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MODERNIDADE, RACISMO E TICAPS-CONVENCIONAL
MIGUEL BAPTISTA PEREIRA
A viso do homem como unidade integradora das dimenses som-tica, psquica e lgica ou pneumtica legadas pela tradio refractou-seem diversos paradigmas fragmentados da construo moderna daAntropologia. O mecanicismo de L'Homme Machine de La Mettrie pro-longado na Ciberntica e na inteligncia artificial hodiernas, o mate-rialismo dinmico de K. Marx com a promessa sedutora e infalvel dacomunidade futura sem classes transmitem uni "soma" lido ou "sub speciemachinae" ou como corpo humano colectivo e histrico-dialctico,enquanto as teorias de J. A. De Gobineau, de Ch. Darwin ou deE. Haeckel desenvolvem a dimenso biolgica de "soma", descoberta nasua pluralidade rcica pelo mdico francs F. Bernier no sc. XVII, quedividiu a terra "par les differentes espces ou races, qui 1'habitent". Coubes correntes psicologistas desde J. Locke at hoje a explorao analticade "psyche" ou a elevao da Psicologia a "Prima Philosophia" sem noentanto penetrarem no espao velado do inconsciente, a que s teve acessoa psicologia da profundidade desde o Romantismo Psicanlise. O logosou pneuma, por sua vez, recuperado pela filosofia transcendentalkantiana, pelo Idealismo, pela Fenomenologia e por toda a filosofia onto-
lgica, que vislumbre no logos (razo ou linguagem) a abertura originria
alteridade do ser.Nos dias que correm, registam-se por toda a parte fenmenos racistas,
que atravs de discursos, agresses morais e fsicas e mortes,actualizam
o paradigma biolgico da luta de raas. Trata-se de uma construo do
outro, que de modo pseudo-cientfico serve interesses de grupos tnicos,
nacionalismos acirrados, a fome de domnio e a vontade de poder,
depreciando e instrumentalizando outros homens (1), com razes longas
no percurso histrico da Modernidade (II) e cujos preconceitos podero
ser erradicados numa mudana de atitude como a que proposta pela
Macrotica ps-convencional de K.-O. Apel (III).
Revista Filosfica de Coimbra - n. 3 - vol . 2 (1993 ) pp. 3-64
4 Miguel Baptista Pereira
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Meio sculo j passou sobre a classificao da humanidade
proclamada por etnlogos nazis em 1943, segundo a qual os alemes e
seus aliados(italianos e japoneses) figuravam entre os "povos superiores",
enquanto os judeus, os ciganos, os armnios, os srios e os prias eram
relegados para a lista negra dos "povos aparentes" 1. Sob esta classificao
ideolgica simplista est o drama de uni povo de oitenta milhes de
habitantes, que, com honrosas excepes, se deixou envolver e seduzir
directa ou indirectamente e segundo a gama diversa das aces ou
omisses pelo monstro histrico do Nacional-Socialismo, que perturbou,
enfraqueceu, neutralizou e finalmente perverteu a conscincia moral ou
a ltima instncia pr-reflexiva e "natural " de um povo.As investigaes realizadas sobre o desenvolvimento, no Nacional-
-Socialismo, da Psiquiatria, da esterilizao obrigatria, da Gentica e daEugenia, da Poltica Social e da Poltica Demogrfica, da Pedagogia, do
tratamento dos "associais" e dos trabalhadores estrangeiros, da perse-
guio dos ciganos e dos judeus e das expresses culturais de racismo 2
evidenciam que um denominador comum articulou os especialistas das
Cincias Humanas e os profissionais nelas formados: o juzo e o trato com
os homens divergiram segundo o respectivo "valor", cujos critrios eram
deduzidos da imagem ideal, normativa e afirmativa do "corpo do povo"
enquanto sujeito colectivo e cujo substracto biolgico estava depositadono cdigo gentico dos indivduos. Esta viso do Nacional-Socialismocoroava o avano tentacular do Biologismo, termo introduzido na viragem
do sc. XX por H. Rickert para designar o modelo de explicao monista,
que, apoiado nas Cincias da Natureza, na tcnica e na Medicina, reduzia
desde as ltimas dcadas do sc. XIX toda a actividade cientfica, poltica,econmica, artstica e quotidiana dos homens lgica de uma nova deusa
das Cincias da Natureza chamada Vida 3. Assim,no comeo do sc. XX,
as Cincias do Homem apresentavam pela primeira vez uma inegvel
t R. SCHUMACHER, "Vom Suedseezauher in die rauhe Vergangenheit" in: Die
Tageszeitung 11. 2, 1991.
2 Cf. bibliografia em DETLEV J. K. PEUKERT, "Die Genesis der "Endloesung" aosdem Geiste der Wissenschaft" in: FORUM FUER PHILOSOPHIE BAD lIOMBURG,Hrsg., Zerstoerung des ntoralischen Selbstbewusstseins: Chance oder Ge.faehrdung?Praktische Philosophie in Deutschland nach dem Nationalsozialisinus (FrankfurUM. 1988)27, 45-47.
3 Cf. H. RICKERT, "Lebenswerte und Kulturwerte" in: Logos 2 (1911/12) 131-166;
G. MANN, "Biologismus - Vorstufen und Elemente einer Medizin im Natio-
nalsozialismus " in: J. BLEKERIN. JACHERTZ, Hrsg., Medizin im dritten Reich (Koeln
1989) 11-12.
pp. 3-64 Revista Filosfica de Coimbra - n." 3 - vol . 2 (1993)
Modernidade, Racismo e tica Ps-Convencional 5
dimenso prtica na altura em que a Medicina vencia epidemias e progra-mava a erradicao das grandes doenas, a Psicanlise e a Pedagogiaprometiam uma diagnose cientfica da personalidade e uma terapia, queeliminassem a inscincia e a desadaptao social, a Higiene Social seempenhava na luta contra as causas sociais da doena e da anormalidadee previa j o desdobramento do objecto da Medicina em corpo individuale em "corpo do povo", a Poltica Social do Estado provia doena, aosacidentes e velhice, mediante a profissionalizao de especialistas nestasmatrias . Da conjugao do trabalho das Cincias Humanas e da prticada Poltica Social esperou-se a soluo de todos os problemas sociais,dada a f inquebrantvel na fora irresistvel do progresso. Com a reduoda mortalidade infantil, dos riscos de morte na idade adulta e com ofenmeno de uma longevidade crescente foi a morte exilada daexperincia quotidiana de vida e a ateno concentrada nos cuidados docorpo, alvo permanente dos desvelos da Medicina, da Higiene Social eda Segurana Social. Mais do que o xito da teraputica, foi o optimismoda Medicina que abriu as portas idealizao do corpo saudvel e jovem,que, imortalizado no "corpo do povo", fazia esquecer o estertor agnicoquotidiano dos indivduos annimos S. J no incio do sc. XX esta apo-logia do corpo integrou-se no culto da juventude, que se ergueu sobre ospilares da desvalorizao das experincias dos velhos e da identificaoentre Modernidade e Juventude t', pois jovem era o novo sentimento davida proveniente do processo de modernizao gerado pela indus-trializao, pelo urbanismo, pela tecnicizao do quotidiano e pela
sociedade de massas. no vazio do secularismo que se instala o tab da morte, a
idealizao do corpo, o culto da juventude e a fachada da sociedade de
consumo, apesar do desmentido trazido pela realidade inegvel da doena,
da velhice e da morte, que semeavam um incurvel mal-estar na
logodiccia da Modernidade. A eliminao da morte e das suas damas de
companhia, a doena e a velhice, foi a soluo irracional ditada pela uto-
pia do corpo imortal do povo cujo substrato material eterno era o cdigo
gentico descoberto e defendido por uma cincia triunfante. No Nacional-
-Socialismo, o corpo do povo, como valor hereditrio, contrastava com
os indivduos desvalorizados, cuja vida fugaz e morte iminente eram
d DETLEV J. K. PEUKERT, o.c. 28.
5 Cf. G. L. MOSSE , Nationalismu s und Sexualitaet. Buergerliche Moral und sexuelle
Normen ( Muenchen/Wien 1985).
6 Cf. TH. KOEBNER und Andere , Hrsg . "Mit uns zieht die neue Zeit" . Der Mythos
Jugend ( Frankfurt/M. 198).
Revista Filosfica de Coimbra - n. 3 - vol . 2 (1993) pp. 3-64
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secundrias, quando em paralelo com a massa hereditria idealizada do
povo, que justificava, alis, a morte do heri e o extermnio do homem
biologicamente inferior, praticado nos campos de concentrao, na
eutansia e na Biologia Criminal em favor da felicidade de futuros
membros saudveis e normais do corpo do povo 1.
A distino entre sujeitos capazes e incapazes de educao foi
substituida nos ltimos anos da Repblica de Weimar pelo binmio
"seleco dos que valem " e "excluso dos inferiores e sem valor" ", que
em 1933 foi interpretado em sentido racista e imposto pela autoridade do
Estado. Porm, a realidade desmentia frequentemente o racismo "posi-
tivo" da imagem vaga de corpo eternamente saudvel do povo e, por isso,
preferiu-se um catlogo concreto e pormenorizado de desvios e anomalias
a eliminar por esterilizao, morte por abandono ou homicdio intencional.
Na Segunda Guerra Mundial, a ordem para liquidar a chamada "vida
indigna de viver" foi o passo decisivo da utopia racista para a realizao
da "soluo final " do genocdio. Pela Higiene da Raa e pela Eugenia
desnudou-se a vtima de todo o valor mediante a construo fictcia da
sua hereditariedade e em nome da raa pura do corpo do povo julgou-se
legtima a negao da vida. Assim, "no fim da fuga utpica perante a
experincia-limite da morte ficou de p o morticnio ilimitado" 9, pois a
imunizao fictcia contra a morte alimentou-se, neste racismo do corpo
ideal, de milhes de vtimas reais.
O smbolo de Ausschwitz no significa a morte definitiva do racismo
entre os cientistas, pois alguns o continuaram a apoiar enquanto outros,em maior nmero, ocupam ainda a zona cinzenta das posies, que
toleram ou sustentam paradigmas cientficos com implicaes xenfobas
ou mesmo racistas. Bilhete de ocupao desta zona cinzenta o Mani-
festo de Heidelberg de 1981 assinado por quinze professores apavorados
pela invaso da lngua, da cultura e do carcter germnicos por elementos
estranhos e couraados pela certeza de que os estrange