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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE DIREITO ARNALDO VIEIRA SOUSA LEI DA ANISTIA: o Direito entre a memória e o esquecimento São Luís 2010

Monografia Arnaldo concluida

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO DE DIREITO

ARNALDO VIEIRA SOUSA

LEI DA ANISTIA: o Direito entre a memória e o esquecimento

São Luís

2010

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ARNALDO VIEIRA SOUSA

LEI DA ANISTIA: o Direito entre a memória e o esquecimento

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão, para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Ms. Mário de Andrade Macieira.

São Luís

2010

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Sousa, Arnaldo Vieira Lei da anistia: o Direito entre a memória e o esquecimento / Arnaldo Vieira Sousa. – São Luís, 2010. 88 f. Impresso por computador (fotocópia) Orientador: Mário de Andrade Macieira Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Maranhão, Curso de Direito, 2010. 1. Anistia – Direito 2. Lei da anistia 3. Memória 4. Esquecimento CDU: 343.293

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ARNALDO VIEIRA SOUSA

LEI DA ANISTIA: o Direito entre a memória e o esquecimento

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão, para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Aprovada em: ___/___ /_____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________

Prof. Ms. Mário de Andrade Macieira

_______________________________________________

1º Examinador (a)

_______________________________________________

2º Examinador (a)

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À memória dos que foram vencidos.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, pelo amor e cuidado na minha educação e no incentivo ao

exercício da minha liberdade e da minha responsabilidade para com os outros.

Aos meus tios e tias, que sempre me trataram como seu filho e a quem

tenho como pais.

Ao meu irmão e primos-irmãos, pelo hábito da leitura, dos debates, pelos

momentos de diversão e, principalmente, pelo exercício do amor fraternal na

diferença.

A Vanessa, pelos sonhos em conjunto, pela ajuda com monografia, pelo

amor, dedicação e paciência, em especial, durante esse período e por tantos outros

motivos que não cabem no papel.

Aos amigos de infância e de escola, por me ensinarem o valor da

amizade e a importância de ser uma pessoa melhor e dar espaço à existência do

outro em nossas vidas.

A Andréa, Camila, Carlos Augusto, Ciro, Felipe, Flávia, Larissa e Raquel,

pelos momentos em sala de aula, mas, principalmente, pelos momentos do lado de

fora dela. São a parte mais importante do que levo da UFMA.

Aos amigos do movimento estudantil e do NAJUP Negro Cosme, por

compartilhar comigo sonhos, sábados, domingos e feriados na certeza de um mundo

melhor.

Aos amigos da RENAJU, por mostrar a boniteza dos sonhos em todo o

país. A distância não diminui o carinho e a amizade.

Ao professor Mário Macieira, quem primeiro plantou em mim a semente

de outro Direito e me instigou a querer saber tanto quanto ele. Ainda estou longe,

mas sigo buscando.

Ao professor Luís Inácio, pela paciência com que orientou os meus

passos nessa pesquisa e pela sutileza com que apontou meus erros e deslizes.

A Laísse, pela dedicação exemplar no desempenho das funções de

servidora da Coordenação do Curso de Direito da UFMA.

À UFMA e aos seus funcionários, por reavivar em mim, todos os dias, a

diferença entre o que deve e o que não deve ser feito.

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Menino, ainda que tenha poucos anos, creio que tenha que dizer-te a verdade para que não a esqueça, por isso não te oculto que me deram choques elétricos que quase me estouram os rins. Todas estas marcas inchadas e feridas que teus olhos redondos miram hipnotizados são duríssimos golpes, são botas na cara muita dor para que eu te oculte, muito suplício para que eu apague. Mas também é bom que saibas que teu velho calou ou xingou como um louco que é uma linda forma de calar que teu velho esqueceu todos os números, por isso não poderia te ajudar com a tabuada, e, portanto, esqueci todos os telefones e as ruas e a cor dos olhos, e os cabelos e as cicatrizes e em que esquina e em que bar, que parada, que casa E que lembrar-se de ti de teu rostinho, ajudava-me a calar, uma coisa é morrer de dor e outra coisa, morrer de vergonha. Por isso, agora, podes me perguntar e sobretudo eu posso te responder. Nem sempre se faz o que se quer, mas também se tem o direito de não fazer o que não se quer. Não chores mais, menino. É mentira que os homens não choram, aqui choramos todos, gritamos, berramos, gememos, lastimamos maldizemos, porque é melhor chorar que trair, porque é melhor chorar que trair-se Chora, mas não te esqueças.

Mario Benedetti

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RESUMO

As feridas sempre abertas do período da ditadura militar foram novamente atiçadas com as discussões sobre o alcance da Lei nº. 6.683/79 (Lei da anistia) e sua possível extensão aos crimes de tortura, assassinato, seqüestro e desaparecimento (para ficar em alguns) praticados pelos órgãos repressores do Estado Militar. O presente trabalho tem por objetivo tratar dos principais argumentos levantados nessa discussão sob o ponto de vista das relações do Direito com a memória e o esquecimento coletivos. Para isso, faz-se uso do papel instituidor do Direito, para além da concepção deste unicamente como sistema de normas. O Direito pode ligar ou desligar o passado e o futuro de uma comunidade política e é com a evidência dessa função que se faz possível entender sobre qual pano de fundo a Lei da anistia foi construída, quais seus efeitos para a coletividade e qual interpretação desta melhor se coaduna com a manutenção da comunidade política.

Palavras-chave: Lei da anistia. Direito. Memória. Esquecimento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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RESUMEN

Las heridas siempre abiertas del período de dictadura militar fueron nuevamente atizadas con los debates sobre la amplitud de la Ley nº. 6.683/79 (Ley de amnistía) y su posible extensión a los crímenes de tortura, asesinato, secuestro y desaparición (para no ampliar demasiado) ejercitado por órganos represores del Estado militar. Este trabajo tiene como finalidad abordar los principales argumentos planteados en el debate sobre las relaciones del Derecho con la memoria y el olvido colectivos. Para hacer esto, se utiliza del papel instituidor del Derecho, además de la comprensión de esto sólo como un sistema de normas. El derecho puede unir o desunir el pasado y el futuro de una comunidad política y la evidencia de esta función hace posible comprender cómo (y en que escenario) se generó la ley de amnistía, que efectos causa a la colectivización y que la interpretación de esta mejor corresponde al mantenimiento de la comunidad política.

Palabras clave: Ley de Amnistía. Derecho. Memoria. Olvido.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................ 10

2 O PERÍODO DITATORIAL E O SURGIMENTO DA LEI DA ANISTIA – UM BREVE HISTÓRICO ....................................................... 13

2.1 O período ditatorial ................................................................................ 13

2.2 Histórico da Lei da anistia .................................................................... 21

3 AS TENTAÇÕES DO ESQUECIMENTO: CONSTRUINDO NA AREIA ..................................................................................................... 29

3.1 O conceito de anistia ............................................................................ 32

3.2 Anistia e esquecimento ......................................................................... 35

3.2.1 O conceito de auto-anistia ....................................................................... 40

3.2.2 O conceito de prescrição ......................................................................... 44

3.2.3 O princípio da anterioridade da lei penal ................................................. 45

4 DEVER DE MEMÓRIA: UM BRINDE AO PASSADO ............................. 48

4.1 Espaço público e memória ................................................................... 53

4.2 Os crimes contra a humanidade .......................................................... 56

4.2.1 A imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade ............................ 58

4.2.2 O caso dos desaparecidos políticos ........................................................ 61

5 O PERDÃO POSSÍVEL E A PROMESSA ............................................. 63

5.1 Perdão e processo ................................................................................. 65

5.2 A Justiça de Transição .......................................................................... 68

5.2.1 Justiça de Transição no Brasil ................................................................. 71

5.3 A promessa ............................................................................................ 74 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 77

REFERÊNCIAS ....................................................................................... 81

 

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1 INTRODUÇÃO

A tortura, historicamente, tem sido utilizada como método para obtenção

de confissões e informações, com vistas à apreensão da verdade factual pelo

Estado. E apesar de o Brasil ser signatário de inúmeras convenções e pactos

internacionais contra essa prática e de a legislação brasileira ser expressa em definir

a tortura como crime equiparado aos crimes hediondos, ela ainda é uma prática

corriqueira nas investigações policiais e no interior de delegacias e presídios do

país.

A institucionalização dessa prática de “investigação” remonta aos

momentos formadores do Estado brasileiro, com maior evidência nos períodos de

regimes ditatoriais, como o Estado Novo e a Ditadura Militar pós-64, persistindo

atualmente, com apoio de boa parte da população, mesmo sendo condenada pelo

discurso oficial.

Soma-se a isso o fato de que, recentemente, as feridas sempre abertas

dos anos do regime militar foram novamente atiçadas com as discussões sobre o

alcance da Lei nº. 6.683/79 (Lei da anistia) e sua possível extensão aos crimes de

tortura, assassinato, seqüestro e desaparecimento (para ficar em alguns) praticados

pelos órgãos repressores do Estado Militar.

Essas discussões têm sido travadas nos campos midiático, jurídico e

historiográfico, puxadas tanto pelas vítimas do regime militar e seus familiares

quanto pelos próprios militares, com cada segmento visando à afirmação de sua

verdade. É uma disputa sobre qual interpretação deve ser dada ao passado recente

do país, sobre qual verdade histórica e judicial deve prevalecer.

Sem dúvidas não se trata somente de uma discussão revanchista ou

meramente acadêmica, podendo influenciar de forma circunstancial no presente e

no futuro do país.

Diante disso, faz-se extremamente importante trazer essa discussão para

o mundo jurídico, partindo de uma análise das relações do Direito com a memória e

o esquecimento, de modo a verificar qual interpretação da Lei da anistia mais se

coaduna com a integração do corpo político brasileiro, levando em conta que a

disputa de entendimentos sobre a possibilidade de aplicação da Lei da anistia aos

crimes praticados pelos agentes da repressão no período ditatorial não é, nem de

 

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longe, um problema estritamente jurídico, se apresentando como um ponto de

disputa de concepções acerca da própria história recente do país e do papel das

instituições nessa construção.

Rediscutir o passado é reconstruí-lo a cada momento, no presente. Fazer

isso de maneira consciente, sem a ilusão positivista de que o passado é estanque,

“morto e enterrado”, é abrir a possibilidade de resgatar as promessas não cumpridas

e as vozes caladas ao longo da história. É preciso revisitar o passado e verificar

como se dá a relação do Direito com a memória coletiva de um país, tendo em vista

o papel instituidor de que o Direito é dotado e sua profunda ligação com a tradição,

que lhe dá sentido e legitimidade.

Colocar as premissas dessa discussão é não se olvidar que, como já

disse o poeta Jorge Luís Borges, “o esquecimento é uma das formas da memória,

seu porão difuso, a outra face secreta da moeda”. O esquecimento é tão importante

à vida pública quanto a memória: lembrar-se de algo já é escolher do que se

esquece. Da mesma maneira, o direito à memória e o direito ao esquecimento se

fazem sempre presentes no ordenamento jurídico e precisam ser pensados em

conjunto.

Não restam dúvidas de que as vítimas do regime militar e seus familiares

merecem, legitimamente, pleitear que suas histórias pessoais, até então relegadas à

clandestinidade, sejam integradas à história coletiva do povo brasileiro. Mas também

se impõe questionar até que ponto esse direito à memória se conflita com o direito

dos criminosos do regime militar em ter seus crimes esquecidos, tanto em virtude da

anistia, quanto do lapso temporal entre os delitos e a presente data.

São inúmeros os autores que trabalham a importância de se dar voz aos

ecos do passado, mas também de se garantir o esquecimento necessário aos

apelos do presente. Seguindo o rastro desses autores é que o presente trabalho

pretende abordar a polêmica acerca da Lei da anistia sob um viés que leve em conta

o papel instituidor do Direito e sua capacidade de ligar e desligar o passado e o

futuro.

Visando a isso, no primeiro capítulo, faremos um apanhado histórico do

regime ditatorial e suas conseqüências para o presente do país, bem como, uma

análise da luta pela anistia no país, até a promulgação da Lei nº. 6.683/79.

No segundo capítulo, será abordado o instituto da anistia, assim como

outros institutos jurídicos que têm ligação estreita com o tempo, como a prescrição

 

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penal e a anterioridade da lei penal, em sua relação com a produção do

esquecimento e os perigos deste para a manutenção do corpo político.

O terceiro capítulo tratará da memória coletiva, da sua relação com o

espaço público e do papel desempenhado pelo ordenamento jurídico na sua

manutenção, abordando os conceitos de imprescritibilidade dos crimes contra a

humanidade e crimes permanentes e analisando se a anistia política advinda da Lei

nº. 6.683/79 se coaduna com essas formas de manutenção da memória coletiva.

Por fim, no último capítulo serão abordadas algumas questões sobre

perdão e a promessa, sobre a sua possibilidade no caso brasileiro e em relação à

anistia, bem como as medidas de Justiça de Transição e qual pode ser a sua

contribuição no resgate da memória, com vistas à inauguração de um tempo em que

as promessas perdidas do passado sirvam de orientação ao povo presente e futuro.

 

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2 O PERÍODO DITATORIAL E O SURGIMENTO DA LEI DA ANISTIA – UM BREVE HISTÓRICO

Anistia, vens pela metade ou por dois terços? Consideras-te ampla e estreitas as dobras da tua veste? Absorveste mal o significado da palavra perdão, omites a profundidade da palavra esquecimento? (...) Quero-te alta e perfeita, e não uma baixinha anistia de quatro dedos e andar cambaio. Quero que voes. Com asas te imagino, sobre os desencontros e mesquinhezas dos pobres intérpretes de tua grandeza luminosa.

Carlos Drummond de Andrade

O Brasil passou por uma ditadura militar que durou vinte e um anos, com

um forte histórico de violação aos direitos humanos e uma anistia que pretendeu

apagar todos os rastros dessas violações. Antes de se adentrar nas relações entre o

Direito, a memória e o esquecimento, presentes na discussão sobre a anistia, faz-se

necessário tecer breves considerações sobre esse período e sobre a maneira como

ocorreu o processo de construção da Lei nº. 6.683/79, que pretendeu anistiar todos

os agentes da repressão que cometeram crimes contra os opositores do regime

militar e seus familiares.

2.1 O período ditatorial

O período entre o final da década de 50 e a década de 1960 foi de intensa

agitação política no país. Desde antes do governo de Juscelino Kubitschek

(1956/1960), os militares já ensaiavam tentativas de golpe, recuando, dentre outros

fatores, graças ao papel de resistência interna desempenhado pelo Ministro da

Guerra, Marechal Henrique Lott.

Em fevereiro de 1956, com o levante da Jacareacanga, e em dezembro

de 1959, com a rebelião de Aragarças, setores militares demonstraram mais uma

vez seu descontentamento com a política presidencial e com o que consideravam

“conspiração comunista em marcha” no país. As duas revoltas foram debeladas e os

envolvidos foram anistiados pelo Presidente Juscelino.

Em 25 de agosto de 1961, depois de menos de sete meses de governo,

Jânio Quadros, eleito Presidente da República em 03 de outubro de 1960, renunciou

ao cargo, e os três ministros militares realizaram uma nova tentativa de golpe,

 

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tentando impedir a posse do vice-presidente João Goulart (Jango), herdeiro do

nacionalismo getulista e tido por eles como radical.

Nesse período, “os generais golpistas chegaram a escrever um Manifesto

à Nação, em que diziam que, se Goulart assumisse, aconteceria no Brasil ‘um

período de choques sangrentos nas cidades e no campo, de subversão armada’”

(ARANHA, 2008, p.15).

Os golpistas recuaram devido à intervenção de Leonel Brizola, cunhado

de Goulart e governador do Rio Grande do Sul, que conseguiu o apoio do general

Machado Lopes, do Terceiro Exército, para garantir a posse de “Jango”. Seu

governo, contudo, já teve início com restrições, em um regime parlamentarista criado

para a ocasião e que enfraquecia consideravelmente o poder do Presidente.

João Goulart só começou seu governo de forma efetiva em janeiro de

1963, quando a população brasileira decidiu, por plebiscito, pelo presidencialismo.

Darcy Ribeiro (2002) nos conta que:

Vencido o plebiscito de 1962, que proscreveu o parlamentarismo por 9 a 1 milhões de votos, Jango iniciou um esforço ingente para estabelecer uma aliança com o PSD, que lhe desse suporte parlamentar para as reformas de base. Conseguiu, assim, o apoio necessário para aprovar a Lei da Remessa de Lucros, através da qual empresas estrangeiras teriam direito de remeterem, para fora, dividendos de até 10% do capital que introduzissem no Brasil. Mas eram forçadas a deixar aqui os capitais ganhos no país, que viveriam o destino dos capitais nacionais. [...] Paralelamente, Jango articulava a aprovação pelo Parlamento de sua fórmula da Reforma Agrária, [...]. Esta consistia em introduzir na Constituição o princípio de que a ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade. Princípio do qual decorria a norma de uso lícito da terra, que seria o equivalente a quatro vezes a área efetivamente utilizada. Essa reforma devolveria ao controle do Estado centenas de milhões de hectares de terra, sobretudo no Brasil Central e na Amazônia,[...].

A sua tentativa de implantar as chamadas reformas de base (nos setores

fiscal, bancário, agrário e educacional), a crise econômica enfrentada pelo país, a

forte articulação de movimentos populares, bem como a instabilidade das relações

entre os militares e o governo e o descontentamento de boa parte da direita

brasileira e dos seus aliados exteriores foram o bastante para que um golpe militar

fosse armado contra o seu governo.

O estopim veio quando, em discurso realizado para cerca de 130 mil

pessoas no dia 13 de março de 1964, na Central do Brasil, João Goulart defendeu a

 

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revisão da Constituição de 1946, reforçou a necessidade das reformas de base e

atacou os opositores do seu governo.

Apenas alguns dias depois, mais precisamente no dia 19 de março, os

seus opositores realizaram, em São Paulo, a primeira Marcha da Família com Deus,

pela Liberdade, que levou mais de 200 mil pessoas à rua em manifestação contra o

comunismo e o governo de João Goulart. Outras marchas semelhantes foram

realizadas em várias capitais do país. Codato e Oliveira (2004) observam que:

as Marchas da Família com Deus pela Liberdade foram atos públicos organizados por setores católicos da classe média urbana - e impulsionados por políticos conservadores (a Ação Democrática Parlamentar, em primeiro lugar), pela elite empresarial (reunida no IPES) e pelos movimentos femininos - que reuniram milhares de pessoas às vésperas do 31 de março nas principais cidades brasileiras. Condenavam genericamente a política "populista" (isto é, "a demagogia, a desordem e a corrupção") e o "comunismo" (seja seu caráter "materialista e ateu", seja o risco que o "totalitarismo" poderia representar à propriedade privada e à democracia). Fazendo eco ao clima de guerra fria, comunismo e populismo eram considerados posturas simetricamente "antidemocráticas". [...] Simplificadamente, as Marchas batiam-se pela obediência aos "valores tradicionais cristãos" (o terço e o rosário, o matrimônio, a família) e pela observação das "liberdades individuais" (a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, a propriedade privada) ameaçadas (ou supostamente ameaçadas) pelo governo Goulart.

A situação só se agravou quando, em 26 de março, eclodiu no Rio de

Janeiro a chamada Revolta dos Marinheiros. Em comemoração aos dois anos da

Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, entidade considerada ilegal, os

marinheiros reivindicavam, no Sindicato dos Metalúrgicos, “o reconhecimento de sua

associação, a melhoria da alimentação a bordo dos navios e dos quartéis e a

reformulação do regulamento disciplinar da Marinha” (LAMARÃO, 2004), bem como,

que os marinheiros presentes no evento não sofressem qualquer punição.

O ministro da Marinha, Silvio Mota, enviou um destacamento de fuzileiros

navais ao local. Estes acabaram aderindo à manifestação dos marinheiros e o

Presidente João Goulart deu ordens expressas para que as tropas não invadissem o

Sindicato dos Metalúrgicos, o que resultou no pedido de demissão de Sílvio Mota.

Remígio (2009, p.181) nos conta que após algumas negociações com os

marinheiros:

Jango acatou as reivindicações, sem que ordenasse a punição dos envolvidos. Mais uma vez, um fato que desagradou aos militares, pois a passividade de João Goulart com a apontada indisciplina militar o fez alvo

 

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de acusações de apoiar o movimento comunista possivelmente existente dentro das forças armadas, fato este que se revela como a causa mais imediata para o golpe.

Era o que os militares esperavam para por o golpe definitivamente em

andamento. Com o apoio de boa parte da sociedade civil e do governo

estadunidense1, os militares tomaram o Poder Executivo para si no dia 1º de abril de

1964, sem que João Goulart ou seus aliados oferecessem qualquer resistência.

O regime militar brasileiro durou de 1964 a 1985, atravessando três fases

distintas. Em um primeiro momento (1964-1968), o governo buscava a consolidação

do seu poder, construindo-o, pela via “legal”, através dos Atos Institucionais.

O primeiro Ato Institucional, datado de 09/04/1964, marcou o início da

repressão aos opositores do regime, com cassação de mandatos, suspensão de

direitos políticos, demissão de servidores públicos, expurgo de militares,

aposentadoria compulsória e prisão de milhares de pessoas.

O ano de 1968 veio a marcar o momento de explosão de várias

manifestações contrárias ao regime por parte dos movimentos contraculturais,

sindicais, estudantis, da ala menos conservadora da Igreja Católica e até mesmo

das forças que apoiaram inicialmente o golpe militar.

Carlos Lacerda, um dos maiores articuladores civis do golpe militar, criou,

juntamente com os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, a chamada

Frente Ampla de Oposição.

As manifestações tornaram-se freqüentes e, em março de 1968, a morte

do estudante paraense Edson Luís, pela polícia, durante uma passeata estudantil foi

o estopim para a indignação de vários setores da sociedade brasileira, mesmo da

classe média, até então distante das manifestações, feitas somente pelos

estudantes, operários e intelectuais.

Zappa e Soto (2008, p. 73) mostram que a mídia carioca registrou essa

morte em várias de suas manchetes: “Assassinato” (Correio da Manhã); “Edson

morreu nos braços dos companheiros” (Última Hora); “Polícia mata estudante”

(Diário de Notícias); “Assassinato leva estudantes a greve nacional” (Jornal do

Brasil); “PM fuzila estudante no Calabouço” (O Jornal).

                                                            1 Logo após o comício da Central do Brasil, o Presidente estadunidense, Lyndon Johnson, autorizou a formação de uma força naval para intervir favoravelmente aos militares na crise brasileira, em caso de guerra civil.

 

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O jornal Correio da Manhã (1968 apud Zappa; Soto, 2008, p. 72), um dos

maiores jornais do país à época, fez, em seu editorial, um ataque direto ao regime e

sua “política” de repressão:

Atirando contra jovens desarmados, ensandecida pelo desejo de oferecer à cidade apenas mais um festival de sangue e morte, a Polícia Militar conseguiu coroar, com este assassinato coletivo, a sua ação, inspirada na violência e só na violência. Barbárie e covardia foram a tônica bestial de sua ação. O ato de depredação do restaurante pelos policiais, após a fuzilaria e a chacina, é o atestado que a Polícia Militar passou a si própria, de que sua intervenção não obedeceu a outro propósito senão o de implantar o terror na Guanabara. Diante de tudo isto, depois de tudo isto, é possível ainda discutir alguma coisa? Não e não.

O movimento contrário ao regime cresceu ainda mais no mês seguinte, e

em Contagem, Minas Gerais, 15 mil operários entraram em uma greve que durou

nove dias. O funcionamento da Frente Ampla de Oposição foi proibido pela ditadura

e a chamada “linha dura” dos militares começava a pressionar o então presidente

Costa e Silva a reprimir ainda mais os grupos insurgentes.

No parlamento, foi denunciado um plano de utilização do Para-sar

(unidade de pára-quedistas especializada em socorro e salvamento), em missões

criminosas de seqüestro de quarenta líderes políticos, para serem lançados de avião

a quarenta quilômetros da costa. Nos dias seguintes, o Correio da Manhã noticiava

que o Para-sar havia sido convocado para participar, à paisana, de missões policiais

permanentes de repressão às agitações na Guanabara. Zuenir Ventura (2008,

p.187) relata que:

Começava a ser desvendado naquele início de mês um dos mais sinistros planos terroristas da nossa história contemporânea. Se tivesse tido sucesso, a operação provocaria não só a execução de personalidades políticas, mas também a morte de cerca de 100 mil habitantes do Rio, já que previa a explosão de um gasômetro no início da avenida Brasil, às 18 horas, isto é, na hora do rush, e a destruição da represa de Ribeirão das Lajes. A responsabilidade pelos atentados seria atribuída aos comunistas.

O plano da ala mais violenta dos militares só não foi bem sucedido porque

o capitão pára-quedista Sérgio Ricardo Miranda de Carvalho se opôs, tornando o

“Caso Para-sar” de conhecimento público. Além da descoberta desse plano, outro

fato causou indignação na ala extremista das Forças Armadas: por 216 votos contra

141, o Congresso Nacional decidiu não suspender a imunidade do deputado Márcio

 

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Moreira Alves, que havia feito um discurso2 conclamando a população a boicotar o

desfile de 7 de setembro e as mulheres, em especial, a recusarem-se a ter relações

com os militares, de modo a fazer com que os militares silenciosos, discordantes do

regime, se posicionassem, pondo fim à ditadura.

Era o que o setor “linha dura” do regime militar esperava para obrigar o

Presidente Costa e Silva a tomar medidas mais rígidas de combate à oposição e

finalmente, na sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, o Presidente assinou o Ato

Institucional nº. 5 (AI-5), em um momento que ficou conhecido como o “golpe dentro

do golpe”. Era a inauguração da segunda fase do regime ditatorial, o período de

maior violência e perseguição aos opositores do regime, também conhecido como

“anos de chumbo” (1969-1974).

Dentre suas disposições o Ato Institucional nº. 5 (BRASIL, 1968) previa:

a) o fechamento do Congresso Nacional por tempo indeterminado,

autorizando o Executivo a legislar em todas as matérias, em âmbito

federal, estadual e municipal;

b) a possibilidade de intervenção federal nos estados e municípios sem

limitações constitucionais;

c) a possibilidade de o Presidente suspender direitos políticos3 por 10

anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais;

d) a suspensão das garantias constitucionais da vitaliciedade,

inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções

por prazo certo4;

                                                            2 “[...] Vem aí o 7 de setembro. As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe , se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile. Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas. [...] Enquanto não se pronunciarem os silenciosos, todo e qualquer contato entre os civis e militares deve cessar, porque só assim conseguiremos fazer com que este país volte à democracia. Só assim conseguiremos fazer com que os silenciosos que não compactuam com os desmandos de seus chefes, sigam o magnífico exemplo dos 14 oficiais de Crateús que tiveram a coragem e a hombridade de, publicamente, se manifestarem contra um ato ilegal e arbitrário dos seus superiores.” (ALVES, 1968) 3 A suspensão dos direitos políticos incluía: a cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função, a suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais, a proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política e a aplicação das medidas de segurança de liberdade vigiada, proibição de freqüentar determinados lugares e domicílio determinado. Havia ainda a previsão de que o ato de suspensão dos direitos políticos poderia restringir ou proibir o exercício de quaisquer direitos públicos ou privados.

 

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e) a possibilidade de o Presidente decretar o Estado de Sítio e prorrogá-

lo;

f) a possibilidade de o Presidente decretar o confisco de bens por

enriquecimento ilícito;

g) a suspensão do habeas corpus nos casos de crimes políticos, contra a

segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia

popular e, por fim,

h) a exclusão da apreciação do Judiciário de todos os atos praticados de

acordo com o AI-5 e seus Atos Complementares, bem como seus

efeitos.

Além do fechamento do Congresso Nacional por um período superior a

dez meses, o AI-5 teve como conseqüências a prisão imediata de Carlos Lacerda e

Juscelino Kubitschek, a cassação de diversos mandatos políticos e um sem número

de pessoas presas, torturadas, em exílio forçado, mortas ou desaparecidas5. Streck

(2002, p. 355) aponta algumas das conseqüências deste Ato Institucional:

Com efeito, além das conseqüências funestas para a democracia, o Ato Institucional atingiu diretamente 1.577 cidadãos brasileiros: suspendeu 454 pessoas em cargos eletivos; aposentou 548 funcionários civis; reformou 241 militares; demitiu sumariamente 334 funcionários públicos, cassou 6 senadores, 110 deputados federais, 161 deputados estaduais, 22 prefeitos, 22 vice-prefeitos 22 vereadores, 3 ministros do Supremo Tribunal Federal, afastou 23 professores da USP, afastou 10 cientistas do Instituto Oswaldo Cruz, proibiu ou mutilou cerca de 500 filmes de curta metragem; proibiu ou mutilou aproximadamente 450 peças teatrais, proibiu ou mutilou mais de 100 revistas, proibiu ou mutilou mais de 500 letras de músicas, proibiu ou mutilou mais de 200 livros.

Se até aquele momento poderia se considerar o regime militar como

constitucional, certamente depois do AI-5 ficou mais que evidente a implantação de

um estado de exceção6 no país. O único membro do Conselho de Segurança

Nacional a votar contra o Ato Institucional nº. 5, o vice-presidente Pedro Aleixo

(1968), asseverou em seu voto que:

                                                                                                                                                                                               4 Isso garantia ao Presidente a prerrogativa de demitir, remover, aposentar ou por em disponibilidade quaisquer titulares dessas garantias ou empregados públicos, bem como de demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros de polícias militares. 5 Uma lista de mortos e desaparecidos em razão do regime militar encontra-se no sítio do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Vide: http://www.torturanuncamais-rj.org.br/ 6 O estado de exceção se caracteriza pela suspensão da ordem jurídica, com abolição da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário, atribuindo-se ao executivo o poder de promulgar decretos com força-de-lei. No estado de exceção, o direito “se divide em uma pura vigência sem aplicação (a forma da lei) e em uma aplicação sem vigência: a força-de-lei.” (AGAMBEN, 2004, p. 93) 

 

Page 21: Monografia Arnaldo concluida

20  

[...] da leitura que fiz do Ato Institucional, cheguei à sincera conclusão de que o que menos se faz nele é resguardar a Constituição, que no seu artigo 1º declara-me preservada. Eu estaria faltando um dever para comigo mesmo se não emitisse, com sinceridade, esta opinião. Porque, da Constituição, que, antes de tudo, é um instrumento de garantia de direitos da pessoa humana, de garantia de direitos políticos, não sobra, nos artigos posteriores, absolutamente nada que possa ser realmente apreciável como sendo uma caracterização do regime democrático. [...] Pelo Ato Institucional, o que me parece, adotado esse caminho, o que nós estamos é com uma aparente ressalva da existência dos vestígios de poderes constitucionais existentes em virtude da Constituição de 24 de janeiro de 1967, e instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura. Se é necessário fazê-lo, se esta é uma contingência da necessidade, então o problema se apresenta sob um outro aspecto. Mas, do ponto de vista jurídico, eu entendo que, realmente, o Ato Institucional elimina a própria Constituição.

Depois desse período de intensa repressão aos opositores do regime,

veio a terceira fase da ditadura militar, que ficou conhecida como o período da

abertura e teve seu início em 15 de março de 1974, com a posse do penúltimo

Presidente militar, o general Ernesto Geisel, que prometeu um processo de

“distensão lenta e gradual”. O governo militar sinalizou algumas demonstrações

nesse sentido, como a suspensão da censura à imprensa, em 1975 e a revogação

do AI-5, em 1978. As prisões, a tortura e o desaparecimento de opositores ao

regime, contudo, persistiam.

É preciso que se diga que a dita abertura não foi uma concessão dos

militares, mas fruto das condições econômicas e políticas que pressionavam a

ditadura durante todo o mandato de Geisel. No ano de 1974, a crise do petróleo,

iniciada no ano anterior, finalmente chegou ao Brasil, pondo fim ao que ficou

conhecido como “milagre econômico” do governo de Emílio Garrastazu Médici

(1969-1974). Em 1977, Jimmy Carter assumiu a Presidência dos Estados Unidos,

tendo como uma de suas bandeiras de campanha a defesa dos direitos humanos e

a represália às ditaduras militares do Cone Sul.

Em sua conhecida entrevista à Revista Playboy durante a sua campanha,

Carter (1976 apud GASPARI, 2004, p.367) afirmou que:

Quando Kissinger7 diz, como fez há pouco, que o Brasil tem um tipo de governo compatível com o nosso, bem, aí está o tipo de coisa que nós queremos mudar. O Brasil não tem um governo democrático. É uma

                                                            7 Henry Alfred Kissinger foi um diplomata americano com grande influência na política externa estadunidense no período entre 1969 e 1977.

 

Page 22: Monografia Arnaldo concluida

21  

ditadura militar. Em muitos aspectos é altamente repressiva para os presos políticos. Nosso governo deve corresponder ao caráter e aos princípios morais do povo americano e nossa política externa não pode contorná-los em troca de vantagens temporárias.

Era o claro sinal de que o maior aliado externo da ditadura não ia mais ser

conivente com as recorrentes práticas de violência e perseguição à oposição do

regime militar.

Na política interna, a ditadura militar também não passava por bons

momentos. Em novembro de 1974, durante as eleições para membros do Senado,

deputados estaduais e federais, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), único

partido da oposição, elegeu 16 senadores, 44% dos deputados federais e a maioria

dos deputados estaduais em 6 assembléias legislativas (incluindo a de São Paulo,

do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul), crescendo de maneira espantosa e

demonstrando o descontentamento da população com o regime militar (PARTIDO

DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO, 2009).

O governo militar percebeu que teria graves derrotas nas eleições

seguintes caso mantivesse a oposição aglutinada em torno de um único partido, e,

em 1979, simultaneamente ao processo de anistia, o bipartidarismo foi extinto no

Brasil. Isso explica, em parte, o porquê da abertura, ou mesmo da “concessão” da

anistia no país, conforme se verá adiante.

2.2 Histórico da Lei da anistia

O Brasil teve sua história marcada por várias concessões de anistia,

desde a fase colonial até a era republicana. Essas anistias, contudo, costumam ser

cercadas de polêmicas sobre sua legitimidade e legalidade.

A primeira anistia em solo brasileiro de que se tem notícia foi no ano de

1654, quando foram anistiados os nativos e portugueses que colaboraram com a

ocupação holandesa da capitania de Pernambuco.

Em setembro de 1822, D. Pedro I tratou de conceder anistia geral a todas

as opiniões políticas anteriores ao início do Império, com exceção dos que já

estivessem presos ou em processo. Já na era republicana, Juscelino Kubitschek

 

Page 23: Monografia Arnaldo concluida

22  

ficou conhecido pela grande utilização que fazia desse instituto para “apaziguar”

conflitos, em especial as revoltas dos militares, durante o seu governo.

A mais recente das anistias do país foi concedida pela Lei nº. 12.191, de

13 de janeiro de 2010, aos policiais e bombeiros militares de nove estados

federados que haviam sido punidos por participação em movimentos

reivindicatórios.8

Mas, sem dúvidas, a mais polêmica das anistias já concedidas no Brasil

foi a resultante da Lei nº. 6.683, de 28 de agosto de 1979, cuja análise é objeto do

presente trabalho. Tal anistia foi fruto de intensa agitação política desde o início do

regime militar. Danyelle Nilin Gonçalves (2009, p.273) relata que já “em 1964, o

escritor católico Alceu Amoroso de Lima (Tristão de Athayde), em um programa de

rádio, conclamava o presidente Marechal Castello Branco a anistiar os revoltosos”.

Contudo, somente na década de setenta é que o movimento pró-anistia

viria a se fortalecer. O grupo Mães de São Paulo deu origem, no ano de 1975, ao

Movimento Feminino pela Anistia e Liberdades Políticas, tendo as mulheres

desempenhado um papel fundamental na articulação de um movimento ainda mais

forte de luta pela anistia. Conforme reportagem de Medeiros (2004), Terezinha

Zerbini, uma das responsáveis pelo estabelecimento de comitês femininos pela

anistia ao longo do país e esposa de um general do Exército cassado pela ditadura,

relata que: “se a luta tivesse começado com homens, teria acabado logo. As

mulheres foram muito importantes, pois a ditadura pensava duas vezes antes de

reprimir donas de casa como eu...”.

O Comitê Brasileiro de Anistia só surgiu em 1978 e, suprimindo o caráter

de gênero que o movimento tinha até então, aglutinou vários setores da sociedade

brasileira e várias demandas, como o retorno à democracia, a transição política, a

libertação dos presos políticos e o retorno dos brasileiros exilados.

Fernando Gabeira (1979, p.11), ainda no exílio, relata que:

Não conheço em todo o período de militância na denúncia da ditadura brasileira no Exterior nenhuma palavra de ordem que tenha nos unido tanto quanto a Anistia. De repente, e pela primeira vez, sentávamos todos juntos: democratas liberais, cristãos, pessoas com tendências socialistas e mesmo comunistas. Isto porque achamos que o Partido Comunista tinha um importante papel a desempenhar na luta pela democracia e na luta pela

                                                            8 A referida lei mal foi publicada e já atraiu polêmica por ter anistiado as “infrações disciplinares conexas” aos crimes militares, em suposta invasão de competência dos Estados pela União.

 

Page 24: Monografia Arnaldo concluida

23  

Anistia e que de forma nenhuma deveríamos alijar do esforço comum uma força política que era favorável à democracia no Brasil.

Finalmente, em 27 de junho de 1979, o Presidente da República, João

Batista Figueiredo, enviou a Mensagem nº. 59/79 ao Congresso Nacional, em que

firmou entendimento de que era o tempo de se realizar a anistia, uma vez que esta

“reabre o campo da ação política, enseja o reencontro, reúne e congrega para a

construção do futuro e vem na hora certa.” (BRASIL, 1979a).

Com o país fragmentado pelas disputas de poder, João Batista Figueiredo

entendia ser esse o momento de restabelecer a união nacional através de uma

bandeira comum a todos: a anistia. A idéia do governo militar era que, com a anistia

e o fim do bipartidarismo, os políticos exilados retornariam ao país, dividindo e

enfraquecendo a oposição.

Contudo, mesmo que a idéia de uma anistia fosse comum aos militares e

a boa parte dos movimentos articulados à época, havia anistias diferentes em

disputa, contrárias em vários pontos, conforme se observa no quadro elaborado na

Convocatória para Ato Público pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita9, realizado em

08 de agosto de 1979, em São Paulo:

ANISTIA DO GOVERNO ANISTIA DO POVO

1. Não libertará todos os presos políticos nem trará de volta os exilados, pois exclui os que foram condenados pelos Tribunais Militares pelo que o governo acusa de "terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal"

1. Anistia deve alcançar a todos, porque muitos brasileiros pegaram em armas para lutar contra as torturas e os assassinatos praticados pelo governo, contra a miséria e o analfabetismo. Contra o TERRORISMO DA DITADURA.

2. Não devolve os direitos retirados arbitrariamente: a volta dos punidos ao serviço público (civil e militar) dependerá do juízo de uma comissão nomeada pelo próprio governo.

2. Anistia devolve automaticamente os direitos que foram retirados arbitrariamente tanto para os civis quanto para os militares. São bem conhecidas no passado essas "Comissões" que tem o poder de "desanistiar" os anistiados.

3. Sugere anistia aos torturadores.

3. Pede contas, ao governo, dos presos políticos, mortos e desaparecidos e punição para os torturadores.

4. Não devolve integralmente os direitos de nenhum dos anistiados pois continuam em vigor todas as leis da ditadura, como a Lei de Segurança Nacional, a lei de greve e a constituição feita pelos militares.

4. Anistia significa LIBERDADE, o fim da ditadura, o desmantelamento dos órgãos de repressão política. A liberdade de dizer, reunir, organizar, reivindicar e participar sem ser reprimido.

                                                            9 Quadro encontrado em http://www.fpabramo.org.br/conteudo/convocatoria-para-ato-publico-pela-anistia-ampla-geral-e-irrestrita. Acesso em: 28 abr. 2010.

 

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24  

Em resumo, a proposta de anistia apresentada pelo Comando Geral de

Anistia Ampla, Geral e Irrestrita tinha como princípios a revogação da Lei de

Segurança Nacional e o desmantelamento dos órgãos de repressão, a ampliação

dos efeitos àqueles que já tinham sido condenados, o restabelecimento integral das

pessoas demitidas aos seus empregos e a reintegração ao serviço público, bem

como, uma prestação de contas, por parte do governo, acerca dos presos políticos,

mortos e desaparecidos e a não-inclusão dos torturadores no rol dos anistiados.

Como se verá em capítulo posterior, essa proposta é a que mais se coaduna com a

chamada Justiça de Transição.

Já a proposta do governo, contida no projeto de lei assinado pelo

Presidente João Batista Figueiredo anistiava os torturadores e membros dos órgãos

repressores, através do obscuro conceito de “crimes conexos” (BRASIL, 1979b)10.

Além disso, não modificava a legislação repressora, como a Lei da Segurança

Nacional (até hoje em vigor), não se estendia aos que perderam o emprego e não

eram servidores públicos e trazia clara distinção de tratamento entre os “terroristas”

condenados e aqueles com processo em curso, sendo que somente os últimos

seriam anistiados. Isso fez o Presidente da Comissão mista do Congresso, Teotônio

Vilela (CONGRESSO NACIONAL, 1982, p. 450), afirmar que:

A discriminação é indefensável eticamente, politicamente e juridicamente. A justificativa de exclusão não convém, mas o projeto não exclui os que o regime entende responsáveis pelo terror. Beneficiou alguns para deixar de fora os condenados formalmente. Dois acusados pelo mesmo fato terão tratamento diametralmente oposto. O condenado seguirá na prisão. O que ainda não foi sentenciado recuperará os seus direitos e não responderá pelos atos praticados. Não há argumento lógico, nem princípio ético que justifique tão odiosa desigualdade.

Como parte da estratégia política, os parlamentares da oposição

decidiram apoiar o projeto de lei apresentado pelo Presidente da República, com a

perspectiva de propor as emendas e substitutivos necessários a uma anistia mais

ampla, geral e irrestrita o possível. Interessa observar que o texto substitutivo do

Movimento Democrático Brasileiro continha entre os seus princípios a rejeição

                                                            10 Art. 1º: [...] § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

 

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25  

explícita da reciprocidade da anistia11, que deveria ser ampla, geral e irrestrita, mas

somente para os atingidos pelo regime militar (GRECO, 2003, p. 282).

Contudo, todas as emendas e substitutivos apresentados pelos opositores

foram rejeitados e um texto substitutivo, dessa vez apresentado pelo relator do

projeto de lei, Ernani Satyro (deputado da Aliança Renovadora Nacional - ARENA),

trouxe um acréscimo de sete artigos ao texto original e deu mostras dos poucos

pontos em que o governo estava disposto a ceder.

Dentre esses pontos, Mezarobba (2003, p.39) relata que:

[...] o substitutivo estendeu o prazo de concessão do benefício até 15 de agosto de 1979, incluiu no art. 1º os crimes eleitorais e não só as ações punidas com base em Atos Institucionais e complementares, mas também as baseadas em “outros diplomas legais”, e garantiu aos dependentes de anistiado falecido o direito às vantagens que lhe seriam devidas. Além de prever a possibilidade de familiares de desaparecidos requererem uma declaração de ausência de pessoa, o substitutivo do deputado Satyro também concedeu anistia aos empregados de empresas privadas punidos por participação em greve ou outros movimentos reivindicatórios e estabeleceu que os anistiados inscritos em partidos políticos legalmente constituídos poderiam votar e ser votados.

Ao final, com o Congresso ocupado por mais de 700 soldados da polícia

da Aeronáutica e com mais de 1000 manifestantes na rampa, o projeto de anistia do

Movimento Democrático Brasileiro foi rejeitado com 209 votos contrários e 194 votos

a favor e a Emenda Djalma Marinho, de anistia ampla, geral e irrestrita, foi derrotada

por 206 votos contrários e 201 a favor. O texto substitutivo de Satyro, de interesse

do governo, foi aprovado, por pequena margem de votos e, no dia 28 de agosto de

1979, foi sancionada a Lei da anistia, sob o nº. 6.683 e com veto parcial no art. 1º,

sendo excluída do artigo a expressão “e outros diplomas legais”.

A redação do art. 1º da Lei da anistia (BRASIL, 1979b) ficou sendo a

seguinte:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

                                                            11 “Excetuam-se dos benefícios da anistia os atos de sevícia ou de tortura, de que tenha ou não resultado morte, praticados contra presos políticos.”  

 

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§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. § 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

Debaixo do manto dos “crimes conexos”, foi dada a anistia a todos os

representantes da ditadura que cometeram crimes de tortura, assassinato, seqüestro

e terrorismo. Além da crítica perene a essa auto-anistia12, os movimentos articulados

na luta pela anistia clamavam, ainda, por uma maior abrangência desta e pela sua

real aplicação, dado que até 1984 ainda havia pelo menos 17 presos políticos em

liberdade condicional e muitos funcionários públicos ainda não tinham sido

reintegrados ao serviço público. Mezarobba (2003, p.48) relata que:

Em novo levantamento, desta vez realizado pelo Movimento Feminista pela Anistia e Liberdade Democrática, contabilizava-se o numero de 11.434 pessoas que aguardavam os benefícios da lei 6.683. Os civis eram 4.730. A maioria, ou 4.691, ex-funcionários da Petrobras. A empresa demitira cerca de cinco mil empregados com base em leis de exceção, mas até aquele momento só havia anistiado 309. Desse total, apenas 14 tiveram seus empregos de volta; 295 foram aposentados. Entre os 117 bancários punidos, 67 conseguiram voltar aos seus empregos, 27 foram aposentados, oito viviam de pensões e 15 ainda aguardavam a anistia. A situação dos 36 radialistas punidos era parecida. Apenas 12 haviam sido reconduzidos aos seus empregos. Nas Forças Armadas, os não-anistiados somavam 6.704. Dos 407 oficiais punidos, 369 estavam na inatividade e 38 aguardavam algum beneficio. Dos quase sete mil praças atingidos. 34 voltaram à ativa e 380 estavam inativos. Os demais esperavam a anistia.

A pressão da sociedade por uma anistia que contemplasse mais pessoas

persistiu e, em 1985, a Emenda Constitucional nº. 26 (BRASIL, 1985) estendeu os

benefícios da anistia, garantindo as promoções aos servidores públicos civis e

militares punidos pela legislação de exceção, estivessem eles na ativa ou

aposentados13.

A Assembléia Constituinte de 1987 trouxe novamente à tona a discussão

sobre o alcance da anistia e, no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias (ADCT)14 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), a anistia

                                                            12 O conceito e a ligação da auto-anistia à Lei nº. 6683/79 serão abordados no capítulo seguinte. 13 Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares. [...] § 3º Aos servidores civis e militares serão concedidas as promoções, na aposentadoria ou na reserva, ao cargo, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade, previstos nas leis e regulamentos vigentes. 14 Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política,

 

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27  

política ganhou novo formato, com marco inicial em 18 de setembro de 1946,

previsão de reparação econômica aos atingidos pelos atos de exceção e sem a

menção à polêmica figura dos “crimes conexos”.

Entretanto, como observa Mezarobba (2003, p.119), “os progressos

ficaram bastante aquém do que desejavam a oposição e as vítimas do arbítrio” e

mais uma vez, “ficaria evidente que a temática estava circunscrita aos limites

estabelecidos pelas Forças Armadas”. Era a consolidação do já conhecido jargão da

“anistia possível”.

A discussão sobre o alcance da Lei da anistia aos crimes praticados pelos

apoiadores do regime militar nunca deixou de ser pautada, mas a partir do ano de

2008, tomou novo fôlego com a condenação cível, em primeira instância, do coronel

da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra. Em outubro de 2008, o juiz Gustavo

Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, exarou sentença em que

reconheceu a responsabilidade de Brilhante Ustra pela tortura praticada no

Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa

Interna de São Paulo (DOI-Codi) contra os ex-presos políticos Maria Amélia de

Almeida Teles, César Augusto Teles e Criméia Schmidt de Almeida15.

No mesmo mês, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil

(OAB) propôs a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 153, com

a intenção de obter do Supremo Tribunal Federal (STF) uma interpretação da Lei da

anistia conforme a Constituição, de modo a declarar, à luz dos seus preceitos

fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou

conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão

contra opositores políticos, durante o regime militar.

Ingressaram como Amici Curiae a Associação Juízes para a Democracia,

o Centro pela Justiça e o Direito Internacional, a Associação Brasileira de Anistiados

Políticos e a Associação Democrática e Nacionalista de Militares, todos favoráveis

ao provimento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 153.

                                                                                                                                                                                               por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos. 15 Processo de número 583.00.2005.202853, da 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo.

 

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Em recentíssima sessão, datada de 28 e 29 de abril de 2010, a Argüição

de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 153 foi rejeitada pelo Supremo

Tribunal Federal por 7 (sete) votos contra 2 (dois) 16 . Alguns dos argumentos

utilizados tanto favoravelmente quanto contrariamente ao seu provimento serão

abordados no decorrer dos capítulos seguintes.

                                                            

16 Votaram pelo seu provimento os ministros Ayres Britto e Ricardo Lewandowski. Os ministros Eros Grau (relator da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental), Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso votaram pelo seu improvimento.  

 

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29  

3 AS TENTAÇÕES DO ESQUECIMENTO: CONSTRUINDO NA AREIA Esquecimento! Fluido estranho, de ânsias, De negra majestade, Soluço nebuloso das Distâncias Enchendo a Eternidade!

Cruz e Sousa

O ano era 404 a.C. e, finda a Guerra do Peloponeso, a cidade-estado de

Esparta impôs aos atenienses um governo oligárquico conhecido como a Tirania dos

Trinta. Esse regime encontrou em Trasíbulo, general ateniense exilado em Tebas, o

seu principal opositor.

Trasíbulo, liderando a resistência ao golpe dos oligarcas, conseguiu

agrupar outros exilados e retomar o poder em Atenas, restaurando a democracia e

instaurando medidas de transição entre os regimes. Uma dessas medidas foi a lei,

votada em praça pública, com a aprovação da maioria dos atenienses, que

enunciava: "Você não evocará as palavras do passado", o que significou, em termos

práticos, o esquecimento dos atos praticados por todos os envolvidos na guerra civil,

apoiadores ou opositores aos trinta tiranos17.

Essa medida ficou conhecida com “amnestia”, termo grego que pode ser

entendido como “privação do lembrar-se” ou “privação da lembrança” e que deu

origem ao que conhecemos hoje como anistia. A idéia de anistia, desde seu

surgimento, portanto, esteve ligada ao esquecimento.

O direito ao esquecimento, ainda que não expressamente disposto na

Constituição ou na legislação infraconstitucional, é uma importante garantia

individual, ligada diretamente ao Princípio da Segurança Jurídica. Pode-se se dizer

que o esquecimento é pedra basilar da própria construção do Direito, tal a sua

importância. Nesse sentido, o jusfilósofo François Ost (2005, p.154) pontua que:

Presente no fundamento mesmo do direito, o esquecimento o acompanha igualmente na sua vida quotidiana, ritmando seus desenvolvimentos, escandindo suas idas e vindas. Contra a imagem dogmática da continuidade da regra (“um sol que nunca se põe”, escreve Jean Carbonier), é preciso admitir, de fato, eclipses da juridicidade, das baixas da pressão jurídica – administrando pausas de não-direito ou de menos direito.

Para o referido autor, tanto o esquecimento quanto a memória estão

presentes nas maneiras de o Direito lidar com o tempo enquanto fenômeno social,                                                             

17 Os atenienses deliberaram que os trinta tiranos não teriam seus atos abrangidos pela lei do esquecimento.

 

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instituindo-o e temporalizando-o, em uma relação recíproca: “o direito temporaliza,

ao passo que o tempo institui.” (OST, 2005, p.13), ou ainda:

o tempo não permanece exterior à matéria jurídica, como um simples quadro cronológico em cujo seio desenrolaria sua ação; do mesmo modo, o direito não se limita a impor ao calendário alguns prazos normativos, deixando para o restante que o tempo desenrole seu fio. (OST, 2005, p. 14)

Com isso, quer o autor afirmar que, diferentemente da visão positivista, o

papel principal do Direito é contribuir para a instituição do corpo social, sendo o

Direito um “discurso performativo, um tecido de ficções operatórias que redizem o

sentido e o valor da vida em sociedade” (OST, 2005, p.13). A função primordial do

Direito é instituir e essa instituição só se dá na relação simbiótica com o tempo.

Para Ost (2005, p. 47), “uma coletividade só é construída com base numa

memória compartilhada, e é ao direito que cabe instituí-la”. E ele o faz:

[...], reunindo e protegendo as informações relativas a um número considerável de atos e de fatos, contra os riscos do esquecimento, ele permite que a vida social se desenvolva na continuidade de uma memória comum, cujos dados são permanentemente acessíveis a todos.

O Direito tem o poder de ligar e desligar o tempo, criando ficções

operatórias que garantirão a manutenção da ordem na sociedade, instituindo o

passado através da certificação dos fatos acontecidos, da garantia da origem dos

títulos, das regras, das pessoas e das coisas, mas também vinculando/ligando o

futuro através das promessas, dos contratos, das leis e, por que não dizer, da

própria Constituição.

É preciso se ter a clareza de que não é permitida ao Direito a livre

disposição do passado e da tradição, mas ao contrário, o novo só é instituído com

base no que já existe, toda inovação pressupõe algo de indisponível com o qual lida

e elabora sua construção.

Toda lei, por mais inovadora que seja, pressupõe um conjunto de

contextos interpretativos que lhe preexistem e determinam, em certa medida, a sua

adequação ao ordenamento, ou seja, determinam se haverá um papel para essa lei

dentro da tradição jurídica já existente. François Ost (2005, p. 94) leciona serem três

esses contextos: a linguagem, o sistema jurídico preexistente e as comunidades

interpretativas especializadas. A linguagem envolve a nova lei de tal maneira, que

 

Page 32: Monografia Arnaldo concluida

31  

ainda que a lei possa transforma/criar novo sentido de uma expressão que utilize,

não é dado ao legislador o poder de se tornar “totalmente senhor, nem da sintaxe,

nem, do léxico da língua”; “o autor não pode escrever com total liberdade, um laço

poderoso o religa ao passado das tradições recebidas” (OST, 2005, p.94).

O sistema jurídico, por sua vez, é um espaço “saturado de noções, de

princípios e de processos prévios, à luz dos quais qualquer elemento novo será lido

e entendido” (OST, 2005, p. 95). Frise-se que esse filtro pelo qual passam os

elementos novos é muito mais forte na tradição jurídica que nas demais, posto que a

tradição jurídica, ao contrário das outras, é institucionalizada e explicitamente

normativa.

Já as comunidades interpretativas especializadas são os “destinatários

privilegiados da lei” (OST, 2005, p. 95): a administração, a jurisdição e a doutrina.

No momento atual, em que o Poder Judiciário é cada vez mais demandado e a

administração passa a ter um papel cada vez mais interpretativo/regulatório, é

patente a influência dessas comunidades na construção do Direito e na seleção do

que deve ou não ser integrado ao ordenamento jurídico. Ost (2005, p. 95) nos

ensina que:

Considerar a influência nobre destas autoridades interpretativas é, ao mesmo tempo, relativizar a distinção ainda clássica entre as operações de edição (obra do legislador) e de aplicação (obra dos intérpretes) da lei; é igualmente relativizar o falso corte entre momento de ruptura (o instante da produção legislativa) e momento de repetição (estágio posterior de aplicação da lei). Em caso de distinção ou de ruptura, observa-se, antes, um continuum: a lei é parcialmente escrita visando sua aplicação (ou seja, considerando simultaneamente rotinas administrativas e princípios previamente depreendidos pelos juízes e pela doutrina), ao passo que, ao contrário, a aplicação dos textos pelos intérpretes “subordinados” nunca é isenta de inventividade, suscetível de inspirar o legislador quando de uma futura reescrita do texto.

Da mesma maneira, a cada vez que o Direito determina qual versão do

passado que deve prevalecer nos autos, se a da vítima ou do acusado, por exemplo,

ele está reescrevendo a tradição jurídica e, ao mesmo tempo, preservando a

memória, ao determinar/perfazer uma verdade (ainda que restrita aos autos), e

selecionando o que deve ser esquecido.

Além dessa forma de esquecimento inerente a cada decisão judicial, há

outras formas de manifestação do esquecimento no ordenamento jurídico. São elas:

a prescrição, a decadência, a caducidade ou desuso, o perdão judicial, e a anistia.

 

Page 33: Monografia Arnaldo concluida

32  

Cumpre fazer referência ao conceito de anistia, dados os objetivos do presente

trabalho.

3.1 O conceito de anistia

O conceito de anistia pode ser encontrado com facilidade na doutrina. O

doutrinador Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 718) conceitua a anistia como o

“esquecimento jurídico do ilícito e tem por objeto fatos (não pessoas) definidos como

crimes, de regra, políticos, militares ou eleitorais, excluindo-se, normalmente, os

crimes comuns”.

Para José Afonso da Silva (2007, p. 896), a anistia é a “medida legislativa

ou constituinte pela qual se suprimem os efeitos e a sanção por delitos contra o

Estado, o que se conhece como crimes políticos”. Rogério Greco, por sua vez,

entende que, na anistia, “o Estado renuncia ao seu jus puniendi, perdoando a prática

de infrações que, normalmente têm cunho político.”

Como observado por Bitencourt (2008, p.718), há tipos diferentes de

anistia. A anistia prevista no Código Penal implica na extinção de punibilidade e são

apagados os efeitos da condenação, remanescendo, contudo, a obrigação de

indenizar. A anistia política, por sua vez, tem natureza constitucional (art. 48, inciso

VIII, da Constituição Federal de 1988, já sendo prevista no art. 8º, inciso XVI, da

Constituição de 1969), implicando, na prática, nos mesmos efeitos da anistia penal,

só que com respeito aos crimes políticos. Remígio (2009, p. 188) menciona que a

anistia política é comumente relacionada ao perdão, dado que impede a punição de

quem praticou crimes políticos, contudo, entende que, em verdade:

ela visa à solução de um conflito surgido em conseqüência de um momento de grave perturbação institucional, geralmente provocado pela deflagração de revoltas e insurreições no âmbito interno de um Estado.

Conforme visto anteriormente, foi exatamente o que aconteceu durante o

regime militar. A anistia foi a medida utilizada para por fim aos conflitos internos e

conduzir à “pacificação” política do país. A pergunta que se impõe é se essa

pacificação seria possível somente com a anistia e, em especial, se a auto-anistia

 

Page 34: Monografia Arnaldo concluida

33  

feita pelo governo através da idéia de “crimes conexos”, presente no texto da Lei n°.

6.683/79, não possibilitou a manutenção de crimes do Estado contra os civis, na

medida em que implicou no esquecimento dos delitos cometidos pelo regime militar.

A anistia política surge em um momento posterior aos fatos tidos como

ilícitos, apagando seus rastros do corpo político, como se estes nunca tivessem

existido. Daí a anistia ser freqüentemente associada com cálculos de interesses

políticos e com a impunidade dos que cometeram atrocidades enquanto ocupavam

os cargos públicos.

Mas não são somente os juristas que estudam o conceito e a função da

anistia. Os filósofos também têm muito a dizer sobre o referido instituto. Paul Ricoeur

(2008, p. 195) diz que a anistia política não se estende somente à proibição de toda

e qualquer ação em juízo, “portanto à proibição de todo e qualquer processo movido

a criminosos”, mas que a isso se soma “a proibição de mencionar os fatos com sua

qualificação criminal.”

A anistia reescreve o passado, impedindo não só a propositura de ação

penal, mas também a própria menção aos atos praticados, relacionando com seu

tipo penal.

Para Ost (2005, p.172), a anistia se classifica em dois tipos, a depender

dos seus efeitos: menor e maior. A anistia menor, ou anistia das penas, interviria

após a condenação, interrompendo a execução das penas e apagando a

condenação. Para ele, esse tipo de anistia paga o seu tributo à memória, na medida

em que “pelo menos o processo ocorreu no seu tempo”, tendo sido estabelecida a

lide e inclusive havido a condenação, cumprindo assim o Estado o papel de terceiro

que intervém, pondo um fim à situação de hybris no corpo político.

Aqui há a real possibilidade do perdão (figura comumente ligada à

anistia), vez que o perdão só é possível onde há acusação, condenação e castigo

(mesmo que este tenha sido apagado), ou seja, só há perdão onde há

reconhecimento dos papéis e responsabilidades de cada um na comunidade e no

conflito em questão.

Não por acaso, essa posição de terceiro, assumida pelo Estado, é

essencial no modo como o Direito atribui esses papéis, instaurando a separação

entre a violência/vingança e a justiça, ou ainda, na própria possibilidade de

realização da justiça e, conseqüentemente, do perdão. A justiça só se estabelece

 

Page 35: Monografia Arnaldo concluida

34  

em uma relação de distanciamento com o outro, mediada pela instituição. O juiz18

representa figura-chave nesse caso, impondo-se como terceiro na lide, com

autoridade reconhecida pelas partes, por sua referência à lei (RICOEUR, 2008, p.8).

A anistia maior, por sua vez, diz respeito à anistia dos fatos, e extingüe a

possibilidade de se entrar com a ação penal, desligando o passado de forma a fazer

com que os fatos percam seu caráter de crimes. Nesse ponto, “o efeito do

desempenho jurídico atinge o seu ápice: agimos como se o mal não tivesse ocorrido;

o passado é reescrito e o silêncio é imposto à memória.” (OST, 2005, p.172).

Pela análise do texto da Lei n°. 6.683/79, percebe-se que se tratou de

uma anistia “maior” ou anistia dos fatos, dado que esta não se estendeu aos que já

estavam condenados, os chamados “terroristas”, aqueles que cometeram crimes

comuns como assaltos e seqüestros e que já tinham respondido aos processos

penais. Quando da Mensagem n°. 59/79 (BRASIL, 1979a), dirigida ao Congresso

Nacional, o Presidente João Batista Figueiredo foi categórico em afirmar que: “A

anistia tem o sentido de reintegrar o cidadão na militância política e o terrorista não

foi e não é um político”. Dessa forma, “não é abrangido quem foi condenado pela

Justiça por crime que não é estritamente político”. A explicação dada pelo

Presidente (BRASIL, 1979a), é que o terrorista:

não se volta contra o Governo, o regime, ou mesmo contra o Estado. Sua ação é contra a humanidade e, por isso, repelida pela comunidade universal, que sanciona, como indispensáveis, leis repressivas de que se valem países da mais alta formação democrática.

Nesse trecho da mensagem dirigida ao Congresso, fica clara a idéia que

o governo militar tinha do “inimigo interno” e que é subjacente ao discurso de que a

ditadura foi um “mal necessário”, motivo pelo qual, no entendimento dos militares, a

anistia deveria ser estendida aos representantes do regime militar, como passo

necessário à pacificação nacional. O que se passará a analisar são quais os efeitos

dessa medida.

                                                            18 O papel de terceiro assumido pelo juiz pode ser situado em três instâncias distintas: a) o Estado, detentor da violência legítima, em contraposição à sociedade civil; b) a instituição judiciária, detentora da jurisdição, em contraposição aos outros poderes estatais; c) a figura humana do juiz como terceiro, nem muito próximo nem muito distante dos dramas humanos em debate na lide. (RICOEUR, 2008, p.185)

 

Page 36: Monografia Arnaldo concluida

35  

3.2 Anistia e Esquecimento

Que a anistia tem relação com o esquecimento, já se sabe. Mas de que

tipo de esquecimento se está falando quando se trata da anistia trazida pela Lei nº.

6.683/79? Quais as conseqüências desse esquecimento para a comunidade

política?

Paul Ricoeur (2008, p. 195) entende que a anistia é uma “verdadeira

amnésia institucional”, comparando-a com a tentativa de apagar “a mancha de

sangue nas mãos de Lady Macbeth”. Diz ele:

O que se tem em vista? Sem dúvida alguma, a reconciliação nacional. Nesse aspecto, é perfeitamente legítimo reparar pelo esquecimento as lacerações do corpo social. Mas pode ser preocupante o preço que se paga por essa reafirmação (que chamei de mágica e desesperada) do caráter indivisível do poder soberano.

Para esse autor, o preço a ser pago pela anistia é que “todos os delitos do

esquecimento estão contidos nessa pretensão incrível a apagar todos os vestígios

das discórdias públicas.” (RICOEUR, 2008, p.195). A anistia se coloca assim, como

contrária ao perdão, na medida em que este exige memória e aquela é um

esquecimento forçado dos conflitos em nome de um “apaziguamento” da sociedade.

François Ost (2005, p. 173), em análise dessa passagem do texto de Ricoeur,

enumera dentre esses “delitos do esquecimento” o enorme “risco de banalizar o

crime ou ainda neutralizar todos os valores, bons ou maus, colocando-os lado a lado

numa medida comum de clemência, como quando se anistia os antigos opositores

para melhor anistiar os antigos opressores”. Foi essa modalidade de esquecimento

que norteou a Lei nº. 6.683/79.

Os defensores da anistia brasileira advogam uma perigosa e inexistente

sinonímia entre a anistia e o perdão, conforme se observou no julgamento da

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 153, quando em seu

voto, o Presidente do STF, Cezar Peluso (BRASIL, 2010a), afirmou que:

Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver.

 

Page 37: Monografia Arnaldo concluida

36  

Diante disso, se faz fundamental para a presente discussão asseverar a

diferença feita por Ricoeur entre a anistia e o perdão, representando a primeira

apenas uma “caricatura de perdão” (RICOEUR, 2007, p.495) e diretamente ligada ao

esquecimento, enquanto o último nada tem a ver com o esquecimento, mas sim com

a memória: seu projeto é de “anular a dívida” e é incompatível com o de anular a

memória (RICOEUR, 2008, p.196). As possibilidades de perdão através das anistias

e outras medidas de Justiça de Transição serão mais bem abordadas nos próximos

capítulos do presente trabalho. Voltemos, pois, às relações entre a anistia e o

esquecimento.

O esquecimento tem importante papel a desempenhar na concretização

do Direito e nem toda figura do esquecimento (e nem toda anistia) é perigosa ou

parcial. Há o que Ost (2005, p.161) chama de esquecimentos-pacificação ou

apaziguamento. Citam-se, como exemplos, as anistias periódicas utilizadas como

instrumento de política penitenciária:

Reduzindo a intervalos regulares a superpopulação das prisões, o sistema “se purga” ao esquecer; ele tenta, assim, escapar à paralisia que o espreita e reduz as tensões no interior do universo carcerário; por outro lado, subtraindo determinadas infrações ao benefício da medida de clemência, o governo assinala as prioridades da política penal que pretende seguir dali pra frente. (OST, 2005, p. 172)

Diante do importante papel desempenhado pelo esquecimento e pelas

próprias anistias, como se pode avaliar se uma anistia serve a um esquecimento

forçado (sem pacificação, portanto) ou a uma reconciliação nacional? Isso só pode

ser avaliado diante das conjunturas políticas particulares e em relação ao conjunto

de elementos do contexto em que a anistia foi gerada. Assim, nos diz Ost (2005, p.

175), “é certo que a questão do retorno à democracia e da punição dos culpados

não se apresentou nos mesmos termos na Europa Ocidental depois da Segunda

Guerra Mundial, e na Europa Oriental, depois da cortina de ferro”, ou na América

Latina depois das ditaduras militares, podemos acrescentar.

Assim, pode-se observar que a Lei da anistia, desde sua construção,

pode ser ligada a outras duas das categorias de esquecimento trabalhadas por

François Ost: o esquecimento-recalque e o esquecimento-falsário. O primeiro é

ligado à idéia de história enquanto desfile dos vitoriosos, enquanto triunfo dos

vencedores. Diz ele que os esquecimentos-recalque são aqueles:

 

Page 38: Monografia Arnaldo concluida

37  

através dos quais se visam esses fenômenos de amnésia coletiva, que dizem respeito aos vencedores em relação à sorte que suas conquistas, guerras, cruzadas e outros djihads impuseram aos vencidos, vítimas anônimas enviadas para as masmorras da história; esquecimento dos massacres, genocídios, crimes contra a humanidade, que acarreta hoje o sobressalto da imprescritibilidade. (OST, 2005, p.162)

Para o autor, essa espécie de esquecimento visa a apagar do corpo

social os flagelos que são impostos aos vencidos no decorrer da história. De acordo

com o que vimos anteriormente, o Direito tem papel fundamental na instituição do

corpo social e na construção da sua história. Há, aqui, uma ligação com o que

Foucault (1999, p.85) designa de “discurso histórico de tipo romano”, ou seja, um

discurso histórico que, narrando a história dos reis, dos soberanos ou de suas

vitórias, vincula juridicamente os homens ao poder “mediante a continuidade da lei,

que se faz aparecer no interior desse poder e em seu funcionamento” (FOUCAULT,

1999, p. 76).

A construção do esquecimento dos crimes contra a humanidade

praticados pelo Estado brasileiro durante o regime militar sob a desculpa da

“pacificação social” visa precisamente a essa vinculação ao poder e acaba por

recalcar o sofrimento das vítimas, retirando-os do espaço público e relegando as

suas histórias individuais à clandestinidade, à “psicologização” e “familiarização” das

relações pessoais, criando “bolhas” em que as vítimas do regime estariam

envolvidas (MOURÃO; JORGE; FRANCISCO, 2002, p. 55). Isso é o mesmo que

dizer que há uma privatização das memórias individuais, na medida em que as

instâncias oficiais não reconhecem essas memórias como legítimas e não permitem

que elas adentrem ao espaço público e disputem seu lugar na história oficial.

Observa-se que esse esquecimento forjado com a Lei da anistia só veio a agravar o

processo de privatização da vida e esvaziamento do espaço público a que os

brasileiros já estavam/estão sujeitos com a crise do político neste fim da

modernidade.

Para Mourão, Jorge e Francisco (2002, p. 55):

apagar partes da história ou reescrevê-las sob os ditames impostos pelas versões oficiais não seria apenas um acordo de cavalheiros sem revanchismos. Seria estar conivente com o exercício cotidiano e contemporâneo de poder de um status quo que visa o esquecimento como impedimento da memória.

 

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38  

Nesse mesmo sentido, entende Greco (2003, p. 364), para quem o

Estado brasileiro pós-64 assumiu o papel de monopolizador da condução e da

produção da história através de uma estratégia do esquecimento, um método de

governo que segue a mesma lógica da utilização da tortura: “como parte integrante

do projeto político de desmonte radical da esfera pública e sujeição da sociedade,

logo, instrumento de interdição do exercício da política enquanto tal.”

Para essa autora, o controle da memória é/foi tratado como questão de

Estado, “do qual a lei 6.683/79 é a mais completa representação positivada”

(GRECO, 2003, p. 364). Esse controle constituiria em:

[...] um dos mais poderosos componentes entre aqueles que reafirmam a disposição totalitária do Estado de Segurança Nacional. Seu dispositivo operacional é a produção do silêncio a partir da lógica do generoso consenso, cujo núcleo é a tríplice equação controle/compromisso/ concessão, articulada a partir da institucionalização do grande repertório de meios de coerção levada a cabo pelo projeto de normalização defeituosa do regime, o mesmo que forjou a mencionada longa transição ainda em andamento. (GRECO, 2003, p. 364)

Conforme nos ensina Foucault (1999, p.204), “a história não é

simplesmente um analisador ou um decifrador das forças, é um modificador”. Isso

implica dizer que se “ter razão na ordem do saber histórico”, ou ainda, “dizer a

verdade da história” é “ocupar uma posição estratégica decisiva”. Pode-se dizer que

quem diz o Direito, diz a história e que toda condução do processo de construção da

Lei da anistia, por parte do governo, e a inclusão dos representantes do regime

militar entre os anistiados foi uma medida de construção dessa história de recalque

em que até hoje parte do envolvidos nega a existência da tortura durante o regime

ou invoca a anistia como forma de não ter que voltar a esse assunto.

A outra espécie de esquecimento a que a anistia pode ser ligada é o

esquecimento-falsário, que, para Ost (2005, p.161), representa as “mil e uma formas

de mentiras piedosas da história oficial para legitimar um regime ou reforçar uma

ideologia, trabalhando à vontade com a simples verdade dos fatos”. Ele cita como

exemplo a história do Japão, em que há o dogma fundador de que o imperador não

conheceu nem a abdicação forçada e nem a substituição desde que o país foi criado

pelos deuses, postulado que só se mantém, diz ele, “ao preço de acumular

esquecimentos e ‘contraverdades’” (OST, 2005, p.161).

 

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39  

O processo de construção da anistia recíproca teve esses efeitos de

falseamento da história e dos papéis representados pela sociedade e, em especial,

pelos militantes, durante o regime militar. É o que Reis Filho (2001, p.136-137)

demonstra:

a chamada sociedade civil — no caso do Brasil, a sociedade que conta, ou seja, a situada nos estratos superiores da pirâmide social, e que acompanhava os debates — não pareceu incomodada com os deslocamentos de sentido e com os resultados obtidos com a Lei da Anistia, [...]. Ao contrário, houve júbilo, o que é próprio das grandes conciliações. [...] a sociedade, reconhecendo-se essencialmente comprometida com os valores democráticos, se auto-absolvia de qualquer transação com a ditadura. [...] A ditadura foi considerada corpo estranho. Quanto à tortura, o que tem uma sociedade democrática a ver com torturas praticadas no âmbito de uma ditadura que já se foi? [...] A sociedade brasileira não só resistira à ditadura, mas a vencera. Difícil imaginar poção melhor para revigorar a auto-estima. [...] a grande maioria dos exilados e de ex-presos compartilhou estas tendências - ativa ou passivamente, pouco importa. Só uma minoria, acusada de sectarismo e de revanchismo, permaneceu insatisfeita, mas se encontrou totalmente isolada. A sociedade virou-lhe as costas.

Com isso, a diferença entre aqueles que lutavam pela revolução e os que

visavam à restituição da democracia sumiu, assim como foi apagado o rastro do

apoio dado ao regime militar por várias camadas da sociedade e, mais que isso, foi

construída a idéia de que a sociedade resistira à ditadura e a vencera; por fim, a

lembrança de que a tortura era/é prática cotidiana das atividades policiais foi

relegada aos porões da ditadura.

Outro falseamento, talvez o maior, foi o de que a anistia surgiu em um

tom conciliatório e de que foi produto de intensa discussão no seio da sociedade,

com a Lei nº. 6.683/79 representando o produto final desses debates. Esse

falseamento é observado, por exemplo, no voto do ministro Eros Grau, relator da

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 153, quando declara que

“Toda a gente que conhece nossa História sabe que esse acordo político existiu,

resultando no texto da Lei n. 6.683/79” (BRASIL, 2010b). Também se observa o

mesmo falseamento no voto da ministra Cármen Lúcia, no mesmo julgamento:

Não se pode negar que a anistia brasileira, concedida na forma da Lei n. 6683/79, resultou de uma pressão social, em especial dos principais setores atuantes da sociedade civil, como intelectuais, estudantes, sindicatos, e foi objeto de amplo debate e de manifestações expressas e específicas das principais entidades e personalidades então atores do processo da chamada “abertura”. Dentre estas entidades destacou-se o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, cujo acesso ao texto que viria

 

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a se tornar a Lei n.6683/79, para análise e deliberação sobre a sua posição em relação a ele, foi prioritário, como antes acentuado. O partido então tido por oposição ao governo, MDB, aguardou a manifestação da entidade para se posicionar sobre o texto e sobre ele votar, tendo sido contrários, na votação, apenas quatro congressistas. (BRASIL, 2010c)

Conforme esboçado no capítulo anterior, o processo de construção da Lei

da anistia não foi nada pacífico e não teve esse caráter de acordo ou conciliação,

permanecendo o texto proposto pelo governo, mesmo com forte resistência da

oposição e com votação apertada.

3.2.1 O conceito de auto-anistia

A Lei da anistia, tal qual planejada pelos militares, implicou em uma

medida recíproca de esquecimento, como forma de melhor garantir a impunidade

dos seus próprios crimes, através do fenômeno conhecido com auto-anistia. A auto-

anistia consiste no fato de “o Estado liberar-se, a si mesmo ou a seus agentes, da

responsabilidade por delitos cometidos contra os particulares, especialmente

caracterizados como violações dos direitos humanos.” (SILVA, 2007, p.897) e é

condenada pela comunidade internacional.

Em seu voto no julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito

Fundamental nº. 153 pelo STF, o ministro Celso de Mello (BRASIL, 2010d)

reconheceu a condenação da Corte Interamericana de Direitos humanos às leis de

auto-anistia, afirmando que:

a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos julgamentos – como aqueles proferidos, p. ex., nos casos contra o Peru (“Barrios Altos”, em 2001, e “Loayza Tamayo”, em 1998) e contra o Chile (“Almonacid Arellano e outros”, em 2006) -, proclamou a absoluta incompatibilidade, com os princípios consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos, das leis nacionais que concederam anistia, unicamente, a agentes estatais, as denominadas “leis de auto-anistia”. (grifos no original)

Contudo, apesar desse reconhecimento e de a anistia trazida pela Lei nº.

6.683/79 poder ser facilmente enquadrada como uma auto-anistia, o referido

ministro demonstrou ser expressamente contrário a esse posicionamento, por

 

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41  

entender que a referida lei teve caráter bilateral ou recíproco: anistiou os

torturadores, mas também anistiou os opositores do regime (BRASIL, 2010d).

Tal entendimento é completamente equivocado. Isso porque, em primeiro

lugar, a bilateralidade não impede a caracterização da auto-anistia; pelo contrário, a

bilateralidade é reconhecimento, pelo Estado, da própria torpeza: se anistia os

opositores para melhor se anistiar os próprios crimes. Em segundo lugar, tal

entendimento desconsidera que, salvo o caso peruano, as outras leis de anistia pós-

ditadura na América Latina foram tão recíprocas/bilaterais quanto a Lei nº. 6.683/79

e, mesmo assim, foram consideradas como leis de “auto-anistia”. É o que se observa

em rápida análise das concessões de anistia no Chile e na Argentina.

No Chile, a ditadura militar durou de 1973 a 1990 e, no ano de 1978, o

então Presidente do país, general Augusto Pinochet, aprovou o Decreto-Lei nº.

2.191 (CHILE, 1978), concedendo anistia a todos aqueles que, na qualidade de

autores, cúmplices ou encobridores, praticaram atos criminosos durante a vigência

do estado de sítio (no período entre 11 de setembro de 1973 e 10 de março de

1978).

Diz o art. 1º do referido Decreto-Lei (CHILE, 1978, tradução nossa):

Art. 1º. Concede-se anistia a todas as pessoas que, na qualidade de autores, cúmplices ou encobridores tenham cometido atos criminosos, durante a vigência da situação de Estado de Sítio, compreendida entre 11 de setembro de 1973 e 10 de março de 1978, sempre que não estiverem atualmente submetidas a processo ou condenadas. 19

No julgamento do caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile, em

setembro de 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos caracterizou o

referido decreto-lei como uma auto-anistia, tão simplesmente por ser medida do

próprio regime militar para impedir o julgamento de seus crimes. É o que se

depreende de parte da sentença do caso, transcrita abaixo:

Na presente Sentença, a Corte corretamente caracterizou o referido Decreto-Lei nº. 2191 como de auto-anistia, ditado pelo “próprio regime militar, para impedir a ação da justiça, principalmente em seus próprios crimes”, perpetrados durante o estado de sítio no período entre 11.09.1973

                                                            19 Artículo 1°- Concédese amnistía a todas las personas que, en calidad de autores, cómplices o encubridores hayan incurrido en hechos delictuosos, durante la vigencia de la situación de Estado de Sitio, comprendida entre el 11 de Septiembre de 1973 y el 10 de Marzo de 1978, siempre que no se encuentren actualmente sometidas a proceso o condenadas.  

 

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42  

e 10.03.1978. (Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2006 tradução nossa)20

Na Argentina, por sua vez, a ditadura militar durou de 1976 a 1983, tendo

a anistia se dado em 1983, através da Lei nº. 22.924/83 (ARGENTINA, 1983a),

conhecida como Lei da Pacificação Nacional. Tal lei declarou extintas as ações

penais tanto dos delitos cometidos com motivação ou finalidade terrorista ou

subversiva, quanto os delitos cometidos para impedir ou por fim às atividades

terroristas. É clara a bilateralidade dessa lei, conforme se observa em seu art. 1º

(ARGENTINA, 1983a, tradução nossa), abaixo transcrito:

Art.1º. Declaram-se extintas as ações penais decorrentes dos delitos cometidos com motivação ou finalidade terrorista ou subversiva, desde 25 de maio de 1973 até 17 de junho de 1982. Os benefícios outorgados por esta lei se estendem, também, a todos os atos de natureza penal praticados durante ou em conexão com o desenvolvimento de ação dirigidas para prevenir, evitar ou por fim às referidas atividades terroristas ou subversivas, qualquer que tenha sido sua natureza ou bem jurídico lesionado. Os efeitos dessa lei alcançam os autores, partícipes, instigadores, cúmplices ou encobridores e compreende os delitos comuns conexos e os delitos militares conexos.21

A Lei da Pacificação Nacional foi derrogada, ainda no mesmo ano, pela

Lei nº. 23.040 (ARGENTINA, 1983b), precisamente por ser uma lei de auto-anistia.

O tipo de esquecimento trazido pelas medidas de auto-anistia é condenado pela

comunidade internacional, ainda mais quando esse esquecimento tem relação direta

com crimes cometidos contra a humanidade e não objetiva o bem comum. É o que

declarou a Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do caso

Almonacid Arellano y otros Vs. Chile (Corte Interamericana de Direitos Humanos,

2006):

As auto-anistias não são verdadeiras leis, porque desprovidas do necessário caráter genérico destas, da Idéia de Direito que as inspira (essencial inclusive para a segurança jurídica), e de sua busca pelo bem

                                                            20 En la presente Sentencia, la Corte correctamente caracterizó el referido Decreto Ley No. 2191 como de autoamnistía, dictado por "el propio régimen militar, para sustraer de La acción de la justicia principalmente sus propios crímenes", perpetrados durante el estado de sitio entre 11.09.1973 y 10.03.1978 (párrs. 119 y 81.10). 21 Declárense extinguidas las acciones penales emergentes de los delitos cometidos con motivación o finalidad terrorista o subversiva, desde el 25 de mayo de 1973 hasta el 17 de junio de 1982. Los beneficios otorgados por esta ley se extienden, asimismo, a todos los hechos de naturaleza penal realizados en ocasión o con motivo del desarrollo de acciones dirigidas a prevenir, conjurar o poner fin a las referidas actividades terroristas o subversivas, cualquiera hubiera sido su naturaleza o el bien jurídico lesionado.

 

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comum. Nem mesmo buscam a organização ou regulamentação das relações sociais para a realização do bem comum. Tudo que pretendem é retirar da justiça determinados fatos, encobrir violações graves de direitos e assegurar a impunidade de alguns. Não satisfazem os mínimos requisitos de leis, pelo contrário, são aberrações antijurídicas. (tradução nossa)22

Da mesma maneira, no caso Barrios Altos (Corte Interamericana de

Direitos Humanos, 2001):

[...] são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e sanção dos responsáveis por violações graves de direitos humanos tais como a tortura, as execuções sumárias, extralegais ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. (tradução nossa)23

No caso brasileiro, há quem defenda que o art. 8º do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), por

não tratar dos crimes conexos, não contemplou a auto-anistia. É o que entende José

Afonso da Silva (2007, p. 897), para quem:

Isso está claro no caput e nos parágrafos do artigo. Vale dizer: os agentes estatais que reprimiram, mataram, torturaram e deram sumiço a pessoas não foram beneficiados, nem poderiam sê-lo, não apenas por caracterizar-se ilegítima auto-anistia, mas, sobretudo, porque a própria Constituição tem como “insuscetível de graça ou anistia a prática da tortura”, reputada, além disso, crime hediondo (art. 5º, XLIII).24

Os limites da auto-anistia nos casos de crime contra a humanidade

voltarão a ser tratados no próximo capítulo. Cumpre ainda fazer referência a outros

institutos jurídicos ligados ao esquecimento e que se fazem presentes na discussão                                                             

22 Las autoamnistías no son verdaderas leyes, por cuanto desprovistas del necesario carácter genérico de éstas, de la idea del Derecho que las inspira (esencial inclusive para la seguridad jurídica), y de su búsqueda del bien común. Ni siquiera buscan la organización o reglamentación de lãs relaciones sociales para la realización del bien común. Todo lo que pretenden es substraer de la justicia determinados hechos, encubrir violaciones graves de derechos, y asegurar la impunidad de algunos. No satisfacen los mínimos requisitos de leyes, todo lo contrario, son aberraciones antijurídicas. 23 [...] son inadmisibles las disposiciones de amnistía, las disposiciones de prescripción y el establecimiento de excluyentes de responsabilidad que pretendan impedir la investigación y sanción de los responsables de las violaciones graves de los derechos humanos tales como la tortura, las ejecuciones sumarias, extralegales o arbitrarias y las desapariciones forzadas, todas ellas prohibidas por contravenir derechos inderogables reconocidos por el Derecho Internacional de los Derechos Humanos.  24 Sobre essa discussão, ver monografia de Cristhiane Nery Gomes, defendida no Curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão: GOMES, Cristhiane Nery. A interpretação conforme a Constituição da Lei nº. 6683 de 28 de agosto de 1979 – Lei da Anistia. Monografia (Graduação) – Curso de Direito. Universidade Federal do Maranhão, São Luís, MA, 2009.

 

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44  

acerca da aplicabilidade da anistia aos crimes praticados pelos agentes do regime

militar. São eles: a medida de extinção de punibilidade conhecida como prescrição e

o princípio da anterioridade da lei penal.

3.2.2 O conceito de prescrição

Dentro da presente discussão, há os que defendem que, mesmo que se

diga que a Lei da anistia não se aplica aos crimes cometidos pelos apoiadores do

regime militar, os crimes praticados durante esse período estariam prescritos, dado

terem se passado cerca de vinte e cinco anos do fim da ditadura25, sendo que no

Brasil o prazo prescricional máximo é de vinte anos.

Sobre o assunto, diz Vianna (2009):

Vê-se, pois, que não há como negar vigência ao art.109 do Código Penal. As torturas praticadas durante a ditadura militar estão inevitavelmente prescritas, pois mesmo que uma lei ou um tratado internacional posterior venha a considerar a tortura crime imprescritível em nosso país, a nova norma não poderá retroagir em prejuízo dos acusados.

O referido doutrinador evoca tanto o instituto da prescrição quanto o

princípio da irretroatividade da lei penal para dizer que os atos de tortura praticados

pelos agentes da ditadura militar não são passíveis de condenação, mesmo que se

afaste a aplicação da Lei da anistia a esses agentes.

Veja-se que, mesmo que Vianna mencione apenas os crimes de tortura, o

argumento da prescrição pode ser estendido a todos os crimes praticados pelos

agentes da ditadura militar até o ano de 1985.

A prescrição é uma causa extintiva da punibilidade pelo decurso do

tempo, sendo prevista no art. 107, IV, do Código Penal e regulada pelos arts. 109 a

119 do mesmo diploma (BRASIL, 1940). Sobre a prescrição, Rogério Greco (2007,

p.729) leciona que:

[...] poderíamos conceituar a prescrição como o instituto jurídico mediante o qual o Estado, por não ter tido capacidade de fazer valer o seu direito de

                                                            25 Por todos, Túlio Vianna (2009).

 

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punir em determinado espaço de tempo previsto pela lei, faz com que corra a extinção da punibilidade.

Para Noronha (1991, p. 347), o instituto da prescrição se justifica na

demora do Estado em promover a ação penal no tempo estabelecido em lei. Diz ele

que:

[...] não se pode admitir que alguém fique eternamente sob ameaça da ação penal, ou sujeito indefinidamente aos seus efeitos, antes de ser proferida sentença, ou reconhecida sua culpa (em sentido amplo). Seria o vexame sem fim, a situação interminável de suspeita contra o imputado, acarretando-lhe males e prejuízos, quando, entretanto, a justiça ainda não se pronunciou em definitivo, acrescentando-se, como já se falou, que o pronunciamento tardio longe estará, em regra, de corresponder à verdade do fato e ao ideal de justiça. (NORONHA, 1991, p. 347)

Embora ambas sejam formas jurídicas de esquecimento, a prescrição, ao

contrário da anistia, não levanta tantos questionamentos acerca da sua aplicação,

tendo em vista ser medida geral e abstrata, com edição anterior ao cometimento do

crime, não sendo, portanto, uma medida de ocasião.

Contudo, sua aplicação com relação aos crimes praticados pelos agentes

da ditadura militar deve ser vista não somente à luz do Direito interno, mas também

à luz do Direito Internacional, que estabelece a imprescritibilidade dos crimes contra

a humanidade, dentre os quais se enquadram o assassinato, a tortura, a

perseguição de grupo político e o desaparecimento forçado de pessoas, quando

praticados como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma

população civil. Outro ponto a ser destacado é que os casos de desaparecimento

forçado podem ser considerados como crimes permanentes, aqueles cuja

consumação se prolonga no tempo, impedindo o início do prazo prescricional, dado

que este só se dá no momento da consumação. Essas relações serão mais bem

analisadas no próximo capítulo.

3.2.3 O princípio da anterioridade da lei penal

Conforme mencionado anteriormente, o princípio da anterioridade da lei

penal também é invocado para justificar a impossibilidade de se punir os atos de

 

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tortura praticados pelos agentes da ditadura militar. A utilização desse argumento se

dá porque o crime de tortura só foi tipificado no país com a Lei nº. 9.455, de sete de

abril de 199726 (BRASIL, 1997).

O princípio da anterioridade da lei penal vem estabelecido no art. 5º,

inciso XXXIX da Constituição federal (BRASIL, 1988), que disciplina que “não há

crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. José

Afonso da Silva (2007, p. 138) nos diz ser “indispensável uma descrição específica

da conduta tida como lesiva a um bem jurídico. Vale dizer que a ação humana, para

ser crime, há de corresponder objetivamente a uma conduta descrita tipicamente

pela lei.”.

Esse princípio modula os efeitos da lei penal no tempo, garantindo que,

muito embora uma conduta já seja moralmente condenável, ela só será punida pelo

sistema penal se for cometida depois de haver uma lei expressamente tipificando-a

como um crime. Sem desmerecer a importância do referido princípio para a

segurança jurídica, é preciso se ter em conta que a tortura não foi, em hipótese

alguma, aceita no Brasil republicano e boa parte das condutas tipificadas como atos

de tortura podem facilmente ser enquadradas como outros crimes tipificados no

Código Penal (Decreto-Lei nº. 2.848/40), nos Códigos Penais Militares (Decreto-Lei

nº. 6.227/44, revogado pelo Decreto-Lei nº. 1.001/69) e na Lei n.º 4.898/65, que

tipifica o abuso de autoridade.

O ministro do STF, Ricardo Lewandowski (BRASIL, 2010e), enumerou

esses delitos presentes no Código Penal, em seu voto na já mencionada sessão de

julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 153. São

eles:

(i) crimes contra a vida e integridade corporal: homicídio (art. 121), lesões corporais (art. 129), maus-tratos (art. 136); omissão de socorro (art. 135); (ii) crimes contra a liberdade individual: privação arbitrária de liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado (art. 148), constrangimento ilegal

                                                            26 Art. 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos.

 

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(art. 146), ameaça (art. 147), violação de domicílio (art. 150); (iii) crimes contra o patrimônio: furto (art. 155), dano (art. 163), apropriação indébita (art. 168); (iv) crimes contra o respeito aos mortos: destruição ou ocultação de cadáver (art. 211); (v) crimes contra a liberdade sexual: estupro (art. 213), atentado violento ao pudor (art. 214); (vi) crimes de falsificação: falsificação de documento público (art. 297), atestado falso por médico (art. 302); (vii) crimes contra a administração pública: concussão (art. 316), violência arbitrária (art. 322), abuso de autoridade (art. 350), condescendência criminosa (art. 320).

O abuso de autoridade, previsto na Lei n.º 4.898/65 (BRASIL, 1965), por

sua vez, inclui na sua tipificação as condutas de atentado à incolumidade física do

indivíduo e a submissão de pessoa sob guarda ou custódia a vexame ou

constrangimento não autorizado em lei. Por tudo isso, é de se ver que a questão da

anterioridade da lei penal é completamente secundária no debate em foco, podendo

ser facilmente superada.

 

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4 DEVER DE MEMÓRIA: UM BRINDE AO PASSADO - A que brindaremos, desta vez? - perguntou, ainda com a mesma leve sugestão de ironia. - À confusão da Polícia do Pensamento? À morte do Grande Irmão? À humanidade? Ao futuro? - Ao passado - arriscou Winston. - O passado é mais importante - concordou O'Brien, gravemente.

(1984, George Orwell) Conforme visto anteriormente, memória e esquecimento são duas faces

do mesmo papel instituidor exercido pelo Direito. A memória coletiva é o que

garante um mundo em comum entre os homens, uma continuidade que ultrapassa a

duração de cada geração, ligando-as em torno de narrativas comuns. Sem essa

memória do passado público, as novas gerações ficam presas ao que Eric

Hobsbawn (1995, p.13) chama de o “presente contínuo”, esse tempo paralisado em

que as experiências pessoais do presente não encontram seu vínculo com a

experiência das gerações anteriores.

É preciso se ter em mente que a memória não é simples operação de

lembrar-se dos fatos da exata maneira como ocorreram, passiva e automaticamente.

O próprio passado é constantemente construído a partir das percepções do

presente, ou como diria o escritor William Faulkner, em já consagrada frase: “O

passado não está morto e enterrado. Na verdade, ele nem mesmo é passado.” Daí a

importância de se articular historicamente o passado sem cair nas tentações do

esquecimento, que tudo “pacifica”, igualando opressores e oprimidos no silêncio.

Essa articulação do passado se dá pelo constante trabalho das instituições

encarregadas da memória, sendo que, como acentuado por Ost (2005, p. 51), a

memória:

[...] mostra-se efetivamente uma faculdade singularmente paradoxal: esperava-se encontrar uma competência subjetiva e individual, vamos descobri-la objetiva e social; nós a pensávamos passiva, inata, recebida e espontânea, nós a descobrimos ativa, construída e normativa; poderíamos acreditar que ela proviesse do passado, como a inércia natural de um peso que se acumula, e eis que a apreendemos posta em movimento a partir do presente e de suas questões; esperava-se, enfim, poder opô-la absolutamente ao esquecimento, como uma coisa ao seu contrário, veremos antes que ela engloba o esquecimento, do qual não poderia totalmente se diferenciar destas diversas inversões de perspectiva.

Assim, são quatro os paradoxos da memória, cuja rápida análise é

importante para os objetivos do presente trabalho. O primeiro dos paradoxos é que a

 

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lembrança só é possível se nos colocarmos sob o ponto de vista desta ou daquela

corrente de pensamento coletivo, sempre em consideração à existência de outros

seres humanos, ou conforme colocado por Halbwachs (1990, p. 26):

Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem.

O segundo paradoxo apontado por Ost é que, ao contrário do comumente

pensado, a memória opera a partir do presente, ou seja, ela resulta de constante e

coletiva reelaboração “dos dados tomados de empréstimo ao presente, tanto quanto

ao passado próximo, ou seja, às reconstruções intermediárias que já reinterpretaram

consideravelmente, por sedimentações sucessivas, o material originário.” (OST,

2005, p. 57). Isso se torna patente ao se observar a já mencionada reconstrução do

papel da sociedade frente à ditadura, passando esta de cúmplice do regime à

opositora deste. O terceiro paradoxo está diretamente ligado ao segundo, e diz

respeito à atividade e movimento da memória, ao invés da passividade e da

espontaneidade a ela atribuídas. Esse movimento voluntário contribui para a

instituição normativa de um tempo social, através dos feriados, das datas simbólicas,

das exposições, das comemorações:

Não há, de fato, nenhum Estado moderno que possa ficar sem um romance institucional das origens, dos quais as comemorações dos acontecimentos fundadores fornecem, em intervalos regulares, não a simples lembrança no modo da “rememoração” mas uma autêntica revitalização no modo da “regeneração”: como se a virulência mesmo do passado mítico fosse requisitada para se irradiar de novo no presente.(OST, 2005, p.59)

O último dos paradoxos se refere à já mencionada relação entre a

memória e o esquecimento: a organização da memória também é organização do

esquecimento, ou como Ost (2005, p. 90) nos diz:

Nada de organização da memória que não seja ao mesmo tempo organização do esquecimento, [...]. Mas o próprio esquecimento seria apenas um nada insensato, se não se definisse em relação à base estável dos dados memorizados e regularmente rememorados pela instituição jurídica.

 

Page 51: Monografia Arnaldo concluida

50  

É essa memória social, ativa, pontuada a partir dos problemas do

presente e diretamente ligada com o esquecimento que acessa a tradição,

selecionando os conteúdos que devem permanecer e os que devem ser esquecidos.

E aos juristas, assim como aos historiadores, cabe o papel de guardar a memória

coletiva, “não tanto, ou não somente, a título de arquivistas ou notários,

conservadores dos atos passados; não tanto, ou não somente, como cérebros

ciumentos das portas da legalidade; não tanto, ou não somente, como servidores

apressados dos príncipes” (OST, 2005, p. 50), mas de maneira muito mais

fundamental:

[...] os juristas assumem seu papel de guardiães da memória, lembrando que, através mesmo de todas estas operações de deslocamento, opera alguma coisa como uma lei comum e indisponível que foi utilizada num dado momento do passado. Não uma injunção inicial e sagrada – se bem que, na história do direito “a lei comum e indisponível” tenha muito freqüentemente assumido essa forma religiosa -, mas antes a consciência muito clara de que só se institui o novo com base no instituído. (OST, 2005, p. 50)

Desse modo, são os juristas que, através da lembrança de uma lei

instituída, comum e indisponível (a Constituição), garantem que os valores coletivos,

o conjunto de princípios e a narrativa original de uma comunidade não se percam e

sejam perenemente reavivados. Não por acaso, há uma estreita relação entre os

juízes e os historiadores: ambos ocupam a posição de terceiro, com pretensões de

verdade, justiça e imparcialidade27 (RICOEUR, 2007, p. 330). Vê-se que ambos,

cada um a seu modo, podem abrir margem a que as memórias impedidas, as

memórias dos vencidos, venham à tona. O historiador o faz quando escova a

história a contrapelo, ou seja, quando articula o passado do ponto de vista dos

vencidos, conforme nos diz Benjamin (1994), nas teses “Sobre o conceito da

história”. O juiz o faz quando, no rito do processo, permite e torna público o trabalho

de luto das vítimas e familiares e condena as atrocidades do passado, para que não

se repitam no presente.

Dada a impossibilidade de se tentar compreender o passado exatamente

como ele foi ou de se tentar descrever pormenorizadamente todos os fatos

pretéritos, a tarefa de construção do passado deve atender aos anseios do tempo

                                                            27 Entenda-se aqui a imparcialidade não como a pretensa neutralidade axiológica cara ao Positivismo jurídico, mas como a tentativa de exercer a capacidade de pensar e julgar no lugar e na posição do outro, ou de todos os outros possíveis. Sobre o tema: LAFER (1988).

 

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presente. Nesse sentido, Walter Benjamin (1994, p. 224), em suas teses “Sobre o

conceito da história”, considera que: “Articular historicamente o passado não

significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma

reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”. Benjamin critica o

paradigma positivista que elimina a historicidade do próprio discurso histórico em

nome de uma pretensa objetividade e neutralidade científicas, que, observa-se aqui,

também são caras ao discurso jurídico.

Essa tese é uma negação explícita da concepção historicista/positivista

da história, presente no pensamento de Leopold von Ranke28, para quem a tarefa do

historiador seria de representar o passado “como ele de fato foi” (LÖWY, 2005, p.

65). E Benjamin (1994, p.224-225) continua: “O dom de despertar no passado as

centelhas da esperança é um privilégio exclusivo do historiador convencido de que

também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo

não tem cessado de vencer.”

Em interpretação dessa passagem do texto de Benjamin, Löwy (2005, p.

66) acentua que esse perigo a que os mortos estão expostos não é

necessariamente “da forma primitiva e grosseira como a restauração monárquica

dos Stuarts maltratou as ossadas de Cromwell, mas pela falsificação ou

esquecimento de seus combates.” Para ele:

[...] do ponto de vista dos oprimidos, o passado não é uma acumulação gradual de conquistas, como na historiografia “progressista”, mas sobretudo uma série interminável de derrotas catastróficas; esmagamento da sublevação dos escravos contra Roma, da revolta dos camponeses anabatistas no século XVI, de junho de 1848, da Comuna de Paris e da insurreição spartakista em Berlim de 1919. (LÖWY, 2005, p.66)

Poderia se acrescentar a esse rol a derrota dos movimentos populares e

estudantis durante o período da ditadura militar, com a supressão dos projetos e

promessas desses movimentos. Seguindo esse rastro, Jeanne Marie Gagnebin

(2006, p.12) assinala que “ouvir o apelo do passado significa também estar atento a

esse apelo de felicidade e, portanto, de transformação do presente, mesmo quando

ele parece estar sufocado e ressoar de maneira quase inaudível.”

Com isso, o papel da História - e, podemos acrescentar, do Direito – é o

de um compromisso inarredável com o presente. Nesse ponto, assevera Gagnebin                                                             

28 Leopold von Ranke (1795-1886) foi um historiador prussiano conservador e conformista considerado o pai da “História científica".

 

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52  

(2006, p.47) ser a tarefa da história uma “tarefa altamente política: lutar contra o

esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que,

infelizmente, se reproduz constantemente).”

Faz-se necessário aqui recordar o fundo político da qual emana o Direito,

fazendo menção à ligação entre a lei e a memória coletiva: ambas estabelecem, ao

seu modo, limites e barreiras à atuação humana, ao definir os papéis de cada um

dentro da comunidade e, o mais importante, através das gerações, mantendo o laço

que une os novos homens e mulheres ao mundo já existente. Para Hannah Arendt

(1989, p.517):

os limites das leis positivas são para a existência política do homem o que a memória é para a sua existência histórica: garantem a preexistência de um mundo comum, a realidade de certa continuidade que transcende a duração individual de cada geração, absorve todas as novas origens e delas se alimenta.

Arendt entende que a comunidade política é posta em perigo e, ao

mesmo tempo, se renova a cada homem que nasce, uma vez que a cada

nascimento um mundo em potencial passa a existir. Cumpre à lei, assim, garantir a

inserção de novos homens no seio da comunidade e, ao mesmo tempo, manter a

estabilidade da comunidade política, ou seja, manter constante relação com a

tradição e não podar o surgimento do novo e a transformação do mundo através da

ação política. Em comentário à passagem do texto de Arendt anteriormente citada,

Lafer (1988, p.217) aponta que:

Política e Direito são, portanto, para Hannah Arendt, [...], complementares: a primeira favorece a diversificação da ação e o segundo protege e preserva a sua especificidade. A legalidade impõe uma duração às vicissitudes da ação e a constituição cumpre o papel de delimitar o espaço público igualitário que torna possível a criatividade da ação, pois sem a proteção estabilizadora da lei o espaço público não sobreviveria ao próprio instante da ação e do discurso.

O papel do jurídico não se esgota no processo legislativo, mas antes,

esse serve como um primeiro passo que é encerrado com a decisão judicial. Se a lei

delimita e protege o espaço público, é através do juiz que é dada a palavra do

Direito, a capacidade de julgar e a possibilidade de restituir tanto a vítima quanto o

seu algoz ao espaço público (garantido sua permanência), mas somente através da

 

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53  

catarse propiciada pelo reconhecimento público tanto do ofendido quanto do

ofensor. É o que se passará a analisar mais detidamente a seguir.

4.1 Espaço Público e Memória

Ricoeur (2007) nos ensina que a justiça, dentre todas as virtudes é a que,

por sua própria constituição, é voltada para o outro. É ela que constitui a alteridade

dentro das outras virtudes, desligando-as da estreita ligação com o “si mesmo”. Essa

característica da justiça pode ser ligada ao conhecido adágio do jurisconsulto

romano Ulpiano: “a justiça consiste em dar a cada um o que é seu”, e está muito

mais profundamente relacionada com o próprio ato de julgar.

Muito embora a crescente tecnicização do Direito passe a idéia de que o

julgamento é mera subsunção do fato à norma, com o jurídico servindo de

instrumento regulatório de conflitos de direitos individuais (direitos como propriedade

de um indivíduo ou de um grupo), o ato de julgar tem um pano de fundo altamente

político: tanto pela noção, vista anteriormente, de que o ordenamento jurídico é um

projeto de ordenação da sociedade e distribuição dos papéis que serão assumidos

pelos cidadãos na comunidade política, quanto pela idéia, resgatada dos gregos e

da Crítica do Juízo de Kant, de que a capacidade de julgar é “a faculdade de ver as

coisas não apenas do próprio ponto de vista mas na perspectiva de todos aqueles

que porventura estejam presentes” (ARENDT, 2007b, p.275).

Nesse sentido, se faz importante analisar a idéia de juízo do particular

que Hannah Arendt resgata dos textos kantianos. Esse juízo do particular surge do

prazer contemplativo e desinteressado, da avaliação de algo através de uma

distância adequada 29 , que, para Arendt seria o “requisito para aprovação ou

desaprovação, ou para avaliar algo em seu valor apropriado” (ARENDT, 1992, p.

376). Esse distanciamento, juntamente com a comparação entre o nosso juízo e o

juízo possível de outros, propicia o que Hannah Arendt, servindo-se do Kant da

Crítica do Juízo, chama de “alargamento do espírito” ou “modo alargado de pensar”.

                                                            29 Essa distância adequada seria o que podemos chamar de imparcialidade, mencionada anteriormente.

 

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54  

Esse “alargamento do espírito” está presente também na ação humana

dentro espaço público, onde a pluralidade de pensamentos encontra seu campo de

florescimento e atuação. Isso implica dizer que a alteridade se assinala como

característica basilar do julgar. Arendt nos coloca, ainda, que a eficácia deste julgar

vem precisamente desse acordo potencial entre o juízo do julgador e os outros

juízos possíveis ou, em suas próprias palavras:

O juízo obtém sua validade específica desse acordo potencial. Isso por um lado significa que esses juízos devem se libertar das ‘condições subjetivas pessoais’, isto é, das idiossincrasias que determinam naturalmente o modo de ver de cada indivíduo na sua intimidade, e que são legítimas enquanto são apenas opiniões mantidas particularmente, mas que não são adequadas para ingressar em praça pública e perdem toda validade no domínio público. E esse modo alargado de pensar, que sabe, enquanto juízo, como transcender suas próprias limitações individuais, não pode, por outro lado, funcionar em estrito isolamento ou solidão; ele necessita da presença de outros ‘em cujo lugar’ cumpre pensar, cujas perspectivas deve levar em consideração e sem os quais ele nunca tem oportunidade de sequer chegar a operar. Como a lógica, para ser correta, depende da presença do eu, também o juízo, para ser válido, depende da presença de outros. (ARENDT, 2007b, p. 274-275)

Mas como essa concepção da justiça se relaciona com a memória? É a

justiça que transforma a memória em projeto para o futuro, permitindo que as

lembranças traumáticas do outro se insiram no espaço público através do

testemunho das atrocidades sofridas e do processo que permite a punição exemplar

daqueles que cometeram tais atrocidades. Daí Ricoeur afirmar que “o dever de

memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não a si”

(RICOEUR, 2007, p. 101).

O espaço público é, por excelência, o espaço da ação política e do

discurso; e a pluralidade, que é condição básica desses dois, tem o aspecto duplo

da igualdade e da diferença. Se não houvesse igualdade, a comunidade estaria

fadada ao fracasso, pela incapacidade dos homens em se compreender ou de fazer

planos para o futuro. Se não houvesse diferenças, “os homens não precisariam do

discurso ou da ação para se fazerem entender” (ARENDT, 2007a, p. 188) e não

haveria sequer motivo para a existência do espaço público. Dessa maneira, o

espaço público é composto de dissensos e consensos.

As memórias individuais podem se inserir no espaço público através da

ação e do discurso de cada ser humano, visto que estes carregam sempre a marca

pessoal de quem os faz. Se há um impedimento dessas memórias virem à tona, tal

 

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55  

qual a anistia brasileira, há um impedimento de que o dissenso se manifeste no

espaço público e uma falsa sensação de consenso que impede a reapropriação do

passado para a transformação do presente. Nas palavras de Ricoeur (2007, p.462):

Mas o defeito dessa unidade imaginária não seria o de apagar da memória oficial os exemplos de crimes suscetíveis de proteger o futuro das faltas do passado e, ao privar a opinião pública dos benefícios do dissensus, de condenar as memórias concorrentes a uma vida subterrânea malsã? Ao se aproximar assim da amnésia, a anistia põe a relação com o passado fora do campo em que a problemática do perdão encontraria com o dissensus seu justo lugar.

Assim, o dever de prestação da tutela jurisdicional ganha um novo

contorno: é o dever de permitir que as memórias dos oprimidos, dos vencidos,

venham à tona na formação da memória coletiva nacional e saiam da “bolha” de

privatização a que submetidas através dos processos de esquecimento forçado

presentes na fabricação da história oficial do Estado. Esse reconhecimento de que

houve vítimas e de que há um dever para com elas deve ser um duplo

reconhecimento: não só da vítima, mas também daquele que foi condenado.

Para Ricoeur (2008, p.180), o ato de julgar só atinge seu objetivo quando

aquele que ganha o processo pode dizer: “meu adversário, aquele que perdeu,

continua sendo como eu um sujeito de direito”, mas também quando aquele que

perdeu, que foi condenado, pode ser capaz de dizer “que a sentença que o contraria

não era um ato de violência, mas de reconhecimento”. O filósofo está falando da

função do jurídico como meio de construir um “esquema de cooperação”, em que as

partes se reconheçam como partícipes de uma mesma sociedade, que compartilha

valores e o bem comum.

Pode-se questionar até que ponto isso é possível através dos

instrumentos jurídicos de preservação da memória a seguir estudados

(imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e crimes permanentes), mas

não há dúvidas de que sem esses instrumentos, ou sem formas de garantir que as

memórias concorrentes entrem em dissensus, não se pode falar em qualquer

possibilidade dessa justiça.

 

Page 57: Monografia Arnaldo concluida

56  

4.2 Os crimes contra a humanidade Conforme visto anteriormente, o Direito Internacional dos Direitos

Humanos condena a auto-anistia e veda a prescrição penal dos crimes contra a

humanidade ou crimes de lesa-humanidade. Cumpre aqui fazer referência ao que

seriam esses crimes de lesa-humanidade e qual o alcance dessa imprescritibilidade

frente ao Direito interno.

O conceito de crimes contra a humanidade surgiu pela primeira vez da

necessidade de se dar tratamento jurídico adequado aos crimes cometidos pelo Eixo

durante a chamada ruptura totalitária, na Segunda Guerra Mundial. Assim, através

do Estatuto do Tribunal de Nuremberg, aprovado pela Comissão de Direito

Internacional da Organização das Nações Unidas, os governos vencedores (França,

Estados Unidos da América, Grã-Bretanha e União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas) tipificaram como crimes contra a humanidade:

[...] o assassinato, o extermínio, a escravidão, a deportação e qualquer outro ato inumano contra a população civil, ou a perseguição por motivos religiosos, raciais ou políticos, quando esses atos ou perseguições ocorram em conexão com qualquer crime contra a paz ou qualquer crime de guerra. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1950, tradução nossa)30.

Esse conceito foi sendo (re)elaborado pelo Direito Internacional, até que

ganhou amplitude bem maior com o Estatuto de Roma do Tribunal Penal

Internacional, aprovado pelo Brasil através do Decreto nº. 4.388/2002 (BRASIL,

2002), que disciplina que se entende por "crime contra a humanidade", qualquer um

dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou

sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:

a) Homicídio; b) Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada

de uma população; e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave,

em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura; g)

Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada,

esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de

                                                            30 Crimes against the humanity: namely murder, extermination, enslavement, deportation and other inhuman acts done against a civilian population, or persecutions on political, racial or religious grounds, when such acts are done or such persecutions are carried on in execution of or in connexion with any crime against peace or any war crime. 

 

Page 58: Monografia Arnaldo concluida

57  

gravidade comparável; h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser

identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou

de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios

universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional,

relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da

competência do Tribunal; i) Desaparecimento forçado de pessoas; j) Crime de

apartheid; k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem

intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a

saúde física ou mental. 

O mesmo Estatuto, em seu artigo 7.2a, traz a definição de ataque à

população civil como sendo:

qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no parágrafo 1o contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política; (BRASIL, 2002)

É evidente que os crimes cometidos pelo regime militar durante o estado

de exceção (1964-1985) foram crimes contra a humanidade, vez que foram

utilizados como prática do Estado para a perseguição política, para o esvaziamento

do espaço público e desaglutinação dos movimentos de oposição. A sistematicidade

dessa prática fica mais evidenciada quando se observa a chamada Doutrina de

Segurança Nacional e a quantidade de órgãos governamentais e entidades

responsáveis pela “luta contra a subversão”31. Essa Doutrina de Segurança Nacional

pode ser resumida nas palavras do General Breno Borges Fortes, em discurso

pronunciado na 10ª Conferência dos Exércitos Americanos, realizada em Caracas

em 1973:

O inimigo é indefinido, usa mimetismo, se adapta a qualquer ambiente e usa todos os meios, lícitos e ilícitos, para lograr seus objetivos. Ele se disfarça de sacerdote ou de professor, de aluno ou de camponês, de vigilante

                                                            31 Dentre estes podemos mencionar: Escola Superior de Guerra (ESG), Conselho de Segurança Nacional (CSN), Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI), Serviço Nacional de Informações (SNI), Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS), Destacamentos de Operações Internas/Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODIs), Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), Comando de Caça aos Comunistas (CCC), Movimento Anticomunista (MAC), Facção Anticomunista (FAC), Vanguarda Anticomunista, Grupo Anticomunista, Ação Anticomunista Brasileira e a Falange Pátria Nossa.

 

Page 59: Monografia Arnaldo concluida

58  

defensor da democracia ou de intelectual avançado, de piedoso ou de extremado protestante; vai ao campo e às escolas, às fábricas e às igrejas, à cátedra e à magistratura; usará, se necessário, o uniforme ou o traje civil; enfim, desempenhará qualquer papel que considerar conveniente para enganar, mentir e conquistar a boa- fé dos povos ocidentais. Daí porque a preocupação dos Exércitos em termos de segurança do continente deve consistir na manutenção da segurança interna frente ao inimigo principal, este inimigo, para o Brasil continua sendo a subversão provocada e alimentada pelo movimento comunista internacional. (A SEGURANÇA, 1973 apud COIMBRA, 2002, p. 31-32)

Concluindo pela tipificação dos crimes do regime militar como crimes

contra a humanidade, o Centro Internacional para a Justiça Transacional (2009,

p.393), em seu “Parecer técnico sobre a natureza dos crimes de lesa-humanidade, a

imprescritibilidade de alguns delitos e a proibição de anistias”, aponta que:

Os atos de seqüestro, homicídio, falsidade ideológica e ocultação de cadáver cometidos por agentes do Estado do Brasil durante o período da ditadura militar (1964 a 1985) são atos inumanos que configuram crimes de lesa-humanidade, por seu caráter generalizado e sistemático, articulados a uma política do Estado e dirigidos contra setores da população civil. Sua qualidade de crimes de lesa-humanidade está fundamentada em normas de direito internacional já vigentes no ano de início do período da ditadura.

Diante da gravidade dos crimes contra a humanidade, o Direito

Internacional inadmite a sua prescrição, sendo a imprescritibilidade desses crimes

um princípio geral do Direito Internacional, conforme se passará a expor.

4.2.1 A imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade

A imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a

humanidade foi a maneira encontrada pelo Direito Internacional dos Direitos

Humanos para garantir que os crimes de maior gravidade fossem condenados

independentemente do tempo decorrido de sua prática. É uma forma de manutenção

perene da memória desses crimes no ordenamento jurídico. O filósofo Paul Ricoeur

(2007, p. 479) entende que o princípio de imprescritibilidade “restitui ao direito sua

força de persistir apesar dos obstáculos opostos ao desdobramento dos efeitos do

direito.”

 

Page 60: Monografia Arnaldo concluida

59  

Em situações de normalidade em uma comunidade política, as relações

entre a memória e o esquecimento do dever de punir são reguladas através da

prescrição. A imprescritibilidade se insere nas situações de anormalidade ou de

grave perturbação, em que a democracia encontra-se enfraquecida ou inexistente e

as medidas de prescrição não se coadunam com a justiça e com o dever de

memória.

Esse princípio é, dessa maneira, uma forma jurídica de uma comunidade

cumprir o seu dever de memória para com os vencidos do passado e de, ao mesmo

tempo, possibilitar que esses crimes não se repitam. Daí se poder dizer que seus

objetivos são vários: permitir, mesmo contra o tempo, que se faça justiça em relação

aos crimes contra a humanidade do homem (tanto no que há de humano nele

quanto em relação à humanidade entendida como coletividade), servir de

testemunho pedagógico em relação às gerações mais jovens e contra as teses

revisionistas da história, lutar pelo acúmulo de provas e arquivamento dos

testemunhos e contra o esquecimento do passado dos povos vítimas de genocídio,

apartheid, deportação, assassinato coletivo e outros crimes contra a humanidade

(OST, 2005, p.170).

A primeira menção à imprescritibilidade no Direito Internacional surgiu no

ano de 1967, com a Resolução 2338 (XII) da Assembléia Geral da Organização das

Nações Unidas (1967), que asseverou que “em nenhuma das declarações solenes,

instrumentos ou convenções relativas ao ajuizamento de ações e à punição por

crimes de guerra e crimes contra a humanidade foi prevista a limitação no tempo” 32

(tradução nossa). Era a primeira afirmação de que os crimes contra a humanidade,

tipificados desde o Tribunal de Nuremberg, não eram passíveis de prescrição.

No ano de 1968, a Organização das Nações Unidas aprovou a

Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a

Humanidade, reconhecendo serem imprescritíveis os crimes contra a humanidade,

independentemente da data em que tenham sido cometidos. Até a data de

conclusão do presente trabalho, o Brasil ainda não havia aderido à referida

convenção, motivo pelo qual Vianna (2009) afirmou que “esta convenção é

completamente alheia ao nosso ordenamento jurídico”, enquanto o ministro Celso de

Mello (BRASIL, 2010d) foi mais categórico ao dizer que:

                                                            32 […] none of the solemn declarations, instruments or conventions relating to prosecution and punishment for war crimes and crimes against the humanity makes provision for a period of limitation.

 

Page 61: Monografia Arnaldo concluida

60  

Nem se sustente, como o faz o Conselho Federal da OAB, que a imprescritibilidade penal, na espécie ora em exame, teria por fundamento a “Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade”. Mostra-se evidente a inconsistência jurídica de semelhante afirmação, pois, como se sabe, essa Convenção das Nações Unidas, adotada em 26/11/1968, muito embora aberta à adesão dos Estados componentes da sociedade internacional, jamais foi subscrita pelo Brasil, que a ela também não aderiu, em momento algum, até a presente data, o que a torna verdadeira “res inter alios acta” em face do Estado brasileiro. Isso significa que a cláusula de imprescritibilidade penal que resulta dessa Convenção das Nações Unidas não se aplica, não obriga nem vincula, juridicamente, o Brasil quer em sua esfera doméstica, quer no plano internacional. (grifos no original)

Em contraposição a esse entendimento, o Centro Internacional para a

Justiça de Transacional (2009, p.380) entende ser “possível dizer que a

imprescritibilidade das violações muito graves aos direitos humanos e dos crimes

contra a humanidade é um princípio geral do direito internacional, e a obrigação de

investigar e punir estes crimes gera uma obrigação erga omnes para os Estados”.

Nesse mesmo sentido decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no já

citado caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile (2006):

[...], os crimes de lesa-humanidade vão além do aceitável pela comunidade internacional e ofendem toda a humanidade. O dano que tais crimes ocasionam permanece em vigor perante a sociedade nacional e a comunidade internacional, que exigem a investigação e o castigo dos responsáveis. Nesse sentido, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade claramente afirmou que tais ilícitos internacionais “são imprescritíveis, qualquer que seja a data em que tenham sido cometidos”. Embora o Chile não tenha ratificado a referida Convenção, esta Corte considera que a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade surge como categoria de norma de Direito Internacional Geral (ius cogens), que não nasce com tal Convenção, mas que está reconhecida por ela. Conseqüentemente, o Chile não pode deixar de cumprir essa norma imperativa.33 (tradução e grifo nossos)

                                                            33 En efecto, por constituir un crimen de lesa humanidad, el delito cometido en contra del señor Almonacid Arellano, además de ser inamnistiable, es imprescriptible. [...], los crímenes de lesa humanidad van más allá de lo tolerable por la comunidad internacional y ofenden a la humanidad toda. El daño que tales crímenes ocasionan permanece vigente para La sociedad nacional y para la comunidad internacional, las que exigen la investigación y el castigo de los responsables. En este sentido, la Convención sobre La imprescriptibilidad de los crímenes de guerra y de los crímenes de lesa humanidad claramente afirmó que tales ilícitos internacionales “son imprescriptibles, cualquiera que sea la fecha en que se hayan cometido”. Aún cuando Chile no ha ratificado dicha Convención, esta Corte considera que la imprescriptibilidad de los crímenes de lesa humanidad surge como categoría de norma de Derecho Internacional General (ius cogens), que no nace con tal Convención sino que está reconocida en ella. Consecuentemente, Chile no puede dejar de cumplir esta norma imperativa. 

 

Page 62: Monografia Arnaldo concluida

61  

O interessante dessa decisão da Corte Interamericana é que a Corte

entendeu que, independentemente de sua adesão à Convenção sobre a

Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade, o

Estado-membro está obrigado a reconhecer a imprescritibilidade dos crimes contra a

humanidade, por se tratar de princípio geral de Direito Internacional, o qual a

Convenção só reconheceu e reafirmou. Isso implica dizer que, ainda que o Brasil

não reconheça a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade cometidos

durante o regime militar, o Estado brasileiro está passível de punição no âmbito do

Direito Internacional dos Direitos Humanos.

4.2.2 O caso dos desaparecidos políticos

No tratamento do caso dos inúmeros desaparecidos políticos no país,

outro instituto jurídico de preservação da memória se faz presente: é o conceito de

crime permanente. Crime permanente é todo aquele em que a consumação se

prolonga no tempo, dependente da atividade, ação ou omissão, do sujeito ativo. O

seqüestro, o cárcere privado, a formação de quadrilha e a ocultação de cadáver

podem ser citados como exemplos dessa modalidade de delito.

Visando a manter presente a possibilidade de o Estado punir esses

crimes mesmo depois de passado largo lapso temporal do seu cometimento, a

conceituação de crime permanente é atrelada a um dos casos de diferenciação da

regra, vigente no direito pátrio, de que a prescrição começa a correr da data em que

o crime se consumou. Isso porque o crime permanente só se considera consumado

depois de cessada a permanência, motivo pelo qual a prescrição só passa a contar

dessa data. Essa previsão se encontra presente no art. 111, II, do Código Penal

(BRASIL, 1940).

O Direito Internacional dos Direitos Humanos vem afirmando,

reiteradamente, que os desaparecimentos forçados constituem crimes de caráter

permanente. É o que prevêem a Declaração das Nações Unidas sobre a Proteção

de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados (1992) e a Convenção

Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (ORGANIZAÇÃO

DOS ESTADOS AMERICANOS, 1994). A referida Convenção, assinada pelo Brasil,

 

Page 63: Monografia Arnaldo concluida

62  

 

                                                           

dispõe que “esse delito será considerado continuado ou permanente, enquanto não

se estabelecer o destino ou paradeiro da vítima”34.  

Dessa forma, o prazo prescricional para a propositura da ação penal em

relação aos crimes de desaparecimento forçado de 148 (cento e quarenta e oito)

pessoas durante o regime militar sequer teve seu início.

Os memoriais jurídicos acima estudados são maneiras de garantir a

punição daqueles que cometeram crimes contra a humanidade e que não puderam

ser julgados no tempo hábil, seja por estarem ocupando os espaços de poder, seja

por terem feito a transação “negociada” ou por terem ocultado os rastros dos

próprios crimes através do sumiço de arquivos ou da negação de acesso a estes.

Passaremos a abordar, no próximo capítulo, as faculdades de perdoar e

de prometer, sua relação com os objetivos do presente trabalho e as medidas de

Justiça de Transição como alternativas de resgate da memória e o seu papel na

construção do espaço público e na abolição das constantes violações aos direitos

humanos praticadas pelo Estado, bem como quais as possibilidades de perdão e de

promessas para o futuro trazidas pelas referidas medidas.

 34 Embora haja uma sinonímia, no texto da referida Convenção, entre os crimes continuados e os permanentes é de se ver que são modalidades diferentes de delito. Os crimes continuados encontram sua conceituação no art. 71 do Código Penal, sendo aqueles constituídos de duas ou mais violações jurídicas da mesma espécie e que, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, são tratados como um todo unitário, com os subseqüentes tidos como continuações do primeiro.

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63  

5 O PERDÃO POSSÍVEL E A PROMESSA Sob a história, a memória e o esquecimento. Sob a memória e o esquecimento, a vida. Mas escrever a vida é outra história. Inacabamento.

Paul Ricoeur

Conforme mencionado nos capítulos anteriores, há uma grande distância

entre a anistia e o perdão, muito embora a anistia freqüentemente simule o perdão

ou o utilize como sua justificativa ou finalidade. Lembremo-nos que a anistia é

sinônima de esquecimento e o perdão tem sua ligação com a memória, ou antes,

com o dever de memória. Mas o que é esse perdão?

Muito embora seja extremamente difícil conceituá-lo, é possível se

mencionar algumas de suas características. O perdão é ato de memória: apaga-se

uma ofensa viva na lembrança, deixa-se o ofensor livre da falta cometida, livre da

dívida, sem que esta seja esquecida. Nas palavras de Ricoeur (2008, p.197), o

perdão é uma espécie de “cura da memória, o acabamento de seu luto; liberta do

peso da dívida, a memória fica liberada para grandes projetos. O perdão dá futuro à

memória”.

Assim, pode-se dizer com clareza que o perdão só é possível onde há

memória, do contrário se estará falando de cálculo de interesses, de apagamento

utilitarista das dívidas. E, mais importante, o perdão possibilita que a memória se

liberte da dívida, afastando de uma vez os pesos da vingança e do recalque e

garantindo o dissenso sadio no espaço público.

O perdão também é ato de remissão: perdoa-se alguém por uma falta

cometida. Veja-se que o perdão é dado ao culpado e não à falta, que, atingida

indiretamente, permanece imperdoável. Essa distinção é essencial aos objetivos do

presente trabalho. Afinal, como perdoar crimes tão graves como os crimes contra a

humanidade, ou ainda, como perdoar o imperdoável? De outra banda, deve-se ligar

pra sempre o agente ao seu ato?

Para Ricoeur (2007), a capacidade de um sujeito moral se engajar no

mundo não se esgota através de suas várias inscrições no mundo, não se esgota

em suas ações. Do contrário, como nos diz Arendt (2007a, p.249):

Se não fôssemos perdoados, eximidos das conseqüências daquilo que fizemos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos sempre as vítimas

 

Page 65: Monografia Arnaldo concluida

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de suas conseqüências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço.

No mesmo sentido entende Agamben (2006), para quem a realização de

um ato não esgota a potência de não (ser ou fazer) ou ainda a de fazer de outra

maneira, ou seja, “será verdadeiramente potente apenas quem, no momento da

passagem ao ato, não anulará simplesmente a própria potência de não, nem a

deixará para trás em relação ao ato”.

Assim, o perdão insere na discussão a consideração de que o culpado é

capaz de outra coisa além dos seus delitos, das suas faltas. Através do signo do

perdão, o culpado tem “devolvida” a sua capacidade de agir, a potência de se inserir

na cena pública. A fórmula dessa fala, diz Ricoeur (2007, p.501), pode ser resumida

na frase “tu vales mais que teus atos”.

Outra das características do perdão é que ele é sempre bilateral: só há

perdão que seja, ao mesmo tempo, desejado pelo culpado e doado pela vítima. Por

seu caráter de dádiva, que só pode ser concedida pela vítima, pode-se dizer que o

perdão nunca é devido, daí que o pedido pode ser legitimamente negado

(RICOEUR, 2008). A dádiva do perdão é tanto maior quanto maior a gravidade da

falta. Dessa maneira, o maior paradoxo do perdão é que este só encontra seu

máximo e verdadeiro alcance ao perdoar o imperdoável, perdoar ao agente pelas

faltas mais graves35.

Pela sua própria etimologia, o perdão é a abundância do dom, da dádiva,

é um ato gratuito de desligamento do passado, retirando deste a sua carga

traumática e permitindo que os seres humanos se liberem para novas ações e

possam ligar o futuro em comum através da promessa, essa outra faceta do tempo

que institui e é instituído.

Não por acaso, Hannah Arendt (2007a) entende que as faculdades de

perdoar e de prometer são aparentadas, uma vez que a primeira serve para

desfazer os atos do passado, enquanto a segunda serve para criar certas “ilhas de

segurança”, que garantem a durabilidade e a continuidade do mundo comum entre

os seres humanos.

                                                            35 De maneira contrária entende Hannah Arendt, quando afirma que os homens não podem perdoar aquilo que não podem punir, nem punir aquilo que é imperdoável (ARENDT, 2007a). Para essa autora, por não ser possível aos homens encontrar a proporção de uma punição para as graves ofensas a que, seguindo Kant, chama de “mal radical”, igualmente não é possível se encontrar uma maneira de perdoá-las.

 

Page 66: Monografia Arnaldo concluida

65  

Com isso, pode-se resumir o perdão como sendo um ato pessoal (não

necessariamente individual e privado 36 ), de memória e de remissão, gratuito,

incondicionado e tanto mais abundante quanto mais difícil. Mas, dada a sua

pessoalidade e gratuidade, como pensar no perdão dentro do espaço público e em

relação a crimes que atingiram toda a coletividade? É o que se passará a tratar.

5.1 Perdão e processo

O primeiro passo para se pensar em como o perdão pode se inserir

dentro do espaço público e em relação a crimes como os cometidos pelo regime

militar é entender que o perdão, ao contrário da anistia, não se apresenta como

contrário à punição.

Como nos ensina Arendt (2007a), ambos têm em comum a tentativa de

por fim a algo que continuaria indefinidamente sem a sua interferência: o ciclo da

vingança. Tanto o perdão quanto a punição interrompem o ciclo da vingança,

possibilitando o surgimento do novo e a reabilitação da vítima e do agressor ao

espaço comum. Daí Ost (2005, p.165) afirmar que “desde que o castigo é justo, nele

se integra necessariamente uma dose de perdão”.

No espaço público, é necessário trazer as memórias das vítimas à tona,

através do processo, estabelecendo os papéis de vítima e de agressor, separando e

mediando a relação entre estes, para que se possa minimamente falar em condições

de perdão.

Talvez aqui se possa dar novo sentido à afirmação de Arendt de que só é

possível perdoar aquilo que se pode punir (ARENDT, 2007a). Afinal, como pode a

vítima perdoar o agressor sem que sequer sejam dadas as mínimas possibilidades

para isso, quais sejam a presença da memória e o reconhecimento, pelo infrator, da

falta cometida?

Observe-se, ainda, que nos casos de faltas graves, de crimes, não é só a

vítima que é agredida: a comunidade política também o é. E mesmo que o perdão

seja ato pessoal, é preciso se ter em mente que as formas como a comunidade lida

                                                            36 Como bem frisa ARENDT (2007a, p. 253). 

 

Page 67: Monografia Arnaldo concluida

66  

com essas faltas também interfere nessa possibilidade de perdoar. Apresentando-se

o perdão como medida alternativa à punição ou como paralelo a esta, faz-se

importante aqui remeter ao papel creditado por Arendt (1999, p.275) aos processos

criminais:

Os processos criminais, uma vez que são obrigatórios e devem ser iniciados mesmo que a vítima prefira perdoar e esquecer, repousam em leis cuja “essência” – para citar Telford Taylor, escrevendo no New York Times Magazine – “é que o crime não é cometido só contra a vítima, mas primordialmente contra a comunidade cuja lei é violada”. O malfeitor é levado à justiça porque seu ato perturbou e expôs a grave risco a comunidade como um todo, e não porque, como nos processos civis, indivíduos foram prejudicados e têm direito à compensação. A compensação efetivada nos casos criminais é de natureza inteiramente diferente; é o corpo político em si que exige “compensação”, e é a ordem pública que foi tirada de prumo e tem de ser restaurada, por assim dizer. Em outras palavras, é a lei, não a vítima, que deve prevalecer. (grifo nosso)

O perdão e o castigo podem cumprir os papéis necessários de propiciar

que a vítima e o agressor se reconheçam como partícipes de uma mesma

comunidade e de, ao mesmo tempo, reabilitar o agressor à comunidade política. O

castigo, para Arendt, se justifica porque o crime perturbou a comunidade política e

as leis comuns. Se há uma esfera pública constituída, os atos de violência se tornam

inaceitáveis, devendo receber a punição justa.

Nesse ponto, não se pode ser ingênuo a ponto de acreditar que a punição

dos crimes nos moldes atuais permite esse reconhecimento mútuo e essa

reabilitação do condenado à comunidade política.

A utilização do processo penal, com a conseqüente aplicação da sanção,

como único meio de cumprir com o dever de memória, leva ao risco de impedir que o

corpo social se recupere das suas feridas – ou pior, pode ocasionar conflitos ainda

maiores, sem propiciar o debate necessário à superação sadia dos conflitos do

passado. A condução da discussão sobre o dever de memória tem de ser feita

passando-se fundamentalmente pela garantia do dissensus sadio no espaço público,

em que vítima e ofensor ainda se vêem como possíveis parceiros na construção da

comunidade política.

 

Page 68: Monografia Arnaldo concluida

67  

O sistema penal (e a pena privativa de liberdade como sua prima ratio) é

estruturalmente incapaz de cumprir com uma “função de ressocialização” 37 do

criminoso e ocasiona mais violações aos direitos do que proteção aos bens jurídicos.

Outro fator ligado diretamente ao sistema penal e que interessa aos objetivos do

presente trabalho é a produção de subjetividades – o sistema penal fabrica o

estereótipo do criminoso, levando o apenado a se identificar com o rótulo que

recebe. Além disso, o sistema penal contribui para o maniqueísmo

vítimas/criminosos, impedindo o reconhecimento mútuo e o a construção da

comunidade política enquanto espaço de interação ou de cooperação.

Ricoeur (2008, p.194) observa que:

além de certa duração, a execução da pena equivale a um processo de dessocialização acelerada. Uma fera, e não uma pessoa livre, é progressivamente engendrada pela exclusão, em detrimento de qualquer projeto de reinserção.

Indo mais além, observamos que não se trata apenas da duração da

pena, mas da própria forma como ela se dá. É preciso, com Ricoeur (2008), inserir o

espaço carcerário dentro do espaço público, no interior da cidade, ampliando o

cumprimento do dever de prestação jurisdicional, de modo a efetivamente julgar as

infrações cometidas e silenciadas no interior do espaço carcerário, mas também

inserir em um único âmbito todos “os aspectos não securitários da execução da

pena, quer se trate de saúde, trabalho, ensino, lazer, direito à visita, ou mesmo de

expressão normal da sexualidade, etc.” (RICOEUR, 2008, p. 193). Mas também é

preciso, além de Ricoeur, pensar em novas formas de punir e reabilitar o

condenado.

Assim, por mais que os crimes cometidos pelos agentes da repressão

durante o regime militar sejam de gravidade inegavelmente maior que os crimes

comuns e por mais que isso deva implicar, proporcionalmente, em condenações

mais severas, é preciso se ter em mente que a utilização da pena privativa de

liberdade desumaniza, na medida em que desrespeita toda e qualquer dignidade do

condenado e impossibilita o retorno deste à comunidade política.

                                                            37 Observa-se que muito embora a ressocialização do condenado seja uma das funções oficiais do sistema penal, este serve, ao contrário, como medida de isolamento do condenado e só aumenta a distância entre o apenado e a sociedade.

 

Page 69: Monografia Arnaldo concluida

68  

Presentes essas considerações, faz-se necessário discutir outras formas

jurídicas de resgate da memória que possibilitem o perdão e o reconhecimento

mútuo de vítima e ofensor como sujeitos partícipes e construtores de uma mesma

comunidade política. Passa-se, dessa forma, a falar sobre a Justiça de Transição.

5.2 A Justiça de Transição

A Justiça de Transição é o conjunto de medidas jurídicas, políticas e

sociais voltadas para o restabelecimento da democracia em uma sociedade

marcada por um período de forte violação de direitos humanos, como em guerras

civis, guerras entre Estados ou durante regimes autoritários. Esse conjunto de

medidas pode ser resumido a quatro campos de ação: a) a busca pela verdade; b) a

responsabilização criminal dos autores das violações aos direitos humanos; c) a

reparação das vítimas e d) a reforma das instituições do regime político findo.

Remígio (2009, p.194) nos diz que a Justiça de Transição “é um modelo

de justiça que pretende reconciliar a nação com o seu passado, manifestando-se por

meio de medidas eficazes de superação dos traumas advindos de um momento de

repressão e violência.”

A busca pela verdade é realizada através da instituição de Comissões de

Verdade, da possibilidade de se dar voz oficial às vítimas, da abertura dos arquivos

secretos do governo e de um intenso trabalho historiográfico para impedir a

manifestação do esquecimento-recalque e do esquecimento-falsário, de modo a

revelar o histórico não só das instituições governamentais que foram responsáveis

pelos atos criminosos, mas também qual a parcela de contribuição da sociedade civil

nesses crimes.

Como exemplo dessas comissões, pode-se citar a comissão “Verdade e

Reconciliação”, que, na África do Sul pós-apartheid, assumiu a missão de coletar os

testemunhos, consolar os ofendidos, indenizar as vítimas e anistiar quem

confessasse ter cometido crimes políticos. O benefício dessa comissão, do ponto de

vista das vítimas, foi inegável, segundo nos conta Ricoeur (2007, p.490):

 

Page 70: Monografia Arnaldo concluida

69  

Famílias que lutaram durante anos para saber puderam dizer sua dor, exalar o seu ódio perante os ofensores e diante das testemunhas. À custa de longas sessões, puderam narrar as sevícias e nomear os criminosos. Nesse sentido, as audiências permitiram verdadeiramente um exercício público do trabalho de memória e de luto, guiado por um procedimento contraditório apropriado. Ao oferecer um espaço público à queixa e à narrativa dos sofrimentos, a comissão certamente suscitou uma katharsis compartilhada.

Quanto à responsabilização criminal dos autores das violações de direitos

humanos, é de se ver que a necessidade de tal medida tem sido abordada à

exaustão no presente trabalho, visto que o Brasil não realizou os julgamentos para a

responsabilização criminal dos agentes da repressão, acobertando-os sob o manto

da anistia.

Já a reparação às vítimas encontra amparo normativo no Direito

Internacional dos Direitos Humanos e inclui a ajuda material, a assistência

psicológica e as medidas simbólicas, como os memoriais, os monumentos e os

museus. A resolução 60/147, adotada pela Assembléia Geral da Organização das

Nações Unidas, estabelece, em seu artigo 18, que a reparação deve se dar de cinco

maneiras diferentes e conjuntas: restituição, compensação, reabilitação, satisfação

e garantias de não-repetição (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2005).

A restituição diz respeito à restauração da vítima à situação em que se

encontrava antes das violações de direitos humanos e inclui: restauração da

liberdade, o gozo dos direitos humanos, identidade, vida familiar e cidadania, retorno

à residência, restauração do emprego e retorno da propriedade. A compensação

deve se dar para qualquer dano econômico oriundo de dano físico, psíquico ou

moral, danos materiais e lucros cessantes e gastos com assistência médica ou legal

e serviços sociais e psicológicos, sempre de maneira proporcional à gravidade da

violação.

A reabilitação inclui o cuidado médico e psicológico, assim como os

serviços legais e sociais necessários à restauração completa da vítima. A satisfação

se refere às medidas de busca pela verdade, julgamento administrativo e penal dos

violadores, reconhecimento oficial das violações e pedido público de desculpas.

Por fim, a garantia de não-repetição se refere ao empoderamento da

sociedade civil no controle das ações do Estado e das forças militares e de

segurança, ao fortalecimento da independência do Poder Judiciário, à modificação

 

Page 71: Monografia Arnaldo concluida

70  

da legislação para coibir novas violações e à criação de mecanismos de resolução e

monitoramento de conflitos sociais. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2005)

É interessante observar que a anistia das vítimas de um regime

autoritário, ou seja, daqueles que lutaram contra um regime de exceção, é uma das

medidas de reparação presentes na Justiça de Transição. O argumento utilizado é o

de que, não sendo o regime democrático, é legítima a luta pela sua deposição. E,

comumente, esses regimes se utilizam do aparato jurídico para criminalizar a

oposição, motivo pelo qual, durante a transição, se faz necessário “apagar” esses

crimes através da anistia. Isso só reforça que nem toda anistia é prejudicial,

conforme mencionado anteriormente.

A reparação, por tudo que envolve, é extremamente complicada, tendo

em vista as dificuldades tanto de se mensurar os sofrimentos de cada uma das

vítimas quanto de se comparar esses sofrimentos entre si, de forma a garantir que

não haja injustiça ou desproporção na reparação. Outra dificuldade é em efetivar

esse “esquecimento reparatório”, reabilitando e restituindo, ao mesmo tempo em que

se possibilita a memória necessária à garantia de não-repetição.

Por fim, o outro campo de ação da Justiça de Transição é a reforma das

instituições, com a proibição de que pessoas responsáveis pelas violações dos

direitos humanos se mantenham em cargos públicos (vetting), sanções

administrativas e o desmonte e/ou reestruturação de órgãos que serviram como

aparatos de repressão.

Ao contrário das medidas de anistia, que esvaziam o espaço público e

privatizam as memórias para melhor “pacificar”, as medidas de Justiça de Transição

são muito mais capazes de propiciar uma verdadeira pacificação e conciliação

nacional, que não seja fruto de falsos consensos, mas sim decorrente do sadio

dissenso oriundo da pluralidade humana. Isso se dá pelo aspecto multifacetado com

que as medidas de Justiça de Transição tratam as questões da mudança de um

regime autoritário para um regime democrático e das violações de direitos humanos

durante regimes de exceção.

Para Remígio (2009, p.194), essas medidas da Justiça de Transição,

“acima de tudo, visam a recomposição do Estado e da sociedade, chamando cada

indivíduo a retomar o controle de sua vida – resgatando uma cidadania consciente,

em que cada cidadão é protagonista de sua própria história”.

 

Page 72: Monografia Arnaldo concluida

71  

A busca pela verdade, a reparação, a reforma das instituições e os

julgamentos, em conjunto, possibilitam que as memórias dos oprimidos encontrem

seu lugar dentro do espaço público e, dando voz oficial a estes, abre margem para

que o perdão, embora ainda difícil, seja possível. E não somente isso. Elas também

fortalecem o espaço público, de maneira tanto a impedir que as atrocidades

anteriores se repitam, quanto de propiciar um projeto conjunto de comunidade.

Interessa, no presente momento, verificar se o Brasil realizou ao menos

parte dessas medidas, vez que já se sabe que os julgamentos não foram realizados.

5.2.1 Justiça de Transição no Brasil

O Estado brasileiro tomou poucas das medidas necessárias à Justiça de

Transição e recomendadas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos,

conforme se verá a seguir:

No que se refere à busca pela verdade, somente no ano de 1995, com a

Lei nº. 9.140/95 (Lei dos Desaparecidos), o Estado brasileiro reconheceu sua

responsabilidade pelas violações de direitos humanos praticadas durante o regime

militar. Essa lei criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos,

com as tarefas de realizar o reconhecimento dos desaparecidos e mortos políticos

que não constavam na lista anexa à Lei nº. 9.140/95, de envidar esforços para a

localização dos corpos desses desaparecidos e de emitir parecer sobre os pedidos

de indenização efetuados pelos familiares dessas pessoas (BRASIL, 1995).

Somente no ano de 2007 foi divulgado o resultado dos trabalhos da

Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, através da publicação

Direito à Memória e à Verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos

Políticos. Durante a elaboração desse levantamento, os militares apresentaram

significativa resistência aos trabalhos da Comissão e ao acesso aos seus arquivos

(BRASIL, 2007).

Além disso, a Lei nº. 11.111, de 2005, estabeleceu que os arquivos

públicos classificados “no mais alto grau de sigilo” terão prazo de acesso de 30

anos, prorrogável por mais 30 e, posteriormente, prorrogados por prazo

indeterminado, se necessário.

 

Page 73: Monografia Arnaldo concluida

72  

Remígio (2009, p.195) leciona que “O Estado tem o dever de permitir o

acesso aos chamados ‘arquivos secretos da ditadura’, ao contrário do que vem

fazendo, ou seja, criando mecanismos legais que compactuem com a “cultura do

esquecimento”, como é o caso da Lei nº 11.111/05”. Já Bicudo e Piovesan (2006)

dizem que “é flagrante a violação dessa lei aos princípios constitucionais da

publicidade e da transparência democrática”.

Por tudo isso, até a presente data, uma parcela significativa dos arquivos

federais referentes ao período ditatorial permanece sob segredo de Estado,

impedindo os avanços no estabelecimento da verdade acerca desse período

marcante da nossa história recente.

Quanto às medidas de reparação, observa-se que a restituição se limitou

ao retorno ao emprego, restauração da liberdade e algum gozo dos direitos

humanos, estando ainda muito distante do ideal.

Da mesma maneira, a garantia de não-repetição é inexistente, uma vez

que as incipientes medidas tomadas pelo Estado brasileiro até hoje, como a

tipificação da tortura através da Lei nº. 9.455/97 (sem que fosse acompanhada de

outras medidas de prevenção e combate a esse crime), ainda permitem a prática

corriqueira da tortura, a criminalização dos movimentos sociais e outras tantas

graves violações de direitos humanos.

Pode-se afirmar com segurança que não houve reabilitação e, tampouco,

a satisfação, dadas as parcas medidas tomadas nesse sentido.

A compensação, por sua vez, foi a mais assegurada, tendo havido a

reparação econômica. Esta foi reconhecida pela primeira vez através do parágrafo

3º do já mencionado art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Tal

reconhecimento, contudo, se restringia aos aeronautas atingidos por portarias

reservadas do Ministério da Aeronáutica no ano de 1964 (BRASIL, 1988).

Após um longo período de discussões, o art. 8º do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias foi finalmente regulamentado pela Medida Provisória nº.

65, de agosto de 2002, posteriormente convertida na Lei nº. 10.559/02, com a

previsão expressa de reparação econômica, de caráter indenizatório, a todos

aqueles que se enquadrassem na condição de anistiado político.

Observa-se que a reparação econômica se limita às perdas em

decorrência do impedimento para o exercício de atividades econômicas, tendo

abrangência muito limitada em relação ao tamanho das violações de direitos

 

Page 74: Monografia Arnaldo concluida

73  

humanos durante o regime militar. Os danos morais, materiais, físicos e psicológicos

ficaram de fora da compensação brasileira, devendo ser buscados através do

Judiciário.

Brega Filho e Santos (2009, p.161) lecionam que:

Ao enfatizar somente o pagamento de reparações às vítimas do regime militar, em detrimento de outras formas de resposta ao legado do arbítrio, como levar à Justiça os perpetradores, por exemplo, o Estado brasileiro sinaliza não apenas seu desinteresse em fazer plena justiça às vítimas, mas seu desprezo pelo Estado de Direito e seu pouco apreço em restaurar o próprio princípio de justiça, tão desacreditado, na comunidade nacional, pois aqui um alto grau de ilegalidade permeia as relações entre o Estado e seus cidadãos e que a exclusão parece ser a regra.

Quanto à necessidade de reforma institucional, observa-se que o Estado

Brasileiro dissolveu parte dos órgãos repressores, como os Destacamentos de

Operações de Informações - Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi’s),

mas ainda segue a sistemática de mandar militares brasileiros à “Escola das

Américas”38.

Localizada em Fort Benning, nos Estados Unidos da América, essa

“escola” visa à formação de militares em técnicas de segurança e combate a grupos

dissidentes e ao crime organizado. No período ditatorial, foi nessa “escola” que os

agentes da repressão foram aprender as técnicas de tortura empregadas nos órgãos

estatais (O BRASIL..., 2008)39.

Fora isso, não houve qualquer tentativa do Estado brasileiro promover o

vetting. Os acusados de ter torturado e matado várias pessoas durante o regime

militar continuaram nos seus cargos até a aposentadoria e alguns chegaram a

ocupar mandatos eletivos, como o deputado federal Edmar Moreira, do Partido

Democratas, de Minas Gerais.

Vista a aplicação das medidas de Justiça de Transição no Brasil e as

suas limitações, passa-se à parte final do presente trabalho, sobre a possibilidade de

construção do futuro através da promessa.

                                                            38 Atualmente chamada de Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança. 39 Em 1996, o Pentágono revelou que a referida instituição criou um manual de tortura, onde orientava como tratar prisioneiros de formas as mais violentas.   

 

Page 75: Monografia Arnaldo concluida

74  

5.3 A promessa

Jorge Luis Borges (2009, p.32) nos ensina, em uma de suas poesias, que

“só os deuses podem prometer, por serem imortais”. A instabilidade e a

imprevisibilidade das ações humanas e da tensão da pluralidade nos fazem pensar

na dificuldade e até mesmo na impossibilidade de se ligar o futuro humano, de se

prometer e de se comprometer.

Mas é a própria promessa que garante que essa instabilidade e essa

imprevisibilidade vão ser contidas, de alguma maneira, em prol de algo maior. A

promessa é a força que mantém as pessoas unidas e agindo em concerto, é o que

garante a continuidade do mundo comum (ARENDT, 2007a). Remete-se aqui à

relação entre a lei e a memória: ambas garantem a continuidade do mundo comum e

a “imortalidade” de uma comunidade política através da promessa. Não por acaso,

Borges (2009, p.32) conclui a sua poesia dizendo que “também os homens podem

prometer, porque há na promessa algo imortal”.

É significativo que a lei possa ser ligada à promessa que uma

comunidade política faz para si mesma. A Constituição pode ser vista como a maior

promessa jurídica de uma comunidade política, abarcando os princípios jurídicos,

morais e políticos da comunidade. E essa promessa constitucional só é possível

dentro do quadro geral da promessa social fundadora de um povo. Nas palavras de

Ost (2005, p.255):

Esta norma procede ela mesma do pacto social: longe de cair do céu, ela resulta do acordo que se estabeleceu inicialmente entre o povo, o povo e os dirigentes em seqüência, do que resulta a confiança, sem a qual nenhum texto pode pretender impor-se duradouramente. Privadas desta referência à promessa social fundadora, as constituições não surgem senão como a expressão de um direito descontínuo, aleatório e, resumindo, tão inexplicável quanto insensato.

Essa visão é ligada à idéia de um tempo social que, ao mesmo tempo,

conserva e inova – ao qual se aludiu durante todo o presente trabalho. Esse tempo,

chamado por Ost (2005) de tempo neguentrópico, se contrapõe à idéia, tão cara ao

positivismo, da entropia temporal, do tempo como um escoamento irreversível e

unidirecional do antes para o depois. Nesse escoamento, o Direito perde sua relação

 

Page 76: Monografia Arnaldo concluida

75  

tanto com o passado quanto com o futuro, sendo visto como uma sucessão de

instantâneos jurídicos, à parte do fundo social do qual emana.

A concepção instantaneísta de tempo do positivismo jurídico, diz Ost

(2005, p.223), “não impede de nenhum modo que o processo de produção normativa

se embale e o ritmo de edição/ab-rogação dos textos se acelere loucamente como

observamos atualmente”40. E Ost (2005, p.194-195) diz mais:

Porque ela perde o fio do tempo, esta posição positivista é ao mesmo tempo demasiadamente estática e demasiadamente dinâmica. Demasiadamente estática, (...), pressupondo estar definitivamente fixada no instante mágico da conclusão do contrato, (...) Demasiadamente dinâmica, já que, (...), ela não se opõe nenhum equilíbrio à mutabilidade desenfreada das normas jurídicas, sendo legítima qualquer mudança, desde que se opere formalmente.

Contrariamente a essa concepção, é preciso se ter mente que a

promessa não se encerra com o instante “milagroso” de seu surgimento. Tendo ela a

função de regular a transição entre o novo e o velho, ela mesma é objeto de

constantes reelaborações. Essa idéia resgata a discussão sobre a legitimidade das

leis e a possibilidade de se questionar a validade de uma lei que não decorre dessa

promessa ou que impede que novas promessas sejam feitas.

Conforme visto anteriormente, a Lei da anistia e a produção da história

oficial ligada a ela sepultaram as memórias das vítimas do regime militar e

agravaram o processo de esvaziamento da esfera pública, com a privatização

dessas memórias. Isso impossibilitou que fosse cumprido o dever de memória,

necessário ao perdão e à possibilidade de futuras promessas.

No julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

nº. 153, o Supremo Tribunal Federal perdeu uma oportunidade de fazer a discussão

da Lei da anistia com as considerações corretas sobre o papel do Direito no resgate

da memória e na mediação da relação entre o passado e o futuro.

Cumprirá, agora, às instituições de Direito Internacional dos Direitos

Humanos darem a sua palavra sobre a possibilidade de revisão da Lei da anistia no

plano do Direito Internacional de Direitos Humanos, levando em consideração a

imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e a necessidade de trazer à tona

as memórias das vítimas do regime militar. Pelos precedentes da Corte                                                             

40 Podemos citar como exemplo as contínuas edições de Medidas Provisórias sobre um mesmo tema, alterando de forma cada vez mais acelerada o ordenamento jurídico, sem possibilitar a discussão e o amadurecimento necessário das mudanças ocasionadas. 

 

Page 77: Monografia Arnaldo concluida

76  

Interamericana de Direitos Humanos, já mencionados, é possível prever uma

condenação do Estado brasileiro, obrigando a essa revisão.

A revisão da Lei da anistia, (somente se) somada à aplicação de efetivas

medidas de Justiça de Transição, possibilitará ao país a recondução das memórias

das vítimas do regime militar ao espaço público, fortalecendo esse espaço através

do respeito ao dissenso e propiciando o debate necessário ao aprimoramento dos

mecanismos de proteção aos direitos humanos, de modo a impedir que as

atrocidades cometidas durante o período ditatorial voltem a acontecer.

O Estado brasileiro nega, corriqueiramente, voz ao dissenso, com a

criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, com o recalque da opressão e

com o falseamento histórico em nome de uma falsa característica brasileira de

“concórdia”, um falso “jeito brasileiro para a conciliação” sem debate.

Através das já mencionadas medidas de Justiça de Transição, mas

também de medidas assecuratórias da memória e da justiça para as violações que

ocorrem todos os dias, é possível que isso seja mudado, inaugurando-se um tempo

em que o perdão e as promessas cumpridas não sejam tão difíceis e em que a ação

política de todos tenha o seu espaço na criação do novo e na garantia de um mundo

comum.

 

Page 78: Monografia Arnaldo concluida

77  

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O período ditatorial foi marcado por graves violações aos direitos

humanos cometidas pelo Estado. As garantias individuais foram suspensas, com a

instauração de um estado de exceção. A repressão à oposição culminou em um

esvaziamento da esfera pública, através da perseguição, tortura, assassinato,

desaparecimento e exílio forçado dos opositores do regime e de um agravamento do

processo de privatização da vida.

A partir da década de 70, a crise na economia e a mudança da posição

dos Estados Unidos no que diz respeito aos direitos humanos e à relação com o

Brasil enfraqueceram o regime militar, culminando em um descontentamento popular

que enfraqueceu o partido do governo e fortaleceu o único partido de oposição

existente. A luta pela anistia política dos opositores do regime militar ganhou as ruas

e contou com o apoio internacional. Forçados a se retirar do cenário político, os

militares tentaram, a todo custo, ditar a maneira da sua saída e impuseram sua

proposta de anistia recíproca: anistiaram os opositores para melhor anistiar seus

criminosos.

A análise do processo de construção da Lei da anistia e das suas

conseqüências aponta para o falseamento da história recente do Brasil, através da

idéia de conciliação e pacificação nacional, bem como para o recalque das

memórias das vítimas do regime militar, que, privadas do direito de tornar públicas

essas memórias, não fazem o trabalho de luto necessário à assimilação dessas

memórias no espaço público, através do dissenso.

O esquecimento, objetivo primeiro das medidas de anistia, é

extremamente necessário ao Direito, mas deve ser conduzido de maneira a não

impedir que o dever de memória seja cumprido. A prescrição e a anterioridade da lei

penal são formas jurídicas desse esquecimento e, muito embora sejam relacionadas

com a presente discussão, não são aplicáveis aos crimes praticados durante o

regime militar, por vedação expressa do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Ao contrário do falso argumento de que a anistia foi medida de perdão, a

primeira nada tem a ver com o último. A anistia brasileira foi medida de auto-anistia,

servindo, em verdade, ao esquecimento-falsário e ao esquecimento-recalque,

modalidades de esquecimento que servem para “legitimar” a história do ponto de

 

Page 79: Monografia Arnaldo concluida

78  

vista dos vencedores e criar a falsa ilusão de conciliação nacional, com o

impedimento da manifestação pública das memórias das vítimas.

A memória constitui, com o esquecimento, as duas faces de

temporalização do Direito, através do qual ele realiza o seu papel talvez mais

importante, de garantir a instituição do novo e a manutenção do velho. Ao Direito

cabe fazer justiça às memórias das vítimas, garantindo que estas se manifestem no

espaço público: é o dever de memória. Isso se dá pelo fundo político do qual o

Direito emana, sendo o ato de julgar uma faculdade de se colocar sob a perspectiva

de todos os que estejam possivelmente presentes na discussão. Daí a importância

de se garantir, no espaço público, o dissenso decorrente da pluralidade humana.

Em situações de estabilidade, a relação entre a memória e o

esquecimento do dever de punir é regulada pela prescrição, mas em situações de

grave perturbação de uma comunidade política e flagrantes violações de direitos

humanos pelo próprio Estado, como no período ditatorial, a prescrição não se

coaduna com a justiça e com o dever de memória.

Daí o Direito Internacional de Direitos Humanos ter tipificado esses crimes

cometidos pelo Estado como crimes contra a humanidade e ter estabelecido a sua

imprescritibilidade como maneira de garantir que serão julgados, mesmo passado

largo lapso temporal do seu cometimento. Da mesma maneira, foi criada a figura dos

crimes permanentes, para garantir que crimes como os desaparecimentos forçados

não caiam no esquecimento.

Um questionamento que se impõe é se esses institutos de memorial

jurídico são suficientes para possibilitar o perdão, o reconhecimento mútuo da vítima

e do agressor, a reabilitação de ambos ao espaço público e a visão da comunidade

política enquanto esquema de cooperação.

Conforme salientado anteriormente, o perdão não se confunde com a

anistia, sendo uma decorrência da memória. Só há perdão onde a memória é

exercida. Daí não poder se falar em possibilidade real de perdão dentro do atual

contexto brasileiro, em que a memória ainda é privada do espaço público.

O perdão possibilita o reconhecimento mútuo da vítima e do agressor e

sua reabilitação ao espaço público, porque o perdão desliga o agente de seu ato,

demonstrando que o ser humano é sempre capaz de agir de maneira diferente e

melhor. Perdoar o agente e continuar condenando o ato é exercer a dialética entre o

esquecimento e a memória, sem que um se sobreponha ao outro.

 

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79  

A condenação judicial dos repressores, se não for combinada com outras

medidas que possibilitem a reabilitação da vítima e do criminoso, pode trazer muito

mais problemas que soluções à comunidade política, dado o caráter repressor e

desumanizador do sistema penal, que, com a imposição da pena privativa de

liberdade, impossibilita qualquer (re)socialização do apenado.

As medidas de Justiça de Transição se apresentam como uma maneira

de propiciar esse perdão, para além da condenação judicial dos repressores, através

da busca pela verdade e manutenção da memória, da reforma das instituições e da

reparação das vítimas nos mais diversos aspectos: restituição, compensação,

reabilitação, satisfação e garantias de não-repetição.

Essas medidas possibilitam o empoderamento popular para a

participação política e para uma discussão madura sobre o papel do Estado e do

próprio Direito, resgatando o fundo político do qual o Direito emerge.

No Brasil, essas medidas foram aplicadas de forma mínima, sem uma

análise de conjunto e sem a preocupação com a completa reparação da vítima e

com as garantias de não-repetição. Assim, os efeitos positivos dessas medidas não

puderam ser sentidos na comunidade política brasileira e a possibilidade dessa

comunidade se articular como uma estrutura de cooperação, através da promessa,

se viu adiada.

É através da promessa que uma comunidade faz para si mesma, que o

futuro é ligado, que os seres humanos se comprometem a construir algo juntos, a

manter o mundo em comum. Essa promessa, assim como o perdão, é um ato de

memória. O perdão, desligando o passado traumático, desligando o agente de seu

ato, possibilita que a vítima e o agressor se reabilitem para novas ações com a

comunidade política, se ligando através da promessa.

As leis devem ser as promessas jurídicas de um povo, o compromisso

que um povo assume de manter algo do passado como garantia de construção para

algo futuro. As leis elaboradas através de uma falsa conciliação, sem permitir o

espaço para o dissenso, tal qual a Lei da anistia, não respeitam a essa exigência de

manutenção da memória e impedem a possibilidade de uma real promessa advinda

do comprometimento dos seres humanos com a comunidade política.

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 153 poderia,

se julgada procedente, ser um primeiro passo no restabelecimento da memória das

vítimas do regime militar e na implantação da Justiça de Transição no país. Com o

 

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80  

julgamento pela improcedência da Argüição de Descumprimento de Preceito

Fundamental nº. 153, o Supremo Tribunal Federal perdeu a oportunidade de dar

uma decisão que servisse como esse primeiro passo e abriu margem para que o

Estado brasileiro seja condenado pelas instâncias internacionais.

Uma condenação internacional, no sentido de obrigar o Brasil a julgar os

agentes repressores do regime militar e a implantar medidas de Justiça de

Transição, pode vir a ser o que o país precisa para iniciar a reconstrução do espaço

público, levando em conta o dissenso, a voz daqueles que ainda hoje são excluídos

e criminalizados, inaugurando um tempo em que o perdão e as promessas

cumpridas não sejam tão difíceis e em que a ação política de todos tenha o seu

espaço na criação do novo e na garantia de um mundo comum.

 

Page 82: Monografia Arnaldo concluida

81  

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