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Dissertação de Mestrado em tecnologia, CEFET-RJ.Apresenta reflexões sobre a construção dos paradigmas da modernidade contrapondo-o à crise moderna e a adoção de novos paradigmas pósmodernos.
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CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA
CELSO SUCKOW DA FONSECA −−−− CEFET/RJ
DIRETORIA DE ENSINO
DEPARTAMENTO DE ENSINO SUPERIOR
COORDENADORIA DE CURSOS DE PÓS -GRADUAÇÃO
DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA
MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE EEDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE UM
NOVO PARADIGMA SOCIAL.
por Patricia Ferreira Santos
JUNHO DE 1998
CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA
CELSO SUCKOW DA FONSECA −−−− CEFET/RJ
DIRETORIA DE ENSINO
DEPARTAMENTO DE ENSINO SUPERIOR
COORDENADORIA DE CURSOS DE PÓS -GRADUAÇÃO
DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA
MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE EEDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE UM
NOVO PARADIGMA SOCIAL.
Por Patricia Ferreira Santos
DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO
DEPARTAMENTO DE ENSINO SUPERIOR COMO PARTE DOS REQUISITOS
NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM
TECNOLOGIA.
Mírian Paura S. Z. Grinspun
ORIENTADORA
RIO DE JANEIRO, RJ - BRASIL
JUNHO DE 1998
CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA
CELSO SUCKOW DA FONSECA −−−− CEFET/RJ
DIRETORIA DE ENSINO
DEPARTAMENTO DE ENSINO SUPERIOR
COORDENADORIA DE CURSOS DE PÓS -GRADUAÇÃO
DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA
MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE EEDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE UM
NOVO PARADIGMA SOCIAL.
Patricia Ferreira Santos
DISSERTAÇÃO TECNOLÓGICA SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO DEPARTAMENTO DE ENSINO
SUPERIOR COMO PARTE DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
EM TECNOLOGIA.
DATA DA DEFESA: 17 DE JUNHO DE 1998
APROVAÇÃO:
________________________________________
Mírian Paura S. Z. Grinspun
________________________________________
Ana Maria Moog Rodrigues
________________________________________
Antônio Maurício C. das Neves
FICHA CATALOGRÁFICA
SANTOS, PATRICIA FERREIRA
Modernidade, Pós-modernidade e Educação:
reflexões sobre um novo paradigma social. Rio de
Janeiro, 1998
iv, 130p., 21x29,7cm
Dissertação (Mestrado) Centro Federal de
Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca
Orientadora: Mírian Paura S. Z. Grinspun.
Bibliografia: p. 124-130
1. Educação - Filosofia. 2. Sociologia. 3.Paradigmas
(Filosofia). I. COCPG/CEFET/RJ II. Título.
CDD 20. cd
370.1
S 237m
D
i
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, à minha família pelo incentivo recebido durante toda a
caminhada.
À orientadora Mírian por seu apoio gentil e pleno de sabedoria em todos
os momentos. E por dividir suas inquietações e conhecimentos sobre a educação,
instigando sempre a reflexão.
Aos mestres, colegas e amigos do CEFET-RJ que acompanharam este
trabalho, colaborando com suas idéias e críticas. E aos que, em preciosos
momentos de discussão, fizeram nascer e germinar essas idéias.
À colega Fátima Maria de Oliveira cuja leitura desta dissertação
demonstrou que uma das metas pretendidas foi alcançada, a de fomentar o
pensamento e a discussão sobre o mundo atual e a educação.
À equipe da Biblioteca Central do CEFET-RJ por sua colaboração e a
permanente disposição para ajudar.
ii
RESUMO
Este estudo analisa as críticas ao projeto de modernidade efetuada por
teóricos pós-modernos com vistas a subsidiar novas teorias educacionais que
acompanhem as transformações sociais percebidas na atualidade. Mudanças que,
por sua profundidade, são identificadas como sinais da substituição do paradigma
de pensamento moderno. Por esta razão, são inicialmente discutidos os diversos
conceitos de paradigma e sua importância para as estruturas societárias, assim
como para a determinação de consciências e percepções individuais. A relação
entre o Iluminismo, enquanto projeto de sociedade, e a modernidade é destacada
através da análise de seus fundamentos, assim como da investigação da
divergência percebida na concretização de suas metas em relação aos objetivos
iniciais. As críticas à modernidade apontam para duas possíveis direções de
mudança, que são sua reformulação ou superação. A pós-modernidade surge
como teoria, ainda em construção, que critica os fundamentos da modernidade
materializados nas ciências e nas relações sociais; a partir destas críticas, são
traçadas novas diretrizes que deverão guiar as ações futuras. A identificação de
objetivos educacionais mais adequados à nova realidade social apontam também
para duas direções principais: da adoção cada vez mais consciente das
determinações econômicas sobre as relações individuais ou coletivas e a da
percepção do homem como ser complexo, cuja formação depende de inúmeros
fatores. Aos educadores cabe a responsabilidade de formular planos educacionais,
definir novos objetivos e traçar estratégias de acordo com as escolhas realizadas
relativas às metas sociais mais gerais.
iii
RESUME
Cet étude analyse les critiques faites a l’égard du projet de la modernité pour des
théoriciens postmodernes, au but de fournir des subsides aux nouvelles théories en
éducation que suivent les transformations sociales de atualité. Ces changements, pour sa
portée, s’identifient avec le remplacement du paradigme de la pensée moderne. Pour
cette raison, les divers concepts de paradigme sont examinés au début, ainsi que leur
importance pour l’ensemble de la societé, et pour la détermination des consciences et
perceptions individuelles. La relation entre l’Illuminisme, comme projet de la societé, et la
modernité est détachée selon l’analyse des ses fondements, ainsi que la divergence
notée entre la matérialisation de ses objectifs et le projet original. Les critiques à la
modernité indiquent deux directions possibles pour les changements: une nouvelle
formulation ou son surpassement. La postmodernité sourde comme théorie, encore en
construction, qui critique les fondements de la modernité aperçus dans les sciences et
dans les relations sociales; à partir de ces critiques, les nouvelles orientations sont fixées
pour guider les actions à l’avenir. La recherche d’objectifs en éducation plus convenables
à la nouvelle realité sociale signale aussi deux directions principales: l’adoption de plus en
plus consciente des déterminations économiques pour les relations individuelles ou
collectives, et laquelle que tient l’homme pour un être complexe, de qui la formation
provient de plusieurs facteurs. Aux éducateurs la responsabilité de formuler les projets
d’education, de définir les nouveaux objectifs et de tracer des stratégies mises en accord
avec les choix concernées aux objectifs sociauxs plus générals.
iv
Sumário
INTRODUÇÃO 1
1. O PROBLEMA 12. OBJETIVOS E QUESTÕES PARA ESTUDO 73. ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO 8
CAPÍTULO I: ANTECEDENTES DO PROJETO MODERNO 10
4. CONSOLIDAÇÃO E SUPERAÇÃO DE PARADIGMAS 104.1. A SOCIEDADE MODERNA E SUA RELAÇÃO COM A CRISE DE PARADIGMAS 104.2. CONCEITUAÇÃO DE PARADIGMAS 114.3 A CIÊNCIA NORMAL E A VIGÊNCIA DE PARADIGMAS 144.4. A IMPORTÂNCIA DO PARADIGMA NA RELAÇÃO DO HOMEM COM O MUNDO 164.5. CRISE E MUDANÇA PARADIGMÁTICA 184.6. MUDANÇA DE PARADIGMAS NA CIÊNCIA: A FÍSICA NO SÉCULO XX 214.7. TENDÊNCIAS ATUAIS DE MUDANÇA PARADIGMÁTICA 23
5. MODERNIDADE , MODERNISMO E VANGUARDA ARTÍSTICA 276. O IDEAL ILUMINISTA 30
6.1. CARACTERÍSTICAS DO ILUMINISMO E DA MODERNIDADE 306.2. INDIVIDUALIDADE 356.3. AUTONOMIA 396.4. RACIONALIDADE 41
CAPÍTULO II: A CONCRETIZAÇÃO DO PROJETO MODERNO E A PÓS-MODERNIDADE 46
7. SÉCULO XX: A CONCRETIZAÇÃO DA MODERNIDADE 467.1. MODERNIZAÇÃO CAPITALISTA 467.2. DESCRENÇA NO FUTURO 497.3. A ARTE E A MULTIPLICIDADE DE LINGUAGENS E SISTEMAS DE REPRESENTAÇÃO 517.4. CRÍTICA À RAZÃO MODERNA EM HORKHEIMER 547.5. CRÍTICA À RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇÃO EM HABERMAS 587.6. CRÍTICA À MODERNIDADE EM NIETZSCHE 64
8. A PÓS-MODERNIDADE 708.1. DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE PÓS-MODERNIDADE 708.2. A PÓS-MODERNIDADE E OS JOGOS DE LINGUAGEM 728.3. CARACTERÍSTICAS DA PÓS-MODERNIDADE 778.4. CONTRIBUIÇÕES DA PÓS-MODERNIDADE ÀS NOVAS TEORIAS SOCIAIS 84
CAPÍTULO III: EDUCAÇÃO 90
9. REPENSANDO A EDUCAÇÃO 9010. PÓS-MODERNIDADE E EDUCAÇÃO 9511. NOVOS OBJETIVOS EDUCACIONAIS 10012. IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO PARA A NOVA PRÁTICA EDUCATIVA 10613. REFORMULAÇÃO DOS CURRÍCULOS 11014. MODERNIZAÇÃO E QUALIDADE EDUCACIONAL 11315. ORIENTAÇÕÈS PARA NOVAS TEORIAS EDUCACIONAIS 117
CONCLUSÃO 120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 124
Introdução
1. O problemaPercebe-se, atualmente, nos meios de comunicação e em publicações e
discussões no meio acadêmico, preocupação com as mudanças sociais que têm
ocorrido devido ao desenvolvimento e uso extensivo da tecnologia em todos os
setores. A situação desta sociedade é descrita, comumente, como resultado da
decadência da sociedade moderna, manifesta pela descrença nas instituições
políticas, judiciárias, religiosas e pedagógicas que regulam a vida social. Existe o
consenso de que os ideais modernos, inaugurados com o Iluminismo no mundo
ocidental, passam por grave crise, e por isso, a sociedade tecnologizada e
informatizada é tema constante de debates. Esta sociedade é fruto de um paradigma,
inaugurado com a ciência moderna, que por alguns séculos tem predominado no
mundo ocidental, caracterizando-se por grandes avanços na ciência e na técnica, pela
industrialização crescente, pela crença no mito do progresso contínuo e melhoria da
qualidade e expectativa de vida.
Tópico constante nestas discussões é o estágio de crise que a sociedade
atravessa, facilmente percebido na deterioração das relações humanas, na freqüência
e alcance dos conflitos e atos de violência, e na proliferação da miséria; e ainda por
“indicadores de desemprego, marginalização e
deterioração dos serviços públicos de Saúde e de Educação,
inclusive nos países mais ricos do centro capitalista. No
entanto, evidencia-se ainda mais profundamente na inquietante
quebra de valores solidários, quebra essa manifestada no
reaparecimento do racismo, da xenofobia e da múltipla
expressão da violência social. (…) o ‘outro’ aparece cada vez
mais como alguém que incomoda, que é preciso afastar,
ignorar ou destruir.” (PLASTINO, 1994, p. 43)
1
Paralelamente, novas descobertas científicas têm posto em dúvida alguns
conceitos e fundamentos básicos que ajudam o homem a se situar no mundo e a
compreendê-lo. A interpretação da crise como momento de transformação
paradigmática resultando em tensionamento nas relações sociais − claramente
perceptível no dia-a-dia por seus efeitos destruidores e alienantes − remete à
necessidade de identificação dos valores fundantes desta mesma sociedade. O
enfraquecimento da fé no progresso da ciência e da técnica, assim como a ameaça às
liberdades individuais são responsáveis pela descrença no progresso contínuo típica
da era moderna, e que se anuncia, muitas vezes, como descrença generalizada,
niilista. A própria noção de progresso dissolve-se em pontos de vista político-
ideológicos diversos. Rouanet (1993) afirma:
“O que está em crise é o projeto moderno da civilização
elaborado pela ilustração européia a partir de motivos da
cultura judeo-clássico-cristã e aprofundado nos dois séculos
subseqüentes por movimentos como o liberal-capitalismo e o
socialismo”. (p. 9)
Afirmar que a modernidade já está superada, e que é necessária nova
estruturação social é, ainda, tema contraditório. Os elementos constituintes da
sociedade moderna, como a racionalidade, individualidade e emancipação, são
criticados por diversos autores − que se apresentam como pós-modernos − por terem
se tornado, na prática, ferramentas a serviço do totalitarismo em suas diversas
manifestações (HARVEY, 1989, p. 23 ss).
Santos (1996) apresenta a tese de que a modernidade foi estruturada antes do
capitalismo ter se tornado dominante, de modo semi-independente e está sendo
questionada em um momento em que o capitalismo atinge sua maior expressão e
alcance. Isto ocorre através de um processo, ao mesmo tempo, de obsolescência e
superação. Parte dos valores que a modernidade defendia foram concretizados, com
conseqüências nem sempre desejáveis, e parte se perdeu ao longo do tempo. Alguns
2
destes mantêm sua atualidade − como a igualdade e justiça para todos − enquanto
outros são revistos.
O projeto da modernidade, a partir do século XIX, tornou-se vinculado ao
desenvolvimento do capitalismo, respondendo com mudanças internas a cada uma de
suas fases. Para Santos (op. cit.) a situação atual é a de um “capitalismo
desorganizado”, a que corresponde uma sociedade desequilibrada, que cumpriu, em
parte, os objetivos do projeto, e aponta como a única forma de resgatar os ideais
ainda considerados válidos, a emergência de paradigma diferente, que possibilite
nova significação desses valores. O mesmo autor entende que este momento de
transição é denominado pós-modernidade na falta de um nome melhor, uma vez que
a contemporaneidade das transformações impede a visão clara de suas
características. O século XX apresenta-se como um século frágil, infeliz, que
“tem-nos vindo a convencer … que, em vez de um século-
prodígio, nos coube um século idiota, dependente dos pais [os
séculos XVIII e XIX], incapaz de montar casa própria e ter uma
vida autônoma”. (SANTOS, op. cit., p. 75)
Rouanet (op. cit.), ao defender os ideais iluministas, afirma que a modernidade
não chegou a se concretizar plenamente, embora já existam correntes que a rejeitem
em busca de novo modelo. Ainda outros autores − como Habermas (1975), e, de certa
forma, Harvey (op. cit.) — quando evita comprometer-se radicalmente com o
paradigma pós-moderno e parte para a análise das contribuições de ambos os
modelos para a constituição de nova estrutura social − defendem a posição de que
não se trata de superar a crise provocada pela modernidade, mas sim de corrigir o
desvio ocorrido em sua implantação. Santos (op. cit.) aceita contribuições da
modernidade, mas defende sua reformulação, pregando a rejeição de alguns dos
ideais modernos e a reelaboração de seus conceitos e valores. Lyotard (1988) é mais
radical, e nega todas as idéias modernas. O Iluminismo e a modernidade contribuem
para a formulação de novo paradigma na medida em que seus fundamentos são
3
compreendidos como potencialmente danosos, ou apenas fruto de desvios em sua
concretização.
“A posição a tomar depende de como se explica o ‘lado
sombrio’ da nossa história recente e do grau até o qual
atribuímos aos defeitos da razão iluminista, e não à falta de sua
correta aplicação”. (HARVEY, op. cit., p. 24)
Santos (op. cit.) destaca que a complexidade do projeto da modernidade já traz
em si aspecto contraditório, derivado da tensão entre seus diversos objetivos. A
construção paradigmática e abstrata de valores como identidade, liberdade e
autonomia em oposição a outros como solidariedade, igualdade e justiça, cria a
necessidade de mútuas concessões e “compromissos pragmáticos” (p. 78), uma vez
que o projeto inicial visa, necessariamente, à concretização destes ideais.
Mesmo entre os que vislumbram um modelo pós-moderno de civilização, não
existe, até o momento, quadro conceitual consistente assinalando a superação dos
fatores crísicos que ameaçam o equilíbrio das sociedades e a manutenção da paz e
da justiça. Valores que, frutos do Iluminismo, ainda não perderam sua vigência.
Quer apontemos para uma sociedade pós-moderna quer para o resgate dos reais
valores modernos, a crise identifica-se com uma ruptura no tecido da cultura ocidental.
Seja qual for a posição adotada − e, principalmente, para que se possa escolher uma
posição conscientemente − é necessária a revisão do projeto de vida e de sociedade
ocidentais, o que levará a uma posição neomoderna de resgate do Iluminismo, ou à
sua erradicação total − tendência seguida por Lyotard (op. cit.) − com a instauração da
cultura pós-moderna.
Neste contexto em que a aplicabilidade de um paradigma é questionada sem a
existência de um sucedâneo, percebe-se a importância da educação: uma construção
social cujo objetivo primeiro tem sido o de transmitir conhecimentos e valores para as
gerações, formando os elementos que compõem o conjunto da sociedade.
Reconhecendo que a educação tem seu fundamento nas relações sociais mais
4
amplas e que seu objetivo principal é integrar o indivíduo a seu meio, torna-se
necessária a investigação das vertentes de pensamento que apontam para a
instauração de novo paradigma. Especialmente em sua contribuição para uma
educação mais eficaz; incluindo-se, ainda, a discussão da própria noção de eficácia.
“O alcance dos objetos que simbolizam o progresso se
expressa sempre em termos de eficácia — consegui-los
realmente — e de eficiência — não apenas conseguir os
objetos simbólicos, mas fazê-lo mediante o melhor uso dos
meios. A troca ... provém do fato de que os objetos desejados,
os que simbolizam o progresso, estão, por um lado, sempre
mudando — o culto do novo — e, por outro, a maneira de
consegui-los também está em permanente mudança.”
(CASASSUS, 1993, p. 7)
A discussão sobre a substituição de um modelo moderno de sociedade, ou
educação, por um outro pós-moderno será relevante por fornecer indícios do tipo de
mudanças que têm ocorrido.
Em uma leitura rápida e mesmo assistemática da produção literária específica da
área educacional, percebe-se a profusão de temas relacionados à Modernidade e
Qualidade em Educação, à Modernização e Tecnologia Educacional, e a outros
correlatos. Temas que retratam a inquietação de todos os envolvidos com os atuais
rumos do processo educativo, e a preocupação em preparar os educandos para uma
sociedade profundamente tecnologizada e complexa, e ainda, em modernizar a
educação buscando sua inserção em uma sociedade global composta por diferenças
culturais marcantes que caminha no sentido da integração cultural, social e
econômica; e, ainda, pensando na modernização técnica da prática educacional ou,
em outro sentido, na visão da educação como meio para a melhoria das condições
sociais, encarando a modernização como o caminho para a construção de uma
sociedade referenciada no futuro, conforme aponta Casassus (op. cit.) e Demo (1993,
5
p. 20): “Modernizar significa o desafio que o futuro acena para as novas gerações, em
particular seus traços científicos e tecnológicos”.
Outras vertentes apontam para uma pedagogia crítica que desvele as relações de
dominação provocadas pelos discursos hegemônicos típicos da modernidade, e
alertam para o potencial niilismo resultante da radicalização das idéias pós-modernas,
como em Giroux (1993) e Silva (1993).
Por outro lado, a quantidade de informações e estímulos a que estão sujeitos
todos os membros de uma sociedade cresce a cada dia, e não é possível negar seu
potencial educador pela atração que exerce sobre todos. A cultura do espetáculo, da
massificação dos sentidos, levanta novas questões sobre o significado ético ou moral
do que é transmitido pelos meios de comunicação de massa, e problematiza a
questão dos valores éticos sobre os quais a sociedade é construída.
Ao educador é necessário reconhecer as mudanças e repensar o processo
educacional tendo em vista as diversas influências externas sobre o educando que o
avanço dos meios de comunicação possibilita. Com atenção especial ao sentimento
de impotência que as afirmações pós-modernas sobre a fatuidade da realidade e do
próprio sujeito produzem.
Esta análise leva a dois rumos paralelos de reflexão. Um deles, iniciado nos
Estados Unidos já há algum tempo, busca “vincular a formação escolar com formas
específicas de produtividade, na teoria e na prática” (ASSMANN, 1993, p. 3), em
estreito relacionamento com a ideologia do Mercado Total, resultando em correntes
que defendem a modernização da prática educacional. Outro, que destaca o papel da
educação como “formadora de sujeitos humanos (ibid., p. 12), preocupando-se com a
formação da cidadania e da própria identidade. Estas duas tendências partem de uma
realidade dada e, ao interpretá-la, buscam significar a ação educativa, com resultado
diverso e, por vezes, oposto.
Um terceiro aspecto da relação educação-sociedade surge ao analisá-la
criticamente para, se necessário, atuar de forma a modificá-la, através da percepção
6
de que não é apenas necessário adaptar a educação às condições da realidade, mas
de rediscutir a própria educação como um todo, como destaca Assmann (op. cit.),
além de se discutir o conceito de realidade. E procurar um modo de responder a
questões que as atuais teorias educacionais − e as de ciências correlatas − não
atendem, ou, mesmo, levantar questões inéditas. O que reconduz à reflexão sobre a
mudança de paradigma que suscita estas questões, assim como o entendimento do
processo que levou a sociedade moderna ao atual estado crísico em que se encontra,
questionando todas as “manifestações e expressões de vida pública” como afirma
Giroux (op. cit., p. 42) e redefinindo o significado de escolarização.
Neste estudo os princípios básicos da modernidade deverão ser identificados e
verificada a forma como ocorre a interação entre educação e as demais práticas de
uma sociedade moderna.
2. Objetivos e Questões para estudo
A relação estreita das metas educacionais com as expectativas da sociedade
tornam necessária a compreensão destas últimas a fim de que se possa definir as
primeiras.
A vida em um mundo tecnológico implica novas relações com o cotidiano e com o
trabalho, e ambas implicam renovadas demandas educacionais. Sendo assim este
estudo buscará inicialmente identificar na estrutura formadora do pensamento
moderno os pontos críticos que se colocam como obstáculos para o desenvolvimento
das relações sociais, entendidas no sentido da melhoria de qualidade de vida dos
homens em geral, e a partir desta identificação, destacar os fatos que apontam para
uma mudança paradigmática nas relações sociais. E, por fim, identificar as novas
tendências educacionais que atendem ao paradigma social que se configura.
Para refletir sobre os objetivos declarados acima, as questões que se apresentam
são: Quais os princípios formadores da sociedade moderna? Tais princípios foram
concretizados plenamente de acordo com seu projeto original? De que forma são
7
constituídas as teorias sociais propostas como substitutas ao paradigma da
modernidade? Quais as teorias e metas educacionais propostas que se adequam às
tendências identificadas no novo paradigma social?
3. Organização do trabalho
Esta dissertação será dividida em três momentos principais, tendo a sua
construção um foco de interesse no estudo que vai desde a discussão sobre a
modernidade, até a análise da educação segundo a abordagem que se apresenta na
sociedade atual.
O primeiro capítulo relaciona-se à definição de conceitos primordiais para o
encaminhamento da discussão central deste estudo, que é a nova sociedade fruto da
substituição ou transformação paradigmática, o que será tema dos quatro itens
iniciais. O primeiro deles aborda os diversos significados que o termo paradigma
assumiu em diferentes momentos históricos, assim como seu sentido mais comum,
ligado ao campo científico. Ainda no primeiro item será discutido o modo como os
paradigmas são constituídos e legitimados, e sua relevância para o homem e suas
relações; e, por fim, as tendências percebidas para a construção do paradigma pós-
moderno. O segundo item, visa esclarecer a diferença entre termos usados
comumente com sentidos muito próximos, e que serão bastante discutidos ao longo
do estudo: modernidade, Modernismo e vanguarda. No terceiro, é traçado um
histórico das características fundamentais que compõem o projeto da modernidade,
originadas no Iluminismo.
O segundo capítulo é composto de dois itens: no primeiro, examina-se o modo
como os princípios modernos foram concretizados na realidade, e a forma como o
capitalismo tornou-se conceito indissociável da sociedade moderna, juntamente com
idéias de autores que defendem e criticam o projeto moderno. No último item, são
destacados os pontos principais que caracterizam as novas teorias de tendência pós-
moderna.
8
O terceiro e último capítulo trata da teoria e prática educativas, seus fundamentos
e críticas, e a avaliação dos rumos teóricos percebidos para o futuro. A análise será
realizada pela comparação entre a idéia moderna sobre o que constitui a educação,
as mudanças decorrentes da adoção das tendências sociais pós-modernas, e a
configuração paradigmática que se assinala para a adequação da educação à nova
realidade social que se concentra em duas principais orientações: a modernização
educacional, enfocando o que se entende por modernização, e a formação do
indivíduo integral, com ênfase na valorização do diálogo.
Ao final, são apresentadas conclusões sobre o estudo, e apontadas algumas
linhas de investigação teórica para dar prosseguimento às transformações
educacionais necessárias ao novo quadro social apresentado.
9
Capítulo I: Antecedentes do Projeto Moderno
4. Consolidação e superação de paradigmas
4.1. A sociedade moderna e sua relação com a crise de paradigmas
A situação de crise configura-se por um desgaste das relações sociais e está
relacionada a qualquer alteração na normalidade de um processo, correspondendo a
“um aumento da desordem e da incerteza no seio de um
sistema (individual ou social). Essa desordem é provocada por
e provoca o bloqueio de dispositivos organizacionais
reguladores, determinando neles rigidez e desbloqueio de
virtualidades até então inibidas”. (MORIN, 1984, p. 154)
Na definição acima, revelam-se dois pontos importantes para reflexão: o primeiro
relaciona-se ao desconforto dos indivíduos frente à alteração das situações
cotidianas, oriundo da desordem do sistema ; e o segundo, ao surgimento de novas
relações que passam a ordenar o corpo social. Este último, em especial, fornece os
elementos para a superação das situações de crise que, eventualmente, as
sociedades atravessam, oferecendo a possibilidade de análise e renovação deste
processo, não implicando sempre desorganização, mas também reorganização. Kuhn
(1982), assim como Morin (op. cit.), identifica as situações crísicas com momentos de
busca de novas soluções, pontos de origem de possíveis evoluções no conhecimento
científico e nas relações sociais, e atividades criativas. Tomando como exemplo a
negação dos fundamentos da ciência, no século XVII, temos como resultado o
acréscimo de conhecimento e explosão de novas teorias que serviram para fecundar
ainda mais sua prática.
A crise contemporânea é universal, atua em todos as áreas − política, moral,
ciência, técnica, arte e religião −, revela-se em todos os meios de comunicação e nas
conversas cotidianas, afetando o homem tanto individual quanto coletivamente,
configura-se como crise que afeta todas as certezas e relações humanas. Em
10
especial, num dos aspectos mais visíveis da sociedade que se identifica como
tecnológica e/ou da informação: sua base científica. O desgaste nas relações sociais,
por sua gravidade e extensão, indica mudança profunda em seus moldes básicos,
atuando sobre o próprio fundamento da sociedade, de acordo com o paradigma
adotado.
4.2. Conceituação de paradigmas
O termo paradigma, originalmente, significa modelo ou padrão, e assume na
filosofia sentidos diferenciados.
Desde as mais antigas culturas, o homem tem buscado se libertar do jugo do
acaso através da elaboração de categorias de conhecimento, que ora buscam a
compreensão, ora a previsão e o relativo controle dos eventos naturais a que está
sujeito. Estas categorias assumiram primitivamente caráter mítico, suprindo a
necessidade básica de entender o mundo, e foram estabelecidas a partir de intuições
da realidade e expressas através de narrativas simbólicas. Já nesta etapa a função do
mito é a de estabelecer os ritos sociais e ordenar as atividades humanas, adotando,
desde então, sentido modelar.
Na Grécia, as questões se voltam para o fundamento de todas as coisas, não se
concentrando apenas nas relações e nos eventos, mas na própria essência de cada
objeto ou fenômeno natural. As respostas não são encontradas através de intuições,
mas na estrutura mais complexa do pensamento. Pelo uso da razão, os gregos
buscaram compor estruturas lógicas baseadas em conceitos bem definidos e
coerentemente articulados, freqüentemente sujeitos à discussão como forma de
manter sua coerência e verdade. A veracidade de uma teoria respondia, então,
apenas à sua lógica constitutiva.
A visão de mundo encontrada em Platão relaciona todos os objetos a modelos
ideais: conceitos que existem a priori da nossa percepção não sendo construídos pela
11
razão, mas por ela reconhecidos como a própria essência de cada ente do mundo da
matéria. É modelo puramente abstrato.
Analisando mais profundamente este sentido, Plastino (op. cit.) alerta para a
relação etimológica existente entre visão e idéia, que tem origem, em grego, no verbo
ver; estendendo o conceito à percepção dos objetos, tanto na forma como esta ocorre
quanto no aspecto oferecido por estes mesmos objetos. Consideração que remete ao
sentido moderno de paradigma centrado na observação do real. Em Platão, ao
contrário, a idéia pura é inatingível, pode apenas ser concebida pela mente, de forma
imperfeita.
Descartes seguiu a orientação platônica das formas puras, embora acreditasse
que o exercício da racionalidade estaria sempre ligado a utilidades práticas, visando
ao controle da natureza, e deveria concorrer para a felicidade e bem-estar terrenos:
“Pois elas [noções gerais relativas à Física] me fizeram crer
que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis
à vida, e que … poderíamos empregá-los da mesma maneira
em todos os usos para os quais são próprios e assim nos
tornar como que senhores e possuidores da natureza”.
(DESCARTES,1983, p. 63)
Toda a sua teoria volta-se para objetivos práticos: o de conduzir os estudos
científicos e ordenar as ações humanas. É através da obediência a um método
determinado que o pensamento pode alcançar o conhecimento verdadeiro, livre das
ilusões e desvios ocorridos quando da percepção direta das coisas. O paradigma
cartesiano, elaborado a partir das “idéias claras e distintas”, consiste em universo
finito, contínuo e sujeito a leis uniformes no qual os conhecimentos seriam somente
alcançáveis através da racionalidade guiada pelo método anunciado.
Em Descartes, o paradigma assume duas conotações distintas: a primeira
associada a um modelo de universo construído na teoria e a segunda está ligada ao
próprio sentido de método, um modelo para toda investigação científica. Estas duas
12
significações do termo até hoje se confundem na determinação do que seja o
paradigma. Para as ciências, de modo especial, ambas são igualmente relevantes. O
modelo cartesiano de universo foi refutado, em parte, durante o processo de
constituição da ciência moderna − especialmente quanto à sua dependência de um
Deus criador onipotente, e a ausência das relações temporais de causa e efeito entre
os eventos −, mas sua estruturação lógica e coordenada de conceitos fundantes
tornou-se vital para o desenvolvimento da ciência até os dias de hoje.
Nos séculos XVI e XVII, com a Revolução Científica, o conceito de paradigma
identificou-se mais com o conhecimento teórico sobre os objetos e suas relações do
que com suas características imanentes; radicando-se no sujeito conhecedor, numa
racionalidade subjetiva. As bases da nova ciência foram fundadas “no próprio
indivíduo, em sua natureza sensível e racional” (MARCONDES, 1994, p. 19). Uma
característica importante deste novo paradigma é seu aspecto investigativo,
questionador, que o diferenciou dos anteriores baseados na tradição. Para tanto fazia-
se necessária a autonomia da consciência individual.
No Iluminismo, o novo tipo de relação do homem com o mundo atingiu seu ápice,
com a razão, a autonomia e a subjetividade embasando todo o pensamento iluminista
e, posteriormente, moderno. Esta nova racionalidade iria privilegiar a experiência e os
sentidos, determinando um modelo de mundo quantitativamente definido. A laicização
do saber, conjugada à matematização dos fenômenos naturais inaugura nova etapa
de produção de conhecimento, configurando ruptura de paradigma.
Diversas teorias surgem para definir o método de investigação na ciência,
privilegiando a dedução, a indução ou a analogia, todas estas entretanto baseiam-se
em modelos teóricos, sujeitos à experimentação.
4.3 A ciência normal e a vigência de paradigmas
Para Kuhn (op. cit.), uma das características determinantes da ciência “normal” é
a sua relação com um modelo norteador que possibilita a própria investigação
13
científica: “A ciência normal … é baseada no pressuposto de que a comunidade
científica sabe como é o mundo” (p. 24). Ciência normal, para o autor, é a ciência
desenvolvida durante o período de vigência de um paradigma. Neste sentido, irá
consistir em: “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum
tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de
praticantes de uma ciência” (ibid., p. 13); ou, ainda, “uma comunidade científica
consiste em homens que partilham um paradigma” (p. 219).
Percebe-se, assim, que o paradigma se revela como construção teórica, baseada
em fenômenos materiais, que depende da aceitação de um grupo de indivíduos para
que possa manter-se, até a ruptura para o surgimento de um novo paradigma. Nesta
interpretação, apresenta-se com conotação ideológica e valorativa relevante. Atinge
radicalmente a relação do homem com o mundo, não apenas em uma reinterpretação
da natureza à luz de novas regras, mas de verdadeira reconstrução da maneira como
se dá a percepção, pois esta é, também, definida pelo paradigma:
“Alguma coisa semelhante a um paradigma é um pré-requisito
para a própria percepção. O que um homem vê depende tanto
daquilo que ele olha, como daquilo que sua experiência visual
prévia o ensinou a ver. (KUHN, op. cit., p. 148)
É razoável supor que a aceitação de um novo paradigma não é imediata, faz-se
necessário testar a nova teoria em diferentes situações para que sua validade seja
reconhecida. Neste ínterim, a existência de teorias conflitantes é natural. No estudo da
história das ciências, Kuhn (op. cit.) estabelece que houve, em várias épocas, a
coexistência entre paradigmas opostos e mesmo contraditórios, somente no momento
em que uma teoria responde a maior número de questões, sendo aceita pela maioria,
é que ela converte-se em paradigma.
Esta aceitação não depende unicamente de critérios científicos, a sociedade
como um todo, e o cientista enquanto membro desta sociedade, devem estar prontos
para a mudança paradigmática. Segundo Morin (op. cit.), a “certeza objetiva” oriunda
14
de um sistema teórico alia-se a um “compromisso subjetivo”, que provoca a defesa
fervorosa das novas “verdades” estabelecidas. Uma vez aceito o novo paradigma,
todas as pesquisas subseqüentes são realizadas em seu âmbito: o novo conjunto de
conceitos define, por extensão, novo conjunto de questões a serem estudadas, que
compõe o quadro da produção científica, de acumulação de conhecimentos. Aqui, o
paradigma resulta em conjunto de critérios determinando o tipo de questões que se
deve investigar, correspondendo a regras de investigação, ainda que sujeitas a
diferentes interpretações. E é este sentido que predomina nas ciências.
Segundo Kuhn (op. cit., p. 60):
“um paradigma pode até mesmo afastar uma comunidade
daqueles problemas sociais relevantes que não são redutíveis à
forma de quebra-cabeças, pois não podem ser enunciados nos
termos compatíveis com os instrumentos e conceitos
proporcionados pelo paradigma”.
Devido a esta característica, entre outras, o cientificismo − entendido como a
crença no poder da ciência para resolver todos os problemas da humanidade e
satisfazer a todas as suas necessidades − pôde se desenvolver tão plenamente a
partir do século XVII. A ciência moderna tornou-se eficiente no tipo de questões a que
se propôs responder, não obstante suas conseqüências danosas em outros aspectos
da vida humana.
Na definição platônica, o modelo ideal, ligado à essência dos objetos, assumia
caráter normativo que excluía qualquer possibilidade de superação ou ausência de
paradigmas. No conceito de Kuhn (op. cit.), entretanto, um determinado paradigma
não é definitivo. Com o tempo surgem novas questões a que o paradigma anterior não
consegue responder. A exigência da mudança paradigmática é fruto, então, da
inadequação da teoria aos fatos. Esta inadequação pode se dar de duas formas:
através de causas internas decorrentes de desenvolvimento teórico e metodológico,
ou causas externas, devido a mudanças na sociedade e cultura. Há que se notar,
15
ainda, que o desenvolvimento científico provoca acréscimo em saber tecnológico que,
por sua vez, incrementa este mesmo desenvolvimento; e as mudanças científico-
tecnológicas afetam a cultura e a sociedade onde ocorrem, vindo a sofrer a influência
destas modificações sócio-culturais. Existe, então, uma dinâmica de interação sempre
presente entre a produção científica, a tecnologia e a sociedade.
4.4. A importância do paradigma na relação do homem com o mundo
Os paradigmas assumem tal importância que mudanças em sua composição
correspondem a revoluções, em paralelo com as revoluções políticas. Estas são
sempre precedidas por períodos de insatisfação com as instituições vigentes: “o
sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito
para a revolução” (KUHN, op. cit., p. 126). Da mesma forma, a falta de padrão
conhecido que possa ajudar o homem a compreender as interações a que está
sujeito, com a natureza e com os outros homens, provoca profunda insegurança: a
ameaça do “acaso” torna a aparecer.
A substituição de um paradigma corresponde à renúncia a verdades até então
determinantes nas relações do cientista com o mundo físico; e do homem com seu
meio. O “silêncio dos espaços infinitos” que apavorava Pascal ilustra perfeitamente
este sentimento, assim como, neste século, a afirmação de Einstein quanto à
realidade da nova Física:
“Era como se o solo tivesse sido retirado de sob nossos
pés, sem que se conseguisse vislumbrar qualquer base sólida
sobre a qual pudéssemos erguer alguma coisa”.
(EINSTEIN apud CAPRA, 1983, p. 47)
A perplexidade advinda da ausência de um modelo de mundo − ou do sistema de
crenças que constituem este modelo −, leva os homens a buscar algum aspecto que
possa garantir minimamente sua segurança.
16
A consolidação e superação de paradigmas resulta em insegurança radical que
permeia todas as relações humanas. Pelo enfoque da psicologia, vemos que a
adoção de um novo paradigma não é suficiente para restabelecer no homem a
confiança na razão como instrumento para sua interação com o mundo. Existe a
possibilidade de que estes novos paradigmas também sejam superados
posteriormente. Não se trata somente da substituição de uma verdade por outra mais
eficiente, mas da forma como o homem vivencia esta situação.
Neves (1994) relaciona a angústia experimentada nestes momentos com a
reativação dos “medos básicos” do homem: “medo do retorno ao estado confusional
inicial de sua vida”, “medo do ataque do novo” e “medo da perda do que já estava
estabelecido” (p. 50). O paradigma não tem somente a função de permitir a
compreensão do mundo exterior, mas, também, o autoconhecimento. Na própria
formação e consolidação das culturas, os modelos ou ritos sociais assumiram papel
de relevo, proporcionando aos homens a segurança que advém do conhecimento da
posição que ocupam no mundo e das relações a que estão sujeitos, e como
responder a elas.
Estabelecido o quadro de crise, o homem irá procurar superá-lo de duas possíveis
maneiras, ainda segundo a autora citada acima: “pela transferência da
responsabilidade da veracidade da crença para o peso da fundamentação teórica …
e/ou pela transferência dessa responsabilidade para o outro” (idem). E aponta para
uma terceira, do homem tornar-se “sujeito conhecedor, a partir de uma posição crítica
sobre os paradigmas que se estão instaurando” (p. 51).
Qualquer uma destas formas deve permitir a comunicação entre os homens,
sendo necessária uma base comum que permita sua efetivação. Esta é outra função
do paradigma, prover os homens de um modelo com o qual se identifiquem e a partir
do qual a relação interpessoal possa se dar.
17
4.5. Crise e mudança paradigmática
No século XVI, a inadequação do paradigma ligava-se à incongruência
encontrada entre a observação da natureza e as verdades estabelecidas, então, pela
fé religiosa quanto ao sistema de mundo. Esta revolução, a mais marcante na
constituição da sociedade moderna, começa pela construção de um novo modelo de
mundo, indo além da consideração de fenômenos puramente físicos, sendo
“sobretudo uma crise metodológica, que afeta uma
concepção tradicional de método científico, bem como uma
crise de visão de mundo, de concepção da natureza e do lugar
do homem, enquanto microcosmo, nesta natureza, o
macrocosmo.” (MARCONDES, op. cit., p. 18)
A natureza, assim como a cultura, era explicada, anteriormente, sobre base
transcendental. A visão do Deus criador de Descartes, que justifica a existência e
permanência de todas as coisas, é substituída pela de um Deus que dota sua criação
de leis naturais que mantêm em funcionamento a máquina do mundo. Este sistema de
mundo, não hierarquizado, provoca mudanças em todas as esferas: éticas, estéticas,
religiosas, etc.
Em Kuhn (op. cit.), a crise está ligada à ocorrência de “anomalias” na pesquisa
científica, o fracasso em encontrar soluções novas no âmbito do paradigma em vigor.
Seu significado “consiste exatamente no fato de que … é chegada a ocasião para
renovar os instrumentos” (ibid., p. 105). Kujawski (1988) a identifica como sendo crise
do cotidiano, no qual as nossas relações e ações normais − que classifica como:
trabalhar, habitar, comer, passear e conversar − são exercidas. A estranheza dessas
atividades comuns produz, então, o desconforto típico das situações crísicas, que se
desdobra em três aspectos: “a crise de identidade do homem contemporâneo”, “a
crise de familiaridade com o mundo” e a “crise de segurança”. Estas categorias têm
significados bem próximos aos dos “medos básicos” assinalados por Neves (op. cit.).
18
A humanidade tem sempre passado por modificações em sua forma de ver e
viver o mundo. Estas mudanças são naturais e inerentes à natureza humana e suas
estruturas sociais. A crise provoca ruptura revolucionária quando não apresenta
alternativa ao conjunto de certezas que abala.
A transição entre diferentes paradigmas, como já foi mencionado anteriormente,
não é isenta de conflitos. No período em que um novo paradigma ainda não foi
totalmente aceito, outras teorias surgem, provocando, comumente, a disputa entre
seus partidários, o que é explicado pela não existência de categoria superior na qual
os diferentes paradigmas sejam analisados e comparados. Sua defesa é feita a partir
de suas próprias definições, que abrangem desde o tipo de questões a que o
paradigma deve responder, até a forma como as respostas são alcançadas. Nesta
etapa, muitas teorias diferentes, e até mesmo contraditórias, são enunciadas, todas
potencialmente válidas:
“Na ausência de um paradigma ou de algum candidato a
paradigma, todos os fatos que possivelmente são pertinentes ao
desenvolvimento de determinada ciência têm a probabilidade de
parecerem igualmente relevantes.” (KUHN., op. cit., p. 35)
E, até que alguma delas prove ser a verdadeira, está configurado o quadro
crísico. A própria decisão de superar um paradigma já traz em si a decisão de aceitar
outro, a ciência não sobrevive sem seus modelos norteadores, sempre baseados no
que consideram certo e verdadeiro. Qualquer fenômeno que questione o conjunto de
conceitos aceitos e já comprovados na prática, é profundamente investigado, a partir
destes mesmos conceitos, até a exaustão.
Ainda na mesma obra, Kuhn conclui com importante reflexão a respeito do
progresso da ciência. Durante a maior parte do período moderno, a ciência, enquanto
fruto dileto da razão, foi aceita como a fonte das respostas que permitiriam ao homem
alcançar grau mais avançado de conforto e bem-estar. Mas, se a ciência não é
acumulativa, passando por momentos de ruptura e revoluções, o progresso só é
19
positivo durante a vigência de um paradigma estável, e somente quando avaliado de
acordo com seus parâmetros. Portanto, o significado de progresso e evolução da
ciência perde o sentido: “o que poderiam significar ‘evolução’, ‘desenvolvimento’ e
‘progresso’ na ausência de um objetivo especificado?” (KUHN, op. cit., p. 215). A
ciência moderna instituiu um modo de atuação que isolou a comunidade científica das
preocupações com os problemas sociais: sua responsabilidade e incumbência única
vinculavam-se à acumulação de conhecimentos científicos, validados por sua lógica
interna e em conformidade com a experimentação.
Esta realidade concreta, perceptível na análise da sociedade atual, não é a única
acepção possível do conceito de paradigma, apenas a feição que assumiu
historicamente. O determinismo científico advindo, principalmente da Física, permitiu a
fixação de leis universais que explicassem o presente, conseqüência do passado, e o
futuro, através das interações do presente. Desta forma, as mudanças faziam parte de
um mesmo sistema, em constante evolução, mas sem rupturas marcantes. A própria
Física é, em grande parte, responsável pela transformação deste modo de ver o
mundo − assim como ocorreu nos séculos XVI e XVII − pela introdução de novos
conceitos que abalam a estrutura estável e bem montada da concepção de mundo em
vigor. No tópico a seguir, será analisado como a nova concepção da Física resulta em
mudança de paradigmas para toda a ciência.
4.6. Mudança de paradigmas na ciência: a Física no século XX
Capra (1983) apresenta quadro analítico sobre a mudança de paradigma
perceptível na Física que se constrói no século XX, através de seis critérios de
pensamento aplicáveis a todas as ciências. Critérios estes provenientes de sua
reflexão sobre as últimas realizações científicas.
O primeiro diz respeito à relação entre as partes e o todo. Na Física clássica,
apoiada em Descartes, existiam elementos fundamentais componentes de todos os
objetos e fenômenos perceptíveis na realidade. Para a compreensão de qualquer
20
sistema mais complexo, era necessário dividi-lo em suas partes elementares. Na
Física moderna, as partes só têm sentido quando inseridas no todo, através de
relação dinâmica: o fundamento é o todo. Esta é a direção geral dos paradigmas que,
atualmente, defendem a visão holística da natureza e do homem.
O segundo assinala a mudança de enfoque do pensamento, transferido da
estrutura para o processo. Toda a investigação científica definida anteriormente pela
busca das estruturas fundamentais volta-se agora para o desvelamento das relações
processuais, de quem as primeiras são apenas padrões ou manifestações. Esta
interpretação dos objetos à luz de relações dinâmicas, introduz o sujeito, ou
observador, como elemento definidor dos padrões − que é o terceiro critério citado por
Capra −, pois, “o que você vê depende de como você olha para ele” (op. cit., p. 245).
Introduz-se, assim, mudança essencial no paradigma, pois a ciência física não é mais
puramente objetiva, independente do sujeito e processo de conhecimento, mas deriva
do próprio sujeito. O entendimento da relação entre realidade e sujeito é fruto do
pensamento filosófico do final do século XIX e início do século XX, como sugere
Plastino (op. cit., p. 33):
“o tempo, o sujeito e a história se transformam em fatores
imprescindíveis para a compreensão do ser e da
transformação, parâmetros ineludíveis para a construção do
conhecimento”.
O quarto critério, diz respeito à metáfora da ciência como construção, ou
edificação humana, alicerçada sobre bases sólidas e construídas bloco a bloco com a
aquisição de novos conhecimentos. Esta é substituída pela “metáfora da rede”, em
que cada nó se interrelaciona com os demais, num todo contínuo, e interdependente.
Como a percepção da realidade se faz através de um corte, efetuado pelo observador,
na “teia de relações”, a realidade não pode mais ser totalmente apreendida. Não
existem verdades a serem alcançadas pelo pensamento, apenas descrições parciais
da mesma, e este é o quinto critério de pensamento.
21
No último critério, o autor apresenta a idéia de que para a superação dos atuais
problemas causados pela tecnologia, a única saída será substituir a “atitude de
dominação e controle da natureza, incluindo os seres humanos, para um
compromisso cooperativo e de não-violência” (op. cit., p. 247).
Não é sem motivos que essa mudança paradigmática tem trazido tensões tão
fortes para o seio da sociedade, já que conceitos básicos são derrubados e
substituídos por teorias aproximadas e de difícil compreensão quando analisadas
segundo o paradigma anterior e baseadas na experiência dos sentidos.
Da mesma forma como havia ocorrido anteriormente, as mudanças no campo da
Física influenciam diversas outras áreas, tanto nas ciências quanto na filosofia, pondo
em questão a própria existência de um mundo objetivo estável, sujeito a evolução
constante, o qual a teoria descreve e explica. Não é apenas crise metodológica, mas
epistemológica. A teoria, ou a busca de conhecimentos, é percebida como
historicamente produzida, sua formulação depende das circunstâncias do sujeito
conhecedor, sua prática social, suas “opções éticas” (PLASTINO, op. cit., p. 46).
4.7. Tendências atuais de mudança paradigmática
Nos campos da ciência dedicados ao estudo do homem, como a Antropologia, os
novos modelos e teorias científicas implicam maior complexificação oriunda da
introdução de elementos como a “indeterminação, a desordem e o acaso como
fatores de organização superior” (MORIN, op. cit., p. 29) das estruturas societárias
humanas.
Plastino (op. cit.) aprofunda mais o debate ao introduzir a discussão sobre a
própria conceituação de paradigmas, baseado no questionamento da crise como “de
paradigmas” ou “dos paradigmas”. A superação do paradigma, aponta para dúvida
mais profunda: da própria possibilidade de existência de um paradigma hegemônico
constituinte do pensamento teórico. Se a realidade não é dada em si mesma, mas
fruto da intervenção de um observador, como determinar um modelo que abarque
22
todas as possíveis relações? Para esta questão, são apontadas inúmeras respostas,
uma delas, já mencionada acima, refere-se a um paradigma que privilegie as relações
de um todo não redutível a partes componentes elementares. Outra, derivada da
compreensão do paradigma como possibilidade de interação do homem com o
mundo, indica caminhos de ação, não devendo cristalizar-se em normas rígidas e
imutáveis, posto que se trata de construções teóricas para aproximação do real:
“esses paradigmas devem ser vistos como modelos
apenas balizadores, essenciais à construção que o homem
está realizando do real ou de si próprio, mas nunca tomados
com a investidura de absolutos, cristalizados.”
(NEVES, op. cit., p. 52)
Essa concepção engloba a teoria de que o saber é historicamente construído,
associado intimamente à experiência e aos valores defendidos pelos homens, e não
determinado por realidade externa autônoma. Kujawski (op. cit.), igualmente, aponta
para a função orientadora do paradigma, que relaciona à utopia:
“Aquela atitude de querer realizar formalmente a utopia na
vida, princípio de todo radicalismo…tem de ceder à disposição
essencialmente heurística para com a utopia, fazendo dela uso
regulativo…” (p. 28).
Todas estas teorias apontam nova direção, mas nenhuma delas está ainda
suficientemente estabelecida para guiar as ações humanas e garantir a saída para os
problemas hoje enfrentados em todas as sociedades. Mas este é um fator que pode
ser usado positivamente, como foi citado no início deste capítulo, para a discussão
das alternativas e a consideração dos valores que são necessários para a consecução
dos objetivos almejados. E, ainda, a definição mesma destes objetivos.
Em relação aos sinais do novo paradigma, Santos (op. cit.) identifica três áreas de
interesse principais: “conhecimento e subjetividade, padrões de transformação social,
poder e política” (p. 327).
23
Na primeira área, o novo paradigma aponta para diversas formas de
conhecimento em oposição a uma única, hegemônica, que é característica da
modernidade. A ciência moderna sustenta e é sustentada por um tipo específico de
organização social, que valoriza o aspecto econômico das relações sociais e
necessita, cada vez mais, de implementos tecnológicos para sua manutenção e
desenvolvimento. Logo, a outros tipos de organização corresponderiam novas formas
de conhecimento; algumas destas preexistentes e marginalizadas ao longo do tempo.
A busca de alternativas epistemológicas passa pelo resgate de práticas sociais das
minorias — qualquer que seja sua identidade —, e não tem o sentido de preservar as
culturas alternativas, mas de possibilitar a emergência de modos de conhecimento
que venham a compor paradigmas alternativos que possam concorrer entre si.
A adoção de um ou outro paradigma depende de sua capacidade de
convencimento que, por sua vez, é fruto da habilidade argumentativa de seus
defensores. Sendo assim, a linguagem e a forma de organização de pensamentos
assumem papel de destaque; o discurso argumentativo torna-se ponto complexo na
elaboração dos paradigmas, pois diferentes grupos culturais dispõem de diferentes
signos para efetuar a comunicação. Daí a necessidade de abrir mão, primeiramente,
da hegemonia do discurso científico moderno para tentar compreender e analisar
discursos alternativos. Isto implica abrir mão de uma característica fundamental
daquele discurso, que é sua pretensão à validade universal e conseqüente
intemporalidade. A primeira conseqüência desta mudança de atitude frente à
diversidade cultural é a superação da idéia de que existem conhecimentos primitivos e
desenvolvidos, oriundos de culturas assim classificadas; todos são complexos em sua
estruturação, apenas com enfoque e valores diferenciados.
Ainda outra característica recorrente do novo paradigma é a reabilitação dos
sentimentos e paixões como elementos necessários à toda mudança social. O
sentimento pessoal de engajamento e compromisso com as transformações que se
fazem necessárias só pode ser desenvolvido através da construção de uma nova
24
subjetividade. Esta deverá ser multidimensional para atender às diversas solicitações
que o sujeito recebe em diferentes momentos de interação social, o que implica a
superação da racionalidade instrumental como a única fonte de verdade. A razão
deverá tornar-se, portanto, novamente plena, englobando seus sentidos ético e
estético.
Acima de tudo, a mais importante tendência do novo paradigma, é a afirmação
positiva de suas intenções, ou seja, passar do campo da abstração modernista para a
ação efetiva: construir o sujeito livre e feliz que o projeto da modernidade apenas
idealizou. Somente assim poderá o novo paradigma ser uma alternativa real de
solução para os problemas atuais.
Quanto à outra área de interesse, a dos padrões de transformação social, Santos
(op. cit.) identifica duas tendências principais: a do “paradigma capital-expansionista”
e do “eco-socialista” (p. 335). Estas tendências têm ramificações que afetam as
relações de poder, uma vez que implicam a modificação de relações sociais vitais,
como a política e a econômica. A primeira tendência é reconhecida como a que tem
imperado durante a maior parte do tempo de vigência da modernidade; a segunda,
ainda não totalmente desenvolvida, prega o equilíbrio entre as necessidades humanas
individuais e coletivas, seguindo a mesma orientação, citada anteriormente, de
legitimidade enquanto formas alternativas de organização social.
A terceira área de interesse dos novos paradigmas é a do poder e política, a mais
vital para a realização da transformação paradigmática. Devido à variedade de origens
dos modelos alternativos de sociedade, a organização a nível do poder estabelecido
sobre como promover a competição entre os diferentes padrões torna-se muito
complexa. As soluções que se apresentam devem, para se tornarem eficazes, ter
alcance global, embora sua origem seja localizada. Sendo assim, o papel do poder e
da política é o de permitir a livre manifestação de todos os movimentos para que
possam, através da defesa de seus argumentos, legitimar-se; em suma, assumem
papel mediador. Por si só, a abertura do poder estabelecido a novas formas de
25
legitimação já traduz mudança na orientação da sociedade capitalista moderna,
fundamentalmente autoritária. Santos (op. cit.) aponta como característica do novo
paradigma, a democratização em todos os níveis de relação social, através de
domínios de autoridade partilhada.
Todas as tendências que os novos paradigmas seguem, devem ser investigadas
e discutidas à exaustão para que possam atender às demandas de um número cada
vez maior de membros da sociedade. O fórum por excelência para estas discussões
são as instituições de ensino e pesquisa, no sentido em que a educação adquira papel
de fecundar idéias mais do que o de transmiti-las.
5. Modernidade, Modernismo e Vanguarda Artística
A mudança de conceitos e hábitos que compõem a modernidade são mais
claramente percebidos na arte, cujas obras sempre prenunciam ou materializam
tendências ainda imperceptíveis na sociedade.
“O debate da modernidade é principalmente uma discussão
de ordem cultural, na qual predomina a preocupação pelo
problema da estética e da filosofia. Seus temas são a arte e a
sua crítica, o progresso e as crenças em torno dele, a
racionalidade e a progressiva fragmentação do conhecimento
como forma de compreender o mundo.” (CASASSUS, 1993, p. 7)
Na leitura de textos de autores que abordam temas relativos à modernidade,
existe indefinição sobre os conceitos de vanguarda, modernismo e modernidade. Por
vezes estes termos são usados indiferentemente com o mesmo sentido; em outras
vezes, são aplicados em contextos específicos. Para melhor elucidar a significação
dos termos para uso neste estudo, eles serão discutidos a seguir, de modo a manter
coerência com a formulação usualmente aceita.
Em arte, vanguarda significa o conjunto de atividades que tem a finalidade de
reagir contra algo que está estabelecido; quando, por sua vez, esta vanguarda é
26
assimilada pela maioria, vem a compor o novo estilo. É, pois, processo de
transformação mais ou menos acelerado. O Modernismo identifica-se com um estilo
artístico, sendo anunciado também como extremamente dinâmico e mutável, porém
com características próprias e período determinado. Já a modernidade implica um
movimento de bases teóricas mais elaboradas, que diverge fundamentalmente de
algum período anterior; e é na divergência que firma sua identidade, na oposição a
uma época histórica passada.
A idéia da modernidade como processo, que constitui a diferença inaugurada
após o Iluminismo, implica transformação contínua — “o moderno não tem fim, é um
vórtice” (KARL, 1985, p. 23) — que põe em perigo a ordem em vigor, ao mesmo
tempo em que acena com aspecto progressista: “é moderno o que todos querem ser,
mas também é aquilo que deve ser rejeitado” (ibid.). Em Sócrates e Platão, a idéia do
moderno foi rejeitada por sua ligação com a arte, que seduz a alma, minando a
autoridade e ampliando a influência do irracional.
O termo moderno, em si, − derivado do latim modernus − significa aquilo que
ocorre no tempo presente, em oposição a um tempo passado, embora abranja
complexidade muito maior, uma vez que o presente está sempre em mudança. Os
que confundem o moderno com progresso, em sua conotação materialista, limitam o
termo a uma questão de tecnologia. Este sentido foi plenamente utilizado na Inglaterra
no século XIX, que se destacava justamente neste campo de atuação; atualmente,
porém, possui significado muito mais amplo:
“A palavra moderno tem, nos últimos cem anos, exercido
tantas funções, se tornado parte de tantos desejos em conflito,
tem-nos dividido de tantas maneiras complexas que ela não se
pode distinguir de nosso jeito de viver. (…) A idéia tornou-se
orgânica.” (KARL, op. cit., p 24)
As idéias modernas suscitam rejeição mesmo nos movimentos que se utilizam de
seu desenvolvimento para se constituírem, por conterem, em si, elementos para sua
27
própria superação. O medo do novo é combatido, freqüentemente, pelo resgate da
tradição, baseada na história, na tecnologia ou no misticismo, ou em uma combinação
dos três.
A complexificação do moderno aparece na arte com a revolução na linguagem,
escrita ou formal, que acontece em momentos variados na história. Esta
transformação prefigura mudanças profundas de percepção, ligadas também a
transformações paradigmáticas. Na época do Iluminismo, a mudança de linguagem
decorrente de nova percepção do mundo e materializada na atividade artística
baseava-se na crítica e negação da história, e continha em si sentimento de
despertar, de passar da escuridão para a luz. Da mesma forma no final do século XIX
e início do século XX, as teorias freudianas relativas ao inconsciente e aos sonhos
apontam para esta conotação de despertar.
No Renascimento, o humanismo defendia-se contra o frio racionalismo cartesiano
e procurava, novamente, conexão com o período anterior da história para a partir daí
introduzir novo impulso criativo na arte. Com Baudelaire, poeta e crítico francês do
século XIX, o Modernismo − movimento artístico − torna-se claramente movimento
destrutivo, que nega o presente em busca do futuro que está sempre mais adiante, e
rejeita a autoridade:
“Assim, o artista moderno ver-se-á capturado no meio de
pelo menos duas pressões iguais: o sentimento de que a
história não importa mais, de que só o presente deve ocupá-lo;
e uma consciência de que o presente é efêmero, um momento
que passa quando a arte tenta dirigir-se a ele. O moderno
devora o presente, de maneira que, inevitavelmente, o moderno
devora a si mesmo.” (KARL, op. cit., p. 35)
A transitoriedade e a mudança constituem a mais forte característica da
modernidade, que desenvolve-se através de movimentos radicais, de vanguarda,
formados sobre os escombros de movimentos anteriores, negando qualquer
28
encadeamento histórico coerente: para criar um novo mundo é necessário antes
destruir algum aspecto do anterior.
“Os pensadores iluministas acolheram o turbilhão da
mudança e viram a transitoriedade, o fugidio e o fragmentário
como condição necessária por meio da qual o projeto
modernizador poderia ser realizado”. (HARVEY, op. cit., p. 23)
No plano material, os projetos de renovação urbana exemplificam perfeitamente
esta diretiva, com Haussman, arquiteto francês, em Paris e Pereira Passos no Rio de
Janeiro. Os marcos de vida social consagrados pela tradição são destruídos em prol
de um grau maior de eficiência organizacional, também em nome do bem-estar dos
indivíduos que vivem e agem em uma coletividade a cada dia mais dinâmica e
diversificada. Os modernistas viram as transformações espaciais como determinantes
das relações sociais, e o planejamento para novos centros urbanos foi usado, no
século XX, como forma de controlar e otimizar as relações humanas.
No item a seguir, serão abordadas algumas questões sobre o Iluminismo que são
consideradas, neste estudo, relevantes para a identificação da modernidade.
6. O Ideal Iluminista
6.1. Características do Iluminismo e da modernidade
A gênese da modernidade está ligada às aspirações do projeto iluminista. Este
consistiu em “movimento secular que procurou desmistificar e dessacralizar o
conhecimento e a organização social para libertar os seres humanos de seus grilhões”
(HARVEY, op. cit., p. 23). O projeto do Iluminismo era bastante otimista, no sentido
em que apontava para uma maior compreensão do mundo que assegurasse o
progresso material e moral e, até mesmo, a felicidade de todos os homens. O
Iluminismo traria a luz “afugentadora da ignorância e da superstição” (PERRY, 1981,
p. 394).
29
O projeto de civilização moderna que se constrói a partir da teoria iluminista, −
construção teórica que agrega conceitos oriundos da Reforma e da Ilustração,
gerando diferentes movimentos, como o Liberalismo, o Socialismo e a Modernidade −
é constituído de três principais ingredientes: a individualização, a racionalidade e a
autonomia, todos permeados por um sentido profundo de universalidade. A
transposição da idéia de igualdade entre os homens, típica do cristianismo, para o
terreno material, da política e filosofia, provocou mudanças teóricas de grande
alcance, como a condenação de particularismos em prol da universalidade em todos
os campos. Este universalismo baseava-se no princípio de que todos os homens
possuíam as mesmas tendências afetivas e emocionais, e a mesma capacidade para
alcançar o entendimento através da razão. O Humanismo fez o homem voltar-se para
o mundo, buscar nele sua realização e propósito, voltando as costas ao sobrenatural
ou divino. A Reforma contribuiu ainda mais neste sentido, com o individualismo
religioso vindo somar-se ao intelectual.
O movimento do Liberalismo concorreu para a recomposição do valor da pessoa
humana, ao defender a primazia da liberdade individual em relação ao Estado, ao
mesmo tempo em que reconheceu no trabalho a forma de realização plena do
indivíduo.
O universalismo liberal pregava a autonomia de todos os indivíduos, em todas as
culturas, independente de diferenças particulares. Em princípio, todos os homens e
todos os povos possuiriam a mesma capacidade evolutiva. Na prática, entretanto, a
hierarquização das culturas de acordo com seu desenvolvimento científico e
tecnológico − assim como a hierarquia de classes − permitiu a proliferação de teorias
eurocêntricas e de cunho racista até o século XX. A prática que existia anteriormente
de levar aos povos primitivos a luz da fé cristã é substituído pela opção de alimentar a
luz da razão, mas as duas formas abrigam em si aspecto autoritário de imposição
cultural.
30
O individualismo liberal sofreu transformações ao longo do tempo, resultando,
atualmente, em massificação que provoca conformismo e dissolve o indivíduo no todo
“liberando o homem do mais difícil privilégio da modernidade, o de pensar e agir por si
mesmo, com base em princípios gerais e abstratos” (ROUANET, op. cit., p. 22), ao
mesmo tempo em que suscita sentimentos de negação desta coletividade assumindo
aspecto de um hiperindividualismo que objetiva proporcionar ao homem os elementos
materiais que o distinguem da massa popular, inserindo-o em um subgrupo. A busca
da felicidade confunde-se com o desejo do prazer efêmero, superficial, atendido por
uma indústria cultural que apresenta produtos sempre novos que criam outras
necessidades, ao mesmo tempo em que as atendem.
Rouanet (op. cit.) define muito bem cada um dos aspectos que a teoria iluminista
pretendeu incorporar a seu projeto de civilização no trecho reproduzido a seguir
(p. 33), em que realça a capacidade racional do homem:
“todos os homens e mulheres, de todas as nações,
culturas, raças e etnias, desprendendo-se da matriz coletiva e
passando por processos crescentes de individualização, devem
alcançar a autonomia intelectual, ou seja, o direito e a
capacidade plena de usar sua razão, libertando-se do mito e da
superstição, sujeitando ao crivo da razão todas as tradições,
seculares ou religiosas, problematizando todos os dogmas,
criticando todas as ideologias, e desenvolvendo livremente a
ciência, o pensamento especulativo e a criatividade artística, o
que pressupõe um sistema cultural que tenha institucionalizado
e dado condições efetivas de exercício à liberdade de
pensamento e de expressão, a autonomia política, ou seja, o
direito e a capacidade plena de participar dos processos
decisórios do Estado, o que pressupõe um sistema político que
tenha institucionalizado e dado condições efetivas de
funcionamento à democracia e aos direitos humanos, e a
31
autonomia econômica, ou seja, o direito e a capacidade plena
de obter, sem prejuízo para os outros indivíduos e sem danos
para o meio ambiente, os bens e serviços necessários ao
próprio bem-estar, o que pressupõe um sistema econômico que
tenha institucionalizado e dado condições efetivas de
funcionamento aos direitos dos agentes econômicos, dentro
dos limites compatíveis com os objetivos superiores da justiça
social e da preservação da natureza.”
Nesta definição, o autor cita diretamente, em leitura atual, todos os pontos que
constituem tema de debate sobre a configuração da sociedade moderna, destacando
os mais criticados: a perda de liberdade provocada pela elitização dos conhecimentos,
a alienação política impedindo a participação efetiva no controle das relações sociais,
a divisão da sociedade segundo fatores econômicos que definem cidadãos plenos e
aqueles que só possuem o mínimo indispensável à sobrevivência − ou ainda menos
−, e a destruição da natureza através da extensiva exploração material. Rouanet (op.
cit.) procura ainda evidenciar que mesmo que os condicionantes que anuncia não
tenham sido diretamente abordados pelos iluministas, por sua pouca relevância na
época − como os danos ao meio-ambiente, que ainda não se faziam sentir −, ou
mesmo por posições ideológicas particulares, estão intrinsecamente ligados à própria
idéia de liberdade, igualdade e felicidade, que concorrem para o bem estar moral e
físico de todos os homens.
O debate sobre a superação ou não destes ideais, centra-se na possibilidade de
concretização dos mesmos sem os prejuízos que ocorreram no passado. Enquanto
modelo para a busca de aperfeiçoamento crescente por parte dos homens, o ideal
iluminista tem sua validade assegurada pelos neomodernistas, no entanto, como
construção histórica com características inalienáveis é conceito esgotado para os pós-
modernos. A posição antimodernista apresenta como indissociáveis da teoria os
aspectos negativos demonstrados em sua materialização.
32
Rouanet (op. cit.) baseia sua defesa do Iluminismo, primordialmente, nos
universais. A estes, os críticos contrapõem particularidades diversas, que assumem
qualidades históricas, sociais ou somáticas — como limites geográficos, estruturas
econômicas de classe e diferenças devido ao sexo ou raça —, justificadas pela visão
de mundo que nega a existência de verdades além da capacidade de percepção
humana, o que constitui a forma de pensamento típica da modernidade. O
racionalismo pressupõe a transparência total entre pensamento e realidade, sendo a
própria realidade determinada pela razão, radicada na razão. A importância desta
perspectiva particularista − ou historista, como a denomina o autor − está em sua
aceitação hegemônica no Brasil e no mundo. A recusa aos ideais modernos, que
redundaram em fracasso se comparados com suas intenções iniciais, resulta em
negação total, ocasionando a busca de seus opostos: os particularismos.
Ao defender o universal, Rouanet (op. cit.) pretende resgatar seu sentido primeiro,
crítico, como pretendiam os iluministas: estudar o particular para inferir o universal.
Não reside aí, intrinsecamente, nenhuma conotação dominadora. Assim como, o
universal pode ser usado − e, em vários momentos, o foi − como forma de imposição
de valores de uma cultura sobre outras, o particularismo também o faz, retirando
qualquer possibilidade de recurso, uma vez que não há instância superior, ou comum,
à qual recorrer. A aspiração à universalidade assumiu aspectos diferenciados, como a
busca de uma razão universal, de um homem universal e uma moral universal.
Procurando eliminar qualquer barreira imposta por diferenças culturais, religiosas ou
étnicas.
A seguir serão apresentadas as principais características que vêm a compor o
ideal iluminista: a individualidade, a autonomia e a racionalidade. Todas com
aspirações à universalidade.
33
34
6.2. Individualidade
A sociedade iluminista seria formada por indivíduos autônomos dotados de iguais
direitos e obrigações. A individualização é característica básica nesta teoria, não
pressupõe, entretanto, negação da coletividade, mas reconhece a necessidade de
socialização; embora sinalize para o perigo da alienação provocada pela massificação
dos sujeitos, e para uma volta à organicidade das culturas primitivas, na qual o todo
tem prioridade sobre suas partes componentes. A individualidade iluminista,
entretanto, é conquista da razão. A personalidade é construída por escolhas
realizadas ao longo da história individual de cada um, independente de determinações
provenientes de seu nascimento:
”Para o Iluminismo o indivíduo constrói sua própria
identidade, em vez de herdar dos pais uma identidade pré-
fabricada. Seu estatuto étnico, cultural ou nacional resulta de
uma escolha adulta, não do fato aleatório, pelo qual ele não é
responsável, de ter nascido num certo país, dentro de uma
cultura determinada”. (ROUANET, op. cit., p. 36).
Na prática, o modelo de homem universal do Iluminismo assumiu a característica
de privilegiar particularidades de determinada cultura − a européia − e de buscar a
generalização a partir destas. Assim, o universalismo é apontado como forma de
opressão das culturas não ocidentais através de valores impostos − oriundos de uma
elite branca e masculina − sobre todos os cantos do globo, alcançáveis graças à
avançada tecnologia de transportes e comunicações. Identificando-se, ainda, com o
internacionalismo produzido pela burguesia capitalista, na criação do mercado
mundial, o que levou ao exercício de nova forma de poder social. O desenvolvimento
do capitalismo, com a conseqüente industrialização, acarretou perda de liberdade ao
instrumentalizar, de certa forma, o homem, avaliando-o apenas enquanto força de
trabalho. O indivíduo tornou-se abstração, reduzido a “mero ter” (HORKHEIMER,
35
1975, p. 102). A uniformização de suas qualidades, na prática, relaciona-se às
necessidades de mercado: a coletividade constitui-se de indivíduos capazes de
participar da produção de bens. A injustiça social é eternizada pela imobilidade das
relações sociais estabelecidas pelo industrialismo, que contribuiu para a objetivação
dos homens:
“O que é feito a todos por poucos, perfaz-se sempre pela
subjugação de alguns por muitos: a opressão da sociedade
exibe sempre, ao mesmo tempo, os traços da opressão
exercida por um coletivo. É essa unidade de coletividade e
dominação, e não a imediata generalidade social, a
solidariedade, que se sedimenta nas formas do pensamento.”
(HORKHEIMER, op. cit., p. 110)
A coletividade torna-se sujeito de atitudes que estão além do controle dos
indivíduos, que se sentem indefesos e não responsáveis diante do todo. O sentimento
de angústia diante desta situação é claramente percebido atualmente; incluindo-se
nele o medo da destruição total da vida na Terra.
Há que se notar, entretanto, que o humanismo que está embutido na adoção de
um modelo de homem universal, é o mesmo que permite falar em direitos universais
do homem, e a condenação de atitudes consideradas injustas mesmo quando
firmadas pela tradição ou exercidas em defesa de particularidades, como o apartheid,
a escravidão, as lutas religiosas, os campos de concentração, etc. Pois, o homem
universal é o indivíduo “sujeito de direitos imprescindíveis, independentemente de
circunstâncias de tempo e de lugar” (ROUANET, op. cit., p. 64).
“O Iluminismo não exclui a diferença, mas exclui a diferença
como ideologia. A diferença é um fato, não uma virtude, e nem
sempre esse fato merece ser idealizado”. (ibid., p.69)
O homem universal é indivíduo dotado de razão autônoma e igualdade de
direitos. Como, na prática, esta igualdade e autonomia não chegaram a se cumprir,
36
tornaram-se ponto de questionamento por parte dos críticos da modernidade. A
individualidade passou a ser combatida em nome da maior união entre os homens, no
sentido da imersão no todo, no coletivo; tanto na busca de comunhão com a natureza
para elidir os prejuízos a ela causados, quanto, mais negativamente, na massificação
inerente à sociedade moderna.
“Por meio das inúmeras agências de produção e de cultura
de massa, os modos de comportamento sujeitos a normas são
inculcados no indivíduo como os únicos naturais, decentes e
racionais”. (HORKHEIMER, op. cit., p. 114)
Ao mesmo tempo, luta-se pelo respeito às diferenças particulares como raça,
religião, nação e gênero que são exaltadas como forma de respeito aos indivíduos,
ainda que sirvam, às vezes, de justificativa para repetidos atos de violência contra
outros indivíduos com particularidades distintas.
Os males que o Iluminismo pretendia combater assumem nova face e se
perpetuam na sociedade. A opressão opera, agora, em nome da liberdade individual e
da democracia. A angústia de pensar os problemas sociais é transferida para o grupo,
do qual emanam as opiniões já formadas.
“A violência contra o pensamento não se manifesta mais
como proibição de pensar, mas como liberdade de pensar, o
que nas condições atuais de condicionamento invisível
significa a liberdade de pensar o que todos pensam.”
(ROUANET, op. cit., p. 98)
O indivíduo dotado de razão do Iluminismo obedeceria, em suas relações, a uma
moral universal. O desenvolvimento desta moral ocorreria segundo categorias
uniformes entre indivíduos de sociedades distintas: indo de uma categoria pré-moral,
típica da infância, até estágios de estabelecimento de princípios éticos universais.
Quanto ao conteúdo, alguns são recorrentes, como a liberdade e a fraternidade.
37
A moralidade universal é defendida a partir do reconhecimento de que existem
valores que devem ser respeitados por todos os homens; valores absolutos, como a
vida e a liberdade. Esta é uma opção que só pode ser adotada se os homens forem
considerados como indivíduos com direitos próprios, e sua validade relaciona-se à
capacidade de assumir comportamentos diferenciados nas situações que vivencia, de
acordo com o código moral adotado, pressupondo, ainda, que seja capaz de conter
suas inclinações naturais e introjetar os valores da coletividade na qual se insere. Daí
deriva a necessidade de elaboração de uma ética universal, em que todos são
capazes de desenvolver “competência moral irrestrita” (ROUANET, op. cit., p. 83) e
podem
“relacionar-se com o mundo normativo de um modo
autônomo, sem submissão cega às autoridades, e com plena
consciência de que as regras são transformáveis, desde que as
modificações se façam por acordo entre as partes
interessadas, e levando em conta os pontos de vista de todos”.
(idem)
Esta capacidade de desenvolver estrutura moral complexa, não resulta em iguais
conteúdos morais. Diferenças culturais podem levar a julgamentos opostos sobre o
certo e o errado, sobre bem ou mal. Desta forma, a moralidade universal fica restrita a
noções mais gerais intimamente relacionadas ao conceito de homem universal do
Iluminismo, como aquele dotado de razão autônoma e liberdade individual para tomar
suas próprias decisões.
Na prática, a forma como a ciência identificou-se com a modernidade,
substituindo a religião na realização de milagres, instaurou nova categoria de valor,
legitimando a busca e utilização do conhecimento em si mesmo. Assim, tanto a
ciência quanto a moral são unidas em torno à razão, levando a um sentimento forte de
que o progresso humano, material ou moral, está a ela associado:
38
“Tudo quanto é belo e nobre é o resultado da razão e do
cálculo. O crime, cujo gosto o animal homem hauriu no ventre
da mãe, é originalmente natural. A virtude, ao contrário, é
artificial, sobrenatural, já que foram necessários, em todas as
épocas e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la
à humanidade animalizada, e que o homem, por si só, teria sido
incapaz de descobri-la. … Tudo quanto digo da natureza como
má conselheira em matéria de moral, e da razão como
verdadeira redentora e reformadora, se pode transpor para a
ordem do belo.” (BAUDELAIRE, 1996, p. 56)
Mesmo nas diferentes acepções sobre a forma como o sentido moral é
desenvolvido pelo homem − se por alguma característica externa ligada à lei natural
(Rousseau), ao aspecto sensorial (Locke) ou a categorias internas (Kant) − a razão é
determinante no processo. A moralidade moderna é, essencialmente, racional e
secular.
Estudos atuais sobre a moralidade apontam para a organização de valores
consensuais, desta forma baseiam-se na premissa de que existe a possibilidade de
estabelecer conteúdo mínimo comum entre atores diversos. Os partidários da pós-
modernidade acreditam que este consenso será sempre limitado e temporário, devido
às mudanças que são parte integrante da condição pós-moderna, e a seu caráter
multifacetado, como será visto no item 8 deste estudo.
6.3. Autonomia
Para a Ilustração o caráter emancipatório de todas as ações deveria ser
preponderante, fosse através da concepção de “uma sabedoria de elite” (HARVEY,
op. cit., p. 24) ou através de “alguma teleologia inerente em ação (talvez até de
inspiração divina) a que o espírito humano estava fadado a responder” (idem). Sob o
aspecto racional, a busca da autonomia está ligada à liberação dos homens da
submissão imposta pela religiosidade, aliada à objetivação da natureza e à
39
organização das instituições sociais permitida pelo desenvolvimento da ciência; é,
ainda, autonomia individual, posto que o homem na sociedade iluminista não existe
apenas como parte da coletividade.
O capitalismo, por exemplo, adota a forma liberal de liberdade individual: o
indivíduo é capaz de alcançar sua emancipação plena no sistema capitalista desde
que exerça o poder social proporcionado pela posse de valores monetários. A
princípio − ou por princípio − todos os homens têm condições de elevar-se a posições
sociais superiores através do esforço pessoal e do trabalho.
Na sociedade assim constituída, a objetivação do mundo atinge seu apogeu, uma
vez que todas as coisas são valoradas de acordo com seu poder de troca. As ações e
relações humanas não são mais medidas por valores transcendentais, mas “passam a
ser concebidas como realidades pertencentes ao mundo dos objetos. … e este é o
fenômeno universal em todas as dimensões das sociedades burguesas…”
(OLIVEIRA, 1995, p. 15).
Problematizando a questão da ideologia, o socialismo contribuiu para aumentar
as possibilidades de realização da autonomia de fato e de direito. Ela atinge todos os
aspectos da vida humana e seria fruto da emancipação frente a particularismos
limitantes ou hábitos culturais. A razão é, novamente, primordial para a efetivação
desta meta, desde que livre da falsa consciência imposta pela ideologia.
A validação da razão, ou da ciência, em si mesma revoluciona o sentido moral
das ações humanas. E sua relação com o poder elimina a possibilidade de ação
emancipatória positiva: a identificação da razão com a dominação leva a uma situação
contraditória, em que qualquer avanço em relação ao progresso material corresponde
à redução das liberdades individuais:
“A violência contra a vontade popular não se exerce mais
pela tirania, mas por um sistema democrático cujas regras
formais de funcionamento impedem uma verdadeira
contestação do poder existente. Nos países industrializados, a
40
coação não atua mais a partir da escassez, mas a partir da
abundância.” (ROUANET, op. cit., p. 98)
A autonomia − intelectual, política e econômica − é atacada, atualmente, de
diversas maneiras: pelo misticismo cada vez mais presente nas relações sociais, até
mesmo entre governantes de diversos países; por ditaduras mantidas à força ou
apoiadas em figuras carismáticas; e pelo grande desequilíbrio na distribuição de renda
pelo mundo.
Quando são analisadas posições tão opostas entre teoria e prática, percebe-se
claramente o nível das tensões na vida moderna, e a conseqüência mais notável é a
“total falta de esperança …” (OLIVEIRA., op. cit., p. 17), que resulta, cada vez mais,
em dificuldades para o exercício da autonomia individual.
6.4. Racionalidade
A problemática quanto à existência de uma razão universal liga-se ao
questionamento da forma de racionalidade assumida pelo paradigma de mundo no
Ocidente, em contrapartida ao de culturas não ocidentais.
Com Descartes e Galileu, o objeto do pensamento transferiu-se da investigação
do ser das coisas para a sua função ou relação com outras: sua quantificação e
representação, vindo a relacionar-se apenas a objetivos práticos: do desenvolvimento
do conhecimento humano até a busca da felicidade terrena. Desta forma justifica-se a
instrumentalização da racionalidade, devido ao poder absoluto sobre a natureza: “a
onisciência, através de uma razão cujo desdobramento não conhece limites de direito,
e a onipotência através da técnica.” (ROUANET, op. cit., p. 63). A forte tendência
ideológica desta posição é claramente percebida em seu desenvolvimento histórico.
“O racionalismo iluminista implica, positivamente, a fé na
razão, em sua capacidade de compreender o mundo físico e de
ter acesso à verdade moral, e mais especificamente a fé na
ciência, como instância habilitada a conhecer a natureza e
transformá-la para satisfazer às necessidades materiais dos
41
homens. Negativamente significa o desencantamento, a
denúncia do mito e da superstição, o questionamento da
autoridade dogmática e o exame crítico da tradição.”
(ibid., p. 409)
As instituições sociais são legitimadas através do consenso generalizado advindo
de uma “crença total comum em certa concepção da vida e do mundo” (KUJAWSKI,
op. cit., p. 135), esta crença comum constitui a própria realidade. Nas sociedades
tradicionais, a legitimação ligava-se à sacralização, fundando-se no religioso; já nas
sociedades modernas, dá-se ao nível da eficácia. Mais precisamente, na ação eficaz:
a modernidade se realiza através de ações práticas, realizações materiais. A filosofia,
no século XIX, reflete bem esta nova tendência em pensadores como Marx, que vê na
teoria filosófica um modo de modificar as relações no mundo.
A vertente, que enxerga como a característica maior da modernidade a busca da
eficácia, entretanto, dá primazia à influência do Liberalismo sobre a Ilustração, cujos
conceitos sobre economia, religião e política são absorvidos e desenvolvidos
posteriormente no processo de modernização das sociedades.
Mas a própria Ilustração contribuiu com novos aspectos para a composição da
visão moderna de mundo, voltando-se para o consumo e o prazer, ao invés de apenas
para o trabalho; para a autonomia, e não somente para a eficácia. A razão recebe
nova incumbência, a de contribuir para a emancipação do homem, adquirindo função
ética, pois, para bem exercer sua função, torna-se crítica.
42
“Para a modernização funcional, racionalizar significa injetar a
razão instrumental nos mecanismos decisórios da empresa e do
Estado. Para a modernização iluminista, racionalizar significa,
também, injetar a razão emancipatória no próprio tecido da
organização social”. (ROUANET, op. cit. p. 122)
É claramente perceptível a influência que fatores sócio-culturais exercem sobre o
desenvolvimento intelectual dos sujeitos (ibid., p. 72ss.). A racionalidade universal,
entretanto, admite um mínimo de aptidão cognitiva sempre presente em qualquer
indivíduo de qualquer sociedade, desenvolvendo-se de modo uniforme, através de
categorias de discurso teórico e empírico.
O Iluminismo apresenta a idéia de que existem conhecimentos verdadeiramente
universais em seu conteúdo, cuja validade é medida por critérios específicos ligados à
predição, à explicação e ao controle, categorias definidas pelo paradigma em vigor. O
que não implica a impossibilidade de desenvolvimento de outras teorias racionais, que
atendam às necessidades de determinada cultura, como é o caso dos relatos
mitológicos tradicionais. A veracidade da teoria, entretanto, é medida por sua
característica explicativa, pois a racionalidade, no Iluminismo
“considerava axiomática a existência de uma única resposta
para qualquer pergunta. Seguia-se disso que o mundo poderia
ser controlado e organizado de modo racional se ao menos se
pudesse apreendê-lo e representá-lo de maneira correta”.
(HARVEY, op. cit., p. 35)
Admitida a busca da verdade na natureza como objetivo principal da ciência,
apresenta-se esta, então, como neutra em questões de valoração. Embora os críticos
neguem a suposta neutralidade da ciência, baseados no princípio de que o propósito
dela é sempre de intervir e dominar a natureza, constituindo-se, desta forma, a priori,
em tecnologia. Além disso, não lhe é possível pôr de lado certa faceta ideológica, uma
vez que se baseia em métodos e critérios avaliativos elaborados segundo paradigma
43
ou modelo de mundo. Hoje em dia, porém, o debate já evoluiu, e mesmo entre os
cientistas se admite a necessidade de preocupação ética e social mais profunda.
A tecnologia configura-se como danosa à vida humana, mas isto ocorre porque o
mundo mudou, as necessidades mudaram. Para o Iluminismo, sua função era garantir
a melhoria de vida para todos, no sentido do aumento de bem-estar e libertação da
tirania da natureza. Esta função foi realizada, não se pode negar que a vida hoje é, de
modo geral, mais confortável do que há cem anos. As conquistas tecnológicas, no
entanto, já estão banalizadas pelo uso, não impressionam mais o homem comum, o
que ele quer agora é a resposta aos problemas ainda não resolvidos, como a aliança
da modernidade com as forças de dominação, reconhecida por todos seus defensores
ou críticos em diferentes correntes teóricas, ou sua capacidade para a destruição
lenta, ou potencialmente instantânea, da natureza através da aplicação de técnicas
destrutivas ou máquinas de guerra.
“ …a pretensão originária de uma civilização da razão, hoje
mostra uma ilusão, ou seja, que nossa razão parece emergir
como racionalidade perversa, dominadora, a racionalidade ter-
se-ia tornado cínica, pois sobre a máscara do esclarecimento e
da liberdade, na verdade, o que é marca característica de
nossa epocalidade é a experiência da perda de sentido da vida,
através da institucionalização e concretização de uma razão
que é antes desrazão, perversa, instrumental, não somente
dominando a natureza e os homens, mas ameaçando a própria
vida humana em sua sobrevivência.” (OLIVEIRA, op. cit., p. 6)
A ciência perde o prestígio enquanto fornecedora de verdades sobre o sistema de
crenças que compõe o nosso mundo, mas, em si mesma, continua vigorosa e atuante
na busca de suas respostas, que relacionam-se apenas a seu próprio campo de
atuação.
A crítica à modernidade, no século XX, prende-se à forma como a racionalidade
assumiu importância destacada sobre todos os demais aspectos pretendidos pelos
44
iluministas, e como foi fragmentada, desligando-se de sua vocação emacipatória. A
saída para esta situação é identificada geralmente com uma reelaboração do conceito
de razão, ou como afirma Oliveira (ibid., p. 12):
“elaborar um conceito de razão, que seja capaz de dar
conta das experiências da crise da modernidade e tornar
possível uma crítica de fundo ao reducionismo da modernidade,
para recuperar, numa dimensão superior, seu momento de
verdade”. (ibid., p. 12)
O modo como a modernidade foi se afastando dos ideais iluministas, e as críticas
que são feitas ao reducionismo da razão serão analisadas no capítulo seguinte, assim
como as orientações teóricas para um paradigma pós-moderno.
45
Capítulo II: A Concretização do Projeto Modernoe a Pós-Modernidade
7. Século XX: A concretização da modernidadeNos séculos XIX e XX, a distância entre a modernidade e o projeto original
iluminista se aprofundou, levando à perda de identificação com suas origens. É a
partir deste momento que os pós-modernos neste século procuram construir sua
teoria, baseados nas inúmeras críticas feitas a respeito dos ideais modernos, ou dos
aspectos que se materializaram; deste modo, faz-se necessário destacar estes
aspectos.
7.1. Modernização capitalista
Foi no século XIX, que se iniciou a atrofia do projeto da modernidade, com a
supervalorização dos princípios reguladores de mercado sobre os da comunidade e
do Estado. A oposição a esta tendência foi dada pela reação romântica que pregava
um retorno às origens, e pelos movimentos radicais socialistas que buscavam
resgatar o sentido de comunidade e igualdade que vinha sendo substituído pelo
individualismo e pela pseudo-liberdade atrelada a fatores econômicos. Ambos
mantinham a esperança no resgate dos objetivos iniciais daquele projeto. Em
momento posterior, a singularização de alguns de seus aspectos torna-se mais forte,
sendo então reduzido aos fatores que se acreditava serem factíveis, relegando a
segundo plano os objetivos classificados como utópicos:
“o projeto da modernidade cumpre-se assim em excesso
porque em tudo o que cumpre excede todas as expectativas
(basta ver o fulgurante avanço do conhecimento científico) e
em tudo que não cumpre é suficientemente convincente para
negar que haja algo ainda a cumprir.” (SANTOS, op. cit., p 86)
O autor, citado acima, divide o desenvolvimento capitalista no século XX, em
períodos bem definidos, com características próprias. O primeiro período é o da
46
expansão do capitalismo, de forma intensa e, por vezes, agressiva, e o do
crescimento vertiginoso da ciência e da tecnologia. Paralelamente a essa expansão,
ocorreu o fortalecimento social e político dos cidadãos através das organizações de
classe e sindicatos, ainda que sujeitos ao poder econômico. A autonomia individual
liga-se, indelevelmente, à posse de dinheiro, pois:
“Como poder social passível de ser detido por pessoas
individuais, ele forma a base de uma liberdade individual muito
ampla, uma liberdade que pode ser empregada no nosso
desenvolvimento como indivíduos livres-pensadores, sem-
referência aos outros. O dinheiro unifica precisamente através
de sua capacidade de acomodar o individualismo, a alteridade
e uma extraordinária fragmentação social”.
(HARVEY, op. cit., p. 100)
Assim, a justiça, a solidariedade e a liberdade são limitadas pelas necessidades
da produção capitalista, de forma deliberada.
“Que esta forma de compatibilização é uma entre outras, e
apenas é preferida por ser a que permite a consolidação das
relações sociais da produção capitalista, é simultaneamente
evidente e trivial, pois a crescente hegemonia social desta
forma de compatibilização torna todas as demais indesejáveis
ou mesmo impensáveis.” (SANTOS, op. cit., p. 85)
O próximo momento, ainda na periodização de Santos, se inicia nos anos
sessenta deste século, o que coincide com os primeiros sinais do que se
convencionou chamar como movimento pós-moderno. Em algumas análises, a
estrutura atual surge como a de um “capitalismo desorganizado” (ibid., p. 87), embora
o mesmo autor assinale que essa classificação é deficiente e inadequada, fruto da
perplexidade frente a uma situação que não se compreende muito bem, e pode ser
sinal de novas formas de organização. Caracteriza-se pelo crescimento da
industrialização pelo globo, criando novas relações produtivas facilitadas pela melhoria
47
e barateamento dos transportes e comunicações. A contração do espaço-tempo,
como indica Harvey (op. cit.), aliada à disseminação da informação, acelera ainda
mais a expansão do capital.
A organização da sociedade em movimentos de classe, a ingerência do Estado
sobre as atividades produtivas, assim como a estrutura industrial capitalista, nenhuma
destas ordenações parece capaz de contribuir como forma eficaz de regulação que
garanta a estabilidade. Todas as relações individuais apresentam-se fragilizadas, e
contribuem para o choque entre a rigidez das estruturas vigentes e a flexibilidade nos
intercâmbios sociais mais amplos:
“Tudo parece negociável e transformável ao nível da
empresa ou da família, do partido ou do sindicato, mas ao
mesmo tempo nada de novo parece possível ao nível da
sociedade no seu todo ou da nossa vida pessoal enquanto
membros da sociedade”. (SANTOS, op. cit., p. 89)
A não concretização dos ideais emancipatórios do projeto moderno redundou,
neste período, em desesperança quanto a sua efetivação, possibilidade afastada
pelas necessidades da estrutura econômica. A modernização que é imposta neste
momento aos países menos desenvolvidos − na América Latina a princípio e nos
países da Europa Central em momento posterior − exemplifica bem o processo
reducionista que sofreu o projeto moderno, assumindo cada vez mais caráter
totalitário e dominador.
“A modernização científico-tecnológica e neoliberal alastra
hoje, paradoxalmente, na mesma medida em que alastra a sua
crise, certificada por aquilo que parecem ser as suas
conseqüências inevitáveis: o agravamento da injustiça social
através do crescimento imparável e recíproco da concentração
da riqueza e da exclusão social, tanto a nível nacional como a
nível mundial; a devastação ecológica e com ela a destruição
48
da qualidade e mesmo da sustentabilidade da vida no planeta.”
(ibid., p. 91)
A impotência diante de todas as dificuldades provocadas pelo processo de
modernização, da forma como ocorreu, provoca nos indivíduos tendências ao
individualismo e indiferença frente aos problemas globais, esquivando-se de sua
responsabilidade.
“Os sinais de futuro estão na crescente convicção de que
esse défice de mundo é irremediável dentro do projeto da
modernidade e de que, portanto, a opção radical e cada vez
mais incontornável é entre enfrentar a possibilidade de este
projecto estar exausto, incumprível no que dele não foi
cumprido até agora, ou continuar a confiar na sua possibilidade
de regeneração e de continuar a esperar pela sua completude
com a mesma determinação com que Samuel Beckett nos
ensina a esperar por Godot.”
(SANTOS, op. cit., p. 92)
Diante destes problemas, surgem teorias que sugerem o estabelecimento de uma
ética da responsabilidade pessoal e social. Assim como também surgem movimentos
que buscam recuperar a subjetividade e a solidariedade, agora em bases mais
concretas: a regulação jurídica dos direitos humanos e sociais, e a autonomia das
diferentes culturas. Entretanto, todas estas iniciativas são ainda incipientes.
7.2. Descrença no futuro
A tecnologia surgiu, inicialmente, como produtora de maravilhas, atendendo ao
espírito aventureiro e à curiosidade inata aos homens. Este sentimento é claramente
perceptível na literatura de Verne, por exemplo, com a esperança na capacidade
humana de realizar conquistas até então apenas sonhadas, como a ida à Lua, ao
centro da Terra ou ao fundo do mar. Estas esperanças são realizadas com o tempo,
mas os problemas que acarretam transformam-nas em fonte de angústias.
49
“Ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete
aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do
mundo − e, ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo o que
temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.”
(BERMAN apud HARVEY, op. cit., p. 21)
Esta situação provoca o que Rouanet (op. cit.) chamou de “Mal-estar na
modernidade”, causando ressentimento que leva à “contestação teórica e prática de
cada elemento do projeto iluminista de civilização” (p. 98).
A utopia do progresso inevitável que solucionaria todos os problemas,
irrevogavelmente, é a grande responsável pela insegurança que permeia todas as
relações, na medida em que não passa, mesmo, de uma utopia, irrealizável por
definição. A estranheza do mundo leva à irrupção de extremismos que visam à
profanação dos valores até então em vigor. A violência contra o outro tem por alvo sua
liberdade, o irracionalismo não é justificado em si mesmo, mas apenas como oposição
ao racional. A “Crise do Século XX”, como a denomina Kujawski (op. cit.), resulta na
destruição da utopia modernista, que visava construir um futuro que proporcionasse a
todos os homens garantias de bem-estar, com a transferência da ação humana
voltando-se novamente para o presente e suas características particulares.
Santos (op. cit.) identifica a perda de esperança no futuro com a substituição do
pensamento utópico pelo cientificista, inteiramente realista:
“Não será que a morte do futuro que hoje tememos foi
anunciada há muito pela morte da utopia? Não será que a
perda da inquietação e busca de uma vida melhor contribui
para a emergência da subjectividade conformista que considera
melhor, ou pelo menos inevitável, tudo o que for ocorrendo só
porque ocorre e por pior que seja? … Será que a recusa da
utopia não acabou por redundar na recusa das idéias por
realizar?” (ibid., p. 323)
50
A utopia é necessária ao homem para o desenvolvimento e aperfeiçoamento de
suas potencialidades. Cabe, então, encontrar nova função para a utopia, que pode ser
a de conduzir as ações humanas, proporcionando-lhes um objetivo a alcançar. A
presente crise determina a mudança do tipo de razão que deve ser exercida, não mais
puramente utópica, mas perspectiva, fundada na experiência do real. Ainda que o real
seja conceito também em discussão, dependente da percepção individual e dos
sistemas de representação utilizados.
7.3. A arte e a multiplicidade de linguagens e sist emas de representação
Outro aspecto a considerar na sociedade moderna que se estabelece no século
XX é a aceleração na aquisição de conhecimentos, que corresponde a uma outra no
ritmo de vida e na alteração do ritmo urbano, provocando a necessidade de criação e
recriação constante de novas modas, novos objetos de desejo, ou sinais
diferenciadores no meio da massificação produzida pela vida urbana. Harvey (op. cit.)
percebe a modernidade, e também a pós-modernidade, como momentos de
transformação na estrutura do tempo-espaço, com causas diferenciadas, que
provocam alterações nas experiências cotidianas de vida. Baudelaire (op. cit.)
descreve a modernidade como a junção entre tendências diversas como o “eterno” e o
“transitório”. A busca das verdades eternas em meio a tanta fragmentação e mudança
assumiu a forma da experiência estética: a apresentação do imutável, a beleza,
através do transitório, as formas. A ligação da modernidade com a experiência
estética, entretanto, data do século XVIII, quando o sentimento adquiriu status
autônomo como forma de cognição.
A análise deste movimento estético que é o Modernismo, permite a visão clara
das características da modernidade no século XX. O caráter criativo-destrutivo
embutido em sua formulação é levado a extremos, e os artistas adquirem papel de
relevo na produção cultural da modernidade, iniciando o processo de mudança. Ainda
no século XIX, o movimento romântico abraçou a nova diretiva e elegeu a
51
subjetividade, a individualidade e o lirismo como suas características principais
ligando, assim, a percepção individual de cada homem sobre o mundo à forma como
o representavam, alterando a definição da essência eterna e imutável das coisas.
Tratava-se de “tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair
o eterno do transitório” (BAUDELAIRE, op. cit., p. 24).
Os artistas perceberam a necessidade de buscar uma nova linguagem que
permitisse a representação do “eterno a partir do transitório”. Desta maneira, no
século XIX a velocidade com que linguagens diversas, adotadas por grupos de
artistas com visões de mundo diferentes, são construídas e destruídas aumenta de
forma exponencial. Haja vista a pletora de escolas e tendências diversas que
podemos identificar na História da Arte desde então.
Da mesma forma, a crença iluminista de que só havia uma resposta a cada
questão foi superada em prol da valorização de diferentes sistemas de representação.
Cada artista interpreta o mundo através de sua percepção individual, extraída da
experiência cotidiana, e deseja reproduzir esta visão em sua produção. Sendo assim,
os artistas no Modernismo preocuparam-se desde o início com a linguagem, tornando-
se, muitas vezes, auto-referenciais.
A ruptura com a idéia iluminista de verdade absoluta não se restringiu ao domínio
artístico, mas provocou reflexos muito fortes também na ciência − como na física
relativista de Einstein. Não se tratava, no entanto da negação da existência de uma
realidade única, mas apenas na multiplicidade de representações possíveis, a “busca
do eterno” ainda constituía a base do pensamento modernista. O que seria modificado
com o pensamento de Nietzsche , para quem a própria existência da verdade única
tornou-se questionável.
Na segunda metade do século XX, as obras de artistas de vanguarda foram
elitizadas a tal ponto, como conseqüência de seu próprio hermetismo lingüístico, que
não permitiram mais o acesso da camada popular. Essa elitização provocou o
52
esgotamento das forças criativas, já que a experimentação e busca de novas formas
de arte tornou-se cada vez mais difícil.
“A arte, a arquitetura, a literatura, etc., do alto Modernismo
tornaram-se artes e práticas do establishment numa sociedade
em que uma versão capitalista corporativa do projeto iluminista
de desenvolvimento para o progresso e a emancipação
humana assumira o papel de dominante político-econômica”.
(HARVEY, op. cit., p. 42)
A reação a esse quadro ocorreu através dos movimentos ditos de “contracultura”,
que agiram contra o establishment, valorizando a realização pessoal. Esses
movimentos atingiram seu auge no final da década de 60, mais exatamente em 1968.
“Foi quase como se as pretensões de universais de
modernidade tivessem, quando combinadas com o capitalismo
liberal e o imperialismo, tido um sucesso tão grande que
fornecessem um fundamento material e político para um
movimento de resistência cosmopolita, transnacional e,
portanto, global, à hegemonia da alta cultura modernista”.
(HARVEY, op. cit., p. 44)
Todas essas correntes artísticas, certamente, reagiram a transformações na
sociedade em que foram geradas. O Modernismo, que surgiu no início do século XX,
respondeu a mudanças profundas nas relações sociais de produção, circulação e
consumo de mercadorias, e mostrou-se, ainda, movimento essencialmente urbano. As
relações ocorridas nas grandes cidades são determinantes do sentido de alteridade
predominante no mundo moderno, pois a necessidade de organização deste espaço
mais complexo que são os centros urbanos, instrumentalizam as relações
interpessoais. A própria experiência do tempo-espaço deve também se render à nova
organização racional e econômica.
No período entre guerras, assolado por problemas econômicos e sociais graves, o
homem teve que procurar um novo modelo de sociedade, na qual pudesse sobreviver
53
e que lhe garantisse a segurança prometida, mas não cumprida, pelo Iluminismo. Um
mito que resgatasse a esperança e confiança no futuro, apontando a saída da difícil
situação em que se encontrava. Este mito é identificado, por uma ala dos
modernistas, com o poder e a lógica das máquinas; outros foram buscar na história
seu mito redentor − como ocorreu com o fascismo. A função do mito continua a
mesma: salvar o homem do domínio do acaso impulsionando-o para a ação social
positiva. Estes mitos, entretanto, não foram suficientes para impedir a eclosão de nova
guerra mundial, e foram substituídos, após 1945, por uma vinculação ao modelo
capitalista de sociedade. A modernização assumiu, desde então, conotação positivista
e tecnocêntrica; sendo orientada por planejadores especializados que detinham o
conhecimento e o poder de organizar e transformar as relações econômico-sociais.
7.4. Crítica à razão moderna em Horkheimer
Horkheimer (op. cit.) afirma que as idéias do Iluminismo sempre estiveram muito
próximas à de dominação. Seu desenvolvimento dificilmente poderia ter seguido outro
rumo, uma vez que a ligação com o autoritarismo está presente em seus
fundamentos:
“Desde sempre o Iluminismo, no sentido mais abrangente
de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar
os homens do medo e de fazer deles senhores.
(HORKHEIMER, op. cit., p. 97)
No Iluminismo, o saber esteve sempre ligado ao poder: “o que os homens querem
aprender da natureza é como aplicá-la para dominar completamente sobre ela e sobre
os homens” (ibid., p. 98). Neste aspecto, Horkheimer critica o Iluminismo pela atitude
de relegar a verdade a segundo plano, privilegiando o “proceder eficaz” (idem).
A ciência moderna, inicialmente, preocupou-se mais com fórmulas que
enquadrassem os fenômenos no âmbito do conhecido, do que com o sentido real
destes mesmos fenômenos. Desta forma, a matéria tornou-se inerte em suas mãos,
54
possibilitando a seleção das qualidades que permitissem sua melhor apreensão e
compreensão, e considerando como suspeitas as demais. A análise dos fenômenos
partia então de alguns aspectos visíveis, e ocultava, por vezes, a relação entre
fenômenos diversos. O Iluminismo aparece assim como totalitário e também
reducionista, pois: “A multiplicidade das figuras é reduzida a posição e ordenação; a
história, ao fato; as coisas, à matéria” (ibid., p. 100). A abstração científica que
transforma fenômenos em números e fórmulas serve à negação das qualidades
únicas, transformando tudo em unidades equivalentes.
A dominação sobre a natureza só é possível através do distanciamento, ou
alienação, do homem com relação a ela: só é necessário o conhecimento sobre o que
pode ser usado para a produção. O distanciamento que ocorre, então, é o
distanciamento existente entre o dominador e a coisa dominada, a natureza resume-
se apenas a seu aspecto utilitário. Da mesma forma, os indivíduos tornam-se não
diferenciados: as qualidades que os tornam únicos, como sentimentos e sensações,
são relegadas a segundo plano. A massificação é necessária para o incremento da
produção, e age sobre os desejos, necessidades e ações. Neste quadro, a linguagem
científica posta a serviço da dominação elimina qualquer possibilidade de
manifestação dos excluídos. Primordialmente em busca de validade universal, os
conceitos, teorias e signos da ciência moldam a realidade, assumindo papel
metafísico:
“Ao tornar-se, no procedimento matemático, a incógnita de
uma equação, o desconhecido fica assim caracterizado como
um velho conhecido, mesmo antes de se ter determinado o seu
valor” (HORKHEIMER, op. cit., p. 112).
Para ordenar os processos e as ações práticas, o Iluminismo procurou não
questionar o pensamento, mas fundar-se nele. Ritualizando os métodos e processos,
e restringindo o conhecimento à repetição do já conhecido, o Iluminismo identifica-se
com o mito do qual procurou se libertar desde o início, posto que ele possui a função
55
de prover o homem de explicações para os fenômenos conhecidos e, mesmo, de
respostas a questões que ainda não surgiram. Da mesma forma, o aspecto de
previsão que está irrevogavelmente ligado à estrutura da ciência moderna, procura
explicar tanto os fenômenos conhecidos quanto os desconhecidos, e assegurar a
existência do homem pela certeza de repetição das leis naturais. A repetição liberta o
homem de seus medos básicos; assim como a apropriação dos fenômenos através de
símbolos, lingüísticos ou matemáticos.
“O princípio de imanência, de explicação de todo acontecer
como uma repetição, sustentado pelo Iluminismo contra o
poder da imaginação mítica, é o princípio do próprio mito. A
sabedoria ressequida, para a qual nada de novo vige sob o sol,
desde que, no jogo sem sentido, todas as cartas já foram
jogadas, e os grandes pensamentos, todos eles já pensados,
que as possíveis descobertas podem ser antecipadamente
construídas, e que os homens estão comprometidos a se
autoconservarem pela adaptação − essa sabedoria ressequida
limita-se a renovar a sabedoria fantástica que justamente
rejeita: sanção do destino que reproduz incessantemente por
retaliação o que sempre já era.” (ibid., p. 103)
A defesa dessa situação na sociedade moderna é feita pela crença de que a
mudança levaria, fatalmente, à ruína. Se só existe uma verdade, essa se reflete em
uma sociedade estruturada em conformidade com ela. A racionalidade eleita como
guia para todas as relações e ações humanas não é flexível o suficiente para permitir
o aparecimento de novos valores, ao contrário, vê a irracionalidade como o maior dos
perigos, o retorno da barbárie.
Ao mesmo tempo, com a estruturação da sociedade sob o molde dos ideais
burgueses, o uso da razão iluminista pelos indivíduos torna-se perigoso, pois a
sociedade igualitária perfeita preconizada pelos socialistas e também pelos liberais
torna-se abstração incômoda, no sentido em que gera inconformismo. Para
56
Horkheimer (op. cit., p. 117), “a essência do Iluminismo é a alternativa cuja
inevitabilidade é a dominação”. A dominação, por sua vez, implica degeneração das
qualidades humanas, do servo pela alienação do produto final de seu trabalho, e do
senhor, pelo afastamento da experiência direta de produção:
“Enquanto suas habilidades e conhecimentos se diferenciam
pela divisão do trabalho, a humanidade é coagida a retroceder
a suas etapas antropologicamente mais primitivas, pois, com a
existência facilitada pela técnica, a permanência da dominação
condiciona a fixação dos instintos por uma opressão mais forte.
A fantasia é atrofiada”. (ibid., p. 119)
A atrofia reflete-se na incapacidade de encontrar respostas às novas questões, e
produzir pensamentos originais destacados da coletividade indistinta.
A racionalidade, entretanto, reencontra seu espaço na época atual, a fase de
acreditar em mecanismos naturais ocultos que regiam as relações econômicas já foi
superada. Hoje, as decisões sobre os rumos da economia global partem de alguns
dirigentes e se refletem por toda parte. No entanto, esta racionalidade não está
disponível, ainda, para todos: “os dominados aceitam como intocável e necessário o
desenvolvimento que, a cada aumento de custo de vida decretado, os torna ainda
mais impotentes” (ibid., p. 121). Existe o conhecimento para suprimir a desigualdade e
acabar com a miséria, mas ele é incompatível com a sociedade racional
estabelecida.
Para Horkheimer (op. cit.), apesar das limitações do Iluminismo, nele se encontra
a possibilidade de desnudar as relações de dominação e corrigir os prejuízos que
ocasionaram:
“Pois o conceito não se limita a distanciar, enquanto ciência,
os homens da natureza, mas nos permite medir ainda a
distância que eterniza a injustiça, justamente enquanto auto-
reflexo do pensar que se mantém acorrentado, na forma da
ciência, à cega tendência econômica”. (ibid., p. 123)
57
7.5. Crítica à racionalidade e à racionalização em Habermas
A racionalização, segundo Habermas (1975), está ligada ao “agir racional-com-
respeito-a-fins” tanto no sentido de um “agir instrumental”, quanto na escolha entre
alternativas, um “agir estratégico” correspondendo à orientação liberal-iluminista da
busca da eficácia. O primeiro baseia-se em “regras técnicas”, enquanto o segundo em
“estratégias baseadas no saber analítico”. Desta forma, não são apenas componentes
técnicos, neutros, que influem na ação, mas também valores pré-definidos e máximas
universais que constituem esse saber. Já o “agir comunicativo” é regido por normas
consensuais entre os sujeitos que, com o uso, tornam-se sanções; não sendo,
necessariamente, construções apriorísticas.
Com o desenvolvimento do capitalismo e das formas de produção, o crescimento
econômico foi institucionalizado, resultando no questionamento e rejeição do tipo de
legitimação tradicional. A modernização provoca mudanças no equilíbrio entre as duas
formas de ação, com a ação instrumental tornando-se preponderante em todos os
domínios da vida. O planejamento para aumentar a eficácia das relações é
característico da modernidade, e liga-se ao acelerado progresso técnico-científico. O
incremento do âmbito de ação da razão instrumental, implica o abandono de outras
formas de legitimação que não a racional. Desta forma, a razão não age mais como
critério para a crítica que permitiria a libertação do homem da dominação legitimada
pela tradição, mas torna-se, ela própria, nova fonte de legitimação.
A dominação racional tem caráter político uma vez que inibe a discussão sobre os
objetivos e interesses da sociedade, pois as atividades se atêm à organização
baseada em regras pré-definidas. O caráter político da dominação, quando legitimada
por razões técnicas, torna-se irreconhecível, embora esteja presente já na própria
constituição da técnica, que se prende a objetivos determinados a priori. A legitimação
é dada pela racionalidade do mercado: “o quadro institucional é imediatamente
58
econômico; é só de uma maneira mediata que ele é político” (HABERMAS, op. cit., p.
315), e é neste sentido que encara a técnica como ideologia.
A crescente ligação da ciência à técnica que ocorreu no desenvolvimento das
formas de produção neste século, produziu fonte de legitimação direta, posto que a
constante inovação é necessária ao crescimento econômico. As ações das grandes
organizações são condicionadas por métodos mais eficazes de “ação racional-com-
respeito-a-fins”, enquanto o comportamento dos indivíduos é controlado por normas
que visam também à eficácia do sistema, e não mais à interação através de um agir
comunicativo de ordem moral.
Deste modo, para transformar as relações sociais estabelecidas pela tecnologia,
faz-se necessário revolucionar a própria estrutura da ciência que a determina.
Habermas (op. cit.), no entanto, destaca que o desenvolvimento da técnica seguiu
encaminhamento lógico que visava à substituição, ou ao aperfeiçoamento dos órgãos
humanos na execução de tarefas e, portanto, torna-se difícil encontrar projeto
alternativo, e muito mais difícil ainda renunciar aos confortos que a tecnologia, no
nível em que está, pode proporcionar. Aponta então para novo tipo de racionalização,
que liberte o “domínio comunicativo” das imposições originadas no agir racional-com-
respeito-a-fins. Proporcionando a possibilidade de adoção de normas interiorizadas
flexíveis e sujeitas à reflexão.
“Não creio que ainda seja adequada ao capitalismo a
concepção de que há potencial tecnologicamente transbordante
que não se esgote dentro de um quadro institucional mantido
por repressão (…) A questão não é a de saber se conseguimos
esgotar um potencial disponível ou a ser ainda desenvolvido,
mas a de saber se escolhemos aquilo que podemos querer
para os fins de uma pacificação e satisfação da existência.”
(HABERMAS, op. cit., p. 331)
59
O agir racional consiste, em parte, de habilidades sobre as quais o homem não
tem controle, ou que são exercidas sem necessidade de elaboração mental. Mas,
para o autor citado, a ação racional deve permitir a formulação consciente da maior
parte do conhecimento habitual: “a função da razão prática é fornecer argumentos que
apoiem as crenças subjacentes às decisões de agir” (INGRAM, 1993, p. 40).
No âmbito individual, o agir objetiva o atendimento às necessidades pessoais,
segundo as crenças próprias sobre os tipos de ação. No tocante aos agentes sociais,
pressupõe a argumentação e o consenso entre diferentes indivíduos. A ação racional
não é exclusivamente instrumental, mas implica o atendimento a parâmetros morais e
legais:
“Assim, a ação racional é guiada não só pelas crenças
factuais, cuja pretensão à verdade pode ser objeto de
argumentação, mas também por crenças normativas,
expressivas e avaliativas que pretendem ter correção,
sinceridade, autenticidade e propriedade.”
(INGRAM, op. cit., p. 40)
Para a validade plena da argumentação entre diferentes agentes sociais, é
necessária a existência da “situação ideal do discurso”, em que todos os agentes têm
a mesma possibilidade de apresentar e rebater argumentos. Desta maneira, é
refutada a principal crítica a respeito do agir racional, que não estaria, por princípio,
limitado a seu aspecto instrumental e dominador, mas pressuporia a liberdade e
igualdade entre os agentes:
“A racionalidade de uma ação é função da extensão em que
pode ser justificada. Implícita ou explicitamente, as ações têm
pretensões à verdade, à correção moral, à propriedade, à
sinceridade e à compreensibilidade”. (ibid., p. 43)
60
As pretensões enumeradas por Ingram ( op. cit.) são enunciáveis e passíveis de
questionamento e reorganização, e localizam-se em universo conhecido, objetivo, no
qual as ações são praticadas. O modo como é exercida a racionalidade no mundo
moderno, está intimamente relacionado com sua referencialidade, que se divide nos
domínios objetivo, subjetivo e social.
“As reivindicações de validade das crenças apontam para
diferentes domínios da realidade; as pretensões à verdade
dizem respeito ao mundo dos objetos no espaço-tempo; as
pretensões à correção e justiça fazem referência ao mundo das
normas sociais; as pretensões à sinceridade e autenticidade
pertencem ao mundo pessoal dos sentimentos e desejos.”
(ibid., p. 50)
Neste ponto Habermas coloca-se como partidário da superioridade da
racionalidade moderna sobre as mítico-tradicionais, por sua capacidade de propor
enunciados verdadeiros quanto à constituição do mundo objetivo. Este pensamento
não implica irracionalidade de todas as culturas que diferem da ocidental, mas
comprova sua superioridade no nível cognitivo; a qual advém, ainda, de uma maior
flexibilidade, favorável à progressão de conhecimentos.
A racionalização cultural do ocidente, teve como resultado a autonomia das
diferentes esferas de valor − verdade, bem e beleza −, contribuindo para a
secularização do conhecimento e, também, da atividade artística:
“Assim como o desenvolvimento da tecnologia permitiu que
os empreendedores e administradores conduzissem suas
respectivas atividades com base no cálculo impessoal,
independentemente de considerações religiosas e morais,
assim também a libertação da arte do domínio da Igreja
apressou seu ingresso no mercado, permitindo a busca
desenfreada de ideais materialistas.” (INGRAM, op. cit., p. 69)
61
A arte é, ainda hoje, um dos mais evidentes campos de atuação em que se pode
perceber a mudança de ideais. A vanguarda artística teve relevante posição em todos
os momentos de consolidação dos valores modernos, assim como na atualidade
aponta para sua superação.
A libertação do domínio da Igreja ocasionou, ainda, a dissociação entre ética e
direito, cuja fundamentação é destituída do aspecto religioso. Quando o contrato
social passa a legitimar as ações, substitui a autoridade tradicional por leis impessoais
e imparciais, o julgamento sobre a validade destas leis prende-se, cada vez mais, à
eficácia de sua aplicabilidade. As descobertas científicas que proporcionam visão
coerente e racional do mundo, e produção de invenções que têm por finalidade
aumentar o conforto e a qualidade de vida humanas, adquirem importância cada vez
maior e são elevadas ao status de verdade única e absoluta.
“Embora a liberdade de consciência seja agora protegida de
pressões sociais e políticas, ela tem um papel cada vez mais
marginal na vida quotidiana. Até mesmo o desejo de alcançar
uma visão significativa do cosmos parece satisfeito pelo êxito
da ciência moderna.” (INGRAM, op. cit., p. 73)
Como a ciência e a tecnologia não respondem a questões que estão fora de seu
campo imediato de ação, apresentam-se para Weber (1992), por princípio,
desprovidas de sentido, uma vez que as várias esferas de valor do mundo − como o
bom, o belo e o verdadeiro − são irreconciliáveis. Assim, a razão surge como
irremediavelmente fragmentada, e os valores que defende, de eficiência e verdade
factual, não podem ser justificados racionalmente em comparação a outros valores.
Também em Habermas (1990) a rejeição dos mitos, assim como a burocratização
e mecanização produtiva levaram, realmente, à perda de sentido para a vida humana,
mas esta situação é contrabalançada por maior autonomia frente à tradição e pela
possibilidade do surgimento de novas formas de expressão e sentido, a partir da
comunicação entre indivíduos: “o direito representa um reino da liberdade individual
62
em que é permitido fazer tudo o que é compatível com a mesma liberdade dos outros”
(INGRAM, op. cit., p. 73). E também pelo fato de que o processo formador deste
quadro foi fruto da institucionalização da razão fragmentada, conseqüência do modo
de evolução histórica do capitalismo, podendo, portanto, ser revertido. A integração
entre as diversas orientações − cognitivo-instrumentais, moral-práticas e estético-
expressivas − da razão deve ocorrer em todas as ações, de forma não antagônica.
Toda a ação reflete a complexidade de referências − objetivas, sociais e pessoais −
que compreendem a racionalidade humana.
No capitalismo, a ampliação dos meios de comunicação de massa substitui, de
certa forma, a ação comunicativa pessoal, e libera os indivíduos da necessidade de
reagir a todos os estímulos, criando domínios de discurso especializados. Esta
situação engloba aspecto negativo e positivo: de um lado permite manipulação de
alguns agentes sobre a maioria e, por outro, permite consenso sobre problemas que
afetam grande número de indivíduos.
Habermas (op. cit.), em alguns momentos, identifica o progresso com a crescente
capacidade de resolução de problemas, mas isto pressupõe alguma forma de
comparação entre seus diferentes tipos e, mesmo, a definição do que corresponderia
a uma solução, o que pode assumir diferentes conotações em culturas diversas. A
diversidade apontada por Habermas (op. cit.) possibilita a identificação da
generalização do conceito de progresso, com o de dominação. Analisando o
pensamento de Weber, Ingram (op. cit.) afirma que:
“A racionalização do mundo vivo leva a três ‘ilusões’: que a
linguagem ordinária é um meio de conhecimento verídico e
transparente; que a interação comunicativa se caracteriza pela
pura reciprocidade; que os indivíduos são plenamente
conscientes dos seus motivos, que funcionam como
pressupostos contrafactuais à ação comunicativa”. (p. 156)
63
Os tipos de dominação, puros, que Weber (op. cit.) descreve − de caráter
racional, tradicional e carismático − são tipos ideais, que não ocorrem isolados uns
dos outros na realidade, mas prestam-se à aproximação conceitual. Dentre os três, o
que possui maior relevância na modernidade é o de caráter racional, exercido com
base em leis e regras instituídas racionalmente de acordo com valores pré-
determinados a que todos os membros do grupo devem obedecer a fim de que sejam
aceitos como partícipes em suas interações.
7.6. Crítica à modernidade em Nietzsche
A existência de uma verdade absoluta, às vezes sobrenatural, é o fundamento de
filosofias diversas desde Platão, e é inerente ao pensamento moderno, pois possibilita
o exercício da racionalidade na tentativa de compreensão do mundo.
Nietzsche (1991) questiona esta verdade da “coisa em si”, assim como
problematiza também, por princípio, a oposição de valores que eleva a verdade e o
não-egoísmo ao invés do engano e das atitudes egoísticas: “A falsidade de um juízo
ainda não é para nós nenhuma objeção contra esse juízo” (p. 50).
Rejeita o cogito cartesiano que contém em si diversas afirmações nas quais
baseia sua pretensão à verdade − como a existência de um eu pensante, e a
identificação desta atividade como um pensar −, possuindo portanto fundamentação
frágil. A racionalidade moderna é questionada logo no seu fundamento mais básico: a
própria existência e independência do pensamento, pois
“aquele ‘eu penso’ pressupõe que eu compare meu estado
no instante com outros estados que conheço em mim, para
assim estabelecer o que ele é: dada essa remetência a um
‘saber’ de outra procedência, ele não tem para mim, em todo
caso, nenhuma certeza imediata”. (ibid., p. 51)
A instância da consciência como conhecedora do mundo fundar-se-ia em
preconceito moral, dando à verdade valor maior que à aparência, e tornando-a, em si,
64
enganosa. A realidade seria então em Nietzsche, apreendida do mesmo modo como
agem nossas emoções: através da ação recíproca e orgânica entre “impulsos”.
“Suposto que nada outro está ‘dado’ como real, a não ser
nosso mundo dos apetites e paixões, que não podemos descer
ou subir a nenhuma outra ‘realidade’, a não ser precisamente à
realidade de nossos impulsos − pois pensar é apenas uma
proporção desses impulsos entre si −: não é permitido fazer o
ensaio e perguntar a pergunta, se esse dado não basta para, a
partir de seu semelhante, entender também o assim chamado
mundo mecânico (ou ‘material’)”? (ibid., p. 54)
O fundamento passa a ser, assim, a emoção, e não mais a razão pura e fria. A
ação da vontade só pode ser dada sobre a própria vontade. Baseando-se neste
princípio, Nietzsche (op. cit.) supõe ser a “vontade” a causa primeira e única dos
fenômenos percebidos, apresentando “o mundo visto de dentro” (p. 55) como
“vontade de potência” apenas.
O sentido de todas as coisas seria dado por esta “vontade de potência” que se
apropria de algo preexistente e lhe impõe um uso. O progresso seria mais uma
transformação de formas e sentidos que um desenvolvimento natural de um processo
qualquer: “é, pelo contrário, a sucessão de processos mais ou menos profundos, mais
ou menos independentes um do outro…“ (op. cit., p. 88). O progresso não seria
natural e inevitável como afirmava “o gosto do tempo” (idem) pela voz dos
modernistas, mas corresponderia, antes, à ação da vontade. As leis naturais
descobertas pela investigação científica seriam apenas “arranjo ingenuamente
humanitário e uma distorção de sentido” (ibid., p. 52) visando à implantação dos ideais
modernos de igualdade e democracia; trata-se da ideologia, da tentativa de
materialização de uma “vontade”.
A nova compreensão do mundo, livre dos preconceitos que a relacionam,
univocamente, à busca da verdade, exige o surgimento de novos filósofos de “espírito
65
livre”. Liberdade diversa da preconizada pelo ideal moderno, como condição, ao
mesmo tempo, moral e intelectual. A crítica de Nietzsche é veemente, e provoca
reviravolta na interpretação então corrente de liberdade, como vinculada à igualdade
iluminista:
“Não passam, em suma, de niveladores, esses falsamente
chamados ‘espíritos livres’ − escravos loquazes e
escrevinhadores do gosto democrático e de suas ‘idéias
modernas’; (…) bravos rapazes desajeitados, aos quais não se
deve negar coragem nem costumes respeitáveis, só que são,
justamente, não-livres e ridiculamente superficiais, sobretudo
com sua propensão fundamental a ver nas formas da velha
sociedade que existiu até agora mais ou menos a causa de
toda miséria e fracasso dos homens (…) suas duas cantigas e
doutrinas mais fartamente cantadas se chamam ‘igualdade de
direitos’ e ‘simpatia por tudo o que sofre’ − e o próprio sofrer é
tomado por eles como algo que é preciso abolir.” (ibid., p. 55)
É realmente esta a intenção do Iluminismo em qualquer de seus movimentos
componentes: contribuir para um estado de bem-estar que pudesse ser compartilhado
por todos os homens; e o progresso caminharia neste sentido. Nietzsche (op. cit.)
afirma, ao contrário, que todo o desenvolvimento deve-se a situações adversas e
perigosas, onde a “vontade de vida” cresce e manifesta-se com grau maior de
eficiência. Seu “espírito livre” é liberto também destes objetivos, é pura “vontade de
potência”, com características estéticas marcantes e pleno de criatividade.
A superficialidade nas idéias modernas, que caracteriza um de seus pontos fracos
estaria ligada, para Nietzsche (op. cit.), ao instinto de conservação dos homens, que
imaturos não podem “chegar à posse da verdade cedo demais” (p. 58); desta forma,
os artistas seriam “crianças escaldadas” (p. 57) para quem o falseamento da realidade
tem o propósito de escamotear aquela verdade. Neste sentido, a religiosidade tem,
também, a mesma finalidade: da “inverdade a todo preço” (idem). Esta, entretanto,
66
age no sentido de direcionar o pensamento para uma força supranatural, enquanto os
modernos buscam deduzir a verdade última de todas as coisas através de suas
relações naturais, sem aprofundar o pensamento na pesquisa de sua essência.
A igualdade preconizada pelos iluministas também é criticada por Nietzsche (op.
cit.), tanto nos anarquistas e socialistas − “broncos filosofastros e fanáticos de
irmandade” (p. 62) − quanto nos democratas − “pacífico-laboriosos” (idem) −,
atribuindo a todos a defesa de uma sociedade que se diz livre, embora esteja, no
íntimo, ligada à “moral de animais-de-rebanho” que assolaria a Europa:
“unânimes … na fundamental e instintiva hostilidade contra
toda outra forma de sociedade que não a do rebanho autônomo
(…) ; unânimes na tenaz resistência contra toda pretensão
particular, todo direito particular e privilégio (…); unânimes na
desconfiança contra a justiça penal (…) ; mas igualmente
unânimes na religião da compaixão, na simpatia que se estende
a tudo que sente, vive, sofre (…) ; unânimes todos eles na
gritaria e na impaciência da compaixão, no ódio mortal contra o
sofrimento em geral, na quase feminina inaptidão para
permanecer espectador, para deixar sofrer; … unânimes na
crença na moral da compaixão em comum, como se ela fosse a
moral em si, fosse a altura, a altura alcançada do homem, a
única esperança de futuro, o meio de consolidação dos
presentes, a grande remissão de toda culpa desde sempre: −
unânimes todos eles na crença em uma comunidade como
redentora, no rebanho, portanto, em ‘si’…” (idem)
A moral desvenda-se, assim, como forma de coação disfarçada em doutrina do
bem e do mal que se justifica em si mesma. Este nivelamento dos homens diante de
uma moral igualitária significa, para Nietzsche (op. cit.), seu “apequenamento” ou
“mediocrização”, com a perda ou desperdício de algumas qualidades individuais
diferenciadoras; assim como ocorre também com a compaixão pelos fracos, pois
67
acredita que somente através do sofrimento e da luta constante é que o homem pode
se fortalecer e alcançar grau mais alto de realização individual. A mudança destes
valores só se realizaria diante de “novos filósofos”, “espíritos fortes e originais”,
realmente livres. Estes são os interlocutores procurados, ou desejados, por Nietzsche.
N’A genealogia da moral, Nietzsche (1993) distingue fortemente os valores
advindos de uma “moral de escravos” e os oriundos da “moral de senhores”. A moral
de escravos visa ao futuro e à mudança, o bem relaciona-se às ações que objetivam a
melhoria das condições de vida dos que sofrem. Para o segundo tipo, o bem
confunde-se com o nobre, e o homem nobre é “criador de valores” (op. cit., p. 72): é
uma moral que glorifica o indivíduo, liga-se, intimamente, ao passado e à tradição.
Aos nobres são destinadas as intenções mais elevadas, de aperfeiçoamento individual
e felicidade plena, enquanto aos escravos designa inveja, vingança e ressentimento,
aliados a certa dose de subterfúgios que tornam essa classe cada vez mais esperta −
esperteza que tem por finalidade lutar contra as adversidades naturais que atingem a
todos os “escravos”. Sua crítica ao homem moderno prende-se à oposição entre a
distinção pessoal buscada pelo nobre, e a igualdade perseguida pelos escravos, e
defendida pelo Iluminismo e pela modernidade:
“o apequenamento e igualamento do homem europeu
aninha nosso maior perigo, pois essa visão cansa … Não
vemos hoje nada que queira se tornar maior, pressentimos que
tudo vai cada vez mais para trás, para trás, para o mais diluído,
mais chinês, mais cristão − o homem, sem dúvida nenhuma, se
torna cada vez ‘melhor’… Aqui justamente está a fatalidade da
Europa − com o medo ao homem perdemos também o amor a
ele, a veneração por ele, a esperança nele, e até mesmo a
vontade dele. A visão do homem agora cansa − o que é hoje
niilismo, se não é isso? … Estamos cansados do homem …“
(op. cit., p. 83)
68
A crítica de Nietzsche não deixa de lado nenhum dos aspectos privilegiados pelo
ideal modernista; quanto à ciência, afirma que sua preponderância significa o
“empobrecimento da vida”: “as emoções tornadas frias, o tempo tornado lento, a
dialética no lugar do instinto, a seriedade impressa nos rostos e gestos…“ (ibid., p.
101).
Denuncia ainda a falta de um ideal que norteie a atividade científica, retirando
qualquer possibilidade de enriquecimento vital e espiritual, que seria o objetivo dos
“novos filósofos”. E aponta a objetividade e a cientificidade como estando
relacionadas ao ceticismo que atravessa a sociedade de alto a baixo, decorrente de
paralisia da vontade:
“a ciência é hoje um esconderijo para toda espécie de
desânimo, descrença, verme corrosivo, despectio sui, má
consciência − ela é a própria intranqüilidade da ausência de
ideal, o sofrimento com a falta do grande amor, a insatisfação
de uma involuntária frugalidade.” (ibid. p. 97)
Todas as críticas à modernidade realizadas por Nietzsche colaboraram para a
reflexão sobre fundamentos até então admitidos como verdade absoluta, como era a
pretensão iluminista e moderna. A partir de então, novas possibilidades de
pensamento são percebidas e, quando somadas às demais críticas realizadas no
século XX sobre problemas provocados pelo desenvolvimento capitalista, começam a
apontar em direção a novas teorias filosóficas e sociais, ditas pós-modernas.
8. A pós-modernidade
8.1. O conceito de Pós-modernidade
Diversos autores ao tratar da nova orientação social que está sendo construída,
referem-se a ela como pós-modernismo, e outros como pós-modernidade. Tendo já
definido, no item 5 deste trabalho, que o termo Modernismo seria utilizado para o
movimento artístico que surgiu no início do século XX, e o termo modernidade para a
69
teoria que fundamenta esse movimento e a estrutura e as práticas sociais neste
século, seria mais adequado procurar diferenciação semelhante para os termos pós-
modernidade e pós-modernismo. No entanto, devido à grande indefinição que ainda
ocorre nesta área, esse posicionamento torna-se complexo e, até mesmo, inútil, posto
que as reflexões sobre a pós-modernidade podem levar à conclusão de que ela não
configura construção teórica independente da modernidade. Não é objetivo deste
trabalho apresentar posição final sobre tema tão controvertido, deste modo, o primeiro
termo será utilizado preferencialmente, salvo quando houver a necessidade de
respeitar a opção de algum dos autores estudados.
A pós-modernidade surge, em alguns momentos, como estruturação social e, em
outros, como construção teórica alternativa. Ambos os sentidos serão abordados de
acordo com a ênfase que recebem de cada autor citado, assim como sua importância
para o questionamento subseqüente sobre sua relação com a educação.
Após todas as críticas sobre a concretização do projeto de modernidade baseado
no Iluminismo, torna-se necessário analisar as correntes téoricas pós-modernas a fim
de estabelecer se representam efetivamente outra direção para os objetivos modernos
iniciais ou rompimento radical na direção de nova estruturação conceitual. Qualquer
que seja a orientação seguida, a pós-modernidade sempre se afirma pela negação da
modernidade, seja a negação de seus princípios ou apenas da forma como foi
concretizada. Para alguns trata-se de movimento resultante da evolução natural dos
conceitos modernos, a que passamos sem ruptura, como conseqüência das
mudanças sociais acarretadas pela evolução do capitalismo e da tecnologia.
“O Modernismo está longe de estar morto − suas categorias
centrais estão simplesmente sendo escritas no interior de uma
pluralidade de narrativas que estão tentando enfrentar o novo
conjunto de configurações sociais, políticas, técnicas e científicas
que constituem a era atual.” (GIROUX , 1993, p. 47)
70
O termo pós já insinua que a nova teoria tem continuidade com a precedente:
“qualquer tradição que se identifica como pós-algo está também aceitando a
importância básica da tradição que se propõe superar” (BURBULES, 1993, p. 179).
Outros autores, no entanto, crêem em modificação profunda, e anunciam nova
conformação paradigmática, como Lyotard. Mas não se apóiam em nenhum princípio
básico que sustente uma teoria e que sirva como argumento para convencer outros
indivíduos de sua veracidade, acontecendo justamente o inverso: a pós-modernidade
em Lyotard (op. cit.) nega qualquer princípio universal. Devido a essas diferenças,
Harvey (op. cit.) defende que a perplexidade frente às mudanças conceituais
contemporâneas só permite afirmar que se trata de uma “reação ao ‘Modernismo’ ou
de afastamento dele” (p. 19). E Silva (op. cit., p. 123) afirma:
“Assim, o pós-modernismo é definido por idéias mais
gerais sobre a caracterização social, econômica e cultural de
nossa época (a ‘condição pós-moderna’) e por uma negação
daqueles pressupostos epistemológicos que são descritos
como tendo caracterizado a análise e o pensamento modernos
(a crença na razão e no Progresso e no poder emancipatório da
Ciência, uma concepção ‘realista’ do conhecimento e da
linguagem, a confiança nas metanarrativas).”
O projeto alternativo, resultante da não concretização integral dos ideais
modernos, encontra-se esgotado, embora seus elementos sirvam de guia para a
busca de novas soluções para os conflitos sociais, pois compõem a base da
sociedade ou, de acordo com Santos (op. cit.):
“são eles que constituem a nossa contemporaneidade e é
deles que temos de partir para imaginar o futuro e criar as
necessidades radicais cuja satisfação o tornarão diferente e
melhor que o presente.” (p. 102)
Apesar da variedade de teorias existentes, ditas pós-modernas, a crítica à
modernidade que caracteriza todas elas se concentram em torno de afirmações
71
comuns, como a negação das metanarrativas e a irrealidade do conhecimento que se
baseia em percepções mutáveis e realidades múltiplas.
8.2. A Pós-Modernidade e os jogos de linguagem
A análise de Lyotard (op. cit.) é desenvolvida essencialmente em torno do
problema da linguagem, que difere da concepção aceita na modernidade. Na
sociedade moderna, o privilégio da razão instrumental sobre todos os outros aspectos
da razão, levou a um tipo de discurso específico para definir e regular as ações, o
científico, que o mesmo autor conceitua:
“Usarei o termo moderno para designar qualquer ciência
que legitime a si mesma com referência a um metadiscurso
desse tipo, fazendo um apelo explícito a alguma grande
narrativa, tal como a dialética do Espírito, a hermenêutica do
significado, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador
ou a criação de riqueza.” (p. xxii)
O discurso científico admite tipos diferentes de enunciados: o primeiro,
denotativo, tem como característica a autoridade do remetente para estabelecer
conceitos, devendo apenas basear-se em regras que definem o que é um enunciado
válido, estas regras formam o conjunto maior do “metadiscurso”; sob outro aspecto,
assumem a forma de enunciados de desempenho, verificáveis através de algum tipo
de experimentação cujas regras são previamente definidas pelo discurso denotativo.
O segundo tipo de enunciado são as prescrições, que indicam a autoridade do
remetente para emitir ordens e a predisposição do destinatário para obedecer, ou
reconhecer esta autoridade.
Já nas sociedades tradicionais, predomina o tipo de discurso narrativo, baseado
em regras pragmáticas. Histórias sobre a experiência de heróis são transmitidas de
um indivíduo para outro através de relatos que determinam as experiências positivas e
negativas para todo o grupo social, tanto no sentido da eficácia das ações quanto de
sua validade moral.
72
“Os relatos determinam os critérios de competência e/ou
ilustram a sua aplicação. Eles definem assim o que se tem o
direito de dizer e de fazer na cultura e, como também eles são
uma parte desta, encontram-se legitimados.”
(LYOTARD, op. cit., p. 42)
A orientação seguida na estruturação do conhecimento científico na modernidade
− seja por acúmulo ou através de seguidas revoluções − foi fruto de escolhas prévias,
que configuraram um paradigma e que também determinaram os estatutos éticos e
políticos adotados. É vital para a compreensão do estado fragmentado da pós-
modernidade, especialmente em Lyotard (op. cit.), o entendimento de que existem
regras que determinam a validade de qualquer enunciado científico e que dependem
da legitimidade da linguagem utilizada, assim como dos agentes envolvidos:
remetentes e destinatários. E, na pós-modernidade, a característica desta legitimação
seria a de um “jogo”, em que os lances são feitos por diferentes atores e validados
através de contratos temporários, explícitos ou não.
“ O primeiro princípio que alicerça todo nosso método: é
que falar é combater, no sentido de jogar, e que os atos de
linguagem provém de uma agonística geral. … segundo
princípio que lhe é complementar e norteia nossa análise: é que
o vínculo social observável é feito de ‘lances’ de linguagem”.
(LYOTARD, op. cit., p. 17)
O saber para este autor não é limitado ao conhecimento científico, mas engloba
também um “saber-fazer”, “saber-viver” e “saber-escutar” (ibid., p. 36), e contribui para
a formação do indivíduo e suas competências. A validade dos diferentes saberes é
medida por sua aceitação consensual, que constitui uma cultura. O consenso não
constitui a verdade, mas a possibilidade de supor que a realidade comporta-se de
uma ou outra maneira. A crise no saber científico, que ocorre no século XX, deriva “da
erosão interna do princípio de legitimação do saber” (ibid., p. 71). O conhecimento
73
científico é definido por regras que não têm competência para definir se as ações
práticas dele decorrentes são justas ou não, trata-se de diferentes competências, pois
“Nada prova que se um enunciado que descreve uma
realidade é verdadeiro, o enunciado prescritivo, que terá
necessariamente por efeito modificá-la, seja justo.” (ibid., p. 72)
A ausência de uma metalinguagem que permita a legitimação do saber científico
introduz a necessidade de sistemas “formais e axiomáticos” (ibid., p. 79) capazes de
garantir a verdade de um enunciado. Neste momento, as técnicas adquirem caráter
exemplar, pois obedecem a critério de “otimização das performances” (ibid., p. 81).
Para a ciência, entretanto, a melhoria das performances não é o objetivo inicial, posto
que implica o controle sobre todas as variáveis do sistema, o que descobertas como
as da física atômica e da mecânica quântica, por exemplo, provaram ser irrealizável.
Existe sempre um limite para o controle e, até mesmo, o conhecimento de todas as
variáveis envolvidas.
A própria natureza da comunicação transforma-se na passagem da Modernidade
para a pós-modernidade, pois o primeiro identificava univocamente o conceito e seu
signo, enquanto os últimos destacam a importância dos agentes envolvidos na
comunicação que irão determinar tanto o significado quanto a própria possibilidade de
comunicação, dependente do sentido que remetente e destinatário designam para
cada signo lingüístico.
Além disto, os pós-modernos também admitem a variação constante destas
relações significado-significante pela intermediação dos diferentes agentes, e pela
mutabilidade das percepções da realidade. A impossibilidade de estender o alcance
de uma comunidade interpretativa a outras reflete-se na impraticabilidade de um
projeto global de ação, que se restringe a determinismos locais.
“O Modernismo dedicava-se muito à busca de futuros
melhores, mesmo que a frustração perpétua desse alvo
levasse à paranóia. Mas o pós-modernismo tipicamente
74
descarta essa possibilidade ao concentrar-se nas
circunstâncias esquizofrênicas induzidas pela fragmentação e
por todas as instabilidades que nos impedem até mesmo de
representar coerentemente algum futuro radicalmente
diferente.” (HARVEY, op. cit., p. 57)
A tendência relativista daí decorrente é combatida por autores como Habermas
(op. cit.) e Rouanet (op. cit.) − e, de certa forma, Santos (op. cit.) − que enxergam um
mínimo de consensualidade em alguns objetivos, ainda que não tenham sido
alcançados efetivamente no passado.
Lyotard (op. cit.) destaca ainda que a sociedade é formada por inúmeras e
variadas relações, tornando impossível a construção de uma metaprescrição comum a
todos os tipos de jogos de linguagem envolvidos, que seja passível de consenso entre
todos os agentes. Com esta argumentação, o autor critica a busca da universalidade
típica da modernidade − embora admita, contraditoriamente, um outro, a justiça.
A informatização da sociedade tolera duas situações opostas, segundo o mesmo
autor, podendo servir de instrumento de dominação quando ligada ao critério de
desempenho e controlada por pequeno número de pessoas − no que concordam
vários críticos da modernidade, como citado em capítulos anteriores − ou servir aos
subgrupos sociais para a formulação de regras locais e temporárias sobre a
legitimação do saber. A principal diferença entre as duas formas é quanto à
acessibilidade das informações, que irá definir o tipo de estrutura social adequada. O
que depende, primariamente, da orientação que se deseja imprimir na sociedade, e a
definição prévia de seus valores. A identificação da informação com o poder só
contribuiria para uma reforma nas relações sociais, caso o acesso às informações
fosse igual para todos, o que é desmentido pela prática que se percebe nas
sociedades contemporâneas, e que não é privilégio do ocidente.
A afirmativa de que a informação é a mais nova fonte de poder é enfraquecida
pela multiplicidade de jogos de linguagem existentes, pois não se define em relação a
75
qual discurso este poder será legitimado. Atualmente, a resposta tem sido o discurso
de desempenho, que traduz a eficácia do sistema, de toda espécie de sistemas. Mas
esta é uma construção histórica, não possui fundamento epistemológico ou lógico fora
de si mesma; não podendo ser considerada como valor universal. Reintroduz-se em
cena a questão da multiplicidade de vozes, a fragmentação da linguagem e do próprio
conhecimento.
“A pragmática científica está centrada sobre os enunciados
denotativos, daí resultando instituições de conhecimento. Mas
seu desenvolvimento pós-moderno coloca em primeiro plano
um ‘fato’ decisivo: é que mesmo a discussão de enunciados
denotativos exige regras. Ora, as regras são enunciados
prescritivos, que é melhor chamar de metadescritivos para
evitar confusões. A atividade diversificante, ou de imaginação
tem por função revelar estes metaprescritivos (os
‘pressupostos’) e de pedir para que os parceiros aceitem
outros. A única legitimação que torna aceitável esta démarche,
seria a de que produzirá idéias, isto é, novos enunciados.”
(LYOTARD, op. cit., p. 117)
Lyotard conclui, então, que o dissenso é a melhor forma de ação, uma vez que
permite fecundar idéias, e construir ilhas de conhecimento com jogos de linguagem
específicos, capazes de compor visão mais ampla, liberta dos limites das idéias
preconcebidas, sem relação com tradições de autoritarismo.
8.3. Características da pós-modernidade
A condição pós-moderna, como a definem alguns autores − Harvey (op. cit.) e
Giroux (op. cit.), por exemplo − está intimamente relacionada a mudanças políticas e
tecnológicas, que levam à redistribuição do poder político e da legitimação cultural,
assim como resultam também em transformações nas relações de produção e novas
formas de crítica aos modelos culturais, antes hegemônicos. Na economia, a
76
desorganização do capital contribuiu para o surgimento de vários elementos que
compõem a pós-modernidade, como a descentralização geográfica e cultural, as
novas forças de produção voltadas primariamente para os serviços ou para a área da
informação, e o colapso de alguns centros de poder econômico, substituídos por
outros. Além disso, a própria reprodução de imagens e símbolos, característica central
na pós-modernidade, é devida em grande parte ao capitalismo.
A pós-modernidade representa o rompimento de fronteiras, mas não no sentido
moderno de difusão de uma cultura, mas no sentido caótico da mistura de diversas
culturas. A importância dos meios de comunicação de massa na formação das
identidades individuais, da linguagem e das estruturas sociais é relevante nas teorias
pós-modernas, desvelando a relação entre o poder e a produção de conhecimento. A
possibilidade de crítica cultural — ponto positivo de destaque para diversos autores
que enxergam a pós-modernidade como momento que propicia a efetiva libertação
dos aspectos ligados à dominação que compõem o projeto moderno — advém da
compreensão destas relações. A emancipação racional e política desejada só seria
possível através da construção de espaço próprio para o pensamento e ação
alternativos, assim como da percepção de que os significados de objetos e práticas
culturais são construídos também a partir da experiência individual.
“Com efeito, ao constituir os objetos culturais como
linguagem, tornou-se possível questionar radicalmente a visão
hegemônica da representação que argumenta que o
conhecimento, a verdade e a razão são governados por
códigos e regulações lingüísticas que são essencialmente
neutros e apolíticos”. (GIROUX, op. cit., p. 59)
A tendência pós-moderna de negar os discursos universais provém da
desconfiança contra este tipo de discurso, e da tentativa de abalar a excessiva
confiança que a elite intelectual moderna sempre apresentou enquanto buscava
estabelecer a verdade única e imutável. Esta desconfiança é direcionada a tendências
77
bastante diferentes, como o cristianismo e o marxismo, por exemplo, e a qualquer tipo
de discurso totalizador. A negação da universalidade transfere o foco das atenções do
homem moderno, modelo abstrato, para os indivíduos em suas relações cotidianas
mais próximas, isto é, há uma tendência muito maior de valorização da atuação
individual do que da generalização em torno de uma verdade universal. Na
arquitetura, por exemplo, a preocupação moderna com o zoneamento funcional dos
centros urbanos é transformada, agora, na busca da organicidade, de modo que as
próprias atividades desenham no espaço sua melhor distribuição, de acordo com as
práticas culturais preexistentes, possibilitando respostas flexíveis dependentes de
variáveis locais, e não mais fórmulas rígidas de ação. Entretanto, mesmo esta
negação do discurso moderno não conduz à teoria organizada a que se possa
denominar pós-moderna, pois não existe coerência interna em sua estruturação.
Lyotard (op. cit.) denomina pós-modernismo, a condição da sociedade após as
transformações culturais do século XX. A tendência de valorização do saber
tecnológico e da racionalização instrumental nas relações sociais, perceptível na
modernidade, intensifica-se, fato tido como irreversível, pois “não se vê que outra
orientação as tecnologias modernas poderiam tomar que fosse uma alternativa à
informatização da sociedade” (LYOTARD, op. cit., p. 11). A condição pós-moderna
estaria diretamente relacionada à dependência tecnológica e informacional da
sociedade, a questão principal não sendo mais a busca da verdade, mas a melhoria
da eficácia dos sistemas − econômicos ou sociais. A hipótese apresentada pelo autor
é a de que o saber científico − que depende de um discurso definidor estabelecido
pelo paradigma vigente − muda com a transformação cultural pós-moderna, uma vez
que todo o saber deve ser representável como quantidades de informação. Orientado
por tal raciocínio, Lyotard (op. cit., p. 4) afirma:
“Pode-se então prever que tudo o que no saber constituído
não é traduzível será abandonado, e que a orientação das
novas pesquisas se subordinará à condição de tradutibilidade
78
dos resultados eventuais em linguagem de máquina … com a
hegemonia da informática, impõe-se uma certa lógica e, por
conseguinte, um conjunto de prescrições que versam sobre os
enunciados aceitos como ‘de saber’.”
Neste sentido, o autor buscou retratar a forma como percebe a realidade,
reportando-se à sociedade capitalista ocidental em que vive. Não se trata, então, de
projeto conceitual pós-moderno, mas análise das condições existentes, ainda que
baseada em percepção individual localizada espacial e temporalmente.
Santos (op. cit.) também elabora análise da modernidade a partir de seus
aspectos característicos e do modo como foram concretizados. A começar pela
fragmentação da racionalidade, fruto do desequilíbrio entre a busca da compreensão
do mundo e da preocupação com a qualidade de vida dos indivíduos. A racionalidade
científica tornou-se, na modernidade, a única forma válida de razão, independente de
valores externos à sua própria auto-afirmação.
“o efeito mais evidente desse desastre é a situação
epistemológica em que nos encontramos e que se pode
sumariar no seguinte: a ignorância é cada vez menos
desculpável e algum conhecimento é cada vez mais intolerável
(penso, por exemplo, na bio-tecnologia e na engenharia
genética).” (SANTOS, op. cit., p. 104)
A ruptura do saber científico com o senso comum e com valores externos à
ciência, como a moral e a religião, permitiu o imenso avanço iniciado no Iluminismo,
mas chegou o momento de produzir outra forma de senso comum, talvez baseada em
novos princípios éticos e morais que não estejam ligados apenas à tradição, mas às
reais necessidades humanas, uma vez que o progresso tecnológico não cumpriu seus
objetivos iniciais.
A resposta da modernidade aos problemas sempre passou por sua fragmentação
e pela elaboração de técnicas adequadas a cada situação. Daí o desequilíbrio entre a
consecução de suas diferentes metas, posto que somente algumas delas adequavam-
79
se a esta prática; às demais não era dada nem mesmo a possibilidade de existência,
sendo relegadas a segundo plano e, depois, totalmente esquecidas.
Um outro aspecto do saber na modernidade refere-se ao distanciamento entre o
sujeito e o mundo em que vive. Para que possa enxergar este mundo como um todo,
o indivíduo deve se retirar do mundo e buscar a forma de conhecê-lo, representá-lo e
dominá-lo, mesmo negando algumas de suas características. Já na pós-modernidade,
nenhum aspecto é negligenciado, mundos virtuais, temporários, visões pessoais,
todos são valorizados. A crítica às condições de uma destas realidades só é possível
após afirmação desta realidade, com a perspectiva de um sujeito nela inserido, ainda
que a percepção seja limitada e individualizada. Encontramo-nos, então, em momento
propício para o surgimento de diferenças de opinião e conflito de idéias, até que se
possa alcançar o equilíbrio desejado. Este equilíbrio não implica uma só teoria
epistemológica que dê conta de toda a realidade, mas, até mesmo, a coexistência de
diferentes teorias para diferentes formas de encará-la.
A elaboração da teoria que responda aos novos questionamentos, esbarra com a
dificuldade de definir quais os principais problemas que a sociedade moderna enfrenta
e identificar sua origem, que são, nas palavras de Santos (op. cit., p. 320-321):
“Em primeiro lugar, a dificuldade do sujeito. O capitalismo
é hoje menos um modo de produção que um modo de vida. O
individualismo e o consumismo transferiram para a esfera
privada a equação entre interesse e capacidade. É nessa
esfera que hoje os indivíduos identificam melhor os seus
interesses e as capacidades para lhes dar satisfação. … A
segunda dificuldade diz respeito à temporalidade própria de
uma solução fundamental. Hoje, a classe política vive atascada
nos problemas e nas soluções de curto prazo, segundo a
temporalidade própria dos ciclos eleitorais, nos países centrais,
ou nos golpes e contra-golpes, nos países periféricos. Por outro
lado, uma parte significativa da população nos países centrais
80
vive dominada pela temporalidade cada vez mais curta e
obsolescente do consumo, enquanto uma grande maioria da
população dos países periféricos vive dominada pelo prazo
imediato e pela urgência da sobrevivência diária. … a terceira e
última dificuldade das soluções fundamentais: a questão do
inimigo. Ao contrário do que se poderia pensar, a globalização
dos problemas não torna os seus causadores mais visíveis ou
mais facilmente identificáveis. De algum modo, a globalização
dos problemas globaliza o inimigo e se o inimigo está em toda a
parte, não está em parte nenhuma.”
Outros autores de diferentes tendências divergem quanto ao discurso, embora
concordem sobre a identificação destes pontos críticos da sociedade moderna, alguns
elementos repetem-se continuamente.
A ênfase pós-moderna nas aparências, na superficialidade, relaciona-se à
concentração no momento presente derivada da incapacidade de intuir o futuro, ou no
descrédito deste. A idéia de progresso, inerente à modernidade, é rejeitada pelos pós-
modernos; a própria noção de continuidade temporal torna-se passível de
interpretações. Embasadas pela teoria física da relatividade temporal, a ficção e a arte
refletem a perda de linearidade pela justaposição de momentos e imagens.
A importância central que as aparências assumem, resulta na perda de objetivos
mais profundos. Os pós-modernos não enfrentam a questão, posta à teoria moderna,
sobre a essência das coisas, o “imutável” que buscava Baudelaire (op. cit.) sob o
“transitório”. A busca do novo no projeto moderno pressupunha a melhoria das
condições gerais de vida, o progresso; na pós-modernidade pressupõe novos
modismos, a concretização das possibilidades técnicas que os homens têm a seu
dispor, e a renovação de demandas necessária à sobrevivência do capitalismo. A
palavra de ordem na pós-modernidade é a transitoriedade.
“Nessa perspectiva, não existe lugar algum para uma
epistemologia que busque as supremas exaltações da verdade
81
e que faça uma leitura profunda da realidade ou tente penetrá-
la a fim de desvelar a essência de seu significado. A realidade
está na superfície.” (GIROUX, op. cit., p. 49)
A valorização da aparência age também sobre a formação da identidade pessoal.
Cada vez mais os signos externos, como roupas, carros ou telefones móveis, são
indicativos da personalidade do indivíduo. Ao mesmo tempo, algum tipo de
permanência é essencial para que o homem possa situar-se no mundo, o que é dado
pelo revivalismo religioso e pela revalorização das raízes histórico-culturais.
Harvey (op. cit.) destaca como característica vital da pós-modernidade, “seu
enraizamento na vida cotidiana” (p. 65), que o diferencia do projeto moderno; antes
um planejamento com vistas a um objetivo determinado que a aceitação da situação
existente. Na pós-modernidade, a realidade é fluida, muda com a perspectiva
individual. Sendo assim, não é possível elaborar projeto a longo prazo que
desconsidere a diversidade de percepções. As decisões sobre o tipo de ações a
realizar tornam-se, conseqüentemente, temporárias.
Outra característica da pós-modernidade é o ecletismo, originado pela facilidade
de contato entre diferentes culturas e reprodução de todo tipo de artefato cultural ou
tecnológico, que aumenta as escolhas e permite grande variedade nos gostos e
hábitos; ainda que estes sejam, muitas vezes, condicionados pela massificação
cultural típica do ocidente, o que provoca modificação nas relações de dominação,
como afirma Giroux (op. cit., p 50):
“A dominação agora tem lugar através da proliferação de
signos, imagens e significados que nos envolvem sem uma
indicação de onde vêm nem tampouco do que significam. A
tarefa não consiste em interpretar mas em consumir − regozija-
se na pluralidade de incertezas que não reivindicam quaisquer
fronteiras e não buscam solução alguma.”
82
8.4. Contribuições da pós-modernidade às novas teor ias sociais
As teorias pós-modernas expressas até o momento são positivas no sentido em
que reconhecem as diferenças culturais e denunciam algumas distorções na
concretização do projeto moderno. Podem ser consideradas, também, revolucionárias
quando negam toda fundamentação e legitimação − racional ou não − das ações,
deixando-as ao ensejo de lances em um jogo sem regras fixas − como afirma Lyotard
(op. cit.) −, o que permite que se concretizem, ainda, práticas de dominação baseadas
nas formas de poder remanescentes, como o capital e o domínio sobre a informação.
“Os filósofos pós-modernos nos dizem que não apenas
aceitemos mas até nos entreguemos às fragmentações e à
cacofonia de vozes por meio das quais os dilemas do mundo
moderno são compreendidos. Obcecados pela desconstrução e
pela deslegitimação de toda espécie de argumento que
encontram, eles só podem terminar por condenar suas próprias
reivindicações de validade, chegando ao ponto de não restar
nada semelhante a uma base para a ação racional.
Pior do que isso, enquanto abre uma perspectiva radical
mediante o reconhecimento da autenticidade de outras vozes, o
pensamento pós-moderno veda imediatamente a essas outras
vozes o acesso a fontes mais universais de poder,
circunscrevendo-as num gueto de alteridade opaca, da
especificidade de um ou outro jogo de linguagem.”
(HARVEY, op. cit., p.111s)
Estas teorias, entretanto, estão intimamente relacionadas à realidade, radicando-
se em base mutável da qual advém toda sua instabilidade.
Santos (op. cit.) busca conciliar as características pós-modernas e a estrutura
social moderna, a fim de que contribuam positivamente para a elaboração de nova
teoria social que dê conta dos problemas não solucionados, ou mesmo criados, pela
modernidade. Neste sentido, anuncia a necessidade do deslocamento do foco do
83
pensamento das teorias aceitas, hegemônicas, para as marginais, tendo em vista
duplo objetivo: enxergar melhor o centro devido à distância, e investigar o que é
excluído. Desta dupla perspectiva, surgirão novos paradigmas, conflitantes, que
competirão entre si a fim de alcançar a hegemonia. Em tempos passados, esta
hegemonia sempre foi possível, o que não significa que deverá ser assim também no
futuro. Assmann (op. cit.) alerta, entretanto, para o cuidado a ser tomado quando da
definição dos limites e centro da nova teoria, embora concorde com Santos quanto à
sua orientação básica:
“Elástica nos seus limites, e consistente em seu cerne, esta
seria, quiçá, uma caracterização quase perfeita de uma boa
teoria, se não houvesse aquele pequeno problema: o problema
de que o cerne pode estar no fronteiriço, e o suposto cerne
pode servir de pretexto para desvalorizar o que está no limite.”
(ASSMANN, op. cit., p. 18)
O autor destaca o mesmo problema que a pós-modernidade aponta: a adoção de
uma metateoria que resulte na exclusão de alguns elementos culturais encarados
como diferentes, ou mesmo primitivos.
Uma face das mudanças que vêm ocorrendo nas relações sociais é a emergência
de movimentos oriundos de grupos sociais relativamente limitados, como associações
de bairro, ou de uma cidade, que lutam pela melhoria das condições de vida no seu
espaço cotidiano mais próximo, ou mesmo de grupos não localizados fisicamente,
unidos por origem comum. Este é o caminho inverso ao que propunha o projeto da
modernidade, que objetivava a eliminação das diferenças acidentais devidas a local
de nascimento, raça e sexo em prol de uma comunidade nacional, ou até mesmo
mundial. Trata-se, assim, da afirmação das diferenças como ponto de união entre os
indivíduos e base para lutas sociais; a possibilidade de reagir contra a imposição de
uma cultura étnica − branca, masculina e ocidental − que a modernidade ajudou a
implantar por toda a parte. É importante notar, entretanto, que a simples afirmação da
84
diferença não implica real democratização do seu direito de expressão. Elas podem vir
a ser fonte de separação definitiva e isolamento destes grupos, e obstáculo para a
integração solidária − ressalva feita por autores que defendem o ideal moderno da
universalidade, como Rouanet (op. cit.) −, assim como podem mascarar as relações
de dominação que continuam a existir. Não existe “nenhum espaço puro” (GIROUX,
op. cit., p. 57) no qual todas as vozes tenham mesmo peso, capacidade e vontade de
se expressarem. É necessário manter uma certa noção de totalidade a fim de
compreender as interações entre grupos diferentes, a partir de uma perspectiva
externa a eles.
“Precisamos de teorias que expressem e articulem a
diferença, mas precisamos também compreender como as
relações nas quais as diferenças são constituídas operam
como parte de um conjunto mais amplo de práticas sociais,
políticas e culturais.” (GIROUX, op. cit. , p. 53)
O projeto da modernidade, originalmente, correspondeu ao equilíbrio, dinâmico,
entre a emancipação e a regulação que a viabiliza. Os movimentos sociais atuais
caracterizam-se por lutarem pela emancipação pessoal, social e cultural, mais do que
pela política. Não se trata mais apenas de lutas de classe, ou de diferenças entre
sistemas de governo, mas de necessidades humanas básicas, da participação efetiva
nas relações sociais e na qualidade de vida para todos. Daí a preocupação com o
meio ambiente, com a violência e com o preconceito. Não são problemas
solucionáveis apenas através da extensão de direitos civis a todos os indivíduos, mas
da conversão de hábitos sociais e práticas econômicas arraigadas. O âmago da
questão é a subjetividade, e não somente a cidadania. Sob este aspecto, a educação
adquire importância crucial, pois para a mudança destes hábitos, é necessária a
conscientização de todos os indivíduos.
“O esforço teórico a empreender deve incluir uma nova
teoria da democracia que permita reconstruir o conceito de
85
cidadania, uma nova teoria de subjectividade que permita
reconstruir o conceito de sujeito e uma nova teoria da
emancipação que não seja mais que o efeito teórico das duas
primeiras teorias da transformação da prática social levada a
cabo pelo campo social da emancipação.”
(SANTOS, op. cit., p. 270)
A valorização de particularidades culturais introduz em cena o problema da
linguagem, também ligado à variedade de percepções individuais que a pós-
modernidade admite. O interesse dos teóricos pós-modernos pela linguagem é
assegurado, ainda mais, quando se percebe que os indivíduos têm sua subjetividade
facetada, ou seja, a cada momento da vida interagem com sujeitos sociais diferentes,
em situações diversas, assumindo para isto caráter variável. O modo como se
posicionam dentro de cada um destes subgrupos sociais é projetado através dos
signos lingüísticos. A realidade polifônica requer o diálogo e o respeito às diferenças,
o que pode consistir em processo democrático real. A problematização da linguagem
permite “repensar as questões do significado, da identidade e da política” (GIROUX,
op. cit., p. 58). Sob outro aspecto, a importância da linguagem também é explicada
pela transferência da responsabilidade de legitimação das ações para os homens,
com a vigência do paradigma subjetivista, pois:
“Quando o desejável era impossível foi entregue a Deus;
quando o desejável se tornou possível foi entregue à ciência;
hoje, que muito do possível é indesejável e algum do
impossível é desejável temos de partir ao meio tanto Deus
como a ciência. E no meio, no caroço ou miolo, encontramo-
nos, com ou sem surpresa, a nós próprios.”
(SANTOS, op. cit., p. 106)
A responsabilidade proveniente desta situação, e o desconforto causado pela
perda do referencial exterior, que legitima as ações, exige a adoção de algum novo
conjunto de regras ou modelos para orientação dos indivíduos. A saída apontada por
86
Santos (op. cit.) para a superação desta angústia é a educação dos desejos: aprender
a não desejar o possível apenas por esta sua condição − a mesma tendência que leva
à tentativa de introduzir princípios éticos e responsabilidade social entre os cientistas
−, e reaprender a desejar o impossível, resgatar os ideais utópicos que integram a
modernidade e que foram, no passado, fonte de frustração para seus defensores.
Esta utopia não seria irrealista e irrealizável, mas compreenderia o uso da imaginação
para enxergar o que não existe a partir do existente, e a forma de realizá-lo. A utopia
parte, assim, do real e o transcende. Kujawski (op. cit.) contribui para esta discussão
sinalizando com um novo tipo de razão que engloba o universal respeitando a
perspectiva, pois
“a perspectiva é um dos componentes da realidade. Uma
realidade que, vista de qualquer ponto, resultasse sempre
idêntica é um conceito absurdo. Todo conhecimento o é desde
um ponto de vista determinado. O ponto de vista abstrato só
proporciona abstrações.” (ibid., p. 172)
Atualmente, as saídas apontadas para resolver os problemas sociais
contemporâneos variam de diferentes modos: com uma atitude de total indiferença,
uma simplificação extrema das relações através de proposições retóricas, a tentativa
de encontrar discursos parciais e aproximados que possibilitem uma ação limitada, ou
a construção de uma nova linguagem, dinâmica, capaz de espelhar a realidade.
Todas têm pontos falhos quanto à sua legitimação, decorrentes da própria forma
como a realidade é percebida, sempre de forma incompleta.
A pós-modernidade representa, então, a possibilidade de ruptura com o aspecto
do projeto de modernidade que foi concretizado, ao mesmo tempo em que pode
também representar o resgate dos ideais originais em nova tentativa de implantação.
Sua importância está justamente na possibilidade do pensamento alternativo, na
continuidade da esperança e, especialmente, na investigação do presente para que se
possa pensar o futuro. Aquele que pensa alternativas não está inerte e conformado
87
com a situação atual, nem preso a costumes arraigados. A pós-modernidade deve ser
composta, necessariamente, destes dois aspectos, para que apresente chance efetiva
de emancipação humana.
Kujawski (op. cit.) reconhece a importância da utopia para a realização dos
objetivos humanos mais elevados, baseados em uma razão vital “arraigada na
circunstância e perspectiva” (p. 174), sem radicalizar esta disposição:
“… podemos submeter as utopias típicas da modernidade
ao uso regulativo, em vez de insistir na sua função constitutiva
da realidade. O uso regulativo da utopia significa que a utopia
inspira a realidade, ao mesmo tempo que a realidade corrige a
utopia de sua desmedida e de sua abstração.” (ibid., p. 175)
O vínculo moderno com a utopia deve agora ser substituído por uma razão
“tópica e perspectiva” (ibid., p. 173), isto é, que se afaste do instituído e possibilite
mudanças de contexto e interpretações diversas. A pós-modernidade assume, então,
a tarefa de reequilibrar as diferentes facetas do projeto moderno, retomando seus
pontos positivos e adequando-os ao tempo atual.
88
Capítulo III: Educação
9. Repensando a Educação
Devido às mudanças sociais percebidas na transição da modernidade para o
período posterior conhecido como pós-modernidade, a estrutura teórica da educação
tem sofrido questionamentos de diversas origens e conteúdo, com vistas a prováveis
transformações em seus objetivos e práticas. Estas mudanças apresentam três
dimensões principais, segundo Casassus (op. cit., p. 10):
“A primeira delas se refere à quebra das formas culturais
totalizantes dos últimos três séculos que serviram para
compreender o mundo moderno e que agora dá lugar à
fragmentação cultural. A segunda, que não é necessariamente
uma conseqüência da anterior, é a revitalização de visões
fundamentalistas apegadas à idéia de uma verdade única e
objetiva, que entram em tensão com as complexas construções
sociais das formas de pensamento. E a terceira é caracterizada
pela emergência de uma cultura global no planeta, cuja base
está constituída pelas redes interconectadas de informação.”
E, do mesmo modo que a teoria social pós-moderna não se reduz a um único
modelo, a teoria educacional também tem refletido diferentes tendências, que, de
maneira geral, incidem sobre alguns aspectos recorrentes, como será visto adiante. A
pós-modernidade se afirma pela negação das idéias modernas, ocorrendo o mesmo
na educação; e a rejeição a orientações teóricas e práticas existentes aparece, por
vezes, mais elaborada que as teorias que visam a substituí-las.
"Uma vez que a tradição pós-moderna evita comprometer-
se com uma metanarrativa política/moral própria, ela, com
freqüência, denuncia e rejeita as limitações de outras visões
sem apresentar nenhuma alternativa clara. Em vez disso,
89
baseia-se num vocabulário implicitamente normativo de
libertação, fortalecimento e de crítica que é muito mais claro em
especificar aquelas coisas às quais ela se opõe do que aquelas
coisas que apóia (e por quais razões)."
(BURBULES, 1993, p. 178)
Em decorrência disso, algumas críticas feitas seguindo o pensamento pós-
moderno apontam duas saídas para a educação: a anarquia ou a adoção do critério
da otimização das performances. A primeira é prevista por aqueles que enxergam na
pós-modernidade, primariamente, o ataque aos conceitos modernos, de forma
pessimista, questionando todo tipo de fundamento para a ação, e é problematizada
por sua dificuldade em apoiar alguma ação concreta, que é sempre objetivo da
educação, sobre base tão instável quanto a negação da realidade, do sujeito
consciente e mesmo do relativismo na compreensão do significado de diferença
cultural. Já a segunda tendência, enxerga a concretização da modernidade, do modo
como ocorreu, a única forma possível de manter a estabilidade social e caminhar no
sentido do progresso material, resultando em projetos de melhoria da qualidade
educacional, definida como uma maior adequação entre a prática educativa e o
sistema econômico de produção, criando a necessidade de “jogadores capazes de
preencher de forma aceitável seus papéis nos postos pragmáticos exigidos por suas
instituições” (LYOTARD, op. cit., p. 50). Na tendência de modernização educacional
predomina a orientação racional-instrumental voltada para aspectos econômicos e
administrativos da sociedade, embora não descarte, por princípio, características
humanistas. É esse modelo que explica o desenvolvimento de uma sociedade como a
passagem por várias etapas que levariam de um estado de subdesenvolvimento até
um mais moderno, conseqüentemente mais desenvolvido.
Nenhuma das duas tendências, entretanto, acolhe o conceito mais amplo de
modernidade baseado no Iluminismo desenvolvido em capítulos anteriores, posto que
apresentam, freqüentemente, redução a algum de seus aspectos. O Iluminismo
90
sempre possuiu caráter pedagógico destacado e propiciou diversas transformações
no paradigma educacional. O aspecto crítico do paradigma subjetivista, por exemplo,
construído com a transposição do fundamento do conhecimento para o indivíduo
racional, como ocorre no Iluminismo, é de vital importância para a educação, quando
afirma que sua preocupação principal é a de “permitir que [sua] luz natural possa ser
posta em prática” (MARCONDES, op. cit., p. 23).
“O grande instrumento do Iluminismo é a consciência
individual, autônoma em sua capacidade de conhecer o real;
suas armas são, portanto, o conhecimento, a ciência, a
educação.” (ibid., p. 22)
Alguns autores, como Giroux (op. cit.), McLaren (op. cit.) e Silva (op. cit.) buscam
posição intermediária que combine as críticas pós-modernas − que desvelam as
relações de poder e o modo como os indivíduos constroem os significados − com
algumas características modernas, como a adoção de metanarrativas que justifiquem
a escolha de objetivos para a educação:
“O projeto crítico em educação está centrado
fundamentalmente no exame dos nexos entre
educação/escolarização e as estruturas e processos pelos
quais se constroem a desigualdade e a estrutura social (seu
componente analítico, sociológico), por um lado, e no
desenvolvimento de formas alternativas de educação, currículo
e pedagogia que representam uma superação das opressivas
formas existentes (seu componente utópico, normativo,
filosófico), por outro.” (SILVA, op. cit. p. 133)
A contribuição da pós-modernidade para a elaboração de novas teorias
educacionais está em questionar alguns elementos componentes da modernidade
vistos como prejudiciais ao processo educativo. Em diversos momentos da história, a
educação sofreu críticas quanto a seus objetivos e suas práticas, a originalidade da
crítica pós-moderna está em que ela “assinala uma desordem profunda do moderno
91
regime de verdade e sua dissolução num incessante estado de perturbação, tumulto e
caos” (KIZILTAN, 1993, p. 212). De todo modo, para a elaboração de uma teoria
pedagógica que dê conta dessas mudanças, é necessário considerá-las seriamente
ou, segundo Giroux (op. cit.):
“Saber se essas mudanças sugerem uma ruptura entre
modernidade e pós-modernidade pode não ser uma questão
tão importante quanto a de compreender a natureza das
mudanças e quais podem ser suas implicações para a
reconstituição de uma política cultural radical apropriada à
nossa própria época e lugar.” (p. 50)
As mudanças paradigmáticas ocorridas na sociedade são determinantes no
campo da educação, tanto em sua estruturação teórica enquanto campo de
conhecimento específico, quanto em sua função básica ligada à formação dos novos
membros de uma sociedade, ou da força de trabalho necessária para a produção.
Essas mudanças provocam a necessidade de transformações profundas também na
prática educacional, sem a qual ela torna-se vazia de significado e sujeita à descrença
por parte do corpo social. É esse o quadro apresentado atualmente, de críticas
constantes veiculadas através dos meios de comunicação ou nas conversas
cotidianas.
Questões sobre o papel da escola como instrumento de dominação, libertação ou
alienação se fazem presentes em diversos momentos. O enfraquecimento da teoria
hegemônica de conhecimento, segundo críticas de cunho particularista que defendem
a preservação de valores culturais diferenciados como a educação para o negro, a
mulher, etc., suscitam questões que vão além do âmbito meramente metodológico,
tratando-se da fundamentação teórica da Educação enquanto prática social. Um
projeto educacional que objetive superar as dificuldades enfrentadas atualmente neste
campo deve contemplar a análise das tensões que permeiam o processo educacional,
caracterizadas como as seguintes categorias, que não são fragmentadas, mas
92
aspectos da mesma realidade, segundo Bonamino e Brandão (BRANDÃO, 1994,
p. 97):
• “igualdade de condições/igualdade de oportunidades;
• singular/universal;
• disciplinar/transdisciplinar;
• quantidade/qualidade.”
A primeira categoria diz respeito à relação escola/sociedade no sentido de que a
função da escola é prover os alunos de conhecimentos necessários para a conquista
de sua liberdade individual, de modo a superar desigualdades de origem econômica
ou cultural. A segunda concentra-se na valorização das experiências pessoais dos
indivíduos, não descuidando da necessária base comum que permite a comunicação
e inter-relacionamento entre os diferentes grupos ou indivíduos sem predominância de
algum conjunto de significados. A oposição disciplinar/transdisciplinar está ligada à
necessidade de dominar o conhecimento sobre determinada área de saber enquanto
mantém contato com outras, de forma a permitir a troca rápida de experiências e
novas descobertas, eliminando, desta maneira, a preponderância de um tipo de saber
sobre os demais. A última categoria visa à tensão entre a forma de transmissão de
conhecimentos e a de sua aquisição por parte de cada indivíduo: a aprendizagem de
conteúdos em oposição ao aprender a aprender, também citado por Demo (op. cit.).
Esta categoria aponta para mudança qualitativa no significado da educação,
determinante na escolha dos objetivos a adotar.
Historicamente, as teorias educacionais foram desenvolvidas em acordo com as
teorias epistemológicas adotadas pelas outras ciências, em especial algumas que de
mais perto influenciaram sua formulação, como: a Sociologia, Psicologia e Filosofia ,
além da Política; sem esquecer da forte vocação ética que possui, advinda de seu
caráter formador de consciências. A necessidade de intercâmbio constante com a
93
prática cultural faz-se necessária para que os educadores não percam de vista essas
categorias do processo educacional-social. Como aponta Kiziltan (op. cit., p. 206)
“Dado o grau no qual o pensamento e a prática
educacionais estão tão inextricavelmente conectados com o
‘científico’, é certo que a crítica pós-moderna das fundações, da
função e do status do conhecimento científico (e da razão) terá
um efeito profundo e desestabilizador sobre as práticas, a
racionalização e a legitimação da educação.”
10. Pós-modernidade e Educação
A oportunidade de refletir sobre a relação entre “escola, cultura, linguagem e
poder” (MCLAREN, op. cit., p. 24) aparece como conseqüência da discussão sobre a
pós-modernidade. McLaren discute a nova teoria educacional denominada “pós-
modernista crítica” ou “pós-colonial” (ibid., p. 24), e seus aspectos em comum com as
teorias sociais pós-modernas, e apresenta como relevante a necessidade de
identificar novo conjunto de paradigmas que responda à diversidade de discursos e
práticas culturais da atualidade. Nesse sentido, destaca algumas das críticas ditadas
pelo pensamento pós-moderno, como o entendimento de que a identidade cultural
formada pelo modelo de indivíduo da modernidade traz embutida em si ideologia de
dominação, acarretando o questionamento da noção de autoridade com base na
forma como é constituída e legitimada, assim como dos padrões de avaliação da
prática educativa efetuada nas instituições escolares. Tornou-se tópico de algumas
das novas teorias em educação o julgamento sobre a noção de fracasso escolar,
avaliado segundo modelo único, e sem validade quando aplicado sobre minorias com
diferentes especificidades culturais, ou:
“Aquilo que muitos professores percebem como fracasso
escolar dos estudantes negros e de outras minorias é
efetivamente uma forma de adaptação cultural ao racismo
branco. Os estudiosos da educação, portanto, precisam
94
analisar os diferentes padrões culturais das experiências de
negros e brancos em relação às práticas retóricas e lingüísticas
enquadradas por relações desiguais de poder, assim como as
práticas institucionais e sociais que as reproduzem.”
(MCLAREN, op. cit., p. 10)
A crítica pós-moderna que contribui para a investigação das relações de poder,
que sempre determinaram as ações sociais e educativas, difere de questionamentos
semelhantes ocorridos na modernidade porque estes últimos admitiam situação ideal
na qual as diferenças pudessem ser superadas; já na pós-modernidade, a própria
constatação da problemática é dificultada pela não existência de um modelo ideal
comparativo que permita rejeitar as relações de dominação por uma outra situação
mais democrática.
“A cultura pós-moderna circunda-nos com um mundo que
nos compele a ‘ser realistas’ − isto é, a descartar nossas
ilusões sobre uma existência libertada; a aceitar que a
sensibilidade intelectual crítica ligada a uma noção de
libertação e transformação reflete pouco mais que a antiquada
arrogância derivada das metanarrativas iluministas de
progresso.” (SHAPIRO, 1993, p. 110)
A preocupação das teorias críticas educacionais com a ideologia são igualmente
enfraquecidas pela negação destas metanarrativas, pois é necessário além de
constatar a existência das relações de opressão, compreender como foram
implantadas e conceber uma realidade alternativa na qual não existam.
“uma ‘visão de futuro’ supõe uma metanarrativa que não
apenas explique por que a educação do presente é deformada
(…) mas que, além disso, apresente uma descrição de como a
sociedade e a educação poderiam ser, uma vez eliminados
esses obstáculos.” (SILVA, op. cit., p. 126)
95
Outra característica da pós-modernidade que problematiza esta questão é a
crença de que a percepção dos indivíduos constitui a realidade, deste modo, não
existe posição exterior na qual as concepções ideológicas não atuem também como
constituintes da mesma realidade: não existe realidade por baixo do discurso
ideológico, “a aparência é tudo que existe” (SHAPIRO, op. cit., p. 127). Os
significados também não são fixos, mas construídos pelas relações entre os
indivíduos, de forma temporária, de acordo com as circunstâncias e necessidades.
Então, a identificação de uma relação como derivada de ideologia específica é, da
mesma forma, dependente do sujeito que a analisa em um certo momento a partir de
determinada posição, portanto, sempre parcial.
A valorização das aparências, do espetáculo, introduz em cena o problema para o
atendimento das diversas solicitações a que os indivíduos estão sujeitos a todo
instante, mais do que garantir a correção e relevância dos discursos e práticas
educativas, é necessário torná-los atraentes e integrados à realidade social mais
abrangente.
Outro aspecto da insegurança quanto às formas de saber estabelecidas na
modernidade, possibilita a tentativa de construção de novas estruturas conceituais, a
experimentação e a diversidade ideológica. O que se reflete também na divisão
disciplinar tradicional da educação. A cada dia, novas interações disciplinares tornam-
se objeto de investigação e experimentação, numa abordagem interdisciplinar. A
princípio, através da diluição de fronteiras de conhecimento, mas também devido à
globalização derivada da expansão capitalista, que permite o encontro entre diferentes
culturas, nem sempre resultando em imposição da ocidental sobre as demais mas, às
vezes, propiciando a troca de elementos que se mesclam e passam a compor o
estoque de experiências e hábitos que alimentam os modismos característicos da
pós-modernidade. Do mesmo modo, a construção do sujeito e do conhecimento não
depende mais de modelo anterior, abstrato, mas da vivência e das inúmeras
influências que recebe a todo momento nas relações cotidianas.
96
A característica das tendências educacionais que se percebe hoje em dia é a de
valorizar as culturas de minorias e a cultura popular. Esta última não é vista mais
como uma degradação da alta cultura, mas como aspecto válido de manifestação
individual ou coletiva cotidianas. A valorização das diferenças situa no mesmo nível
todas as influências culturais e a experiência individual, dificultando a determinação
dos conteúdos educacionais. Por outro lado, pode permitir a elaboração de propostas
alternativas distintas do modelo hegemônico imposto na modernidade.
A preocupação pós-moderna com a linguagem e as percepções individuais da
realidade alertam não só para o modo como são definidos os conteúdos, mas também
para a própria natureza do conhecimento, que entende como parcial e multifacetado.
Esta característica dificulta a adoção de práticas específicas baseadas em uma
realidade dada com vistas a um objetivo fixo.
A questão do sujeito também muda na passagem para a pós-modernidade, pois,
até então, admitia-se apenas duas condições: o sujeito alienado e aquele que já havia
alcançado o pleno desenvolvimento e detinha nas mãos o poder para decidir seu
destino. Este sujeito torna-se fragmentado, incapaz de manter visão lúcida sobre
todos os aspectos da realidade e agir positivamente sobre eles. Tanto a consciência
quanto a alienação tornam-se condições temporárias quando analisadas estritamente
sob este aspecto, e dependentes das posições adotadas em determinado momento.
O objetivo primordial das teorias educacionais modernas, ditas críticas, de
conscientizar os estudantes não faz mais sentido quando não existe o estado
consciente ideal. O reconhecimento de que não existe verdade absoluta a ser
conhecida e dominada elimina a diferenciação entre o sujeito conhecedor, que detém
o saber, e o alienado, que deve ser guiado pelos primeiros. Mas, por outro lado,
quando radicalizada, pode impedir a crítica às diferenças sociais que impedem o
acesso às informações por parte de determinado subgrupo social. Não se trata,
portanto, de negar aquela diferenciação, mas de questionar a validade de um tipo de
conhecimento frente aos demais, e eliminar a posição privilegiada dos que têm acesso
97
ao conhecimento hegemônico. A identificação das diferenças sociais como normais e
determinadas pelas diferenças individuais de percepção, levam à não compreensão
de que algumas destas diferenças são devidas à desigualdade entre os grupos
sociais. A elaboração dos discursos é feita por indivíduos que são, eles próprios,
sujeitos a influências do meio em que vivem e das interações de que participam,
portanto, também parciais.
“Uma crescente rejeição do ideal objetivista da
autotransparência e um reconhecimento de que o
conhecimento não é autônomo, mas imerso e produzido em
situações em que existem numerosas relações econômicas,
sociais, políticas, históricas, textuais e pessoais, assim como de
classe, raça, gênero − as quais têm efeito sobre a produção de
subjetividade − está ajudando atualmente os educadores a
compreender melhor como padrões vividos de subordinação
são produzidos entre certos grupos.” (MCLAREN, op.cit., p. 19)
A valorização de um tipo de conhecimento em detrimento dos demais serviu
apenas para intensificar sua fragmentação, dificultando a aceitação de qualquer tipo
de saber alternativo. A crítica pós-moderna não admite o isolamento de uma
característica, qualquer que seja sua origem, em detrimento de outras. Não se trata,
por exemplo, de admitir a existência de grupos sociais formados por negros, mulheres
ou qualquer outro elemento diferenciador, mas, ao contrário, reconhecer que um
indivíduo pode ser negro e mulher, branco e imigrante, sem que uma sua
característica tenha preponderância sobre as demais, e seja sempre igualmente
determinante em sua individualidade.
A negação das metanarrativas por parte dos pós-modernos pode resultar, ainda,
em sentimento antimoderno que condena a adoção de valores absolutos como
fundamento para a prática educativa, mas isto resulta em instabilidade frente à
necessidade da escolha de algum objetivo que possibilite esta prática, especialmente
98
quando admite a perpetuação da opressão legitimada pelo próprio respeito às
diferenças, que se traduz em isolamento.
“Uma coisa é observar o fracasso da sociedade, na
prática, em efetivar valores tais como o debate ‘público' ou
‘democrático' e a consideração de todos os pontos de vista,
assim como em denunciar as formas pelas quais as aspirações
retóricas em relação a esses valores têm, com freqüência,
mascarado práticas que, na realidade, os enfraquecem. Outra
coisa, bem diferente, é refletir sobre qual poderia ser a
conseqüência educacional de uma rejeição completa desses
valores". (BURBULES, op. cit., p. 180)
11. Novos objetivos educacionais
A natureza da educação caracteriza-se por seu aspecto prático: o ato de educar
significa intervir positivamente no sentido de guiar o desenvolvimento dos seres
sociais em um sentido previamente definido. Deste modo, não é possível separar
componentes teóricos da preocupação com as ações concretas, e as teorias
educacionais sempre refletiram este aspecto.
“O projeto da teoria educacional crítica é necessariamente
político. Analisamos e teorizamos tendo em vista um projeto
cultural de transformação do mundo social existente. Tudo
aquilo que aumente nossa compreensão do mundo e da
dinâmica social apenas fortalece uma tradição assim
politicamente engajada.” (SILVA, op. cit., p. 138)
Os professores são, eles próprios, elementos de uma sociedade que necessitam
de embasamento teórico para adquirir a confiança de que suas ações terão efeito
positivo, assim como requerem orientação prática para o exercício de sua função; e
estão a todo momento realizando escolhas que irão influenciar sua prática.
99
A orientação pós-moderna de aceitar todas as interpretações do real como
aproximações a partir de pontos de vista diversos dificulta a formulação de uma teoria
pedagógica que contribua para a emancipação dos indivíduos, uma vez que este é um
valor universal e, portanto, alvo de desconfiança. Sendo assim, não existe base para a
definição das ações educativas, nem mesmo para a definição dos currículos mais
adequados para cada tipo de sociedade. Este pensamento resulta em atitude de
descrença na possibilidade de transformação social: “na raiz da visão pós-moderna
está um terrível fracasso da esperança e da possibilidade” (SHAPIRO, op. cit., p. 17).
A dificuldade de troca de experiências entre os diferentes grupos cria “enclaves
intelectuais de pesquisa” (BEYER, 1993, p. 77) que impedem a ação conjunta sobre a
sociedade, e a visão mais ampla sobre o modo como determinado grupo é
constituído, e quais formas anteriores de opressão ou segregação lhe servem de
base. É necessário, assim, vincular a percepção destas diferenças a um projeto
emancipatório, com vistas à democratização plena e efetiva da sociedade, pois:
“Quando vinculadas com a linguagem modernista de vida
pública, as noções de diferença, poder e especificidade podem
ser compreendidas como parte de uma filosofia pública que
alarga e aprofunda as liberdades e os direitos individuais
através de uma noção radical de democracia e não contra ela.”
(GIROUX, op. cit., p. 65)
Mas a própria noção de emancipação pressupõe a crença em uma realidade não
opressiva. Os educadores devem buscar uma teoria que prepare os estudantes para a
cidadania, não de forma abstrata, mas referenciada à realidade, o que acarreta a
necessidade de criação de bases materiais e ideológicas específicas, que, por sua
vez, pressupõem algum tipo de metanarrativa ou valor global. Portanto, a opção pela
emancipação induz a uma aceitação, ainda que parcial, de alguma forma de
universalidade valorativa ou ética, divergindo da orientação pós-moderna que as
rejeita plenamente. A relação previamente estabelecida neste estudo com os
100
paradigmas (ver item 4.4), aponta para a necessidade de valores universais
orientando as ações: “nossa indignação … deve estar enraizada numa condenação
moral da injustiça e da desigualdade” (BEYER, op. cit., p. 95). Entre os autores pós-
modernos, alguns ainda defendem o resgate da crença no futuro, na utopia (ver item
8.4) conciliando a necessidade de um paradigma com a desconfiança em princípios
universais.
“Uma suspeita profunda − na verdade, infinita − paira
sobre todas as nossas escolhas. Em algumas circunstâncias
uma pedagogia que é eticamente positiva e politicamente ativa
torna-se cada vez mais necessária, mas em toda parte ela
corre o risco de submergir num mar de profunda incerteza
cultural.” (SHAPIRO, op. cit., p. 115)
Mesmo aceitando-se a idéia de que a realidade não existe independente da
percepção que os sujeitos têm dela, as estruturas sociais nas quais eles se inserem
são bem reais, e afetam as relações cotidianamente. Negar a realidade destas
estruturas resulta em negar a possibilidade de crítica de suas relações desiguais.
Toda vez que, na pós-modernidade, tenta-se elaborar uma forma de ação concreta,
deve-se começar pela negação de ao menos uma de suas tendências: a fixação no
presente, fruto da descrença na realidade independente da percepção individual.
“Seja qual for a importância da linguagem e do discurso,
são as vidas e as experiências dos seres humanos que
permanecem centrais ao projeto de uma pedagogia crítica.
Para a pedagogia crítica, a luta cultural encontra sua validação
última na luta para transformar o mundo vivido das pessoas
comuns, especialmente aquelas mais marginalizadas e
oprimidas.” (SHAPIRO, op. cit., p. 119)
A posição dos educadores frente às mudanças será mais eficaz − no sentido de
produzir mudanças significativas na prática educacional − quando considerar a forma
como é construída a identidade, como o conhecimento é recebido e introjetado, e
101
como as relações de poder interferem na legitimação do saber. Estes fatores irão
propiciar a relativa independência necessária para que a educação seja fator de
transformação, e não apenas de transmissão de cultura entendida como o conjunto de
normas de comportamento, de crenças, de instituições e de valores espirituais e
materiais característicos de uma sociedade.
A meta da educação será, deste modo, a de construir espaços que permitam a
livre confrontação de idéias:
“do ponto de vista pós-moderno, faria mais sentido pensar
numa educação que tenha o propósito de criar condições para
um espaço público de discussão, em que as pessoas possam
confrontar seus diferentes pontos de vista.”
(SILVA, op. cit., p. 137)
Neste espaço, a princípio, não se deve privilegiar nenhuma forma de discurso de
legitimação, uma vez que todos são igualmente válidos. Deve ser considerado ainda
que a aceitação da manifestação de sujeitos com discursos diversos não envolve,
necessariamente, sua capacidade de emitir enunciados, pois as práticas anteriores de
dominação afetam a elaboração de signos próprios. Tampouco são espaços
destinados a buscar o consenso sobre um determinado tipo de discurso e legitimá-los
através do confronto, mas de alcançar posição temporária que possibilite a ação.
“Mesmo no interior de uma cultura que tão poderosa e
generalizadamente manipula e distorce nosso sentido de
realidade e daquilo que constitui a natureza do mundo social, é
possível estabelecer espaços nos quais essa cultura possa ser
genuinamente questionada e nos quais o conhecimento tenha
uma função emancipatória.” (SHAPIRO, op. cit. p. 107-108)
O confronto de idéias a se realizar neste espaço privilegiado, a sala de aula,
permitirá a construção de uma cultura que respeite mais as diferenças e experiências
de cada indivíduo, em oposição à cultura hegemônica imposta a todos; ainda que de
forma transitória, numa constante reconstrução. Esta nova orientação pedagógica
102
implica primariamente inversão do processo educativo, que partirá da multiplicidade
de experiências individuais para a construção do conhecimento comum. Mas não é
possível exercer ação positiva em educação a partir de grupos isolados e momentos
específicos, uma vez que as teorias e práticas educacionais estão indissociavelmente
relacionadas com as práticas sociais mais amplas e com a formação de consciências.
Criar espaço para que as vozes até então silenciadas possam se expressar é válido
porém não suficiente, pois se forem isoladas em grupos locais, estará sendo
modificada, apenas, a justificativa para sua separação: antes, por pertencerem a
culturas não hegemônicas consideradas menos importantes, e agora, por
pertencerem a culturas não hegemônicas consideradas igualmente importantes,
porém com espaço próprio e validade limitada.
“A segmentação das pessoas em grupos no interior dos quais
falam principalmente entre si enfraquece um projeto político de
base ampla e moralmente inspirado.” (BEYER, op. cit., p. 96)
Este objetivo acarreta a necessidade de criar um projeto ético-político mais amplo
em vista do qual a teoria educativa será elaborada e sua prática exercida. Este
pensamento sinaliza, ainda, que a busca pelo entendimento deve ser constante e as
idéias flexíveis, de maneira que o currículo e a educação não sejam fonte de
preservação de sociedade desigual, mas de formação mesmo de cada indivíduo,
respeitando suas identidades.
Plastino (op. cit.) assinala, também, algumas orientações para a tentativa de
elaboração de uma teoria educacional que concorra para a construção de um
paradigma social mais justo:
“a primeira alude à necessidade de que todo trabalho
científico explicite os pressupostos ético-políticos que o
motivam e que se interrogue sobre as conseqüências globais
de seus resultados. A segunda é que se faz necessário superar
o excessivo encastelamento das diversas disciplinas, de
103
maneira a tornar possível um olhar múltiplo sobre nossos
objetos de estudo. E a terceira — e não menos importante — é
a urgência de se rever a política e o financiamento das diversas
áreas, de maneira a superar o privilégio de que gozam as
denominadas Ciências Exatas e Naturais e, ainda, a Economia,
freqüentemente cegas às conseqüências sociais, éticas e
políticas de seu próprio trabalho.” (p. 46)
A comunicação entre os indivíduos com diferentes formações e experiências de
vida aparece como a base para qualquer prática educacional efetiva. O objetivo
educacional primordial seria, deste modo, o de promover virtudes comunicativas —
conforme será exposto no item 12 — sem as quais o diálogo não resulta em
entendimento entre os indivíduos. E, ainda, o de incentivar os alunos a adquirir o
discernimento para realizar suas próprias escolhas éticas, sem as quais aquelas
virtudes não teriam sentido, ou como afirma Cherryholmes (op. cit., p. 144): “existem
formas melhores e formas piores para empreender qualquer projeto”. Para McLaren
(op. cit.), a valorização da solidariedade deve vir antes do consenso, e afirma,
seguindo Welch (1990), que ela é a base necessária para construí-lo, assim como
para possibilitar a ação conjunta.
12. A importância do diálogo para a nova prática ed ucativa
Dentre os novos objetivos educacionais, alguns podem ser identificados como
esperanças, uma vez que dependem tanto de fatores externos quanto de uma
orientação pedagógica-curricular mais direta, como é o caso da prática do diálogo.
Burbules e Rice, em obra conjunta (1993), defendem a necessidade e possibilidade
do diálogo para a construção de sociedade mais justa e igualitária, adotando posição
claramente pós-moderna, e não antimodernista, ao acolher o valor moderno da busca
de um consenso e uma comunidade mais ampla sem negar as diferenças culturais ou
individuais. Afirmam eles que:
104
“não existe nenhuma razão para supor que o diálogo entre
as diferenças implique eliminar aquelas diferenças ou então
impor as visões de um grupo sobre outros; o diálogo que leva à
compreensão, à cooperação e à acomodação pode sustentar
as diferenças no interior de um conjunto mais amplo de
tolerância e respeito.” (BURBULES, op. cit., p. 186)
Os benefícios de uma prática dialógica são, de acordo com estes autores: em
primeiro lugar a formação individual mais flexível devido ao reconhecimento da
multiplicidade de situações vividas cotidianamente, resultando em grupos e subgrupos
dinâmicos dos quais os sujeitos participam; em segundo, o incremento da capacidade
de compreensão de perspectivas diferenciadas, partindo do interior de culturas com
tradições diversas, de modo a evitar a hegemonia cultural; e, em terceiro lugar, criar o
hábito de manter o diálogo como uma forma de desenvolver as “virtudes
comunicativas, tais como tolerância, paciência e boa-vontade para ouvir” (ibid., p.
190). Os mesmos autores alertam:
“Entretanto, esforço e boa-vontade sozinhos não são
garantias; o diálogo é falível. Contudo, mesmo tentativas
fracassadas de diálogo entre as diferenças podem nos ensinar
algo — que a persistência não resolve todos os conflitos, que
alguns problemas não são solucionáveis, mas apenas
administráveis, e que um certo nível de mistério e perplexidade
acompanha todos os esforços de compreensão humana.” (idem)
Burbules e Rice (op. cit.) apresentam, ainda, o argumento de que toda diferença é
baseada em alguma similaridade, esta afirmação aparentemente contraditória, é plena
de sentido, pois dois elementos quaisquer só serão identificados como diferentes a
partir da percepção de que têm, ou deveriam ter, a mesma função, ou aparência, ou
alguma outra característica que os aproxime: “ninguém pergunta seriamente sobre a
diferença entre um corvo e uma escrivaninha" (BURBULES, op. cit., p. 186). Vão mais
além quando apresentam as diferenças como base desejável para o diálogo:
105
“precisamos também ser diferentes o suficiente para fazer com que o diálogo valha a
pena” (ibid., p. 195).
“A única abordagem discursiva não-hierárquica, não-
dominadora, não-monolítica é aquela que descentra todas as
asserções de justificação transcendental (incluindo a sua
própria)... Essa perspectiva vê a incomensurabilidade entre
diferentes visões de mundo não como um fracasso lamentável
do processo de se estabelecer significados e valores comuns,
mas como um estado desejado.” (ibid., p. 174)
A princípio, a própria identificação da diferença é problemática, pois depende da
percepção que os sujeitos têm de si mesmos e da comunidade em que vivem. Não é
possível, assim, constituir previamente, e a partir de uma posição externa e
dogmática, os diversos grupos. Ao tratar de diferenças culturais atualmente, vários
autores se referem a grupos como os negros, as mulheres ou os mais pobres, mas
isto ocorre porque estes grupos já têm se manifestado de alguma forma em
momentos anteriores. Esta posição não deve implicar, entretanto, que todos os
negros, todas as mulheres e todos os pobres sejam incluídos em um ou outro destes
grupos exclusivamente, nem que devam sentir-se pertencentes prioritariamente a um
deles. A percepção da identidade individual definirá suas posições frente aos
diferentes grupos.
Mesmo com a preocupação de não definir espaços específicos para manifestação
das culturas diversas, é razoável supor que o diálogo não atingirá igualmente todos os
membros dos diversos grupos, mas que a tradição de isolamento pode agir de forma
a mantê-los separados e com mútua incompreensão. O que a pós-modernidade
afirma é a possibilidade do diálogo, e mesmo sua necessidade, a fim de garantir o
respeito a todos. É necessário, então, que ao menos alguns indivíduos de cada grupo
estejam preparados para exercer o diálogo de forma aberta, sem preconceitos. Há
que se notar ainda que as experiências pessoais de vida são determinantes para o
106
sucesso ou fracasso do diálogo, como o hábito de silenciar ou o de impor idéias, ou as
idéias que levam para o espaço de discussão. Considerando este espaço como a sala
de aula, o professor, que teria primariamente papel de mediador, deve se precaver
também destas atitudes, repensando o papel autoritário que tem representado por
muitos séculos.
Outro fato relevante, diz respeito à interação entre os diferentes grupos, uma vez
que as necessidades de alguns podem provocar reações negativas em outros, até
mesmo acarretando nova forma de hierarquização social. Implicando, assim, que
“nem todas as vozes são igualmente válidas” (BURBULES, op. cit., p. 33), mas devem
ser analisadas dentro do contexto em que são formadas e manifestam-se.
Determinados tipos de discurso, por sua essência, podem restringir ou intimidar os
demais participantes do diálogo; um exemplo típico são os discursos que revelam
preconceitos étnicos, pois negam, por princípio, validade para a participação de
indivíduos considerados inferiores, e caso sejam silenciados ou cerceados, é o seu
direito de manifestação que será negado.
“os educadores precisam de um conceito sofisticado de
pedagogia que possa formar a base para um diálogo não-
coercivo com os estudantes. Trata-se de criar uma base para o
diálogo que não seja feita em cima das fundações de gostos
infindáveis de consumo, da política da conquista ou da
perspectiva de uma visão eurocêntrica e androcêntrica do
meta-sujeito.” (ibid., p. 37)
Na verdade, quando são admitidas as “virtudes comunicativas” já é feita uma
escolha ética que irá limitar o tipo de discurso aceito, sendo recusados os que se
caracterizam principalmente pela exclusão.
“Essas virtudes não refletem um estilo lingüístico preferido
per se, mas expressam uma atitude afetiva e intelectual para
com os parceiros na conversação; elas promovem um olhar
generoso e empático para com as perspectivas e auto-
107
expressão dos outros... Se quisermos que um acordo provisório
sobre como devemos nos conduzir educacionalmente seja
inclusivo em qualquer sentido importante, então é preciso um
diálogo que seja expressivo das virtudes comunicativas.”
(BURBULES, op. cit., p. 198)
Não é válido, também, supor que a prática do diálogo, por si só, resultará sempre
em resultados positivos, na compreensão mútua e pacífica entre os indivíduos. Mas
que esta prática possui, entretanto, dois objetivos principais: criar linguagem comum
sobre a qual estabelecer relações e criar níveis de tolerância mais altos que permitam
a convivência pacífica. Este segundo objetivo deve satisfazer mesmo aos
antimodernistas, uma vez que não resultam em universalização de sentidos, nem
dominação cultural. A escola pode vir a ser o ambiente mais favorável para a tentativa
de diálogo, uma vez que uma de suas funções básicas é a de produzir e investigar
novas formas de conhecimento.
13. Reformulação dos Currículos
O estudo do currículo é, talvez, o único campo em Educação cuja origem está
diretamente ligada à própria atividade educacional, todos os outros — Filosofia,
História, Administração e Política em educação — têm suas origens em áreas de
conhecimento mais amplas. Esta sua característica apresenta dois aspectos
relevantes, por um lado permite independência frente a estes conhecimentos, alheios
à prática educacional, por outro, retira a possibilidade de fundamentação teórica mais
ampla das escolhas realizadas.
Quando trata do currículo, Cherryholmes o define como “aquilo que os estudantes
têm oportunidade de aprender” (op. cit., p. 145) e que faz com que “nossa atenção
seja dirigida para um objeto e afastada de outros (ibid., p. 146). Esta definição implica
delimitação de conteúdos e atividades educacionais específicas dependentes dos
objetivos traçados, que variam ao longo do tempo.
108
“Em qualquer currículo, há compromissos com respeito ao
tipo de pessoas que queremos que os estudantes sejam e se
tornem; como eles agirão com outros, formarão suas
identidades, assumirão responsabilidades sociais e exercerão
suas próprias escolhas.” (BEYER, op. cit., p. 97)
O interesse no desenvolvimento tecnológico que ocorre neste século, por
exemplo, especialmente após a década de 60, levou à formulação de objetivos e
práticas bem definidas com vistas a preparar trabalhadores adequados às novas
indústrias e atividades técnicas. A necessidade ditada pela economia, assim como
pela política, determinavam o tipo de estrutura e conteúdo curriculares que, diante do
discurso adotado, adequava-se perfeitamente. Devido a esse seu aspecto, o currículo
sofreu, ao longo do tempo, muitas mudanças; e é, ainda hoje, fonte de discussões
veementes quanto à sua formulação e a seu conteúdo.
“Dada a independência disciplinar fundamental do
currículo não é surpreendente que sua história seja marcada
por contínuas agitações e conflitos, porque é sempre possível
questionar os propósitos, crenças, valores, pressupostos,
metáforas e orientações que fixam sua direção e significado.”
(CHERRYHOLMES, 1993, p. 143)
O currículo define não só o que o estudante deve aprender, mas também limita o
conhecimento a que terá acesso, reflete ainda a proposta política de um governo, na
qual estão inseridas os princípios e valores que deverão nortear o processo de ensino-
aprendizagem. Nesse campo, encontra-se um paralelo forte com o paradigma, pois
tendo determinado a orientação a seguir, fixada pelas escolhas sociais, “tudo podia
ser arranjado, dos objetivos à avaliação” (ibid., p. 157). Sob essa perspectiva, a crítica
pós-moderna é importante para desvendar a relação de poder existente entre o
discurso social e a prática educativa, de forma a negar a afirmação de que o currículo
é independente de outros campos de conhecimento e áreas de interesse que não a
estritamente educacional.
109
Reconhecendo a relação entre discurso e poder, os educadores tornam-se mais
críticos quanto às afirmações que fazem com respeito à verdade e aos fatos; desde o
momento em que elaboram os planos para a educação, até o de contato mais direto
com os alunos em sala de aula. A elaboração do currículo não está isenta de
influência das formas de dominação existentes na sociedade, nem garante, por si só,
a igualdade de condições na prática de aprendizagem; sendo assim, devem conter em
si a possibilidade de fazer face a essa situação, contribuindo para a eliminação do
hábito de imposição cultural, por parte dos indivíduos responsáveis pela prática
educacional, efetivado através de discursos que pretendem afirmar a verdade. É
justamente neste ponto que a crítica pós-moderna causa insegurança e estranheza
nos educadores.
“Os construtores [do currículo e da educação] devem
compreender que aquilo que é construído é temporal, falível,
limitado, comprometido, negociado e, em última instância,
incompleto ou contraditório. Cada construção será, ao final,
substituída.” (CHERRYHOLMES, op. cit., p. 163)
A visão de teorias temporárias e parciais é plenamente justificada segundo as
indicações pós-modernas. As teorias educacionais modernas, neste século, admitiram
a participação dos sujeitos na formação do conhecimento: a construção social dos
currículos dependia da interação e conflito de diferentes grupos em busca do
predomínio. Na pós-modernidade, respeitando-se seus pressupostos de forma radical,
esta questão não se coloca, pois não existe verdade a ser alcançada pela
confrontação de idéias divergentes:
“Todos os ‘conhecimentos’ são meros discursos, textos ou
signos. Se tudo é discurso, ou não existe nada fora do texto,
então nada é válido” (SILVA, op. cit., p. 129)
A temporalidade que provoca instabilidade e niilismo por um lado, por outro
acarreta novas possibilidades, como defende Cherryholmes (op. cit., p. 163):
110
“Se o discurso no campo do currículo for visto como
fragmentado, puxado e empurrado, contraditório e incompleto,
como respondendo a forças profissionais e políticas para além
de nosso controle imediato ... a conversação se voltará para a
questão de que tipo de sociedade e escola queremos, sabendo
muito bem que elas se constituem mutuamente.”
A reformulação dos currículos passa, então, a propiciar espaço para a discussão
de valores e métodos de ação mais gerais, que afetem não somente a prática
educacional, mas sirvam a educandos e educadores como fundamento para a vida.
Até hoje, a conexão próxima da educação com outras relações sociais, como as
econômicas, tem resultado em teorias alternativas que elegem aspectos diversos da
sociedade como objetivos para a prática educacional, seguindo diferentes
orientações. Uma destas teorias é a de modernização educacional, que será vista no
item a seguir.
14. Modernização e Qualidade Educacional
A modernização em educação pode ser entendida de diversas formas, como “a
secularização da cultura e sua transmissão” (CASASSUS, op. cit., p. 8) — como
ocorreu no Iluminismo —, como “um período de mobilidade social e transformação do
trabalho com base em novos aprendizados” (idem), ou ainda como “exigência de
atualização, pelo menos no sentido de aperceber-se donde estamos e para onde
vamos” (DEMO, op. cit., p. 21).
A principal crítica quanto ao segundo sentido citado acima está na possibilidade
de redução a um único critério para a formulação de objetivos: a eficácia e eficiência
do sistema educacional, que estaria ligado em relação de dependência a um sistema
social mais amplo, com ênfase em seu aspecto econômico.
“trata-se de introduzir medidas que, por um lado, permitam
que o sistema educacional esteja em condições de alcançar o
que se espera dele, isto é, educar as novas gerações, e, por
111
outro lado, que o faça bem, com uma boa relação entre o uso
dos recursos humanos, físicos e finaceiros `a sua disposição e
a qualidade do resultado do processo de ensino-
aprendizagem.” (CASASSUS, op. cit., p. 9)
Dentro da orientação de teorias educacionais voltadas para o mercado de
trabalho, surgem propostas para a Qualidade Total, ou Pedagogia da Qualidade.
Assmann (op. cit.) relaciona esta busca da qualidade com uma nova “utopização das
instituições do mercado e do ‘capitalismo democrático’.” (p. 8), embora não a condene
por si mesma, apenas no ponto em que pode mascarar a realidade das desigualdades
sociais. Afirma ainda que o termo qualidade não é uma novidade criada pelos novos
teóricos do capitalismo moderno, mas que trata-se, antes, de uma redefinição do
termo com vistas a novos objetivos.
“Chama a atenção que um conceito tão simples como o de
qualidade não tenha tido ressonância maior no passado.
Começamos a ouvir falar dele no início dos anos oitenta, no
contexto da expressão qualidade de vida à qual se referiam,
como expectativa, os intelectuais que denunciavam uma
sociedade que, por seu culto à produtividade e à eficiência,
estava deteriorando seriamente seu componente humano e seu
meio-ambiente. Dez anos mais tarde, no umbral de uma nova
década, tanto as organizações produtivas quanto as
governamentais manifestam interesse no que lhes propalam
certas designações como Qualidade Total, Qualidade de
Gerenciamento e Círculos de Qualidade.”
(PAEZ URDANETA apud ASSMANN, op. cit., p. 9)
Estas teorias apresentam, também, preocupação constante com o tempo. A
velocidade das transformações na área de produção impõe a necessidade de
trabalhadores adaptados às novas exigências e capazes de as acompanharem, em
constante atualização. Daí a ênfase na capacitação de recursos humanos e na
112
competitividade. E, por trás destas teorias, existe claramente a noção de que a
educação já está em atraso. O que não ocorre apenas em países subdesenvolvidos,
mas também na Europa e nos Estados Unidos. Assmann (op. cit.) ao comentar o
Plano Nacional de Educação proposto nos Estados Unidos no início da década de 80,
afirma: “As linhas mestras da cruzada estão claras desde o início: recuperar o atraso,
mormente no que se refere ao preparo científico-técnico” (p. 3). E complementa com a
análise das principais diretivas deste plano:
“Ter os olhos sempre fixos numa estratégia de ‘excelência’ e
eficiência (pedagogia de resultados); vincular, o mais
estreitamente possível, a formação escolar, em todos os níveis,
com formas específicas de produtividade, na teoria e na prática;
fixar variáveis efetivamente verificáveis (leia-se quantificáveis)
na avaliação; inscrever todo o ensino num ‘clima de valores’
propícios ao incremento da ‘excelência’.” (idem)
Este tipo de educação deve privilegiar o caráter instrutivo mais que o formativo do
educando; e é este ponto mesmo, o alvo de críticas por parte daqueles que defendem
a formação para a cidadania plena. O cerne da questão está na possibilidade de
conjugar as duas orientações no sentido de uma educação mais completa.
Alguns autores, como Demo (op. cit.), defendem a modernização educacional
como uma forma de adequação entre o homem e o meio em que vive, que é,
atualmente, dominado por conceitos científicos-tecnológicos. Para este autor, “ ‘ser
moderno’ é ser capaz de dialogar com a realidade, inserindo-se nela como sujeito
criativo” (ibid., p. 21). O diálogo com a realidade depende da compreensão das
relações que a definem, interferindo nas relações humanas em todos os níveis.
Uma característica dos programas para a Qualidade Total, na educação ou em
outras áreas, é que visam sempre ao engajamento de diversos grupos sociais, assim
como de instituições governamentais. O objetivo destes programas é contribuir para o
bem-estar de um cliente (ver ASSMANN, p. 11ss), termo que se refere a pessoas —
113
individual ou coletivamente —, empresas, ou qualquer tipo de instituição. Reafirmam a
todo momento que sua preocupação maior é investir no ser humano, com vistas a
melhorar a produtividade através da satisfação individual com o trabalho. O que estas
teorias encobrem — intencionalmente ou não — é que enquadrar as pessoas como
clientes ou como força de trabalho representa redução das complexidades individuais.
Segundo Demo (op. cit.), a relação entre educação e crescimento econômico é
indireta:
“Um dos fatores mais decisivos para as oportunidades de
desenvolvimento é a produção de conhecimento próprio e sua
disseminação popular (ciência e tecnologia), o que torna
educação relevante não somente em termos políticos
(cidadania), mas também em termos econômicos
(produtividade).” (p. 22)
Hoje, o desenvolvimento de um país é medido mais quanto às condições de
conhecimento científico e tecnológico de sua população, que quanto a características
naturais como matéria-prima disponível e mão-de-obra barata. Esta situação valoriza
a educação do trabalhador tanto como forma de garantir maior qualificação
profissional, como também de criar “competências cognitivas e sociais da população”
(ibid., p. 24). Sob este enfoque, a educação assume o papel de contribuir para a
melhoria das condições de vida dos indivíduos através de sua emancipação e da
construção de sociedade mais democrática. Para alcançar este objetivo, a formulação
de planos educacionais deverá ser realizada de forma estratégica, voltando-se mais
para o desenvolvimento do raciocínio na resolução de problemas, que para a
especialização.
Mesmo que se entenda como restrito o relacionamento educação-sociedade
apenas enquanto fator econômico, a abertura das instituições escolares em busca de
melhor integração entre seus objetivos e as demandas reais de seus beneficiários é
positiva. Da mesma forma, o critério da qualidade sinaliza para uma maior
114
preocupação e responsabilidade quanto ao processo educativo. A especificação dos
critérios entretanto deve ser bem definida, e deve estar de acordo com metas gerais
predeterminadas: “Educação moderna e modernizante não pode decair no afã
modernista, porque de novo entraríamos nesse processo como objetos” (DEMO, op.
cit., p. 26). O que o autor conceitua como modernista é a prática de adoção de
aparências de modernidade que ocultam estruturas sociais antigas.
Ainda o mesmo autor conceitua qualidade educativa como a extensão das
oportunidades de acesso ao conhecimento básico a todos os indivíduos, garantindo-
lhes possibilidade de participação efetiva nas práticas e decisões realizadas em
sociedade. Esta educação básica em Demo (op. cit.) identifica-se com um saber
estratégico “de teor interdisciplinar” (p. 30). A preocupação com a qualidade educativa
volta-se para o desenvolvimento de habilidades, para que os indivíduos possam fazer
uso das informações a que têm acesso. Para este fim, torna-se também necessário
desenvolver capacidade crítica e de aprendizagem continuada.
15. Orientações para novas teorias educacionais
Quaisquer que sejam as metas determinadas para a educação, ou as práticas
adotadas para sua concretização, pode-se afirmar que: “define a Educação o
conhecimento ligado à formação do homem, tendo em vista um modelo, um
paradigma” (GARCIA, 1994, p. 58).
A teoria e prática educacionais estão, segundo Giroux (op. cit.),
indissociavelmente ligadas à crença modernista na capacidade dos homens de pensar
criticamente e agir no sentido da melhoria de suas condições de vida. A educação não
pode perder a fé em sua capacidade construtiva e de transformação. O
questionamento visa definir o que se entende como melhoria nas condições de vida, e
o que constitui o ideal de vida humana, segundo perspectiva pós-moderna, ou
qualquer outra nova orientação paradigmática que se resolva adotar. Este ideal não
115
deverá mais ser construído abstratamente por alguns indivíduos em nome de uma
universalidade idealizada, mas sim referenciado a experiências individuais concretas.
Frente ao pessimismo demonstrado por muitos teóricos em educação, provocado
pela perda de um fundamento único para as idéias e ações, Garcia (op. cit.)
questiona:
“será que as certezas que tínhamos, que se revelaram
falsas, são melhores do que a incerteza com a qual navegamos
atualmente? Perda ou liberação?” (p. 60)
O lado positivo desta incerteza é o que permite que o homem investigue
novamente a realidade, que era dada como fixa, em busca de novas idéias, num
exercício de aprendizagem renovado, que apenas enriquece a prática educativa. O
mesmo autor afirma que a própria alegria da vida advém desta possibilidade de
“penetrar no desconhecido em busca de respostas” (ibid., p. 61), ainda que parciais. O
argumento que apresenta para os que se sentem tolhidos pela ausência de teorias
fundamentais, e a usam como motivo para evitar a ação é que “escolher é sempre um
risco” (p. 62) e “nada nos assegura o resultado do caminho escolhido que, só
parcialmente, e muito parcialmente, depende de nós” (idem). Não existem garantias
de que as escolhas feitas com base em certezas radicais sejam melhores ou mais
corretas. A crença na inexorabilidade do progresso, afirmada pela teoria moderna
resultou, quando questionada, em profunda desconfiança contra qualquer outro tipo
de elaboração teórica, que é justamente o âmago das correntes de pensamento pós-
modernas. O tipo de atitude capaz de contribuir positivamente para a nova prática
social, sob qualquer aspecto, é definido por Assmann (op. cit., p. 1):
“Quanto ao modo de proceder, supõe-se a todo momento a
agilidade reflexiva capaz de agüentar a multiconexionalidade...
Isto implica, por vezes, a paciência de ‘não cobrar já o detalhe’,
precisamente para possibilitar aquele nível de pensamento que
116
consegue juntar e relacionar muitas questões numa só
problematização complexa.”
No mesmo sentido, Assmann (op. cit.) defende a necessidade de compatibilizar
aspectos práticos, emergenciais, a um plano mais elaborado que resulte realmente
em mudanças qualitativas em seu fundamento, e não sejam mais limitadas espacial e
temporalmente. A mudança de prática educativa seria fundada em um objetivo mais
abrangente, a realizar-se futuramente, embora seus efeitos já pudessem ser sentidos
na época atual. A formulação deste plano deveria ser flexível o suficiente para permitir
adequações ao longo do processo. A formulação dos planos educacionais seguiria
novo paradigma, que contemplasse a integralidade dos aspectos cognitivos,
sensoriais e emotivos humanos.
Talvez a reposta à perplexidade teórica sobre a ação social e educacional esteja
na própria ação. Ousar agir na tentativa de construção de uma sociedade que respeite
alguns valores básicos — como justiça e igualdade — e manter a mente aberta para
ouvir novas e diferentes idéias. E para enfrentar as diferenças que dificultam a relação
com o outro, a prática educativa deverá ser mediada por ações políticas, não no
sentido mais estreito da palavra, do exercício de poder, mas no de exercitar o diálogo,
a negociação.
“Este, me parece, é o esforço a ser feito. E a Educação
tem um papel a desempenhar. Ela tanto pode ser serva do
modelo que aí está, realimentando-o acriticamente, como pode
ser uma reflexão crítica a este modelo, buscando alternativas
em cima de uma prática social concreta. Esta prática deveria
buscar a emergência de valores de solidariedade, liberdade e
igualdade.” (GARCIA, op. cit., p. 63)
117
Conclusão
A investigação sobre as condições crísicas das sociedades modernas, com vistas
a elucidar os fundamentos e as relações que vieram a conformá-la, resultou no
desvelamento da ligação direta existente entre Iluminismo e modernidade, assim
como os desvios ocorridos na implantação desta última, resultaram em desconfiança
extrema por parte de diversos teóricos da atualidade. Os valores do Iluminismo, de
emancipação, racionalidade e individualidade foram sendo substituídos, na
modernidade, por restrições à liberdade provocada pela desigualdade econômica,
pela tecnicização do conhecimento, restrito a alguns especialistas, e pela
individualização extrema, fruto da cada vez mais acirrada competitividade, e da
influência sobre a vontade resultante da expansão de modismos e hábitos de
consumo, devidos ambos à expansão capitalista.
O fracasso de implantação das metas do Iluminismo, especialmente a que
apresentava a felicidade como decorrente direta do progresso material, foi substituída
por descrença radical, percebida nas relações sociais através da violência e da quebra
de costumes e crenças tradicionais como o cientificismo, a de mais fácil identificação
atualmente e que mais mudanças tem provocado. O niilismo desta posição, que veio a
provocar paralisia de vontade e de ação, foi denunciado como apenas uma das
reações à nova estrutura social, que não é desejada por aqueles que procuram ainda
algum fundamento e justificativa para a ação, e que caminham em direção a uma
nova utopia, flexível e adaptável às condições da realidade percebida e aos desejos
dos indivíduos, agora entendidos como mutáveis.
A reflexão sobre os paradigmas esclarece sua importância para as relações
sociais e a formação da individualidade, e revela os fundamentos para as crenças,
conceitos e hábitos culturais que formam as sociedades. Esta reflexão, aponta ainda
para base comum entre teoria moderna e Iluminismo, especialmente quanto à
questão da racionalidade instrumental, assim como, sob outra perspectiva, põe em
118
evidência a necessidade psicológica profunda que leva os indivíduos a buscarem
modelos de comportamento e legitimações para as ações que praticam e as crenças
que seguem.
O questionamento dos teóricos pós-modernos sobre os fundamentos da
modernidade — sujeito, racionalidade e universalidade — provocam forte reação,
embora não tenha resultado, ainda, em teoria alternativa. Entretanto, alguns autores
realizam leitura mais profunda desta orientação, resultando em contribuições
importantes para a elaboração de objetivos sociais mais próximos à realidade. Com
base nestas relações, a pós-modernidade pode ser analisada criticamente, de forma a
ressaltar seus aspectos mais positivos, que contribuem para a reformulação da teoria
e prática educativas. Esta leitura reavalia o sentido mais amplo das metaprescrições
da modernidade, e os apresenta como objetivos, fonte de legitimação e impulso para
a ação necessários para responder à descrença e apatia reveladas na sociedade
atual.
Frente a esta situação, a discussão sobre a reformulação educacional apresenta
duas direções principais: a que valoriza a relação educação/produção econômica e a
que visa à formação integral dos indivíduos. A primeira, materializada através de
teorias que adotam critérios econômicos de eficiência e eficácia, e o uso de novas
tecnologias no ambiente escolar, é limitada pela própria velocidade das
transformações sociais. Já a segunda possibilita, por um lado o preparo dos
indivíduos para a vida, incluindo a capacidade adaptativa, e por outro, a eliminação
das diferenças sociais que dificultam o convívio entre culturas diversas. Certamente,
para que seus objetivos sejam cumpridos, é necessária a adoção de alguns princípios
básicos, como a solidariedade, a liberdade e o respeito ao outro, assim como a
valorização do diálogo.
As críticas pós-modernas, então, contribuem para esclarecer os pontos de conflito
nas relações sociais modernas, assim como os motivos que levaram ao não
cumprimento de suas metas iniciais. E devem ser usadas para propor situação nova,
119
que contorne esses problemas através da flexibilidade de suas metas e práticas
sociais. Acreditar que a mudança é possível e agir nesse sentido, é a única maneira
de garantir que ela ocorra, seguindo os princípios que forem definidos para legitimar o
pensamento e a ação. A validade das metanarrativas deve ser recuperada, se os
homens quiserem guiar suas ações no sentido desejado, e não mais adotar a atitude
de total desesperança. Na educação, ainda mais fortemente, a crença na
possibilidade da ação constitutiva de indivíduos e coletividades deve estar presente
em todas as elaborações teóricas. Diante das dificuldades enfrentadas diariamente
devido a divergências culturais e filosóficas, a preocupação maior deve se relacionar à
revalorização da semelhança sobre a diferença.
O caminho a seguir ainda é longo, as discussões sobre a situação da sociedade
prosseguem sem um sinal de que o consenso será alcançado, ou mesmo de que
ainda seja possível. Este estudo propôs-se a contribuir com reflexões sobre a
correlação entre os diversos fatores que devem ser considerados para que um plano
educacional coerente com a realidade, modificando-a se necessário, seja construído e
implantado, de acordo com as metas consideradas desejáveis. Qualquer projeto
educacional que vise atender às variáveis das demandas sociais implica pensar o
futuro; mais do que a discussão de projetos ou modelos pedagógicos-educacionais,
faz-se necessária a discussão ético-filosófica de um projeto de futuro.
Ainda resta definir e fundamentar esses princípios, assim como elaborar o novo
projeto educacional que na teoria respeite essas orientações, e na prática alcance o
sucesso. Este último é, na verdade, o ponto de mais difícil realização até hoje, uma
vez que projetos educacionais alternativos têm surgido em grande quantidade e
variada qualidade, sem atender plenamente a todas as diferentes demandas.
A principal contribuição deste trabalho está em formular questões sobre o que
mais estreitamente influencia e interfere nas relações sociais, em especial na prática
educativa; não fazendo parte de seu escopo apresentar respostas definitivas a
questões tão complexas, mas contribuir no sentido de contrapor pensamentos de
120
origens diversas em busca da similaridade que permita sua coexistência e mútuo
enriquecimento.
A dificuldade, expressa no corpo do trabalho, de adequação entre as mudanças
paradigmáticas teóricas e a prática em qualquer ciência, foi sentida já no momento de
sua própria elaboração. As orientações pós-modernas indicam sistemas de
representação diferenciados e maior liberdade na designação de significados,
dependentes da posição de cada interlocutor na interação comunicativa. Na prática
entretanto, formas convencionais de elaboração de pensamento e representação
escrita — ligadas ao paradigma anterior — ainda se fazem sentir, como a divisão
hierárquica de assuntos e a busca da linearidade, temporal ou lógica. Esta situação
reafirma a dificuldade de adaptação às transformações paradigmáticas, que são
vividas e sentidas de modo ambíguo e conflituoso.
121
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