

de sentir”. Agostinho atribui esta consciência de sentir a um sentido interior, distinto

dos sentidos exteriores:

«Agostinho. Julgo ser também manifesto que o sentido interior não sente apenasos dados que recebe dos cinco sentidos corporais, mas sente também os própriossentidos. De facto, um animal não se moveria para alcançar algo ou para fugir, se nãosentisse que sente, não para saber, pois isso é próprio da razão, mas apenas para semover, o que não sente por algum dos cinco sentidos. Se isto ainda não é claro,tornar-se-á claro, se reparares no que acontece por exemplo num sentido, como avisão. Na verdade, de modo nenhum [um animal] poderia abrir um olho e movê-lopara apreender o que deseja ver, se não sentisse que o não vê de olho fechado ouorientado noutro sentido. Se sente que não vê enquanto não vê, necessário é tambémque sinta que vê enquanto vê, pois o facto de, pelo mesmo desejo, não mover o olhar,quando vê, e mover o olhar, quando não vê, indica que sente um e outro caso.» DeLibero Arbitrio II, 4, 10.

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A consciência de sentir é, assim, uma função concomitante do movimento

intencional do animal. A necessidade de consciência impõe-se, desde logo, ao nível

da vida sensitiva.

A consciência de duvidar e de inteligirDuvido, logo não duvido de que duvido. Tenho inteligência de algo (intelligo),

logo tenho inteligência de inteligir. Há uma certeza de duvidar, quando se duvida; há

uma inteligência de inteligir, que acompanha este acto: há, em suma, uma

consciência que acompanha a dúvida e qualquer acto de inteligência. Tal é o

desdobramento de consciência, que comportam propriamente os actos mentais, e que

Agostinho atribui à luz da mente:

«Todo aquele que tem inteligência de que duvida, tem inteligência de algoverdadeiro, e tem certeza disto de que tem inteligência. Portanto, tem certeza de algoverdadeiro. Por conseguinte, todo aquele que duvida se a verdade existe tem em simesmo algo verdadeiro por causa do qual não duvida. De facto, nada pode serverdadeiro senão pela verdade. Não deve, pois, duvidar da verdade, aquele que pôdeduvidar por alguma razão. Aí onde se vê isto, há uma luz sem espaço de lugar outempo, e sem imaginação espacial alguma.» De vera religione 39, 7366; «Tudo aquiloque acabei de dizer acerca desta luz da mente, não foi senão por esta mesma luz quese tornou manifesto. Através dela, tenho inteligência de que é verdadeiro aquilo quefoi dito, e, através dela, tenho inteligência também de o inteligir. E, uma e outra vez,quando alguém tem inteligência de inteligir algo, e tem inteligência disso mesmo,tenho inteligência de que continua até ao infinito, e de que aqui não há espaço devolume ou de movimento. Tenho também inteligência de que não posso inteligir, senão viver; e com maior certeza tenho inteligência de que me torno mais vivo,inteligindo.» De Vera Religione 49, 97.

A consciência intencional da vontadeQuero, logo quero o meu querer, e não posso deixar de querer o meu querer, seja

para querer bem ou mal. Agostinho sugere tal desdobramento, ao declarar o directo

acesso da vontade a si mesma, isto é, o pleno poder da vontade sobre si mesma, a

propósito e em defesa do perfeito alcance da boa vontade:

«Vês agora, portanto, que está no poder da nossa vontade que fruamos oucareçamos de tão grande e verdadeiro bem. Na verdade, o que é que está tão situadona vontade quanto a própria vontade? Esta, quem a tem boa, tem certamente aquiloque deve ser anteposto de longe a todos os reinos da terra e a todos os prazeres do

66 Texto da ed. beneditina, reprod. em Bibliothèque Augustinienne 8, Paris, Desclée de Brouwer, 1951,p.130.

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corpo. Quem a não tem, carece realmente daquilo que sobreleva todos os bens quenão estão em nosso poder, e que só a vontade por si mesma lhe daria.» De LiberoArbitrio I, 12, 26.

A consciência da memóriaRecordo, logo recordo de me recordar. Recordo, logo recordo de me esquecer.

Há memória de recordar, bem como há memória de esquecer, isto é, há também uma

consciência inerentemente associada aos actos de memória, como Agostinho

evidencia no âmbito das suas análises dos recônditos da memória:

«E, quando nomeio o esquecimento e, do mesmo modo, reconheço o quenomeio, como o reconheceria, se não me lembrasse dele? Não me refiro ao som destapalavra em si mesmo, mas à coisa que ela significa; se eu me tivesse esquecido dessacoisa, sem dúvida não poderia reconhecer a que equivalia aquele som. Porconseguinte, quando me lembro da memória, é a própria memória que por si mesma asi mesma está presente; quando, porém, me lembro do esquecimento, não só amemória está presente mas também o esquecimento: a memória, com que me lembro;o esquecimento, de que me lembro.» Confessionum X, 16, 2467.

4.1.2. O mundo da memória e o tempo interior

A memória e o tempo são dois temas centrais da filosofia da mente, em

Agostinho, através dos quais o autor das Confissões aprofunda a análise dos dados do

conhecimento de si. Propomos, por isso, um roteiro de leituras seleccionadas e

anotadas dessa obra célebre, em torno daqueles dois temas nucleares da filosofia

augustiniana.

Rumo às planícies e aos vastos palácios da memória (Conf. X, 8, 12)

«Grande é o poder da memória, um não sei quê de horrendo, ó meu Deus, umaprofunda e infinita multiplicidade; e isto é o espírito (et hoc animus est), isto sou eumesmo. Que sou eu então, meu Deus? Que natureza sou? Uma vida multiforme,multímoda e extraordinariamente ampla. Eis-me nas planícies da minha memória, nosantros e cavernas inumeráveis e inumeravelmente cheios das espécies de inumeráveiscoisas, quer por imagens, como as de todos os corpos, quer pela presença, como a dasartes, quer por não sei que noções e observações, como as das impressões do espírito,as quais, ainda quando o espírito as não sofre, a memória guarda, dado que está noespírito tudo o que está na memória.» Conf. X, 17, 2668.

67 Op. cit., p.471.68 Op. cit., pp.473-475.

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Questionando-se a si mesmo, Agostinho interroga-se acerca da sua natureza, e

procura-a no seu espírito, através da memória. Em vez, porém, de encontrar um

domínio claramente estruturado e com fronteiras definidas, descobre «uma profunda e

infinita multiplicidade». Tal a descoberta que desafia o seu esforço de análise e de

organização.

Distribuindo os dados da memória, é possível discernir:

A) Uma memória de imagens dos sensíveis: «Contudo, não são as próprias coisasque entram, mas sim as imagens das coisas, percebidas pelos sentidos, que ali estão àdisposição do pensamento que as recorda.» Conf. X, 8, 1369.

B) Uma memória de emoções, ou melhor, de noções sublimadas das emoções: «Amesma memória também encerra as impressões do meu espírito, não do mesmo modocomo as tem o próprio espírito, quando as sofre, mas de outro modo muito diferente,como é próprio da força da memória. Com efeito, sem estar alegre, recordo-me de terestado alegre e, sem estar triste, recordo a minha tristeza passada e, sem nada temer,recordo que algumas vezes tive medo e, sem nada cobiçar, recordo-me da minhaantiga cobiça. Pelo contrário, também algumas vezes, estando alegre, recordo-me daminha tristeza passada e, estando triste, da alegria.» Conf. X, 14, 2170; «Mas eis queeu tiro da memória a afirmação de que são quatro as perturbações da alma, o desejo, aalegria, o medo, a tristeza, e o que quer que acerca delas puder dissertar, dividindo edefinindo cada uma segundo as espécies dos respectivos géneros; na memóriaencontro, e aí vou buscar, o que digo, sem, no entanto, me perturbar com nenhumadessas perturbações, quando as evoco, trazendo-as à memória; e estavam lá antes queeu as recordasse e voltasse ao contacto com elas; por isso, puderam de lá ser tiradas,mediante a recordação. Talvez portanto, assim como a comida é tirada do estômago,pela ruminação, assim também estas coisas são tiradas da memória, pela recordação.Então porque é que quem as discute, isto é, quem as recorda, não sente, na boca dopensamento, a doçura da alegria e a amargura da tristeza? Porventura as duassituações são dissemelhantes por não serem semelhantes sob todos os aspectos? Naverdade, quem, de livre vontade, falaria de tais coisas, se, todas as vezes quenomeamos a tristeza ou o medo, outras tantas fôssemos obrigados a sentir tristeza emedo? E, todavia, não falaríamos delas, se não encontrássemos na nossa memória,não apenas os sons das palavras, segundo as imagens gravadas pelos sentidos docorpo, mas também as noções dessas mesmas coisas (sed etiam rerum ipsarumnotiones), que não recebemos por nenhuma porta da carne, mas que o nosso espírito,sentindo-as pela experiência das suas paixões, confiou à memória, ou a própriamemória reteve, sem que estas coisas lhe tenham sido confiadas.» Conf. X, 14, 2271.

Das nossas emoções passadas, a memória guarda noções (notiones), e são estas

noções que o acto de recordar torna presentes à consciência. Importa sublinhar aqui o

69 Op. cit., p.455.70 Op. cit., p.465-467.71 Op. cit., 467-469.

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poder que Agostinho descobre nestas noções: o poder de neutralizar a força das

emoções passadas, de modo a libertar a mente do domínio delas, sobretudo, quando

elas são demasiado dolorosas para serem de novo suportadas. O valor terapêutico

desse poder neutralizador, aqui atribuído à memória, é o viria a ser reconhecido e

estudado pela psicanálise muitos séculos mais tarde. A análise de Agostinho revela-se

aqui inegavelmente antecipadora.

A memória nocional das emoções também permite compreender o desejo

universal de vida feliz, que Agostinho, desde cedo, assume como motivação central

da sua filosofia. Todas as pessoas desejam ser felizes. Se o desejam, porém, é porque

ainda o não são. Todavia, como desejar o que se desconhece totalmente? Agostinho

reitera o paradoxo da procura, a propósito do desejo da felicidade. A solução é dada

pela memória das noções das alegrias passadas: essas noções constituem o

conhecimento que está na base do desejo de uma felicidade ainda desconhecida (Conf.

X, 20, 29 – 21, 31).

C) Uma memória de razões, ou de inteligíveis: «Aqui estão também todas aquelasque, tomadas das artes liberais, ainda não se perderam, como que escondidas numinterior, que não é lugar; e não levo comigo as suas imagens, mas as próprias coisas(nec eorum imagines, sed res ipsas gero).» Conf. X, 9, 1672; «Mas, porém, quandoouço dizer que há três espécies de questões: “se uma coisa é; o que é; e como é” (ansit, quid sit, quale sit), relembro as imagens dos sons de que se compõem estaspalavras e sei que elas passaram pelo ar, com ruído, e já não existem. Mas as própriascoisas que são significadas por esses sons não as atingi por nenhum sentido do corpo,nem as vi em lugar algum, fora do meu espírito, e guardei no fundo da memória nãoas suas imagens, mas as próprias coisas (non imagines earum, sed ipsas).» Conf. X,10, 1773; «De igual modo a memória contém as inumeráveis noções e leis dosnúmeros e dimensões, nenhuma das quais foi impressa pelos sentidos do corpo,porque elas mesmas não têm cor, nem som, nem cheiro, nem foram saboreadas, nemtocadas.» Conf. X, 12, 1974; «Nomeio os números de que nos servimos para fazercálculos; e logo estão presentes na minha memória não as suas imagens, mas elesmesmos (non imagines eorum, sed ipsi).» Conf. X, 15, 2375.

Entre as razões, ou coisas inteligíveis, que a memória guarda, encontram-se os

números e as suas leis, os resultados das ciências (artes liberais), e também as

questões metafísicas da existência (an sit), da essência (quid sit) e da qualidade (quale

sit) do que advém como objecto de pensamento. Só que estas razões não residem na

72 Op. cit., p.459.73 Op. cit., p.461.74 Op. cit., p.463.75 Op. cit., p.469.

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memória por procuração de imagens, como os sensíveis, ou de noções, como as

emoções. Tais razões habitam directamente na memória. Mas como foram aí parar?

Como foi adquirido o conhecimento delas? Assim se interroga Agostinho:

«Donde e por onde entraram na minha memória? Não sei como. Pois, quando asaprendi, não dei crédito ao coração de outra pessoa, mas reconheci-as no meu, eadmiti que eram verdadeiras e confiei-lhas, como que depositando-as onde pudesse irbuscá-las quando quisesse. Portanto, estavam lá, e já antes de as ter aprendido, masnão estavam na memória. Quando, pois, ou por que motivo, ao serem proferidas, asreconheci e disse: “Sim, é verdade”? A não ser que o fizesse porque já estavam naminha memória, mas tão afastadas e escondidas, como que nas concavidades maisrecônditas, de tal maneira que, se de lá não fossem arrancadas, por sugestão dealguém, talvez eu não pudesse pensar nelas.» Conf. X, 10, 1776.

Parece que não se encontra instância mais primitiva do que a memória. Aprender

será então recordar, mas também pensar, isto é, cogitar:

«Por conseguinte, verificamos que aprender essas tais coisas, cujas imagens nãoabsorvemos pelos sentidos, mas vemos, tal como são, dentro de nós mesmos, em simesmas, sem imagens, não é outra coisa senão como que recolher (conligere),pensando (cogitando), aquilo que a memória, indistinta e desordenadamente,continha, e fazer com que, reparando nelas, as coisas, que estão como que colocadas àdisposição na própria memória, onde antes, dispersas e esquecidas, estavam ocultas,ocorram facilmente à atenção já familiar. E quantas coisas desta natureza a memóriaencerra, coisas que já foram encontradas e, tal como disse, colocadas à disposição, ese diz que nós aprendemos e conhecemos! E se eu deixar de as recordar (recolere) porpequenos espaços de tempo, de tal maneira voltam a submergir e a deslizar para osrecônditos mais afastados, que de novo, como se fossem novas, têm de ser arrancadas,pensando (excogitando), do mesmo lugar – pois não é outro o seu espaço – e reunidasde novo (et cogenda rursus), para que possam ser conhecidas, isto é, recolhidas comoque de uma espécie de dispersão (ex quadam dispersione conligenda): por isso se dizque a palavra cogitare deriva de cogere. Com efeito, cogo está para cogito como agopara agito e facio para factito. Contudo, o espírito (animus) reivindicou, como própriade si, esta palavra, de tal maneira que cogitari se aplica propriamente àquilo que serecolhe (conligitur), isto é, junta (cogitur), não noutro lugar, mas sim no espírito.»Conf. X, 11, 1877.

Cogitar é coligir, juntar, associar o que estava disperso na memória. Aquilo que o

pensamento, como cogitação, acrescenta à memória, é o poder de associação. Este é o

poder criativo de pensar.

76 Op. cit., p.461.77 Op. cit., p.463.

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Mas será que, entre as coisas inteligíveis que se aprendem cogitando, isto é,

recolhendo-as da memória, se encontra o próprio Deus? Agostinho interroga-se

expressivamente acerca da origem do seu humano conhecimento de Deus:

«Se te encontrar fora da minha memória, estou esquecido de ti. E, se não estoulembrado de ti, como é que te encontrarei?» Conf. X, 17, 2678; «Eis quanto mealonguei na minha memória, procurando-te, Senhor, e não te encontrei fora dela. Enão encontrei nada a teu respeito que não tivesse recordado, desde que te aprendi. Naverdade, desde que te aprendi, não me esqueci de ti. Com efeito, onde encontrei aVerdade, aí encontrei o meu Deus, a própria Verdade (Jo. 14, 6; Sl. 30, 8) que nãoesqueci desde que a aprendi. Por isso, desde que te aprendi, permaneces na minhamemória e aí te encontro, quando me recordo de ti e em ti me deleito.» Conf. X, 24,3579.

Assim, parece que, também na origem do conhecimento de Deus, não se encontra

instância mais primitiva do que a memória. A não ser, porventura, a Verdade

omnipresente:

«Então, onde é que eu te encontrei para te aprender? Com efeito, ainda nãoestavas na minha memória antes de eu te aprender. Onde é que, então, eu te encontreipara te aprender, senão em ti, acima de mim? E não há lugar em parte alguma, eafastamo-nos e aproximamo-nos, e não há lugar em parte alguma. Ó Verdade, emtoda a parte estás à disposição de todos os que te consultam, e respondes ao mesmotempo a todos os que te consultam, ainda que sobre coisas diversas.» Conf. X, 26,3780.

Haverá, assim, uma forma de aprender Deus, mais primitiva do que a recordação,

e que Agostinho descreve em termos muito similares aos que antes utilizara para

descrever a iluminação divina, nomeadamente, em De Magistro, onde se chama

«Verdade» à fonte da iluminação dos inteligíveis, que se dispõe à consulta racional.

Aqui também é a Verdade que está, para além da mente, omnipresentemente à

disposição de todos os que a consultam.

78 Op. cit., p.475.79 Op. cit., p.489.80 Op. cit., p.491.

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O tempo interior

A questão do tempo: «Que é, pois, o tempo? Quem o poderá explicar facilmente ecom brevidade? Quem poderá apreendê-lo, mesmo com o pensamento, para proferiruma palavra acerca dele? Que realidade mais familiar e conhecida do que o tempoevocamos na nossa conversação? E quando falamos dele, sem dúvidacompreendemos, e também compreendemos quando ouvimos alguém falar dele. Oque é, pois, o tempo? Se ninguém mo pergunta, sei o que é; mas se quero explicá-lo aquem mo pergunta, não sei: no entanto, digo com segurança que sei que, se nada sepassasse, não existiria o tempo passado, e, se nada adviesse, não existiria o tempofuturo, e, se nada existisse, não existiria o tempo presente.» Conf. XI, 14, 1781.

Há um conhecimento do tempo suposto na nossa aptidão de falar do tempo.

Quando falamos do tempo, falamos de algo que nos é muito familiar, não falamos de

algo que nos pareça estranho. No entanto, se quisermos explicar o que é o tempo, não

conseguimos. Que conhecimento é, então, esse que temos do tempo, que é tão

necessário à nossa capacidade de falar dele e, ao mesmo tempo, tão inexplicável?

O lugar do tempo: «Uma coisa é agora clara e transparente: não existem coisasfuturas nem passadas; nem se pode dizer com propriedade: há três tempos, o passado,o presente e o futuro; mas talvez se pudesse dizer com propriedade: há três tempos, opresente respeitante às coisas passadas, o presente respeitante às coisas presentes, opresente respeitante às coisas futuras. Existem na minha alma (in anima) estas trêsespécies de tempo e não as vejo em outro lugar: memória presente respeitante àscoisas passadas, visão presente respeitante às coisas presentes, expectação presenterespeitante às coisas futuras. Se me permitem dizê-lo, vejo e afirmo três tempos, sãotrês. Diga-se também: os tempos são três, passado, presente e futuro, tal comoabusivamente se costuma dizer; diga-se. Pela minha parte, eu não me importo, nemme oponho, nem critico, contanto que se entenda o que se diz: que não existe agoraaquilo que está para vir nem aquilo que passou. Poucas são as coisas que exprimimoscom propriedade, muitas as que referimos sem propriedade, mas entende-se o quequeremos dizer.» Conf. XI, 20, 2682.

Comecemos pelo fim: poucas são as coisas que dizemos propriamente; muitas, as

que dizemos impropriamente. Se assim é, é porque é fraca a adequação da linguagem

à realidade, o que poderá explicar-se pela diversidade de factores que intervêm na

formação e no uso das palavras (para além das coisas, a mente e a convenção), à luz

da filosofia augustiniana da linguagem.

Assim sendo, não é de estranhar que o tempo seja uma dessas coisas acerca das

quais nos exprimos impropriamente. Ora Agostinho distingue aqui entre um modo

81 Op. cit., pp.567-569.82 Op. cit., p.579.

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impróprio e dois modos menos impróprios ou mais próprios de falar do tempo. O

impróprio é o mais habitual e também o mais abreviado, e consiste em falar do tempo

dividido em três tempos autónomos: o passado, o presente e o futuro. Agostinho não

pretende eliminar este modo impróprio de falar do tempo, dado que a impropriedade

da expressão verbal não é um defeito pontual, facilmente reparável, mas é o caso mais

frequente, portanto, uma condição comum, em última análise, incontornável.

Agostinho pretende, sim, precisar verbalmente a inteligência adequada à realidade do

tempo, que deve ser associada a esse modo impróprio de falar do tempo.

Para esse efeito, distingue gradativamente dois modos menos impróprios de falar

do tempo dividido em três. Um deles consiste em reduzir os três a um só: o presente,

ou seja, o presente das coisas passadas, o das presentes e o das futuras. Porquê esta

redução? Porque o passado e o futuro não existem propriamente: o passado já não

existe e o futuro ainda não existe. Por isso, não se pode dizer propriamente que o

passado e o futuro são longos ou breves. Só o presente existe. Mas o presente não tem

senão uma existência instantânea, portanto, não tem duração (Conf. XI, 15, 18 – 19,

25). Por isso, em rigor, também não se pode dizer que o presente é longo ou breve, a

fim de se estender de algum modo às coisas passadas e às futuras. A redução dos três

tempos a três formas de presente é, pois, ainda uma maneira imprópria de falar do

tempo, a menos que se trate de três formas de presente na alma (in anima), o único

lugar onde o presente tem duração. Daí o terceiro modo, o menos impróprio, de falar

das três formas de presente: memória presente do passado, visão presente do presente

e expectação presente do futuro. Assim especifica, Agostinho, o sentido dos três

presentes há pouco discriminados, os quais correspondem a três funções mentais

distintas: recordar, ver e esperar. Estas três operações mentais é que produzem os três

presentes, que correspondem aos três tempos, que distingimos na língua corrente: é a

acção da memória que torna presente o passado; é o acto da visão que torna presente o

que está à vista; é a expectação que torna presente o futuro. Por conseguinte, é a alma

o lugar do tempo e é nela que se pode encontrar a duração do tempo.

O lugar onde se mede o tempo: «Em ti, ó meu espírito, meço os tempos. Não meperturbes, ou melhor: não te perturbes com a multidão das tuas impressões. Em ti,repito, meço os tempos. Meço a impressão que as coisas, ao passarem, gravam em ti eque em ti permanece quando elas tiverem passado, e meço-a, enquanto presente, e não

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as coisas que passaram, de forma a que essa impressão ficasse gravada; meço-a,quando meço os tempos.» Conf. XI, 27, 3683.

O lugar onde o tempo é breve ou longo: «Mas como diminui ou se extingue ofuturo que ainda não existe, ou como cresce o passado que já não existe, senão porqueno espírito (in animo), que faz isso (qui illud agit), há três operações: a expectativa, aatenção e a memória? Desta forma, aquilo que é objecto da expectativa passa, atravésdaquilo que é objecto da atenção, para aquilo que é objecto da memória. Porconseguinte, quem nega que as coisas futuras ainda não existem? E, todavia, já existeno espírito a expectativa das coisas futuras. E quem nega que as coisas passadas jánão existem? E, todavia, ainda existe no espírito a memória das coisas passadas. Equem nega que o tempo presente não tem extensão, porque passa num instante? E,todavia, perdura a atenção através da qual tende a estar ausente aquilo que estarápresente. Portanto, não é longo o tempo futuro, porque não existe, mas um futurolongo é uma longa espera do futuro, nem é longo o tempo passado, porque não existe,mas um passado longo é uma longa memória do passado.» Conf. XI, 28, 3784.

As três operações mentais que produzem o tempo prolongam no espírito (in

animo) a existência das coisas, conferindo-lhes duração. As coisas do mundo exterior,

que não existem senão no instante fugaz, recebem duração no espírito. Dar tempo de

duração às coisas: tal é a função do espírito no mundo das coisas mutáveis. E, na

medida em que constitui duração, o tempo interior do espírito medeia entre o presente

instantâneo e o presente eterno.

A distensão: «Mas, porque a tua misericórdia é mais preciosa do que a vida (Sl.62, 4), eis que a minha vida é uma dispersão (ecce distentio est vita mea), e a tuadextra acolheu-me (Sl. 17, 36; 62, 9) no meu Senhor, Filho do Homem, mediadorentre ti, que és uno (inter te unum), e nós, que somos muitos (1 Tim. 2, 5), em muitascoisas e através de muitas coisas, a fim de que eu alcance por meio daquele no qualtambém fui alcançado (Filip. 3, 12), e seja reconstituído a partir dos meus dias velhos,seguindo-te só a ti, esquecido do passado e não distraído, mas atraído, não paraaquelas coisas que hão-de vir e passar, mas para aquelas coisas que estão adiante demim, não com dispersão (non secundum distentionem), mas com atenção (sedsecundum intentionem), encaminho-me para a palma da celestial vocação (Filip. 3,12-14), onde ouvirei um cântico de louvor (Sl. 25, 7) e contemplarei as tuas delícias(Sl. 26, 4), que não vêm nem passam. Agora, porém, os meus anos decorrem entregemidos (Sl. 30, 11), e tu, minha consolação, Senhor, és meu Pai eterno; mas eudispersei-me nos tempos, cuja ordem ignoro, e os meus pensamentos, as entranhasmais íntimas da minha alma são dilaceradas por tumultuosas vicissitudes, até que,limpo e purificado pelo fogo do teu amor, me una a ti.» Conf. XI, 29, 3985.

83 Op. cit., p.525.84 Op. cit., p.597.85 Op. cit., p.599.

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Neste passo, cheio de evocações bíblicas e de ressonâncias morais, os tempos não

são já meio de duração das coisas no espírito, mas são meio de dispersão da vida

humana que aspira à unidade. A distensão temporal unifica de certo modo o mundo

das coisas, mas não a própria vida do espírito (animus). O seu desejo de unidade não

se satisfaz senão numa unidade supra-temporal, como seja a unidade de Deus.

Contudo, a negatividade do tempo, como dispersão da vida do espírito, não será

tanto uma característica essencial da temporalidade do espírito quanto o reflexo de

uma retratação ética do passado, em Agostinho. O filósofo da interioridade do tempo

não podia escapar à subjectividade do seu tempo interior.

4.1.3. O sentido do conhecimento de si

Retome-se, de novo, o paradoxo da procura, que se encontra implicado no amor

do saber: como é possível desejar e procurar saber o que se desconhece

completamente? Agostinho responde do seguinte modo:

«Portanto, todo o amor do espírito que estuda, isto é, que quer saber aquilo quenão sabe, não é o amor daquilo que não sabe, mas daquilo que sabe, por causa do qualquer saber aquilo que não sabe.» De Trin. X, 1, 3.

O amor do saber é, em rigor, o amor do conhecido, não directamente o do

desconhecido. É o amor do conhecido que justifica o desejo de conhecer o

desconhecido. Sem a condição prévia de algum conhecimento, não seria possível o

desejo de saber. Há, portanto, já saber em todo o desejo de saber.

Há, portanto, também já saber no desejo da mente saber de si mesma. Há já

conhecimento na mente que deseja e procura o conhecimento de si mesma. Que

conhecimento será esse, que possibilita o amor de conhecer-se, ou seja, o desejo do

conhecimento de si? Agostinho formula assim esta questão:

«O que é que ama, então, a mente (quid ergo amat mens), quando procuraansiosamente conhecer-se a si mesma (cum ardenter se ipsam quaerit ut noverit),enquanto é para si desconhecida? Eis que a mente procura conhecer-se a si mesma, eapaixona-se por esta procura. Ama portanto: mas o que ama? A si mesma? Como,uma vez que ainda não se conhece, nem pode alguém amar o que desconhece?» DeTrin. X, 3, 5.

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Quatro são as hipóteses acerca do conhecimento precedente e condicionante do

desejo do conhecimento de si, que Agostinho analisa criticamente: um

pré-conhecimento genérico da mente; um pré-conhecimento inteligível da bondade do

conhecimento de si; um pré-conhecimento do fim do conhecimento de si; e um

pré-conhecimento do próprio conhecer.

A primeira hipótese: será que a mente deseja conhecer-se a si mesma, a partir de

um conhecimento genérico do que seja a mente, adquirido através do conhecimento

de outras mentes?

«Será que a voz corrente prenuncia a sua forma [da mente], como costumamosouvir acerca das coisas ausentes? Talvez, portanto, não se ame, mas ama aquilo queimagina de si (sed quod de se fingit), que é, porventura, muito diferente do que ela é.Se a mente produz um símile de si, e como ama por isso esta imagem, ama-se antes dese conhecer. Uma vez que vê aquilo que lhe é semelhante, [a mente] conhece outrasmentes a partir das quais se imagina (novit igitur alias mentes ex quibus se fingat), econhece-se pelo próprio género (et genere ipso sibi nota est). Por que é, então, que amente não se conhece, quando conhece as outras mentes, uma vez que nada lhe podeser mais presente do que ela própria (cum se ipsa nihil sibi possit esse praesentius)?»De Trin. X, 3, 5.

Tal é a objecção de Agostinho, em forma de interrogação, a esta hipótese de um

pré-conhecimento genérico, na origem da procura do conhecimento de si. Se a mente

se conhece genericamente, e se imagina a si mesma, mediante o conhecimento de

outras mentes, não se compreende por que razão não se conhece a si mesma sem

mediação alguma, dado que nada está mais directamente ao seu alcance do que ela

própria.

A segunda hipótese: será que a mente deseja conhecer-se, a partir de um

conhecimento inteligível da bondade do conhecimento de si?

«Será que [a mente] vê na razão da verdade eterna quão belo é conhecer-se a simesma, e ama isso que vê, e procura realizá-lo em si? Porque, embora não seconheça a si mesma, conhece quão bom é conhecer-se. E isto é espantoso: nãoconhecer-se ainda e já conhecer quão belo seja conhecer-se.» De Trin. X, 3, 5.

Tal é a perplexidade decorrente da segunda solução, para a identificação do

pré-conhecimento que está na base da procura do conhecimento de si. Não se

compreende que o conhecimento da bondade e da beleza de conhecer-se preceda o

próprio conhecimento de si.

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A terceira hipótese: será que a mente deseja conhecer-se, a partir de um

conhecimento do fim que pode alcançar por via do conhecimento de si?

«Será que [a mente] vê um fim excelente, isto é, a sua tranquilidade e beatitude,através de uma oculta memória, que não a abandonou nas longíncuas paragens paraonde avançou, e crê não poder atingir esse mesmo fim senão conhecendo-se a simesma? Enquanto ama aquilo [o fim], procura isto [conhecer-se]; ama aquilo queconhece, por causa do qual procura o que desconhece. Mas por que pôde perdurarcom ela a memória da sua beatitude, e não a memória de si mesma, para que aquelaque quer atingir se conhecesse tanto quanto conhece aquilo que quer atingir?» DeTrin. X, 3, 5.

Tal é a interrogação que Agostinho formula como objecção à terceira solução para

a identificação do pré-conhecimento que possibilita a procura do conhecimento de si.

Não se compreende como é que a mente pode conservar uma memória do seu

almejado fim e não uma memória de si; não se compreende que o conhecimento do

fim da mente preceda o conhecimento de si.

A quarta hipótese: será que a mente deseja conhecer-se, a partir do conhecimento

do próprio conhecer?

«Será que, quando ama conhecer-se, ama, não a si mesma, que ainda não conhece,mas o próprio conhecer, e mais dificilmente suporta estar ausente do seu saber, peloqual quer compreender todas as coisas? Conhece aquilo que seja conhecer, eenquanto ama isto que conhece, também deseja conhecer-se. Onde conhece então oseu conhecer, se não se conhece? Conhece que conheceria outras coisas, mas não seconheceria a si mesma: daqui conhece o que seja conhecer. De que modo, então, sesabe ciente de algo, aquela que se desconhece a si mesma? De facto, não é outramente que ela sabe ciente, mas é ela própria. Sabe-se, por isso, a si mesma. Daí que,quando se procura para se conhecer, já se conhece procurando. Portanto, já seconhece.» De Trin. X, 3, 5.

Portanto, também a explicação do desejo do conhecimento de si, a partir do

conhecimento do conhecer, não satisfaz, pois não é admissível que a mente conheça

o que seja conhecer a não ser em si mesma. Tem que haver, por isso, na mente, já

algum conhecimento de si, como condição do conhecimento do próprio conhecer. O

conhecimento do conhecer não pode ser anterior ao auto-conhecimento da mente. A

mente não pode, pois, procurar conhecer-se senão conhecendo-se já previamente.

Uma vez que as quatro hipóteses analisadas não permitem compreender o

pré-conhecimento que provê à mente procurar conhecer-se, e dado que a mente já se

conhece de algum modo quando se procura, Agostinho averigua de seguida se esse

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conhecimento prévio pode ser um pré-conhecimento parcial da mente: será uma parte

da mente, que procura, e outra que é procurada? Não. É a mente, na sua totalidade,

que se procura, e é a mente, na sua totalidade, que é procurada, porque nada pode

estar mais presente à mente do que a própria mente na sua totalidade, como Agostinho

conclui do seguinte modo:

«Ela está toda presente a si, e não está aquilo que procura até aqui: falta aquiloque procura, não aquela que procura. Como ela na totalidade se procura, nada delafalta.» De Trin. X, 4, 6.

O conhecimento precedente e condicionante do desejo do auto-conhecimento da

mente é, portanto, já um pré-conhecimento de presença total de si a si.

Assim sendo, como entender de novo a antiga inscrição do oráculo de Delfos:

conhece-te a ti mesmo? Para quê esta exortação ao conhecimento de si?

«Para que é, então, que lhe foi preceituado que [a mente] se conheça a si mesma?

Creio que é para se pensar a si mesma, e viver segundo a sua natureza, isto é, para

desejar ser ordenada segundo a sua natureza, abaixo daquele ao qual deve deve estar

subordinada, acima de todas as coisas a que deve ser preferida; abaixo daquele pelo

qual deve ser regida, acima das coisas que deve reger.» De Trin. X, 5, 7.

Assim define, Agostinho, o sentido de conhecer-se: a partir de um conhecimento

de presença total de si a si, a mente deve pensar-se a si mesma, a fim de ordenar-se

entre o superior e o inferior, entre Deus e o mundo material. Por outras palavras, o

propósito de conhecer-se e pensar-se é, para a mente, situar-se no universo, o que

significa, para Agostinho, ocupar uma posição intermédia entre Deus e o mundo.

Expressa em relações de poder, essa posição intermédia é uma posição de poder sobre

o mundo, subordinada ao poder de Deus. Tal posição não pode deixar de ter

implicações religiosas, éticas e políticas, que Agostinha pretendia decerto que fossem

as melhores para a harmonia do universo.

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4.2. Uma questão derivada em Tomás de Aquino

A ordem das questões sobre o conhecimento, na Suma de Teologia I (Summa

Theologiae I, qq.84-89) acusa que a questão do auto-conhecimento da alma

intelectiva não é uma questão prioritária para Tomás de Aquino. A primeira questão

da série das questões sobre o conhecimento, perguntando como é que a alma unida ao

corpo conhece as coisas corporais (q.84), versa sobre o conhecimento do mundo

sensível, que é por onde começa o conhecimento humano. A segunda questão, que

trata do modo e da ordem de inteligir (q.85), descreve, como vimos, o conhecimento

intelectivo do mundo sensível, como um processo de abstracção. Segue-se uma

questão sobre os limites do conhecimento intelectivo do mundo sensível (q.86),

nomeadamente, com respeito ao singular, ao infinito em acto, ao contingente e ao

futuro. Só a seguir, tem lugar a questão de saber como é que a alma intelectiva se

conhece a si mesma e àquilo que está nela (q.87), isto é, a questão do modo e do teor

do conhecimento de si. Segue-se a questão do conhecimento humano das naturezas

imateriais (q.88) e, por fim, a questão do modo de conhecimento na alma separada

(q.89).

Esta série das questões do conhecimento, na Summa Theologiae I, coloca a

questão da alma intelectiva e do conhecimento de si, como uma questão derivada da

concepção do conhecimento intelectivo, como um processo de abstracção a partir das

imagens dos sensíveis. Em consequência dessa concepção do conhecimento, a alma

intelectiva não actualiza o conhecimento de si senão indirectamente, isto é, por

mediação do conhecimento intelectivo do mundo sensível.

Tomás de Aquino diverge, pois, de Agostinho, quanto à concepção do modo do

conhecimento de si: para o filósofo patrístico, a mente tem de si um conhecimento

directo; para o filósofo escolástico, alma intelectiva não pode ter de si senão um

conhecimento indirecto.

A relação entre Tomás de Aquino e Agostinho, na questão do conhecimento de

si, pode guiar-nos na análise dos artigos da q.87. Tomás de Aquino diverge de

Agostinho, nas suas respostas aos artigos 1 e 2, nos quais se pergunta,

respectivamente, se a alma intelectiva se conhece a si mesma pela sua essência (a.1),

e se o nosso intelecto conhece os hábitos da alma pela essência deles (a.2). Tomás de

Aquino converge, porém, com Agostinho, nas suas respostas aos artigos 3 e 4, nos

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quais se pergunta, respectivamente, se o intelecto conhece o próprio acto (a.3), e se o

intelecto conhece o acto da vontade (a.4).

Tomás de Aquino por Aristóteles contra Agostinho (aa.1-2)Será que a alma intelectiva se conhece pela sua essência? (a.1) Parece que sim.

Com efeito:

«1. De facto, Agostinho diz, no livro IX de De Trinitate [3, 3], que a mente seconhece a si mesma por si mesma, porque é incorpórea.»

Agostinho diz que a mente se conhece a si mesma como conhece todas as coisas

incorpóreas, a saber, não pelos sentidos, mas por si mesma, isto é, directamente.

Segundo Tomás de Aquino, conhecer-se a si mesma por si mesma (per seipsam) é o

mesmo que conhecer-se a si mesma pela sua essência (per suam essentiam).

Convocando Aristóteles contra a hipótese inicial, apoiada por Agostinho:

«Mas contra isto, está aquilo que se diz no livro III de De Anima [429 b 9-10], asaber, que o intelecto tem inteligência de si mesmo, assim como das outras [coisas].Ora [o intelecto] não obtém inteligência das outras [coisas] pelas respectivasessências (per essentias eorum), mas pelas respectivas semelhanças (per eorumsimilitudines). Portanto, o intelecto também não tem inteligência de si pela suaessência.»

Porquê? Resposta: «deve dizer-se que cada coisa é cognoscível conforme estáem acto (secundum quod est in actu), e não conforme está em potência (secundumquod est in potentia), como se diz no livro IX da Metafísica [1051 a 29]: assim algo éente e verdadeiro (aliquid est ens et verum), que cai sob o conhecimento (quod subcognitione cadit), conforme está em acto (prout actu est). E isto aparece de modomanifesto nas coisas sensíveis: de facto, a vista não percebe o colorado em potência,mas só o colorado em acto. E, de modo similar, é manifesto que o intelecto, enquantopode conhecer as coisas materiais, não conhece senão aquilo que está em acto. Daíque não conheça a matéria primeira senão segundo a proporção para a forma, comose diz no livro I da Física [191 a 8]. Daí que, nas substâncias imateriais, cada umadelas dispõe-se para ser inteligível pela sua essência, conforme se dispõe para ser emacto pela sua essência.» a.1, Resposta.

Só se conhece aquilo que está em acto, mas o intelecto humano, na ordem dos

intelectos, não é acto puro, como o intelecto divino, nem sequer acto incompleto,

como o intelecto angélico, mas apenas potência inteligente:

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«A essência de Deus, que é acto puro e perfeito, é inteligível segundo ela própriade modo simples e perfeito. Donde, não só Deus tem inteligência de si mesmo, pelasua essência, mas também de todas as coisas. A essência do anjo está no género dosinteligíveis, como acto, não porém como acto puro nem completo. Donde, não secompleta o seu inteligir pela sua essência: embora o anjo tenha de si inteligência pelasua essência, ele não pode conhecer todas as coisas através da sua essência, masconhece por si as outras coisas através das respectivas semelhanças. O intelectohumano está no género das coisas inteligíveis, apenas como ente em potência, talcomo a matéria primeira se encontra no género das coisas sensíveis. Daí chamar-sepossível (possibilis). Portanto, considerado na sua essência, é como uma potênciainteligente (potentia intelligens). Por conseguinte, de si mesmo tem o poder deinteligir, mas não de se inteligir, a não ser como algo que passa a acto.» a.1, Resposta.

Como potência inteligente, o intelecto humano não está sempre em acto, e, por

isso, não se conhece pela sua essência.

O intelecto humano também não conhece os seus hábitos (como a ciência e a

virtude) pela essência deles, pela mesma razão, isto é, porque os hábitos não estão

sempre em acto, dado que o hábito é um meio termo entre a pura potência e o acto

puro (a.2).

Pela mesma razão fundamentalmente, ou seja, por não ser acto completo ou

incompleto, o intelecto humano não se conhece a si mesmo pela sua essência, que é

uma potência inteligente, nem conhece os seus hábitos pela respectiva essência, que

está a meio caminho entre a potência e o acto.

Como se conhece, então, o intelecto a si mesmo? O intelecto conhece-se a si

mesmo pelo seu acto:

«Se o intelecto humano passasse a acto por participação das formas inteligíveisseparadas, como preconizaram os platónicos, o intelecto humano inteligir-se-ia a simesmo, por uma semelhante participação das coisas incorpóreas. Mas, porque éco-natural ao nosso intelecto, no estado da vida presente, estar voltado para as coisasmateriais e sensíveis, como foi dito antes (q.84, a.7), segue-se que o nosso intelectoobtenha inteligência de si mesmo, conforme passa a acto através das espéciesabstraídas dos sensíveis pela luz do intelecto agente, que é o acto dos própriosinteligíveis, e, mediante estes, do intelecto possível. Não é, portanto, pela suaessência, mas pelo seu acto, que o nosso intelecto se conhece.» a.1, Resposta.

Conhecer-se pelo seu acto, não pela sua essência, significa, para o intelecto

humano, conhecer-se através do conhecimento das coisas do mundo sensível, isto é,

pelas respectivas espécies inteligíveis, uma vez que o intelecto não passa a acto senão

por via da abstracção das espécies inteligíveis a partir das imagens dos sensíveis. O

acto intelectivo não se torna, então, presente ao intelecto senão por ocasião do

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conhecimento do mundo. Deste modo, o intelecto conhece-se pelo seu próprio acto,

mas por intermédio do conhecimento do mundo, portanto indirectamente.

Uma concessão parcial a Agostinho (aa.3-4)O intelecto conhece o seu próprio acto? (a.3) E o intelecto conhece o acto da

vontade? (a.4) Parece que não, mas contra quem defende que não, Tomás de Aquino

convoca de novo Agostinho, a fim de reaproximar-se dele:

«Mas contra isto, está o que Agostinho diz no livro X de De Trinitate (11, 18):tenho inteligência de inteligir.» a.3 (Sed contra).

«Mas contra isto, está o que Agostinho diz no livro X de De Trinitate (ibid.):tenho inteligência de querer.» a.4 (Sed contra).

De acordo com Agostinho:

«Deve dizer-se que, como já foi dito (aa.1, 2), cada coisa é conhecida conformeestá em acto. Ora a última perfeição do intelecto é a sua operação (operatio): não é,de facto, como uma acção que tende para outra coisa, que é a perfeição do operado,como a edificação do edifícado, mas permanece no operante, como a sua perfeição e oseu acto, como se diz no livro IX da Metafísica (1050 a 36). Disto é que se temprimeiro inteligência, sobre o intelecto, ou seja, do seu próprio inteligir.» a.3,Resposta.

Ou seja, Tomás de Aquino converge com Agostinho no reconhecimento de que o

intelecto conhece o seu próprio acto, o acto de inteligir, e considera mesmo que este é

o primeiro dado do conhecimento de si.

Mas como é que o intelecto conhece o seu próprio acto?

«Mas, acerca disto, diferentes intelectos dispõem-se de modos diferentes. Há umintelecto, o divino, que é o seu próprio inteligir. Assim, em Deus, inteligir o seuinteligir e inteligir a sua essência são o mesmo, porque a sua essência é o seu inteligir.Há outro intelecto, o angélico, que não é o seu inteligir, como foi dito antes (q.79,a.1), mas o primeiro objecto do seu inteligir é a sua essência. Donde, no anjo, emborainteligir o seu inteligir e inteligir a sua essência não sejam o mesmo, segundo a razão,ele tem a inteligência de ambos [do acto e da essência] simultaneamente e num sóacto: (…). Há ainda outro intelecto, o humano, que nem é o seu inteligir, nem a suaprópria essência é o primeiro objecto do seu inteligir, mas é algo extrínseco, a saber, anatureza da realidade material. Por isso, aquilo que o intelecto humano conheceprimeiro, é um objecto deste género; em segundo lugar, conhece o próprio acto peloqual conhece o objecto, e pelo acto o próprio intelecto se conhece, cuja perfeição é opróprio inteligir. Por isso, diz o Filósofo que o conhecimento dos objectos precede odos actos, e o dos actos, o das potências [De Anima II, 415 a 16].» a.3, Resposta.

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Ou seja, o intelecto conhece o seu acto em conformidade com o seu género. Ora,

há três géneros de intelecto: o intelecto divino (que não é propriamente um género,

mas distingue-se genericamente dos restantes); o intelecto angélico (substância

intelectual separada); e o intelecto humano (potência de uma alma unida a um corpo).

Diversamente dos intelectos divino e angélico, o intelecto humano não conhece o seu

acto e a sua essência num único acto; diversamente do intelecto angélico, o intelecto

humano não tem na sua própria essência o seu primeiro objecto de conhecimento. O

intelecto humano não só se conhece pelo seu próprio acto, isto é, pelo acto de

conhecer outras coisas, como conhece o seu próprio acto através de um objecto de

origem extrínseca, que é o seu primeiro objecto de conhecimento. Deste modo, o acto

de inteligir é aquilo que o intelecto conhece primeiro de si, mas não de tudo aquilo

que conhece, uma vez que o intelecto só conhece o seu próprio acto por mediação e

solicitação do conhecimento de algum objecto de origem extrínseca.

Em suma, para o intelecto humano, o conhecimento do acto intelectivo é

primeiro na ordem do conhecimento de si, mas o conhecimento de si não é primeiro

na ordem do conhecimento intelectivo. Nesta, é primeiro o conhecimento de algo

extrínseco.

O artigo 4, que questiona o conhecimento intelectivo do acto da vontade, inclui

também uma resposta afirmativa e não acrescenta novas razões, esclarecendo apenas

que a vontade não difere do intelecto, quanto ao sujeito inteligente: a alma intelectiva.

Os dois níveis de conhecimento de si: particular e universal (aa.1, 2, 4)Entretanto, para além do primeiro nível do conhecimento de si, o do

conhecimento dos actos, há outro nível mais mediato a considerar:

«E isto dá-se de dois modos: um é o modo particular (particulariter), segundo oqual Sócrates, ou Platão, percebe (percipit) que tem uma alma intelectiva (se habereanimam intellectivam), por perceber o seu inteligir (ex hoc quod percipit seintelligere); o outro modo é no universal (in universali), segundo o qualconsideramos a natureza da mente humana (naturam humanae mentis) a partir doacto do intelecto (ex actu intellectus). É verdade, porém, que o discernimento e oresultado desta cognição, pela qual conhecemos a natureza da alma, compete-nos anós conforme a luz do nosso intelecto é derivada da verdade divina, na qual estãocontidas as razões de todas as coisas, como foi dito antes (q.84, a.5). (…). – Há umadiferença entre estas duas cognições. Para a posse da primeira cognição da mente,basta a própria presença da mente, que é o princípio do acto a partir do qual a mente

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se percebe a si mesma. Mas, para a posse da segunda cognição, não basta a presençada mente, mas é requerida uma diligente e subtil inquirição. Daí que muitos ignorema natureza da alma, e que muitos também tenham errado acerca da natureza da alma.»a.1, Resposta.

Há, pois, dois níveis de conhecimento de si: um particular e outro universal; o

nível particular precede o universal, e não exige senão a presença da mente; o nível

universal do conhecimento de si é proporcional à capacidade do intelecto humano, e

exige cuidada investigação.

Há também dois níveis, um particular e outro universal, de conhecimento dos

hábitos da alma:

«Assim, portanto, enquanto o hábito fica aquém do acto perfeito, ele ficatambém aquém de ser cognoscível por si mesmo, mas é necessário que sejaconhecido pelo seu acto, quer quando alguém percebe que tem um hábito, porperceber que produz o acto próprio do hábito, quer quando alguém investiga anatureza e a razão do hábito, a partir da consideração do acto. O primeiroconhecimento do hábito dá-se pela própria presença do hábito: pelo facto de estarpresente, [o hábito] causa o acto, no qual imediatamente é percebido. O segundoconhecimento do hábito dá-se por cuidada investigação, como foi dito antes acercada mente (a.1).» a.2, Resposta.

Há também dois níveis, um particular e outro universal, de conhecimento

intelectivo da vontade:

«Aquilo que está inteligivelmente num [sujeito] inteligente, é, de formaconsequente, inteligido por este. Por isso, o acto da vontade é inteligido pelointelecto, quer enquanto alguém percebe o seu querer, quer enquanto alguém conhecea natureza deste acto, e, por consequência, a natureza do seu princípio, que é umhábito ou uma potência.» a.4, Resposta.

Em suma, o nível particular do conhecimento de si é o do conhecimento dos

actos do intelecto e da vontade. Como estes actos são sempre motivados por objectos

extrínsecos, o conhecimento desses actos é indirecto, e, por isso, não é imediato; é,

porém, menos mediato do que o nível universal do conhecimento de si. Este é um

conhecimento derivado daquele e constitui já teoria sobre sobre a natureza dos

princípios dos actos: potências, hábitos e a própria alma.

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O sentido do conhecimento de si, segundo Tomás de Aquino«Conhece-te a ti mesmo»: o que significa? Significa: conheça o intelecto a sua

essência (universal) pelos seus actos (particulares). Com efeito, dos dois níveis do

conhecimento de si, primeiro é o conhecimento particular dos actos e posterior é o

conhecimento universal da essência. Aquele conhecimento particular é, pois, o meio

de atingir este conhecimento universal, bem como este é o fim próximo daquele. A

antiga máxima é, então, uma exortação ao conhecimento de si, quanto à natureza do

intelecto e da alma intelectiva.

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CAPÍTULO III

QUESTÕES SOBRE A LIBERDADE

1. A liberdade do homem

1.1. O ser humano: natureza e indivíduo

1.1.1. Em defesa da bondade da natureza humana

1.1.1.1. Agostinho pós-maniqueu

Um dos aspectos do ser humano, que a filosofia medieval sublinhou e valorizou

foi o da própria natureza humana. A relevância das naturezas específicas era por certo

já uma herança da antiguidade clássica. Houve, no entanto, um momento decisivo

para a consolidação do valor da natureza, acerca do ser humano inclusive: foi a

controvérsia anti-maniqueia, em que Agostinho se empenhou pessoalmente. De

acordo com o maniqueísmo, o mal é um princípio substancial, que precede e excede a

responsabilidade humana, afectando desde a origem a própria natureza humana.

Ultrapassada a sua fase maniqueísta, que durara cerca de uma década, Agostinho,

como ex-maniqueu, não podia deixar de lidar com a questão da origem do mal e de

procurar uma resposta alternativa à do maniqueísmo. A resposta de Agostinho,

advogando a origem do mal no livre arbítrio, faz-se acompanhar de uma inequívoca

defesa da bondade de toda a natureza, inclusiva e especialmente, da natureza humana,

como instituição divina por obra da Criação. Salientamos aqui alguns passos

ilustrativos desta tese, em dois textos significativos acerca da superação do

maniqueísmo em Agostinho: De Libero Arbitrio III (391) e De Natura Boni (399).

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A bondade da natureza

«Toda a natureza que se pode tornar menos boa, é boa. E toda a natureza,enquanto se corrompe, torna-se menos boa. Com efeito, ou a prejudica a corrupção enão se corrompe ou, se se corrompe, a corrupção prejudica-a. Se a prejudica, diminuialgo do seu bem, e, por isso, torna-a menos boa. Se a priva completamente de todo obem, aquilo que dela permanecer já não poderá ser corrompido, porque nenhum bemhaverá por cuja subtracção a corrupção possa prejudicar. Ora, aquilo que a corrupçãonão pode prejudicar não se corrompe. Mas a natureza que não se corrompe éincorruptível. Haverá então uma natureza que se torna incorruptível por corrupção, oque é mais do que absurdo dizer. – Por conseguinte, com toda a verdade se diz quetoda a natureza, enquanto é natureza, é boa. Se é incorruptível, é melhor do que sefosse corruptível. Se é corruptível, visto que se torna menos boa enquanto secorrompe, é sem dúvida boa. Toda a natureza ou é corruptível ou é incorruptível.Logo, toda a natureza é boa. Chamo “natureza” (natura) àquilo que é costume chamar“substância” (substantia). Ora, toda a substância ou é Deus ou vem de Deus (ex Deo),porque todo o bem ou é Deus ou vem de Deus.» De Lib. Arb. III, 13, 36.

Em alternativa ao dualismo maniqueu, é clara a posição de Agostinho em favor

da bondade essencial de toda a natureza. Mas de toda a natureza: de que género? Do

género da substância quer incorruptível quer corruptível, quer divina quer de origem

divina. Mesmo a corruptibilidade atesta a favor da bondade da natureza, dado que a

corrupção quer seja parcial quer seja total não acontece senão a algum bem.

O mal

«Portanto, nenhuma natureza, enquanto natureza, é má. E em nenhuma naturezaexiste o mal, mas apenas uma diminuição no bem. Se este diminuir a ponto dedesaparecer, não havendo então nenhum bem, também não se conservará nenhumanatureza, não só segundo a maneira de pensar dos maniqueus, que descobrem umaenorme quantidade de bens, apesar da sua excessiva e espantosa cegueira, mas comoo pode sequer pensar qualquer pessoa.» De natura boni, 1786.

Em alternativa ao dualismo maniqueu, é clara a posição de Agostinho contra a

substancialidade do mal, como natureza. O mal não é uma natureza, porque nenhuma

natureza é má. O mal é uma corrupção da natureza: se a corrupção é parcial, ela

diminui, mas não anula a bondade da natureza; se a corrupção é total, nada resta da

natureza, nem da sua bondade.86 Santo Agostinho, A Natureza do Bem (De Natura Boni), texto latino da ed. crítica do CSEL 25/2(Viena, 1892), introdução, tradução e notas de Mário Santiago de Carvalho, Mediaevalia. Textos eEstudos, 1 (Porto, 1992), pp. 51-53.

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A dor

«Quanto à dor, que alguns consideram muito especialmente um mal, quer seja naalma quer seja no corpo, nem mesmo essa se pode contar senão entre as naturezasboas. – Aquilo que resiste até ao sofrimento recusa-se, de certo modo, a deixar de sero que era, porque era algum bem. Quando é impelida para o melhor, a dor é útil equando impelida para o pior, é inútil. É a vontade que ao resistir a um poder superiorprovoca a dor na alma; no corpo, são os sentidos, ao resistirem a um corpo mais forte.– Mas os males sem dor são os piores. Na verdade, é pior alegrarmo-nos nainiquidade do que sofrer na corrupção. Contudo, uma tal alegria não se pode darsenão pela aquisição de bens inferiores, ao passo que a iniquidade é o abandono dosmelhores. – Semelhantemente, no corpo é melhor uma ferida com dor do que aputrefacção sem dor, o que se chama, em particular, corrupção.» De Nat. Bon., 2087.

A dor pertence ainda à ordem das naturezas e, por isso, possui uma bondade

intrínseca. Portanto, a dor não é o pior dos males, nem um mal em absoluto.

Agostinho valoriza mesmo a dor, quer ao nível da corrupção física quer ao nível da

corrupção moral: é melhor a corrupção física com dor do que a putrefacção sem dor; e

é também melhor a corrupção moral com dor do que sem dor. Ao nível da corrupção

física, a dor atesta a favor da existência de vida, portanto, de um bem de natureza. Ao

nível da corrupção moral, a dor atesta a favor da existência de consciência moral, que

é um bem de natureza superior.

A morte

«Mas existe nas coisas que morrem e se sucedem uma certa beleza temporal,própria do seu género, de maneira que elas morrem e deixam de ser o que eram semalterar nem perturbar a forma e a ordem de toda a criação. De igual modo, umdiscurso bem feito é sempre belo, ainda que as sílabas e todos os sons nele perpassem,como que nascendo e morrendo.» De Nat. Bon., 888.

A morte é aqui tratada como um facto da ordem das naturezas, que inclui

naturezas mortais. A morte é entendida, não do ponto de vista de cada particular de

natureza mortal, mas relativamente à ordem do universo. A morte dos particulares de

natureza mortal não é um mal, isto é, uma diminuição de bem, para a harmonia do

universo, uma vez que qualquer ordem sucessiva, como é a da vida temporal, implica

87 Op. cit., p.55.88 Op. cit., p.45.

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que uns elementos cedam o lugar a outros, sem o que não há sucessão. Tal como a

vida temporal, também o discurso é de ordem sucessiva. Daí a comparação de

Agostinho: à semelhança das sílabas das palavras, que cedem o lugar umas às outras,

sem afectar a beleza do discurso, os particulares de cada natureza cedem o lugar uns

aos outros, sem afectar a harmonia do universo. Resta saber até que ponto seja

indiferente à harmonia do universo, o tempo e o modo de morrer dos particulares de

natureza mortal.

A bondade da natureza humana

«Toda a natureza racional, criada com o livre arbítrio da vontade, se permanecena fruição do bem supremo e imutável, é sem dúvida louvável, bem como toda aquelaque tende a permanecer. Porém, toda aquela que não permanece nessa fruição, e quenão quer fazer por permanecer, enquanto não se encontra nesse estado e enquanto nãofaz por nele se encontrar, é censurável.» De Lib. Arb. III, 13, 37.

A natureza racional, essencialmente dotada de livre arbítrio, pode escolher entre

permanecer na fruição do bem imutável ou não permanecer. Tal é a sua escolha

fundamental, e o livre arbítrio, o seu poder de escolha. Pela escolha de permanecer, a

natureza racional torna-se digna de louvor, e, pela escolha de não permanecer,

torna-se passível de censura. Mas o que é que é propriamente censurável?

O vício

«Que é isso, que é censurado, nas coisas que são censuradas, senão o vício? Masnão pode ser censurado o vício senão daquilo cuja natureza é louvada.» De lib. arb.III, 13, 38; «Como dizia, o vício não é mau por outra razão senão porque é adverso ànatureza daquilo de que é vício. Donde é evidente que isto cujo vício é censurável éuma natureza louvável, de modo que, reconheçamo-lo, a própria censura dos vícios ésempre um louvor das naturezas, daquelas cujos vícios são censurados. Uma vez queo vício é adverso à natureza, tanto se acrescenta à malícia dos vícios quanto se retira àintegridade das naturezas. Quando censuras um vício, louvas certamente aquilo cujaintegridade desejas. E o que pode ser isso, a não ser a integridade da natureza?» DeLib. Arb. III, 14, 41.

Aquilo que é censurável, na natureza racional, é o vício, e este não é a própria

natureza ou substância, mas uma afecção da mesma, cuja ocorrência denuncia a

existência e a bondade da natureza que afecta; o reconhecimento de um vício é

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sempre uma denúncia de bondade da natureza. Daí a reiterada advertência: a censura

de um vício é sempre o louvor de uma natureza.

O vício é comunicável?

«É preciso ver também se uma natureza é corrompida pelo vício de outra, sem aadição de algum vício seu. Se uma natureza com vício se aproxima de outra para acorromper, não encontrando nela algo corruptível, não a corrompe. Se, porém,encontra [algo corruptível na outra], opera a corrupção nela com a ajuda do seu vício.De facto, se a mais forte não quiser ser corrompida pela mais fraca, não é corrompida;se quiser, começa primeiro a ser corrompida pelo seu vício do que pelo alheio. Umaigual, contudo, se não quer ser corrompida, não pode [ser corrompida] por outra igual.Na verdade, qualquer natureza com vício, que se aproxima de outra sem vício para acorromper, não se aproxima como igual, mas como mais fraca, devido ao seu própriovício. – Se a mais forte corrompe a mais fraca, ou isso acontece devido ao vício deambas, se acontece devido à perversa cupidez de ambas, ou [isso acontece] devido aovício da mais forte, se a natureza é de tal modo eminente que, mesmo viciosa, semantém superior àquela que corrompe. Quem censurará correctamente os frutos daterra, que os homens não usam bem e corrompem, deles abusando em excesso,corrompidos pelo seu vício, uma vez que seria insano duvidar de que a natureza dohomem, mesmo viciosa, seja mais eminente e forte do que quaisquer frutos nãoviciosos?» De Lib. Arb. III, 14, 39.

O vício é, em absoluto, incomunicável, isto é, não transita de uma natureza

corrupta para outra incorrupta. Só a uma natureza já com vício, pode comunicar-se o

vício de outra. Nos casos em que a natureza viciante é inferior ou igual, em dignidade

ou perfeição, à natureza viciada, o vício da primeira nunca é causa eficiente do vício

da segunda, mas pode ser causa adjuvante, embora não sem o consentimento da

natureza-alvo. Só no caso em que a natureza com vício seja superior à natureza-alvo,

é que o vício daquela pode ser causa eficiente da corrupção desta, embora esta

corrupção não seja propriamente uma comunicação de vício, como acontece no mau

uso dos bens materiais: estes podem ser corrompidos pelo mau uso, mas nem por isso

se tornam imputáveis do mesmo vício que conduziu à sua corrupção. Há aqui, porém,

uma advertência interessante: ainda que o vício não seja comunicável, as suas

consequências não são incomunicáveis. Assim, os vícios dos homens podem ter por

consequência a corrupção do meio ambiente, como hoje acontece à vista de todos,

constituindo um dos grandes problemas actuais de sobrevivência da Terra que

recebemos em herança.

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O símbolo da árvore proibida«Deus não tinha plantado uma árvore má no paraíso, apenas ele próprio era

melhor do que a árvore em que tinha proibido tocar. – 35. Tinha igualmente proibidoisso com o intuito de mostrar que a natureza da alma racional não deve estar sob o seupróprio domínio, mas sim submeter-se a Deus e guardar, pela obediência, a ordem dasua salvação ou corromper-se pela desobediência. – Daqui o ter chamado à árvore emque proibiu tocar “árvore do discernimento do bem e do mal” (1 Tim. 4, 4). Porquequem tocasse nela contra a sua ordem experimentaria a pena do pecado, discernindoassim a diferença que há entre o bem da obediência e o mal da desobediência.» DeNat. Bon., 34-3589.

Agostinho interpreta aqui o símbolo bíblico da árvore proibida. Esta é a árvore do

bem e do mal, na medida em que o bem significa obediência, e o mal, desobediência.

A obediência é a ordem de pertença do homem a Deus, enquanto a desobediência é a

desordem de entrega do homem a si próprio. O homem não é um absoluto, que não

pertença senão a si mesmo, ou que não dependa senão de si mesmo. A proibição visa

impedir essa desordem, ou essa inversão de prioridades, que é o homem preferir-se a

Deus. A transgressão dos nossos pais míticos, Adão e Eva, significa, assim, a inversão

da ordem de prioridade de Deus sobre o homem, ordem estruturante da

mundividência de Agostinho.

Uma natureza boa, mas não como Deus«Uma coisa é, de facto, não mudar quando tal é possível e outra completamente

diferente é não poder absolutamente mudar. – Igualmente, também se diz que ohomem é bom, embora não como Deus, sobre quem se disse: “Ninguém é bom senãosó Deus” (Mc. 10, 18). E também se diz que a alma é imortal, mas não como Deus, dequem se disse: “Ele é o único que possui a imortalidade” (Rom. 1, 25). E também sediz que o homem é sábio, mas não como Deus, de quem se disse: “Só Deus é sábio”(1 Tim. 6, 16).» De Nat. Bon., 3990.

O homem é uma natureza boa, mas não como Deus. A diferença entre as

perfeições humanas e as perfeições divinas é análoga à diferença entre não mudar e

ser imutável: as perfeições humanas podem não mudar e permanecer, mas as

perfeições divinas são imutáveis. Assim, as perfeições humanas podem ser atribuídas

a Deus, mas sob o carácter da imutabilidade, que marca a perfeição indefectível de

Deus.

89 Op. cit., p.71.90 Op. cit., p.75.

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1.1.1.2. A questão: cur homo?

Outro momento relevante para a promoção do valor da natureza humana na

filosofia medieval foi a controvérsia do séc. XII em torno da questão: cur homo?

(Porquê o homem?). Nesta questão, confrontavam-se duas interpretações da Criação:

uma de pendor historicista, que condicionava a criação do homem pela queda do anjo;

e outra de pendor naturalista, que integrava a criação do homem, desde a origem, no

plano divino da Criação. Marie-Dominique Chenu introduz assim o essencial da

controvérsia do séc. XII, em torno da questão da criação do homem:

«Foi o homem criado por causa de si mesmo? E, portanto, segundo a densidadeoriginal de uma certa natureza, conduzida segundo certas leis, num ambiente de serese de coisas a si referidos, onde ele encontra o seu contexto vital e a matéria para assuas iniciativas. Ou então não terá ele sido, na génese do universo, acerca da qual nosensina a Escritura que uma catástrofe perturbou a ideia primeira, pelo pecado e aperdição de um certo número de criaturas angélicas, uma substituição admirável eparadoxal: um outro tipo de espíritos, induzidos estes na matéria terrestre, edestinados a substituir junto do Criador, num mundo restaurado, os anjos caídos? –Sob a referência ao texto bíblico, desenha-se implicitamente a tensão interna de toda areflexão antropológica: deve o homem julgar-se como uma natureza no universo queo envolve e que determina as suas leis de base? Ou então a história, uma certa história(aqui a história primitiva da Génese, a partir das livres volições de Deus), entra ela nasua constituição e no seu destino?»91

A questão – cur homo? –, isto é, a questão da razão de ser da criação do homem,

ou do sentido da existência do homem, era, no séc. XII, a seguinte: o homem foi

criado por causa de si mesmo ou por causa da queda dos anjos? Se o homem foi

criado por causa da queda dos anjos, a criatura humana não vale senão pelo número

de indivíduos humanos necessários para suprir a falta dos anjos caídos na cidade

celeste. Deste modo, o valor do homem fica circunscrito a um certo número de

indivíduos. Em contrapartida, se o homem foi criado, porque fazia parte do plano

primitivo da Criação, então isso significa que a criatura humana vale pela sua

perfeição própria e pela diferença que acrescenta à diversidade da Criação. Deste

modo, o valor do homem é, antes de mais, o valor da sua diferença específica e,

portanto, da sua natureza. A questão – cur homo? – pode, então, traduzir-se do

seguinte modo: a natureza humana é ou não necessária ao plano da Criação?

91 La théologie au XIIe siècle, 3ª ed., Paris, 1976, pp.52-53.

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A controvérsia decorreu, sobretudo, na escola de Laon e nos seus círculos de

influência. Nas variações do debate, foi progressivamente ganhando força a posição

em defesa da criação do homem pelo valor intrínseco da sua natureza.

Entre os antecedentes da questão, destacam-se Gregório Magno e Anselmo de

Cantuária. Gregório Magno (m. 604) associara já estreitamente a criação do homem

com a queda dos anjos, na interpretação da parábola das dez dracmas (Luc. 15, 8),

identificando a décima dracma com o homem, que teria sido criado para completar o

número dos eleitos da cidade celeste, de acordo com Deut. 32, 8: «Fixou os limites

dos povos segundo o número dos anjos de Deus»92. Anselmo retoma a associação da

criação do homem e da queda dos anjos, mas questionando-a subtilmente.

A questão da perfeição da cidade celesteEm Anselmo (1035-1109) já se prenuncia a questão – cur homo? – na questão da

perfeição da cidade celeste: os homens foram criados para perfazer, na cidade celeste,

o número dos anjos caídos ou porque a natureza humana faz falta à perfeição daquela

cidade? Procuremos discernir a posição de Anselmo, com base em Porquê o

Deus-Homem (Cur Deus Homo I, cc.16-18).

«Anselmo. Que a natureza racional, que é ou será feliz na contemplação de Deus,tenha sido pré-conhecida por Deus num número racional e perfeito, de modo que nãoconvém que este seja maior ou menor, disso não há que duvidar. De facto, ou Deusnão sabe com que número convém melhor constituí-la, o que é falso; ou, se sabe,constituí-la-á com aquele número que entender mais conveniente. Por isso, ou osanjos que caíram foram feitos para entrarem naquele número, ou, porque não puderampermanecer fora daquele número, caíram por necessidade, o que é absurdo pensar. –Boso. É clara verdade aquilo que dizes. – A. Uma vez, portanto, que deviam pertenceràquele número, ou deve ser necessariamente restaurado o número deles, oupermanecerá em número imperfeito a natureza racional, que foi pré-conhecida emnúmero perfeito, o que não pode ser. – B. Sem dúvida que devem ser restaurados. –A. É, pois, necessário que eles sejam restaurados através da natureza humana, porquenão há outra através da qual o possam ser.» CDH I, c.1693.

Porquê a reposição do número dos anjos caídos só através da natureza humana?

«A. Outros anjos não podem substituí-los – para não dizer como isto repugna àperfeição da primeira criação – porque não devem, a não ser que pudessem ser taisquais fossem aqueles [os anjos caídos], se não pecassem, desde que perseverassemsem ver a vingança do pecado, o que, depois da queda de uns, seria impossível para

92 Cf. M.-D. Chenu, op. cit., p.57.93 Cur Deus Homo (CDH), texto da ed. crítica de F. S. Schmitt (II, pp.74-75), reprod. em L’Oeuvre deS. Anselme de Cantorbéry 3, Paris, Cerf, 1988, pp.354-356.

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aqueles que os viessem substituir. De facto, não são igualmente louváveis, sepermanecem na verdade, aquele que nenhuma pena de pecado conhece e aquele quesempre a vê eterna. Nunca se deve julgar que os bons anjos são confirmados pelaqueda dos maus, mas pelo seu mérito.» CDH I, c.17 (Schmitt, II, p.75).

A reposição do número dos anjos caídos não pode ser feita através da própria

natureza angélica, porque os anjos substitutos já não teriam o mesmo mérito na

perseverança do que os bons anjos da primeira criação, uma vez que já não poderiam

perseverar incondicionadamente, mas já na condição de conhecerem a consequência

da queda de outros. Ademais, a perseverança sustentada pelo mal dos outros não só

perderia o mérito como perderia a bondade.

Excluída a possibilidade da reposição dos anjos caídos por outros anjos, resta a

possibilidade dessa reposição ser feita através da natureza humana. A questão que se

coloca é, então, a seguinte:

«A. Se os anjos, antes que alguns deles caíssem, existiam naquele númeroperfeito de que falámos, os homens não foram feitos senão para a restauração dosanjos perdidos, e é evidente que não serão mais numerosos do que estes. Se aquelenúmero não se perfaz em todos aqueles anjos, então deve ser preenchido por homensquer o que se perdeu quer o que primeiro faltava, e existirão mais homens eleitos doque anjos réprobos. E assim dizemos que os homens não foram feitos apenas pararestaurar um número diminuído, mas também para perfazer um ainda não perfeito. –B. O que é que se deve pensar: que os anjos foram feitos primeiro em número perfeitoou não? – A. Direi o que me parece. – B. Não posso exigir mais de ti.» CDH I, c.18(Schmitt, II, p.76).

O número dos homens confirmados na cidade celeste excede ou não o número

dos anjos caídos? Se não excede, presume-se que a natureza humana terá sido criada

só para substituir os anjos caídos. Se excede, torna-se plausível pensar que a natureza

humana tenha sido criada não só para aquela substituição como por fazer falta à

perfeição da cidade celeste.

Caso a criação do homem seja posterior à dos anjos, as duas hipóteses são

admissíveis:

«A. Se o homem foi feito depois da queda dos maus anjos, como algunsentendem em Génesis, não vejo que possa provar uma ou outra coisa de formadeterminada. Pode ser, como penso, que os anjos existissem primeiro em númeroperfeito e que o homem tenha sido feito depois para restaurar o número diminuídodaqueles; e pode ser que não existissem em número perfeito, porque Deus diferia,como difere até agora, preencher aquele número, e fazer a natureza humana no seu

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tempo, de modo que ou apenas perfizesse o número ainda não perfeito ou também orestituísse, se ele diminuísse.» CDH I, c.18 (Schmitt, II, p.76).

Caso a criação seja simultânea, só a segunda hipótese permanece admissível:

«Se toda a criatura foi feita simultaneamente, e se aqueles dias, em que Moisésparece dizer que este mundo foi feito não simultaneamente, devem ser entendidos demodo diferente daquele como vemos estes dias nos quais vivemos: não possocompreender como é que os anjos foram feitos naquele número perfeito. Com efeito,se assim fosse, parece-me a mim que, necessariamente, ou alguns anjos ou homenscairiam, ou existiriam em maior número naquela cidade celeste do que exigiria aquelaconveniência do número perfeito. Portanto, se todas as coisas foram feitassimultaneamente, parece que os anjos e os dois primeiros homens existiram emnúmero imperfeito de modo que, se nenhum anjo caísse, o que faltava só seriapreenchido por homens, e, se algum perecesse, também este que caísse seriarestituído. Além disso, a natureza humana, que era mais fraca, como que escusariaDeus e confundiria o diabo, se este imputasse a sua queda à sua própria debilidade,uma vez que ela, mais fraca, perseveraria; e se ela própria caísse, muito maisdefenderia Deus contra o diabo e contra si mesma, uma vez que ela própria, tornadamuito mais fraca e mortal, a partir de tanta fraqueza ascenderia tão alto, nos eleitos,quanto o lugar donde cairia o diabo, e quanto os bons anjos, cuja igualdade lhe édevida, progredissem depois da ruína dos maus, porque perseveraram.

Por estas razões, mais me parece que não estava nos anjos aquele númeroperfeito, segundo o qual se há-de perfazer a cidade celeste, porque, se o homem nãofoi feito simultaneamente com os anjos, isso é possível; e, se foram feitossimultaneamente, o que muitos preferem admitir, porque se lê “quem vive no eternocriou todas as coisas simultaneamente” (Ecles. 18, 1), parece que [isso mesmo] énecessário.» CDH I, c.18 (Schmitt, II, pp.76-77).

Em caso de criação simultânea, a primeira hipótese – os anjos perfaziam

originariamente o número perfeito da natureza racional e a natureza humana não foi

criada senão para repor o número dos anjos caídos – implica uma consequência

inaceitável: alguma queda seria necessária.

Nenhuma queda sendo necessária, e considerando apenas a possibilidade de

queda, a criação da natureza humana torna-se teologicamente plausível, porquanto

esta natureza contribui para não imputar ao Criador a queda da criatura, mediante a

fraqueza desta: se fosse um anjo a cair, este não poderia atribuir a queda à fraqueza da

sua natureza criada, e, portanto, remetê-la ao Criador, dado que uma natureza mais

fraca, a humana, conseguia ao mesmo tempo não cair; se fosse a natureza mais fraca a

cair, a humana, a sua fraqueza não a impediria de ascender ao nível da perfeição

angélica na cidade celeste.

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Caso o número perfeito seja relativo às naturezas e não aos indivíduos, só a

segunda hipótese permanece admissível:

«Mas se a perfeição da criatura mundana não deve ser compreendida tanto emnúmero de indivíduos quanto em número de naturezas, é necessário que a naturezahumana ou tenha sido feita para completar essa mesma perfeição, ou que ela lhesobeje, o que não ousamos dizer da natureza do mais pequeno verme. Por isso, [anatureza humana] foi feita em razão de si mesma (pro se ipsa), e não só para restauraros indivíduos de outra natureza. Donde é evidente que, se nenhum anjo perecesse, oshomens teriam o seu lugar na cidade celeste. Segue-se, portanto, que, nos anjos, antesque alguns deles caíssem, não estava aquele número perfeito. De contrário, eranecessário que caíssem alguns homens ou anjos, porque nenhum lá [na cidade celeste]podia permanecer fora do número perfeito.» CDH I, c.18 (Schmitt, II, pp.77-78).

Em caso de número perfeito de naturezas, a primeira hipótese – os anjos

perfaziam originariamente o número perfeito da natureza racional e a natureza

humana não foi criada senão para repor o número dos anjos caídos – implica a mesma

consequência inaceitável do caso anterior: alguma queda seria necessária. A

felicidade de alguns à custa da perda de outros é a inconveniência ética da primeira

hipótese:

«A. Há outra razão, como me parece, que muito favorece aquela posição [asegunda hipótese], que estima que os anjos não foram feitos no número perfeito. – B.Di-la. – A. Se os anjos foram feitos naquele número perfeito, e de modo nenhumforam feitos os homens senão para a restauração dos anjos perdidos, é evidente que,se os anjos não caíssem daquela felicidade, os homens não ascenderiam a ela.» CDHI, c.18 (Schmitt: II, p.78).

Este inconveniente ético é razão suficiente para recusar a primeira hipótese em

favor da segunda. Para além disso, acresce a renovação final do mundo material, a

favor da segunda hipótese:

«A. Admito que pode dizer-se ainda outra razão em favor da mesma posição [asegunda hipótese]. – B. Deves também dizê-la. – A. Cremos que esta mole corpóreado mundo deve ser renovada para melhor (2 Ped. 3, 13; Apoc. 21, 1), e isto nãoacontecerá até que seja preenchido o número dos homens eleitos e se perfaça aquelacidade bem-aventurada, nem deve ser diferido para depois de consumada a perfeiçãodesta cidade. Donde, pode inferir-se que Deus propôs, desde o início, perfazer uma eoutra, por forma que a natureza menor, que não sentisse Deus, de modo nenhum seperfizesse antes da natureza maior, que deveria fruir de Deus, e, mudada para melhora seu modo, como que se congratulasse na perfeição da maior; mais ainda, por formaque todas as criaturas se regozijassem com tão gloriosa e tão admirável consumação,

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comprazendo-se eternamente, com o próprio Criador, consigo mesmas e umas com asoutras, cada uma a seu modo, pois aquilo que a vontade espontaneamente fez nanatureza racional, a criatura insensível exibi-lo-ia naturalmente por disposição deDeus. Com efeito, nós costumamos comprazermo-nos na exaltação dos nossosantepassados, como quando nos regozijamos com a exultação festiva dos aniversáriosnatalícios dos santos, alegrando-nos com a glória deles. Parece reforçar esta posição,o seguinte: se Adão não pecasse, Deus, porém, diferiria o perfazer daquela cidade, atéque estivesse completo o número de homens que esperava, e os próprios homens setransmutassem, por assim dizer, para a imortal imortalidade dos corpos. No paraísotinham alguma imortalidade, isto é, o poder de não morrer, mas não era imortal estepoder, porque podia morrer, de modo que eles próprios não pudessem não morrer.»CDH I, c.18 (Schmitt: II, pp.79-80).

A renovação do mundo material vem favorecer a segunda hipótese – os anjos não

perfaziam originariamente o número perfeito da natureza racional e a natureza

humana não foi criada apenas para repor o número de anjos caídos –, pois a natureza

humana também contribui para a renovação do mundo material, não só por prover ao

ao total comprazimento das naturezas inferiores renovadas como pela própria

transmutação da sua originária imortalidade mortal numa imortal imortalidade.

Há ainda outro factor a ponderar na orientação anselmiana em favor da segunda

hipótese, que é a articulação entre a confirmação dos anjos e a renovação do mundo:

«Se assim é, de modo que Deus terá proposto desde o início perfazersimultaneamente aquela cidade racional e bem-aventurada e esta natureza mundanasem sensibilidade, parece que: ou aquela cidade não estava completa com o númerode anjos, antes da ruína dos maus, mas Deus esperava que ela se completasse comhomens, quando a natureza corpórea do mundo mudasse para melhor; ou se eraperfeita no número, não era perfeita na confirmação, e devia ser diferida a suaconfirmação, mesmo se ninguém pecasse nela, até à mesma renovação do mundo, queesperamos; ou, se aquela confirmação não devia ser diferida por mais tempo, arenovação do mundo devia ser acelerada, para que se fizesse com a mesmaconfirmação. Mas que Deus renovasse de imediato o mundo acabado de fazer, eresolvesse destruir, no próprio início, estas coisas que não existirão depois daquelarenovação, antes que fosse evidente a razão por que foram feitas, eis o que carece detoda a razão. Segue-se, pois, que os anjos não eram de tal modo em número perfeitoque a sua confirmação não diferisse por muito tempo, porque era necessário que arenovação do mundo novo fosse feita logo depois, o que não convém. Que Deusquisesse diferir a mesma confirmação até à futura renovação do mundo, pareceinconveniente, especialmente, quando a perfez tão depressa em alguns, e uma vez quese pode compreender que, nos primeiros homens, quando pecaram, tê-la-ia feito, senão pecassem, como fez nos anjos perseverantes. Embora ainda não tivessem sidoelevados àquela igualdade dos anjos, que haviam de alcançar os homens, quando setivesse perfeito o número que deles havia de ser assumido, parece que, naquela justiçaem que existiam, se vencessem, de modo que, tentados, não pecassem, seriamconfirmados, com toda a sua descendência, para que não pudessem pecar no futuro;

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de igual forma, porque, vencidos pecaram, foram infirmados, de modo que, tantoquanto deles depende, não podem existir sem pecado. Quem ousará dizer que ainjustiça é mais capaz de sujeitar à servidão o homem que nela consente na primeirapersuasão, do que a justiça, de confirmar na liberdade aquele que a ela adere naprimeira tentação? De igual forma, porque a natureza humana existia toda nosprimeiros parentes, toda neles foi vencida para que pecasse, excepto apenas aquelehomem, que Deus soube separar do pecado de Adão, tal como soube fazer da virgemsem semente de homem; assim também, neles, toda a natureza humana teria vencido,se não pecassem. Resta dizer, portanto, que a cidade celeste não estava completa comaquele primeiro número de anjos, mas que devia completar-se com homens.Ratificado isto, haverá mais homens eleitos do que anjos réprobos.» CDH I, c.18(Schmitt: II, pp.80-81).

Retoma-se aqui a primeira hipótese, com uma nova adenda: os anjos perfaziam

originariamente o número perfeito da natureza racional, mas esse número perfeito não

é condição suficiente para a perfeição da cidade celeste. A perfeição desta cidade

exige ainda a confirmação dos anjos, ou seja, a confirmação da sua perseverança,

mesmo que nenhum dela caísse. Como é que a necessidade de confirmação dos anjos

se articularia com a necessidade de renovação do mundo, em ordem à perfeição

última da obra da Criação? Ou a renovação do mundo seria acelerada em função do

tempo breve requerido para a confirmação dos anjos, o que não parece plausível, pois

perderia sentido a existência demasiado breve das naturezas não renováveis; ou a

confirmação dos anjos seria diferida em função do tempo longo requerido para a

renovação do mundo, o que também não parece plausível, pois não haveria razão para

adiar uma confirmação que poderia ser feita em muito menos tempo. Por conseguinte,

a necessidade de confirmação dos anjos não basta por si só para compreender o tempo

da renovação do mundo material. A natureza humana faz falta a essa compreensão.

Resta, por isso, a segunda hipótese, como sendo a mais plausível: os anjos não

perfaziam originariamente o número perfeito da natureza racional e a natureza

humana não foi criada apenas para repor o número de anjos caídos. Deste modo,

Anselmo defende a criação do homem em função, sobretudo, da perfeição dos fins

últimos da Criação, e não apenas da queda dos anjos. Quer isso dizer que a natureza

humana tem um valor irredutível.

Toda esta reflexão pode parecer hoje uma curiosidade vetusta, sem cabimento

algum entre as actuais preocupações do ser humano. Pensar o sentido da natureza

humana entre o princípio e o fim da Criação parece uma possibilidade excluída do

horizonte bem mais contido do actual pensar filosófico. Parece, pois, não haver pontes

que nos liguem à questão medieval: cur homo? Todavia, há hoje interrogações que o

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progresso das ciências nos conduz a formular, e que repõem em questão o valor da

natureza humana, de modo no fundo similar àquela questão medieval. Consideremos

os constantes avanços das ciências biológicas e as técnicas de transformação das

espécies, da espécie humana inclusive, que elas colocam sob o poder humano, e que

nos conduzem a perguntar: para onde vamos e para onde onde queremos ir? Valerá a

pena conservar aquilo que somos ou acreditamos ser (a natureza humana) ou devemos

explorar as possibilidades de transformação da nossa natureza? Não formularíamos,

porém, estas perguntas, se não pensássemos a nossa humanidade senão dentro dos

estreitos limites da nossa existência individual. Para que tais perguntas ocorram ao

nosso pensamento, precisamos de mais largo enquadramento, que não chega

porventura a alcançar os extremos, que balizam a questão medieval, mas que de certo

modo nos reaproxima dela, no que ela contém de fundamental, e que podemos

reformular do seguinte modo: terá a nossa humanidade apenas um valor instrumental

e transitório ou é algo que merece ser conservado por si mesmo?

1.1.2. A questão da individuação

Do ser humano, a filosofia medieval prezou não só o aspecto da natureza como

também o do indivíduo. Como reconhecera a filosofia antiga, o nosso conhecimento e

a nossa linguagem estão povoados de universais, dada a dificuldade, senão mesmo a

impossibilidade, de conhecer e dizer o indivíduo. Todavia, a filosofia da Criação, de

inspiração judaico-cristã, tornou incontornável o valor do indivíduo. Com efeito, criar

não é apenas conceber intelectualmente naturezas específicas, é dar existência a uma

realidade não só específica como individualmente diferenciada. O indivíduo pode não

ser um dado acessível ao conhecimento e à linguagem, mas é um dado irredutível da

Criação. Entretanto, para além da filosofia da Criação, também a teologia da Trindade

contribuíu para a promoção filosófica do tema do indivíduo: as três pessoas divinas

não são propriamente três indivíduos de uma espécie comum, mas a unitrindade

divina foi recorrentemente concebida por analogia com a pluralidade dos indivíduos

de uma natureza comum. Várias eram, pois, as motivações que faziam urgir a questão

de saber o que é que diferencia os indivíduos de uma mesma natureza específica. Tal

é a questão da individuação, que atravessa toda a história da filosofia medieval.

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1.1.2.1. Soluções pré-escolásticas: Boécio e Anselmo

As soluções pré-escolásticas da questão da individuação foram, em grande

medida, determinadas pela influência de Boécio, que definia assim os indivíduos:

«Os indivíduos dizem-se assim, porque cada um deles é constituído porpropriedades, cuja colecção nunca será a mesma em qualquer outro. De facto, aspropriedades de Sócrates nunca serão as mesmas em qualquer um dos particulares.(…). Por um lado, a propriedade dos indivíduos a nenhum é comum. A propriedadede Sócrates – se foi calvo, curvo, de ventre proeminente, e com os restantes traçoscorporais, ou a ordenação dos costumes, ou a forma da palavra – não convinha aoutro: estas propriedades que lhe sobrevieram por acidentes, e que configuraram a suaforma e figura, a nenhum outro convinham. Aquilo cujas propriedades a nenhumoutro convêm é aquilo cujas propriedades a nenhum podiam ser comuns. Aquilo cujapropriedade a nenhum é comum é aquilo de cuja propriedade nada há que participe.Aquilo que é tal que nenhum participe da sua propriedade, não pode ser dividido nestaque não participa. Por isso, estes cujas propriedades não convêm a outros chamam-secorrectamente “indivíduos”. Por outro lado, a propriedade específica de homemconvém a Sócrates, a Platão e aos restantes, cujas propriedades advindas por acidentespor nenhuma razão convêm a qualquer outro singular.»94

O indivíduo é, portanto, aquele que tem propriedades, que a nenhum outro

convêm, que a nenhum outro são comuns, ou comunicáveis, e que por nenhum outro

são participáveis. O indivíduo é o indivisível nas suas propriedades exclusivas, que

lhe advêm por via de acidentes (segundo a acepção aristotélica de acidente). A

colecção destas propriedades é o princípio de individuação, isto é, o princípio da

diferença individual.

Vários aspectos desta concepção boeciana do indivíduo ecoaram em soluções

posteriores da questão da individuação. Por exemplo, a consideração dos acidentes na

origem da individuação e o carácter não participável daquilo que constitui o indivíduo

são aspectos que viriam a ser incorporados na solução tomista.

Entretanto, a explicação da individuação por via de uma colecção exclusiva de

propriedades é uma solução corrente da questão, na filosofia pré-escolástica.

A aplicação anselmianaAnselmo permite exemplificar a aplicação do princípio de individuação, como

colecção de propriedades. O tema da individuação surge, no pensamento anselmiano,

94 In Porphyrium commentariorum (PL: 64, 114 B-D).

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motivado sobretudo por questões teológicas, como seja a definição da condição

pessoal de Jesus Cristo e de todos os membros da Trindade.

Anselmo confrontou-se, no seu tempo, com a teologia de Roscelino de

Compiègne (c.1050-c.1125). Este tinha uma posição similar à do antigo sabelianismo

(séc. III), que defendia sobretudo a unidade divina, substancial e pessoal, em

detrimento da distinção trinitária, que não era senão uma distinção de rostos ou de

aspectos da divindade em função de distintas relações com o mundo. Roscelino

também sublinhou a unidade divina em detrimento da distinção trinitária, de modo

que toda a Trindade teria incarnado em Jesus Cristo, e não apenas o Verbo. Anselmo

pronuncia-se contra a posição de Roscelino, na Epístola sobre a Incarnação do Verbo

(Epistola de Incarnatione Verbi), defendendo aí a distinção pessoal do Verbo

incarnado em Jesus Cristo. Compreende-se assim a motivação teológica do tema da

individuação em Anselmo: a individuação é uma função da aplicação da noção de

pessoa ao Verbo incarnado, e aos restantes membros da Trindade. Compreende-se

também porque é que a individuação é requerida pela aplicação da noção de pessoa à

teologia da Incarnação e da Trindade: a individuação assegura a irredutibilidade de

cada pessoa divina, no âmbito da Trindade, e, desse modo, salvaguarda e consolida a

pertinência da distinção trinitária, não obstante a unidade essencial de Deus.

Vejamos como Anselmo define a noção de pessoa:

«Quando dizemos demonstrativamente “este ou aquele homem”, ou pelo próprionome “Jesus”, designamos a pessoa (persona), que possui, com a natureza, umacolecção de propriedades (quae cum natura collectionem habet proprietatum), pelasquais o homem específico (homo communis) se torna singular e se distingue dosoutros singulares.» Epistola de Incarnatione Verbi, 1195.

Nesta definição de pessoa, o género é a natureza e a diferença é a colecção de

propriedades, isto é, o princípio de individuação. Nesta definição, o género natureza

substitui o género substância, que definia a noção de pessoa, segundo Boécio: «a

pessoa é uma substância individual de natureza racional»96. Esta definição boeciana

de pessoa é aquela que Anselmo adopta ainda no Monologion, embora não sem

reservas, quer do ponto de vista da teologia da essência suprema (c.26), quer do da

teologia da Trindade (c.79). A substituição do género substância pelo de natureza95 Texto da ed. crítica de F. S. Scmitt (II, p.29), reprod. em L’Oeuvre de S. Anselme de Cantorbéry 3,Paris, Cerf, 1988, p.248.96 «Persona est naturae rationalis individua substantia» Liber de persona et duabus naturis contraEutychen et Nestorium, 3 (PL, 64, 1343 C).

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permite a extensão à relação: o género que mais propriamente, tanto quanto isso é

possível, define as pessoas divinas.

Numa obra motivada por outra controvérsia teológica, o tratado Da Processão do

Espírito Santo (De Processione Spiritus Sancti), Anselmo expõe a sua concepção

mais reflectida e amadurecida da teologia da Trindade (1102). Era o rescaldo do

concílio de Bari (1098), onde Anselmo, a pedido do Papa Urbano II, defendeu a

fórmula latina da doutrina da Trindade, com a expressão Filioque, indicando a

processão do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho. Esta inclusão do Filho na

origem do Espírito Santo era há décadas contestada entre os prelados e teólogos

cristãos do Oriente. Na teologia anselmiana da Trindade, destacam-se duas principais

linhas de orientação: a afirmação da unidade da essência divina na origem das pessoas

procedentes, o Filho e o Espírito Santo; e a distinção das três pessoas divinas através

do género da relação e do princípio da individuação, entendido como uma colecção de

propriedades relacionais. Por um lado, a afirmação da unidade da essência, na origem

de qualquer das processões divinas, era decisiva na controvérsia com os teólogos

orientais, pois visava a conservação da expressão Filioque, sem que esta implicasse

alguma espécie de inferioridade para a pessoa do Espírito Santo. Por outro lado, a

aplicação do princípio da individuação às pessoas divinas permitia salvaguardar e

reforçar a distinção trinitária, contra a tendência monarquianista ou sabeliana da

teologia trinitária, que então se manifestava através de Roscelino.

Antes de mais, Anselmo assume a categoria da relação, como género da pessoa

em Deus e, portanto, como género comum da Trindade. Ter relação com as duas

outras pessoas da Trindade é o que é comum às três pessoas divinas:

«É comum aos três ter relação com dois. O Pai relaciona-se com o Filho e oEspírito Santo, como com aqueles que são a partir de si. O Filho relaciona-se com oPai e o Espírito Santo, porque é a partir do Pai e o Espírito Santo é a partir dele. OEspírito Santo relaciona-se com o Pai e o Filho, porque é a partir de um e de outro.»De Proc. 1697.

A individuação da relação, género comum da Trindade, dá-se por via de uma

colecção de propriedades, e pode ser compreendida como um processo de

determinação e combinação de diferenças, em três passos. Antes de mais,

discriminam-se as propriedades coleccionáveis, que constituem também relações, com

97 Texto da ed. crítica de F. S. Scmitt (II, p.217), reprod. em L’Oeuvre de S. Anselme de Cantorbéry 4,Paris, Cerf, 1990, p.300.

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ter pai, não ter pai, ter filho, não ter filho, ter espírito de si procedente, não ter espírito

de si procedente. Depois, distribuem-se as propriedades coleccionáveis em diferenças

estritamente próprias e diferenças conjuntamente próprias e comuns, porquanto cada

pessoa divina inclui uma diferença própria exclusiva, pela qual se distingue das duas

pessoas restantes (ter filho, ter pai, não ter espírito de si procedente), e duas

diferenças próprias e e comuns, pelas quais cada pessoa divina se distingue,

juntamente com uma das duas outras, da terceira restante (não ter pai, não ter filho, ter

espírito de si procedente). Por fim, combinam-se as diferenças próprias, as

exclusivamente próprias e as inclusivamente comuns, nas três colecções de

propriedades, que individuam as pessoas divinas: o Pai distingue-se individualmente

por ter filho, não ter pai e ter espírito de si procedente; o Filho, por ter pai, não ter

filho e ter espírito de si procedente; e o Espírito, por não ter espírito de si procedente,

não ter pai, não ter filho (De Proc. 16, in Schmitt: II, pp.216-217).

Cada pessoa divina individua-se, assim, por uma colecção única de relações, que

são, afinal, múltiplas determinações da relação de origem: só o Pai é aquele que de

nenhum (de nullo) procede e do qual procedem os outros dois (de quo sunt alii duo);

só o Filho é aquele que procede de um (de uno) e do qual um procede (de quo unus); e

só o Espírito Santo é aquele que procede de dois (de duobus) e do qual nenhum

procede (de quo nullus). Cada pessoa divina não é uma relação, mas uma colecção de

relações (De Proc. 16, in Schmitt: II, p.217)). Deste modo, o princípio de

individuação da relação em Deus é uma combinação de relações. Nenhum outro

género de propriedades, ou acidentes, para além da relação, participa na individuação

das pessoas divinas. Tal é o que caracteriza de modo exclusivo a individuação dos

membros da Trindade, segundo Anselmo.

1.1.2.2. Soluções escolásticas: Tomás de Aquino e João Duns Escoto

Tomás de Aquino: a individuação pela matériaNuma época de renascimento da filosofia de Aristóteles, como o séc. XIII, a

acepção aristotélica de ciência não podia deixar de modelar o sentido do

conhecimento humano. Mas, nessa acepção, a ciência não dava acesso senão ao

universal e ao necessário. A ciência não dava conhecimento do indivíduo. A

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incognoscibilidade do indivíduo era, por isso, uma dificuldade a enfrentar no âmbito

da questão da individuação.

Tomás de Aquino debruça-se sobre esta questão num opúsculo intitulado

precisamente Do Princípio da Individuação (De Principio Individuationis)98. O

opúsculo começa com um desenvolvimento de filosofia do conhecimento, salientando

os níveis de acesso cognitivo ao particular, como sejam: o acesso da potência

cognoscitiva ao conhecimento de si, através do seu acto singular; ou o acesso do

intelecto à quididade de uma coisa sensível, através dos objectos das potências

sensitivas subordinadas, que mantêm as características particulares, antes de serem

submetidos ao processo intelectivo da abstracção. Deste modo, a singularidade não

obsta ao conhecimento. Nas palavras de Tomás de Aquino:

«A matéria impede o intelecto, o singular não (materia enim impedit intellectum,singulare vero non). Na verdade, a matéria não é cognoscível senão por analogia coma forma, como se diz no primeiro livro da Física (191 a 7-8). Se existisse perto de nóso singular não sensível e não material, o que é porém impossível, ele próprio seriaconhecido sem abstracção alguma, porque a singularidade não impede o intelecto,mas a materialidade sim.»

Mas a singularidade depende da matéria, visto que é impossível o singular

imaterial no nosso mundo. Vejamos como:

«Por isso, é fácil ver como é que a matéria é princípio de individuação. Tal é oque pretendemos mostrar. – Deve saber-se, portanto, que o indivíduo no nosso mundo(apud nos) assenta em dois [princípios].

a) O indivíduo é, nos sensíveis, o último no género da substância, o qual denenhum outro é predicado. Mais, ele é a primeira substância, segundo o Filósofo, emPredicamentos (2 a 11-14, 3 b 11-13), e o primeiro fundamento de todos os outros. Defacto, a natureza da forma material, como não pode ser este algo completo na espécie,o único cujo ser é incomunicável, ela é comunicável quanto é da sua razão; mas éincomunicável só em razão do suposto, que é algo completo na espécie, que nãoconvém a qualquer forma, como foi dito. Por isso, quanto é da sua sua razão, écomunicável, como foi dito. – A sua comunicação dá-se, como foi dito, pelo facto deser recebida noutros. Por isso, tanto quanto é da sua natureza, é comunicável, e podeser recebida em muitos, e é recebida segundo uma razão, uma vez que uma é a razãoda espécie em todos os seus indivíduos. Mas, porque ela própria não tem ser, como foidito, porque o ser é só do suposto, como foi dito, e o suposto é incomunicável, comofoi dito, a própria forma material diversifica-se segundo muitos que são

98 Embora a autenticidade do opúsculo não seja unanimemente aceite, sendo aceite por M. Grabmann erejeitada por P. Mandonnet, sendo este responsável por uma das edições de referência do texto(Mandonnet: V, 193).

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incomunicáveis, permanecendo uma segundo a razão comunicada a muitos. A suarecepção dá-se na matéria, porque ela própria é material.

Donde é patente que, da sua natureza conserva para si a unidade da razão na suacomunicação, e que se torna incomunicável pela sua recepção na matéria. Por serrecebida na matéria, produz-se o indivíduo, que é incomunicável, e o primeirofundamento no género da substância, como sujeito completo dos outros predicáveis desi mesmo. Na via da geração, o incompleto é sempre anterior ao completo, embora navia da perfeição seja totalmente ao contrário. Portanto, aquilo que é o primeiro sujeitode todos na via da geração, e incompleto, que de nenhum daquele género [dasubstância] é predicado, a saber, a matéria, será necessariamente o primeiro princípiodo ser incomunicável, que é próprio do indivíduo.

b) Outra coisa é aquilo em que se salvaguarda a razão do indivíduo no nossomundo (apud nos), a saber, a sua circunscrição a certas partículas de tempo e de lugar,porque é próprio dele ser aqui e agora, e esta determinação é-lhe devida em razão daquantidade determinada. E, por isso, a matéria sob a quantidade determinada é oprincípio de individuação (materia sub quantitate determinata est principiumindividuationis): só a matéria é o primeiro princípio de individuação, até àquilo emque se salvaguarda a razão do primeiro no género da substância, o qual, porém, nãopode ser encontrado sem corpo e quantidade. E, por isso, diz-se que a quantidadedeterminada é o princípio de individuação, não que cause de algum modo o seusujeito, que é a primeira substância, mas acompanha-a inseparavelmente, edetermina-a para aqui e agora. Portanto, aquilo que cai sob a razão particular, é estealgo pela natureza da matéria; aquilo que cai sob o sentido exterior, é pelaquantidade.»

Recapitulando. O indivíduo apud nos, isto é, no nosso mundo material e sensível,

é constituído por dois princípios: a matéria, o primeiro princípio de individuação; e a

quantidade determinada, que podemos considerar como que um segundo princípio de

individuação. A matéria é o primeiro princípio de individuação: porquê? Porque, do

composto de matéria e forma, que é a substância individual, a forma é comunicável e

só a matéria é incomunicável, como o próprio indivíduo. Só a matéria assegura a

incomunicabilidade do indivíduo, porque a matéria é sujeito tal como o indivíduo,

embora aquela seja sujeito incompleto e este sujeito completo. Mas, se o princípio de

individuação fosse a matéria simplesmente, o indivíduo não seria cognoscível, pois a

matéria indeterminada não é cognoscível. A fim de acautelar a razão cognoscível do

indivíduo, é preciso considerar a determinação da matéria que torna o indívíduo

acessível ao conhecimento sensível: a determinação espácio-temporal. Tal é a

determinação pela quantidade, que tem por função concluir o processo de

individuação e assegurar a cognoscibilidade do indivíduo.

Não é difícil reconhecer que, nesta solução tomista da questão da individuação,

sobressai a influência da filosofia de Aristóteles: o indivíduo, desde logo identificado

com a substância primeira, não se explica senão com base nos princípios constituintes

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da substância individual, como sejam a matéria e a forma, e ainda os acidentes do

composto, como a quantidade. Como a forma é comunicável a muitos da mesma

espécie, ela não pode explicar a diferença numérica do indivíduo, que Aristóteles

também registara. Tomás de Aquino tira a consequência que se impunha: atribuir à

matéria determinada pela quantidade, o papel de explicar a diferença individual.

Todavia, a solução tomista não permitia superar uma outra dificuldade que então

emergia no âmbito da questão da individuação: a dificuldade de explicar a

individuação das substâncias imateriais, que muitos então identificavam com os anjos.

Com efeito, a individuação de substâncias sem matéria não pode explicar-se pela

matéria. A saída congruente com a solução tomista é reduzir o indivíduo à espécie, no

género das substâncias imateriais. Outra saída é uma resposta diferente para a questão

da individuação, como aquela que veio a propor João Duns Escoto.

João Duns Escoto: haecceitas

No seu primeiro comentário aos livros das Sentenças, de Pedro Lombardo,

conhecido sob o título de Opus Oxoniense (Ordinatio II, distinção 3, parte 1, questões

1-7), João Duns Escoto (1266-1308) expõe a sua posição sobre a questão da

individuação. Ao longo das qq.1-6, o autor ocupa-se da individuação das substâncias

materiais, para considerar, na q.7, a individuação dos anjos no âmbito de uma mesma

espécie. No que concerne à individuação da substância material, João Duns Escoto

tem uma posição crítica relativamente à solução tomista: nem a matéria nem a

quantidade explicam a diferença individual, como indicam, respectivamente, as

decisões das qq.4 e 5. Mas, por que razão é que a solução tomista não satisfazia Duns

Escoto? Como o próprio esclarece, na q.4, a sua concepção da unidade individual, ou

singularidade, não é simplesmente a de uma unidade indeterminada, pela qual

qualquer indivíduo da espécie se diz numericamente um, e para a qual servia a

solução tomista, mas a de uma unidade designada, que é esta (haec) e não outra.

Haecceitas é, por isso, o nome por que se tornou conhecida a solução escotista para a

questão da individuação. Quer isso dizer que a diferença individual é irredutivelmente

única em cada indivíduo e não pode, por isso, ser explicada por princípios e acidentes

comuns dos indivíduos. Nessa medida, Duns Escoto aprofundou e radicalizou o

sentido da diferença individual.

Donde provém, então, esta diferença? Ou em que consiste o princípio de

individuação? Não se trata de uma causa a produzir um efeito, de uma coisa a

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produzir outra coisa, que seria o indivíduo; trata-se, sim, da realidade última do ser

que é matéria, ou forma, ou composto (q.6). Deste modo, a individuação não provém

de uma causa anterior ao indivíduo, mas é a determinação última de qualquer natureza

susceptível de atingir a distinção individual, quer seja material, formal ou composta.

O indivíduo é, por assim dizer, o último estádio de desenvolvimento de uma natureza,

aquele em que ela atinge a sua maior determinação. O indivíduo é a expressão última

da perfeição natureza. Assim entendida, a individuação não repugna às naturezas

superiores. A solução escotista da questão da individuação permite, assim, superar a

dificuldade da individuação dos anjos, em que tropeçara a solução tomista.

Sugestões bibliográficas: Duns Escoto, Le principe d’individuation, introdução,

tradução e notas de Gérad Sondag, Paris, Vrin, 1992; Étienne Gilson, Jean Duns Scot.

Introduction à ses positions fondamentales, Paris, Vrin, 1952; Joaquim Cerqueira

Gonçalves, «A Natureza do Indivíduo em João Duns Escoto», in Humanismo

Medieval, Braga, 1971, pp.9-92; Jorge J. E. Gracia, Introduction to the Problem of

Individuation in the Early Middle Ages, Munique-Viena, 1984.

1.2. O livre arbítrio ou a liberdade individual

1.2.1. A questão da origem do mal: Agostinho

Num dos seus primeiros diálogos filosóficos, De Ordine, Agostinho,

ex-maniqueu, confronta-se com a questão da existência do mal no mundo. Aí o autor

contrapõe uma visão englobante da ordem do universo, ilustrada pela perspectiva

panorâmica sobre um pavimento de mosaicos: uma visão do mundo dominada pela

presença do mal, nomeadamente, pela “perversidade nas coisas humanas” (De Ord. I,

1, 1), é uma visão comparável à percepção de um só mosaico num pavimento de

mosaicos ordenados, isto é, a uma perspectiva tão parcelar e reduzida das coisas que

não permite vislumbrar a harmonia do todo (De Ord. I, 1, 2). Se vemos mais

disformidade e fealdade do que harmonia e beleza no mundo, isso é porque não

vemos o todo, mas só parcelas. De facto, em De Ordine, Agostinho tem uma visão

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estética do universo, dominada pela ordem de natureza: o mundo, na sua totalidade, é

essencialmente belo, harmonioso e racional, como dá disso a ordem natural do mundo

sensível. A ideia de ordem é aí tão forte que nem o mal nem Deus saem fora dela. Por

um lado, a consideração do mal em primeiro plano é, como acabámos de ver, um erro

de perspectiva; não há mal que ponha em causa a ordem do todo; todos os males, que

constituem desordens locais ou parciais, acabam por ser, mais cedo ou mais tarde, de

um modo ou de outro, submetidos à ordem do todo. Por outro lado, Deus também não

pode querer ou agir arbitrariamente fora da ordem; Deus identifica-se com a própria

providência, a ordem superior do universo (De Ord. I, 7, 18).

Cabe referir que, depois de Agostinho, Boécio expõe, em Philosophiae

Consolationis, uma concepção similar de providência divina, incluindo superiormente

as ordens do destino e da natureza, reordenando os males e os infortúnios humanos

(Phil. Cons. IV, pr. 6).

Retomando Agostinho, cabe também reconhecer uma evolução do seu

pensamento quanto à compreensão do mal na sua visão do mundo. Sempre atento às

desordens do ser humano, quer interiores quer exteriores, Agostinho sente cada vez

mais dificuldade em manter a visão estética da ordem do universo, que lhe inspirara o

mundo da natureza. Em De Civitate Dei, obra motivada pelo trauma colectivo

resultante do saque de Roma por Alarico em 410, Agostinho substitui aquela visão

estética por uma visão escatológica da ordem do universo. A cidade de Deus é a

humanidade peregrina, unida pela prioridade do amor a Deus, que caminha ao longo

da história até se consumar plenamente, para além da história, junto do próprio Deus.

À luz desse destino último da humanidade, as penas da vida humana transformam-se

em dificuldades de percurso. Se já não basta uma visão da beleza do todo, para

reduzir a dimensão do mal, resta a esperança dada por uma visão do fim último e

supra-histórico da humanidade.

A questão da origem do mal e o livre arbítrioA liberdade tornou-se um tema de mor relevância filosófica, sobretudo, por via da

questão da origem do mal e da resposta anti-maniqueia de Agostinho. Com efeito, à

perspectiva maniqueia sobre o mal, como princípio substancial, excedendo a

responsabilidade do ser humano e contaminando a sua natureza, Agostinho,

ex-maniqueu, recusa o carácter substancial do mal: «E indaguei o que seria a

iniquidade, e não encontrei que fosse uma substância» (Conf. VII, 16, 22). Em

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alternativa, preconiza a redução da origem do mal ao livre arbítrio da vontade. É esta

a tese optimista, responsabilizando o livre arbítrio pela existência do mal, e

colocando, por conseguinte, a eliminação do mal ao alcance do ser humano, que

Agostinho defende no seu diálogo De Libero Arbitrio I. Aí Agostinho formula

claramente a questão da origem do mal, pelas palavras de Evódio: «diz-me donde

fazemos o mal» (De Lib. Arb. I, 2, 4).

Mas para responder a esta questão, impõe-se considerar uma outra: «o que é fazer

mal?» (De Lib. Arb. I, 3, 6). Ora, o mal é o domínio da paixão:

«É já claro que nada a não ser a paixão (libido) domina em todo este género demás acções.» De Lib. Arb. I, 3, 8.

Mas estará o ser humano indefeso relativamente ao domínio da paixão? Não:

todos nós possuímos impressa em nós (impressa nobis), uma noção da lei eterna

(aeternae legis notio), pela qual conhecemos a justiça da ordem das coisas (De Lib.

Arb. I, 6, 15). Mas, então, como é possível o domínio da paixão sobre o conhecimento

da lei eterna? O domínio da paixão não pode dever-se à própria paixão, pois a paixão

não pode dominar a mente racional, como o inferior não pode dominar o superior (De

Lib. Arb. I, 10, 20). Esse domínio só pode resultar de poderes da própria mente

racional, como a vontade e o livre arbítrio:

«Nenhuma outra coisa faz da mente seguidora da paixão (cupiditas), senão aprópria vontade e o livre arbítrio (propria voluntas et liberum arbitrium).» De Lib.Arb. I, 11, 21.

Em suma, se o mal é o domínio da paixão sobre a mente racional, e se esse

domínio é uma perversão da ordem das coisas, uma vez que se trata do domínio do

inferior sobre o superior, e, ainda, se esse domínio não pode acontecer por força do

inferior, a responsabilidade do mal só pode caber aos poderes superiores da mente,

que são a vontade e o livre arbítrio. A resposta à questão inicial da origem do mal que

fazemos é clara no final de De libero arbitrio I: «fazemo-lo pelo livre arbítrio da

vontade.» (16, 35).

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A vontadeO papel do livre arbítrio na questão da origem do mal faz sobressair, por sua vez,

o tema da vontade. A filosofia augustiniana da vontade inclui alguns

desenvolvimentos sobre os quais vale a pena reflectir, como sejam: a noção de boa

vontade, prenúncio de uma acepção de liberdade menos condicionada pela questão da

origem do mal (De Lib. Arb. I, 12, 25 – 15, 32); a questão da impotência da vontade,

na experiência da vontade em luta (Conf. VIII, 8, 19 – 9, 21); e a abordagem do

suicídio, não só a nível moral, como, desde logo, ao nível da metafísica da vontade

(De Lib. Arb. III, 6, 18 – 8, 23)

A boa vontade: «A vontade pela qual desejamos viver recta e honestamente, e

alcançar a sabedoria suprema.» (De Lib. Arb. I, 12, 25). Esta é a vontade bem

ordenada, que nos defende da desordem do mal. E esta vontade não é algo

transcendente, mas algo que está inteiramente ao nosso alcance, porque nada está

mais ao alcance da vontade do que a própria vontade (De Lib. Arb. I, 12, 26). O que

significa, entretanto, querer a boa vontade? Significa ter as quatro virtudes cardeais –

prudência, fortaleza, temperança e justiça (De Lib. Arb. I, 13, 27-29) –, e amar a lei

eterna (De Lib. Arb. I, 14, 30-32).

Mas, se tudo isto, que constitui a boa vontade, está inteiramente ao alcance da

vontade, por que é que a vontade fraqueja e parece impotente para querer toda a

bondade de que é capaz? Porque a vontade pode dividir-se em vontades

contraditórias, que, efectivamente, reduzem a sua força:

«Donde vem esta monstruosidade (unde hoc monstrum)? E porquê isto? O espíritomanda no corpo, e é logo obedecido: o espírito manda em si mesmo, e encontraresistência. O espírito manda que a mão se mova, e a facilidade é tanta que a custo sedistingue a ordem da sua execução: e o espírito é espírito, e a mão, corpo. O espíritomanda que o espírito queira, e, não sendo outra coisa, todavia não obedece. Dondevem esta monstruosidade? E porquê isto? Manda, repito, que queira, ele que nãomandaria se não quisesse, e não faz o que manda. Mas não quer totalmente: portanto,não manda totalmente. Pois manda somente na medida em que quer, e aquilo quemanda não se faz, na medida em que não quer, porque a vontade manda que hajavontade, não outra, mas ela mesma. Por isso não manda por inteiro; logo, aquela coisaque manda não existe. Pois, se fosse inteira, não mandaria que existisse, porque jáexistiria. Portanto não é uma monstruosidade em parte querer e em parte não querer,mas é uma doença do espírito, porque ele, carregado com o peso do hábito, não seergue completamente, apoiado na verdade. E, assim, existem duas vontades, porqueuma delas não é completa, e está presente numa aquilo que falta à outra.» Conf. VIII,9, 21.99

99 Op. cit., p.357.

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Aquilo que parece de facto uma impotência da vontade é, na realidade, a vontade

em luta consigo mesma. Tal como nada está tão ao alcance da vontade quanto a

própria vontade, assim também nada pode enfraquecer tanto a força da vontade

quanto a própria vontade. A impotência da vontade nunca é o efeito de forças

exteriores ou inferiores à vontade. A vontade é sempre soberana, mesmo quando

parece fraquejar, de acordo com a orientação voluntarista da filosofia augustiniana.

E, quanto à vontade de morrer, é este desejo ainda uma expressão de soberania da

vontade? Agostinho aprofunda o tema do suicídio, em De Libero Arbitrio III (6, 18 –

8, 23), ao nível da metafísica da vontade. Aí o autor questiona a vontade de não ser,

para defender que esta não é uma propriedade real da vontade. Esta posição é

sustentada por uma dupla afirmação: a do ser da vontade e a da bondade do ser. Antes

de mais, aquele que quer não ser já é querendo, pelo que Agostinho lhe replica:

«Dá graças pelo facto de que és querendo (es volens), a fim de que te seja retiradoaquilo que és contrariado (quod invitus es). Na verdade, és querendo, e és infelizcontrariado.» De Lib. Arb. III, 6, 18.

Ademais, ser e bem são permutáveis entre si:

«Todas as coisas, pelo facto de serem (eo ipso quo sunt), são justamentelouváveis, porque, pelo facto de serem, são boas.» De Lib. Arb. III, 7, 21.

Da dupla afirmação do ser da vontade e da bondade do ser, Agostinho infere a

impossibilidade da vontade de negar o ser:

«Na verdade, vê quão absurda e inconvenientemente se diz: preferiria não ser aser infeliz. Quem diz “preferiria” isto àquilo, elege algo. Não ser, porém, não é algo,mas nada; e, por isso, de modo nenhum podes eleger correctamente, quando aquiloque eleges não é.» De Lib. Arb. III, 8, 22.

Quem prefere não pode negar, nem o ser do seu querer, nem o ser daquilo que

prefere. Preferir não ser, ou preferir o nada, é, afinal, uma tradução errónea e ilusória

de um desejo real e positivo de quietude (De Lib. Arb. III, 8, 23). A vontade de morrer

não é uma possibilidade própria da vontade, uma vez que contraria o seu próprio ser.

O desejo de morte é realmente um desejo de quietude, cuja conotação com a morte é

uma ilusão para Agostinho.

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O bispo de Hipona volta a abordar o tema do suicídio, do ponto de vista moral, a

propósito das violações das mulheres romanas, por ocasião do saque de Roma de 410,

uma vez que muitas entenderam salvar a honra por via do suicídio. Agostinho

considera moralmente injustificável o suicídio daquelas mulheres, que não podiam ter

perdido a honra em actos de que não foram responsáveis (De Civitate Dei I, 16-29).

Além disso, é questionável que o valor da honra possa justificar o sacrifício da vida:

se é decerto melhor uma vida com honra do que uma vida sem ela, menos certo é que

a uma vida sem honra seja preferível a morte.

1.2.2. A liberdade para além do mal: Anselmo

Pensar a liberdade para além da questão da origem do mal era um desiderato que

já se fazia sentir em Agostinho: «a liberdade (libertas), e nenhuma é decerto

verdadeira, a não ser a dos bem-aventurados e dos que aderem à lei eterna» (De Lib.

Arb. I, 15, 32). Todavia, o centramento da filosofia da liberdade na questão da origem

do mal não permitia ao filósofo patrístico defender o valor do livre arbítrio senão

como um bem médio (De Lib. Arb. II, 18, 47 – 20, 54).

O descentramento da questão da origem do mal na filosofia da liberdade foi um

passo assumidamente dado por Anselmo de Cantuária, em De Libertate Arbitrii. Este

título do opúsculo anselmiano anuncia esse passo, enfatizando o tema da liberdade

relativamente ao do arbítrio, uma vez que trata substantivamente da liberdade do

arbítrio. A liberdade continua sendo uma propriedade do arbítrio, mas não aquela pela

qual o arbítrio está na origem do mal:

«Pelo livre arbítrio, pecou o anjo apóstata ou o primeiro homem, porque pecoupelo seu arbítrio, que era de tal modo livre que por nenhuma outra coisa poderia sercoagido a pecar. E, por isso, é justamente repreendido, porque, com a condição de teresta liberdade do seu arbítrio, pecou sem alguma coisa coagente, sem algumanecessidade, mas espontaneamente (sed sponte). Pecou pelo seu arbítrio, que eralivre; mas não pela causa de ser livre (sed non per hoc unde liberum erat), isto é, pelopoder pelo qual podia não pecar e não servir o pecado, mas pelo poder que tinha depecar, pelo qual não era exortado para a liberdade de não pecar nem era coagido àservidão de pecar.» De Libert. Arb. 2100.

100 Texto da ed. crítica de F. S. Scmitt (I, p.210), reprod. em L’Oeuvre de S. Anselme de Cantorbéry 2,Paris, Cerf, 1986, p.214.

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Portanto, a liberdade do arbítrio e o poder de pecar não são o mesmo poder: são

dois poderes distintos do mesmo arbítrio. O arbítrio que tem o poder de pecar é o

mesmo que é livre, mas não peca por ser livre, ainda que peque espontaneamente, por

não ser coagido.

A distinção entre liberdade e poder de pecar era decisiva para se obter uma noção

transcendental de liberdade, isto é, uma noção que fosse comum a Deus, ao anjo e ao

ser humano. Logo no início do seu opúsculo sobre a liberdade, Anselmo adverte:

«Não penso que a liberdade do arbítrio seja a potência de pecar e de não pecar.Com efeito, se fosse esta a definição dela, nem Deus nem os anjos, que não podempecar, teriam livre arbítrio, o que não se pode dizer.» De Libert. Arb. 1 (Schmitt: I,p.207).

Só uma noção de liberdade, distinta do poder para o mal, pode ser considerada

atributo divino, e, desse modo, mais que um bem médio, um bem superior. Entretanto,

a definição deste bem superior deve ser uma só e a mesma, qualquer que seja o grau

de perfeição da natureza livre:

«Embora o livre arbítrio dos homens difira do livre arbítrio de Deus e dos anjosbons, a definição desta liberdade, segundo este nome, deve ser a mesma nuns enoutros.» De Libert. Arb. 1 (Schmitt: I, p.208).

Quer isto dizer que Anselmo defende uma noção de liberdade, não só

transcendental, isto é, maximamente universal, como unívoca. E essa noção recebe a

seguinte definição:

«Portanto, uma vez que toda a liberdade é poder, aquela liberdade do arbítrio é o

poder de guardar a rectitude da vontade pela própria rectitude (illa libertas arbitrii est

potestas servandi rectitudinem voluntatis propter ipsam rectitudinem).» De Libert.

Arb. 3 (Schmitt: I, p.212).

Esta é a definição, não só de uma noção transcendental unívoca de liberdade,

como de uma noção de liberdade incondicionada por algum interesse ou limite. A

liberdade é o poder de nada trocar pela rectitude da vontade, a qual recebe, em

Anselmo, o nome de “justiça”. A liberdade é, por assim dizer, a guardiã do valor

absoluto da justiça.

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Em consequência do descentramento do tema do mal na concepção anselmiana de

liberdade, obscurece-se a questão da origem do mal. Ainda que, na linha de

Agostinho, Anselmo defenda a soberania da vontade nas circunstâncias mais

constrangedoras (De Libert. Arb. 5-8), e se ocupe da liberdade no estado decaído do

ser humano (De Libert. Arb. 4, 10-12), a verdade é que deixa de ser identificável uma

causa para o mal, isto é, para o abandono da rectitude da vontade. A vontade não pode

ser obrigada a abandonar a sua própria rectitude, razão pela qual esse abandono não

pode ser senão espontâneo: mas o que significa esta espontaneidade? Não

conseguimos dilucidá-la senão dizendo:

«Como esta espontaneidade não é expressão de liberdade, resta tomá-la por umanegação de necessidade ou, de forma equivalente, por uma negação de racionalidade.A espontaneidade, que não é liberdade, mas apenas não necessidade, acusa de factoum deficit de racionalidade no pecado. Tal espontaneidade, ou não necessidade, é,então, função, não só da voluntariedade do pecado, como da irracionalidade do malou da injustificabilidade da injustiça à luz da filosofia transcendental da vontade e daliberdade, segundo Santo Anselmo.»101

1.2.3. A liberdade e os seus opostos: Agostinho e Anselmo

Na sua última obra, com o extenso título de De Concordia Praescientiae et

Praedestinationis et Gratiae Dei cum Libero Arbitrio, Anselmo sistematiza as três

grandes questões que se colocaram, na filosofia da Idade Média, acerca da liberdade:

a questão da compossibilidade da presciência com o livre arbítrio (Quaestio I: de

praescientia et libero arbitrio); a questão da compossibilidade da predestinação com

o livre arbítrio (Quaestio II: de praedestinatione et libero arbitrio); e a questão da

compossibilidade da graça com o livre arbítrio (Quaestio III: de gratia et libero

arbitrio). As decisões de Anselmo, no âmbito destas questões, inscrevem-se na

linhagem de Agostinho.

A questão da compossibilidade da presciência com o livre arbítrioEsta era uma questão que Agostinho retoma expressamente a partir de Cícero.

Este tinha considerado a questão em De Natura Deorum e em De Divinatione,

101 Maria Leonor Xavier, Razão e Ser. Três questões de ontologia em Santo Anselmo, Lisboa,Fundação Calouste Gulbenkian – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 1999, p.649.

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renunciando à presciência em favor do livre arbítrio. Agostinho dá-nos conta da

posição de Cícero em De Civitate Dei V (9-10), e, relativamente a esta, define a sua

própria posição. Agostinho também é muito crítico a respeito das práticas e técnicas

humanas de presciência, especialmente as da astrologia, a qual combate com grande

veemência verbal (De Civitate Dei V, 1-7; De Doctrina Christiana II, 21, 32 – 24,

37). Todavia, Agostinho não nega a possibilidade de toda e qualquer presciência.

Agostinho não nega, sobretudo, a necessidade da presciência divina, em função da

perfeição de Deus. Ele não pode, por isso, salvar o livre arbítrio, negando pura e

simplesmente a presciência. Agostinho empenha-se, sim, em defender que a

presciência divina não impede o livre arbítrio (De Libero Arbitrio III, 2, 4 – 4, 11; De

Civitate Dei V, 9-10). E isto por duas razões. Antes de mais, porque a presciência

divina, não podendo ser falsa, previu o livre arbítrio do ser humano; logo, a

presciência divina não anula, antes postula a liberdade humana. Ademais, porque o

conhecimento não obriga a vontade, não há coacção do conhecer sobre o querer; logo,

a presciência divina não afecta a liberdade da vontade.

Anselmo pronuncia-se, na continuidade de Agostinho, a favor da

compossibilidade da presciência com o livre arbítrio. Aquilo que Anselmo acrescenta

é uma reelaboração da solução de Agostinho, com base na sua distinção entre

necessidade precedente (praecedens) e necessidade sequente (sequens): a necessidade

precedente é uma necessidade coagente e é aquela que qualquer causa imprime no seu

efeito, por força de o ter causado; a necessidade sequente é uma necessidade não

coagente, mas decorrente quer da existência das coisas quer da verdade do

conhecimento. À luz desta distinção, podem reformular-se do seguinte modo as duas

razões, acima discriminadas, da resposta augustiniana: por um lado, a verdade da

presciência divina postula com necessidade o livre arbítrio, mas apenas com uma

necessidade sequente; por outro lado, a presciência não anula o livre arbítrio da

vontade, porque o conhecimento não obriga a vontade, isto é, porque o conhecimento

não imprime na vontade alguma necessidade precedente, que anulasse a sua liberdade.

Ressalve-se que os actos livres não estão isentos de toda e qualquer necessidade:

eles são passíveis de necessidade sequente, que é uma acepção universalíssima de

necessidade, segundo Anselmo; eles são passíveis também de necessidade precedente,

aquela que neles é impressa pela sua causa, a vontade livre.

Cabe ainda notar certa inflexão da questão, de Agostinho para Anselmo. Para

Agostinho tratava-se da questão da compossibilidade da presciência divina com o

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livre arbítrio humano, portanto, da compossibilidade de Deus presciente com o

homem livre. A questão denunciava de certo modo um conflito entre Deus e o

homem. Já para Anselmo, a questão penetra mais profundamente no âmbito da

teologia, denunciando o conflito entre dois atributos divinos: o da presciência e o da

liberdade. Como pode Deus ser simultaneamente presciente e livre? Esta é, a nosso

ver, a feição mais singularmente anselmiana da questão:

«Quando Deus quer ou faz algo, quer se diga segundo a imutável presença daeternidade, na qual nada é pretérito ou futuro, mas tudo simultaneamente e sem todo omovimento – como quando dizemos que não quis nem quererá ou fará algo, masapenas que quer e faz –, quer se diga segundo o tempo – tal como quando dizemosque quererá ou fará aquilo que ainda não conhecemos que tenha feito –: não se podenegar que saiba aquilo que quer e faz e que preveja aquilo que quererá e que fará. Porisso, se o saber e o prever de Deus imprime necessidade em tudo aquilo que sabe ouprevê, nada segundo a eternidade ou segundo algum tempo Deus quer ou faz porliberdade, mas tudo por necessidade.» De Conc. I, [4]102.

Anselmo não responde à questão da compossibilidade da presciência e da

liberdade em Deus, de maneira diferente daquela como responde à mesma questão no

caso do homem: os actos livres de Deus não são precedentemente necessários senão

por efeito da própria vontade divina, e, devido à presciência divina, os mesmos actos

não são senão sequentemente necessários.

A questão da compossibilidade da predestinação com o livre arbítrioEsta é uma questão decorrente da doutrina paulina da predestinação dos eleitos

(Rom. 8, 28-30): a predestinação divina é ou não uma coacção inelutável para a

liberdade humana? Para Agostinho, esta questão se aproxima mais da questão da

compossibilidade da graça com o livre arbítrio, enquanto que, para Anselmo, esta

questão se subsume na primeira, a da compossibilidade da presciência com o livre

arbítrio. Com efeito, Anselmo mostra não ter uma noção forte de predestinação,

reduzindo-a praticamente à noção de presciência, uma vez que ela não imprime maior

necessidade nos actos humanos do que a presciência. A resposta anselmiana a esta

questão é, por isso, a mesma que foi dada à questão anterior.

102 Texto da ed. crítica de F. S. Scmitt (II, p.252), reprod. em L’Oeuvre de S. Anselme de Cantorbéry 5,Paris, Cerf, 1988, p.170.

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A questão da compossibilidade da graça com o livre arbítrioNa história da filosofia, cabe especialmente à controvérsia pelagiana o mérito de

ter posto em questão a relação entre o livre arbítrio e a graça, com respeito à salvação.

A questão pode formular-se do seguinte modo: o livre arbítrio é suficiente ou é

necessária a graça para a salvação? O monge contemporâneo de Agostinho, Pelágio,

defendeu a suficiência do livre arbítrio, receando que a crença na graça diminuísse o

esforço e o zelo humanos na prática do bem. Contrariamente a Pelágio, o bispo de

Hipona advogou a necessidade da graça para a salvação e, consequentemente, a

insuficiência soteriológica do livre arbítrio, o que lhe valeu o epíteto de “Doutor da

Graça”. Contudo, a pugna augustiniana pela necessidade da graça não anula o papel

do livre arbítrio na trama do destino humano. Antes de ser anti-pelagiano, Agostinho

fora anti-maniqueu: contra o maniqueísmo, enfatiza a responsabilidade do livre

arbítrio na origem do mal, nem necessário nem substancial; contra o pelagianismo,

adverte da necessidade da graça no processo da salvação. Mais do que a necessidade

da graça contra a suficiência do livre arbítrio, Agostinho defende a necessidade da

graça com o livre arbítrio. Qualquer que seja a proporção relativa do livre arbítrio e da

graça, na ponderação de Agostinho, a sua afirmação da compossibilidade dos dois

opostos converteu-se em paradigma da posição anti-pelagiana, para a tradição

filosófica posterior. Depois de Agostinho, a questão soteriológica, que estava no cerne

da controvérsia pelagiana, transmuta-se de forma a dar lugar a uma outra: como é que

são compossíveis o livre arbítrio e a graça em ordem à salvação?

Com esta questão, consfronta-se já Anselmo. Aquilo que é mais singularmente

significativo na versão anselmiana da questão é o descentramento do tema da

salvação e, com este, o do pecado original. O pecado original e a necessidade de

salvação justificam a fortiori a necessidade da graça, mas, não fosse o pecado original

e a necessidade de salvação, a graça não não deixaria por isso de ser necessária.

Porquê? Por exigência da própria natureza da vontade humana. De facto, Anselmo

defende a necessidade da graça como uma necessidade natural da nossa vontade. A

presente questão torna-se, por isso, assunto de metafísica da vontade. Ora, Anselmo

analisa a vontade sob três aspectos: o instrumento de querer (instrumentum volendi),

que é a vontade como potência ou faculdade; a afecção do instrumento (affectio

instrumenti), que é a inclinação própria da vontade, como seja a afecção para querer a

justiça e a afecção para querer a felicidade; e o uso do mesmo instrumento (usus

eiusdem instrumenti), ou seja, o acto voluntário determinado por um objecto exterior

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(De Conc. III, [11], in Schmitt: II, pp.279-281). Terá a graça algum cabimento nesta

análise? Sim, ao nível das afecções da vontade: o ser humano não possui estas

afecções, as inclinações que são constituintes da vontade, senão porque as recebeu,

isto é, porque são dons da graça, quer da graça preveniente (praeveniens), aquela que

dá a posse, quer da graça subsequente (subsequens), aquela que dá a guarda (De

Conc. III, [4], in Schmitt: II, p.267). Compreende-se agora que o livre arbítrio não

possa exercer o seu poder de liberdade, sem a graça, pois o livre arbítrio só pode

guardar a justiça que a vontade já possui pelo dom da graça. A natureza da liberdade

postula a necessidade da graça. Julgamos, por isso, que Anselmo naturalizou a noção

de graça.

1.2.4. Liberdade e necessidade: Tomás de Aquino

A filosofia tomista da liberdade, ponderada no século do renascimento filosófico

de Aristóteles, não podia ignorar o legado da ética aristotélica. A influência deste

legado está na base da formulação de uma problemática diferente em torno da

liberdade. Embora não dissociada da questão da origem do mal, aquilo que, para

Tomás de Aquino, está, sobretudo, em causa acerca da liberdade, é o modo como esta

se relaciona com a ordem dos fins e afecta a própria ordem relativa entre vontade e

intelecto. Tal é o que ressalta das duas questões 82 e 83 de Summa Theologiae I. Aí

Tomás de Aquino defende uma posição intermédia na questão da liberdade ou da

necessidade dos fins da vontade: a vontade não é livre relativamente ao seu fim

último, a felicidade (beatitudo), que quer necessariamente (q.82, aa.1-2), mas é livre a

respeito de todos os objectivos particulares (q.83, aa.1-2). É esta liberdade que Tomás

de Aquino entende por livre arbítrio, que pode escolher bem ou mal, e que, desse

modo, se mantém ligado à questão da origem do mal.

Todavia, problemático, para Tomás de Aquino, não é tanto o livre arbítrio quanto

é o equilíbrio entre intelecto e vontade, que o próprio livre arbítrio põe em causa. A

vontade livre pode revelar-se concorrente da soberania do intelecto na complexidade

da vida humana. É certo os antigos, entre os quais Aristóteles, reconheciam a índole

racional da vontade, o que nunca foi posto em causa na filosofia medieval. No

entanto, a vontade constitui uma forma de intencionalidade distinta do intelecto e,

para mais, caracteriza-se por uma propriedade, a liberdade, que é oponível à

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necessidade do que é conhecido pelo intelecto. A liberdade vem, por isso, causar

alguma tensão entre a vontade e o intelecto. Daí a questão do primado da vontade ou

do intelecto, que tão expressivamente emerge em Tomás de Aquino (Sum. Theol. I,

q.82, aa.3-4, e II, q.9, a.1).

É Tomás de Aquino um intelectualista ou um voluntarista? Na referida questão

82, artigo 3, Tomás de Aquino pergunta se a vontade é uma potência superior ao

intelecto. Na sua resposta, Tomás de Aquino defende: a superioridade simples ou

absoluta do intelecto à vontade; uma superioridade relativa do intelecto à vontade, na

medida em que o conhecimento das coisas corpóreas é superior ao amor às mesmas; e

também uma superioridade relativa da vontade ao intelecto, na medida em que o amor

a Deus é superior ao conhecimento de Deus. No artigo 4, da mesma questão, o autor

pergunta ainda se a vontade move o intelecto. Por um lado, o intelecto move a

vontade segundo o fim; por outro lado, a vontade move o intelecto segundo o agente.

Mais adiante, Tomás de Aquino pergunta se a vontade é movida pelo intelecto, para

responder afirmativamente, na medida em que é o intelecto que mostra à vontade o

seu objecto: o bem comum (Sum. Theol. I-II, q.9, a.1). Balanço feito, a orientação de

Tomás de Aquino é intelectualista. Se a vontade é um agente para o intelecto, o

intelecto é o guia da vontade. Mais perniciosa será, para a vontade, a falta de

orientação do intelecto do que, para o intelecto, a falta de força da vontade.

2. A liberdade de Deus

A liberdade de Deus é algo que se encontra no fundo da questão da eternidade ou

da novidade do mundo, tal como foi pensada na Idade Média. A questão de saber se o

mundo é eterno ou se teve um começo é uma questão antiga na história da filosofia,

mas tem no séc. XIII um dos seus principais momentos de debate, devido ao

confronto da tese judaico-cristã da criação com a física de Aristóteles, que continha

razões em prol da eternidade do mundo. A questão da eternidade do mundo, a par da

questão da unidade do intelecto, é, de facto, uma das questões mais controversas e

debatidas do século do renascimento de Aristóteles. A questão da unidade do intelecto

punha em causa, como vimos, a individualidade do ser humano e, com ela, a liberdade

ou a responsabilidade pelo seu destino; a questão da eternidade do mundo, por seu

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turno, põe em causa a liberdade divina a respeito da criação, como veremos através da

abordagem de Tomás de Aquino.

2.1. A questão da eternidade do mundo: versões antigas, patrísticas e escolásticas

A questão da eternidade do mundo é uma das questões significativas da filosofia

do séc. XIII, porque foi então objecto de viva controvérsia, como dão testemunho os

textos dos filósofos que acusam estreito envolvimento nos debates do seu tempo. Tal

como foi debatida na época, a questão da eternidade do mundo era uma expressão

resultante do choque da então renascente física de Aristóteles com a tradicional

teologia judaico-cristã da Criação. A física de Aristóteles conduzia a defender a tese

da eternidade do mundo, vindo esta a figurar nas listas dos erros dos filósofos, ou de

proposições condenadas pelo bispo de Paris, Étienne Tempier, em 1270 (13

proposições) e em 1277 (219 proposições). A questão da eternidade do mundo tendia,

por isso, a dividir filósofos e teólogos.

Quer isso dizer que a questão da eternidade do mundo é uma questão circunscrita

à Escolástica do séc. XIII? Não. Trata-se de uma questão com uma longa história,

com antecedentes documentáveis desde a Antiguidade clássica e com uma posteridade

ainda hoje inconclusa. Trata-se de uma dessas questões que têm uma longa história e

que não têm solução definitivamente adquirida pelo saber humano.

A questão da natureza gerada do mundo: PlatãoPlatão, no Timeu (28a – 38c), formula a questão de saber se o mundo foi ou não

foi gerado, e decide-se a favor da geração do mundo: por analogia com tudo o que é

sensível e corpóreo no mundo, e que está sujeito à geração e à corrupção, o próprio

mundo, como totalidade corpórea e sensível, deve ter sido gerado. Uma vez que tudo

o que é gerado tem uma causa, Platão admite um autor do mundo, que é voluntário e

generoso, e que, por isso, fez o mundo à imagem da perfeição, isto é, ordenou a

matéria caótica em conformidade com os modelos eternos. A eternidade dos modelos

não se confunde, porém, com a temporalidade do mundo gerado: o tempo, que é

próprio deste mundo, é uma imagem móvel da eternidade.

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A questão do começo do tempo e do movimento: AristótelesO tempo e o movimento tornam-se, entretanto, temas nucleares da física de

Aristóteles. Acerca do tempo e do movimento, Aristóteles formula a questão de saber

se têm ou não um começo. Nos livros da Física, o autor pende claramente para a

negação de algum começo para o tempo (Física IV, 219 b – 221 a) e o movimento

(Física VIII). À luz da física de Aristóteles, ganha força a tese da eternidade do

mundo. No entanto, a eternidade é uma forma de infinitude e o Estagirita tinha

reservas relativamente a algumas acepções de infinito: nega o infinito actual, embora

conceda o infinito potencial na ordem dos números (Física III, 207 a). Talvez por

causa das reservas a respeito do infinito, Aristóteles não defendeu assertivamente a

tese da eternidade do mundo. O filósofo reconhece mesmo que a questão da

eternidade do mundo é uma questão dialéctica, que não pode, por isso, ser pensada

senão com base em premissas prováveis (Tópicos I, 104 b 1-16).

A questão de um começo temporal do mundo: PatrísticaPara os primeiros teólogos do cristianismo, não era óbvio que a criação

primordial, narrada no Génesis, fosse um começo temporal do mundo. Na verdade,

esta hipótese levantava dificuldades de vária ordem, sobretudo, teológicas. Um dos

mais eminentes representantes da Patrística grega, Orígenes, foi particularmente

sensível a essas dificuldades, como seja a seguinte: se houve um começo temporal do

mundo, houve algum tempo em que não se exerceram os poderes criador e providente

de Deus, em suma, a omnipotência divina. Mas estes atributos divinos, como os

restantes, são indefectíveis e, portanto, eternos. Logo, Deus tem que ter sido sempre

criador, providente e omnipotente. Orígenes advoga assim uma criação necessária e

eterna em função da indefectibilidade dos atributos divinos103.

Agostinho depara com uma dificuldade similar de índole teológica, que lhe fora

colocada pelos maniqueus: o que fazia Deus antes de criar? Se a criação bíblica fosse

um começo temporal do mundo, Deus estaria inactivo antes da criação, o que é uma

inconveniência teológica, à luz da vida indefectivelmente activa e espiritual de Deus.

Agostinho supera esta dificuldade, defendendo uma criação do tempo com o mundo.

Assim sendo, não havia tempo antes da criação do mundo; logo, não havia tempo em

que Deus estivesse inactivo antes da criação do mundo. O começo da criação não103 Cf. Orígenes, Tratado dos Princípios (Peri Archôn), introdução e tradução francesa de MargueriteHarl, Gilles Dorival e Alain Le Boulluec, Paris, Études Augustiniennes, 1976: I, 2, 10 (p.44) e 4, 3-5(pp.57-58).

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pode, pois, ser concebido como um começo temporal ou no tempo. Como

compreender, então, o primeiro versículo do livro do Génesis: «No princípio criou

Deus o céu e a terra»? Entre as interpretações possíveis deste versículo, Agostinho

prefere aquela que identifica o princípio com o Verbo eterno de Deus. O princípio da

criação não é, portanto, um começo temporal do mundo, mas o Verbo eterno de Deus,

por meio do qual Deus criou o tempo com o mundo. Esta solução complexa de

Agostinho conduz-nos a conceber a ideia de um começo não temporal do tempo e do

mundo, o que é um desafio à nossa imaginação e inteligência (Confessionum XI, 3, 5

– 13, 15; 30, 40; XII, 9, 9; 13, 16 – 20, 29; 28, 39 – 29, 40; De Civitate Dei XI, 4-6;

XII, 10-19).

Cristão versado nas filosofias de Platão e de Aristóteles, Boécio não enjeita nem

o Timeu, de Platão, nem os argumentos da Física, de Aristóles, contra um começo do

tempo e do movimento. Ele admite, por isso, um tempo perpétuo, ainda que distinto

da eternidade: o tempo é sucessivo, enquanto o eterno é simultâneo. Esta distinção

entre perpetuidade e eternidade, ou, se preferirmos, entre uma eternidade temporal de

sucessão e uma eternidade atemporal de simultaneidade, é o contributo mais relevante

de Boécio para a questão da eternidade do mundo. Tal distinção permite conceber que

o mundo seja perpétuo, de acordo com a física de Aristóteles, não obstante o mundo

ser criado com o tempo, de acordo com a cosmogonia platónica e com a filosofia

augustiniana da criação, sem que a perpetuidade do mundo criado se confunda com a

eternidade do criador (Philosophiae Consolationis III, met. 9; V, pr.6).

A questão da eternidade ou da novidade do mundo: EscolásticaSigério de Brabante e Boécio de Dácia foram ambos mestres da Faculdade das

Artes de Paris, na segunda metade do séc. XIII, e ficaram associados à corrente do

averroísmo latino, a corrente que defendia, nos meios universitários latinos, as

principais teses do Filósofo, Aristóteles, segundo a interpretação do Comentador,

Averróis. Os dois filósofos escolásticos defenderam a plausibilidade filosófica da

hipótese da eternidade do mundo, em consonância com a herança da filosofia

aristotélica.

Tome-se, em particular, o exemplo de Boécio de Dácia, no seu opúsculo De

Aeternitate Mundi. Aí o autor analisa a questão da eternidade do mundo em dois

níveis, ao nível da sua possibilidade e ao nível da sua necessidade. Em primeiro lugar,

discute a questão da possibilidade do mundo ser eterno, levantando os principais

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argumentos contra e a favor dessa possibilidade. Ainda que os argumentos contra

sejam em maior número (11) do que os argumentos a favor (5), o facto daqueles

serem enumerados em primeiro lugar indica, na estrutura da questão disputada, que

são os que suportam a tese oposta àquela que o mestre defende. Ademais, a série dos

cinco argumentos a favor da possibilidade do mundo ser eterno termina com a

seguinte confirmação explícita:

«Consequentemente, o mundo pode ser eterno, nada decorrendo daqui deimpossível do ponto de vista racional, nem de inconveniente, em termos deargumentação. Isto tornar-se-á evidente a todo aquele que dedicar a sua atenção a estetema.»104.

Este passo é por demais evidente quanto à simpatia de Boécio de Dácia pela tese

da possibilidade do mundo ser eterno. De seguida, discute a tese assertiva da

eternidade do mundo, com treze argumentos a favor e treze contra-argumentos. Mas

entre aqueles argumentos e estes contra-argumentos, expõe-se a parte crucial do

desenvolvimento da questão em Boécio de Dácia: aquela em que este contrapõe à tese

da eternidade do mundo, a tese da novidade do mundo, os argumentos contra esta e os

contra-argumentos. É, nesta contra-argumentação, que, a nosso ver, Boécio de Dácia

revela o essencial da sua posição, denunciando os limites das ciências filosóficas na

capacidade de demonstrar esta tese. Ele empenha-se, sobretudo, em tornar evidente

que a tese da novidade do mundo não é física, nem matemática, nem metafisicamente

demonstrável. Conteúdos da fé cristã, como a novidade do mundo ou a ressurreição

dos mortos, não são filosoficamente demonstráveis. A fé excede a razão de modo que

só pela fé se pode admitir aquilo que não é possível perscrutar pela razão.

A perspectiva boeciodaciana sobre a separação entre fé e razão conduz-nos a

introduzir o tema da dupla verdade, como acusação de que eram alvo aqueles que

defendiam uma verdade segundo a fé e a sua contraditória segundo a filosofia. Cabe

desde já ressalvar que, no caso de Boécio de Dácia, não há a afirmação, ao mesmo

nível de duas verdades contraditórias. Há, sim, a afirmação, do ponto de vista

filosófico, da possibilidade do mundo ser eterno; há também a negação, do ponto de

vista filosófico, da demonstrabilidade quer da eternidade do mundo quer da novidade

104 Boécio de Dácia, A Eternidade do Mundo (De Aeternitate Mundi), trad., introd. e notas de Mário A.Santiago de Carvalho, Lisboa, Edições Colibri, 1996, p.41.

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do mundo, o que não impede que esta tese seja assumível a outro nível e a partir de

outras fontes de sabedoria, como seja ao nível da fé na Revelação.

A plurivocidade da questãoA consideração de diversos momentos e referências da história da questão da

eternidade do mundo torna-nos sensíveis ao facto de que a questão nem sempre teve

exactamente o mesmo teor, recebendo vários registos e versões entre a física e a

metafísica. Não podemos, pois, deixar de ter esta variabilidade em conta quer no

estudo das recensões escolásticas da questão quer na avaliação da sua pertinência

actual.

Hoje preferimos falar da questão da origem do universo em vez da questão da

eternidade do mundo, porque o conhecimento científico parece autorizar mais a

admissão de uma origem para o universo do que a sua eternidade. Com efeito, a

ciência do séc. XX legou-nos a teoria, que se tornou já popular sob o nome de

“big-bang”, segundo a qual o universo que conhecemos se encontra em expansão a

partir de uma explosão originária. Esta é um começo do universo para o conhecimento

científico, mas será o começo primordial da existência, da matéria e do tempo?

Poderemos nós extrair das teorias científicas ilações metafísicas, como a afirmação de

um começo primordial ou a de um autor do universo? Não, sem o tempero céptico da

consciência dos limites do conhecimento humano, e do risco especulativo de tais

afirmações.

2.2. A questão da eternidade do mundo em Tomás de Aquino

Na mesma época em que Boécio de Dácia escreveu sobre a questão da eternidade

do mundo, também Tomás de Aquino escreveu o seu opúsculo De Aeternitate Mundi.

Aí Tomás de Aquino não menciona nem polemiza contra os mestres de filosofia, que

ficaram conhecidos como representantes do averroísmo latino, e, neste propósito,

como simpatizantes da tese da eternidade do mundo. No opúsculo tomista, não

encontramos a formulação de uma posição clara pró ou contra a eternidade do mundo;

encontramos sim uma argumentação a favor da não contradição entre a afirmação da

criação do mundo e a da eternidade do mesmo. A defesa da compossibilidade das

duas teses opostas é um dos aspectos relevantes da posição singular e subtilmente

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elaborada de Tomás de Aquino, no âmbito da presente questão, no texto de De

aeternitate mundi. Atente-se na construção deste, que é exemplar do ponto de vista da

ordem das razões.

AnáliseA questão inicial é a questão da eternidade do mundo: se o mundo poderia ter

existido sempre. Esta questão decompõe-se logo em duas, conforme se considere o

mundo como algo para além de Deus ou como algo causado por Deus.

Questão1: Se algo para além de Deus poderia ter existido sempre. – Resposta:

Não, quer segundo a fé quer segundo a filosofia, pois, mesmo segundo a filosofia,

Deus é pertinente como causa suprema de tudo aquilo que existe para além dele.

Questão 2: Se algo poderia ter existido sempre e, no entanto, ter sido causado por

Deus. Esta é, em rigor, a questão do opúsculo tomista, que é de imediato decomposta

em duas: uma que considera a possibilidade do mundo eterno a partir da causa; outra

que considera a mesma possibilidade a partir do efeito.

Questão 2.1: Se Deus poderia fazer algo que sempre tenha existido. – Resposta:

Sim, em virtude da omnipotência divina (infinita potentia). Portanto, nada obsta, do

ponto de vista estritamente teológico, à criação de um mundo eterno.

Questão 2.2: Se algo que sempre tenha existido não poderia ter sido feito, ainda

que Deus pudesse fazer. Se não poderia ter sido feito um mundo eterno, por razões

inerentes ao próprio mundo, ainda que Deus pudesse fazê-lo. Esta é a questão, que

doravante é desenvolvida, requerendo nova decomposição, conforme se considere,

como possível impedimento, ou a remoção da potência passiva (matéria) ou a

repugnância racional, que é a contradição entre ter existido sempre e ter sido feito.

Questão 2.2.1: Se não pode ser feito algo que tenha existido sempre, por causa da

remoção da potência passiva. – Resposta: Do ponto de vista da filosofia, algo que

tenha existido sempre não pode ter sido feito senão a partir da potência passiva, isto é,

a partir da matéria pré-existente. A matéria teria, então, de ser eterna. Mas, do ponto

de vista da fé, a matéria não é eterna. Portanto, do ponto de vista da fé, a remoção da

matéria impede que algo eterno possa ter sido feito.

Questão 2.2.2: Se não pode ser feito algo que tenha existido sempre, por causa de

uma repugnância racional. Reformulando: Se há repugnância racional entre estas duas

coisas: que algo tenha sido causado por Deus e, no entanto, tenha existido sempre.

Reformulando de novo: Se ser criado por Deus em toda a substância e não ter

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princípio de duração repugnam entre si ou não. Tomás de Aquino teve aqui

necessidade de deixar bem explícita a questão, através de uma reiterada reformulação.

Esta é a questão crucial do opúsculo e é uma versão mais precisa da questão 2.

Trata-se, em suma, da questão de saber se há contradição entre ser criado e ser eterno,

a respeito do mundo. Esta questão é submetida a uma última decomposição, conforme

se considere, como razão para essa contradição, ou a necessária anterioridade

temporal da causa agente ao efeito ou a necessária anterioridade do não ser ao ser.

Questão 2.2.2.1: Se repugnam porque é necessário que a causa agente preceda em

duração. – Resposta: Não, por uma série de quatro argumentos. Antes de mais, porque

a criação não é um movimento. Uma acção por movimento supõe a prioridade de

duração da causa agente, mas não uma acção súbita (operatio subita), como Tomás de

Aquino admite ser a criação. Em segundo lugar, por analogia da causa produtora da

substância inteira com a causa produtora só da forma, como, por exemplo, com o sol

iluminante, quanto à capacidade de produzir o efeito enquanto dura a causa. A

fortiori, Deus, que causa a substância inteira, pode fazer durar o seu efeito tanto

quanto ele próprio dura. Em terceiro lugar, pela completude da causa agente, uma vez

que a causa completa e o causado são simultâneos. Em quarto lugar, porque a

liberdade de Deus não o impede de fazer com que o seu efeito nunca careça de

existência.

Questão 2.2.2.2: Se repugnam porque é necessário que o não ser preceda o ser em

duração. Esta questão torna-se tanto mais pertinente quanto se considera a ideia de

criação a partir do nada (ex nihilo): esta ideia postula certa precedência do nada. –

Resposta: Mas não necessariamente uma precedência de duração. Tal como se

confirma por algumas autoridades, a saber, Anselmo (Monologion, 8), Agostinho (De

Civitate Dei X, 31; XI, 4-5; XII, 15), João Damasceno (De Fide Orthodoxa I, 1),

Hugo de São Vítor (De Sacramentis I, 1) e Boécio (Philosophiae Consolationis V,

pr.6). Com efeito, a precedência do nada não tem que ser uma precedência de

duração, mas basta que seja uma precedência de natureza, não obstante o argumento

da infinitude das almas, extraído da negação aristotélica do infinito actual. Por um

lado, Deus poderia criar um mundo eterno sem homens e sem almas, ou um mundo

eterno com um número finito de homens e almas. Por outro lado, não foi ainda

demonstrado que Deus não possa fazer coisas infinitas em acto. Tomás de Aquino não

manifesta já tanta relutância relativamente ao infinito em acto, como Aristóteles.

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A indemonstrabilidade quer da eternidade quer da novidade do mundoTomás de Aquino parece, de facto, ter mais dúvidas na questão da eternidade do

mundo do que na questão da unidade do intelecto, sobretudo, quanto à força da

argumentação. Na questão da unidade do intelecto, Tomás de Aquino não põe em

causa a eficácia das suas razões contra a unidade do intelecto e a favor da

multiplicidade individual dos intelectos, mas, na questão da eternidade do mundo, ele

decide-se a favor da novidade do mundo, admitindo, no entanto, que a sua posição,

ainda que seja argumentável, não é propriamente demonstrável. Neste ponto, Tomás

de Aquino converge com Boécio de Dácia. No texto da Suma contra os Gentios

(Summa contra Gentiles II, cc.31-37), Tomás de Aquino organiza os argumentos pró

e contra a eternidade do mundo, segundo a consideração da causa, do efeito e do

próprio processo de produção do mundo, e dedica um último capítulo deste segmento

de reflexão (c.38), aos argumentos daqueles que se esforçam por demonstrar que o

mundo não é eterno, isto é, que começou a existir, sem assumir a força probatória de

tais argumentos.

É, porém, na Suma de Teologia (Summa Theologiae I, q.46), que encontramos a

formulação mais sintética e precisa da posição de Tomás de Aquino sobre a questão

da eternidade do mundo. Aí o autor defende a indemonstrabilidade quer da tese da

eternidade do mundo quer da afirmação de um começo do mundo. A razão principal

de tal indemonstrabilidade é o atributo divino da liberdade, pois, não existindo o

mundo senão enquanto Deus quer, nenhuma necessidade obriga a vontade divina a

querer que o mundo exista desde sempre ou a partir de um começo. Para além da

liberdade divina, não há razões necessárias que demonstrem que o mundo seja ou não

eterno.

A indemonstrabilidade da eternidade do mundoA totalidade das criaturas sempre existiu? (Sum. Theol. I, q.46, a.1)

Resposta: «deve dizer-se que nada, para além de Deus existiu desde toda aeternidade. E não é impossível afirmar isto. De facto, foi acima mostrado que avontade de Deus é a causa das coisas (q.19, a.4). Portanto, é tão necessário quealgumas coisas existam, quanto é necessário que Deus as queira, uma vez que anecessidade do efeito depende da necessidade da causa, como se diz no livro V daMetafísica (1015 b 10). Ora, foi mostrado acima (q.19, a.3) que, absolutamentefalando, não é necessário que Deus queira algo a não ser ele próprio. Não é, portanto,necessário que Deus queira que o mundo tenha existido sempre. Mas o mundo existetanto quanto Deus quiser que ele exista, uma vez que o ser do mundo depende da

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vontade de Deus, como da sua causa. Não é, por isso, necessário que o mundo tenhaexistido sempre. Donde, nem tal pode ser demonstrativamente provado.»

Deus é a causa voluntária do mundo, e, à semelhança da causa voluntária dos

actos humanos, Deus só quer uma coisa necessariamente: tal como a vontade humana

só quer necessariamente a felicidade, a vontade divina só quer necessariamente a sua

bondade, pela sua perfeita suficiência (q.19, a.3); tal como a vontade humana é livre a

respeito dos meios para a atingir a felicidade, a vontade divina é livre a respeito dos

modos de exprimir a sua bondade. Não é, por isso, necessário que Deus queira que o

mundo seja eterno. A hipótese da eternidade do mundo é indemonstrável, em última

análise, por causa da liberdade da vontade divina.

A indemonstrabilidade da novidade do mundoÉ um artigo de fé que o mundo tenha começado? (Sum. Theol. I, q.46, a.2)

Resposta: «deve dizer-se que só pela fé se sustenta que o mundo não existiusempre, e que não pode ser demonstrativamente provado, assim como acima foi ditoacerca do mistério da Trindade (q.32, a.1). E uma razão disto é que a novidade domundo não pode receber demonstração da parte do próprio mundo. De facto, oprincípio da demonstração é aquilo que é. Cada qual, porém, segundo a razão da suaespécie, abstrai do aqui e do agora, e é por isso que se diz que os universais estão emtodo o lugar e sempre. Donde, não se pode demonstrar que o homem, ou o céu, ou apedra não existiram sempre. – De modo similar, [a novidade do mundo] também não[pode receber demonstração] da parte da causa agente, que age por vontade. De facto,a vontade de Deus não pode ser investigada pela razão, a não ser acerca daquilo que éabsolutamente necessário que Deus queira, e tal não é aquilo que ele quer acerca dascriaturas, como foi dito (q.19, a.3).»

A novidade do mundo é indemonstrável por duas principais razões: por um lado,

pela ordem do conhecimento do mundo, conforme com o modelo aristotélico de

ciência, segundo o qual as demonstrações partem de princípios universais, que

abstraem do tempo e do lugar, e que não podem, por isso, demonstrar algum começo

no tempo ou do tempo, no espaço ou do espaço; por outro lado, pela ordem do

conhecimento de Deus, que não permite perscrutar o sentido da vontade divina quanto

àquilo que não é necessário que Deus queira, como seja tudo o que diz respeito à

criação. De novo, a liberdade divina, inelutavelmente fora do alcance da razão

humana, é a razão fundamental também da indemonstrabilidade do começo do

mundo.

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Sugestões bibliográficas.: Mário Santiago de Carvalho, A Novidade do Mundo:

Henrique de Gand e a Metafísica da Temporalidade no Século XIII, Lisboa, 2001;

Richard C. Dales, Medieval Discussions of the Eternity of the World, Leiden/ Nova

Iorque/ Copenhaga/ Colónia, 1990; Pierre Duhem, Le système du monde. Histoire des

doctrines cosmologiques de Platon à Copernic, T.II, Paris, 1914; José Maria Costa

Macedo, «A propósito do opúsculo De aeternitate mundi, de S. Tomás de Aquino»,

Mediaevalia 9 (Porto, 1996), pp.31-146; Maria Cândida C.R. Monteiro Pacheco, S.

Gregório de Nissa. Criação e Tempo, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia,

1983; Claude Tresmontant, La métaphysique du christianisme et la naissance de la

philosophie chrétienne. Problèmes da la création et de l’anthropologie des origines à

saint Augustin, Paris, Seuil, 1961; Idem, La métaphysique du christianisme et la crise

du XIIIe siècle, Paris, Seuil, 1964.