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SUMRIOSUMRIO.............................................................................................................................................................................................1 CAPTULO I.........................................................................................................................................................................................2 INSTITUIES RELIGIOSAS........................................................................................................................................................2 Conceito.........................................................................................................................................................................................2 Teorias sobre a origem da Religio...............................................................................................................................................2 FORMAS DE RELIGIO.............................................................................................................................................................3 CAPTULO II........................................................................................................................................................................................5 OS ARTFICES DA REFORMA PROTESTANTE E OS SEUS IDEAIS......................................................................................5 AS CAUSAS DA REFORMA PROTESTANTE .........................................................................................................................5 MARTINHO LUTERO.................................................................................................................................................................5 ULRICH ZUNGLIO....................................................................................................................................................................7 JOO CALVINO..........................................................................................................................................................................8 SNTESE CRTICA DA REFORMA PROTESTANTE..............................................................................................................8 CAPTULO III.......................................................................................................................................................................................9 OS FILSOFOS DA REFORMA CATLICA OU DA CONTRA-REFORMA............................................................................9 OS MOTIVOS INSPIRADORES DA REFORMA CATLICA.................................................................................................9 CAETANO (TOMS DE VIO) ................................................................................................................................................10 FRANCISCO DE VITRIA.......................................................................................................................................................10 FRANCISCO SUAREZ..............................................................................................................................................................10 TOMMASO CAMPANELLA ...................................................................................................................................................11 REFORMA E RENASCIMENTO..............................................................................................................................................12 REFORMA E CONTRA-REFORMA........................................................................................................................................13 A CRISE RELIGIOSA...............................................................................................................................................................14 O REFERENCIAL RELIGIOSO DA TICA.............................................................................................................................16 A TICA PROTESTANTE E O ESPRITO DO CAPITALISMO............................................................................................17 A ORGANIZAO RELIGIOSA E SUAS FUNES............................................................................................................25 A REPRODUO DAS REPRESENTAES COM SENTIDO RELIGIOSO......................................................................26 A PRODUO E A ELABORAO DE NOVOS SENTIDOS RELIGIOSOS ...................................................................27 ALGUNS EXEMPLOS DO CATOLICISMO............................................................................................................................27 O PAPEL DOS INTELECTUAIS...............................................................................................................................................28 A FORMALIZAO DAS FORMAS EXPRESSIVAS RELIGIOSAS..................................................................................29 A DEFINIO DAS NORMAS TICAS COM REFERNCIAS RELIGIOSAS...................................................................31 A VINCULAO COM OS OUTROS ELEMENTOS DA SOCIEDADE CIVIL E POLTICA............................................32 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................................................................................37

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CAPTULO I INSTITUIES RELIGIOSASConceito Ao socilogo no interessa responder indagao sobre se a religio ou no verdadeira, ele se preocupa em analis-la como fenmeno social que pode ser encontrado em todas as sociedades, a despeito de ser, entre todas as instituies existentes nas sociedades humanas. Tentando explicar este fato, tanto Summer quanto keller fizeram as seguintes proposies: a) As Instituies consistem em meios atravs dos quais o homem procura ajustar-se ao seu ambiente. b) Existem trs nveis de ambientes: o natural, o social e o sobrenatural. c) A Instituio religio seria o meio pelo qual o homem se ajusta a seu ambiente sobrenatural. O ambiente sobrenatural obviamente imaginrio; entretanto para os dois autores o homem uma vez que incorreu nessa crena da existncia de um mundo de esprito e seres super-humanos, tem necessidade de a ele se ajustar, da mesma maneira que o faz com os outros dois ambientes. Johnson define o sobrenatural como qualquer coisa em cuja existncia se acredita, baseando-se em provas no fundamentais no pela cincia. Assim, as entidades sobrenaturais no so empricas e a cincia no pode demonstrar que realmente existem ou que realmente no existem: as idias religiosas no so cientficas. O sobrenatural divide-se em seres (deuses, anjos, demnios, duendes, fadas), lugares (cu, inferno, limbo, purgatrio, den), foras (Espirito Santo, carma - lei hindu de causa e efeito, mana-poder mgico em que acredita os melansios), e entidades (almas). Teorias sobre a origem da Religio Teoria do medo (sobrenatural). Teoria mais antiga, mais recentemente defendida por Mller e Giddngs, sustenta que o medo das foras naturais levou o homem a crer em divindades, foras misteriosas, sobrenaturais, como o poder de dirigir a natureza. A gnese das crenas religiosas seria o medo do sobrenatural. Teoria aminatista (mana). Os povos primitivos acreditavam na existncia de um poder impessoal, uma espcie de fludo denominado mana pelos melansios e polinsios, conforme descrio de Dodrington, capaz de penetrar nos objetivos vegetais, animais e pessoas, conferindo-lhes capacidade e propriedades superiores. Marrett considerava a existncia do mana fundamental na formao da crena religiosa. Teoria animista (alma). Spencer e Tylor explicaram a origem das religies por intermdio da crena do homem primitivo na existncia de um outro eu, com propriedades espirituais, que seria a alma dotada de poderes superiores ao homem. Esta crena era baseada na existncia de formas imateriais, surgidas em sonhos, ou na diferena entre um homem vivo em seu cadver. A morte ocorre quando a alma deixa o corpo e volta a seu lugar de origem onde residem todos os espritos dos antepassados. Estes espritos podiam entrar no corpo dos vivos aumentando-lhe a fora e a vitalidade, ou provocando doenas e males. Acreditavam que, alm dos homens, os animais, os vegetais e as coisas inanimadas tambm possuam alma. Para Taylor, o animismo abrange os grandes dogmas que constituem juntos uma doutrina coerente: primeiro, corresponde as almas das criaturas individuais capazes de uma existncia continuada aps a morte ou destruio do corpo; segundo, refere-se a outros espritos, at chegar a divindades poderosas. (Apud Herskovits, 1963: II 140). Teoria do totemismo (totem). Segundo Frazer e Goldenweiser, os complexos totmicos variam muito em relao sua composio concreta. De modo geral, podem ser considerados como uma crena na descendncia comum dos grupos de um antepassado animal ou vegetal, dando origem a uma amplitude de reverncia para com todos os representantes desta fauna ou flora especfica. O totemismo despertou uma controvrsia em relao a seu significado, designado por alguns autores como fenmeno social e por outros como fenmeno religioso. Durkheim observou o seu conceito de totemismo e as cerimnias a ele ligadas so as formas elementares da religio, e com isso deu origem a uma teoria sociolgica da religio. Teoria sociolgica (magia).Iniciada por Smith e amplamente desenvolvida por Durkheim, essa teoria resiste ao argumento de que a religio se iniciou a partir da crena em seres espirituais ou deuses; considerava queFACETE Faculdade de Educao Teolgica

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surgiram primeiro os ritos ou cerimnias, principalmente a dana e o canto que intensificam as emoes levando-as ao xtase. Essas emoes, difundidas entre todos os participantes, fazem-nos acreditar estarem possudos pelos poderes excepcionais. Essas experincias levaram o homem primitivo a crer na existncia de um poder sobrenatural, o mana, simbolizado pelo totem. Outros autores tambm procuraram uma explicao sociolgica para a origem e desenvolvimento da religio, como por exemplo, Jane Harrison, Chapple e Coon, Wallis e, at certo ponto, Weber. Teoria do elemento aleatrio (sorte). Summer e Keller desenvolveram esta teoria. Consideravam que as tribos primitivas acreditavam ser os poderes sobrenaturais intimamente ligados ao elemento sorte devendo o homem atuar no sentido de obter a ateno favorveis desses poderes para evitar a m sorte e propiciar a boa sina. Desta maneira a religio surge como uma resposta a uma necessidade defendida, ajustamento ao meio sobrenatural. O elemento sorte foi denominado pelos dois autores como elemento aleatrio, sem o qual a religio poderia no ter surgido, ou ter-se transformado em algo inteiramente diferente. FORMAS DE RELIGIO HINDUSMO. uma corrente originria do sistema religioso vdico-bramnico. Brama o centro a origem de toda a criao, o incio e o fim de tudo. Ele, Vishmu e Shiva constituem os trs maiores deuses do hindusmo. O dogma bsico a transmigrao; toda alma existiu desde a eternidade, no constitui criao de um deus; vive atravs de uma longa srie de renascimentos ou reencarnaes Carma a doutrina a qual cada da alma tem efeitos permanentes sobre o seu destino a alma reencarnar, como animal ou como homem, dependendo do seu comportamento anterior. Samsara representa o esquema para a reencarnao, estabelecendo o ciclo de mortes e renascimentos sucessivos. A alma purificada integra-se finalmente a prpria natureza de Brama, perdendo sua personalidade para sempre. O dharma, cdigo de deveres, significa o cumprimento de rituais religiosos e o fundamento do sistema de castas. A crena na reencarnao estabeleceu um imobilismo social, pois a posio de cada indivduo teria sido determinada pela divindade da dever-se conformar com seu destino. O resultado disso foi o sistema de castas, no qual a passagem de um nvel para outro no acontecia de forma alguma, sendo, portanto, vitalcias e hereditrias todas as funes. BUDISMO. O budismo, assim como o jainismo (fundado por Mahavira), surgiu numa poca de contestao e luta social, diferenciando-se do braminismo. Fundador do Budismo, o prncipe Sidharta Gautma, aps passar por uma experincia mstica, a iluminao foi chamado de Buda (o Iluminado). O busdismo constitui-se numa srie de regras e modos de vida cuja finalidade purificar o indivduo para alcanar o Nirvana, estado de transcendncia espiritual, com desapego das coisas terrestres; significa a vitria sobre a dor, a morte, a transmigrao carmnica e sobre a prpria individualidade. De origem intimamente ligada anterior, esta religio faz-se notar pelo respeito aos ancies, tidos como sbios, por teoricamente melhores condies de lanar o Nirvana. CONFUCIONISMO. Fundado pelo pensador Confcio, absorveu o pensamento chins antigo, baseado na crena do universo visto como um todo. As foras celestes, a terra e o homem formam um todo harmnico, determinado por duas foras csmicas correspondentes e opostas: Yin (princpio feminino, negativo) e Yang (princpio masculino, positivo). A idia de Deus aparece principalmente como um princpio csmico imaterial, Tien, como um deus antropomrfico denominado Shangti, pai do universo, ou como Tao (caminho), que assumiu sentido mstico no taosmo. Para permitir a perfeita correlao entre o homem e o universo, Confcio criou uma srie de prticas morais e regras de conduta social. Atravs de mximas e leis, propunha normas gerais para a manuteno de uma ordem social baseada nas leis csmicas. Na verdade, misto de filosofia e religio, o confucionismo fundamenta-se no culto dos antepassados e ao lar, da seu tradicionalismo, seu rgido conservantismo. Procurando, coerentemente por seu esprito, preservar os valores antigo, tornou o acesso ao servio pblico feito atravs de concurso, baseado essencialmente no conhecimento histrico. Historiadores e socilogos atribuem influncia de Confcio o imobilismo, que por tanto tempo, dominou a China. JUDASMO. Sua origem remonta, segundo a Bblia, a Abrao e seus descendentes. Jeov, considerando o Deus nico, criador do Cu e da Terra, forma uma aliana com o povo eleito, em virtude daFACETE Faculdade de Educao Teolgica

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qual a existncia humana compreendida em termos de um permanente relacionamento entre o grupo e Deus; h uma esperana de salvao da humanidade aps a vinda do Messias. O sentimento de unidade, fundamental sua existncia como povo, impediu os hebreus de aderirem ao politesmo ou de adotarem o dualismo moral e metafsico do princpio do bem contra o princpio do mal. Assim se origina a crena em um nico Deus supratemporal de poder, justia e misericrdia. uma doutrina revelada pelos profetas, sendo Moiss o maior deles. Para os judeus os Livros Sagrados so o: Pentateuco ou Tora, o principal, Os Profetas e os Escritos Sagrados (denominados pela Igreja Crist do Antigo testamento); alm destes, h o Talmude, contendo textos de leis e tradies orais e apresentando preceitos sobre todos os aspectos da vida individual, social e econmica. A atormentada histria poltica judaica forjou o carter dessa religio monotesta, mas, ao mesmo tempo, com resqucios henotestas. De fato, ainda que aceitamos um s Deus universal (monotesmo), mantm-se a idia de uma aliana entre esse Deus e o povo hebraico (henotesmo). Assim, por exemplo, o Declogo expressou preceitos ticos-morais de carter universal e, paralelamente, significou, em termos histricos, um elemento cimentador da unidade hebraica. CRISTIANISMO. A base da teologia crist a crena em um Deus nico, que subsiste em trs pessoas (Pai, Filho e Esprito Santo), na Encarnao do Filho, que em Cristo assumiu tambm a natureza humana; morreu ressuscitou, voltou para junto do Pai e retornar ao fim dos tempos. A salvao da humanidade foi alcanada pelo sacrifcio de Cristo que revivido pela celebrao da Igreja. Esta recebeu, na pessoa de Pedro e demais apstolos, a misso de, com Cristo por Cristo e em Cristo, o nico Mediador continuar sua obra, levando a mensagem da salvao a todos os homens. Ao Antigo Testamento acrescenta-se o Novo, que contm a vida e os ensinamentos de Jesus e seus discpulos. A salvao foi alcanada pelo sacrifcio de Cristo, que se renova, sendo o poder de intermediao transmitido a Pedro (discpulo de Jesus) e seus sucessores. O cristianismo, no incio do Sculo XI, deu origem a dois ramos: o Ocidental e o das Igrejas Orientais (ortodoxias). Com a Reforma, liderada por Lutero no sculo XVI, surge o Protestanismo, que engloba diversas correntes. Hoje, observa-se uma tendncia ecumnica, visando unir todas confisses crists do Ocidente e do Oriente. O cristianismo revogou os aspectos mais conservadores do pensamento judaico, valorizando dessa forma o homem e instaurando uma religio universalista. Socialmente representou nas origens, uma verdadeira revoluo ao promover a mulher, o pobre e o escravo, da inclusive sua rpida propagao entre as camadas sociais inferiores. Com o progresso de um clero profissional, o fim da unidade romana, a institucionalizao da igreja e a transformao desta em grande proprietria agraria, a sociedade crist perdeu seu carter progressista e estratificou-se por sculos. Assim, as vrias heresias medievais, que culminaram no sculo XVI com a Reforma Protestante, representaram uma reao dos elementos marginalizados quela organizao social rgida. ISLAMISMO. Juntamente com o judasmo e o cristianismo, o islamismo forma as trs grandes religies monotestas. Aceita, como ponto de partida, as duas primeiras, pois considera as revelaes anteriores, contidas no Tora e no Novo Testamento, como autnticas. A principal profisso de f do maometismo a existncia de um Deus supratemporal chamado Al, do qual Maom o profeta; aceita tambm os profeta; aceita tambm os profetas anteriores, entre os quais inclui Cristo. O livro sagrado denomina-se Coro e contm preceitos religiosos, concepo de vida e normas de comportamento. A essncia da f maometana baseia-se na unidade de Deus, na misso dos profetas e dos livros revelados, na existncia dos anjos, no juzo final e na ressurreio dos mortos. Meca a cidade sagrada, qual, se possvel, cada crente deve fazer peregrinao, ao menos uma vez na vida. O islamismo representou a integrao dos nmades na sociedade de ento. Mantendo-se, porm, presa a elementos do passado como caracterstico das sociedades primitivas, esta religio conservou aspectos formais da realidade social anterior. Ainda que tendo dado s mulheres e aos escravos condies jurdicas melhores, a sociedade continuou patriarcal, a poligamia (limitada at quatro mulheres) foi permitida, a escravido mantida. interessante notar que, justo com o hindusmo, talvez esta seja a religio que ainda hoje conserva mais intactos seus princpios de vida.

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CAPTULO II OS ARTFICES DA REFORMA PROTESTANTE E OS SEUS IDEAISAS CAUSAS DA REFORMA PROTESTANTE A Reforma protestante daqueles acontecimento que assinalam o fim de uma poca e o comeo de outra. Esta funo cabe a Reforma (embora no somente a ela) no que diz respeito ao desenvolvimento daquele novo modo de conceber a realidade e daquele singular tipo de cultura que chamamos moderno. Por isso, alguns historiadores, no sem razo, colocam o incio da poca moderna no na descoberta da Amrica (1492), mas na afixao das 95 teses nas portas da Igreja de Wittenberg (1517). A Reforma protestante foi um acontecimento essencialmente religioso, mas causou ao mesmo tempo profundas transformaes polticas, sociais, econmicas e culturais. Tambm no desenvolvimento da filosofia a sua influncia foi decisiva, especialmente na filosofia alem, mas tambm na francesa, inglesa, americana, italiana, em uma palavra, em toda a filosofia moderna. Isto justifica e exige um estudo bastante amplo e aprofundado sobre as causas, os autores e os ideais da Reforma protestante. As suas causas so de origem religiosa, poltica, social e ideolgica. No comeo do sculo XVI a necessidade de uma reforma completa dentro da Igreja Catlica tornara-se mais viva e era reclamada por muitos como remdio urgente para a cura das muitas e graves chagas que afligiam a Igreja, corpo mstico de Cristo. O sopro de renovao trazido pelas ordens religiosas dos franciscanos e dos dominicanos nos sculos precedente no tinha sido suficiente para reformar os organismos centrais da hierarquia da Igreja; cria romana, cardeais e bispos eram corruptos, e os prprios papas agiam muitas vezes apenas como soberanos terrenos envolvidos nas lutas polticas, esquecidos de sua misso fundamental, como sucessores de Pedro, de guias espirituais da cristandade. A ignorncia, o laxismo e a superstio alastravam-se entre o povo cristo e o baixo clero; a sutileza e a vacuidade caracterizavam o pensamento dos telogos, baixeza e grosseras, os sermes dos pregadores, enquanto os artistas e literatos se integravam a indiferena, imoralidade, descrena. Contra esse estgio de lamentvel decadncia em vo tinham feito ouvir suas vozes angustiadas de protesto Bernadino de Sena, Joo de Capistrano, Girolamo Savonarola e muitos outros. Acrescentemos ainda que no plano ideolgico (ou das idias) se dera a ruptura do princpio de autoridade. Todas as autoridades nas quais se apoiava a viso medieval do mundo e toda a respublica christiana (repblica crist) estavam em crise a autoridade de Aristteles em filosofia, a de santo Agostinho e de santo Toms em teologia, a de Ptolomeu em cincias, a do Papa e a do imperador em poltica. Para a criao de uma nova ordem espiritual e civil, as autoridades tradicionais no eram mais suficientes. Reforma era uma necessidades para todos as naes crists: para a Itlia como para a Frana, para a ustria como para Sua, para a Alemanha como para a Polnia, para os Pases Baixos como para a Inglaterra. E, no entanto, ela comeou na Alemanha e se estendeu somente aos povos de sangue teutnico, porque para eles a reforma se impunha com urgncia tanto por motivos religiosos e ideolgicos quanto sociais e poltico: havia um anseio geral por libertar-se do jugo do papado e do imprio, por subtrair-se ao predomnio dos povos latinos e por livrar-se dos gravames da cria romana. Graas convergncia dessas vrias instncias, a Reforma iniciou-se como movimento religioso, mas logo se transformou numa grande revoluo poltica, social, econmica e cultural. MARTINHO LUTERO A Reforma protestante tem muitos protagonistas, tanto no campo religioso como no poltico. Entre todos sobressai a figura de Lutero; ele foi o pai e o principal artfice da Reforma Martinho Lutero (1483-1546) nasceu em Eisleben, na Saxnia. Conseguida a lurea em filosofia, comeou a freqentar a faculdade de direito quando, abalado por terrvel acontecimento (a morte de um amigo, atingido por um raio quando atravessava juntos um bosque), mudou de idia e resolveu tornar-se monge. Em 1505 entrou para Ordem dos Agostinianos, na qual foi ordenado sacerdote dois anos depois de terminados os estudos teolgicos. Em 1510, fez parte de uma comisso que foi a Roma para resolver a disputa que dividia os agostinianos em rgida e lassa observncia. Em Roma pode observar a desordem e a corrupo que reinava na Cria, mas no se impressionou muito, uma vez que o estado da igreja e de Roma no era muito diferente doFACETE Faculdade de Educao Teolgica

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das outras igrejas. Naquela poca o que angustiava Lutero no eram os males da cristandade, mas os problemas pessoais da salvao de sua alma. Apesar de todas as oraes, mortificaes, penitncias jejuns e boas obras, a salvao parecia-lhe totalmente impossvel. Em 1513 teve uma experincia que o fez mudar completamente de idia e que o livrou de todos os seus escrpulos, trazendo-lhe muita paz e profunda alegria. Tinha ele o costume de retirar-se para estudar na torre do castelo do convento. Um dia, quando na torre, ao ler na epstola de So Paulo aos Romanos (1,17): A justificao procede da f... como esta escrito: o justo viver da f, sentiu-se subitamente iluminado sobre a natureza da salvao; ela no obra do homem mas exclusivamente graa de Deus. Somente Deus, pelo sacrifcio de seu Filho na cruz, torna justo o pecador. As oraes, os jejuns, as penitncias, como tambm os sacramentos, as peregrinaes e as indulgncias no tem nenhum valor porque a salvao nos vem da infinita misericrdia de Deus. Para Lutero esta interpretao da doutrina da salvao foi como um raio de luz divina que lhe fez ver tudo claro. Agora tudo se tornava simples e fcil. A sua conscincia at aquele momento, to angustiada, porque insatisfeita com tudo o que fazia para se reconciliar com Deus, encontrou finalmente a paz: e pareceu-lhe que o paraso estava com as portas escancaradas. Dai por diante Lutero procurou organizar em doutrina teolgica aquele sua excepcional experincia religiosa. O resultado foram dois imponentes comentrios s epstolas paulinas: aos Glatas e aos Romanos. A pregao das indulgncia, ordenada por Leo X para a construo da baslica de So Pedro, deu a Lutero a ocasio de tornar pblica suas convices pessoais. No dia 31 de outubro de 1517, vspera da festa de Todos os Santos (solenidade que atraa para a igreja de Wittenberg uma imensa multido, por causa das mais de nove mil relquias que nela estavam guardadas), Lutero afixou nas portas da igreja noventa e cinco teses. Essas teses que, o leitor moderno, pouco tem de extraordinrio, no podiam deixar de causar surpresa entre os contemporneos. Inusitadas eram especialmente as seguintes proposies nas quais se demolia toda a doutrina das indulgncias: - O Papa no quer e no pode perdoar nenhuma pena alm das que so impostas pela sua vontade ou pelos cnones (n 5). - Eram, portanto, aqueles pregadores que diziam que mediantes as indulgncias papais o homem se torna livre e salvo de toda pena (n 21). - to raro o verdadeiro penitente como aquele que adquire realmente as indulgncias, isto , rarssimo (n. 31). - Qualquer cristo verdadeiramente compungido obtm a remisso plenria da pena contrada por causa da culpa, mesmo sem cartas de indulgncias. Qualquer verdadeiro cristo, vivo ou falecido tem parte concedida, a ele por Deus, em todos os bens de Cristo e da Igreja, mesmo sem cartas de indulgncia (n. 36-37). - vo confiar na salvao por causa de cartas de indulgncias, mesmo que um legado ou at o Papa empenhem por ela a prpria alma (n. 52). - As indulgncias, so exaltadas pelos pregadores, tem apenas um mrito, o de conseguir dinheiro (n. 67). - insensatez julgar que as indulgncias papais sejam to poderosas que possam absolver o homem de qualquer pecado. Afirmamos, ao contrrio, que o perdo papal no pode cancelar nem mesmo o menor pecado venial quanto culpa (n 75-76). - Estas teses despertaram amplos consensos, especialmente aquela nas quais se punha em causa o Papa pelo modo com que administrava as indulgncias, particularmente as teses 50, 82, 86, 89, que tm o seguinte teor: - Deve-se ensinar aos cristos que, se o Papa tivesse conhecimento das exaes dos pregadores de indulgncias, preferiria no ver a baslica de So Pedro construda a v-la edificada sobre a pele, carne e os ossos de suas ovelhas (n. 50). - Por que o Papa, cuja riqueza maior do que a dos opulentssimos Crassos, no constri a baslica de So Pedro com os prprios recursos em vez de querer faz-lo com o dos pobres fiis? (n. 86). - Por que o Papa no esvazia o purgatrio por motivo de santssima caridade e de suma necessidade das almas, que so as razes mais justas de todas, quando livra um nmero infinito de almas, por fora do funestssimo dinheiro dado para a construo da baslica, o que uma razo fraqussima? (n. 82). - Dado que, com as indulgncias, o Papa deseja mais a salvao das almas do que o dinheiro, porque suspende as cartas e as indulgncias j conseguidas quando ainda so eficazes? (n. 89).FACETE Faculdade de Educao Teolgica

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Com a publicao das Noventa e Cinco Teses, Lutero tornou-se imediatamente um smbolo; passou a representar uma nova concepo do cristianismo e da Igreja e, ao mesmo tempo, tornou-se o defensor do povo alemo contra os gravamina (impostos) da cria romana. Da para frente os acontecimentos impuseram-se as intenes e aos seus sentimentos pessoais; Lutero no pode mais retrocer; a mquina da Reforma tinha sido posta em movimento e ningum mais era capaz de det-la. A publicao das Teses alcanou enorme repercusso e recebeu manifestaes pblicas de aprovao no s entre a natureza alem, e tambm entre o clero e os monges. No tardaram tambm as desaprovaes e as crticas. Vrios telogos da Alemanha e da cria romana tomaram posio contra Lutero que replicou imediatamente em termos muito duros e agressivos. Tambm a autoridade eclesistica empenhou-se em conseguir seu retorno ortodoxia, mas Lutero, rejeitando as concesses, manteve com firmeza a substncia de sua doutrina: a salvao vem somente da f (sem as obras). O movimento reformista lanado por Lutero no se deteve no Reno, mas se alastrou rapidamente pela Suia, pela Frana e pelos Pases Baixos. Na Sua teve valorosos defensores como Ulrich Zunglio e Joo Calvino. ULRICH ZUNGLIO Zunglio (1484-1531) nasceu em Wildhaus (canto de So Galo), de famlia abastada. Fez os primeiros estudos em Basilia e Berna, e os estudos superiores em Viena e depois em Basilia, onde, em 1506, obteve o Magister Sententiarum (o ttulo de Mestre nas Sentenas de Pedro Lombado). No mesmo ano foi ordenado sacerdote e destinado parquia de Glarona, na qual desempenhou com dedicao sua funes pastorais, sem descurar, por isso os estudos e os contatos com o mundo da cultura, tornando-se um convicto fautor do humanismo. Em 1516 foi transferido para a abadia de Einsiedeln como capelo. Naquele santurio, a exuberncia das prticas religiosas, que, nos fiis, raivava pela superstio e, no clero, pelas prticas simonacas, chocou profundamente o esprito do jovem sacerdote, preparando-o para as idias da reforma que no tardariam em vir da Alemanha. Datam deste perodo seus primeiros contatos com Erasmo, do qual se tornou admirador e em larga escala tambm seguidor. Em 1519 foi transferido, como cura da catedral, para Zurique onde em suas pregaes, comeou a criticar com insistncia as indulgncias e a comentar a Sagrada Escritura segundo o evangelho puro, inspirando-se nos escritos de Lutero, que ele considerava substancialmente na linha do reformismo erasmiano ou pelo menos no em anttese com ele. Mais tarde atacou tambm o celibato eclesistico e o jejum e comeou a conviver com uma viva, a qual desposou publicamente em 1524. A partir de 1522 comeou a criticar cada vez mais radicalmente a devoo a nossa Senhora e aos santos, a autoridade dogmtica e disciplinar dos conflitos e dos papas, o culto das imagens, a missa como sacrifcio. Em vista disso, o bispo de Constana proibiu-o de pregar, acusando-o de heresia. Quanto viso teolgica, a de Zunglio tem muitos elementos em comum com a de Lutero nas negaes mas muito diferente dela nas afirmaes. De fato o motivo que levou Zunglio Reforma exatamente o contrrio do de Lutero. Este ltimo era movido por razes fidistas: a incapacidade do homem e a onipotncia de Deus, em virtude das quais o homem e Deus esto separados por um abismo to grande que nenhuma srie de intermedirios jamais poder transpor. Zunglio, ao contrrio, apoiava-se em motivos racionalistas e humansticos: a bondade essencial do homem, que faz com ele no precise de nenhuma srie de impulsos para subir at Deus, porque est em condio de faz-lo sozinho. A tendncia racionalista da reforma zuingliana pode ser notada imediatamente nas seguintes doutrinas; reduo do pecado original a um simples vcio hereditrio no merecedor de condenao eterna e sem diminuio das foras ticas do homem; valor positivo da Lei e no meramente negativo; felicidade eterna acessvel tambm aos sbios pagos que tivessem praticado a lei moral natural. Lutero e Zunglio esto muito longe um do outro tanto pelos motivos teolgicos que os inspiraram quanto pelos objetivos que se propuseram com a Reforma: enquanto Lutero quer responder questo como serei salvo , Zunglio se prope outra: como ser salvo o meu povo?. A grande preocupao de Lutero, tanto em Erfurt como em Wittenberg, era a salvao de sua alma. No era exatamente uma angstia egosta porque se pode dizer que ele tomou sobre si a angstia de toda a sua poca. Mas o que constitua o tormento de Zunglio era a salvao do seu povo.FACETE Faculdade de Educao Teolgica

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O prematuro desaparecimento de Zunglio e a dura derrota sofrida por seus seguidores no permitiram que a sua viso teolgica se concretizasse em uma igreja, como sucedera com a de Lutero. Tanto mais que apenas um lustro depois de sua morte apareceu na Sua, sua Ptria, a figura de outro grande reformador, Calvino, o qual atraiu logo para sua rbita os discpulos de Zunglio. JOO CALVINO No dia 5 de agosto achava-se de passagem em Genebra, onde tinha a inteno de permanecer apenas um dia. Mas o pregador zuingliano Farel soube de sua presena e o esconjurou a pregar o Evangelho s populaes ignorantes da Sua. Calvino procurou eximir-se dizendo-se muito jovem, ao que Farel replicou: A maldio de Deus te aniquilar se te recusares a prestar-lhe a tua ajuda e procurares mais a ti mesmo do que a sua glria. A resistncia encontrada f-lo partir para o exlio, mas pouco tempo depois voltou como dominador. Estabeleceu ento uma disciplina frrea e transformou a cidade em centro da elaborao doutrinal e de tcnica propagandstica, que irradiava para os pases empenhados nas lutas religiosas, da Frana Holanda, da Esccia Hungria e prpria Itlia, pastores e pregadores, todos formados do mesmo modo. Moveu luta contra toda espcie de abusos (inclusive ao jogo de cartas e dados e representao de peas teatrais etc.) e prendeu e condenou morte no s os papistas como tambm os livre-pensadores. A luta durou mais de um decnio. S nos ltimos anos quando a igreja de Genebra e a prpria cidade funcionava perfeitamente de acordo com o seu programa, atenuou ele um pouco seu rigor e aboliu algumas restries. Como os outros reformadores, Calvino condenou o celibato eclesistico e por isso, 1540, contraiu matrimnio com Idelette von Bueren. Alm de ocupar-se com a organizao e a formao da nova comunidade (para a qual escreve, em 1542, o Genfer Cathechismus) e com a sua direo (para a qual redigiu , em 1541, as clebres Ordonnances eclsiastiquesI), dedicava-se ainda ao estudo da Sagrada Escritura e reelaborao das Instituiones (da qual a Quarta e ltima edio apareceu em 1560). O ncleo da teologia de Calvino a doutrina da predestinao ao paraso ou ao inferno independentemente das boas obras ou de qualquer mrito que o homem possa adquirir nesta vida. Nas Institutiones faz um estudo vasto e minucioso sobre a predestinao, mas apresenta-a desde o comeo como totalmente bvia: evidente que por vontade de Deus que sucede que a salvao concedida a alguns e negada a outros (Inst., III, 21, 1). Par salvar os predestinados ao paraso Deus enviou seu Filho ao mundo. No difcil perceber que esta doutrina sobre a predestinao no mais do que uma radicalizao e uma conseqncia lgica da concepo luterana da salvao como da obra conclusiva, direta e imediata de Deus. Calvino dissipou, porm, aquela aura de mistrio que Lutero ainda soubera conservar. Mas radical do que Lutero, na doutrina da justificao, Calvino o tambm em outras coisas. Elimina toda a hierarquia eclesistica, inclusive os sacerdotes democratizando completamente sua estrutura. a aplicao rigorosa do princpio do sacerdcio universal. Apesar disso, aceita vrias funes a fim de assegurar a boa organizao da igreja: as funes de pastor, mestre, dicono e ancio. O governo da congregao compete aos ancios, e o de toda a igreja, a um Concistorium (Consultrio), formados por representante de pastores e dos ancios. Calvino reduz os sacramentos a dois, como fizera Lutero: batismo e ceia. Mas a diferena deste ltimo, no aceita a presena real de Cristo na Eucaristia embora reconhea que na consumao do po e do vinho, graas a f de Cristo, estabelee-se entre ele e Cristo uma unio profunda. Com referncia a Lutero, Calvino acentua o carter demonstrativo da justificao, que se completa com as boas obras: este o sinal certo da predestinao. Desta teoria procede aquele tom de marcado puritanismo e moralismo que caracterizava em toda parte a comunidade calvinista. Ela no podia admitir em seu seio nem pecadores, nem hereges, nem livres-pensadores; os seus membros deviam dar-se inteiramente ao trabalho, ao estudo, ao comrcio e mais escrupulosa observncia das leis morais e civis. Esta interpretao tica do princpio da predestinao teve papel importante na origem e no desenvolvimento do capitalismo. SNTESE CRTICA DA REFORMA PROTESTANTE

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Como dissemos no incio do captulo, a reforma protestante foi antes e acima de tudo um acontecimento religioso. Em conseqncia disso, ela deve ser estudada e julgada segundo critrios religiosos, mas precisamente segundos os critrios da f crist, cujo esprito original a Reforma se propunha estabelecer. Positiva em suas intenes, a Reforma infelizmente acarretou para o cristianismo conseqncias bastante graves, que nem os estudiosos de f evanglica podem negar. A mais dolorosa de todas foi a ruptura da unidade estrutural da Igreja e da unidade espiritual da Europa. Em sua biografia de Carlos V, o historiador ingls E. Lewis observa que antes 1517 a Europa era una: tinha a mesma f universal, a mesma filosofia, a mesma civilizao, os mesmos princpios morais e sociais, os mesmos instrumentos de pensamento e de expresso. Depois de 1517 todo este precioso tesouro espiritual se perdeu, com conseqncia gravssimas para a Europa e para o mundo inteiro, contando-se entre as mais desastrosas as seguintes: dois sculos de guerras religiosas na Alemanha, na Frana, na Inglaterra, na Blgica e na Holanda, com morticnios e runas indescritveis; descristianizao da sociedade, primeiro na Europa e depois em todo mundo, uma vez que a diviso religiosa levou a tolerncia, a tolerncia ao relativismo e o relativismo ao indiferentismo e ao atesmo, o malogro da converso f crist ( por causa do desinteresse das naes protestantes por esse objetivo) da ndia, da China, do Japo e da frica. Na esfera doutrinal, ao lado de reivindicaes legtimas e oportunas como maior pureza da f, empenho pessoal mais profundo, maior liberdade de conscincia, Lutero e os outros reformadores sustentaram teses bastante discutveis, as quais em todo caso conduziram a uma reviso substancial da natureza e da funo da igreja, isolando-a completamente do mundo e reduzindo-a a uma associao exclusivamente espiritual. Com referncia filosofia, quase todos os reformadores demonstraram para com ela forte hostilidade, embora depois, na prtica, no tenham podido evitar de servi-se dela na elaborao de suas doutrinas teolgica (na explicao dos mistrios da Trindade e da Encarnao dos sacramentos etc.). A sua profunda desconfiana da capacidade da razo para alcanar a verdade nas questo mais importantes exerceu papel decisivo na evoluo da filosofia moderna: contribuiu para faz-la redimensionar as pretenses metafsicas da razo, levando-a a desembocar na posio kantiana de reduo de rea da razo ao campo dos fenmenos. Em resumo, aqueles que vo ser os pontos mais notveis da filosofia moderna; a autonomia da razo, o espirito crtico e a condenao da metafsica j so vigorosa e explicitamente afirmados pelos reformadores. Pode-se dizer, finalmente, que a concepo religiosa trazida pela Reforma protestante exerceu influncia decisiva na evoluo do pensamento moderno, principalmente nos pases protestante. Alguns aspectos do oramento de Kant, Hume, Fichte, Hegel, Feuerbach, Nietzsche podem ser compreendidos somente se situados na atmosfera espiritual criada pelo protestantismo. Mas, com o passar do tempo, alguns princpios da Reforma (em particular o da liberdade de conscincia e o da separao entre a esfera espiritual e a temporal) tornaram-se patrimnio comum de toda a cultura moderna.

CAPTULO III OS FILSOFOS DA REFORMA CATLICA OU DA CONTRA-REFORMAOS MOTIVOS INSPIRADORES DA REFORMA CATLICA Examinamos, a situao qual a Igreja tinha sido reduzida e as graves feridas que a afligiam. No comeo do sculo XVI, com Alexandre VI, este fenmeno desolador chegara ao extremo da baixeza. No sculo XV, alguns homens da Igreja, cheios de zelo, como Bernardino de Sena e Girolamo Savonarola, pediram, em vo uma solcita e profunda renovao da Igreja e de suas estruturas e uma converso interior de todos os seus membros. No incio do sculo XVI, alguns espritos mais clarividentes e fervorosos procuravam trazer remdio aos males da Igreja fundando novas ordens religiosas: Matteo de Bascio fundou a Ordem de Capuchinhos, Incio de Loiola a dos Jesutas, Caetano de Tiene a dos Teatinos, Antnio M. Zacaria a dos Barnabitas, jernimo Emiliano a dos Somascos etc. Mas quando as suas iniciativas tinham apenas comeado a dar os primeiros frutos rebentou a reao violenta contra a Igreja de Roma promovida por Lutero e Calvino. Eles se recusavam a reconhecer no Papa, na cria e em todas as outras estruturas tradicionais (sacramentos, culto dos santos, peregrinaes, indulgncias etc.) intermedirios vlidos entre qualquer doutrina a autoridade eclesistica e reconheciam a todo cristo o direito de regular diretamente e por si mesmo suas relaes com Deus. A muitos homens da Igreja este remdio parecia, contudo, pior do que o mal que se queira curar. Nos pases latinos nos quais no havia, como nos de lngua alem, motivo para uma oposio poltica Igreja deFACETE Faculdade de Educao Teolgica

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Roma, procurou-se tambm reform-la, mas partindo de seu interior. Convocou-se para isso um conclio ecumnico, que se reuniu em Trento e que, em seus vinte anos de intensos e inflamados debates, fixou com firmeza e preciso os pontos fundamentais da f catlica, em particular os mais contestados pelos protestantes: a necessidade dos sacramentos, da hierarquia e do magistrio eclesistico, o valor sacrificial da missa, a importncia das boas obras etc., reafirmou-se a disciplina como clara expresso da vontade de Deus (consolidando-se desse modo, alm das bases da Igreja, tambm as do Estado e fornecendose uma motivao teolgica no absolutismo estatal); cuidou-se de melhorar a formao do clero com a criao dos seminrios; institui-se vigilncia sobre as publicaes de livros de carter religioso moral, mediante a introduo do Index dos livros proibidos. A Contra-Reforma, como chamada a reforma catlica, comeada no conclio de Trento, no teve somente carter conservador, como pode parecer, primeira vista, isto no se contentou com defender a tradio romana, mas promoveu tambm alguns valores humanos fundamentais que tinham sido renegados pelos Reformadores. Estes, para celebrarem o poder de Deus, tinham praticamente destrudo o homem, negando razo a capacidade de atingir o transcendente, e privando-o da liberdade. Uma das obras mais importantes de Lutero traz o ttulo muito significativo de De servo arbitrio ( Do servo arbtrio), e uma das teses mais famosas de Calvino a da predestinao de alguns salvao eterna e de outros condenao eterna. Diante de tais aberraes, a Igreja de Roma tomou a defesa da dignidade humana e reconheceu ao homem a capacidade tanto de reconhecer a verdade como de praticar o bem. A estes princpios bsicos do catolicismo procuraram dar configurao filosfica, desenvolvendo-os especialmente em sentido tico e poltico, alguns pensadores catlicos dos sculos XVI e XVII, particularmente Toms de Vio, chamado Caetano, Francisco de Vitria, Francisco Suarez e Tomamaso Campanella. CAETANO (TOMS DE VIO) Toms de Vio, chamado Caetano (1468-1533), nasceu em Gaeta (Caieta); aos 16 anos entrou para a ordem dos dominicanos e comeou estudar em Npoles, continuando-os em Bolonha e Pdua. Nesta cidade conseguiu o bacharelado e, em 1491, a ctedra de metafsica tomista. Aos quarenta anos foi nomeado Geral de sua ordem. Teve papel importante nos primeiros tempos da Reforma quando foi enviado a Alemanha pelo papa leo X, na qualidade de legado papal, para discutir com Lutero o problemas das indulgncias e as outras questes levantadas pelo monge alemo. Mas o encontro no produziu resultado positivo. Apesar das muitas e pesadas obrigaes que lhe impunha o cargo de Geral, encontrou tempo para escrever 157 obras de filosofia, teologia e exegese. FRANCISCO DE VITRIA Sua contribuio mais importante e duradoura situa-se no campo do direito, particularmente do direito internacional, do qual ele considerado o fundador. A respeito da origem e da natureza do Estado, Vitria segue muito de perto Aristteles e santo Toms. Atribui ao Estado origem natural porque o homem tal que no pode conseguir sua plena perfeio a no ser em unio e colaborao com seus semelhantes. Quanto `a sua natureza, o Estado sociedade perfeita (perfecta communitas), isto , plenamente auto-suficiente, tem fim prprio (o bem de todos os cidados) e meios adequados para consegui-lo (leis, estruturas polticas, jurdicas, penais etc.). Alm do bem comum, o Estado deve promover tambm a virtude dos cidados e defender e tutelar os direitos de cada um. Com isso Vitria opunha-se a uma concepo que ento se estava formando: a do absolutismo do Estado.

FRANCISCO SUAREZ Suarez o pensador mais profundo e original da Contra-Reforma . Tentando conciliar o tomismo com as doutrinas dominantes depois de Occam e com as novas teorias que o desenvolvimento da cincia moderna vinha envolvendo, inaugura ele um novo tipo de filosofia escolstica, cujo objetivo principal consiste em realizar uma sntese entre as posies de santo Toms e o pensamento moderno.FACETE Faculdade de Educao Teolgica

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Como Vitria, tambm Suarez desenvolve amplamente a filosofia derivada de santo Toms e enriquecida durante a Renascena. As questes do direito natural, do direito civil e do direito das gentes so tratadas por ele com extenso e profundidade e com um sentido realista das necessidade do seu tempo e de todos os tempos. A organizaes das Naes Unidas (ONU) deveria incluir Suarez e Vitria entre seus Longnquos antepassados . TOMMASO CAMPANELLA No De gentilismo non retinendo, Campanella sustenta que os cristos souberam criar uma arte crist, uma poltica crist e uma literatura crist, mas no souberam elaborar uma filosofia crist. Antes tinham tomado de emprstimo a filosofia de Plato, mas tarde tomaram a de Aristteles, ambas pags, principalmente a Segunda. O aristotelismo pago porque coloca a filosofia em posio f, enquanto, segundo Campanella, entre a f e a filosofia existe profunda harmonia porque a verdade de f e a verdade filosfica so irradiaes da mesma e nica Verdade. Esta ntima harmonia foi perturbada com a introduo de pensamento aristotlico na filosofia crist e absolutamente necessrio por isso expurgar o aristotelismo do cristianismo e dar a este uma filosofia prpria , crist. Segundo Campanella, a tentativa feita por Toms de Aquino neste sentido no foi bem-sucedida, nem poderia s-lo, porque entre paganismo cristianismo existe heterogeneidade radical. A aceitao de Aristteles, no tempo de Toms de Aquino, justificava-se por circunstancias inelutveis (necessidade de dar uma sistematizao s reveladas, ignorncia de Plato, irrupo do aristotelismo atravs dos rabes etc.); mas, em sua poca, pensa Campanella, isto no admissvel porque o aristotelismo nega verdades fundamentais do cristianismo e est em conflito com as novas descobertas da cincia. necessrio, por isso, elaborar uma filosofia nova, uma filosofia crist: o que Campanella se prope a fazer em sua obras. Um dos elementos mais interessantes desta filosofia a doutrina do conhecimento de si, do mundo e de Deus. O conhecimento de si precede e condiciona qualquer outro conhecimento, porque antes de conhecer as outras coisa, o homem conhece a si mesmo. A alma e todos os outros seres conhecem originariamente a si mesmos, ao passo que todas as outras coisas eles se conhecem secundria e acidentalmente. O conhecimento imediato que o homem tem de si inato (sensus innatus ou inditus). Sob o influxo das modificaes sensoriais o homem adquire tambm o conhecimento das coisas. Com isso ele se torna alheio a si, dispersa-se no conhecimento objetivo, no qual ele se considera um objeto como os outros, perdendo a conscincia da prpria superioridade. O conhecimento que ele tem de si se obscurece e o seu sensus inditus (sentido inato)torna-se sensus abditus (sentido oculto). A sabedoria filosfica consiste em reaver o conhecimento de si. Como conseguir isso? Pondo em dvida os conhecimentos objetivos. Na dvida o homem encontra a sua certeza: si fallor, sum (se me engano, existo); chega-se desse modo autoconscincia, ao conhecimento certo do prprio ser. Na autoconscincia o homem aprende o prprio ser em suas qualidades fundamentais de poder (corresponde ao ato vital de existir), de sabedoria (corresponde ao vital de conhecer) e de amor (corresponde ao ato vital, da vontade). O conhecimento do mundo, das coisas, no imediato, mas mediato. Os homens conhecem todas as outras coisas ao conhecerem a si mesmos mudados e tornados semelhantes as coisas pelas quais foram mudados. Por isso, o esprito, ao sentir, no sente calor, mais a si mesmo em primeiro lugar; sente o calor atravs da mudana e enquanto mudado pelo calor. A percepo das coisas distintas de ns nos dada por um raciocnio instantneo. Das coisas do mundo podemos conhecer somente a existncia, e no a essncia. De fato, o nosso conhecimento sempre abstrato, no possvel um conhecimento verdadeiro da essncia das coisas mediantes conceitos abstratos. Do conhecimento de si mesmo e do mundo chega-se ao conhecimento de Deus per viam causalitatis (pela via da causalidade). Conhecemos que ns e as coisas somos imperfeitos e limitados; a finitude e a imperfeio do homem e das coisas postula a existncia do Infinito como causa deles.

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Per viam causalitatis conseguimos alcanar no s conhecimento de Deus, mas tambm de sua natureza. Deus como causa pr-contm as perfeies dos seus efeitos. E, observando que nas coisas existe poder, sabedoria e amor, concluirmo que Deus sumo poder, suma sabedoria e sumo amor. O conhecimento filosfico de Deus prepara o conhecimento revelado, o qual nos faz saber que o poder o Pai, a sabedoria, o Filho e o amor, o Esprito Santo. Deus um ser puro, sem limites, infinito, sem princpio e sem fim; as coisas so compostas de ser e no-ser e, por isso, so limitadas e imperfeitas. Tanto o ser como o no-ser so constitudos por trs propriedades transcendentais, definida por Campanella como primariedades As primariedades do ser so : poder, sabedoria, amor. As primariedades do no-ser so: impotncia, insipincia dio. Enquanto tm ser, todas as coisas tem poder, conhecimento e amor; enquanto tm no-ser, as coisas no podem tudo o que possvel, no conhece tudo o que cognoscvel e so dotadas no s de amor, mas tambm de dio. A relao do homem com Deus chama-se religio. Campanella distingue trs formas de religio: religio indita (religio inata), amor natural que impele a alma para Deus; religio addita ( religio acrescentada), as vrias religies inventadas pelos povos para honrarem a Deus; religio addita a Deo (religio acrescentada por Deus), a religio crist, revelada por Cristo. A existncia natural pode encontrar plena satisfao somente no cristianismo, religio sobrenatural: somente nele a religio indita se reencontra e se aperfeioa. Com a doutrina que acabamos de expor, Campanella realiza o esforo supremo para compreender a relao entre natureza e sobre-natureza, entre filosofia e religio, segundo a nova sensibilidade naturalista: a sua soluo delineia-se em sentido oposto s de Pomponazzi, Telsio e Bruno aproximando-se das de Agostinho de Hipona, Ficino e Pico della Mirandola. Mas, enquanto a viso de Agostinho fortemente embebida de pessimismo, a de Campanella (como as de Ficino e de Pico della Mirandola) , segundo as exigncias naturalistas e humansticas da Renascena, toda permeada de otimismo. Com efeito, no sculo XIX o Estado da Contra-Reforma desagregou-se por fim. Contriburam igualmente para esse processo as idias do iluminismo, a necessidade de progresso, o doloroso contraste com as sociedades protestantes. Mas ao longo prazo talvez outra fora tivesse sido igualmente poderosa. No sculo XVII, a Igreja Catlica Romana tinha sofrido uma retraco espiritual e intelectual geral. Depois do esforo da Contra-Reforma, sobreviera um longo perodo de fanatismo mesquinho. O humanismo dos primeiros jesutas fora de curta durao: em 1620, tinham-se tornado meros sofista do Estado da Contra-Reforma. Mesmo no sculo XVIII, a unio entre a Igreja e o Estado manteve-se: os prncipes febronianos tentaram reformar uma e outra, e no separ-los. Mas no sculo XIX procurou-se finalmente separar a Igreja Catlica do Estado catlico dos prncipes. Como era de esperar, essa tentativa foi feita em Frana, a ltima monarquia catlica a aceitar e a primeira a repudiar essa unio fatal. E como era tambm de esperar, foi em Roma, o Estado-Igreja por excelncia, empurrados para novas posies de rigidez pela derradeira luta pelo Poder Temporal, que a resistncia a essa tentativa foi mais forte. Mas, por fim, o objetivo foi alcanado. O facto de os pases da Contra-Refoma terem podido enfim igualar-se, do ponto de vista econmico, aos pases da Reforma sem uma nova revolta contra Roma, deveu-se em parte, nova elasticidade adquirida pelo catolicismo no sculo XIX: sua dolorosa separao do ancien rgime. O Mercado Comum Europeu dos nossos dias, essa criao dos democratas-cristos da Itlia da Alemanha e da Frana, deve alguma coisa a Hugues de Lamennais.

REFORMA E RENASCIMENTO A reforma, sob seus diferentes aspectos nacionais, atingiu quase todos os pases da Europa. Ora, a Itlia permanece fora deste movimento, embora tivesse conhecido o movimento comunal mais florescente. Gramsci v a razo essencial desta esterilidade no fenmeno histrico ambguo que o Renascimento. O Renascimento um fenmeno especificamente italiano. Com efeito, ele comea, acredita Gramsci, com o movimento comunal que seu aspecto espontneo. Com o desenvolvimento do humanismo, ele se reduz ao nvel cultural, sob o controle da sociedade civil eclesistica.FACETE Faculdade de Educao Teolgica

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Socialmente, o aspecto essencial do renascimento consiste no aparecimento de uma nova camada de intelectuais italianos, correspondendo ascenso da burguesia expressa pelo movimento comunal, e que apresenta um carter europeu. Visto que a estrutura econmica e social no evolui, a superestrutura poltica e ideolgica que lhe corresponde no pode progredir. Alis, tal evoluo tem repercusses no nvel ideolgico: a cultura humanista profundamente antieconmica e defende as concepes da Igreja e portanto da aristocracia fundiria. A Segunda razo do fracasso da burguesia reside no poder da Igreja na Itlia, que utiliza sistematicamente os intelectuais italianos para o recrutamento do pessoal eclesistico: no momento em que a burguesia europia cria seus prprios intelectuais nacionais, a Igreja seca as fontes de tal evoluo monopolizando os intelectuais italianos por sua prpria conta, dando sua organizao este carter cosmopoltico-italiano que Gramsci denuncia e que, do Renascimento ao Risorgimento, impedir a formao de uma slida inteligncia nacional e leiga. Esta italianizao da Igreja era inevitvel dado que o recrutamento internacional do clero estava esgotado e que os Estados nacionais subordinavam a si o clero fenmeno galicano. O carter essencial do Renascimento consiste, pois na ruptura entre os intelectuais e o povo, sob a ao conjugada da regresso econmica e da Igreja. O Humanismo a difuso cultural, mas somente cultural, do movimento comunal, em beneficio apenas de uma aristocracia parasitria controlada pela Igreja. Mas na medida em que o Humanismo prolonga ideologicamente o movimento comunal, ele no inteiramente negativo, e se assemelha, segundo Gramsci, a uma restaurao. A conseqncia de tal fenmeno chegar a uma contradio entre a sociedade poltica e a sociedade civil: profisso de f humanista corresponde uma atitude poltica conforme aos interesses da Igreja. Tal equilbrio vai rapidamente ceder o lugar a um retorno ao statu quo, prolongando-se o Humanismo sem abalo na Contra-Reforma: Quando na Itlia o movimento reacionrio, do qual o Humanismo havia sido uma premissa necessria, se desenvolveu na Contra-Reforma, a nova ideologia foi sufocada e os humanistas (salvo poucas excesses) abjuraram diante das fogueiras. Portanto, o Renascimento, como sublinha Gramsci, um fenmeno reacionrio na medida em que os intelectuais, separados do povo, tiveram que ceder progressivamente diante da Igreja. REFORMA E CONTRA-REFORMA Enquanto na Itlia a burguesia no soube forjar os instrumentos polticos e ideolgicos que teriam permitido sua hegemonia, o protestantismo vai ser na Europa um de seus instrumentos. Nos Quaderni, Gramsci no analisa longamente este processo. Ele retm dois aspectos: o primeiro est ligado dialtica intelectuais massas a partir da Reforma luterana. O Renascimento apareceu como um movimento cultural superior, mas aristocrtico, sem o menor prolongamento popular; a Reforma consiste pelo contrrio, para alm do xito poltico diferente em cada pas, num movimento cultural de massa, um movimento popular nacional . O Renascimento era obra de intelectuais cosmopolitas, no nacionais; a Reforma a realizao do povo: O portador da Reforma, por isto foi precisamente o povo alemo em seu conjunto, como povo indistinto, no os intelectuais. A Reforma deve ser considerada como um fenmeno burgus, ou como um fenmeno popular? conhecida a anlise de Engels que distinguia neste movimento dois aspectos burgus e popular com freqncia antagnicos.

A CONTRA-REFORMAFace ao movimento protestante, a Igreja reage pela Contra-Reforma. Gramsci sublinha que a ContraReforma um fenmeno transitrio: nos pases da Europa meridional onde ela no foi definitivamente suplantada, a Igreja tenta manter sua supremacia ideolgica e mesmo poltica. Mas a situao radicalmente diferente da Idade Mdia. Enquanto na Idade Mdia a Igreja mantinha a unidade do bloco ideolgico catlico-feudal utilizando os rgos da sociedade civil (ordens religiosas, movimentos de massa), agora se v obrigada a recorrer ajuda da sociedade poltica, coao. J as heresias da Baixa Idade Mdia tiveram a ser combatidas pelo usoFACETE Faculdade de Educao Teolgica

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conjunto do aparelho ideolgico e da fora armada, mas o papel das ordens religiosas permanecia essencialmente ideolgico. Com a Reforma, consumou-se a ruptura entre intelectuais religiosos e massas, manuteno da ordem religiosa existente s pode ser obtida pelo apelo ao aparelho repressivo do Estado. Tambm o aparelho ideolgico da Igreja tornou-se essencialmente repressivo, e, do prprio seio da sociedade civil eclesistica surgem novas formas de coero. principalmente o caso da mutao das ordens religiosas, cujo exemplo tpico a Companhia de Jesus. A Contra-Reforma esterilizou este pulular de fora populares: a Companhia de Jesus a ltima grande ordem religiosa, de origem reacionria e autoritria, com carter repressivo e diplomtico, que assinalou com o seu nascimento o endurecimento do organismo catlico. As novas ordens, surgidas posteriormente, tem um pequenssimo significado religioso e um grande significado disciplinar sobre a massa dos fiis: so ramificaes e tentculos da Companhia de Jesus (ou se tornaram isso), instrumentos de resistncia para conservar as posies polticas adquiridas, e de modo nenhuma foras renovadoras de desenvolvimento. Gramsci v a prova de tal evoluo no jansenismo, nico movimento religioso surgido na poca da Contra-Reforma: o jansenismo no um movimento de massa o que prova a ruptura do vnculo ideolgico entre intelectuais religiosos e massas e no suscitou nenhuma ordem religiosa correspondente. A conseqncia essencial da Contra-Reforma de modificar radicalmente a situao poltica da Igreja, nos Estados Catlicos. Face crise do bloco feudal, a sociedade civil fendeu-se e a velha classe dominante se apoia essencialmente na sociedade poltica. A prpria Igreja se torna uma organizao essencialmente disciplinar mudando a funo de suas organizaes de massas, mas, sobretudo, perde toda a autonomia frente ao Estado: o aparelho repressivo do Estado supre a Igreja na manuteno da ordem existente, e esta deve pedir ajuda ao Estado para estabelecer sua direo ideolgica. A autonomia relativa da Igreja medieval sucede um vnculo estreito e direto entre o Estado absoluto e a Igreja, que se torna um verdadeiro aparelho ideolgico do Estado ; este domnio do Estado sobre a Igreja perfeitamente ilustrado pelo fenmeno galicano onde a Contra-Reforma antes de tudo uma represso poltica contra o protestantismo quando a represso cultural (Index) ainda no est desenvolvida. A conseqncia da Contra-Reforma , alm do esmagamento religioso do protestantismo primitivo, a subordinao da Igreja ao Estado absoluto. O fenmeno mais complexo na Itlia dada a hegemonia poltica do papado na pennsula, a luta situase unicamente no seio da sociedade civil. Visto que os intelectuais leigos no souberam nem quiseram representar o povo, o papel da Igreja se acha facilitado: o Renascimento, movimento cultural puramente aristocrtico, chega insensivelmente reao eclesistica; privados de todo apoio popular, os intelectuais caem sobre as massas mas atingem os intelectuais leigos pela instaurao de um conformismo cultural (Index) e cientfico (Galileo). A Contra-Reforma apresenta-se, portanto, como um esforo desesperado da Igreja para manter sua hegemonia; mas optando pela coao, a Igreja perde definitivamente seu carter democrtico: O verdadeiro ponto de ruptura entre democracia e Igreja deve ser localizado na Contra-Reforma, quando a Igreja necessitou do brao secular (em grande estilo) contra os luteranos, e abdicou de sua funo democrtica. A CRISE RELIGIOSA A crise fundamental que afeta a religio catlica atinge todos os grupos sociais que formam a massa dos fiis. No nvel das classes cultas, o maior perigo constitudo pelas ideologias manicas. a franco-maonaria: As ideologia manicas constituem a principal ameaa para a Igreja entre as classes dirigentes. Esta ameaa aumentou consideravelmente a partir do incio do sculo: paradoxalmente, atenuando seu carter anticlerical que as organizaes manicas ameaam mais a Igreja. Gramsci, sublinha, com efeito, que a franco-maonaria tradicional, tal como est difundida nos pases latinos, se caracteriza pela influncia dominante da mentalidade pequeno-burguesa: A maonaria tem como caracterstica fundamental a democracia pequeno-burguesa, o laicismo, o anticlericalismo etc...FACETE Faculdade de Educao Teolgica

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Esta ideologia corresponde poltica da aliana da burguesia com a pequena-burguesia na luta contra o feudalismo e seus resduos; ela consolida esta aliana fazendo da Igreja, intelectual da aristocracia fundiria, o principal inimigo ideolgico. O perodo de desenvolvimento deste primeiro tipo de franco-maonaria estendendo-se at a organizao ideolgica autnoma das classes subalternas, como o mostra o exemplo italiano: Durante certo perodo, todas as foras da democracia se aliaram e a Maonaria se tornou o piv desta aliana: um perodo bem determinado da histria da Maonaria, tornada uma das foras mais eficientes do Estado na sociedade civil, para conter as pretenes e os perigos do clericalismo, e este perodo acaba com desenvolvimento das foras operrias. Separando-se das classes subalternas, a franco-maonaria constitui apenas um perigo secundrio para a Igreja; esta, pelo contrrio, a privilegia exagerando sua importncia real. A franco-maonaria tradicional no desempenha mais do que um papel secundrio depois da guerra: ainda predominante nos pases latinos, ela bate em retirada nos pases anglo-saxes. No seio da maonaria propriamente dita , a guerra leva uma ciso que beneficia as correntes anglo-saxnicas que defendem uma ideologia agnstica em matria poltica e religiosa. Mas o fenmeno mais importante do aps-guerra o desenvolvimento rpido de novas organizaes, cujo modelo o Rotary Club. Este difere radicalmente da maonaria tradicional. O Rotary Club no pode ser confundido com a maonaria tradicional, principalmente com a dos pases latino. Representa uma superao orgnica da maonaria e interesses mais concretos e definidos. Enquanto a franco-maonaria representava a pequena e grande burguesia, o Rotary Club e seus mulos a organizao exclusiva das classes dirigentes, correspondendo a uma nova fase do desenvolvimento capitalista. Gramsci nota, com efeito, que depois da guerra da sociedade americana sofreu uma profunda transformao em sua organizao econmica e ideolgica, caracterizada pelo recurso ao dirigismo: No geral, pode-se dizer que o americanismo e o fordismo derivam da necessidade imanente de organizar uma economia programtica e que os diversos problemas examinados deveriam se os elos da cadeia que assinalam exatamente a passagem do velho individualismo para a economia programtica. Esta nova organizao propicia o aparecimento de uma nova racionalidade capitalista diferente da tica protestante da qual o Rotary Club e seus mulos constituem a expresso ideolgica. Gramsci sublinha que a americanizao no sentido da organizao econmica da indstria europia acompanhada da implantao paralelas dos clubes rotarianos. Em nvel de tica rotariana, o aspecto essencial o de promover uma filosofia do servio, prxima do saint-simonismo, agnstico em matria religiosa: O Rotary no pretende ser nem confessional, nem maon; todos podem ingressar nas suas fileiras: maons, protestantes e catlicos (em alguns lugares arcebispos aderiram ao Rotary). Parece que o seu programa essencial baseia-se na difuso de uma novo esprito capitalista, na idade de que a indstria e o comrcio, antes de serem um negcio, so um servio social; ainda mais, no podem ser um negcio na medida em que representam um servio. Assim, o Rotary desejaria que o capitalismo de rapina fosse superado e se instaurasse um novo costume, mas propcio no desenvolvimento das foras econmicas. Tais organizaes representam um duplo perigo: -perigo ideolgico na medida em que o agnsticismo rotariano relega o catolicismo ao mesmo nvel das outras ideologias; -perigo organizacional porque a expanso destas organizaes pode colocar a Igreja catlica sob sua dependncia tal como acontece com as Igrejas protestantes. Portanto, a atitude da Igreja ambivalente: no pode atacar tais organizaes na medida em que elas representam organicamente a classe dirigente: claro que a Igreja catlica no poder ver oficialmente o Rotary com bons olhos, mas parece difcil que adote em relao a ele uma atitude semelhante adotada contra a maonaria: se fosse assim, ento deveria voltar-se contra o capitalismo. A Igreja opta tambm por uma ofensiva ideolgica que no inclua decises prticas, acompanhada de contactos tticos; de fato para alm dos problemas ideolgicos, a Igreja quer evitar, de um lado, uma condenao que afastaria mais da classe dirigente e de seus intelectuais e, de outros, encontrar-se em posio subalterna face a estas organizaes.FACETE Faculdade de Educao Teolgica

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Por isso a Igreja se encontra numa posio defensiva com relao s classes dirigentes. Sua situao ainda mais ameaadora no seio das classes subalternas. Analisando a funo ideolgica do catolicismo depois da Reforma, Gramsci sublinha que ele se apresenta essencialmente como uma religio de classes subalternas: a religio popular desempenha o papel primordial. Ora, esta religio popular que se encontra mais ameaada por duas correntes muito diferentes, o nacionalismo e o comunismo. Gramsci, analisa: a religio popular uma ideologia vulgar que se aproxima do folclore. Espessamente materialista em nvel da atitude prtica, ela se caracterizava at agora por seu fanatismo, com efeito, Gramsci julga que o nico meio que a Igreja tem de manter a unidade formal entre a religio materialista e supersticiosa das massas e aquelas dos intelectuais era o recurso ao fanatismo; que no pode ser seno momentneo, limitado, mas que acumula massas psquicas de emoes e de impulsos que se prolongam mesmo em pocas normais. Ora, o recurso ao fanatismo j passou, e por isso Gramsci considera que; O catolicismo agoniza pela seguinte razo: porque no pode criar periodicamente, como o fez no passado, ondas de fanatismo nos ltimos anos, aps a guerra encontrou substitutos, isto , nas cerimnias eucarsticas coletivas que se desenvolvem com fabuloso esplendor e provocam relativamente um certo fanatismo: mesmo antes da guerra, provocavam algo similar, mas em pequena escala, em escala demasiadamente local, as chamadas misses, cuja atividade culminava na ereo de uma imensa cruz, com violentas cenas de penitncia. No podendo mais alimentar o misticismo popular, o cristianismo v-se contestado pelas ideologias que se situam em seu prprio terreno. Em artigo publicado em 1964, Clifford Geertz observa que, no domnio da sociologia da religio, as grandes contribuies tericas que nos deram no inicio do sculo, Durkheim, Malinowski, Weber e, mais tarde o Freud de Totem e Tabu, no foram desenvolvidas posteriormente em seu grau comparvel. verdade que esses autores esto muito longe de defender a mesma concepo da fato religioso. Entretanto, pelo menos esto de acordo. Para eles, salvo talvez para Freud (que toma, porm, o maior cuidado em deixar claro que as crenas religiosas no podem ser reduzida a um simples delrio, e os ritos, a comportamento compulsivos), a religio um fenmeno caracterstico de todas as sociedades humanas passadas, presente e futuras. Por outro lado, antroplogos e socilogos pretendem da uma explicao positiva desse fenmeno. Durante muito tempo, os telogos sustentaram que o fato religioso escapa s influncias da cincia positiva. Opunham-se aos herdeiros da tradio racionalista, que acreditavam acreditar o fato religioso pela ignorncia ou pelos impulsos de uma afetividade cega. A ignorncia, que segundo Voltaire, ela cultiva entre seus fiis ("Nossos padres no so o que as pessoas de modo geral pensam. Nossa credulidade faz a cincia deles"), a sentimentalidade passiva que neles alimenta ("o suspiro das criaturas oprimidas", como diz Marx) oferecem meios de manipulao aos "grandes", deixam o clero estultificar as pessoas humildes para mant-las as escravido. A variante conservadora dessa concepo expressa por alguns liberais do sculo XIX, especialmente franceses para quem "a religio boa para o povo", a variante radical ilustrada pela famosa frmula marxista sobre a religio, "pio do povo". A contribuio da sociologia e da antropologia consiste em tratar a religio tambm como um "fato social", isto , como um fato humano. Resultam evidentemente de uma forma de abordagem riscos de deslizes reducionaistas difceis de controlar. A esse respeito, a substituio, feita por Durkheim, da nao de transcendente pela de sagrado est longe de ser inocente. Tambm no se pode proibir os socilogos de se ocuparem de uma dimenso to importante da vida social acusando-os de sacrilgio. A experincia religiosa encarna-se no tecido da ao social, dando-lhe sentido, embora transcenda-a a ponto de, s vezes, negar-lhe, como em certas formas extremas de ascetismo e de misticismo, qualquer validade, se no mesmo a sua realidade. Assim entendidas, as grandes orientaes religiosas no devem ser tratadas nem como as imagens longnquas de um Ideal inacessvel, nem como a projeo delirante de desejos que buscam no imaginrio uma realizao ilusria. O REFERENCIAL RELIGIOSO DA TICA Do ponto de vista da sociologia religio, o que nos interessa so as condies sociais de uma referncia religiosa a uma tica. Essa exatamente a mesma pergunta que fizemos a propsito das representaes ou das expresses, a saber: at que ponto as normas se representam em relao com uma revelao divina e as sanes so elaboradas nesse mesmo tipo de relao?FACETE Faculdade de Educao Teolgica

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Como no caso das expresses, embora exista uma relao entre a maneira como se constri uma tica como referncia religiosa e as representaes, no existe entre ambas uma coincidncia mecnica. Quando os comportamentos ticos se transformam podem continuar a reproduzir-se certas representaes que no correspondem a novos comportamentos e vice-versa. A existncia de uma certa autonomia entre os diversos elementos de um sistema religioso implica em que o fator religioso, como todas as realidades culturais, deve ser analisado de maneira muito precisa, para evitar as explicaes demasiadamente globais. Em sociedades feudais, onde predomina a representao religiosa da relao social de produo, a tica social tambm de ordem religiosa. Ela consiste em seguir as normas de uma ordem estabelecida por Deus e fundamentalmente uma moral de conformismo. Isso no significa que se exclua a possibilidade de revoltas justificadas mediantes referncias religiosas, como sucedeu em diferentes movimentos camponeses. Mas a referncia religiosa-tica no consiste em que a ordem seja injusta e que se deva mudar a estrutura social, mas sim que os dirigentes ou os senhores no respeitam a ordem divina. Conclui-se que essas revoltas no tenham pretendido mudar os fundamentos do sistema, mas sim que tenham sido reaes contra a no aplicao das normas ticas que regulam o sistema. A razo bvia: nestas sociedades no era possvel analisar a sociedade em termos de construo humana. A TICA PROTESTANTE E O ESPRITO DO CAPITALISMO A teoria de Marx Weber sobre a tica protestante e o esprito do capitalismo muito conhecida. Weber explica que a tica protestante promoveu uma certa austeridade, consistente em utilizar somente o necessrio e no consumir de maneira ostensiva, o que contribuiu para o desenvolvimento de uma mentalidade capitalista de acumulao. Isso foi passvel de verificao, embora seja necessrio acrescentar que esse fenmeno no foi monoplio do calvinismo. Embora teoricamente na lgica da relao social de produo, a religio pode desempenhar um certo papel ideolgico na reproduo da relao capitalista, ou seja, a submisso do trabalho ao capital. Os ensinamentos de Weber, que destacava a eficcia social da experincia religiosa, foram infelizmente interpretados como se as crenas e as prticas religiosas contribussem por si ss um princpio de explicao adequado da gneses e do funcionamento das instituies modernas. Weber nunca disse que a reforma calvinista era a " causa" da expanso capitalista no Ocidente cristo. Poder-se-ia, pois ser tratado a considerar no-pertinente a maior parte das crticas dirigidas a seu ensaio. Entretanto, antes de ir adiante, instrutivo comparar o que Weber disse de fato e o que os mais perspicazes de seus crticos disseram por seu lado. Primeiramente, todos esto de acordo num ponto. Existe uma correlao entre a filiao religiosa e a qualidade de empresrio na Europa dos sculos XVI, XVII e XVIII, em toda parte em que o capitalismo se desenvolveu. Quanto ao alcance e ao sentido dessa correlao, aqui que as dificuldades comeam. Seria necessrio, inicialmente, chegar a uma concordncia sobre o que se entende por capitalismo. Trevor Roper observa que Weber toma a palavra capitalismo stricto sensu, dando nfase mais racionalizao das tcnicas e as formas de produo do que extenso das trocas e seu modo de financiamento. Se tomarmos, ao contrrio, a interpretao lato sensu, que v no capitalismo essencialmente o modo de circulao das riquezas (mercadorias e capitais), uma espcie de "economia-mundo" ( Braudel) que absorve as soberanias polticas, no ser infundvel falar do capitalismo em Flandres e na Itlia muito antes da Reforma protestante. Se escolhermos a segunda interpretao, o esprito do capitalismo ir parecer mais prximo do humanismo do que da Reforma. Em todo caso, no esprito do capitalismo entra uma valorizao da mobilidade, trata-se da mobilidade dos fatores de produo (terra, trabalho, capital), da mobilidade das mercadorias e dos ativos monetrios, ou ainda da mobilidade das pessoas e dos empresrios. Em que medida essa valorizao da mobilidade e, consequentemente, da diligncia, do empenho, da inovao tecnolgica (com as restries que introduz nos sistemas normativos) est relacionadas com as crenas e as preferncias religiosas dos interessados? O que a anlise de Weber estabelece a congruncia entre a "tica" do calvinismo e o "esprito" do capitalismo. O que no mostra como essa congruncia explicaria a gnese das instituies capitalistas. Quanto a essa questo, historiadores como Herbert Lthy e Trevor Roper so muito mais esclarecedores do que Weber. Sombart j havia mostrado que a tica calvinista no a "custa adequada", do desenvolvimento capitalista observando que o papel que Weber atribuiu aos protestantes foi muitas vezes desempenhado pelos judeus sefarditas, expulsos pelos reis catlicos. Somos assim levados a perguntar se no status de empresrio a qualidade emigrado no vale tanto se no mais do que a filiao religiosa. A essa qualidade acha-se ligado umFACETE Faculdade de Educao Teolgica

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certo nmero de traos que podem funcionar como vantagens em benefcios dos exilados. Primeiramente as vtimas das perseguies encontram-se dispersadas em numerosos pases. No interior de sua dispora so mantidos vnculos de confiana e de solidariedade, que na ordem das transaes comerciais, constituem certamente, para os membros da comunidade dispersa, uma vantagem. Seria a marginalidade dos protestantes ou dos judeus e a coeso dos seus grupos, disseminados por toda a Europa, que os teriam tornado particularmente aptos para serem os principais iniciadores do desenvolvimento capitalista. Essa hiptese colaborada a contrrio por uma srie de dados para os quais Trevor chama nossa ateno. Nos pases e para a poca em que os calvinista estabeleceram uma rgida intolerncia sectria, eles no so mais inovadores do que os catlicos nos pases em que so majoritrios. Entretanto a hiptese da marginalidade dos inovadores que justificam a constituio dos grupos transacionais, culturalmente homogneos e fortemente solidrios, no nos autoriza a tratar como no-pertinentes, as anlises weberianas sobre a congruncia entre a "tica", protestante e o "esprito" do capitalismo. Os marginais so expulsos, por causa de sua filiao religiosa. Trevor Roper vai agora transpor uma etapa provavelmente decisiva, graas qual estabelece o peso das afinidades religiosas na constituio da primeira elite capitalista. De fato, a dispora dos judeus, e mesmo dos protestantes, no resulta, como num exit Hurschman, de um clculo deliberado pelo qual os que saem avaliam de maneira muito precisa os custos e as vantagens resultantes de sua deciso. Trata-se de uma expulso, na maioria das vezes violenta, que dispe contra a sociedade que fora a sada dos dissidentes. Ora, entre as razes invocadas para justificar esta expulso, a questo da ortodoxia ocupa um lugar central. No caso dos protestantes, Trevor Roper mostra que no se trata de um pretexto alegado para justificar a violncia e a iniquidade. O que constitui a essncia do conflito um autntico conflito de valores entre a ordem social, onde a ociosidade monstica, o desperdcio eclesistico (sem falar das dilapidaes dos prncipes e de seu corteses) tem um peso insuportvel, e o projeto existencial dos negociantes, burgueses patrcios que se revoltam contra um sistema que no somente os atrapalha em seus interesses, mas tambm os ofende em sua adeso profunda e sincera quilo que os erasmianos chamam "filosofia do Cristo" (Trevor Roper). A congruncia assinalada por Weber entre a tica puritana e o esprito do capitalismo no aparece abertamente como um conjunto de relaes imediatamente inteligvel entre idias. Resulta de um processo histrico complexo, onde entram em jogo no somente estados mais ou menos estveis da conscincia coletiva, mas tambm estratgias de doutrinao, de dissidncia, de expulso (ligadas aos interesses econmicos que opem burgueses e comerciantes as ordens privilegiadas), desenvolvidas em conjunturas afetadas pelas contingncias histricas (como o afluxo dos metais preciosos decorrentes da descoberta da Amrica). Anlise semelhante poderia ser feita sobre uma questo conexa, a das relaes entre o calvinismo, e, de modo mais geral, entre as formas "sectrias'' ou mesmo presbiteriana dos protestantismo, e o esprito democrtico. A organizao presbiteriana das igrejas calvinistas, em numerosos casos, esterilizou o esprito de exame, imps uma ordem moral sufocante e chegou a uma espcie de ditadura farisaica. No , portanto, o protestantismo enquanto tal, nem mesmo uma categoria de protestantes, como os socinianos, os arminiansos, ou os unitaristas, a causa do desenvolvimento do esprito democrtico. preciso procurar a origem desse desenvolvimento numa combinao de dados ao mesmo tempo histrico e institucionais, atravs da qual a "tica protestante" pode revelar sua fecundidade tanto na ordem poltica como na ordem econmica. O ensinamento da sociologia werberina duplo. Em primeiro lugar, ela mostra a importncia das orientaes religiosas no funcionamento das sociedades modernas. Recusa assim as formas mais ingnuas do desenvolvimento que v na religio uma forma, por assim dizer, subdesenvolvida da conscincia coletiva. Alis Durkheim, que tanto insistiu nas especificidades da religio primitiva, por seu lado sempre atribuiu explicitamente a toda a experincia social, desde que fosse plena, uma dimenso propriamente religiosa. Na medida em que define a religio "como a vida levada a srio", torna-a um componente universal da vida social. O segundo ensinamento da sociologia religiosa de Weber, e seramos tentados a dizer, de toda sociologia religiosa, que ela aponta a ambigidade dessas orientaes relativas a nossos fins ltimos, que para serem eficaz devem materializar-se num sistema de prticas e de crenas institucionalmente definidas e sancionadas. Em outras palavras o fenmeno religioso no se reduz experincia subjetiva vivida por indivduos particularmente dotados "virtuoses", diria Weber de certas exigncias existenciais. No definiramos convenientemente o fenmeno protestante se o reduzssemos ao sistema dos valores que Weber chama "ascetismo ao mundo" (innerweltiche Askese). O protestantismo tanto uma forma de organizao da sociedade religiosa, como um projeto religioso sobre a organizao da sociedade leiga. No caso do calvinismo analisado por Marx Weber nos encontramos num perodo de transio. Existe nele um leitura religiosa, no da estrutura de classes (como acontecia na sociedade feudal) mas na posio dasFACETE Faculdade de Educao Teolgica

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classes dominantes. Essa representao de uma economia agrria dependente dos fatores naturais utilizada novamente e reinterpretada no contexto de uma economia proletria. No se refere apenas ao Antigo Testamento, onde se afirma que os bens materiais so uma manifestao de benevolncia de Deus e que aquele que acumula age de acordo com uma tica de valor religioso, mas tambm prpria acumulao, que um sinal da predestinao por parte de Deus. A idia da predestinao tpica do processo de transio cultural, que ainda uma forma prcapitalista de leitura da posio social ou da relao social de produo. Essa apresentao bem profana. A acumulao o resultado do trabalho e o fruto da tica dessa classe que pelo fato de no consumir tudo que ganhou, conseguiu acumular. O que se realiza uma leitura religiosa da posio de classe, por mediao de uma referncia tica: ocupam o lugar mais elevado porque so os melhores. Assim, se refora a idia da excelncia da classe dos capitalistas, o que justifica suas posies de dominao. ao mesmo tempo o resultado e o signo: a confirmao de que foram predestinados. Essa forma de representao tpica de uma transio cultural na qual novos elementos sociais se representam mediante categorias do passado. O tipo de tica com essa referncia fundamental de noconsumo integral, o que implica em acumulao. E a acumulao precisamente o elemento novo. O respeito tica supe a observncia das normas por parte dos indivduos. Disso decorre que a acumulao seja o resultado da retido dos agentes econmicos, o que constitui uma auto-justificao que , por sua vez, uma caracterstica fundamental de toda classe capitalista. O papel da representao na tica calvinista dos primrdios do desenvolvimento capitalista constitui um bom exemplo da transio de um pensamento mtico a outro mais analtico: os dois ainda coexistem. Contudo, o elemento de explicao religiosa ter cada vez mais dificuldade para reproduzir-se diante do desenvolvimento da explicao intra-social. A ttulo de ilustrao, interessante lembrar a histria religiosa da burguesia francesa. No processo revolucionrio, essa burguesia foi muito anti-religiosa, mas durante o sculo XIX uma parte da mesma regressou religio. Como explicar esse fato do ponto de vista sociolgico? A ruptura com a ordem feudal esteve marcada por uma luta anti-religiosa e anti-eclesistica, porque o catolicismo representava tanto em sua forma de representao como de organizao, um aparato ideolgico das classes feudais. Por exemplo, no momento em que ocorreu a Revoluo Francesa apenas quatro dos bispos provinham da aristocracia: o vnculo da Igreja com o mundo feudal se manifestava no apenas ideologicamente mas tambm institucionalmente. O choque da burguesia contra a aristocracia adotou um aspecto simblico central de luta contra a religio. Naquele momento o inimigo de classe era a aristocracia. Uma vez que se realizou a industrializao, o eixo central do antagonismo de classe j no se situava entre a burguesia e a aristocracia, que havia sido eliminada como classe embora continuasse a existir como grupo cultural. Depois de uma ou duas geraes uma boa parte dos membros da burguesia acabou por se casar com aristocratas, porque o ideal era aliar um nome aristocrtico com o dinheiro da burguesia, j que a nobreza conservava um status social mais elevado do que a nova burguesia industrial. aristocracia j no era o inimigo. Uma nova classe a classe operria, estava nascendo e se constitua no novo inimigo de classe. Os movimentos operrios estavam se desenvolvendo. Uma parte da burguesia retornou religio. Via agora no catolicismo que havia rejeitado um aliado em sua luta contra o proletariado. O ministro francs Thiers, totalmente ateu, dizia que era melhor ter um padre do que cem policiais. Manter entre o povo uma religiosidade tradicional era uma maneira eficaz de controla-lo Por outro lado as numerosas organizaes religiosas de caridade organizadas para fazer frente a alguns problemas sociais derivados da constituio da classe operria e a generosidade de tantos fiis, religiosos ou leigos, que consagravam sua vida a auxiliar os pobres, permitia a classe burguesa abster-se de transformar a ordem social. De outro lado, os colgios catlicos que eram realmente de boa qualidade, prestavam um servio na reproduo e na expanso da classe burguesa. Produziu-se ento uma nova aproximao de uma parte da burguesia europia em relao religio durante o processo de desenvolvimento do capitalismo, o que primeira vista poderia parecer ilgico, porque a relao fundamental do sistema capitalista j no se representava como categorias religiosas. Neste caso a referncia religiosa garantia, de uma lado, a auto-satisfao da classe, e de outro, a manuteno da religio como forma de conscincia, o que tambm era um elemento positivo no desenvolvimento do sistema capitalista. Devem-se acrescentar-se a isso, como dizamos os sucedneos de uma transformao social, no que diz respeito misria, e os servios que as Igrejas ou instituies religiosas podiam render classe burguesaFACETE Faculdade de Educao Teolgica

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para sua reproduo. Tudo isso explica que uma parte da burguesia se aproximasse de novo da religio na Frana e n Blgica. Evidentemente, a realidade sempre complexa e dialtica. Existiam ao mesmo tempo na Europa personalidades e grupos religiosos que criticavam no apenas o comportamento da burguesia, mas tambm o sistema capitalista embora sem partir de uma anlise social que permitisse o desenvolvimento de uma atitude revolucionria. Ainda hoje em dia, as sociedades capitalistas, uma parte da burguesia encontra em certas expresses religiosas e no apoio das instituies religiosas uma confirmao de sua excelncia. Isto se mantm, em ocasies, sob novas formas, especialmente em situao de crise econmica. O que notamos na Europa acontece tambm em outras partes do mundo, onde certas expresses religiosas pblicas permitem apresentar os membros da classe dominantes sob um ngulo favorvel, em virtude de sua condio de fiis. Isso no necessariamente mas constitui um mecanismo sociolgico. No entanto, pode ser consciente, como comprovamos na utilizao da religio por parte de alguns lderes que representam os interesses dessas classes. Quando Giscard d'Estaing era presidente da Frana, com freqncia surgia na televiso participando do culto catlico e recebendo a comunho. No nos compete como socilogos fazer um juzo moral pessoal nem afirmar que isso era planejado. No entanto, Giscar d''Estaing nunca disse que era presidente por vontade de Deus. E se o tivesse dito, muito poucos franceses teriam acreditado. Mas o fato de aparecer num ambiente religioso lhe confere uma imagem pblica de homem de retido, de ticas, de princpios. E em situaes de crise, nas quais existe uma certa anomia desenvolve-se na conscincia coletiva uma procura por imagens de segurana moral. Podemos afirmar o mesmo a respeito do presidente Reagan, mesmo que seu caso as expresses sejam mais primitivas. Po