30
Mococa, o roçado. José Domingos Vecchi

Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

José Domingos Vecchi

Page 2: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,
Page 3: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

Mococa, o roçado.

Primeira Edição

São Paulo

2013

Page 4: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Créditos

Assessoria Técnica: Francisco de Assis Vecchi

Capa: Nathália Proeti Pardo

Diagramação: PerSe

Page 5: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Dedicatória

A Deus e a Jesus que permitem tenhamos, cada um, nossa própria história de amor.

À minha família que é a causa da minha mo-tivação de vida; em especial à Aurea, minha esposa que está sempre ao meu lado.

Aos meus filhos Francisco e Valdimir; às suas respectivas esposas Gláucia e Vânia.

A todos que me inspiraram a escrever este livro.

Page 6: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,
Page 7: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Prefácio

Assim como o universo está em constante movimento de expansão no espaço sideral, a hu-manidade toda vive o processo de migração. Assim, está em sintonia com o próprio universo, para que caminhe sempre em busca de seu espaço.

Se pára e, ainda não houve a acomodação necessária, sai novamente até que encontre seu verdadeiro lugar.

As aves, os animais aquáticos e terrestres que ainda não foram domesticados pelo homem e podem seguir seus instintos naturais, acompa-nham o movimento migratório.

O homem, através da história universal, só alcançou uma evolução mais rápida após conhecer novas culturas através de suas caminhadas entre nações, continentes.

Parece que este espírito indômito é algo in-trínseco ao seu caráter pois faz parte de sua pró-pria natureza: estar sempre em busca de um grande ideal.

Os Pratti-Granados, um dia, deixaram suas terras – Itália e Espanha, fugindo da pobreza ex-trema que desolava a Europa, em busca da terra prometida – a América, (mais precisamente o Bra-sil que lhes assinalava com boas terras e uma lín-gua próxima às faladas por eles), num intercâmbio de mãos-de-obra, passar conhecimentos de novas

Page 8: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

técnicas de plantio de solo, recolhendo as já utiliza-das pelos colonos aqui estabelecidos, enrique-cendo a mistura que ia se formando no cadinho da cultura nacional.

Mais tarde, seus filhos continuaram a cor-rente migratória, tomando novos espaços, bus-cando novos conhecimentos, porque, todo ser faz parte do cosmo que influi e é influenciado; age e re-cebe a ação do meio em que vive.

Page 9: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Sumário

Capítulo I _______________________ 11

Capítulo II ______________________ 24

Capítulo III ______________________ 29

Capítulo IV ______________________ 40

Capítulo V _______________________ 48

Capítulo VI ______________________ 53

Capítulo VII _____________________ 68

Capítulo VIII _____________________ 75

Capítulo IX ______________________ 93

Capítulo X ______________________ 108

Capítulo XI _____________________ 124

Capítulo XII ____________________ 137

Capítulo XIII ____________________ 145

Capítulo XIV ____________________ 151

Capítulo XV _____________________ 164

Capítulo XVI ____________________ 172

Capítulo XVII ___________________ 181

Capítulo XVIII ___________________ 186

Capítulo XIX ____________________ 197

Page 10: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,
Page 11: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

11

Capítulo I

Aquela tarde estava de um calor tão causticante que forçava qualquer um a procurar aconchego numa cadeira-espreguiçadeira, sob uma sombra formada na varanda da casa. A brisa no ar era tão tênue que mal dava para refrescar-se.

Quando dona Rosália, uma espanhola que se ca-sara em pleno Oceano Atlântico, a bordo do navio que a trazia para o Brasil, vislumbrou, pela janela da cozinha, aquele sujeito que ela e o marido respeitavam pela sua bondade, foi-lhe ao encontro para acordar seu consorte, um italiano que conhecera na viagem para cá. Nada no mundo se interpunha aos dois que não conheciam obs-táculos. Moral elevada e espírito voltado às coisas do alto, nem mesmo as doenças mais teimosas venciam a fé e esperança desse casal. A crueza com que as almas da-quele tempo caminhavam pela Terra não permitia a paz perene. Por isso, o patriarca daquela família, ainda um tanto sonolento, procurou se refazer do assombro ao ser acordado, bruscamente. Levantou-se, cumprimentou Candimba e perguntou-lhe o que o trouxera ali:

– Senhor Núncio, vim pedir pro senhor fazer o fa-vor de me arrumar arroz e feijão pra eu e a família pas-sarmos o mês. As crianças e a “velha” estão sem nada em casa para comer.

– Mas o senhor é imprevidente, mesmo! Seu com-padre Tonico plantou arroz, feijão, mandioca, algumas verduras... Colheu que deu até pra vender um pouco pra vizinhança, graças a Deus...

Page 12: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

12

– Graças a Deus mesmo, repetiu o colono, reve-renciosamente, enquanto descobria a cabeça, segu-rando o chapéu. É que esses tempos a coisa anda difícil lá em casa... A mulher, depois que ganhou nosso filho ca-çula, vive doente. Acho que foi dieta mal guardada. Eu, também, estou trabalhando por conta da firma. Mal co-meço a trabalhar me bate uma canseira... Não tenho ânimo para nada.

O administrador olha para aquele homem à sua frente, com novo olhar. Agora, já o vê com olhar clínico. Mesmo sem formação universitária, Núncio era um ho-mem muito culto e conhecia, como um analista, o que ia na alma das pessoas. Possuidor daquele sentimento de servir, próprio dessas pessoas abnegadas, que não pre-cisam de “auê” para fazer o bem.

– Diga-me uma coisa, Candimba: além desse de-sânimo, você não está sentindo ânsias de vômito, mal-estar, dor de barriga...?

O mestiço de europeu e índio, de tez puxada para um bronzeado-claro, nos seus quarenta e poucos anos, cabelos grossos e um tanto grisalhos afirmou:

– Sim, senhor! E não é que, ainda ontem, a Elisa, minha patroa, me surpreendeu comendo uns pedaci-nhos de barro com que minha filha estava brincando de fazer panelinhas de barro e os cozinhando na beira do fogão de lenha! Fora uns dias atrás em que eu torrava pena de galinha e comia. A bem da verdade, nem eu nem ela entendemos essa criancice minha...

O colono falava vagaroso, como se estivesse com muita preguiça. Coçava as têmporas, meio envergo-nhado de si próprio e do seu interlocutor; chapéu de pa-lha na mão, cabeça descoberta em respeito.

Page 13: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

13

Núncio não era homem de bajular, mas, também, não era de pôr as pessoas como vassalos. Humilhar hu-mildes era-lhe coisa imperdoável.

– Rosália, chamou pela esposa, traga-me aquelas vasilhas para recolher material para exame de fezes e de urina.

Voltando-se para Candimba:

– Amanhã, antes que você coma ou beba qual-quer coisa a não ser água... Qualquer dia desses, nós va-mos ver sua mulher. Quem sabe poderemos ajudá-la.

E foi explicando direitinho, ao rapaz, todo o pro-cedimento para o manuseio correto. E completou:

– Hoje mesmo, vou mandar, pelo meu filho, um saco de arroz e um de feijão pra você ir tenteando até as coisas melhorarem. Pelo menos, uns franguinhos você tem, não é?

– Tenho sim, senhor. Estão bonitos que dá gosto ver! O senhor gostaria que eu lhe trouxesse uns dois ou três...?

– Não, obrigado. É que você vai ter que se alimen-tar muito bem para sair desta fraqueza. E lavem bem as mãos, logo após qualquer atividade, está bem?

O lavrador mal desaparecera na trilha da estrada, quando sua esposa – a espanhola Rosália – chama a atenção do marido, para a chegada de outro colono, o Xavier, sujeito mau-caráter que já estava na mira de Núncio há algum tempo.

Rosália... Que beleza de mulher! apesar de suas quarenta e poucas velinhas apagadas no decurso de sua vida empolgante e útil. Foi trazida por sua família, da

Page 14: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

14

linda Sevilha, bem jovenzinha, quase uma criança. Numa escapada espertíssima de seus extremosos pais, aproxi-mou-se da borda do vapor que os traria às terras brasi-leiras para apreciar o céu azul e o mar encrespado pelo agito do vento.

A adolescente, embevecida por aquela imagem tão linda do verde-anil que quase lhe ofuscava a visão, não percebeu que uma grande onda que se fizera, balan-çou o navio com maior ímpeto, desequilibrando-a. Dois fortes braços a ampararam. Temerosa de que poderia estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente, de-sejava. O frêmito daquele contato, o rubor das faces de ambos, os olhares tão próximos inundados de pura emoção, traíram qualquer tentativa de fuga. E aquele devaneio, que durou só alguns minutos, foi o suficiente para que fossem levados à presença do capelão do navio para que os casasse, sem qualquer apelação É que aquela história de amor não havia começado, propria-mente, ali. A longa viagem entre a Europa e a América era enfadonha por demais para dois jovens com a sexu-alidade à flor da pele. Sempre que podiam, davam suas escapadelas, mesmo que fosse só “para tirar uma linha”, isto é, ao menos para cruzarem os olhares.

Carmela, outra imigrante que formava a classe de passageiros europeus daquele transatlântico, já sentia seu corpo doer muito devido ao balanço do navio. Sem contar com o próprio nervosismo de estar enfrentando uma viagem que ela não desejara, estar indo para uma terra selvagem, infestada de insetos carnívoros, onde animais, como macacos e todo o tipo de feras selvagens, andavam pelas cidades ao lado das pessoas; E, agora,

Page 15: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

15

mais essa... Que mais está faltando para acontecer, meu Deus? – teria ela dito se ainda pudesse concatenar a ideia de que estava da longínqua Calábria... Mas, o que poderia esperar ainda do Pícolo Paese? A querida Itália estava empobrecida. Levas e levas de parentes e amigos já haviam emigrado de lá em busca do Novo Mundo, me-lhores oportunidades. E esse Novo Mundo, essa América tão falada seria tudo aquilo que diziam mesmo? Esper-talhões é que não faltam neste mundo.

E a cabeça doía mais. Talvez, se parasse de pen-sar tanto, aliviaria um pouco o sofrimento.

Carmela, que está acontecendo? O seu ventre lu-tava com todas as forças para manter vivo aquele ser que ainda não vira a luz. A natureza de seu corpo debili-tado, sua alma revoltada por ter sido arrancada, contra a sua vontade, do convívio das pessoas de sua amizade na terra natal, a incerteza de o que poderia ser em terras brasileiras é que devem ter desencadeado aquele aborto.

Logo que percebeu a gravidade da situação da jo-vem esposa, Giuseppe correra em busca de socorro mé-dico para tirá-la do sofrimento e tentar salvar a criança que já estava chegando ao sétimo mês de gestação. A en-ferma foi levada às pressas a um compartimento de en-fermaria, mas nada mais pôde ser feito. Após uma pe-quena cerimônia em que o capelão do navio fez o “Ré-quiem” ao natimorto, envolveram-no em um pano branco e o atiraram ao mar.

Quando Carmela acorda, vê-se rodeada pelo ma-rido e algumas pessoas estranhas para ela. Divisa, entre os circunstantes, a figura de alguém que lembra uma

Page 16: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

16

pessoa conhecida. Uma voz a chama, fazendo-a esque-cer, por um momento, aquela fisionomia.

– Está melhor agora, é,” amore”?

Giuseppe estava deveras preocupado, não só com a saúde física da esposa, como, também, com aquela distância mental que estava acontecendo entre os dois por causa daquela viagem empreendida, meio às pres-sas: aventurar-se a uma nova vida, em terras brasileiras. Carmela e sua família se opuseram, com veemência, àquela empreitada, mas qual.... não havia nada que ti-rasse da sua cabeça a ideia de deixar a querida Itália

Enfim... O que está feito, está feito. Mudar impos-sível. Só que a consciência ficou um tanto abalada pelo remorso de fazer pessoas queridas sofrerem pelos seus ideais. Intimamente, Giuseppe acabou se tornando uma pessoa um tanto subserviente no trato com a esposa, mas firme e convicto no que se referia ao bem-estar de si mesmo e dos que o cercavam como a árvore frondosa na beira da estrada, dando proteção e sombra.

A paciente vai se recobrando, aos poucos, da-quele estado inconsciente. Lembra-se de que umas pes-soas estranhas ao seu convívio, trajadas de branco, como enfermeiros, se esforçavam para salvar aquela cri-ança e ela mesma. Ao verem que a luta toda tinha sido em vão, tiveram uma atitude de resignação e passaram a concentrar suas energias nela. Abriu os olhos devagar e, ainda pôde ouvir um velho de olhar bondoso dizer-lhe:

– Carmela, por que você está agindo desta forma? Não vê que esta sua vinda ao Brasil faz parte de um plano para aliviar o sofrimento desta gente que não tem recursos para se curar de tanta enfermidade? Seu

Page 17: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

17

“nonno” vai estar sempre perto, além da Madona brasi-liana. Seu marido Giuseppe também irá ajudar bastante. Esta criança, não pudemos salvá-la, mas outras virão, com certeza.

Após alguns dias de viagem pelas águas do Atlân-tico, o vapor europeu aporta na cidade de Santos. Não há quem não sinta um temor; alguns, até pavor em pisar em solo estrangeiro. Se seus corações pudessem ser ou-vidos, no mesmo volume de som que partia, lá de baixo, da multidão que aguardava os imigrantes e dos estiva-dores, na maioria negros, que festejavam, com música ensurdecedora, num batuque frenético, muitos tímpa-nos estourariam com certeza,

Carmela esboçou uma tentativa de voltar imedi-atamente para dentro do navio, tão logo se deparou com aquele cenário, para ela, pavoroso: o que, para os ex-es-cravos, era motivo de alegria e festa com a chegada da-queles estrangeiros, para aquela calabresa, de uma cul-tura, praticamente sem miscigenação, há tanto tempo, era assustador ver (na sua imaginação) macacos convi-vendo, pacificamente, com os homens.

É verdade que tudo partiu de mentes ignorantes, auxiliadas por governos medíocres que mantinham o povo o mais distante possível da educação para se man-terem no poder.

Só com muita paciência, Carmela se convenceu de que aquela gente que a tinha assustado tanto eram criaturas bondosas, vítimas da avidez de homens “cris-tãos-civilizados” que tiraram de suas terras – à força– aqueles infelizes, sem nenhum direito, só deveres.

O administrador da fazenda não esconde a fisio-nomia de irritação ao ter que lidar com aquele sujeito.

Page 18: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

18

Esperou que ele se aproximasse o bastante para encará-lo:

– “Seu” Pratti, o senhor precisa dar um jeito nos seus filhos. Eles estão...

– Boa-tarde também se usa, viu? Ou você está fi-cando cada vez mais parecido com os animais com que você lida?

Xavier fica, momentaneamente, atrapalhado ao ser pego de surpresa assim. Mas seu espírito pertur-bado, estouvado, logo toma as rédeas para recriminar:

– Sim, senhor, boa-tarde! E olha só: essa madru-gada levei um baita susto com o barulho dos seus filhos, que resolveram atravessar a cancela das minhas terras para cortar caminho pra chegar em sua casa. Ah, eu não vou admitir mais esta história de ficarem invadindo meu território, não!

– Como é que é? Como é que é? Você está dizendo o quê? que aquelas terras são suas? Como assim?! Pra início de conversa, aquelas terras não são suas, não são minhas. Enquanto o Coronel Ribeiro for vivo, aquelas terras são dele!

O sangue italiano jorrava abundante pelas veias e artérias de Núncio, deixando apreensivos a esposa e o filho menor (que acorreram para lá), com o vozerio alto provindo dali,

– Pode até ser, mas...

– Mas, mas o quê...?

– Mas acontece que eu moro lá e não admito que ninguém vá entrando e invadindo assim. E outra vez que

Page 19: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

19

isso acontecer, eles podem sair com umas balas na bunda, sim senhor! ... Ou aonde pegar...

– Mas você é um caboclo atrevido, mesmo! E tem coragem de falar assim dos meus filhos na minha cara! Eu lhe mostro, já, já...

O sangue latino entrou em ebulição. Percorreu todo o corpo de Núncio Pratti em segundos, mudando-lhe a fisionomia. Girou seu corpo sobre si mesmo à pro-cura de algo que pudesse acabar com a canalhice da-quele sujeito que o exasperava tanto. E o Maligno não se fez de rogado: pôs-lhe à vista uma foice encostada no paiol, ali pertinho.

Xavier podia ser o que fosse, mas bobo não era, não. Percebendo o pior que podia vir a acontecer, de-sembestou em fuga o mais rápido que pode dali, rumo à sua casa.

– Ai, Nuestra Señora de Las Angústias! Vai acon-tecer uma tragédia aqui. Salvatore! Mateo! Tonico! Acu-dam!

Rosália conhecia o gênio do marido. Ao mesmo tempo em que podia tirar o pão da própria boca para alimentar uma pessoa, era capaz de cometer o maior de-satino numa hora de desequilíbrio emocional. E era o que ela estava temendo naquele momento. Como a maior parte dos filhos se encontrava em casa, inclusive os casados que moravam em casas pegadas à casa-sede, saíram assustados para ver do que se tratava.

– Corram atrás do pai de vocês, senão ele vai ma-tar aquele desgraçado! –suplicou a espanhola, compri-mindo a mão na cabeça num gesto de desespero.

Page 20: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

20

Pegos de surpresa, os rapazes não estavam en-tendendo bem do que se tratava. Mas, não acostumados com aquela atitude desesperadora da mãe, num mo-mento, perceberam a gravidade da situação; armaram-se de espingardas que se encontravam dispostas e mu-nidas em local que só os filhos experientes sabiam onde as encontrar; pularam sobre as garupas de seus cavalos em pelo e tomaram o caminho indicado por Rosália, em desabalada carreira.

Não foi preciso muito tempo, e logo avistaram defronte à casa do colono, no terreno limpo, o pai deles empunhando a foice ameaçadora apontada para o infe-liz que se sentia perdido ao se ver encurralado ante o oponente e a parede de sua própria casa.

– Pare, pai, não faça isso, velho! – gritou Dome-nico, enquanto os três irmãos apeavam dos cavalos e se apressavam para salvar o infeliz das mãos de seu pai.

– Que é isso, homem de Deus? Quer cometer uma desgraceira, é?

– Me deixem acabar com essa “béstia”, deixem. Transtornado pela raiva, Núncio joga a foice no chão, agarra aquele homem atarantado e surpreso, pelos co-larinhos, e já ameaçando esmurrá-lo; dois de seus filhos o imobilizaram pelos braços e tronco. Cláudio aprovei-tou para arrancar a arma fatídica da bainha presa à cin-tura de Núncio e ocultá-la nos fundos da casa

Após breves instantes de a adrenalina ceder a certo torpor, o velho italiano se esforça para se desven-cilhar dos braços de seus filhos. Em seguida, volta-se para Xavier com o dedo indicador em riste:

Page 21: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

21

– Joguem fora todos os trens que este traste tem aí dentro! Não quero mais ver ele na minha frente nem mais um minuto!

Nesse momento, um corisco rasgou o céu de alto a baixo, seguido de um trovão ensurdecedor. Todos se persignam, respeitosamente, inclusive o próprio Xavier. Ao leste, já se podia perceber, pelos nimbos ameaçado-res, a chuva pesada que estava por vir.

– Seu Núncio, pelo amor de Deus, tenha paciência mais um pouco, que, amanhã, bem cedo, eu vou embora.

– Bata na boca três vezes antes de pronunciar o nome de Deus em vão! Pra início de conversa, você não tem o direito de nada, aqui. Portanto, suma daqui!

Todos os irmãos se entreolharam, mas ninguém teria coragem de contrariar o desejo de um líder que fa-zia questão de sustentar a palavra até as últimas instân-cias. Todos, não.

Só um daqueles filhos do senhor Pratti teria a ou-sadia de interferir numa sentença do velho italiano: Cláudio. Justamente, o caçula da família seria o herdeiro dos genes para capitanear a continuação de liderança nas terras daquela fazenda.

– Pai, se o senhor me der licença... está armando um temporal medonho, aí. É até anticristão a gente sol-tar esse cara pela estrada, mesmo sendo ele esse tre-mendo mal-agradecido. Pois, então, com a sua licença, queria lhe pedir o favor de deixá-lo, pelo menos até ama-nhã cedo. Pode ser assim?

Núncio, primeiramente, ficou olhando surpreso ante o atrevimento daquele rapazola ainda de calças

Page 22: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

22

curtas. Alguns de seus irmãos engoliram em seco, pre-vendo o que poderia acontecer ao maninho com todo aquele topete para enfrentar o velho daquele jeito. A surpresa maior aconteceu pelo inesperado assenti-mento do senhor Prati:

– Então, já que você resolveu interceder por este “emplastro”, vai ficar a noite com o Gino e o Salvatore, cuidando pra que o safado não fuja. E, amanhã, antes que o sol ponha as caras, eu o quero bem longe da minha vista.

– Pode deixar, pai. Nós vamos ficar grudados neste sujeito, que ele não escapa da gente nem que ele crepe, falou Salvatore tranquilizando o pai.

Um relâmpago mais forte formou um tremendo clarão no céu de alto a baixo, seguido de um pavoroso trovão. O aguaceiro estava próximo, e o chefe de família procurou se apressar em sair dali com os filhos que le-varia consigo.

– Como é, você não tem açúcar e pó pra passar um café pra nós?, perguntou Biagino, em tom meio ma-roto, a Xavier.

– Tem, sim, “seu” Gino, respondeu, em tom meio submisso. Eu vou pegar, espere aí.

Os três irmãos se olharam, mutuamente, com ar de quem dissesse:

– Opa! Não é que a fera ficou mansinha?

A tempestade, que prometia pelos trovões e re-lâmpagos, dando um aspecto angustiante aos que ali se abrigavam, caiu torrencialmente, chegando até a aliviar o pesado clima que pairava no ar. Salvatore chegou até

Page 23: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

23

a brincar, dizendo, à maneira dos matutos daquela re-gião:

– Que venha da grossa, cada pingo na carroça!

Gino se escandalizou com aquilo, pois era um tanto supersticioso e não queria arriscar serem castiga-dos por uma afronta contra os céus e, fechando a cara, tirando novamente o chapéu, ralhou com o irmão:

– Fica brincando, fica! Isso não é hora para este tipo de coisa, não. Viu?

– Tá bom, tá bom”, disse o brincalhão enquanto batia a mão três vezes na boca em sinal de penitência, ao mesmo tempo em que olhava, furtivamente, para Cláudio, numa piscada de olho, marota. O rapazola fin-giu não perceber o gesto, enquanto dizia para si mesmo, meneando a cabeça levemente: – Este cara não tem jeito, mesmo!

Page 24: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

24

Capítulo II

O grande salão da colônia central da fazenda do Coronel Ribeiro se encontrava repleto de pessoas co-nhecidas, parentes, formando um vozerio desencon-trado, pois, enquanto alguns falavam de assuntos fami-liares; outros contavam situações engraçadas. Entre a rapaziada...Bom! Deixa pra lá que pode ser imprópria para menores.

É que estava acontecendo o casamento de uma das filhas dos fazendeiros – a Corina com o professor do Colégio Estadual da cidade, Altino Gouveia; e os convi-dados tinham um entusiasmo enorme quando se falava em festa. Também quem é bobo de perder uma oportu-nidade de se encontrar com amigos, parentes para con-versar, trocar informações tudo regado a bebidas e co-midas deliciosas?

A certa hora, o próprio Coronel pede silêncio aos convivas:

– Meus amigos, eu preciso passar-lhes duas notí-cias muito importantes. Como a primeira é uma notícia triste, embora ainda não está de todo confirmado, é que o governo de Minas Gerais retirou o apoio que prome-tera a São Paulo na luta contra o governo de Getúlio Var-gas que se recusa a editar a Constituição que garantiu que daria ao país, desde 1930.

– Oh, mas que safadeza é essa, sô!, exclamou um dos presentes. Na hora em que a gente mais está preci-sando dos nossos vizinhos, puxa vida!

Page 25: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

25

– A gente não sabe o que o fez mudar, mas o ne-gócio vai engrossar pra nós, se isto acontecer, mesmo...–, disse. Em seguida: – Mas vamos à notícia alegre, que o dia hoje é pra ser feliz. Vocês não vão adivinhar quem foi convidado para abrilhantar o baile, aqui no casamento da minha filha. Em tom mais solene, grita animado: – Nada mais, nada menos que o sanfoneiro mais amado e animado da região mogiana: Luiz Tomasino!

Se a alegria já se fazia presente até àquela hora, imaginem a euforia reinante a partir dali! Entre gritos e saudações ao recém-chegado, dirigiram-se à entrada do grande salão contíguo à casa do dono da fazenda e, num gesto rápido, abraçavam-no e levantavam-no no ar, car-regando-o até ao canto do salão, onde era o lugar de to-car sua sanfona até o sol raiar.

A grande roda que se formava entre convidados sorridentes, ainda mais quando alguns já se encontra-vam meio altos com as bebidas de álcool expostas sobre a mesa, misturadas com os doces e salgados das mais variadas formas e sabores, era um verdadeiro ritual de matrimônio que consistia em os noivos dançarem a pri-meira valsa sozinhos e, uma vez aberto o baile, ficava à disposição dos “pés de valsa” se arrastarem no salão até o amanhecer do dia seguinte.

Os convidados, mesmo percebendo o cansaço dos paraninfos, não tinham a mínima intenção de se ar-redar dali. Afinal, era uma das poucas oportunidades de diversão que eles tinham. As crianças, os adultos que não tinham inclinação para arrasta-pés se reuniam, do lado de fora do salão, criando alguns jogos para divertir e passar tempo; a que estava mais em voga, na época, era o” passar anel”; o que iria passar o anel escondia-o

Page 26: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

26

entre as palmas das mãos fechadas; passava suas mãos por entre as mãos dos presentes que esperavam de mãos justapostas. Como só um receberia o objeto, em certo momento o que passava o anel perguntava a qual-quer um:

– Com quem está o anel que deixei para alguém?

Se a pessoa acertasse, seria o novo passador. Se não acertasse, o que havia recebido o anel é que teria o direito de ser o novo passador.

Como naquela época, qualquer ato de carinho era proibido ante os olhares vigilantes dos pais, dos irmãos mais velhos, os enamorados usavam de toda a sua cria-tividade para burlar a tal vigilância. O casal enamorado aproveitava aquele momento e se enlevava com um olhar de cumplicidade, enquanto suas mãos espalmadas se acariciavam.

Del Pillar e Adolfo não faziam exceção a essa re-gra; seus olhares se cruzaram com tanto profundidade que seus corações quase saltaram para fora de seus pei-tos, tamanha a química que se formou nos elementos constituídos pelos fluidos mais sutis de suas almas. Por mais que tenham tentado disfarçar, aquele momento pôde ser captado por Cláudio, o irmão caçula de Maria Del Pillar, seu amiguinho de todas as horas.

– Ai ai ai ai ai! justo com quem a Pili foi se engra-çar…Os “velhos” não vão gostar nem um pouquinho. E quem é que vai segurar o rojão? Só pode ser o trouxa aqui, né?, alertava Cláudio.

Só que Cláudio não foi o único a perceber o clima de namoro entre a filha do administrador e aquele jo-vem forasteiro com fisionomia alemã, olhos muito azuis

Page 27: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

27

em dissonância com a maioria daqueles colonos de ori-gem ítalo-espanhola, de olhos negro-amendoados. Um par de sorrisos maliciosos, embora bondoso, partici-passe, meio de longe, daquele enlevo de amor iniciante: era Isaura e seu marido Gismar, que aprovavam, através de uma piscadela recíproca, o namoro da maninha. É que Gismar era amigo de Adolfo na Secretaria da Agri-cultura do Estado de Minas Gerais, e ambos trabalha-vam na melhoria de sementes de café e algodão, cultiva-dos em grande escala naquela região entre os dois esta-dos.

– Parece que logo, logo vamos ter casório, não é não, querida?

– Alguém duvida ainda?

– Esse mineiro com cara de austríaco está saindo melhor que a encomenda.

– Fale baixo, pois se os “velhos” souberem que tem namoro... aliás, nem precisa ser namoro. Só um flerte que Ma Pili tiver com um estranho, coitado dele!

– Uai! Mas o Adolfo está sempre aqui pelas ban-das, assim como eu, prestando serviços aos fazendeiros e sitiantes daqui, ara!

– Pois é; só que o seu amigo não faz parte dos pla-nos para entrar na família do papai.

– E quem é que faz....?

Isaura respondeu com o silêncio.

Lá pela madrugada, o dono da casa irrompe na sala, batendo palmas com estridência e falando muito alto:

Page 28: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

28

– Como é, pessoal! o dia logo amanhece, e a co-mida está toda aí. Acho que todo mundo já descansou bem e o sanfoneiro até já deu um cochilo. Vamos arras-tar esses pés aí, gente. E vamos comer também, senão nós vamos ficar ofendidos, achando que a comida está ruim.

Um alarido fortíssimo ecoou nos céus da fazenda Monjolo. Eram os convidados que assentiam ao convite do anfitrião, de energias restauradas. Pelo jeito, aquela festa não iria acabar tão cedo!

Page 29: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

Mococa, o roçado.

29

Capítulo III

Maria Del Pillar e seu irmão Cláudio caminhavam pela trilha da fazenda, rumo à casa da administração onde moravam.

– Pai e mãe não aguentaram passar a noite na festa e foram embora pra casa. A Isaura e o Gismar só haviam ficado até de madrugada para o pai deixar a gente aproveitar um pouco mais a festa.

– Só que vamos ter que chegar bem quietinhos para não fazer barulho, senão haja bronca do italiano e da espanhola de uma vez só.

– "Nuestra Señora De Las Angústias!”, exclamou Cláudio em tom de arremedo à sua mãe. –Agora é hora de chegar, seus rueiros?, completou.

– “Quero só ver vocês reclamarem de alguma dor na hora de trabalhar. Quero só ver!”, dirá o papai – com-pletou Maria Pili.

– Agora, diga-me cá uma coisa, Pili: e aquele mi-neiro com quem você tirou linha o tempo todo... Como é que fica, hein, mocinha?

Apesar da grande amizade entre esses dois ir-mãos, Maria Del Pillar não conseguiu deixar de contrair os lábios, como que recusando a falar sobre o assunto.

– Estou esperando a resposta, mana. E nem adi-anta querer me enrolar, se é que ainda somos amigos, desafiando a irmã.

Page 30: Mococa, o roçado. - PerSe · estar sendo observada pelos sagazes Santiago e Maria Del Pillar, seus pais, fez um esforço sobre-humano para desvencilhar-se daqueles braços que, intimamente,

José Domingos Vecchi

30

Cláudio lança-lhe o desafio, enquanto passa-lhe à frente, andando de costas à direção em que seguiam para ficar frente a frente com Pili.

– E o quê que o curioso do meu irmão quer saber? Se eu estou gostando dele já, logo de cara?

– Muito bem. Nem precisa falar mais nada, mana. Já falou tudo.

– Tudo o quê, seu bobão? O que você entende das coisas complicadas do coração, hein? Não vê que você ainda está com cocô do primeiro vagido?, brincou ela.

– É porque você e mamãe não me lavaram di-reito, mas, se você quer saber, eu tenho mais de mil anos pra entender que um coração apaixonado fala tão alto que trai facilmente o seu dono; a sua dona – no seu caso. E eu já estou com dezoito anos, dona Pilar.

Mari Pili faz uma cara de assombro com as pala-vras do irmão que até ali não conhecia. Volta-se para ele como que surpreendida:

– Ora, ora! Então, o até há pouco tempo que era um pirralho, está virando gente? O franguinho já está cantando de galo? ...Bom... E quem é que está por trás disto, hein? Ah! Nem precisa falar. É a filha da calabresa, a dona Carmela. Como se chama mesmo aquela moreni-nha de olhos de jabuticaba...? É Izabelica. (Toma-lhe a frente e aponta-lhe o dedo indicador). E, ante o silêncio do rapazinho, completa:

– Viu como eu sei das coisas?

E antes que Cláudio esboçasse qualquer res-posta, os dois cachorros da família vieram dar-lhes as