Modernidade e Codificação

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    MODERNIDADE E CODIFICAO DA MORAL-- O SENTIMENTO DE UMA SEGURANA MAGNFICA

    NO MEIO DO MAIS ARDENTE PERIGO1

    EDMUNDO BALSEMO PIRES

    Doutora Marina Themudo

    I. tica e Histria

    Na sua forma antiga e na modernidade podemos reconhecer nasreflexes sobre tica duas perguntas de base, que aqui so tomadascomo perguntas-modelo e perguntas-guia.

    A primeira dessas questes aquela que se volta para a responsa-bilidade e possibilidade da culpa e se formula: sou suficientemente bom?A segunda dirige a nossa ateno para a possibilidade do mal em

    geral e formula-se: o meu mundo justo?Tendo por base as condies de comunicao na sociedade moder-

    na surgiu como principal questo de uma reflexo sobre a tica onexo entre a pergunta sobre a bondade do eu e as condies cultu-rais do nascimento da prpria condio de um sujeito moral em geral. este nexo que nos permite, hoje, perguntar pelas condies de umdesejo tico.

    Esta forma moderna e contempornea do questionamento ticorepresenta a possibilidade do sujeito moral a partir da condio depossibilidade moral do seu prprio mundo2.

    1 E. Jnger, Sobre as Falsias de Mrmore, Lisboa, s / d, 37.2 Numa base terica pragmaticista observou R. RORTY a distino entre a tica dos

    antigos e a evoluo moral e social da modernidade a partir da distino de J. DEWEYentre prudncia e moralidade. No lugar da estabilidade, segurana e ordem vai estarum novo cu e uma nova terra para novos humanos Cf. R. RORTY, Ethics without

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    Tambm aqueles problemas que se prendem com os chamadoslimites ticos das cincias biolgicas assim como a tica ambientalso formulveis apenas no quadro desta dupla reflexo do sujeitomoral sobre si mesmo e sobre o mundo que o torna possvel.

    Aqui se cumpre um dos aspectos mais caractersticos da FilosofiaModerna, que consistiu na transformao da hetero-referncia emauto-referncia tanto no ponto de vista da Filosofia Terica como naperspectiva da Filosofia Prtica.

    A prpria ideia de um escndalo moral se significa ou podesignificar na ideia de um choque simblico, de uma divergncia entrerepresentaes culturais relativas s normas do agir3. Mas no clarocomo chegmos a este entrelaamento entre questes ticas, liberdadee diversidade cultural. Sabemos que a forma como a liberdade dos

    modernos invadiu o questionamento tico tradicional no teve umarelao decisiva com a formulao clssica da aco moral como acoresultante de uma opo livre, ou seja, de uma opo realizada na ausn-cia de obstculos autonomia e independncia do poder de decidir.

    A primeira das questes assinaladas supe o sujeito prtico, nasua individualidade, como a prpria sede da resposta.

    J a segunda questo presume a aliana entre tica e Poltica, entreo sujeito prtico e a configurao objectiva das leis e dos costumes,graas qual eu ajuzo sobre a efectividade do Bem.

    Mas ambas as questes esto atravessadas, de uma forma histori-camente desigual, pela suspeita relativa banalidade do mal assimcomo pela exigncia de mais liberdade.

    As duas questes ticas so modos de arredar o sujeito prticode uma adeso injustificada s imagens reconfortantes sobre si mesmoe sobre o seu mundo.

    So enunciados de problemas e nunca frmulas de auto-compra-zimento.

    A intensidade com que a suspeita e o cepticismo moral se fazemexprimir nestas questes no , todavia, a mesma em todas as pocas

    histricas, o que nos leva a pensar que a Histria da tica no se podetomar apenas como um aspecto, entre outros, da Histria de doutrinas

    Principles (1994) in IDEM, Philosophy and social Hope, London / New York, 1999, 72 90, 73 e 88.

    3 Um ensaio ainda sugestivo de um adepto de L. WITTGENSTEIN sobre a repercus-so da diferena cultural na representao da moralidade o de P. WINCH, Understandinga Primitive Society in IDEM, Ethics and Action, London, 1972, 8 49.

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    filosficas, mas tem uma dimenso real, fundada em condies decomunicao reais.

    O questionamento tico , neste sentido, ao mesmo tempo histricoe real, e real no sentido em que no se resume a um universo

    doutrinal.A dimenso histrica que atravessa o questionamento tico foi

    observada por vrios tericos dos problemas ticos a propsito dadistino de carcter entre a tica dos antigos e a tica dos modernos.

    Sabemos, por exemplo, como no corpo textual da tradio pla-tnica e aristotlica dos problemas ticos e polticos se encontra umconjunto de asseres que procura descrever a realidade poltica doponto de vista da realidade institucional ou do ponto de vista dedeterminados textos considerados como textos fundadores de comu-

    nidades polticas e que coincidem, na designao geral, com o quehoje chamamos constituies polticas. Aqui caber a referncia aointeresse de Plato pelas experincias polticas do seu tempo e srecolhas de constituies polticas por Aristteles.

    E existe um outro conjunto de proposies destinado a encontrarum fundamento para a existncia das prprias comunidades polticasque, tanto no caso da Repblica de Plato como no caso da tica eda Polticade Aristteles, se centra na noo de uma realizao indivi-dual e colectiva do Bem.

    Entre o Bem individual, o bem da casa e das famlias e o chamadoBem comum postulou-se uma convergncia e uma continuidade. Diz aPoltica de Aristteles (1132 a 35) que uma cidade pode ser conce-bida como cidade virtuosa na medida em que os cidados queparticipam no seu governo forem, eles prprios, virtuosos. A con-tinuidade entre a realizao individual e dos seus, desde os depen-dentes directos at tribo, e o pleno florescimento colectivo sempreacentuada, de tal forma que uma condio da outra. Na tica aNicmaco, o Bem supremo identificado pelo mesmo Aristtelescom a realizao da felicidade de toda uma comunidade poltica e

    verdadeira finalidade desta (1097 a 15 1098 b 8). Alguns passosda Retrica permitem extrair a mesma concluso (1360 b 5 1361 a10, 1365 b 20 1366 a 20). Ccero, ao longo da obra Da Repblica,no defende um princpio diferente na sua concepo do amor daptria, da busca por todos da utilidade comum e da sociabilidadeinata na espcie humana.

    Se o mundo antigo na suas representaes filosficas, para nsmais significativas, no encontrou uma divergncia de princpio (defundamento) entre a tica e a Poltica, entre o que depois se reco-nheceu no mbito do bem individual e no domnio do bem comum,

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    j o mundo medieval deu solidez convergncia entre tica e Reli-gio, entre o bem individual e a ordem da destinao divina de todasas coisas perecveis, onde se reconhece, ainda, a ordem da bondadedo Criador e Redentor.

    Numa continuidade aparentemente no problemtica entre as con-cepes pags do bem e da virtude e a cosmo-viso crist se prepa-raram, em forte associao com a herana estica, as concepessobre uma lei da natureza, que a tudo rege e a tudo determina noseu destino, segundo o lugar que cada ser ocupa na economia da cria-o, gerando-se assim uma tendncia para a naturalizao das cate-gorias ticas e do seu carcter contingente.

    Nos seus prprios fundamentos, e graas a condies comunicati-vas que lhe so prprias, o mundo moderno no divergiu tumultuosa

    e radicalmente desta tradio, mas encontrou na realizao de umaliberdade igual para todos uma outra fonte de justificao da vidaem comunidade.

    Partindo ainda da tradio clssica da Filosofia Moral, os dois tiposde proposies que podemos encontrar para caracterizar a acorecta ou o desejo tico tm um sentido diferente.

    Num caso estamos perante proposies que se destinam a descrevera vida pblica, incluindo nessa descrio os elementos que nessa vidapblica parecem assegurar a designao dos seus fundamentos ostextos polticos fundadores, entre outros.

    No outro caso, encontramos proposies que procuram mostrar anecessidade moral dessa vida pblica em conexo com o destino pes-soal de cada um.

    No primeiro exemplo, situamo-nos em uma viso emprica danecessidade de normas prticas; no segundo estamos perante umaperspectiva justificativa.

    sempre possvel utilizar a viso emprica como ilustrao dajustificativa. Contudo, a diferena entre ambas no anulvel econserva-se, como tal, no corpo textual da Filosofia Prtica cls-

    sica. E para a formao do desejo tico do sujeito no indife-rente a distino entre vigncia de normas num dado universosimblico e as aces que so por elas directamente suscitadas eos discursos justificativos em redor das mesmas normas e dascondies da sua vigncia. Uma parte significativa da distinoentre doxa e episteme na tradio platnica resulta da conscinciadesta diferena.

    Com apoio no mito narrado no Fedro platnico e no seu rematequase imperativo no sentido de consagrar a vida ao amor com aajuda de discursos filosficos (257 b), se pode entender a concep-

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    o filosfica grega clssica da perspectiva justificativa como umaconcepo do Bem, da virtude e da felicidade.

    O problema que me proponho discutir agora o seguinte.O que nos habitumos a designar por modernidade poltica

    e tica no inteiramente concordante com a concepo justifi-cativa da felicidade, do Bem e da virtude, do mundo clssico,muito embora o conceito de utilidade, por exemplo, tenha possi-bilitado uma traduo parcial da justificao clssica no contextomoderno da justificao da necessidade das comunidades polti-cas e das suas normas4.

    Com as suas determinaes iniciais localizveis no pensamentoda liberdade humana dos livros bblicos e da mensagem judaico-crist,que o mundo medieval teve dificuldade em fazer adequar ao objec-

    tivismo da metafsica substancialista nas vrias discusses sobre oestatuto do livre-arbtrio, expressamente nas doutrinas do DireitoNatural moderno do sculo XVII que a modernidade poltica veioa encontrar uma terceira ordem de proposies, diferente do tipo dejustificao pela felicidade, pelo Bem e pela virtude e que tambmestava longe de se poder reduzir ao conjunto em que se integravamat a as proposies de tipo descritivo ou emprico sobre os costu-mes ou a constituio dos povos e lugares.

    De facto, as tendncias filosfico-jurdicas mais responsveis pelolanamento dos fundamentos poltico-constitucionais das sociedadesmodernas e contemporneas no apoiaram o seu discurso apenas emum conceito do Bem mas sim, e mais decisivamente, em uma con-cepo da liberdade humana. E se, historicamente, as proposies jus-tificativas da liberdade se cruzaram com as proposies justificativasdo Bem e da virtude, a diferena semntica entre as duas torna-sesempre bvia, muito embora esta evidncia no se torne sempre objectode uma reflexo filosfica ou histrica especial.

    O que importa perceber, aqui, , ento, em que assenta a diferenaentre uma semntica do Bem e uma poitica da Liberdade nas con-

    cepes justificativas.O tema que agora se prope envolve, por conseguinte, uma auto--interpretao da Histria da tica e na medida em que nesta estariaem causa, simultaneamente, uma divergncia e uma fuso entre duas

    4 Nas suas linhas gerais concordo com o diagnstico sobre a era post-metafsica eas suas implicaes para a teoria moral postulado por J. HABERMAS, Eine genealogischeBetrachtung zum kognitiven Gehalt der Moral in IDEM, Die Einbeziehung des Anderen.Studien zur politischen Theorie, Frankfurt / M., 1996, 11 64.

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    ordens de discursos justificativos sobre a moral. Neste estudo, e salvoalguma observao em sentido contrrio, levo entendido por discursotico um discurso justificativo sobre a linguagem da moral.

    Em algumas obras recentes, a reconstruo da Histria da tica

    por parte de A. MacIntyre parte da tentativa de esclarecer quais osprincipais aspectos que diferenciam a tica dos antigos da tica dosmodernos.

    Embora em Trs Verses Rivais do Inqurito Moral5 ele tentecondensadamente encadear os modelos de inteligibilidade da Histriada tica nos momentos da tradio aristotlico-tomista, do projectoda Enciclopdia e da genealogia de Nietzsche e dos ps-nietzs-chianos, escapam muitas vezes ao longo da leitura quais os meca-nismos e elementos que tanto histrica como conceptualmente justi-

    ficam a ideia de uma tica moderna ou dos modernos, distintadaqueles princpios que serviram para reconstruir a tica clssica.Lendo A. MacIntyre nos apercebemos da grande diferena que hentre uma Histria da tica e uma Histria das concepes tericasda tica e da necessidade da primeira em virtude das insuficinciasda segunda. Na verdade, um estudo sobre a semntica do bem e daliberdade no um estudo histrico-filosfico mas uma investigaosobre as condies reais, que baseiam as grandes diferenas entremundos e vises do mundo.

    No sentido de apoiar o meu inqurito, vou referir, seguidamente,a ttulo ilustrativo, trs exerccios tericos sobre os fundamentos hist-ricos da tica, tomados de trs autores do pensamento tico-polticomoderno e contemporneo: Hegel, G. E. M. Anscombe e M. Foucault.

    A) Na interpretao hegeliana da diferena entre os gregos e omundo germnico tem um importante papel a formao dodistanciamento histrico do sujeito prtico em relao ao valor dopatriotismo. A formao deste distanciamento passa pela Histria doCristianismo desde as suas razes na primitiva comunidade at Reforma, continuando ao longo da Histria econmica, poltica e

    social do moderno mundo burgus.Uma parte dos contedos dos chamados escritos de juventudede Hegel leva ao enunciado extremamente condensado da diferenaentre o mundo antigo e o mundo moderno, que encontramos no en-saio sobre o Direito Natural de 1802 e que traz consigo a sementequer dos desenvolvimentos de um conceito de Histria Universal do

    5 A. MACINTYRE, Three Rival Versions of Moral Enquiry. Encyclopaedia,Genealogy and Tradition, Indiana, 1989.

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    perodo de Berlim quer do sentido da evoluo da Histria da Est-tica quer ainda da prpria formulao da diferena de pocas naHistria da Filosofia.

    No ensaio de 1802, partindo da tragdia como modelo da totalida-

    de da experincia humana, via Hegel reflectidas na tragdia antiga enos seus personagens aspectos das tenses do prprio mundo tico,de tal modo que o elemento trgico era como que um elemento deexpresso quase plstico para as foras da substncia tica. A tragdiaantiga constitua, por conseguinte, o meio no qual o mundo ticose revelava como uma unidade triunfante das suas prprias forasinternas dissonantes e fragmentadoras6, o meio de expresso do jogodo uno e do mltiplo, da identidade e da diferena, do mltiplo naunidade e da diferena na identidade, que o filsofo descortinou nas

    principais tenses dramticas das Eumnides de squilo7

    e em Sfocles.O mundo moderno e a forma moderna do drama no partem destejogo do Absoluto consigo mesmo a no ser na forma plida de umaluta entre as convices subjectivas dos personagens sobre sentimen-tos, aces e representaes em geral. A crise do elemento trgicoda cultura grega clssica coincide com o destino histrico que tor-nou possvel a modernidade como forma de mundo e que, na opiniode Hegel, se exprimia na Poltica moderna e na posio central queaqui havia alcanado o indivduo8. Numa frmula se diria que o fimda tragdia coincide com o incio da poltica moderna como luta departicularidades. Onde estavam as expresses orgnicas directas dosvrios aspectos do mundo tico encontramos agora opinies e con-vices, que teimosamente insistem no seu particularismo sem raizsubstancial9.

    por isso que o sacrifcio tico-poltico que define o patriotismono se pode encontrar associado, como nota vital, ao mundo modernoe sua arte dramtica. Em vrios momentos das Lies sobre Estticase pode ler esta coincidncia de destinao histrica entre a dissoluo

    6 Da literatura especializada sobre o tema que refiro aqui destaco as seguintes peaspara mim mais significativas: M. SCHULTE,Die Tragdie im Sittlichen. Zur DramentheorieHegels, Mnchen, 1992; C. MENKE, Tragdie im Sittlichen. Gerechtigkeit und Freiheitnach Hegel, Frankfurt / M., 1996.

    7 G. W. F. HEGEL, ber die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts,seine Stelle in der praktischen Philosophie, und sein Verhltnis zu den positivenRechtswissenschaften in IDEM, Jenaer kritischen Schriften (II), Hamburg, 1983.

    8 IDEM, Ibid., 146 148.9 IDEM, Ibid., 174.

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    da obra de arte clssica, em especial a arte dramtica clssica, e o fimdo patriotismo, o qual, contudo, nos tempos modernos, Hegel voltaa entrever nos Lusadas de Cames10.

    Nesta abordagem, o patriotismo antigo constitui um modelo da

    confiana tica global, que explica a adeso do indivduo s imagensque o associam aos diferentes graus da totalidade tica e que, porconseguinte, o valor que determina a solidariedade e intensifica ograu da aceitao das leis, dos costumes e dos comandos morais eque tambm torna possvel, na guerra, a afirmao de uma comuni-dade tico-poltica, como uma individualidade expressiva autnoma,contra outras. O desaparecimento do antigo patriotismo um acon-tecimento histrico cuja significao tica propriamente dita se reflectena forte aliana entre duplicidade moral (a Verstellung a que se refere

    a Fenomenologia do Esprito), ironia, cepticismo e o nascimento datica no esprito da Filosofia moderna.A tica que acompanha a poca moderna est instaurada, ento,

    por um discurso com vrios fios (em que as oposies binrias docdigo moral clssico do bem / mal, da virtude / vcio, desempenhamum papel muitas vezes subordinado) e a sua histria no pode resu-mir-se a disputas doutrinais de filsofos, telogos ou terapeutas mas, como se disse, uma Histria real. E a isto foi Hegel especialmentesensvel e a partir da sua forma de encarar a objectividade doEsprito que ficamos a dever a possibilidade de um enunciado clarodesta tese.

    Em Berlim, nas Grundlinien, Hegel descrevia, com clareza, a iden-tificao do carcter real da Histria da tica e das suas categorias.Assim, no 124 escrevia ento o filsofo o seguinte.

    A satisfao do direito da particularidade do sujeito ou, o que o mesmo,o direito da liberdade subjectiva, constitui o ponto central e de viragem nadiferena entre a antiguidade e os tempos modernos. Este direito na suainfinidade foi expresso pelo Cristianismo e tornou-se no princpio univer-

    sal real de uma nova forma do mundo11

    .

    10 IDEM, Vorlesungen ber die sthetik, ed. E. MOLDENHAUER / K. M. MICHEL(HRSG.), G. W. F. Hegel, Werke, Bd. 15, Frankfurt / M., 1986, 412.

    11 IDEM, Grundlinien der Philosophie des Rechts. Mit Hegels eigenhndigenRandbemerkungen in seinem Handexemplar der Rechtsphilosophie, Johannes Hoffmeister(Hrsg.), Hamburg, 1955, 124, p. 112.

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    Neste pargrafo da divisoMoralidade do seu compndio univer-sitrio berlinense, Hegel revelava aquilo em que sempre tropeam osesforos de fundamentao moderna da tica, a saber; as condiesde justificao de normas morais na liberdade humana. O que diz

    Hegel neste pargrafo e ainda, com outra finalidade, nas Lies sobreFilosofia da Histria Universal, que a resposta questo base datica moderna no pode ser encarada fora das condies histrico--reais que possibilitaram que a liberdade se tornasse, ela prpria, numfundamento da moral. E diz mais. Mostra-nos, para alm disso, comotodo este condicionamento histrico-real , em si mesmo, o princpiouniversal real de uma nova forma do mundo.

    No mesmo 124, a interpretao que faz o autor do direito dasubjectividade revela-nos como a diferena entre o bem e o mal, entre

    justo e injusto, etc., que para a tica clssica se podia estruturar comodiferena de um cdigo binrio sem exterioridade, se submete, naforma moderna do direito infinito da subjectividade, a um cdigocom trs elementos, cujo princpio subordinante esse mesmo direitoda subjectividade ou seja, a liberdade, na sua capacidade de auto-afir-mao. A moral deixa de designar o espao dos costumes no seu carcterde costumes da famlia, da tribo e da ptria, ou seja, no seu carcterde realidades imediatas do sentimento moral, quase-naturais, e em quea natureza, o territrio e a etnia se encontravam sempre referidos aum simtrico negativo de si prprios. Do mesmo modo, a associaoclssica de temas psicolgicos (que retornaram no pensamento con-temporneo na forma de uma Filosofia da Mente) e morais nopode j partir de uma diferena natural entre vcio e virtude, quesupe um modelo do que natureza humana e dos correspondenteshbitos morais.

    Por isso, no de espantar que nas filosofias de Kant e de Fichteexplicite Hegel, de forma crtica12, a expresso mais madura da moder-

    12 Da abundante literatura sobre este tema retenho em especial: B. BITSCH,Sollensbegriff und Moralittskritik bei G. W. F. HEGEL. Interpretationen zur Wissenschaftder Logik, Phnomenologie und Rechtsphilosophie, Bonn, 1977; C. KLINGER,Die politische Funktion der transzendentalphilosophischen Theorie der Freheit. Sinn undGrenzen der Hegelschen Kritik der Freiheitstheorie Kants, Kln, 1982; A. WILDT,Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralittskritik im Lichte seiner Fichterezeption,Stuttgart, 1982: IDEM, Moralisches Sollen und seelisches Sein. Ein Programm zurempirisch-psychologischen Moralbegrndung in E. ANGEHRN / H. FINK-EITEL / C.IBER / G. LOHMANN (HRSG.), Dialektischer Negativismus. MICHAEL THEUNISSENzum 60. Geburtstag , Frankfurt / M., 1992, 57 81.

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    na sobrecodificao do cdigo binrio da moral tradicional pelo prin-cpio da liberdade subjectiva13.

    s duas perguntas da tica clssica vem juntar-se aquela em quetodos os modernos se podem rever: sou efectivamente livre?

    Uma parte importante da construo do Esprito Objectivo do mun-do moderno, que no se prende apenas com a Histria das formas jurdi-cas e das concepes morais, assenta no problema de saber como instituirum sistema normativo dotado dos trs elementos seguintes: o bem nasua oposio ao mal e a liberdade. A pergunta sobre se sou efectivamentelivre possvel, justificada e tornada necessria, na medida em que umadeterminada forma de mundo a institui e exige.

    Em grande parte, a ausncia de um sistema positivo da Moral noschamados tempos modernos no o resultado de uma falta de aten-

    o ou de um esforo mal concentrado por parte de filsofos ou te-logos, no , pois, um acidente, mas o efeito do carcter ternrio dacodificao da reflexo tica propriamente moderna sobre a moral,a partir do terceiro termo da liberdade, o que impede qualquer crista-lizao do binrio moral bem / mal.

    A ambio de uma articulao totalmente positiva do Bem e daLiberdade faz, provavelmente, o essencial da genialidade como tam-bm do fracasso parcial das Grundlinien de Hegel e da sua recons-truo do Esprito Objectivo14.

    B) Quando, em 1958, G. E. M. Anscombe revia, num artigo15, osfundamentos da filosofia moral moderna de lngua inglesa e consta-tava a impossibilidade de fazer coincidir, sem acrobacias interpretati-vas, a tica de Aristteles e a forma moderna do tratamento dos concei-tos de Bem e do Dever16, mais no fazia do que ir numa direcoprxima da apreciao hegeliana sobre a modernidade tico-poltica,embora com pressupostos diferentes. Vale a pena averiguar algunsaspectos desta convergncia.

    13 Cf. IDEM, Glauben und Wissen in IDEM,Jenaer kritische Schriften (III), Hamburg,

    1986, 127 128.14 Na minha dissertao de doutoramento tentei elucidar alguns aspectos desta situa-

    o da obra de Hegel em relao com a reavaliao crtica do Direito Natural moderno noseu pensamento filosfico-poltico Cf. E. Balsemo Pires, Povo, Eticidade e Razo.Contributos para o estudo da Filosofia Poltica de Hegel nos Fundamentos da Filosofiado Direito, na perspectiva da histria da sua gnese e recepo e luz da reavaliaocrtica do Direito Natural moderno, Coimbra, 1999.

    15 G. E. M. ANSCOMBE, Modern moral Philosophy in AA. VV., The Is / OughtQuestion. A Collection of papers on the central problem in moral Philosophy , London,1983, 175 195.

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    A propsito da diferena de perspectivas sobre a tica entre gregose modernos observava G. E. M. Anscombe que os modernos, e deum modo decisivo desde D. Hume, se haviam apropriado de determi-nados conceitos como os de obrigao e direito, de bem e de mal,

    justo e injusto deslocando-os do seu bero de pensamento, origi-nando, assim, o que a prpria autora qualificava como sobrevivn-cias17 conceptuais. Os mesmos termos se encontravam em uso entreantigos e modernos, mas o modo de entender o florescimentohumano na sua totalidade, que profundamente diferente num casoe noutro18.

    Neste artigo, a autora estabelece comparaes directas. Assim, sena tica de Aristteles a virtude constitua a noo psicolgica e moralapta a dar resposta ao condicionamento do carcter pela representa-

    o de um fim bom em si mesmo para o florescimento dessesujeito prtico; a mentalidade judaico-estico-crist havia inauguradoos problemas morais partindo da perspectiva da lei divina, que coman-dava as aces estimveis consoante determinara, tambm, certoscontedos como contedos morais positivos opostos a outros tomadoscomo vcios19. Assim, a distino vcio / virtude deixou de ser exclu-siva da perspectiva grega da vida boa e passou a servir de eixodistintivo de uma determinada ordem das coisas posta por uma von-tade soberana.

    Algo de semelhante acontece com a oposio entre justo / injusto,embora neste ltimo caso tivesse sido necessria a criao de umalegitimidade prpria para o legislador e o juz humanos.

    A noo de dever moral fica associada ao conceito de uma vonta-de instituinte como sua fonte, ideia de uma ordem objectiva criada sua imagem e s expresses da sua vontade como mandamentos.

    Na continuao da sua narrativa, G. E. M. Anscombe afirma que,neste novo clima, a questo fundamental da tica foi a de saber comosubsumir as aces de determinados agentes individuais sob premis-sas universais de tipo legal, que era suposto exprimir a vontade do

    criador das coisas. Ao lao entre a universalidade da norma e a indi-vidualidade da aco e do agente se chamou dever ou obrigaomoral20.

    16 IDEM, Ibid., in loc. cit., 175 176.17 IDEM, Ibid., in loc. cit., 181.18 IDEM, Ibid., in loc. cit.,194.19 IDEM, Ibid., in loc. cit.,189 e 194.20 IDEM, Ibid., in loc. cit.,188.

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    Na evoluo moderna do conceito de dever, o lao obrigacionalvai esvaziar-se da sua referncia a um criador das coisas, mas a ideiade uma conexo entre a universalidade de uma disposio normativae a individualidade de uma aco permanece. O que muda o fun-

    damento que serve de justificao para este lao que, ao longo dossculos XVII e XVIII, sob diferentes terminologias, ou designa nor-mas sociais objectivas, leis naturais ou virtudes humanas naturais21.O conceito de natureza que progressivamente se dissocia do seucriador transcendente tende a revelar-se como a nova fonte justifica-tiva dos laos obrigacionais. E aquilo que natural vai ser critrioda diferenciao da virtude e do vcio. Imaginando o novo cnonenaturalista da tica, segundo a natureza seria possvel separar ointerdito do permitido e do louvvel.

    Para uma grande parte de filsofos de formao analtica, assimcomo para a prpria G. E. M. Anscombe, naturalmente, vrios textosde D. Hume levam interrupo desta possibilidade de inferir o devera partir do ser, a obrigao moral a partir da compreenso do modocomo opera a natureza, muito embora o mesmo D. Hume no escla-rea, de uma forma concludente, a sua posio22.

    Com a vasta crtica cptica de D. Hume, que afectou no s asideias tradicionais sobre substncia e causalidade como tambm asconcepes sobre os fundamentos da moral, reflecte-se na Filosofiaa dissociao prtica entre natureza, tcnica e sentimento moral, sepa-rao esta que vai tomar a oposio entre linguagem descritiva e pres-critiva como ponto de ancoragem. A linguagem moral e poltica nose submete verificao emprica, no linguagem sobre factos, mas obe-dece a requisitos de validao de uma lgica claramente distinta, segundosustentar, por sua vez, R. M. Hare, partindo tambm de D. Hume23.

    O que nos transmitiu D. Hume foi a tese segundo a qual os nossosjuzos morais no so juzos sobre verdades necessrias da lgica ousobre factos de um universo natural ou sobrenatural, mas sim proposi-es que tm por referncia sentimentos e desejos. Toda a explicao

    da possibilidade da moral deve assentar, por conseguinte, em uma inves-

    21 IDEM, Ibid., in loc. cit.,189.22 A. MACYNTIRE, Hume on is and ought in AA. VV., The Is / Ought

    Question. A Collection of papers on the central problem in moral Philosophy, o. c.,35 50; A. FLEW, On the Interpretation of Hume in IDEM,Ibid., 64 69, especialmente 68.

    23 Cf. R. M. HARE, The Language of Morals, Oxford, 1952; IDEM, Descriptivismin AA. VV., The Is / Ought Question. A Collection of papers on the central problem inmoral Philosophy, o. c., 240 250.

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    tigao sobre a natureza humana e seus mecanismos, cuja semelhanacom o resto da ordem da criao foi posto em causa e, em especial,deve assentar em uma investigao sobre os sentimentos morais pro-priamente ditos.

    A inspeco rpida do Tratado da Natureza Humana permite-nosaqui complementar o esboo de G. E. M. Anscombe24.

    A argumentao de que se serviu D. Hume para demonstrar o erroda inferncia do dever a partir do ser, da prescrio a partir da des-crio, do sentimento moral a partir da razo ou, por fim, do sistemada moral a partir do sistema da razo terica , no prprio terrenoem que se move, inabalvel. Um dos exemplos de choque de quese serve o filsofo o da ingratido, nos seus diferentes graus incluin-do o seu grau mximo, o parricdio25.

    No Tratado da Natureza Humana tentou D. Hume mostrar-noscomo o sentimento que em ns despertado pelas aces daqueletipo no est de modo algum articulado ou dependente de qualquerdemonstrao racional, o que deve poder provar que a moral se fundaem um sentido prprio, autnomo da razo demonstrativa26. Poroutro lado, esta mesma autonomia da apreciao moral nos nossoscoraes tem um poder de afirmao prprio, de tal forma que nelee no na harmonia entre cada ser e a ordem imutvel da natureza,que necessrio ir procurar a fonte do dever prtico27.

    neste sentido que o leitor atento encontrar na seco II do livroIII do Tratado... sobre virtude e vcio um dos mais interessantesarsenais argumentativos contra o conceito de natureza entendido comofonte de moralidade e da diferena entre virtude e vcio28.

    No obstante ter retirado as consequncias mais decisivas da inda-gao de D. Hume, na narrativa de G. E. M. Anscombe fica na sombrauma outra importante fonte da concepo moderna da justificao damoral e da separao entre ordem objectiva do mecanismo da nature-za e ordem subjectiva onde pode ter lugar o sentimento moral. Estafonte no pertence a uma Histria da tica, como histria de doutrinas,

    mas, com mais exactido, Histria do pensamento poltico. Refiro-

    24 A edio que segui na elaborao do presente estudo foi a traduo francesa de A.LEROY: D. HUME, Trait de la Nature Humaine. Essai pour introduire la mthodeexprimentale dans les sujets moraux, Tome II, Paris, 1946.

    25 IDEM, Ibid., 582.26 IDEM, Ibid., idem.27 IDEM, Ibid., 583.28 IDEM, Ibid.,Livro III569 592.

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    -me obra de T. Hobbes e, nela, a dois princpios que ficam associa-dos forma moderna da poltica prtica29.

    Trata-se, por um lado, do princpio auctoritas non veritas facit legemque, no terreno de uma doutrina moderna da soberania, assente no

    conceito de vontade auto-determinada, vem articular o que D. Humeconceber, mais tarde, na sua oposio entre os princpios da naturezafsica e os princpios da natureza humana, em que reside o sentimentomoral.

    Por outro lado, nesta mesma obra se reflecte o conceito de liber-dade negativa como ausncia de oposio ao movimento, que base de um conceito de natureza humana j completamente disso-ciado da sua antiga fonte divina e, por conseguinte, fundamento aut-nomo de aces, mas igualmente dissociado da verso ampla da Plis

    como associao inter-humana30

    . Muitos dos desenvolvimentos polti-co-reais e poltico-tericos da modernidade tero de se compreendercom base nesta dupla dissociao, incluindo a prpria crtica de D. Humeao conceito de natureza como fonte do dever prtico.

    C) No seu curso do ano de 1982 no Collge de France, M. Foucaultinvestigava a genealogia de uma histria das prticas da subjecti-vidade31, que fazia recuar at ao acasalamento entre dois imperati-vos de auto-gnose do mundo grego: o cuidar de si mesmo (epimeleiaheauton) e o conhece-te a ti mesmo (gnthi seauton). Partindo dodesenvolvimento histrico destes dois princpios normativos desde omundo grego, passando pela espiritualidade crist, at ao que chamao momento cartesiano de corte com a tradio da auto-gnose, o autorde As Palavras e as Coisas encontrou no cuidado de si mesmo oponto de cruzamento entre subjectividade e verdade, o qual no deve-ria contemplar somente as dimenses de uma vida privada e de nor-mas relativas a virtudes privadas, para assegurar um pleno auto-dom-nio, mas o cuidado de si assegurava igualmente as condies deuma subjectivao adequada vida poltica, graas a um encadea-mento entre as faculdades do governar, do ser governado e do pro-

    priamente chamado cuidado de si mesmo32

    . Na articulao antiga

    29 Uma reconstruo do posicionamento da obra de T. Hobbes no conjunto dos pro-blemas morais e polticos da modernidade pode o leitor encontrar na obra de K. H.ILTING,Naturrecht und Sittlichkeit. Begriffsgeschichtliche Studien, Stuttgart, 1983.

    30 Cf. IDEM, Ibid.,31 M. FOUCAULT,L Hermneutique du Sujet. Cours au Collge de France. 1981 1982,

    Paris, 2001, 13.32 IDEM, Ibid., 44.

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    do cuidado de si em redor de princpios dietticos, econmicos eerticos foi M. Foucault encontrar os elementos normativos estrutu-rantes do desenvolvimento autobiogrfico entre a fase ertica e afase poltica do sujeito33.

    A viragem cartesiana concretizadora da entrada na fase modernado cuidado de si afasta a dimenso de gnose ou sapiencial carac-terstica da tica antiga, para trazer consigo o princpio da certeza eda certificao cientfica no conhecimento de si: o cuidado de sipassa a ficar na dependncia de uma formao do saber e das cor-respondentes prticas sancionadas pela Cincia34.

    O cuidado de si foi entendido numa grande variedade de for-mas antes de sofrer a mutao cartesiana na direco de uma cin-cia do si mesmo. Como sabedoria ou via para uma sabedoria, o

    cuidar de si prprio foi originado num modelo ou esquema de pen-samento para o qual a oposio entre teoria e prtica no correspondiaa uma exigncia metdica o que, no mundo antigo, levou a que nose tivesse separado entre o saber de si, as tcnicas do cuidado consi-go mesmo e uma prtica de si identificada com a arte de viver35.

    O momento reflexivo do cuidado de si mesmo, que M. Foucaultinvestigou em torno do significado do epistrephein pros heautonem Epicteto, em Marco Aurlio e, em Sneca, j com o significadode um se convertere ad se, no se enquadra em uma noo cons-truda da converso36 nem inaugura, por consequncia, qualquer con-ceito de sujeito ou da prpria converso, mas , segundo os prpriostermos do autor, um esquema prtico37. A importncia deste esque-ma pr-conceptual estendeu-se Filosofia, Histria do Cristianismoe ao que se pode designar por subjectividade revolucionria, de cujoscontornos nos podemos aperceber com alguma clareza no sculo XIX38.

    Nestas trs narrativas (A), B) e C)) aparecem-nos trs tentativasde explicao da diferena entre a tica do mundo clssico e a ticamoderna.

    Nelas se detectam trs intervenientes para dar sentido a esta dife-

    rena de pocas: o direito infinito da subjectividade, o dualismoser / dever-ser e o nascimento na modernidade de uma Cincia dosi mesmo, de base cartesiana.

    33 IDEM, Ibid., 74 75.34 IDEM, Ibid., 67.35 IDEM, Ibid., 197.36 IDEM, Ibid., 199.37 IDEM, Ibid.,idem.38 IDEM, Ibid., 200.

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    Estes trs intervenientes no desenham necessariamente a mesmalgica da modernidade da tica. Contudo, eles so portadores de umacapacidade de fuso e sobreposio, cujos efeitos, em conjugao,nos do a medida exacta de uma diferena do moderno na tica.

    Para alm disso, o interesse das diferentes verses do modernona tica reside em nos mostrar como o principal problema com quese debate a moral e, por conseguinte, todas as doutrinas ticas oproblema da justificao de cdigos. A emergncia e a sustentaode um cdigo ou de vrios cdigos do dever a nica questo deci-siva para a tica.

    Abstraindo da sua porosidade em relao aos cdigos do mito eda religio, a codificao dualista simples da moral antiga (bem / mal)sofre a sobreposio do cdigo da liberdade, a sobreposio do cdigo

    da norma e a sobreposio do cdigo da certeza.A economia destas trs sobreposies permite reflectir muito doque de significativo h a reconstruir na semntica histrica da ticamoderna. A Histria aqui em causa no representa nem um fluxocontnuo num encadeamento causal de doutrinas nem um terrenode descontinuidades entre doutrinas e vises do mundo. Como His-tria Real e no como vestgio doutrinal e epifenmeno de histriadoutrinal, a Histria da tica revela-nos como os trs cdigos se sobre-pem no j em camadas sucessivas para dar a ver uma formaogeolgica perfeita sem efeitos de eroso, mas manifesta deslocamentosde terreno, fracturas, fuses, salincias e contraces.

    No entanto, possvel discernir alguma continuidade na suasobreposio. Compreende-se por que razo do cdigo da liberdadeque se pode ter gerado o acentuar da divergncia entre ser / dever-sere como, a partir daqui, foi possvel dar lugar a um pensamento danorma como manifestao da vontade livre que, ao mesmo tempo, estsubmetida liberdade. Por outro lado, no certo que a ideia dasubjectividade como fonte da certeza est profundamente inserida nasemntica do sujeito como fonte das normas?

    Por conseguinte, como disciplina filosfica e como linguagem deobservao da moral em sentido mais geral, a concepo modernada tica nasce de fenmenos cruzados de sobreposio do cdigobinrio da moral nascido nas sociedades antigas39. Assim se geraram

    39 Num sentido muito prximo da argumentao aqui desenvolvida sobre a dimensorealda Histria da tica est a obra de N. LUHMANN, ber die ethische Reflexion derMoral, Frankfurt / M., 1990; IDEM, Gibt es in unserer Gesellschaft noch unverzichtbareNormen? , Heidelberg, 1993.

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    progressivamente, e ao longo da evoluo do que chamamos moder-nidade, fenmenos de sobreposio da diferena bem / mal pela opo-sio livre / no-livre, pela oposio sujeito / ser natural exterior e pelaoposio certeza de si / inconsciente (loucura), do mesmo modo que a

    prpria diferena entre bem e mal se emancipara j do seu bero mito-lgico e mgico e da referncia ao tabu e ao cdigo do puro / impuro40.

    Portanto, o cdigo binrio das sociedades antigas invadido, prin-cipalmente, por duas novas fontes de categorizao da moral, facil-mente fundidas uma na outra, a saber: a subjectividade e a liberdade.Mas, para acentuar a complexidade da sobreposio moderna do seuprimeiro cdigo antigo, a moral dos modernos tem de enfrentarainda um desdobramento na prpria ideia de sujeito prtico, pois estanoo tanto vai designar uma subjectivao do cdigo moral como

    uma subjectivao da liberdade, tanto designar o sujeito prticocomo, para alm dele, a individualidade prtica41.Se a ideia de uma subjectivao da moral clssica permitiria tradu-

    zir numa frmula sinttica extrema a diferena histrica que presencia-mos nas trs narrativas, a sua simplicidade , porm, ilusria.

    Foi com base na ideia algo vaga de uma substituio da metafsicada substncia pela metafsica do sujeito que muitas narrativas sobre osignificado do moderno frente ao antigo se vieram articular com ocontedo da Histria da tica. Esta ltima, ao lado da Histria do pensa-mento filosfico, conhecera tal como esta vrios turns, desde a viragemda substncia para o sujeito at translao do sujeito na linguagem e nacomunicao. Do mesmo modo que se havia ensaiado a explicaodas mutaes cientficas com base na noo de paradigma, tam-bm aquelas duas histrias podiam ser descritas da mesma forma.

    40Cf. S. FREUD, Totem and Taboo and other Works, in The Standard Edition of theComplete Psychological Works of Sigmund Freud, vol.XIII (1913-1914), London, reprinted1958, pp. 75-99; C. LVI-STRAUSS, O Feiticeiro e a sua Magia; IDEM, A EficciaSimblica in IDEM, Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro, 1975, pp. 193-236.

    41 Sobre este tema tomo a liberdade de remeter o leitor para o meu ensaio: E.BALSEMO PIRES, Ensaio sobre a individualidade prtica in Revista Filosfica deCoimbra n 18 (2000) pp. 351 433. Cf. ainda P. VEYNE / J.-P. VERNANT / L.DUMONT / P. RICOEUR / F. DOLTO / F. VARELA / G. PERCHERON, Indivduo ePoder, Lisboa, 1987; D. SHANAHAN, Toward a Genealogy of Individualism, Cambridge(Mass.), 1992; N. LUHMANN, Individuum, Individualitt, Individualismus in IDEM,Gesellschaftstruktur und Semantik Bd. 3, Frankfurt / M., 1993, 149 258; K. EIBL / M.WILLEMS (HRSG.),Individualitt, Hamburg, 1996; F. JANNIDIS,Das Individuum undsein Jahrhundert. Eine Komponenten- und Funkionsanalyse des Begriffs Bildung amBeispiel von Goethes Dichtung und Wahrheit, Tbingen, 1996, especialmente 43 e ss.

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    O fenmeno ignorado por esta maneira de fazer histria o daimpregnao semntica.

    O mais significativo num deslocamento de tipo revolucionriono est tanto na mudana brusca de perspectivas que promete, que

    justamente no acontece sem avanos e recuos no alcance da suaprpria novidade, mas da capacidade de fazer impregnar os anteriorescdigos nos novos arranjos binrios de que portador. O principalfenmeno a ser lido na modernidade da tica est em estreita articula-o com a possibilidade de entender o bem como liberdade e a liber-dade como bem, graas a uma profunda impregnao de cdigos. No seubinarismo, o cdigo moral de base torna-se ele mesmo irreconhecvel,enquanto tal, sem a referncia aos membros binrios que se lhe sobre-puseram42.

    Os diferentes episdios que se podem encontrar ao longo da Hist-ria da formao moderna da tica podem ser analisados sob o prismada impregnao. Esta ltima categoria permite compreender comocertos temas morais e certas orientaes e expectativas normativas,como por exemplo a procura da autenticidade do sentimento entreos romnticos ou a crtica da religio tradicional e a defesa de umareligio civil entre os revolucionrios do sculo XVIII, podem sersintomas no tanto de uma demarcao cultural e de uma batalhacultural, mas da encenao de um processo histrico-semnticoirreversvel de impregnao de cdigos, em que o cdigo moral da moralclssica e o seu binrio sofre uma invaso por parte de cdigos que nelano encontram j a justificao para a sua prpria disposio binria.

    Do ponto de vista evolutivo, a impregnao de cdigos vai supormomentos de crise na afirmao universal da codificao tradicional,que passa a ser observada como convencional, do mesmo modoque as novas categorizaes e os respectivos termos, temas ou orien-taes normativas se refugiam num particularismo de prudncia oude tipo revolucionrio, antes mesmo de contaminarem o anterioruniversal com o seu prprio cdigo e jogo binrio. Deste modo, a

    histria da impregnao e da sobreposio de cdigos supe, tam-bm, a idealizao do universal pelo particular.

    42 Estas consideraes ficam a dever-se a uma releitura e reflexo pessoal sobre aobra de H. BLUMENBERG relativamente interpretao dos mecanismos conceptuais esemnticos, num sentido amplo, na formao da chamada poca modernae, mais parti-cularmente, naquilo que diz respeito ao modo como este pensador criticou as teses dachamada secularizao. Cf. H. BLUMENBERG, The Legitimacy of the modern Age,(trad.), Cambridge (Mass.), 1983, especialmente os captulos 4 9 da Parte I, 37 121.

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    A sobreposio do cdigo da liberdade em relao ao cdigomoral antigo vem revelar luz do dia a dificuldade da convergnciaentre o bem individual e o bem comum, dificuldade essa que estinstalada no modo de funcionamento das sociedades humanas e

    mesmo na mais bsica das organizaes sociais. a presena docdigo da liberdade que gera o que A. MacIntyre referiu como umalto grau de indeterminao43 na produo de homogeneidade entrebem individual e bem comum. Uma tal indeterminao, que nassociedades funcionalmente diferenciadas passou h muito do planoda escolha subjectiva para a forma objectiva da institucionalizao44, ento, indeterminao subjectiva e objectiva. Ela , no sentidohegeliano do termo, forma de mundo.

    Nesta complexa histria da formao da tica no seu sentido

    moderno e da forma de mundo que lhe corresponde, podem contar--se, ao lado de muitos outros temas e conceitos, dois que me pare-cem especialmente expressivos: a gnese da noo moderna de auten-ticidade e a formao da viso moderna da ironia45.

    No mbito do presente estudo no me proponho analisar o conte-do histrico destas duas figuras morais.

    Na primeira etapa, que coincide com este artigo, meu objectivoexplicitar somente o que est em questo ao nvel da teoria da tica,quando o sujeito da moral, como sujeito livre e autnomo, se afirmapara alm da causalidade que rege o mundo fsico e as aces nointencionais e ainda para alm do costume e da lei positiva. A dife-rena entre o bem e o mal, ou o cdigo clssico da moral, sofre nestasdemarcaes sobreposies que decorrem tanto da codificao daliberdade como da codificao da norma e da certeza.

    A considerao dos efeitos mais elementares da plena introduona moral do cdigo da liberdade representa, como se observou j apropsito de D. Hume, uma crise profunda da viso da natureza comoordem causal e simultaneamente moral. Este divrcio entre sentimento

    43 A. MACINTYRE, o. c., 188.44 A respeito da mesma ordem de problemas referia-se N. LUHMANN a uma

    Selbsterzeugter Ungewiheit. Cf. N. LUHMANN, Gibt es in unserer Gesellschaft nochunverzichtbare Normen? o. c., 22.

    45 Sobre o tema da autenticidade tomo por referncia o trabalho de C. TAYLOR, muitoembora a sua finalidade inicial resida numa explorao muito para alm do tema particularda formao da autenticidade como trao caracterstico da subjectivao moderna: C.TAYLOR, Quellen des Selbst. Die Entstehung der neuzeitlichen Identitt (trad.), Frank-furt / M., 1996.

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    moral livre e natureza implica uma desvinculao no agir humanoentre o plano da causalidade e o plano moral propriamente dito, com oconsequente desaparecimento da ideia antiga de destino e culpa uni-versal do heri trgico.

    No outro extremo da problemtica que consigo se pode entrever,o mesmo divrcio acarreta uma a-politizao da moral, ao consagraro sujeito moral livre numa dignidade para alm das leis positivas dacidade.

    As duas partes seguintes deste estudo permitem oferecer um olharde relance a esta dupla interpretao da crise introduzida na moralclssica pela ciso cptica entre liberdade e natureza.

    II. Aco moral e reconstruo das razes de agir: do proble-ma da causalidade do agir autobiografia.

    No seu compndio de 1820 sobre a Filosofia do Direito conce-bia Hegel a possibilidade de desdobrar a aco moral a partir de trscaractersticas, que permitiam distingui-la do fazer ou da aco neutra,sem directas ressonncias morais: i) a conscincia da exterioridadeda aco como alguma coisa de minha, dependente da minha von-tade; ii) uma relao necessria com o conceito de um dever, comodever prtico; iii) o estar referida a minha aco vontade de ou-trem e, por conseguinte, o poder exprimir-se numa ordem objectiva,formada, em parte, pelo reconhecimento mtuo dos sujeitos moraiscomo pessoas46. A aco moral , ento, a aco que depende deuma responsabilidade do agente, que pode justificar a sua aco comreferncia a um conceito (do dever) e mediante a representao davontade de outrem.

    A imposio de uma delimitao do conceito de aco moral deve--se ao facto de a aco moral integrar duas modalidades, que no sepodem confundir com ela. Trata-se do movimento e da aco no

    intencional em geral, mas tambm da aco intencional sem pressu-postos morais directos, como o caso da aco estudada pelos histo-riadores, socilogos, pelos psiclogos ou abordada pela estatstica47.

    46 G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts. Mit Hegelseigenhndigen Randbemerkungen in seinem Handexemplar der Rechtsphilosophie,Johannes Hoffmeister (Hrsg.), o. c., 113, 105.

    47 Sobre a problemtica da diversidade das abordagens tericas da aco humana e oestatuto da explicao das razes do agir cf. B. ABEL, Grundlagen der Erklrungmenschlichen Handelns, Tbingen, 1983; W. STEGMLLER, Probleme und Resultate

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    Proponho-me comear por analisar esta estrutura trifsica da acomoral, a que se refere Hegel no citado, a partir das proposiesque usamos habitualmente para justificar as nossas aces. Este pro-cedimento naturalmente familiar anlise lgica da linguagem moral

    e aos seus cultores. E ele tem o mrito de nos colocar no mago dotipo de actividade lingustica que articula a referncia do agente acausas / motivos, intenes / propsitos, valores e imputabilidade /responsabilidade. Justificar uma aco expor uma histria pessoalem que todos estes elementos vo participar para formar o que sedesigna, numa forma sinttica, por sentido da aco48.

    Os modos como justifico as minhas aces so expresses do factode eu tomar essas aces como algo que partiu de mim e, portanto,como aces minhas. Na justificao da aco eu comprovo a

    dependncia de um determinado curso de aco em relao minhavontade, de acordo com o primeiro requisito da qualificao de umaaco moral do 113 das Grundlinien de Hegel. E, por outro lado,na linguagem da justificao podemos, igualmente, separar a gram-tica moral, propriamente dita, da gramtica neutra sobre aces.

    Posso justificar uma aco com referncia a intenes, motivos e/ ou causas sem com isso falar de aco em sentido moral e sem falar,por conseguinte, em justificaes morais. Alteraes fsicas do meucorpo e no meio ambiente fsico e social directamente relacionadocom ele consideram-se simplesmente aces (movimentos) e noaces morais, mesmo que contenham aspectos simbolicamente com-partilhados em uma determinada comunidade. As aces em geralpodem submeter-se a uma linguagem justificativa sem qualquer tipode juzos morais e, neste sentido, a referncia a uma causa do agirpode ser suficiente para dar conta do porqu da aco. O cruza-mento entre causalidade e inteno de agir est presente, em muitoscasos, na prpria descrio que o agente faz das razes da sua aco.

    Por outro lado, a reduo nomolgica dos fenmenos histricose sociais tende a abstrair da qualificao moral dos actos histricos e

    der Wissenschaftstheorie und analytischen Philosophie, Band I - Erklrung, Begrndung,Kausalitt, Berlin, Heidelberg, New York, 1983, captulos VI VIII, 389 773; G. H.von WRIGHT, Erklren und Verstehen, Frankfurt / M., 1974; IDEM, Handlung, Normund Intention. Untersuchungen zur deontischen Logik, Berlin, New York, 1977; M.WETZEL, Praktische-Politische Philosophie: Grundlegung, Freiburg / Mnchen, 1993.

    48 Mantenho aqui a amplitude do conceito de sentido das primeiras pginas da Eco-nomia e Sociedade sobre fundamentos metdicos de M. WEBER. Cf. M. WEBER,Wirtschaft und Gesellschaft. Grundriss der Verstehende Soziologie, Tbingen, 1972, 1 e ss.

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    a aproximar a investigao da causalidade histrica de leis de fre-quncias estatsticas ou, de qualquer modo, de uma intencionalidadeno-moral do agir historicamente pertinente.

    Nas cincias humanas em geral possvel e conveniente partir da

    relao da aco com o mundo do ponto de vista de uma inten-cionalidade j reduzida ao que pode ser objectivamente reconstrudo,a partir do mundo dos factos.

    A descrio da aco est situada entre duas possibilidades extre-mas.

    Descrever o que fao quando ajo pode implicar reconstruir umaaco a partir dos seus resultados no mundo objectivo, obtendo-se umaintencionalidade por via oblqua ou, ento, por outro lado, essa des-crio implicar a auto-narrao de mim como sujeito.

    Se verdade que s posso falar de aco como acontecimentoefectivamente verificvel na realidade objectiva (na natureza), no menos verdade que o domnio em que tem lugar a explicao daaco no se pode reduzir a uma linguagem descritiva sobre proprie-dades da faceta objectiva do agir. possvel enunciar esta ambiva-lncia da aco na frmula seguinte: se no possvel reduzir umaaco sua inteno subjectiva, tambm no possvel reduzir oque fao quando ajo aos produtos objectivos da minha aco.

    No entanto, a ideia da possibilidade de uma reduo do sentidoda aco aos seus componentes de verdade (objectivos) caracterizaa semntica da aco de D. Davidson, que aqui acolho como exem-plificao desta tese49.

    Para este filsofo sempre possvel obter respostas sobre inten-es, crenas ou desejos na forma de proposies descritivas sobrefactos.

    Para elucidar este problema prvio interessante tomar em contaas observaes de D. Davidson sobre a causalidade nas aces esobre a forma como podemos alcanar o porqu das aces.

    D. Davidson projectou uma parte substancial dos seus ensaios

    sobre a aco luz de uma crtica das concepes dos wittgensteinianosde Oxford, nomeadamente no que se refere s seguintes teses geraisdaqueles discpulos: as razes das aes no so causas; as razesno so categorialmente distintas das prprias aces; as razes noesto articuladas com as aces por intermdio de leis; as razes no

    49 Os ensaios de D. DAVIDSON sobre a aco foram reunidos em um nico volume,a que doravante me referirei quando citar a posio deste filsofo. Cf. D. DAVIDSON,Essays on Actions and Events, Oxford, 1980.

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    so objecto de um conhecimento indutivo; entender a razo da acono mesmo plano das causas de um acontecimento incompatvel coma liberdade do agente50.

    Dos primeiros ensaios de D. Davidson resulta claramente a ideia

    segundo a qual a nica relao que deve ser isolada com vista explicao de uma aco a relao entre antecedente e conse-quente51. Por este motivo, a ideia fenomenolgica da explicao / jus-tificao da aco do ponto de vista da intencionalidade de um agirem vista de... ou de um fazer isto em vista daquilo consideradadesnecessria ou, quando muito, -lhe reconhecido um papel acess-rio na explicao da aco.

    Toda a explicao de uma aco , na sua base, um juzo causalsingular que articula dois acontecimentos na forma de uma depen-

    dncia causal. Reduzida a conexo entre princpio da aco e estaltima a uma conexo semelhante causalidade natural, no se jus-tifica para D. Davidson uma lgica modal especial para a investigaoda aco52, como se podia concluir dos esforos tericos de G. H.von Wright53, nem a ideia de uma racionalidade prtica autnoma,como se pode depreender da teoria da inteno de G. E. M.Anscombe54, mas tambm das obras de J. Habermas55, K.-O. Apel56ou P. Ricoeur57.

    Em particular, a rejeio por D. Davidson das teses de G. E. M.Anscombe tem por finalidade mostrar como no necessrio admitir

    50 Cf. J. L. PETIT,Laction dans la Philosophie Analytique, Paris, 1991, 197 e ss.51 D. DAVIDSON, Actions, Reasons and Causes in IDEM, loc. cit., 3.52 A estratgia de D. DAVIDSON na anlise da aco consiste na reduo dos seus

    elementos intencionais dimenso do acontecimento. Cf. J. L. PETIT, Laction dansla Philosophie Analytique, o. c., 213 - 214.

    53 G. H. von WRIGHT, Handlungslogik. Ein Entwurf in IDEM, loc. cit., 83 103.54 G. E. M. ANSCOMBE, Intention, Oxford, (1957) 1979.55 J. HABERMAS, Faktizitt und Geltung. Beitrge zur Diskurstheorie des Rechts

    und des demokratischen Rechstsstaats, Frankfurt / M., 1994, Kap. I, Kap. III, ii) e iii).56 K. O. APEL, Die transzendentalpragmatische Begrndung der Kommunikationsethik

    und das Problem der hchsten Stufe einer Entwicklungslogik des moralischen Bewutseinin IDEM, Diskurs und Verantwortung. Das Problem des bergangs zurpostkonventionellen Moral, Frankfurt / M., 1990, 306 369.

    57 Na sequncia de interesses anteriores e de um conjunto de investigaes da dcadade 70 sobre a aco da responsabilidade de P. RICOEUR e do Centro de Fenomenologia(P. RICOEUR et le Centre de Phnomnologie, La Smantique de lAction, Paris, 1977)surgem as anlises em P. RICOEUR, Soi-mme comme un autre, Paris, 1990, em especialo terceiro estudo, em que P. RICOEUR se debate com as posies de D. DAVIDSON,e o quarto estudo, 73 136.

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    a existncia de uma representao do objecto desejvel no agente paradar uma resposta adequada ao porqu das suas aces58. Partindodesta ideia possvel transformar o silogismo prtico em raciocnioterico, pois a nica coisa envolvida na explicao da aco a asso-

    ciao de uma representao de um objecto com a aco59.No entanto, o problema levantado por D. Davidson um problema

    srio, independentemente de estarmos ou no de acordo com o exces-so de reduo fisicalista da aco nos seus primeiros ensaios. Esseproblema o de saber que relao liga o acontecimento descrioque o agente faz das razes, motivos e desejos que estiveram, segundoele, na base da aco, pois o agente pode desejar fazer A produzindoB60. O contextualismo da concepo wittgensteiniana dos jogos delinguagem / formas de vida no seu projecto de insero da aco em

    conjuntos explicativos trans-individuais no serve, tambm, para darconta da articulao interna entre aco e razo.D. Davidson chama racionalizao a uma explanao de uma aco

    de um agente mediante o recurso a razes da aco61. Uma razo daaco numa determinada descrio compe-se de dois elementos. Umprimeiro elemento que constitudo por uma atitude pro- de aces dedeterminado tipo. Um segundo elemento que est presente na crena ouem outra atitude mental que toma estas determinadas aces comoaces em prol das quais se deve agir, segundo o primeiro elemento62.

    As atitudes pro- estas aces e a crena de que estas aces per-tencem quele tipo so os dois elementos que entram na chamadarazo primria que o agente tem em conta para racionalizar / jus-tificar as suas aces.

    Mas o essencial do argumento de D. Davidson reside na ideia deque a razo primria de uma aco consiste na sua causa.

    R is a primary reason why an agent performed the action A underthe description d only if R consists of a pro attitude of the agenttowards actions with a certain property, and a belief of the agent thatA, under the description d, has that property63.

    Por outro lado, D. Davidson tambm afirma que conhecer a razoprimria com que uma aco foi praticada equivale a conhecer ainteno com que essa aco foi praticada.

    58 D. DAVIDSON, Actions, Reasons and Causes in IDEM, loc. cit., 9.59 J. L. PETIT, Laction dans la Philosophie Analytique, o. c., 218 219.60 IDEM, Ibid., 220 221.61 D. DAVIDSON, Actions, Reasons and Causes in IDEM, loc. cit.,4 5.62 IDEM, Ibid., loc. cit, 3.63 IDEM, Ibid., loc. cit., 5.

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    Prestar contas das suas aces do ponto de vista das razes pri-mrias o que qualifica os agentes como animais racionais. E oporqu de uma aco deve constituir um lao interno com a acoe a sua razo primria64.

    Do ponto de vista de ns prprios como observadores da aco,ao tentarmos perceber a sua razo primria realizamos uma inter-pretao da aco ou redescrio e inserimo-la em um quadro fami-liar65. Este quadro incluir vrios elementos atribuveis ao agente emcausa, como objectivos, finalidades, princpios, traos gerais decarcter, virtudes ou vcios. Mas pode ainda ser alargado a um hori-zonte mais vasto, colocando-se ento a aco em um contexto deavaliao dotado de dimenses sociais, econmicas e lingusticas. Umtal alargamento da justificao a esferas de atribuio de razes mais

    amplas encontrou a sua inspirao na obra do segundo L. Wittgenstein.D. Davidson considera que este tipo de explicao verdadeiro. Noentanto, conduz a dois tipos de consequncias que no se seguemnecessariamente dos pressupostos.

    Em primeiro lugar, no se infere das premissas que as razes nose possam entender como causas. Em segundo lugar, tambm no sesegue do facto de se haver inserido a aco em um contexto mais vas-to que se tenha explicado a aco. Ou seja, fica por resolver a questode saber que tipo de determinao existe entre razo e aco.

    Ainda de acordo com D. Davidson, a tese aristotlica sobre aassociao entre razo e aco teve pelo menos o mrito de dar umsentido causal s razes da aco e , alis, a mais apta a resolver oproblema da conexo misteriosa entre uma e outra, o problema doporqu do agir, com referncia ao querer fazer, quer dizer, faseda deliberao completa. Contudo, a forma do silogismo prtico nopermite reconstruir o raciocnio prtico que envolve uma avaliaode vrias razes de agir em competio para determinar a aco66.

    O argumento que subjaz s teses que afirmam ser impossvel tomara razo como causa do agir o seguinte: as razes primrias so

    estados ou disposies do tipo de crenas e atitudes, os quais noso acontecimentos.Logo, as razes primrias no se podem entender como causas,

    uma vez que o que entendemos por causa deve poder reduzir-se aum acontecimento.

    64 IDEM, Ibid., loc. cit., 6 7.65 IDEM, Ibid., loc. cit., 10.66 IDEM, Ibid., loc. cit., 16.

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    Este argumento tem por principal pressuposto a ideia de que osacontecimentos no so estados mentais e que estados mentais nose podem considerar acontecimentos.

    Algumas aces so aces praticadas por um sujeito no sentido

    activo do termo quando so aces intencionais. Mas no podemosreduzir todas as aces praticadas por um sujeito, no sentido activodo termo, a aces praticadas com alguma inteno: embora a inten-o implique aco o inverso no verdadeiro.

    Prosseguindo, D. Davidson subdivide as aces fisicamente reali-zadas por um determinado sujeito nas categorias: 1. da aco intencio-nal em sentido prprio; 2. da aco no intencional mas que eu rea-lizei activamente; 3. da aco que eu no realizei pura e simplesmente,mas de que posso ter sido um veculo fsico67.

    As aces por erro ou por falsa estimativa das circunstncias nose podem considerar aces de tipo intencional.Uma explanao causal de uma aco uma explanao assente

    em uma descrio da aco com base na referncia a causas e / ouefeitos. Podemos partir da anlise das descries da aco totalmentefundada na considerao da aco do ponto de vista da causalidade.

    esta perspectiva que pode encontrar-se na sugesto de D.Davidson de tomar de uma dupla maneira as descries do agir apartir da aco como causa ou a partir da aco como efeito: 1. des-crever uma aco como possuindo um determinado propsito ouinteno significa tomar a aco como efeito; 2. descrever um acocomo possuindo determinados resultados significa tomar essa acocomo causa68.

    A referncia a um desejo como a algo que condicionou, no seuprincpio, a deciso por uma aco, a referncia a uma causa doagir. O desejo est, assim, no lugar da causa numa cadeia causal.

    Voltada para corrigir alguns excessos da pura e simples erra-dicao da causalidade na justificao das aces por parte de algunsautores da Filosofia Analtica, a argumentao de D. Davidson, ao

    posicionar a causa como razo do agir, vlida para a aco em umsentido muito geral e, por isso, permite com mais clareza mostraronde se situa a linha de demarcao entre a aco em sentido gerale a aco moral.

    A distino deve poder ocorrer ao nvel da justificao que oagente produz para as suas aces e, portanto, ela deve poder tor-

    67IDEM, Agency in loc. cit., 45.68IDEM,Ibid., loc. cit., 48.

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    nar-se patente no uso da linguagem justificativa. Vejamos, portanto,em que se distingue a aco na perspectiva da causalidade daqueletipo de aco que qualificamos com o termo moral69.

    1. Comecemos pelo primeiro aspecto, relativo ao agente.

    Ao contrrio do que se conclui das crticas de D. Davidson aoswittgensteinianos de Oxford no parece ser possvel alargar o seuprprio modelo de justificao das aces por razes / causas aoscasos de justificaes de aces que envolvem a reflexo sobre aunidade de uma biografia. Para casos behavioristas de aces oupara descries histricas e sociolgicas, que se pretendem afirmarpara alm das meras impresses subjectivas dos actores, certamentepossvel adoptar a ideia segundo a qual a justificao x serve para aaco A como a sua causa ou razo c.

    Mas quando apresentamos justificaes tecidas em redor de umaindividualizao da aco, como quando concebemos a aco comoalgo que tipifica um determinado agente, fazemos uma estilizao doagir. Em virtude da estilizao do agir somos levados a ver entre oagente e a sua aco um lao necessrio, no em virtude do contedoparticular das justificaes que o agente d, mas pelo facto de nessasjustificaes se encontrar um nexo entre o agente e a aco dentrode uma histria pessoal, de uma biografia70. Em vez de a biografia po-der ser contada como causa de algum acontecimento, ela apresenta-secomo um inteiro percurso justificativo, que pode determinar o entendi-mento de certos acontecimentos como acontecimentos subsumveis nacategoria de causas de determinadas aces e em que a prpria diferen-a entre acontecimento colateral, acidente e causa da aco tem lugar.

    A formao de uma identidade pessoal alicera-se na identidadebiogrfica que, por sua vez, se refere identidade individual.

    Mas importa assinalar que estes trs nveis de referncia da iden-tidade nunca coincidem de um modo perfeito. O estudo aprofundadodesta diferena levar-nos-ia a conceber o ser pessoal como discre-pncia interna, diversidade e no como harmonia e consonncia dos

    seus nveis. O tema da autobiografia a este propsito um tema fecun-do71, pois na auto-narrao se manifesta temporalmente a congruncia

    69 Nos seus traos gerais, o procedimento que aqui emprego assemelha-se ao tipo dedesenvolvimento do quarto estudo da obra de P. RICOEUR, Soi-mme comme un autre,o. c., 109 e ss.

    70 Cf. IDEM, Ibid.,sexto estudo, 168 e ss.71 O conceito de autobiografia recente. Data do sculo XVIII um dos primeiros

    usos do termo em alemo, da responsabilidade de Herder. J no sculo XIX apareceu uma

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    e a perda da congruncia, a identidade de um nvel em conexo coma fragmentao da identidade de outro nvel, coincidncia e no coin-cidncia, etc.

    Em sintonia com o projecto de uma concepo filosfica da biogra-

    fia associada com a Psicologia Descritiva de W. Dilthey, G. Mischdesenvolveu no princpio do sculo XX uma Histria da Autobiografiaque nos seus alicerces tericos se referia a uma base civilizacional e Histria das Civilizaes assim como a uma concepo da perso-nalidade e da individualidade. O elemento responsvel pela articula-o destes dois suportes encontrava-se no conceito de expresso queo mesmo autor tambm explorou no quadro de uma fundamentaolgico-lingustica da Filosofia da Vida, ao longo das suas lies deGttingen nos finais dos anos 1920 e na dcada de 193072.

    Na sua Histria da Autobiografia G. Misch partia do conceito depersonalidade como pea fundamental da sua anlise e mostrava adependncia entre o aparecimento deste conceito e determinadas con-dies civilizacionais, que se situavam na Grcia clssica e depoisse haviam repetido no Renascimento europeu, propicias gerao deum rgo para a expresso da individualidade73. A individualidade,a personalidade e os meios de expresso da auto-conscincia depen-deram sempre de tipos histricos e civilizacionais determinados queengendravam certas formas de expresso em detrimento de outras.Sendo um produto histrico, a individualidade aparece como umaconstruo directamente associada com a experincia de mundo dosujeito, com a aco e em relao com uma comunidade74. Ao partirda autobiografia como um tipo narrativo com valor expressivo paraa unidade de uma vida G. Misch era naturalmente levado a acentuaro aspecto da identidade construda do sujeito, no fazendo luz, emvirtude desta preferncia, sobre as diferenas e as dissenses entre

    variante em lngua inglesa (auto-biography). Esta palavra fora usada por R. Southey

    para referir um livro (perdido) escrito por um pintor portugus em que o autor narrava asua vida. A constituio da autobiografia como gnero literrio autnomo est natural-mente associada com o crescimento da importncia das formas de auto-expresso da indi-vidualidade na sociedade moderna. Cf. G. MISCH,A History of Autobiography in Antiquity,(trad.) London, 1950, 2 vols., pp. 5-6, nota.

    72 G. MISCH, Der Aufbau der Logik auf dem Boden der Philosophie des Lebens.Gttinger Vorlesungen ber Logik und Einleitung in die Theorie des Wissens , Freiburg Mnchen, 1994.

    73 IDEM, Ibid., p. 70.74 IDEM, Ibid., p. 71.

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    as diferentes camadas da auto-contruo do sujeito e, desde logo,naquilo que se refere diferena entre subjectividade e individualida-de. Esta preferncia pelo aspecto expressivo da identidade nahermenutica autobiogrfica esbate os aspectos da construo da

    imagem de si mesmo que esto dependentes de uma histria daseleco das possibilidades prticas de que o sujeito j produto comoindivduo e vida individuada, e que esse sujeito tem de assumir nasua iniciativa de aces, mas que no esto directamente acessveisna forma da auto-conscincia subjectiva ou seja na modalidade deuma certeza sobre si mesmo. A dimenso expressiva da autobiografiaest associada com um determinado aspecto do conhece-te a ti mes-mo, que o aspecto da certeza. Trata-se, aqui, da perspectiva dacondensao das possibilidades prticas da vida do sujeito naquilo

    que nele, na sua histria de vida, se pode traduzir mediante umaimagem da sua realidade. Nesta ptica muito particular, o conhece-tea ti mesmo em vez de designar o movimento da vida do sujeitoindividuado, ou seja do sujeito imerso na experincia das suas pr-prias possibilidades virtuais, exprime aquilo que na subjectividadeparece assegurar a designao do seu ser estvel, conservado no tempo.Mas esta uma figura limitada, uma figura partida.

    Num ensaio de P. Ricoeur sobre a identidade narrativa75, o autorarticulava uma parte essencial do seu pensamento em torno da distin-o, recuperada em outras obras, entre o idem e o ipse. Neste tra-balho de sntese, colocava P. Ricoeur a mesmidade do lado da iden-tidade numrica, no seu caso mais extremo, e a ipseidade do ladodo sujeito dotado de iniciativa prtica e de imputao76.

    Em confronto com a estratgia de reduo do carcter sub-jectivo das aces objectividade dos seus resultados na obra deD. Parfit (Reasons and Persons), o hermeneuta afirmava, por umlado, a impossibilidade de uma descrio impessoal de factos quecostumam ser tomados como aces imputadas a pessoas e, para almdisto, mostrava ainda como a prpria diferena entre a descrio impes-

    soal e uma descrio explicitamente referida a sujeitos que se nar-ram a si mesmos algo que supe j o elemento narrativo e o siprprio77.

    75 P. RICOEUR, A Identidade Narrativa (trad. portuguesa) inArquiplago.Filoso-fia 7, Ponta Delgada, 2000, pp. 178-194.

    76 IDEM, Ibid., in loc. cit. p. 180.77 IDEM, Ibid., in loc. cit. p. p. 183-187.

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    Ao referir o carcter narrativo da construo da ipseidade e adiferena que na narrao se pode estabelecer entre mesmidade eipseidade, mencionava P. Ricoeur o caso do romance moderno,em que abundariam os exemplos de total recobrimento do ipse

    e do idem assim como de uma completa dissociao entre ambosos aspectos. Neste ltimo caso, coube a aluso ao Homem sem Quali-dades de R. Musil como a um texto literrio em que a crise da iden-tidade subjectiva do personagem levou perda de qualquer cursovisvel da intriga na narrao.

    Mas, o que P. Ricoeur infelizmente no analisou, em virtude doseu ponto de partida, foi o problema da passagem das possibilidadesno seu estado praticamente virtual, que representam uma das facetasdo indivduo, e a assuno de um nmero limitado dessas possibili-

    dades como realidade em que o sujeito prtico se diz e narra a simesmo, como ipse. Na verdade, aqui que se cruzam os proble-mas mais decisivos sobre o nascimento da imputabilidade e da atri-buio de um sentido moral a aces realizadas por sujeitos morais.Este o problema da condensao e da expresso da experincia daspossibilidades prticas.

    H um imperativo moral na base do tornar-se pessoa de qual-quer sujeito prtico e esse imperativo diz:

    atribui-te a ti mesmo a realidade de um sujeito na forma como construres

    a diferena entre as tuas possibilidades de indivduo a partir de um mundovirtual, em incessante reconfigurao, e a actualidade da tua obrigaode responder perante outrem.

    Todavia, a oscilao que vai do mundo virtual em que como indi-vduo estou desde sempre imerso e a construo que fao de mimprprio como sujeito de aces no seria pensvel sem a necessidadede eu me situar perante uma interpelao que no comeou em mime que eu no posso tirar de mim mesmo. A moral como linguagem

    justificativa nasce deste encadeamento interno do indivduo e dosujeito posto em andamento por um questionamento originalmenteexterior ao idem assim como ao ipse.

    O princpio kantiano, fichteano, romntico e hegeliano s umapessoa e respeita outrem como pessoa , ento, um postulado obri-gatrio de qualquer noo de moralidade e, consequentemente, daaco moral, mas deve ser tido como isso mesmo, como mandamentoque o eu recebe. Do ponto de vista da linguagem da justificao, esteprincpio exige a capacidade de cada um se narrar a si mesmo comsentido e fornecer, a partir do seu imaginrio autobiogrfico, e das

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    correspondentes condensaes do virtual no actual, do possvel noreal, as razes da sua aco.

    A imputabilidade e a responsabilidade supem a identidade pessoal,e a condensao do horizonte modal que ela configura e exprime, e

    s assim possvel articular algo de coerente em torno da questoda propriedade das aces, como requeria o ponto i) do nosso pontode partida78. Ento, a mobilidade interna do indivduo suspensa e ahistria pessoal pode ser narrada a partir de um ponto de suspenso,que aquele que garante que o sujeito se d como sujeito irrepetvelpara outrem em resposta a uma questo de responsabilidade pelos seusactos. A causalidade tem aqui o seu lugar natural.

    78 Um dos problemas em que assenta uma leitura dos problemas ticos a partir dasGrundlinien de HEGEL, e em particular a partir da segunda parte, reside no facto de ofilsofo ter transposto a dimenso da narratividade directamente para o domnio da Hist-ria Universal, na qual se teciam os laos entre indivduo e povo, entre a subjectividadelivre e a comunidade poltica dotada de uma auto-expressividade. Os momentos queestruturam a segunda parte das Grundlinien partem do conceito abstracto de pessoa(proveniente das anlises dos pargrafos da primeira parte) e articulam-se em torno dedois eixos estruturadores: o primeiro que relaciona a finalidade do agir com o bem estar;o segundo que leva desde a representao moderna do dever moral at forma moderna

    da conscincia moral do sujeito moral. As anlises destes pargrafos vo no sentido depreparar a passagem dos temas relativos ao sujeito individual da moral, na sua procura dobem prprio, para a doutrina da objectividade do Bem, que compete terceira e ltimaparte do compndio e que efectiva a passagem da Moral para a Poltica. Neste esquemabem conhecido o problema da procura de uma verdadedo sujeito por ele prprio acabapor se esclarecer unicamente com base no conceito de conscincia moral e de dever, queHEGEL vai ler no kantismo e no pensamento de FICHTE. como se entre a doutrinakantiana do dever, que para HEGEL a mxima expresso do sujeito moderno na tica,e a sua prpria concepo do mundo tico no houvesse lugar para uma explicao dosujeito acerca de si prprio. Neste interstcio das Grundliniense irio colocar as chamadasFilosofias da Existncia e a Psicanlise, que em comum tm a crena de que a verdade

    do sujeito algo que passa por aquilo que ele diz sobre si, pela ordem da autonarrao. Seprocurarmos situar a evoluo do contedo e da estrutura do compndio de Hegel nosseus discpulos e adeptos, que se dedicaram ao mesmo tipo de assuntos, desde F. W.CAROV, E. GANS, a C. L. MICHELET passando por A. LASSON no se conseguemler preocupaes significativas com a questo da autonarrao. No seguro que aobliterao do tema da descoberta de si na autonarratividade se prenda, no caso de HEGEL,com o vrias vezes referido afastamento progressivo da questo da intersubjectividade aolongo da sua obra de maturidade, como pretendeu M. THEUNISSEN no seu famoso ensaioDie verdrngte Intersubjektivitt in Hegels Philosophie des Rechts, in D. HENRICH /R.-P. HORSTMANN, Hegels Philosophie des Rechts, Stuttgart, 1982, 317-381.

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    Ao conceber o clculo lgico modal TI, G. H. von Wright79mostrou aspectos importantes a propsito da relao entre horizonteda experincia modal e autobiografia, ao reconhecer, no seu conceitode biografia, como a unidade de uma vida, entendida como

    sequncia de cursos de aco, diferente do conceito de Histriae, por conseguinte, no se refere a acontecimentos situados nummundo estritamente objectivo e regido por um tipo causal semelhanteao que rege as relaes entre fenmenos naturais80. Se a Histria nospermite observar o que aconteceu e seguir o nexo causal de um fluxode tempo que veio j sua efectividade e transcorreu alm de ns,j a biografia permite traar a coerncia de um inteiro curso devida tendo em vista no s o que se produziu efectivamente, masigualmente um mundo de alternativas de aco do mesmo agente81 e

    que este pode rever nas variaes imaginativas sobre si mesmo.Segundo G. H. von Wright numa viso determinista da vida e domundo, uma biografia pode ser representada como uma rvoreda vida, cujos elementos temporalmente posteriores se entendemcomo tendo sido causados por estdios anteriores da situao devida de um agente82. Mas, este determinismo apenas probabilstico,pois assenta em uma combinao de possibilidades de aco e noem princpios do determinismo clssico da influncia da causa noefeito83.

    2. Analisemos, agora, o segundo aspecto, relativo s condiesde universalizao das razes.

    Ao nos dispormos a afirmar, por exemplo, que uma aco emsentido moral um acontecimento cuja justificao reside em umanorma, estamos a supor que uma aco para poder ser consideradaaco moral deve estar referida a uma condio de universalidade dasua causa (no sentido davidsoniano de causa).

    Esta ideia implica que o que tomamos como causa do agir sepossa transformar em um princpio reconhecido como vlido poroutros agentes para a aco referida.

    79Cf. G. H. von WRIGHT, Handlungslogik. Ein Entwurf in IDEM, loc. cit., 89.80 Cf. IDEM, Ibid., in IDEM, loc. cit., 90.81 IDEM, o. c., in IDEM, loc. cit.,98 99.82 IDEM, o. c., in IDEM, loc. cit.,90 e 93.83 Sobre a questo do determinismo e da possibilidade de outras direces da aco,

    igualmente consistentes cf: IDEM, Determinismus in den Geschichts- und Sozialwissenschaften.Ein Entwurf in IDEM, loc. cit., 131 152.

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    O critrio da universalidade , aqui, o de um acordo sobre a justi-ficao da aco que, por princpio, deve poder ser aberta ao escrut-nio de qualquer agente. A justificao do agir deixa de pertencer exclu-sivamente a uma biografia encerrada sobre a sua prpria coerncia

    interna e os projectos de vida que dela se desprendem podem ser com-partilhados e as justificaes que se tecem em torno de uma vida po-dem ser por outros retomados ou censurados, nos dois casos extremos.

    Esto em causa dois pressupostos. a) O primeiro consiste na ideiade que a condio de universalidade da norma no pode resultar deoutra coisa que no seja de uma aceitao do contedo normativopor parte de uma comunidade, com uma populao de agentes virtuaisde limites no definidos. b) O segundo diz que com base no reconhe-cimento da mesma norma se devem poder seguir por parte de outrem

    aces justificadas com a mesma referncia normativa84

    .Chamemos ao primeiro postulado do reconhecimento e ao segundopostulado do cumprimento de expectativas normativas85.

    84 Cf. a doutrina da justificao moral desenvolvida na obra de S. TOULMIN, AnExamination of the Place of Reason in Ethics , Cambridge, 1970, 155 e ss. Cf. o temaparalelo da universalizao dos juzos morais P. WINCH, The Universalizability ofMoral Judgments in IDEM, loc. cit., 151 170.

    85 Na Sociologia contempornea o problema em questo no cruzamento destes doisaspectos foi baptizado desde T. PARSONS como o problema da dupla contingncia.Numa formulao seca pode afirmar-se que ele representa a interseco da intersubjec-tividade e do tempo na formao de determinadas referncias simblicas relativamenteestveis, partilhadas por ego e alter (cf. T. PARSONS, The Structure of Social Action,Chicago, 1949; IDEM, The Social System, London, (1951), 1991, 3 23; 10). Mais re-centemente, N. LUHMANN fez uma releitura com consequncias profundas do tema dadupla contingncia para mostrar como a dimenso temporal e a sequencialidade nasaces so os dois aspectos fundamentais para compreender o modo como as relaessociais se estruturam e como se geram sistemas sociais, com os respectivos cdigos. Apartir da forma como na vida quotidiana nos apercebemos de situaes que envolvem adupla contingncia se pode concluir que nenhum sistema social pode ter lugar quando

    ego no puder agir enquanto no souber de que modo alter vai agir. A referncia aelementos normativos por parte de ego e alter em uma situao caracterizada pela duplacontingncia est condicionada pelo grau de estabilidade alcanado pelo comportamentoselectivo de ambos. Assim, a partir da anlise feita por N. LUHMANN da gerao daconfiana, pode ver-se de que modo certas referncias comuns (de ego e alter) estohabilitadas a encurtar longos percursos inferenciais na experincia do trato mtuo. Maisdo que provar a necessidade de um acordo sobre todo o processo da experincia mtua edas respectivas aces e justificaes, as anlises da confiana, que N. LUHMANNefectuou, mostram como o sentido compartilhado aquilo que, num processo de seleco,se afirmou como relativamente imune a desapontamentos, podendo a partir dele gerar-se

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    Edmundo Balsemo Pires

    Estes dois postulados referem-se universalizao das justifica-es de aces mediante causas por parte de um agente. Se tomocomo causa da minha aco algo mais do que um referente fsico deuma fora motriz e considero que essa causa pode ser revivida por

    outrem como causa das suas aces possveis, ento eu formulo coma minha justificao o conceito de um dever prtico para todos osdemais. A questo de saber se o que eu entendo como podendo serum dever prtico para todos os demais efectivamente reconhecidocomo tal, um outro problema que, sem dvida, decisivo.

    Ou seja, conceber uma aco referida a uma causa pode significaruma referncia que se estende desde um movimento meramentemecnico, at uma aco intencional ou ainda uma aco moral pro-priamente dita, consoante se d esta mesma referncia no discurso

    justificativo de um sujeito. Quando este ltimo incluir uma refernciaa uma norma ou a princpios que podem ser tidos por outrem comocausa das suas prprias aces, ou seja, como enunciados de deveresprticos, encontramo-nos num discurso justificativo moral. No necessrio para isso que a justificao pela referncia universali-dade de uma norma tenha uma funo retrica explcita mas, comopretenderam os autores prximos do imperativismo tico, a sim-ples incluso no discurso justificativo de uma referncia a uma causado agir que por mim descrita como alguma coisa que outrem poderepresentar como causa de uma aco sua em semelhantes circuns-tncias , mesmo que indirectamente, uma exortao ou um comandomoral: o enunciado de um imperativo, de um dever86.

    Quando passamos da causalidade em geral para a questo da cau-salidade moral em particular temos de tomar em conta o conceito dedever ou obrigao. neste plano que os principais problemas dateoria da aco e da causalidade se cruzam com a teoria da moral. E,desde logo, uma das questes que h que enfrentar o de saber setemos um critrio ou critrios adequados para definir o que so deve-res em sentido moral.

    Neste cruzamento, as duas questes centrais podem formular-sedo seguinte modo: 1. como se d a formao da conscincia do deveruma vez estabelecido um conceito adequado de dever e 2. como

    uma seleco continuada da experincia, a que se chama, com propriedade, sistemasocial (N. LUHMANN, Soziale Systeme. Grundri einer allgemeinen Theorie, Frank-furt /M. (1984), 1994, 148 190).

    86 Cf. R. M. HARE, The Language of Morals, Oxford, (1952), 2001, 1 31; IDEM,Objective Prescriptions and other essays, Oxford, 1999, 19 27.

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    Revista Filosfica de Coimbra n. 29 (2006)

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    possvel que aquilo que tomamos como obrigao ou dever-ser setransforme em causa de aces reais, que alteram, ou podem alterar,um dado estado de coisas no mundo e conduz, ou pode conduzir,outros a agir concordantemente.

    O primeiro problema leva-nos a uma investigao gentica