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Modelo de Vida Humana [Exemplar Humanae Vitae] - Uriel Acosta.pdf

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MODELO DE VIDA HUMANA

(Exemplar Humanae Vitae)

Uriel da Costa

Vi a luz em Portugal, na cida-de do Porto. Os meus proge-nitores, pessoas bem nascidas,descendiam de judeus que emtempo haviam sido forçadosneste reino a abraçar a religi-ão cristã.

Meu pai era verdadeiro cris-tão, observantíssimo dos pre-ceitos da honra e grande pre-zador da honestidade de cos-tumes. Em sua casa fui criadofidalgamente. Não faltavamservos e na cavalariça, cavalode boa raça espanhola paraexercícios de equitação, arteem que meu pai era versadis-simo. e eu de longe lhe seguiaas pisadas.

Depois de instruído em algu-mas disciplinas que os man-cebos de boa família costu-mam aprender, passei a estu-dar Direito.

No que toca á índole e condi-ção, era eu por natureza muipiedoso e tão propenso á

compaixão que, se algumavez ouvia contar uma desgra-ça acontecida a outrem, demodo nenhum podia conter aslágrimas. A vergonha era a talponto inata em mim, que denenhuma cousa eu tinha tantomedo, como do que deslustrao nome. O meu coração nãoagasalhava nenhum senti-mento baixo, e não deixava deabrir a porta à ira, se a causajusta o requeria.

Assim que eu era, na verdadeadverso aos soberbos e inso-lentes que por desprezo e vi-olência costumam agravar osseus semelhantes, desejandoapadrinhar os fracos e pondo-me de preferência ao ladodeles.

Pelo que respeita a religião,padeci na minha vida cousasinacreditáveis. Fui criado,segundo o costume daquelereino, na religião católica, esendo já rapaz feito, comgrande temor da condenação

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eterna, desejava observarpontualmente todos os pre-ceitos religiosos. Aplicava-meá leitura do Evangelho e deoutras obras espirituais, per-corria as Sumas dos confesso-res, e quanto mais me entre-gava a estes estudos, maioresdificuldades se me alevanta-vam.

Acabei por cair em inextricá-veis enleios, em ansiedades eaperturas de coração. Ia-mefinando de melancolia e má-goa. Antolhou-se-me impos-sível confessar os pecadossegundo os termos da Igrejaromana, de modo que pudesseobter dignamente a absolvi-ção e cumprir tudo quanto erarequerido.

A consequência foi desespe-rar da salvação, se a salvaçãotinha de ser obtida mediante aobservância de tais normas.

Ora sendo difícil poder apar-tar-me de uma religião a quedesde o berço fora acostuma-do e que pela fé, já tinha dei-tado em mim fundas raízes,comecei a pensar, isto à voltados vinte e dois anos, quepoderia talvez ser menos ver-

dade o que se dizia de umaoutra vida, e a ter incertezassobre se a fé prestada a taisdogmas se casava bem com arazão, por isso que a mesmarazão me ditava e de continuome metia pelos ouvidos den-tro muitas cousas que forte-mente contrariavam aquelesdogmas.

Entrado nesta dúvida assosse-guei, e fosse o que fosse, as-sentava comigo que por talrota não podia alcançar a sal-vação da alma. Por esse tem-po cursava eu as aulas de Di-reito, segundo já disse, e an-dando nos vinte e cinco anos,como se me deparasse ensejo,obtive um beneficio eclesiás-tico, a tesouraria de uma Co-legiada.

Não tendo, porém, encontradorepouso na religião católicaromana, e desejando estarabraçado a alguma religião,cri que sabia que entre cris-tãos e judeus havia rijo com-bate, pus-me a percorrer oslivros de Moisés e dos profe-tas, onde se me apresentavamalguma cousa que estavam emnão pequena contradição como Novo Testamento e encer-

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ravam menor dificuldade.

Demais no Antigo Testa-mento, criam tanto os judeuscomo os cristãos, no NovoTestamento só os cristãos.Acabei por entender, acredi-tando em Moisés, que deviaobedecer á Lei, visto que eleafirmava ter recebido tudo deDeus, declarando-se puromensageiro chamado pelopróprio Deus para esta mis-são, ou melhor, obrigado(destarte se enganam os pe-queninos).

Isto assentado, como quer quenaquele reino não houvesseliberdade de professar de al-gum modo a religião de Moi-sés, pensei em mudar de resi-dência, deixando a terra pá-tria.

A este fim não duvidei resi-gnar em favor de outrem obenefício eclesiástico, nãocuidando dos proventos nemda honra que dali me vinhamconformemente aos usos da-quele país. Deixei tambémuma formosa casa de habita-ção, situada em uma partemagnífica da cidade e cons-truída por meu pai.

Embarcámos, pois, não semgrave risco, (os que descen-dem de hebreus não podemdeixar o reino sem permissãoespecial d’el-rei) eu, minhamãe e meus irmãos, aos quais.movido pelo amor fraterno,eu comunicara o que sobre areligião me havia parecidomais consentâneo, emborativesse dúvidas acerca de al-guns pontos e esta comunica-ção poderia redundar emgrande mal para mim: tãoperigoso é naquele país falarem semelhantes assuntos!

Ter minada a viagem, apor-támos a Amsterdam, ondeencontrámos os judeus viven-do em liberdade. Em obedi-ência á Lei, cumprimos paralogo o preceito da circunci-são.

Ao cabo de alguns dias tinha-me a experiência mostradoque os costumes e ordenaçõesdos judeus estavam longe decasar-se com os preceitos deMoisés.

Ora se cumpria observar a Leicom pureza, segundo ela pró-pria requer, mal andaram oschamados Doutores dos ju-

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deus com tantas invenções,que de todo o ponto destoamda Lei. Assim que não pudeacabar comigo que me conti-vesse, antes entendi que fariacousa do agrado de Deus sedefendesse a Lei com isenção.

Estes Doutores judaicos dotempo presente – que aindaconservam os seus costumes econdição maldosa, porfiandogalhardamente em defesa daseita e das instituições dosabomináveis fariseus, nãosem esperança de benessespessoais e, segundo já outroralhes foi imputado fundamen-tadamente, para ocuparem asprimeiras cadeiras no temploe terem as primeiras sauda-ções na praça pública – demodo nenhum vieram emque, sequer nas cousas maispequenas, eu me apartassedeles, pretendendo que semdesvio algum lhes fosse naesteira; de contrário, ameaça-ram-me com a excomunhão eprivação de toda a comunica-ção com os fieis nas cousasdivinas e humanas.

Como, porém, ficasse muitomal virar as costas diante detal medo quem por amor da

liberdade deixara a pátria edesprezara outros proveitos, eo submeter-me a homens emtal caso, mormente quandoeles não tinham poder legíti-mo, fosse acto de pouca reli-gião e impróprio do homemdigno deste nome, decidi an-tes padecer tudo e permanecerfirme no meu propósito.

Consequentemente fui poreles excomungado e excluídoda comunicação com todos osfieis, e os meus próprios ir-mãos, de quem anteriormenteeu fora mestre, com medodeles passavam por mim narua sem me saudar.

Nestas circunstâncias resolviescrever uma obra em quemostrasse a justiça da minhacausa e provasse claramente àluz da própria Lei o infunda-do dos ensinamentos e práti-cas dos fariseus e o contrasteem que as suas tradições einstituições estavam com a leide Moisés.

Principiada a obra, vim tam-bém – cumpre referir tudocomo se passou, sem refolhoe com verdade – a abraçar,resoluta e deliberadamente, o

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parecer daqueles que assen-tam serem temporais o prémioe a pena da Lei velha, e nãocrêem em uma outra vida e naimortalidade da alma, estri-bando-me, para não falardoutras razões, em que a Leide Moisés guarda absolutosilêncio sobre estes pontos, eaos que observam ou que-brantam os seus preceitos, sópromete prémio temporal oupena temporal.

Grande foi o regozijo dosmeus inimigos ao saber queeu adotara este parecer, jul-gando terem alcançado só poreste fato larguíssima defesaperante os cristãos, que emvirtude de fé especial fundadana Lei evangélica, onde se fazmenção expressa da felicida-de eterna e das penas eternas,crêem e reconhecem a imor-talidade da alma.

Com este intuito e para metaparem a boca nos demaispontos e me tornarem odiosoentre os próprios cristãos,antes de entrar no prelo o meuescrito, tiraram a lume umopúsculo, da mão de certomédico, com o título De im-mortalitate animarum.

Na sua obra o médico fartava-se de atassalhar-me, comoque eu defendesse a seita deEpicuro pois quem negava aimortalidade da alma, poucofaltava para negar a existênciade Deus.

Neste tempo eu tinha má opi-nião daquele filósofo, e fun-dando-me na informação par-cial de outrem, dava sentençatemerária contra uma parteausente sem a ouvir; mas des-de que soube o conceito quedele faziam algumas pessoasamantes da verdade, e tiveconhecimento da sua doutrinareal, sinto haver em tempochamado louco e insano umtal sujeito, de que ainda nãoposso formar juízo cabal porme serem desconhecidos osseus escritos.

Os filhos dos ditos meus ini-migos, industriados pelosrabinos e pelos pais, junta-vam-se em magotes pelas ruase a brados praguejavam-me eirritavam-me com toda a castade impropérios, apelidando-me, voz em grita, de herege ede apóstata. As vezes até seajuntavam diante da minhaporta, apedrejavam-na, e tudo

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tentavam para me perturba-rem, de jeito que nem na mi-nha própria casa pudesse lo-grar sossego.

Publicado que foi aquele livrocontra mim, logo apercebi-mepara a defesa e escrevi umopúsculo em resposta a ele,impugnando com todas asforças a imortalidade da almae tocando de caminho algunspontos em que os fariseus seapartam de Moisés.

Assim que esta minha obrasaiu a público, ajuntaram-seos senadores e o grão-rabinodos judeus e propuseram umaacusação contra mim perantea autoridade civil, alegandoque eu havia escrito um livroem que negava a imortalidadeda alma e não só os ofendia aeles mas até abalava o edifí-cio da religião cristã.

Por efeito desta denúncia fuimetido na cadeia, e depois delá estar oito para dez diassoltaram-me debaixo de fian-ça. Aquela autoridade exigiade mim o pagamento de umamulta, e em cabo fui conde-nado a pagar-lhe trezentosflorins e ao perdimento dos

exemplares da obra.

Depois, com o rodar do tem-po, como quer que a experi-ência e os anos descubrammuita coisa e consequente-mente dêem volta ao pensa-mento do homem, entrei a terdúvidas sobre se a lei de Moi-sés deveria ser tida por lei deDeus, por isso que muitascousas havia que aconselha-vam, ou melhor, forçavam adizer o contrário (seja-mepermitido, mais uma vez odigo, falar com franqueza; eefetivamente, porque não há-de ser lícito a quem escreve oseu testamento para deixaraos homens as contas da suavida e um exemplo verdadeirodas desventuras humanas,porque não há-de ser licito,digo, contar a verdade?).

Assentei por fim que a Lei deMoisés não era de Deus, massomente invenção humana,como outras tantas que temhavido no mundo. É quemuitos pontos brigavam coma lei da Natureza, e Deus,autor da Natureza, não podiaestar em contradição consigomesmo, e esta lei, de que sedizia autor, propunha aos ho-

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mens a prática de atos contrá-rios à Natureza.

Definido este ponto no meuespirito, disse eu comigo: Queaproveita (oxalá nunca talideia houvesse surgido naminha mente) permanecer euneste estado até à morte, sepa-rado da comunicação comestes Padres e com este povo,mormente sendo eu estrangei-ro nestas paragens e não ten-do trato com os cidadãos, cujalíngua até desconheço? Me-lhor será voltar a comunica-ção com eles e seguir-lhes aspisadas como eles querem,fazendo, segundo diz o rifão,de macaco entre os macacos.

Movido desta consideração,tornei a comunicar com eles,retratando as minhas expres-sões e subscrevendo as opini-ões deles, havendo já quinzeanos que deles vivia separado.Desta reconciliação foi, porassim dizer, medianeiro ummeu primo da parte de meupai.

Decorridos dias, fui denunci-ado por um rapazito, filho deminha irmã, que eu tinha emcasa, com respeito às comi-

das, ao modo de prepará-las, ea outras cousas, donde se in-feria que eu não era judeu.

Desta denúncia nasceramnovas e violentas guerras.Aquele meu primo, que, se-gundo já disse, fora o media-neiro da reconciliação, enten-dendo que o meu procedi-mento redundava em vergo-nha sua, soberbão e arroganteque era, sobremaneira impru-dente e também sobremaneiraimpudente, abriu contra mimguerra declarada, e levandoapós si todos os meus irmãos,não deixou por tentar meioalgum que pudesse por algu-ma forma contribuir para aruína total da minha honra,dos meus haveres e conse-quentemente da minha vida.

Foi ele quem desbaratou ocasamento que eu estava jápara contrair (a este tempo eraeu viúvo); fez com que ummeu irmão retivesse os meusbens que tinha em seu poder,e destruiu as relações queentre nós havia, circunstânciaque me causou um prejuízoindizível em consequência doestado em que as minhas cou-sas se achavam.

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Baste agora dizer que foi ele omais encarniçado inimigo daminha honra, da minha vida edos meus bens. Sobre estaguerra, por assim dizer, do-méstica, havia outra pública, ados rabinos e do povo, queprincipiaram a ter-me novoódio e cometeram contra mimmuitos desaforos; assim quemerecidamente eu os aborre-cia.

Entretanto sobreveio novoacontecimento. Acaso con-versei com dois sujeitos, vin-dos de Londres para esta ci-dade, um italiano, o outroespanhol, ambos cristãos ve-lhos; declarando-me serempobres, pediram-me o meuconselho sobre se haviam dealiar-se aos judeus e conver-ter-se ao judaísmo. Aconse-lhei-os a que tal não fizesseme se conservassem como esta-vam, pois não sabiam o jugoque iam por sobre o pescoço.

Em todo o caso advertia-lhesque não falassem em mim aosjudeus; assim prometeramfazer. Estes homens ruins,com os olhos no vergonhosís-simo proveito que esperavamcolher, agradeceram-me des-

cobrindo tudo aos meus carís-simos amigos, os fariseus.

Nisto congregaram-se ospríncipes de Sinagoga, infla-maram-se os rabinos, e agentalha petulante bradourijo: Crucifica-o, crucifica-o.

Fui chamado perante o Gran-de Conselho; propuseram asqueixas que tinham contramim em voz baixa e triste,como se se tratara de um casode morte, e por fim declara-ram que, se eu era judeu, de-via acatar e cumprir a senten-ça que proferissem ou tornariaa ser excomungado.

Ah preclaros juízes! Sois juí-zes para me fazerdes mal;mas se eu carecer do vossotribunal para me livrardes daviolência de outrem e me as-segurardes a minha inviolabi-lidade, então não sois juízes,senão vilíssimos escravoscativados a poder alheio. Qualé a vossa sentença a que que-reis que eu me submeta?

Então foi-me lido um papelem que se dizia que eu tinhade entrar na Sinagoga vestidode luto, com uma vela negrana mão e vomitar publica-

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mente, na presença da assem-bleia, certas e determinadaspalavras, escritas por eles,bem feias, em que levavam àsnuvens as iniquidades pormim cometidas. Depois haviade consentir em ser publica-mente açoutado na Sinagogacom um azorrague de couro,em seguida prostrar-me à en-trada da própria Sinagogapara todos passarem por cimade mim, e demais jejuar emdias determinados.

Acabada que foi a leitura,incendiaram-se-me as entra-nhas e ardia por dentro emfogo de cólera inextinguível;contudo, sofreando-me, res-pondi chãmente que não po-dia cumprir semelhantes im-posições. Ouvida a minharesposta, determinaram ex-comungar-me segunda vez, enão contentes com isto, quan-do eu passava na rua, muitosdeles cuspiam fora e o mesmofaziam os filhos industriadospor eles; só não me apedreja-vam, porque não podiam.

Outros sete anos durou estaguerra, e no correr deste tem-po padeci cousas que não seacreditam.

Guerreavam-me duas hostes,uma a do povo, outra a dosparentes, que buscavam aminha ignomínia para de mimtirarem vingança. E os pa-rentes não tiveram descansoenquanto não me desalojaramda posição anterior. Disseramentre si: Ele nada fará, se nãofor obrigado, e cumpre queseja obrigado.

Se estava enfermo, via-mesozinho. Se alguma outra ca-lamidade pesava sobre mim,contavam-na entre os seusmaiores desejos. Se dizia quese tirasse dentre eles um juizque decidisse a questão entrenós, nada queriam menos.Tratar de tal pendência emjuízo, passo que também ten-tei, dava muito incómodo eenfado, sendo que consumiaestiradíssimo tempo o recor-rer aos tribunais, onde, aforamuitos outros encargos, háconstantemente tantas delon-gas e adiamentos.

Disseram-me muitas vezes:Submete-te a nós, pois somostodos iguais e não imaginesnem temas que procedamosmal contigo. Diz enfim umavez, que estás pronto a cum-

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prir o que te impusermos, edeixa-nos a nós o final, quenós faremos tudo como é bemque se faça.

Eu, embora a questão versas-se justamente sobre este pontoe semelhante submissão eaceitação de imposições ar-rancada à força fosse paramim grandíssima vergonha,contudo para levar as cousasaté o cabo e com os meusolhos verificar-lhes o desfe-cho, venci-me a mim própriodeterminando-me animosa-mente a aceitar e experimen-tar quanto eles quisessem.

De feito, no caso de as impo-sições serem feias e desonro-sas, ainda mais justificavam aminha causa contra eles emanifestavam as disposiçõesdos ânimos deles para comigoe a sua lealdade, e patenteava-se de vez o hediondo e exe-crando dos costumes destagente que tão indecorosa-mente abusa das pessoas maishonestas como se fossem osmais vis escravos.

Pois cumprirei, disse eu, tudoquanto me impuserdes. Agoradai-me atenção, quantos sois

honrados, cordatos e huma-nos, e meditai profundamente,uma e muitas vezes, a senten-ça que executaram em mim,de todo inocente, eles, pesso-as privadas, sujeitas ao poderde outrem.

Entrei na Sinagoga, que esta-va cheia de homens e de mu-lheres, e quando foi tempo,subi ao taburno de madeiraque está no meio da Sinagogapara o serviço dos sermões edemais actos do culto; li emvoz alta o escrito, redigidopor eles, em que eu confessa-va que merecia morrer milvezes pelos pecados por mimcometidos, convém a saber:não ter guardado o sábado, terviolado a fé a ponto de chegara aconselhar os mais a quenão viessem para o judaísmo;e que em satisfação de taisculpas eu queria obedecer aoque me ordenassem e cumpriras penas que me impusessem,prometendo não tornar a cairde futuro em semelhantesiniquidades e malfeitorias.

Acabada a leitura, desci dotaburno e acercou-se de mimo venerando presidente, di-zendo-me ao ouvido que fosse

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para um outro canto da Sina-goga. Assim fiz.

Então o porteiro ordenou-meque me despisse. Despi-meaté à cintura, atei um lenço àcabeça, descalcei os sapatos eergui os braços, pondo asmãos em uma espécie de co-luna.

Chegou-se a mim o porteiro eatou-me as mãos à colunacom uma faxa. Depois vem oprecentor e, pegando de umcouro, deu-me trinta e novetagantes conformemente àprática tradicional. A Leiprescreve que não sejam maisde quarenta, e sendo estesvarões tão escrupulosos ob-servadores das leis, guardam-se de cair em pecar por exces-so.

Durante a flagelação cantava-se um salmo. No fim assentei-me no chão, e o grão-rabino(que ridículas que são as cou-sas do género humano!) che-gando-se à minha beira e le-vantou-me a excomunhão.Destarte já me estava aberta aporta do Céu, que antes disto,de valentemente trancada, meimpedia de entrar.

Depois tornei a vestir-me efui para a entrada da Sinago-ga. Prostrei-me no chão, am-parando-me o guarda a cabe-ça. Então todos quantos des-ciam, passavam por cima demim, quero dizer, levantandoum pé, passavam para alémjunto da parte inferior dasminhas pernas. Isto pratica-vam todos, moços e velhos.Não há bugios que possamapresentar a olhos humanosnem actos mais desentoados,nem gestos mais ridículos.

No fim, quando já não restavamais ninguém, ergui-me, etendo-me limpado do pó, comajuda daquele que estava aomeu lado. Ninguém diga queeles não me honraram, pois,se me atagantavam, em todo ocaso, choravam e afagavam-me a cabeça.

Voltei para casa.

Ah gente, a mais desfaçada domundo! Ah padres execran-dos, de quem, dizeis, eu nãodevia temer que me fossedado mau trato!

«Espancarmos-te? Longe talpensamento!»

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Avalie agora quem isto ouvir,que cena era aquela: um ve-lho, nada baixo de condição,por natureza sobremodo en-vergonhado, em uma assem-bleia pública, despido na pre-sença de toda a gente, ho-mens, mulheres, crianças, eaçoutado de ordem de juízes,e de juízes destes, que sãomais escravos abjetos do quejuízes.

Considere que dor não seriacair aos pés de inimigos en-carniçadíssimos. de quem lhetinham vindo tantos males,tantos agravos, e prostrar-separa ser pisado.

Pense-o que ainda mais é, epode com razão chamar-secaso fora do natural, mons-truosidade horrenda, de cujavista hedionda a gente fogearrepiada.

Que meus irmãos, filhos domesmo pai e da mesma mãe,criados juntos na mesma casa,trabalharam afincadamentepara isto, esquecendo o afectoque eu lhes tinha.

Que tal sentimento era feiçãodistintiva da minha índole eesquecendo os muitos favores

que por minha intervençãohaviam recebido na sua vida eque me foram pagos com ig-nomínias, perdas, calamida-des, fealdades e abominações,tantas, que uma pessoa secorre de referi-las.

Dizem os meus nunca assazdetestados inimigos, que mecastigaram justamente paraexemplo dos mais, para quedaqui em diante ninguém ou-se ir contra as suas determi-nações nem escrever contra ossábios.

Ah gente a mais perversa domundo e pais de toda a menti-ra! Quanto mais justamentenão pudera eu castigá-los aeles, para que depois vós nãotivésseis tais atrevimentoscontra pessoas amantes daverdade, aborrecedoras deenganos, amigas, sem distin-ção, de todo o género huma-no, de quem vós sois inimigoscomuns, sendo que não tendesem estimação nenhuma osmais povos, havendo-os naconta de irracionais, e vóssubis protervamente a vós sósaté às nuvens, afagando-voscom mentiras, quando vósnada tendes de que com ver-

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dade vos ufaneis, a não serque por ventura para vós sejagloria o andardes desterrados,serdes desprezados e odiadosde toda a gente por causa doridículo e exquisito dos vos-sos costumes, pelos quaispretendeis separar-vos doresto da humanidade.

Que se quiserdes fazer glóriada simplicidade da vida e dajustiça, ai de vós, que palpa-velmente vos mostrareis infe-riores a muitos a tais respei-tos.

Digo, pois, que se tivera for-ças, eu teria podido tirar delesjusta vingança dos malesgrandíssimos e atrocíssimosagravos de que me abebera-ram e que me levaram a ga-nhar aborrecimento à própriaexistência. Sim! Que pessoaamante do honesto terá ânimoe gosto para viver uma vidacoberta de ignomínia? E se-gundo já foi dito com acerto aurna pessoa dotada de fidal-guia de sentimentos, cumpreou viver arrazoadamente oumorrer com honra. Tanto po-rém a minha causa é maisjusta do que a deles, quanto averdade se avantaja à mentira.

Eles pugnam pela mentirapara cativarem os homens eescravizá-los; eu pugno pelaverdade e pela liberdade natu-ral do homem, a quem o quemelhor fica é, livre de falsassuperstições e ritos inaníssi-mos, passar uma vida que nãoseja indigna do homem.

Confesso que teria sido paramim mais proveitoso, se deprincipio me houvera calado,e reconhecendo como anda omundo, preferisse permanecermudo, que assim convêm quefaça quem tem de viver nomeio dos homens, para nãoser vítima, segundo costumaacontecer, da multidão igno-rante ou de tiranos injustos,de feito cada qual com a miranos seus interesses busca aba-far a verdade, e armando la-ços aos pequenos, calca aospés a justiça todavia, depoisde, incautamente iludido poruma religião vã ter descidocom eles a campo.

É melhor morrer gloriosa-mente, ou ao menos morrersem desgosto, que, nas pesso-as de bem, é o companheirode uma retirada vergonhosaou de uma resignação inepta.

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Costumam eles alegar em seufavor a vontade da grandemaioria. «Tu, que és um só,deves de submeter-te a nós,que somos muitos».

Amigos, é útil sem dúvidaque o indivíduo se submeta àmaioria, para não ser dilania-do por ela; mas nem tudo oque é útil se segue que sejabelo. Belo certamente não é oretirar-se com ignominia edeixar o campo aos violentose injustos.

Deveis logo confessar que évirtude merecedora de louvorter rosto quanto possível aossoberbos, para que não acon-teça que, procedendo mal ecolhendo proveito da suamaldade, se tornem cada vezmais soberbos.

E formoso, na verdade, e di-gno de um homem piedoso egeneroso fazer-se pequeninocom os pequeninos, ovelhacom as ovelhas; mas é sandi-ce, é ignominioso e repreen-sível vestir, em combate comleões, a mansidão da ovelha.

Ora, se se põe entre as cousasmais formosas pelejar atémorrer em defesa da pátria,

por isso que a pátria é algumacousa que nos pertence, por-que razão não há de ser belopelejar até morrer em defesada honra própria, que é pesso-almente nossa e sem a qualnão podemos viver arrazoa-damente, a não ser que, à se-melhança de cerdos imundos,nos revolvamos no imundotremedal do lucro?

Mas dizem os meus detestá-veis motejadores, estribandono número todo o seu direito:«O que poderias tu, que és umsó, contra tantos?» Confesso edeploro ter sido esmagadopelo número que vós sois,contudo esses vossos pensa-mentos e palavras ainda maisme fazem referver a cólera nomeu interior e bradar que éimpiedade ter piedade de ím-pios, soberbos, contumazes eobstinados.

Sei bem que aqueles inimi-gos, para me desacreditaremperante a multidão indouta,costumavam dizer: «Ele nãotem religião nenhuma; não éjudeu, não é cristão, não émaometano».

Olha primeiro, fariseu, o que

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dizes; que tu és cego, e con-quanto te sobre maldade. dásentretanto topadas como umcego.

Anda, diz-me, se eu fossecristão, o que dirias? É claroque havias de dizer que eu eraum abominável idólatra, e quejuntamente com Jesus Naza-reno, Mestre dos cristãos,havia de ser punido pelo Deusverdadeiro, de cujas bandeirashavia desertado.

Se fosse maometano, tambémtodos sabem de que honrasme cumularias; e assim nuncapoderia escapar à tua língua,tendo por único refúgio pros-trar-me aos teus joelhos ebeijar os teus execrandos pés,quero dizer, as tuas detestá-veis e vergonhosas institui-ções.

Agora suplico-te que me di-gas se conheces mais algumareligião além das que menci-onaste, às duas últimas dasquais tu, havendo-as por fal-sas, chamas antes cismas doque religiões. Já te ouço con-fessar que conheces maisuma, e é a verdadeira religião,por meio da qual os homens

podem agradar a Deus.

Com efeito, se todos os po-vos, exceptuando os judeus,que haveis sempre de separar-vos dos demais e não vos as-sociar a gente baixa e humil-de, observarem os sete man-damentos, que, segundo vósdizeis, foram observados porNoé e pelos que foram antesde Abraão, basta-lhes istopara se salvarem.

Já há, conseguintemente, se-gundo as vossas próprias idei-as, uma religião em que euposso fundar-me, emboradescenda de judeus, pois comsúplicas alcançarei de vós oconsentirdes que eu me mistu-re com a demais multidão, ese não o alcançar, tomarei alicença por mim próprio.

Ah cego fariseu, que, olvi-dando aquela lei, que é a pri-mitiva, e existiu desde sempree sempre há-de existir, sófazes menção das outras leisque só posteriormente come-çaram a existir, e que tu pró-prio condenas, exceptuando atua, a respeito da qual, queirasou não, também os mais jul-gam conformemente à reta

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razão, que é a verdadeiranorma daquela lei natural, quetu esqueceste e que bem de-sejas sepultar, para pores so-bre o colo dos homens o teuexecrando jugo, desalojá-losda sã razão e torná-los pareci-dos a loucos.

Mas já que viemos a esteponto, apraz-me demorar-meaqui um pouco e não calar detodo os louvores desta leiprimitiva. Digo pois, que estalei é comum a todos os ho-mens e neles inata pelo pró-prio fato de serem homens.Liga a todos uns aos outrospelos laços de mutuo amor,desconhecendo divisões, quesão a origem primordial detodos os ódios e dos maioresmales. É a mestra da moral.estabelece a distinção do justoe do injusto, do feio e do belo.Tudo quanto há excelente nalei de Moisés ou em qualqueroutra, a lei natural encerra-oem si integralmente na perfei-ção; e se há algum desvio, porpequeno que seja, desta regranatural, logo surgem as con-tendas. e a divisão dos espí-ritos, e não pode encontrar-sesossego.

Se porém o desvio é grande,quem bastará a fazer revistados males e das horrendasmonstruosidades que desteadultério nascem e tomamcrescimento?

Que preceitos soberanos tema lei de Moisés, ou qualqueroutra, que digam respeito ásociedade humana, para queos homens vivam bem e emconcórdia uns com os outros?

Sem dúvida o primeiro éhonrar os pais; o segundo nãoviolar os bens alheios ou sejaa vida ou a honra ou as outrascousas úteis para a vida. Qualdestes preceitos, dizei-me,não se contém na lei natural eregra certa que está gravadanos corações?

Por impulso natural amamosos filhos, os filhos amam ospais, o irmão ama o irmão, oamigo o seu amigo. Por im-pulso natural desejamos aconservação intacta do que énosso e aborrecemos os quenos perturbam a paz, os quepor violência ou por fraudenos querem tirar o que é nos-so.

Deste nosso desejo sai uma

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conclusão evidente, e é quenós não devemos praticar oque nos outros condenamos.Efectivamente, se condena-mos os outros que invadem oque e nosso, desde logo a nósmesmos nos condenamos seinvadirmos o alheio. E aquitemos já facilmente tudo queé capital em qualquer lei.

O que respeita á alimentação,deixemo-lo aos médicos; elesnos farão saber assaz apropri-adamente qual é a comida quefaz bem á saúde, qual, pelocontrário, é a que a prejudica.

No que toca ás mais cerimó-nias, ritos, regulamentos, sa-crifícios, dízimos (fraude in-signe para uma pessoa se go-zar do trabalho alheio semfazer nada), ai, ai!... choramospor serem tantos os labirintosem que nos meteu a malíciados homens. Reconhecendoeste ponto, são muitos paralouvar os verdadeiros cristãos,que mandaram embora todasas cousas deste género, con-servando só o que interessa ámoralidade.

Não vivemos como é de de-ver, quando observamos

muitas futilidades; vivemos,porém, como é de deverquando vivemos conforme-mente à razão.

Alguém dirá que a lei de Moi-sés ou a lei do Evangelhocontem alguma cousa maisalevantada e perfeita, e vem aser o amarmos os nossos ini-migos, preceito que não secontem na lei natural.

Respondo-lhe como acimadisse. Se nos apartamos daNatureza e pretendemos des-cobrir alguma cousa maislevantada, logo surge a luta,perturba-se o sossego.

De que serve ordenarem-se-me impossíveis que eu nãotenho forças para cumprir?Nenhum bem daí resultará,senão a tristeza do espírito seassentarmos ser impossível,pela ordem da Natureza, amaro nosso inimigo.

Ora se não é de todo impossí-vel, segundo a ordem natural,fazer bem aos inimigos (o quepode fazer-se sem haveramor), por isso que, geral-mente falando, somos pornatureza propensos á piedadee compaixão, não devemos já

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negar em absoluto que umatal perfeição se compreendena lei natural.

Vejamos agora outro ponto, eé, que males brotam quando agente se aparta muito da leinatural.

Dissemos que há um laçonatural de amor entre os paise os filhos, entre os irmãos eentre os amigos. Este laçodesata-o e desfá-lo a lei posi-tiva, seja ela a de Moisés ou ade qualquer outro, quandoordena que o pai, o irmão, ocônjuge, o amigo, mate outraia por amor da religião ofilho, o irmão, o cônjuge, oamigo. E uma lei assim queruma cousa superior ao quepode ser efectuado por criatu-ras humanas, e que, se seefetuasse, seria o maior aten-tado contra a Natureza, sendoque a Natureza tem horror asemelhantes atos.

Mas para que lembrar destascousas, quando os homenslevaram a insânia ao ponto deoferecerem os próprios filhosem holocausto aos ídolos aque rendiam vaníssimo culto,apartando-se tanto daquela lei

natural e manchando tão fei-amente os sentimentos mater-nos, filhos da Natureza!

Quanto mais agradável nãofora, se os homens se tives-sem conservado dentro dasraias marcadas pela Naturezae não houvessem feito inven-ções tão hediondas!

Que direi dos enormes terro-res e ansiedades em que amaldade de uns homens temlançado os outros homens? Ede tais males bem podia estarlivre todo o indivíduo, bas-tando que escutasse a voz daNatureza, a qual desconheceabsolutamente semelhantescousas.

Quantos não são os que de-sesperam de salvar-se, os que,imbuídos em varias crenças,padecem martírios, passamespontaneamente uma vidatoda de amarguras, mortifi-cando lastimosamente o cor-po, buscando solidões e luga-res apartados da conversaçãohumana, vexados perpetua-mente de tormentos interiores,pois que já pranteiam comoactuais os males de que searreceiam no futuro!

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Estas e outras calamidadessem conto foi uma falsa reli-gião, maldosamente inventadapelos homens, a que as acar-retou à humanidade.

Não sou eu próprio um, entremuitos, que fui grandementeenganado por tais impostorese, acreditando neles, me deiteia perder? Falo por experiên-cia. Mas objectam: Se nãohouver outra lei mais que anatural, se os homens nãosouberem pela fé que há outravida, e não temerem as penaseternas, que motivo há paraque não se tornem perpetua-mente culpados de malfeito-rias?

Vós, excogitando tais inven-ções (quiçá por qualquer ou-tro motivo oculto; que é detemer que por interesses vos-sos quisésseis pôr uma cargasobre os mais), assemelhais-vos aos que, para amedronta-rem as crianças, fingem pa-pões ou fantasiam nomes ater-radores, até que as pobrescrianças, batidas do medo, sesubmetam á vontade deles,escravizando, enfadadas etristes, a vontade própria.

Mas estes meios são profícuosenquanto a criança é criança:tão depressa como abre osolhos da inteligência, ri-se doengano e já não tem medo dopapão.

Neste caso estão as vossasinvenções ridículas, que só acrianças ou a bolonios podemmeter medo. Mas as outraspessoas que vos conhecem asmanhas, riem-se de vós.

Ponho agora de parte o tratardo justificado de semelhantefraude, quando vós mesmos,os autores de tais invenções,tendes uma regra de direitoque diz que não se hão defazer males para virem bens, anão ser que não ponhais naconta de males o mentir comgrave prejuízo dos outros,dando aos fracos ocasião deperderem o juízo.

Ora se em vós houvesse umasombra sequer de religião oude temor, infalivelmente nãodeveríeis ter tido pouco medo,quando introduzistes no mun-do tantos males, quando le-vantastes tantas discórdiasentre os homens, quando cri-astes tantas instituições iní-

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quas e ímpias, a ponto de nãoduvidardes açular impia-mente os pais contra os fi-lhos, e os filhos contra ospais.Uma pergunta desejaria eufazer-vos, e é, se quando, emrazão da malícia dos homens,fazeis essas invenções a fimde conterdes dentro dos ter-mos do dever, com terroresimaginários, os homens, quedoutro modo não observariamo bem, vos acode ao pensa-mento que vós sois seme-lhantemente pessoas cheias demalícia, que não sois capazesde fazer nada bom, nem pôrem obra senão perpetuamenteo mal, prejudicar os demais,não usar de misericórdia paracom ninguém.

Já vejo que vós vos encoleri-zais contra mim, que ouseifazer-vos uma pergunta as-sim, e que cada um de vósbatalha denodadamente emdefesa da justiça dos seusactos. Nenhum há que nãodiga que é piedoso, miseri-cordioso, amante da verdade eda justiça. Consequentemente,ou não falais verdade dizendode vós o que dizeis, ou acu-

sais falsamente a malícia hu-mana, á qual quereis dar re-médio com os vossos papõese terrores fantásticos, injurio-sos para com Deus, que apre-sentais aos olhos dos homenscomo cruelíssimo algoz ehorroroso torturador, injurio-sos para com os homens, quepretendeis terem nascido paratão deplorável miséria, comose não bastassem os desaresque sucedem na vida a cadaum de nós.

Mas conceda-se que é grandea malícia humana, o que eupróprio confesso, e de que vósmesmos me servis de teste-munhas, sendo maliciosos emextremo, aliás não poderíeisidear tais invenções. Procuraientão remédios de grandeeficácia, que sem maior danofaçam desaparecer esta doen-ça de todos os homens emgeral, e deixai-vos de papões,que só têm efeito em criançase tolos.

Se, porém, esta enfermidade éincurável no género humano,deixai-vos de mentiras e nãoprometais, á guisa de médicoscharlatães, a saúde que nãopodeis dar. Contentai-vos

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com estabelecer entre vós leisjustas e racionais, premiar osbons, punir devidamente osmaus, livrar de violências osque padecem violências, paraque não bradem que nestemundo não se faz justiça eque não há quem salve o fracodas garras do forte.

Sem dúvida, se os homensquisessem nortear-se pelarecta razão e viver em con-formidade com a Natureza,amar-se-iam todos uns aosoutros, e cada qual, na pro-porção de suas forças, acudi-ria á desventura do próximo,ou pelo menos ninguém ofen-deria outrem só pelo gosto deofender. Proceder de modocontrário é proceder contrari-amente á natureza humana. Ese muitos destes actos se pra-ticam, é porque os homenstêm inventado diversas leisopostas á Natureza, e umapessoa irrita a outra com assuas malfeitorias.

Muitos há que andam hipo-critamente, fingindo-se porextremo religiosos, e iludemos incautos cobrindo-se com acapa da religião para apanha-rem os que podem.

Semelhante gente pode bemcomparar-se ao ratoneironocturno, que insidiosamenteacomete quem está adormeci-do e não espera por tal. An-dam sempre a dizer: sou ju-deu, sou cristão; crê em mim,não te enganarei.

Ah alimárias ruins! aqueleque não diz nada disto e sófaz profissão de ser homem, émuito melhor do que vós.

Sim! Se não quereis acreditarnele, como homem que é,podeis precatar-vos; de vós,porém, quem se há de preca-tar de vós que, embuçados nacapa falsa de falsa santidade,á maneira do ladrão nocturnocoando-vos pelas abertas, daissobre os que mal precatadosdormem, e os estrangulaismiseravelmente?

Uma cousa entre muitas memaravilha, e é certamentepara maravilhar; vem a ser,como é que os fariseus, vi-vendo no meio de cristãos,podem gozar de tanta liberda-de que até julgam em tribunal.Na verdade posso dizer que,se Jesus Nazareno, a quem oscristãos rendem tanto culto,

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discursasse hoje em Amster-dão, e aos fariseus aprouvesseaçoutá-lo novamente por eleimpugnar as tradições dosfariseus e lhes lançar em rostoa hipocrisia, poderiam fazê-lomuito á sua vontade. Tal cou-sa é seguramente uma vergo-nha que não devia tolerar-seem uma cidade livre, que fazprofissão de manter as pesso-as em liberdade e paz, e toda-via não as defende dos agra-vos dos fariseus.

Ora quando um indivíduo nãotem quem o defenda ou vin-gue, não é de estranhar queprocure por si mesmo defen-der-se e vingar os agravosrecebidos.

Aqui tendes a história verídi-ca da minha vida Pus-vosdiante dos olhos o papel querepresentei neste vaníssimoteatro do mundo na minha

vida tão vã e instável. Agora,filhos dos homens, julgai comjustiça e, despidos de todo oafeto, com isenção, proferi avossa sentença conforme-mente á verdade, que isto é,sobre tudo, digno de homensque são verdadeiros homens.

E se alguma cousa encontrar-des que vos force á compai-xão, reconhecei e deplorai adesventurada condição huma-na, de que também vós parti-cipais.

E para que nem esta circuns-tância fuja ao vosso conheci-mento, ficai sabendo que onome que eu tinha quandocristão em Portugal, era Ga-briel da Costa; entre os judeuspara o meio dos quais oxaláeu nunca tivera vindo, fui,com leve alteração, chamadoUriel.

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BIOGRAFIA DE URIEL ACOSTA

(Tradução de A. Epiphanio da Silva Dias em Uriel da Costa,Espelho da vida humana, Lisboa, Impr. Lucas, 1901, 36 págs. )

BIBLIOTHECA LUSITANA, de Diogo Barbosa Machado

GABRIEL DA COSTA, natural da Cidade do Porto, e filho dePays nobres, e Catholicos posto que descendentes da NaçãoJudaica, que o educarão com aquelles documentos, e artes dig-nas de hum mancebo bem nacido, sendo muito destro no ma-nejo dos cavallos em que imitou a seu Pay, que neste exerciciofoy peritissimo. Para cultivar o engenho que era muito perspi-càs elegeo entre todas as Faculdades a Jurisprudencia Cesareaem que fez grandes progressos pelos quais mereceo quandocontava vinte e sinco annos de idade obter a dignidade Ecclesi-astica de Thezoureiro Mòr em huma Collegiada deste Reyno.

Temeroso da condenação eterna, e solicito da salvação revolviacom incansavel disvelo varios livros asceticos, e outros deTheologia Moral, e da sua lição começou a duvidar como podi-ão ser perdoados os pecados na Confição sacramental do queconcebeo tal aflição, e perplexidade no animo, que fluctuandoentre a eleição da Ley, que havia de seguir, apostatou da Ca-tholica em que fora educado, e abraçou a Moysaica para cujoeffeito conhecendo que na patria havia de ser punido por de-sertor da verdadeira Religião sem participar a pessoa alguma oseu intento renunciado o Beneficio, e deixadas as cazas nobresque seu Pay edificara no Porto, fugio clandestinamente comsua Mãy, e Irmãos para Amsterdam onde se circuncidou mu-dando o nome de Gabriel em Uriel. Depois de examinar comgrande reflexão que a ley que os Iudeos observavam naquellaCidade era muito diferente da que promulgara Moyses, julgan-do por horrendo absurdo esta transgressão, escreveo hum livro

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em que mostrava claramente pelos fundamentos da mesma leycomo lhe erão totalmente opostas, e repugnantes as tradiçoensdos Fariseos de que se originou hum tão furioso odio dos Iu-deos contra a sua pessoa, principalmente por negar a immorta-lidade da alma, que lhe chamavão publicamente herege, e eraapedrejado nas ruas todas as vezes que aparecia. Não forãobastantes tão graves oprobrios para que refolutamente animozosahisse com hum Tratado em que sustentava a sua opinião denão ser a alma immortal por cuja causa sendo delatado pelosIudeos aos Magistrados de Amsterdão acuzando-o de ofenderigualmente a ley de Moyses como arruinar os fundamentos daReligião Christaã, de que resultou depois de estar preso 18.dias ser condenado em trezentos Florins com perda de todos oslivros. Cahindo de hum abismo, em outro mayor começou aafirmar que a Ley de Moyses não fora dada por Deos, mas erahum invento humano por conter muitos preceitos repugnantes àley da natureza, e não podia Deos como Author da mesma na-tureza ser contrario a si mesmo; e certamente o seria se propu-zesse aos homens preceitos, que se não podião observar. Sendoacuzado por hum seu sobrinho de ser infiel aos Rabinos conci-tou contra si a colera dos sequazes da Sinagoga com tal exces-so, que tumultuariamente o levarão à prezença dos Juizes, esendo exarninado escrupulosamente das suas propofiçoens ocondenarão a que despido até a cintura, e descalso dentro daSinagoga fosse açoutado recebendo trinta, e nove açoutes nãochegando ao numero de quarenta por ser prohibido pela Ley.Estimulado desta publica injuria resolveo vingar-se de quemfora o seu principal author contra o qual disparando hum ba-camarte como errasse o tiro, e fosse conhecido, com a mesmaarma se privou da vida no mez de Abril de 1640 como escreveJoão Mallero in Prolog. ad Judaism. detect. pag. 71 . ou noanno de 1647. como querem João Clerc Bib. Univ.Tom. 7. pag.327. e João Christovão Wolfio Bib. Hebraic..pag. 131. §. 203.

Fazem delle menção Imbonato Bib. Latin. Hebraic. pag. 201.

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col. 1. pag. 208. Bib. Magna Eccles. Tom. 1. pag. 70. col. 2.Bayle Diccion. Historiq. e Critiq.Tom. 1. pag. mihi 67. Joan.Moller Homonymoscopia. pag. 784. e Bern. Mart. Diefenbach.in Judaeo convertend. p. 132.

* * * * *

Amsterdam por Paulo Ravenstein 1623. 8. Esta obra foy escritacontra o Tratado da Immortalidade da alma que compoz oDoutor Samuel da Sylva de profissão medico o qual foy im-presso Amsterdão anno da Creação do Mundo 5383 . que cor-responde ao de Christo. 1623.

Exemplar humanae vitae. Foy achada esta obra entre os M. S.de Simão Episcopio, e publicada por Filipe Limborck no fimdo seu doutissimo Tratado intitulado Amica collatio cum eru-dito Judaeo. Goudae apud Justum ab Hoeve. 1687. 4. a pag.341. Nelle narra os tragicos sucessos da sua vida, e faz humaacerrima invectiva contra os Judeos de quem se queixa foratyranamente tratado onde involve alguns argumentos com queimpiamente impugna toda a Revelação divina, e toda a religiãorevelada, como fabricada pela malicia humana, vomitandomuitas proposiçoens contra o Christianismo de que foy impiodesertor. Filipe Limborck o confusa doutamente naquella parteque respeita à Revelação divina com hum Tratado particularque intitulou Brevis refutatio argumentorum quibus Acostaomnem Religionem revelatam impugnat. Sahio impresso com oExemplar vitae humanae do mesmo Gabriel da Costa.

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EXEMPLAR HUMANÆ VITAE

Natus sum ego in Portugallia, in civitate ejusdem nominis, vul-go Porto. Parentes habui ex ordine nobilium, qui a Judæis ori-ginem trahebant, ad Christianam relligionem, in illo regno,quondam per vim coactis. Pater meus vere erat Christianus, virhonoris observantissimus, et qui honestatem plurimi faciebat.In domo ejus fui ego honeste educatus. Servi non deerant, necin equili equus nobilis Hispanus ad equestrum exercitationem,cujus pater meus erat peritissimus; et ego ejus vestigia a longeimitabar. Aliquibus artibus tandem instructus, quibus solenthonesti pueri, jurisprudentiæ operam dedi. Quod ad ingeniumet naturales affectus attinet, eram ego naturaliter valde pius etad misericordiam ita propensus, ut, si quando alienæ calamita-tis narrabatur eventus, nullo modo possem lachrymas contine-re. Pudor mihi adeo erat innatus, ut nihil magis timerem, quamignominiam. Animus nullo modo ignobilis, nec ab ira destitu-tus, si occasio justa postulabat. Itaque superbis et insolentibus,qui per contemptum, et vim solent aliis injuriam inferre, vereeram contrarius, infirmorum partes adjuvare cupiens, et illispotius me socium adjungens. Circa religionem passus sum invita incredibilia. lnstitutus fui, quemadmodum mos est illiusregni in religione Christiana Pontificia; et cum jam essem ado-lescens ac valde timerem damnationem æternam, cupiebamexacte omnia observare. Vacabam lectioni Evangelii, et alio-rum librorum spiritualium summas confessariorum percurre-bam, et quo magis istis incumbebam, eo major difficultas mihioriebatur. Tandem incidi in inextricabiles perplexitates, anxie-tates et angustias. Mœrore et dolore consumebar. lmpossibilemihi visum est peccata confiteri more Romano, ut dignam pos-sem absolutionem impetrare, et omnia implere, quæ postula-bantur; et per consequens de salute desperavi, si illa talibuscanonibus paranda erat. Quia vero difficile religio poterat dese-ri, cui a primis incunabilis assuetus fueram, et quæ per fidem

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altas jam radices egerat, in dubium vocavi (accidit hoc mihicirca vigesimum secundum ætatis annum), possetne fieri, ut ea,quæ de altera vita dicebantur, minus vera essent, et utrum fidestalibus data bene cum ratione conveniret; siquidem ipsa ratiomulta dictabat, et perpetuo insinuabat in aurem, quæ valdeerant contraria. Hoc in dubium vocato animo, quievi, et qui-cquid esset, tandem statuebam me non posse tale via incedendosalutem animæ assequi. Per hoc tempus Juris, ut dixi, studiovacabam, et cum annum agerem vigesimum quintum, oblataoccasione, impetravi beneficium Ecclesiasticum, nempe digni-tatem thesaurarii in collegiata Ecclesia.

Cum vero in Christiana Religione Pontificia quietem non inve-nissem, et cuperem alicui inhærere, sciens magnam esse interChristianos et Judeos contentionem, percurri libros Mosis, etProphetarum, ubi aliqua inveni, quæ novo fœderi non parumcontradicebant, et minus habebant difficultatis ea, quæ a Deodicebantur. Præterea veteri fœderi fidem dabant tam Judæi,quam Christiani, novo autem Fœderi soli Christiani. TandemMosi credens judicavi me debere legi parere, quandoquidemille omnia se accepisse a Deo asserebat, simplicem se internun-cium declarans, ab ipso Deo ad id munus vocatum, aut potiuscoactum (ita decipiuntur parvuli). Posita hac deliberatione, quianon erat liberum prædictam religionem in illo regno aliquomodo profiteri, cogitavi de mutando domicilio, proprios et na-tivos relinquendo lares. Ad eum finem non dubitavi beneficiumistud Ecclesiasticum in favorem alterius resignare, nihil curansutilitatem vel honorem ex ea provenientem secundum moremgentis illius. Pulchram etiam domum reliqui in optimo civitatisloco positam, quam pater meus ædificaverat. Itaque navemadscendimus non sine magno periculo (non licet illis, qui abHebræis originem ducunt a regno discedere sine speciali Regisfacultate), mater mea et ego cum fratribus meis, quibus egofraterno amore motus ea communicaveram, quæ mihi super

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religione visa fuerant magis consentanea, licet super aliquibusdubitarem: quod quidem in magnum malum meum poterat re-cidere, tantum est in eo regno periculum de talibus loqui. Tan-dem peracta navigatione Amstelodamum appulimus, ubi inve-nimus Judæos libere agentes; et ad implendum Iegem præcep-tum de circumcisione statim implevimus.

Transactis paucis diebus expertus sum mores et ordinationesJudæorum minime convenire cum iis, quæ a Mose præceptasunt. Si vero lex observanda erat pure, quod et ipsa petit, malequi dicuntur Judæorum Sapientes tot invenerant a lege omninoabhorrentia. Itaque non potui me continere, imo gratam remDeo me facturum putavi, si libere legem defenderem. Sapientesisti Judæorum, qui nunc sunt, et mores suos, ac ingenium ma-lignum adhuc retinent, pro secta et institutionibus detestando-rum Pharizeorum strenue certantes, non sine ipse proprii lucri,et quemadmodum illis alias bene fuit imputatum, ut primascathedras in templo, primas salutationes in foro habeant, nullomodo passi sunt, ut nec in minimis rebus ab illis discederem,sed per omnia vestigia eorum inviolabiliter sequerer; sin minus,minati sunt separationem a congregatione et communicationeomnium, tam in divinis, quam in humanis. Quia vero minimedecebat, ut propter talem metum terga verteret ille, qui pro li-bertate natale solum, et utilitatis alias contempserat, et succum-bere hominibus, præsertim jurisdictionem non habentibus, intali causa nec pium, nec virile erat, decrevi potius omnia per-ferre et in sententia perdurare. Itaque excommunicatus fui perillos ab omnium communicatione, et ipsi Fratres mei, quibusego antea præceptor fueram, me trasibant, nec in platea saluta-bant propter metum illorum.

His ita se habentibus, deliberavi librum scribere, in quo justiti-am causæ meæ ostenderem, et aperte probarem ex ipsa lege

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vanitatem eorum, quæ Pharisæi tradunt et observant, et repug-nantiam, quam cum lege Mosis traditiones et institutiones eo-rum habent. Post cæptum opus accidit etiam (oportet omniaplane et vere, quemadmodum evenerunt, enarrare) ut cum re-solutione et constanti deliberatione accederem sententiæ illo-rum, qui legis veteris præmium et pœnam definiunt tempora-lem, et de altera vita et immortalitate animorum minime cogi-tant, eo præter alia nixus fundamento, quod predicta Lex Mosisomnino taceat super his, et nihil aliud proponat observantibuset transgressoribus, quam præmium, aut pœnam temporalem.Valde lætati sunt hostes mei, simulatque intellexerunt me intalem opinionem devenisse, existimantes, se satis amplam de-fensionem apud Christianos per hoc solum adeptos fuisse, quiex speciali fide in lege Evangelii fundata, ubi expresse mentiofit de æterno bono et supplicio, animæ immortalitatem et cre-dunt, et agnoscunt. Hac intentione ducti, et ut mihi os in cæterisobturarent, ac odiosum redderent inter ipsos Christianos, ante-quam liber iste meus, quem scripseram, typis rnandaretur, libe-llum in lucem ediderunt opera cujusdam Medici, cui inscriptioerat : De Immortalitate Animarum. In hoc libello Medicus istecopiose me lacerabat, quasi Epicuri partes tuentem (per hoctempus male ego de Epicuro sentiebam, et contra absentem etinauditum ex aliorum iniqua relatione setentiam temere profe-rebam; postquam vero aliquorum veritatis amaritium de illojudicium, et doctrinam ejus ut erat, intellexi, doleo, quod ali-quando talem virum amentem et insanum pronunciavi, de quoetiam nunc non possum plene judicare, cum ejus scripta mihisint incognita): qui enim immortalitatem animarum negabat,parum aberat, quin Deum abnegaret. Pueri istorum, a Rabbiniset parentibus edocti, turmatim per plateas conveniebant, et ela-tis vocibus mihi maledicebant, et omnigenis contumeliis irrita-bant, hereticum et defectorem inclamantes. Aliquando etiamante fores meas congregabantur, lapides jaciebant, et nihil in-tentatum relinquebant, ut me turbarent, ne tranquillus etiam in

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domo propria agere possem. Postquam libellus ille contra mefuerat editus, paravi me ego statim ad defensionem, et aliumlibellum huic contrarium scripsi, immortalitatem impugnansomnibus viribus, aliqua obiter eorum percurrens, in quibusPharisei a Mose recedunt. Simulatque libellus iste in lucemprodiit, convenere Senatores et Magistratus Judaicus, et de meaccusationem proposuerunt apud Magistratum publicum: di-centes me talem librum scripsisse, in quo immortalitatem ani-morum negabam, nec solum illos lædebam, sed etiam Christia-nam religionem convellebam. Ex hac eorum delatione fui egoad carcerem vocatus, et cum ibi fuissem per dies octo aut de-cem, solutus fui sub cautione: Mulctam enim Prætor a mepostulabat, et tandem condemnatus sum, ut illi solverem flore-nos trecentos cum amissione librorum.

Post hæc temporis decursu, cum experientia et anni multa pate-faciant, ac per consequens mutent hominis judicium (liceat, utdixi, libere loqui, quare enim non liceret ei, qui quasi testa-mentum conficit, ut hominibus relinquat vitæ rationem, et hu-manarum calamitatum Exemplum verum, saltem in morte veraenarrare?) in dubium vocavi, utrum Lex Mosis deberet pro Deilege haberi; multa enim erant, quæ contrarium suadebant, autpotius cogebant dicere. Tandem statui legem Mosis non esse,sed tantum inventum humanum, quemadmodum alia innumerain mundo fuerunt: Multa enim pugnabant cum lege naturæ, etnon poterat Deus autor naturæ contrarius esse sibi ipsi, et essetsibi contrarius, si contraria naturæ hominibus facienda propo-neret, cujus autor dicebatur. Hoc ita apud me definito, dixi me-cum: quæ utilitas (utinam nunquam talis cogitatio subiisset inanimum meum), si usque ad mortem in hoc statu durem, sepa-ratus a communione patrum istorum, et populi istius, maximecum advena sim in his regionibus, nec familiaritatem cum civi-bus habeam, quorum etiam ignoro sermonem? Satius erit incommunionem eorum venire, et eorum sequi vestigia, que-

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madmodum volunt, simiam, ut ajunt, inter simias agendo. Hacmotus consideratione redii in communionem istorum, dictamea retractans, el illorum placitis subscribens, annis quindecimjam transactis, quibus ab illis separatus egeram. Fuit autemvelut internuntius hujus concordia quidam amitinus meus.

Transactis diebus aliquot delatus fui per quendam puerum, fi-lium Sororis meæ, quem domi habebam, super cibis, modoparandi, et aliis, ex quibus apparebat me Judæum non esse.Propter hanc delationem nova et acerba bella exorsa sunt: Namamitinus ille meus, quem internuntium dixi concordiæ fuisse,existimans in opprobrium illius recidere factum meum, cumsuperbus valde esset et arrogans, imprudens admodum, et ad-modum etiam impudens, bellum contra me apertum exorsusest, et post se ducens omnes fratres meos, nihil reliquit inten-tatum, quod ad destructionem et dissipationem honoris mei,facultatum, et per consequens vitæ, possit aliquid opis conferre.Iste impedivit nuptias, quas jam jam eram contracturus; hocenim tempus orbatus eram uxore. Is fecit, ut frater quidammeus retineret bona mea, quæ in manibus habebat, et commer-cium, quod inter nos erat, pervertit; quod mihi adeo nocuitpropter statum, in quo tunc res meæ erant, ut vix dici possit.Nunc satis sit dicere, hunc mihi fuisse infestissimum hostemcontra honorem, contra vitam, contra bona. Præter hoc bellumdomesticum, ut ita dicam, aliud erat publicum bellum, nempeRabbinorum et populi, qui novo odio me odisse cæperunt, etmulta impudenter in me commiserunt, quos ideo merito fastidi-ebam. Intei hæc accidit adhuc aliud novum: Nam forte fortunasermonem habui cum duobus hominibus, qui ex Londino inhanc civitatem venerant, Italo uno, altero vero Hispano, quiChristiani cum essent, nec ex Judæis originem ducerent, inopi-am indicantes, consilium a me postularunt super ineunda eumJudæis societate, et transeundo in religionem illorum. His egoconsului, ne tale quid facerent, sed potius ita manerent: nescie-

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bant enim, quale jugum suis cervicibus imponebant. Interimmonebam eos, ne Judæis aliquid meo nomine indicarent; quodet illi promiserunt. Maligni homines isti, intenti ad turpe lu-crum, quod inde se percepturos sperabant, gratiarum loco, om-nia aperuerunt Phariseis charissimis amicis meis. Tunc congre-gati sunt principes Synagoge, exarserunt Rabbini, et petulansturba clamavit voce magna, crucifige, crucifige eum. Vocatussum ad consilium magrium, proposuerunt ea, quæ contra mehabebant, submissa et tristi voce, quasi de vita ageretur; et tan-dem pronuntiarunt debere me, si Judæus eram, illorum exs-pectare et implere judicium: quod si non, excommunicandusiterum eram. O egregii judices, qui quidem judices estis, utmihi noceatis, si vero ego indigeam judicio vestro, ut me libe-retis ab alicujus violentia et illæsum servetis, tunc judices nonestis, sed servi vilissimi, alieno subjecti imperio; quod est ves-trum judicium, cui vultis, ut ego paream? Tunc prælectus estlibellus, in quo continebatur, debere me veste lugubri indutumSynagogam intrare, cereum nigrum in manu tenentem, et certaquædam verba, per illos scripta, fœda satis, palam coram con-cione evomere, quibus iniquitates istas, quas commiseram, us-que in cœlum efferebant. Post hæc debebam pati publice inSynagoga flagellari coreaceo flagello, ceu ligaculo; deinde inipsius Synagogæ limine me prosternere, ut omnes super metransirent, et certis insuper diebus jejunare. Perlecto libelloexarserunt viscera mea, et interius ira flagrabam inextinguibili;continens tamen me, simpliciter respondi, non posse talia im-plere. Audito responso, deliberarunt me iterum a communioneseparare, nec eo contenti, multi eorum transeunte me in plateaspuebant, quod etiam et pueri illorum faciebant, ab illis edocti:tantum non lapidabar, quia facultas deerat. Duravit item pugnaista per annos septem, intra quod tempus incredibilia passussum: Duo enim agmina, ut dixi, pugnabant contra me, agmenunum populi, et alterum propinquorum, qui ignominiam meamquærebant, ut vindictam de me sumerent. Isti non quieverunt,

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donec me a statu priori dejicerent: Dixerunt enim inter se, nonfaciet quicquam nisi coactus, et debet cogi. Si ægrotabam, so-lus ægrotabam. Si aliquod aliud onus incumbebat, hoc inter sibivalde optata expetebant. Si dicebam, ut esset aliquis judex exmedio ipsorum, qui inter nos judicaret, nihil minus. Agere co-ram Magistratu de talibus rebus, quod etiam cæpi tentare, reserat valde molesta. Longa enim erat via lites persequi in judi-cio, cui, præter multa alia onera, tot dilationes et procrastinati-ones inhærent. Dixerunt isti sæpius, subjice de nobis, omnesenim patres sumus, nec putes aut timeas nos tecum fœde actu-ros. Dic jam semel paratum te esse, omnia implere, quæ nostibi imposuerimus et tunc relinque nobis exitum rei, nos enimomnia faciemus, quemadmodum decet. Ego, licet super hocipso quæstio vertebatur, et talis subjectio et acceptio, per vimextorta, mihi erat valde ignominiosa, tamen, ut rem usque adfinem perducerem, et exitum ejus oculis comprobarem, meip-sum devici, constanter deliberans, omnia, quæ vellent, accepta-re et experiri. Si enim fœda mihi imponerentur et inhonesta,causam meam contra ipsos magis justificabant, et palam facie-bant, quinam illorum erga me erat animus, quæ fides in ipsis.Et tandem palam fiebat, quam fœdi et execrandi sint hujusgentis mores, qui honestissimis hominibus, quasi vilissimismancipiis, ita fœde abutuntur. Ergo, dixi, omnia implebo,quæcunque mihi imposueritis. Nunc animum mihi præbete,quicunque honesti, prudentes et humani estis, et defixis mentisoculis iterum atque iterum expendite, quale judicium isti in meexercuerunt, particulares homines alienæ potestati subjecti, sineullo peccato meo.

Intravi Synagogam, quæ hominibus et mulieribus plena erat,convenerant enim ad spectaculum et quando tempus fuit ads-cendi suggestum ligneum, quod est in medio Synagogæ adconcionandum, et alia officia, et clara voce perlegi scripturamab illis exaratam, in qua continebatur confessio, me scilicet

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dignum esse, millies mori propter ea, quæ commiseram, nempeviolationem Sabbathi, fidem non servatam, quam in tantumviolavi, ut etiam aliis suasissem, ne Judaismum intrarent, et proquorum satisfactione illorum ordinationi parere volebam, et eaimplere, quæ mihi essent imposita, promittens de reliquo insimiles iniquitatis et scelera non reincidere. Peracta lectionedescendi a suggestu, et accessit ad me Sacratissimus præses,susurrans mihi in aurem, ut diverterem ad angulum quendamSynagogæ. Contuli me ad angulum, et dixit mihi janitor, ut menudarem. Nudavi corpus ad cincturam usque, linteum capitisubligavi, calceos deposui, et brachia erexi, manibus tenensquandam quasi columnam. Acessit janitor ille, et manus measad columnam illam quadam fascia colligavit. His ita peractisaccessit præcentor, et accepto corio percussit latera mea trigintaet novem percussionibus secundum traditionem: nam judiciumLegis est, ut numerus quadragenarium non excedat, et cum viriisti adeo religiosi, et observantes sint, cavent sibi, ne contingat,ut peccent excedendo. Inter percutiendum psalmus decantaba-tur. Hoc impletur, humi sedi, et accessit concionator, ceu sapi-ens (quam ridiculæ sunt res mortalium), qui me ab excommu-nicatione absolvit, et ita jam porta Cœli mihi erat aperta, quæantea fortissimis seris clausa me a limine et ingressu exclude-bat. Post hæc indui vestes, et abii ad limen Synagogæ, prostravime, et custos ipsius sustentabat caput meum. Tunc omnes, quidescendebant, transibant super me, scilicet elevabant pedemunum, et transibant ad inferiorem partem crurum meorum ;quod omnes tam pueri, quam senes fecerunt (nullæ sunt simiæ,quæ actiones magis absonas, aut gestus magis ridendos homi-num oculis possint exhibere): et peracto opere, quando jamnullus restabat, surrexi e loco, et mundatus a pulvere per illum,qui mihi assistebat (nemo jam dicat istos me non honorasse, sienim me flagro percusserunt, lugebant tamen, et demulcebantcaput meum) domum me contuli. O! impudentissimi omniumhominum. O! patres execrandi, a quibus non erat timendum

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fœdum quidquam! Hoc te percutiemus? dicebant, absit hoccogitare. Judicet nunc qui hæc audierit, quale esset spectacu-lum, videre hominem senem, sortis non abjectæ, naturaliterverecundum super omnem modum, in concione publica coramomnibus tam viris quam mulieribus et pueris nudatum, et flagrocæsum ex mandato judicum, et talium judicum, qui servi potiusabjecti, quam judices sunt. Consideret, qualis dolor cadere adpedes infestissimorum hostium, a quibus tot mala, tot injuriæacceptæ sint, et se conculcandum prosternere. Cogitet (quodmajus est, et miraculum portentosum, ac monstrum horrendum,cujus intuitum et fœditatem exhorrescas et fugias dici meritopotest) fratres naturales et uterinos, ex eodem patre et matregenitos, in eadem domo simul educatos, in hunc finem omnemoperam impendisse, oblitos dilectionis, quæ a me fuerunt per-petuo dilecti, mihi enim erat hoc proprium et nativum, et obli-tos multorum beneficiorum, quæ per me in vita acceperant,quorum loco pro retributione habui ignominiam, damnum,mala, tot fœda et nefanda, ut referre pudeat.

Dicunt nunquam satis detestandi osores mei, se ad aliorumexemplum juste de me pœnas sumpsisse, ne deinceps aliquisaudeat se opponere ipsorum placitis, et contra sapientes scribat.O sceleratissimi mortaIium el totius mendacii parentes! quantojustius possem ego de istis pœnas sumere ad exemplum, nedeinceps talia auderetis impudenter contra viros veritatisamantes, osores fraudum, totius humani generis indifferenteramicos, cujus vos communes hostes estis, cum omnes gentespro nihilo æstimetis, et inter bestias numeretis, vos autem solosin cælum usque efferatis proterve, vobis ipsis mendaciis blan-dientes, cum nihil habeatis, de quo vere gloriari possitis; nisiforte gloria vobis est exulare, ab omnibus contemni et odiohaberi, propter ridiculos et exquisitos vestros mores, quibus acæteris hominibus separari vultis. Si enim de simplicitate vitæet justitia gloriari velitis, væ vobis, qui non obscure multis infe-

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riores in his apparebitis. Dico igitur, potuisse me juste, si viresadessent, de istis sumere vindictam pro gravissimis malis, etatrocissimis injuriis, quibus me repleverunt, et propter quævitam meam exosus sum. Quis enim honesti amans libentersustineat vitam vivere ignominiosam? Et ut aliquis bene dixit,aut bene vivere, aut honeste mori, ingenuum decet. Tanto au-tem justior est causa mea causa istorum, quantum ventaspræcellit mendacio. Isti pro mendacio contendunt, ut hominescapiant et servos faciant: ego vero pro veritate et naturali ho-minum libertate, quos magis decet, a falsis superstitionibus etritibus vanissimis liberos, vitam agere hominibus non indig-nam. Fateor magis ex re mea fuisse, si a principio tacuissem, etagnoscens ea, quæ in mundo fiunt, potius silerem ; ita enimexpedit iis, qui inter homines acturi sunt, ne a multitudine igna-ra vel a tyrannis injustis opprimantur, ut fieri solent: unusquis-que enim commodis suis consulens veritatem studet opprimere,et Iaqueos parvulis tendens, justitiam sub pedibus terit; tamenpostquam incautus a vana religione deceptus in arenam cumistis prodii, satius est cum laude occumbere, vel saltem sinedolore mori, qui turpis fugæ, aut ineptæ patientiæ in honestishominibus comes est. Solent isti pro se allegare multitudinem.Tu unus nobis, qui multi sumus, debes cedere. Amici, utilequidem est, ut unus multis cedat, ne ab illis lanietur; sed nonomne, quod utile est, pulchrum statim est. Pulchrum profectonon est, cum ignominia discedere, ac violentis et injustis tro-phæum relinquere. Debetis igitur fateri, virtutem esse laudedignam, superbis resistere, quantum fieri possit, ne male faci-entes et utilitatem ex malitia capientes indies magis superbiant.Pulchrum quidem est, et viro pio ac generoso dignum, cumparvulis parvulum esse, cum ovibus ovem; stultum autem, ig-nominiæ et reprehensioni obnoxium, cum leonibus in conflictumansuetudinem ovis induere. Quod si inter res pulcherrimashabetur pro patria pugnare usque ad necem, quia patria est ali-quid nostrum, quare pulchrum non esset pro propria honestate,

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quæ proprie nostra est, et sine qua bene vivere non possumus,nisi forte tanquam porci fœdissimi volutemur in fœdissimo lutolucri. Sed dicunt nefarii illusores mei, totum jus suum in mul-titudine constituentes, quid tu unus contra tam multos posses?Fateor, et lugeo me a multitudine vestra oppressum esse; tamenpropter cogitationes istas, et sermones vestros, æstuat magis irain præcordiis meis, et clamat, impium esse erga impios, super-bos, contumaces, et perseverantes, pietate uti. Unum dixi, de-sunt vires.

Scio adversarios istos, ut nomen meum coram indocta plebedilanient, solitos esse dicere, iste nullam habet religionem, Ju-dæus non est, non Christianus, non Mahometanus. Vide priusPharisee quid dicas; cæcus enim es, et licet malitia abundes,tamen sicut cæcus impingis. Quæso, dic mihi, si ego Christia-nus essem, quid fuisses dicturus? Planum est, dicturum te,fœdissimum me esse idololatram, et cum Jesu Nazareno Chris-tianorum doctore pœnas vero Deo soluturum, a quo defeceram.Si Mahometanus essem, norunt etiam omnes, quibus se honori-bus fuisses cumulaturus: et ita nunquam linguam tuam possemevadere, unicum hoc effugium habens, nempe ad genua tuaprocumbere, et fœdissimos pedes tuos, tuas inquam nefarias etpudendas institutiones, osculari. Nunc, precor, doceas me, ali-amne noveris religionem præter illas, quarum meministi et qua-rum duas ultimas tu pro adulterinis habens, non tam religionesvocas, quam a religione recessum. Jam audio te fatentem, unamte adhuc noscere religionem, quæ vere religio est, et cujus me-dio homines possunt Deo placere. Si enim gentes omnes, ex-ceptis Judæis (oportet, ut vos semper ab aliis separemini, neccum plebeis et ignobilibus conjungamini) servent preceptaseptem, quæ vos dicitis Noam servasse, et alios, qui anteAbrahamum fuerunt, hoc illis satis est ad salutem. Iam ergo estaliqua religio per vos ipsos, cui ego possum inniti, etiamsi aJudæis originem ducam: precibus enim a vobis impetrabo, ut

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patiamini me cum alia turba misceri, vel si non obtineam apudvos, per me licentiam sumam. O! cæce Pharizæe, qui oblitusillius legis, quæ primaria est, et a principio fuit, et erit semper,tantummodo mentionem facis aliarum legum, quæ postea essecæperunt, et quas tu ipse damnas, tua excepta, de qua etiam,velis nolis, alii judicant secundum rectam rationem, quæ veranorma, est illius naturalis legis, quam tu oblitus fuisti, et quamlibenter vis sepelire, ut gravissimum, et detestandum jugumtuum super cervices hominum imponas, et eos a sana mentedeturbes, ac insanientibus similes reddas.

Sed quando in ista venimus, libet hic aliquantulum immorari, etlaudes hujus primariæ legis non omnino tacere. Dico igiturhanc legem omnibus hominibus esse communem et innatam,eo ipso quod homines sunt. Hæc omnes inter se mutuo amorecolligat, inscia divisionis, quæ totius odii, et maximorum malo-rum causa et origo est. Hæc magistra est bene vivendi, discernitinter justum et injustum, inter fœdum et pulchrum. Quicquidoptimum est in lege Mosis, vel quacumque alia, hoc totum per-fecte in se continet lex natura; et si tantisper ab hac naturalinorma declinatur, statim oritur contentio, statim sit animorumdivisio; nec quies inveniri potest. Si vero multum declinatur,quis satis erit ad recensenda mala et monstra horrenda, quæ abhoc adulterio originem suam trahunt et incrementa ? Quid ha-bet optimum lex Mosis, vel quæcumque alia quod respiciatsocietatem humanam, ut homines inter se bene vivant et beneconveniant? Profecto primum est, parentes honorare, deincepsaliena bona non invadere, sive in honore, sive in bonis aliis advitam conducibilibus. Quid, quæso, horum in se non continetlex naturæ et norma recta mentibus inherens? Naturaliter filiosdiligimus, et parentes filii, frater fratrem, amicus amicum. Na-turaliter volumus omnia nostra salva esse, et odio habemusillos, qui pacem nostram turbant, qui ea, quæ nostra sunt, anobis aut vi aut fraudibus auferre volunt. Ex hac voluntate

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nostra naturali sequitur apertum judicium, scilicet non deberenos ea commettere, qua in aliis damnamus. Si enim aliosdamnamus, qui nostra invadunt, jam nos ipsos damnamus, sialiena invaserimus. Et ecce, jam facile habemus, quidquidpræcipuum est in quacumque lege. Quod adtinet ad cibos, hocMedicis relinquamus; illi enim nos fatis apposite docebunt,quis cibus sit salutaris, quis per contrarium noceat. Quod veroad alia ceremonialia, ritus, statuta, sacrificia, decimas (insignisfraus ut quis alieno labore fruatur otiosus) heu, heu, ideo plo-ramus, quia in tot labyrinthos conjecti sumus ex malitia homi-num. Agnoscentes hoc veri Christiani, magna laude digni sunt,qui ista omnia in exilium migrare fecerunt, retinentes solum ea,quæ ad bene vivendum moraliter spectant. Non bene vivimus,quando multas vanitates observamus, sed vivimus bene, quan-do rationabiliter vivimus. Dicet aliquis, legem Mosis vel Evan-gelicam aliquid altius et perfectius continere, nempe ut inimi-cos diligamus, quod lex naturalis non agnoscit. Huic respon-deo, quemadmodum superius dixi: Si a natura declinamus, etaliquid majus volumus invenire, statim oritur contentio, turba-tur quies. Quid prodest, si mihi imperentur impossibilia, quæego implere non possim! Nulium aliud bonum inde sequetur,quam animi tristitia, si ponimus impossibile esse naturaliterinimicum diligere. Quod si non omnino impossibile sit natura-liter inimicis benefacere (hoc citra dilectionem accidere potest),quia homo ad pietatem et inisericordiam, generaliter loquendo,naturalem habet propensionem; jam non debemus negare ab-solute talem perfectionem in lege nature comprehendi.

IlIud nunc videamus, nempe quæ mala oriantur, quando a natu-rali lege plurimum declinatur. Diximus inter parentes et filios,fratres et amicos, naturale esse amoris vinculum. Tale vincu-lum dissolvit et dissipat lex positiva, sive illa sit Mosis, sivecujuscumque alterius, quando præcipit, ut pater, frater, conjux,amicus, filium, fratrem, conjugem, amicum, occidat vel prodat

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Religionis ergo, et aliquid vult talis lex majus et superius, quamut possibile sit per homines impleri; et si impleretur, summumesset contra naturam scelus : illa enim talia horret. Sed quidjam ista memorem, quando in tantum vesaniæ homines devene-runt, ut proprios filios idolis, quæ vanissime colebant, pro ho-locausto obtulerint, a naturali illa norma adeo discedentes, etnaturales paternos affectus adeo maculantes. Quanto dulciusforet, si mortales inter naturales limites se cohibuissent, et in-venta adeo fœda nunquam invenissent ? Quid dicam de terrori-bus, et anxietatibus gravissimis, in quos hominum malitia aliosconjecit; a quibus unusquisque liber erat, si naturam tantumaudiret, quæ talia omnino nescit. Quot sunt, qui de salute des-perant? qui martyria variis imbuti opinionibus subeunt? quivitam omnino miseram sponte agunt, corpus misere maceran-tes, solitudines et recessus a communi aliorum societatequærentes, internis cruciatibus perpetuo vexati; quippe quimala, quæ futura timent, jam tanquam præsentia lugent! Hæc etalia mala innumera, falsa religio, ab hominibus malitiose in-venta, mortalibus adduxit. Nonne ego ipse unus sum ex multis,qui per tales impostores valde deceptus fui, et illis credens mepessumdedi? Loquor tanquam expertus. At dicunt, si non aliasit lex quam naturæ lex, nec homines ex fide habeant alteramrestare vitam, et timeant pœnas æternas, quid est, cur non per-petuo malefaciant? Vos talia inventa excogitastis (fortassis ali-quid amplius latet, timendum est enim, ne propter utilitatesvestras onus super alios imponere volueritis), in hoc similesillis, qui ut infantes terrefaciant, larvas fingunt, vel aliqua no-mina atrocia excogitant, donec pueruli metu perculsi eorumvoluntati acquiescant, voluntatem propriam captivantes cumtædio et mærore. Sed prosunt ista quidem, quamdiu infans in-fans est; quamprimum tamen oculos mentis aperit, ridet frau-dem nec jam larvam timet. Sic vestra ista ridicula sunt, quæsolum infantibus aut bardis possunt timorem injicere; alii au-tem, qui vestra norunt vos rident. Mitto nunc de justitia fraudis

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hujus disserere; cum vos ipsi, qui talia fingitis, inter juris regu-las habeatis, non esse facienda mala ut veniant bona. Nisi forteinter mala non numeratis, mentiri in grave aliorum præjudi-cium, occasionem pusillis dantes insaniendi. Quod si vel umbraReligionis veræ, aut timoris in vobis esset, procul dubio nonmodice timere debuissetis, quando tot mala in orbem terraruminduxistis: tot dissidia inter homines excitastis: tot iniqua, etimpia instituistis, adeo ut parentes contra filios, et filios contraparentes impie incitare non dubitaveritis. Unum vellem a vobisinterrogare, nempe, si quando ista fingitis propter hominummalitiam, ut illos fictis terroribus in officio contineatis, alioquinmale victuros, subit vobis in mentem vos similiter hominesesse malitia repletos, qui nihil boni potestis præstare, nihil nisimalum perpetuo exequi, aliis nocere, in neminem misericordi-am exercere? Video jam vos mihi irasci, qui tale quidquamausus sum a vobis interrogare, et unumquemque vestrum stre-nue contendere pro justitia actionum suarum. Nullus est, quinon dicat se esse pium, misericordem, veritatis et justitiaamantem. Aut igitur falsa loquimini talia de vobis annuncian-tes; aut falso accusatis omnium hominum malitiam, cui vestrislarvis et fictis terroribus mederi vultis, contumeliosi in Deum,quem tanquam crudelissimum carnificem et horribilem torto-rem oculis hominum exhibetis, contumeliosi in homines, quosad tam deplorandam miseriam natos esse vultis, quasi illa satisnon sint, quæ cuique in vita accidunt. Sed esto, quod magna sithominum malitia, quod et ipse fateor, et vos ipsi mihi testesestis, cum sitis extreme malitiosi, alioquin talia commentacomminisci non valeretis; quærite remedia efficacissima, quæcitra majorem læsionem morbum hunc ab hominibus omnibusgeneraliter expellant, et deponite larvas, quæ tantum contrainfantes et stolidos vim habent. Si vero morbus hic in homini-bus insanabilis est, desistite a mendaciis, nec tanquam ineptimedici promittatis sanitatem, quam non potestis præstare.Contenti estote inter vos leges justas et rationabiles stabilire:

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bonos præmiis ornare, malos digno supplicio afficere: eos, quivim patiuntur, a violentis liberate, ne clament justitiam nonfieri in terra, nec esse, qui infirmum eripiat a manu fortioris.Profecto si homines rectam rationem sequi vellent et viveresecundum naturam humanam, omnes se mutuo diligerent, om-nes sibi mutuo condolerent. Unusquisque alterius calamitatem,quantum posset, sublevaret, vel saltem nullus alium gratisoffenderet. Quæ contra fiunt, contra humanam naturam fiunt; etmulta fiunt, quia homines diversas leges a natura abhorrentessibi invenerunt, et alius alium irritat malefaciendo. Multi sunt,qui ficte ambulant, et se extreme religiosos simulant, et incau-tos decipiunt, tegumento Religionis, ad capiendos, quos pos-sint, abutentes; qui recte comparari possunt furi nocturno, quisomno sopitos, nec tale quid cogitantes, per insidias adoritur.Hi in ore solent habere, Judæus sum, Christianus sum, credemihi, non te decipiam. O! malæ bestiæ: ille, qui nihil horumdicit, et se tantum hominem profitetur, multo melior vobis est.Si enim ei tanquam homini non vultis credere, potestis cavere;vos autem quis cavebit, qui, amicti ficto pallio sanctitatis fictæ,tanquam fur nocturnus incautos et dormientes per foraminainvaditis ac misere strangulatis?

Unum inter multa miror, et vere mirandum est, quomodo pos-sunt Pharizæi inter Christianos agentes uti tanta libertate, utetiam judicia exerceant; et vere dicere possum, quod si JesusNazarenus, quem Christiani adeo colunt, hodie concionareturAmstelrodami, et placeret Pharizæis illum denuo flagris cæde-re, propterea quod traditiones illorum impugnaret et hypo-crysim objiceret, hoc libere facere possent. Certe hoc ignomi-niosum est, et quod tolerari non debuit in civitate libera, quæprofitetur homines in libertate et pace tueri, et tamen non tuetura Pharizæorum injuriis. Et quando quis non habet defensoremaut vindicem, nil mirum, si ipse per se quærat se defendere, etinjurias acceptas vindicare.

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Habetis vitæ meæ historiam veram; et quam personam in hocmundi vanissimo theatro ego egi, in vanissima et instabilissimavita mea, exhibui vobis. Nunc juste judicate filii hominum, etsine ullo affectu, libere secundum veritatem judicium proferte:hoc enim imprimis viris dignum est, qui vere viri sunt. Quod sialiquid inveneritis, quod vos ad commiserationem rapiat, mise-ram hominum conditionem agnoscite et deplorate, cujus et ipsiparticipes estis. Ne hoc etiam desit, nomen meum, quod habuiin Portugallia Christianus, Gabriel a Costa, inter Judæos, quosutinam nunquam accessissem, paucis mutatis, Uriel vocatussum.