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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS I CURSO DE PEDAGOGIA Magda Elisa Cabral Nogueira A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA FORMAÇÃO REFLEXIVA DAS CRIANÇAS DO 5º ANO B DA ESCOLA MUNICIPAL DA ENGOMADEIRA Salvador 2008

Monografia Contacao de historias Magda Nogueira Uneb · 1. Contadores de histórias. 2. Arte de contar histórias. 3. Pesquisa-ação em educação. ... era analfabeto e por isso

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS I

CURSO DE PEDAGOGIA

Magda Elisa Cabral Nogueira

A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA FORMAÇÃO REFLEXIVA DAS CRIANÇAS DO 5º ANO B DA ESCOLA

MUNICIPAL DA ENGOMADEIRA

Salvador 2008

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Magda Elisa Cabral Nogueira

A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA FORMAÇÃO REFLEXIVA DAS CRIANÇAS DO 5º ANO B DA ESCOLA

MUNICIPAL DA ENGOMADEIRA

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção da graduação em Licenciatura de Pedagogia com Habilitação em Anos Iniciais do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, sob orientação do Prof. Gilmário Moreira Brito.

SALVADOR 2008

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FICHA CATALOGRÁFICA – Biblioteca Central da UNEB Bibliotecária : Jacira Almeida Mendes – CRB : 5/592

Nogueira, Magda Elisa Cabral A contação de histórias na formação reflexiva das crianças do 5º ano B da Escola Municipal da Engomadeira / Magda Elisa Cabral Nogueira . – Salvador, 2008. 50f. Orientador: Gilmário Moreira Brito. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação. Colegiado de Pedagogia . Campus I. 2008. Contém referências.

1. Contadores de histórias. 2. Arte de contar histórias. 3. Pesquisa-ação em educação. I. Brito, Gilmário Moreira. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação.

CDD: 372.64

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MAGDA ELISA CABRAL NOGUEIRA

A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA FORMAÇÃO REFLEXIVA DAS CRIANÇAS DO 5º ANO B DA ESCOLA

MUNICIPAL DA ENGOMADEIRA

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção da graduação em Licenciatura de Pedagogia com Habilitação em Anos Iniciais do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, sob orientação do Prof. Gilmário Moreira Brito.

Salvador, ______de_____________20

______________________________________________________________

Prof. Dr. Gilmário Moreira Brito Orientador

______________________________________________________________

Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho Departamento de Educação – Uneb

______________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Maria Antonia Ramos Coutinho Departamento de Educação - Uneb

Nota: 10 (Dez)

4

Dedico este estudo:

ao meu avô paterno José Inácio Cabral,

com quem aprendi a arte da contação de histórias,

ao meu esposo Marcelo e aos meus filhos Thaís e Tales.

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AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que me ajudaram a concluir este trabalho:

A Deus e a Nossa Senhora, minha fiel escudeira, por me darem força e coragem para eu não

desanimar no meio do caminho;

Ao meu esposo, por sua força, conhecimento e disposição diante das minhas limitações;

Aos meus filhos que estiveram sempre pacientemente ao meu lado;

Aos meus familiares que mesmo distantes me deram apoio e confiança;

Aos alunos do 5º ano B da Escola Municipal da Engomadeira que muito contribuíram para

esta pesquisa fazendo parte dela e me proporcionando as mais belas descobertas;

As minhas colegas e ao meu colega de curso que comigo vivenciaram nesta graduação

momentos alegres e difíceis, momentos estes que levarei comigo para o resto da vida;

A Professora Maria Antônia Coutinho que me co-orientou com muito carinho e dedicação;

Ao Professor Gilmário Brito Moreira, por aceitar a orientação deste estudo e conduzir seu

desenvolvimento com muita sabedoria e paciência.

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A força da história é tamanha que narrador e ouvintes caminham juntos na trilha do enredo e ocorre uma vibração recíproca de sensibilidades, a ponto de diluir-se o ambiente real ante a magia da palavra que comove e eleva.

BETTY COELHO

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RESUMO Durante séculos, a história dos povos foi perpetuada pela arte da contação de histórias, passando de uma geração para outra toda a sua herança histórica através da narração. Porém, com o avanço das novas tecnologias, a prática da contação de histórias foi sendo renegada, e gradativamente foi desaparecendo das salas de aula e tornando o professor cada vez mais despreparado para trabalhar com esta prática pedagógica. Concebe-se a prática da contação de histórias como uma forma de conhecimento que desencadeia o desenvolvimento da imaginação, da reflexão, da critica e da criatividade. Considerando a sua importância, o presente trabalho tem como objetivo mostrar como a contação de histórias pode ajudar na formação reflexiva das crianças nos Anos Iniciais. Para o desenvolvimento do estudo, foi utilizada uma metodologia de caráter qualitativo, através de uma pesquisa-ação com os alunos do 5º ano B da Escola Municipal da Engomadeira e de uma entrevista semi-estruturada com a professora regente da turma citada. A pesquisa-ação tinha a intenção de averiguar e demonstrar como os alunos do 5º ano B faziam suas criticas e reflexões através de relatos escritos e posteriormente a contação de história. Espera-se que os resultados aqui apresentados sobre o estudo com a contação de histórias na sala de aula incentivem outros educadores a adotarem esta prática, conscientes da importância do mundo mágico das palavras para a formação reflexiva e critica dos seus alunos. Palavras-chave: Contação de Histórias. Formação Reflexiva. Pesquisa-ação.

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SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO ............................................................................................. 09

2 INTER-RELAÇÕES: LITERATURA INFANTIL E A PRÁTICA DE

NARRAR ............................................................................................................... 13

2.1 Aspectos históricos das relações da literatura infantil e da oralidade .................... 13

2.2 A importância da contação de histórias para a formação infantil ......................... 16

2.3 A performance do narrador ..................................................................................... 19

2.4 Como as crianças recebem as histórias contadas ..................................................... 23

3 O CONTEXTO CULTURAL DA ESCOLA MUNICIPAL DA

ENGOMADEIRA ............................................................................................... 26

3.1 A escola e o bairro .................................................................................................... 26

3.2 Os alunos do 5º ano B ............................................................................................... 27

3.3 A professora regente do 5º ano B ............................................................................. 28

3.3.1 A professora regente do 5º ano B e a prática de narrar na sala de aula ................ 29

4 A CONTAÇÃO DE HISTÓRIA NA ESCOLA MUNICIPAL DA

ENGOMADEIRA ............................................................................................... 32

4.1 Momentos da contação de histórias na turma do 5º ano B .................................... 32

4.1.1 Primeira história contada na sala de aula: Bom dia todas as cores ...................... 33

4.1.2 Segunda história contada na sala de aula: A serpente de Olumo .......................... 38

4.1.3 Terceira história contada na sala de aula: O cavalo voador ou Julieta e Custódio 40

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 46

REFERÊNCIAS ................................................................................................... 49

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1 APRESENTAÇÃO

Coisa gostosa é brincar! Brinquedos dão alegria: bonecas, pipas, piões, bolas, petecas, balanços, escorregadores... Os brinquedos podem ser feitos com os mais diferentes materiais: madeira, plástico, metal, pano, papel. Mas há brinquedos que são feitos com algo que a gente não pode nem tocar e nem pegar: brinquedos que são feitos com palavras.

Rubem Alves

Brinquedos... tive muitos na minha infância, mas nenhum divertia e proporcionava tanta

alegria como as palavras, que magicamente me levaram sempre para o mundo da

imaginação... E assim foi que cresci, ouvindo minha mãe contar os contos de fadas, os

clássicos que provavelmente todas as crianças já ouviram. Costumava também perder a noção

das horas ao ouvir meu avô paterno “José Inácio Cabral” contar suas histórias, que dizia ele,

serem todas histórias reais, do seu tempo de infância e juventude, cabe ressaltar que meu avô

era analfabeto e por isso nunca teve a oportunidade de ler um livro, mas garanto que na arte

de contar histórias ele era insuperável, tinha uma criatividade extraordinária que aliava a uma

atitude performática durante a contação que prendia a atenção de qualquer um, fosse criança

ou adulto; suas histórias, na sua grande maioria, eram muito engraçadas e divertidas.

Portanto esse mundo da narrativa oral sempre fez parte da minha vida e é claro sempre me

fascinou, tanto que logo após ser alfabetizada, me tornei uma freqüentadora assídua da

biblioteca da escola, gostava de ir até lá para ler os livros dos quais continham histórias

diferentes, que eu nunca havia escutado, com o propósito de recontar posteriormente aos meus

irmãos menores que ainda não estavam em idade escolar, e eles ouviam cheios de curiosidade

e com muita atenção.

Hoje conto histórias aos meus filhos, não só os contos de fadas e histórias que em algum

momento da minha vida já li ou ouvi, mas como meu avô conto histórias da minha saudosa

infância, deixando-os fascinados e envolvidos com a magia das palavras. Acredito que parte

da formação dessa pessoa que hoje eu sou devo muito ao contato que tive desde muito

pequena com esta arte mágica e maravilhosa que é a contação de histórias.

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Mas apesar da contação de histórias sempre ter feito parte da minha vida, nunca havia

atentado para a importância dessa prática dentro de uma sala de aula. Essa descoberta se deu

quando ingressei no curso de Pedagogia com Habilitação em Anos Iniciais, onde através de

algumas disciplinas me aprofundei no assunto da contação de histórias, e então descobri como

ela é importante para a formação do ser humano.

Estes estudos me levaram a perceber que a contação de histórias é uma arte milenar, através

da qual as crianças entram em contato com os conhecimentos historicamente acumulados, a

escrita e a oralidade de seu povo. A escola é o espaço ideal para se trabalhar com a contação

de histórias, pois essa prática além de divertir, dissemina cultura, cria momentos de troca de

experiências, aguça a sensibilidade, faz a criança refletir sobre o mundo em que vive e a

auxilia na resolução de problemas internos, como o medo, a ansiedade, entre outros, pois as

histórias, a exemplo dos contos de fadas têm o poder de romper com o real imediato e invadir

regiões do inconsciente, ou seja, a contação de histórias através das suas histórias, bem

selecionadas e bem contadas, enriquece o mundo interior da criança e ajuda a harmonizar suas

aspirações. Pode-se afirmar que a narração de histórias não trata apenas de uma comunicação

oral, mas de uma comunicação emocional, por isso ela é tão importante para a formação

reflexiva das crianças.

Entretanto, percebe-se que com o avanço tecnológico a prática da contação de histórias vem

perdendo um pouco do seu espaço nas escolas e quando a mesma é praticada, muitas vezes

acaba sendo de forma desconectada do processo de ensino-aprendizagem, isto é, não há uma

preocupação do educador em relação à escolha da história, aos recursos que podem ser

utilizados para contá-la e até mesmo aos objetivos que o mesmo poderá atingir quanto à

formação reflexiva, critica e criativa dos seus alunos. Talvez isso se dê pelo fato de muitos

educadores ainda acreditarem que contar histórias é uma metodologia praticável apenas na

educação infantil, quando na verdade é uma prática possível em todas as fases de

desenvolvimento do ser humano.

Quando penso no mundo em que atualmente vivemos, onde as pessoas não têm tempo e nem

paciência para ouvir o outro, onde a intolerância é cada dia mais visível e a sensibilidade cada

vez mais ausente, percebo aí a importância do meu estudo, pois entendo que, a partir das

respostas obtidas em minha pesquisa-ação, mostro tanto para aqueles educadores que

investem na contação de histórias que é uma estratégia positiva para uma formação reflexiva

dos seus alunos, como para aqueles que ainda alimentam certo preconceito contra esta prática

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pedagógica que ela ajuda na formação critica e reflexiva das crianças, cujos resultados

dependem da subjetividade e da educação doméstica de cada um.

Acredito que o mais importante é o educador estar ciente da riqueza desta prática pedagógica

cuja aplicação em sala de aula poderá colaborar para a formação critica e reflexiva dos alunos,

ajudando-os a serem futuramente adultos bem resolvidos psicologicamente. Considerando a

contação de histórias como prática pedagógica rica e maravilhosa acredito que tem o poder de

criar e recriar formas de ser e sobreviver dos seres humanos.

A conjunção do amor pela contação de histórias às experiências vivenciadas no curso de

Pedagogia além de algumas leituras sobre o tema, fez nascer à vontade de me aprofundar e

estudar mais sobre a importância da contação de histórias na formação reflexiva das crianças

nos anos iniciais.

Por isso pretendo com o presente trabalho discutir a importância da contação de histórias na

formação reflexiva dos alunos do 5º ano B da Escola Municipal da Engomadeira, turma que

elegi para esse estudo, buscando compreender como a contação de histórias pode ajudá-los na

sua formação reflexiva, procurando identificar à forma que eles recebem as histórias contadas

em sala de aula, as reflexões que eles fazem após a contação de histórias e a importância

dessa prática para o desenvolvimento deles.

Para alcançar tais objetivos utilizei a metodologia da pesquisa-ação, que é também

denominada investigação-ação e considerada uma metodologia descrita como uma ação

sistemática, controlada e desenvolvida pelo próprio pesquisador. Como estagiei nesta turma,

me tornei uma figura presente no cotidiano escolar das crianças, essa experiência facilitou

também no entrosamento com a turma, fazendo com que a pesquisa fluísse tranquilamente

sem chamar tanta atenção para o papel que desempenhei naquela sala de aula, que foi além da

função de professora estagiária ou de narradora de histórias e sim de uma pesquisadora.

O processo da pesquisa-ação aconteceu da seguinte forma: selecionei propositalmente três

histórias, que foram narradas por mim com um intervalo de quinze dias entre uma e outra,

respeitando o planejamento da unidade escolar. Após cada história fiz uma discussão para

verificar através da oralidade das crianças o que ficou da narrativa, em seguida organizei uma

atividade na qual cada aluno expôs de forma escrita suas reflexões feitas a partir da contação

de histórias daquele dia. Com o registro do material em mão os tratei e os analisei buscando

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verificar se realmente havia alcançado os meus objetivos iniciais. Como narradora também

estive muito atenta a minha performance, a recepção e reação das crianças ao ouvirem as

histórias.

Como uma tentativa de descobrir se esta prática de contação de histórias já faz parte do

cotidiano escolar dos alunos do 5º ano B, fiz uma entrevista semi-estruturada com a

professora regente e de acordo com as suas respostas pude verificar se há ou não uma

preocupação por parte da mesma com a formação critica e reflexiva dos seus alunos.

O primeiro capítulo apresenta um pequeno histórico da literatura infantil e da oralidade, onde

procuro discutir com alguns autores da área sobre a importância da contação de histórias na

formação critica e reflexiva da criança, a importância dessa prática na sala de aula, de como

deve ser a performance do narrador para envolver as crianças nos fios da narração e também

como elas recebem as estórias narradas.

O segundo capítulo destaca o perfil da Escola Municipal da Engomadeira, do bairro e da

comunidade onde ela se localiza, dos alunos do 5º ano B e da sua professora regente, para que

fique explicito os componentes que fizeram parte desse estudo e que muito colaboraram para

que eu chegasse a resultados tão ricos e maravilhosos.

O terceiro e último capítulo contextualiza os momentos da contação de histórias que ocorreu

na sala de aula do 5º ano B apresentando fragmentos dos relatos escritos pelos alunos após as

contações, onde são tratados e analisados demonstrando uma riqueza de criatividade,

criticidade e reflexão por parte dessas crianças.

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2 INTER-RELAÇÕES: LITERATURA INFANTIL E A PRÁTICA DE

NARRAR

2.1 Aspectos históricos das relações da literatura infantil e da oralidade

As primeiras obras infantis foram publicadas na primeira metade do século XVIII na Europa.

Antes disso, no século XVII foram escritas histórias que se tornaram depois literatura infantil

como: as Fábulas de La Fontaine, As Aventuras de Telêmaco de Fénelon e os Contos da

Mamãe Gansa de Charles Perrault. Em se tratando do trabalho de Perrault, que é considerado,

segundo Ligia Cademartori (1991, p. 34) o iniciador da literatura infantil, é na verdade de um

adaptador, pois trouxe contos folclóricos que circulavam oralmente entre o povo, contos estes

que chegaram até a sua família através dos seus empregados, que foram escritos e adaptados

por ele de forma que agradasse a burguesia da época, fundindo propósitos moralizantes e

pedagógicos burgueses. Mas ainda assim, nos afirma Ligia Cademartori (1991 p 37):

Ressalte-se, porém, que não há dissociação entre a literatura oral e a versão culta, os elementos coexistem, processando-se um alargamento do domínio da cultura gráfica, que passa a manter relações de integração com a popular.

Por muito tempo a literatura infantil foi uma adaptação da literatura adulta, ou seja, ela não

era escrita para o público infantil, até porque a criança naquela época era vista como um

“adulto em miniatura”, - visão esta contestada posteriormente por Rousseau em “Emilio”,

onde o autor introduz a concepção de que a criança é um ser com características próprias em

suas idéias e interesses, e desse modo não pode mais ser tratada como um adulto em miniatura

-. Conforme Ligia Cademartori (1991, p. 39), esta adaptação muitas vezes possuía uma

linguagem e certas reflexões que fugiam a capacidade de compreensão da criança. Mas ainda

assim conseguia atrair as crianças levando-as a viajar no mundo da imaginação,

proporcionando assim diferentes experiências tanto no mundo da fantasia como no real.

Muito tempo depois é que surgiu a literatura infantil brasileira, pode-se dizer quase no século

XX, porém ao longo do século XIX, já se ouvia falar do aparecimento de algumas obras

literárias voltadas para crianças. Conforme Nelly Novaes Coelho (2000, p.138), a literatura

infantil brasileira teve inicio com Monteiro Lobato: o autor escreve obras visivelmente

didáticas e outras obras explorando o folclore ou a pura imaginação. Suas obras tratam de

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questionamentos e uma inquietação intelectual, que seria a preocupação com os grandes

problemas nacionais e mundiais e isso tudo expressado em uma língua marcada pelo

aproveitamento do dialeto brasileiro. Portanto, Monteiro Lobato foi quem abriu o caminho

para muitos outros autores talentosos, que principalmente na última década, vêm escrevendo

obras voltadas para o público infantil.

O aparecimento da literatura infantil no Brasil foi propiciado pela acelerada urbanização que

se deu entre o fim do século XIX e o começo do século XX, de acordo Lajolo e Zilberman

(2004, p.28) a partir desse momento surge um grande contingente de consumidores de bens

culturais e o saber passa a ser extremamente importante no novo modelo social, fato este de

grande importância para a literatura infantil, porque as campanhas pela instrução, pela

alfabetização e pela escola faziam despontar esforços para que o Brasil tivesse uma literatura

infantil nacional. Mas inicialmente a literatura infantil foi utilizada no âmbito da escola com o

objetivo de ensinar conteúdos de língua portuguesa, ou seja, como um recurso meramente

didático. Naquele período ainda não havia uma consciência de que a convivência com a

literatura infantil poderia propiciar a criança muito mais que aprendizagem de conteúdos e

que poderia levar a criança a reorganizar a sua visão de mundo possibilitando com isso, uma

ordenação das suas experiências existenciais.

Tal posicionamento fica mais bem esclarecido nas reflexões de Nelly Novaes Coelho (2000,

p.30), para quem até pouco tempo a literatura infantil era vista como um gênero secundário,

ou seja, para muitos a mesma adquiria a função de um brinquedo, de um entretenimento ou de

aprendizagem. O seu reconhecimento e sua valorização como algo significativo para a

formação reflexiva das crianças é recente, e isso ocorreu quando a noção de “criança”

começou a mudar devido a estudos e a descoberta dos estágios de desenvolvimento que

esclarece como todos os seres humanos passam por fases evolutivas da inteligência, como nos

confirma Nelly Novaes Coelho (2000 p 30):

O caminho para a redescoberta da literatura infantil, no século XX, foi aberto pela psicologia experimental, que, revelando a inteligência como o elemento estruturador do universo que cada indivíduo constrói dentro de si, chama a atenção para os diferentes estágios de seu desenvolvimento (da infância à adolescência) e sua importância fundamental para a evolução e formação da personalidade do futuro adulto.

Portanto, a literatura infantil é na verdade uma arte que com muita criatividade representa o

mundo, o ser humano e a vida através da palavra, fundindo o real e a fantasia, as

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possibilidades de realização ou não de certos ideais sonhados. A literatura infantil quando

bem trabalhada na escola pelo seu educador além de criar nos alunos o hábito da leitura, pode

também formar indivíduos criativos, críticos, mais conscientes e produtivos.

A criança é um ser extremamente criativo e precisa de estímulos e provocações a exemplo das

narrativas da literatura infantil, para organizar o seu universo, ou seja, seu mundo mágico

onde ela é a única dona, e somente ela pode construir e destruir, realizando assim tudo o que

deseja. Conforme Nelly Novaes Coelho (2000, p.52), quando a imaginação da criança é bem

motivada ela se torna uma fonte de libertação e tem o poder de enriquecer a imaginação da

criança e ajudá-la a usar o raciocínio e a cultivar a liberdade.

Segundo Cecília Meireles (1984, p.48), a primeira obra de literatura infantil surgiu da redação

escrita das literaturas orais, fazendo com que as mesmas perdurassem anos após anos. Porém

é necessário ressaltar que esta literatura que anteriormente era passada de boca em boca, ou

seja, que era o instrumento de muitos narradores que em qualquer lugar sempre estavam

prontos para contar suas histórias, compartilhando-as com muitas pessoas ao mesmo tempo e

fazendo daquele instante um momento de diálogo e de grandes trocas entre as pessoas. Agora

de forma escrita se torna um bem de consumo e individual, isto é, o que era de posse de todos

agora está ao alcance de poucos, pois nem todo mundo podia obter um livro fosse pela

situação financeira ou pelo fato de não saber ler. Portanto, o que magicamente tinha a função

de reunir muitas pessoas agora de certa forma isolava-as uma das outras.

Diante disso, porque não resgatarmos a magia da contação de histórias, fazendo hoje o

movimento inverso? Aproveitarmos esta rica literatura infantil que atualmente temos em

forma escrita e a levarmos para a sala de aula por meio da prática de contar histórias, fazendo

com que nossas crianças percebam que as histórias foram feitas para serem compartilhadas e

com isso também, tenham mais contato com a oralidade e com histórias que as levem a

refletir sobre assuntos extremamente importantes para a sua formação intelectual e emocional,

ou seja, que elas possam através das reflexões feitas sobre as histórias ouvidas tirar

ensinamentos para a vida. Segundo Betty Coelho (1998, p.35) a narrativa da história termina,

mas suas ressonâncias podem perdurar para sempre, é claro que isso depende muito do quanto

cada história toca interiormente em cada um daqueles que a ouvem.

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2.2 A Contação de histórias e a sua importância para a formação infantil

A história das tradições orais indica que muitos aspectos culturais foram transmitidos de

geração em geração através de múltiplas formas de contar histórias e, se tornou em um dos

veículos dessa transmissão. Através dessas práticas que nesse estudo denominamos de

contação de histórias, quer utilizando suportes orais, quer escritos, foram capazes de informar

e narrar para as sociedades conhecimentos, saberes, costumes, acontecimentos, tradições e

valores de seus povos. Portanto, a contação de histórias é uma arte milenar, através da qual as

crianças entram em contato com os conhecimentos historicamente acumulados, a escrita e a

oralidade de seu povo.

Essa prática é de extrema importância para os alunos, os contos de fadas, por exemplo;

segundo Bettelheim (1980, p.20), enquanto diverte a criança, também a esclarece sobre si

mesma, favorecendo o desenvolvimento de sua personalidade. Portanto, o momento da

história não deve ser trabalhado na escola nem com caráter de obrigatoriedade, nem sem um

sentido, mas como um momento de prazer e com objetivos a serem alcançados. Assim, a

contação de histórias além de proporcionar à criança um momento de prazer, quando bem

trabalhada pelo educador, poderá desenvolver a oralidade, o sentimento de compreensão e

despertar o senso estético e artístico, a criatividade, a criticidade, o hábito de ouvir com

atenção, o gosto pela leitura além de contribuir para o seu desenvolvimento emocional. Dito

de outra forma, as histórias são na verdade um grande laboratório para a formação e o

desenvolvimento infantil que segundo Betty Coelho (1986, p. 12):

A história aquieta, serena, prende a atenção, informa, socializa, educa. Quanto menor a preocupação em alcançar tais objetivos explicitamente, maior será a influência do contador de histórias.

A contação de histórias é uma e meios de comunicação que apareceram no inicio do século

XX. Segundo Élie Bajard (2004, p.13) o surgimento das novas mídias, como o cinema e a

televisão reduziram as práticas tradicionais de oralidade. Portanto, a contação de histórias foi

reduzindo sua amplitude nos processos de organização das cidades e de rápida urbanização

das sociedades. Tais práticas foram renascendo a partir do ano de 1960 nos Estados Unidos e

posteriormente se espalhou pela Europa, incentivadas pouco a pouco nas bibliotecas como

forma de incentivar a leitura das crianças ligando-a as práticas de alfabetização. Algumas

formas da literatura escrita ajudaram na permanência de aspectos da literatura oral,

auxiliando-os a ocupar múltiplos tempos e espaços. Tais inter-relações entre escrita e

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oralidade não sugere que a contação de histórias deva ser uma prática que se limite somente

ao espaço da biblioteca e tão pouco apenas voltada para incentivar a leitura.

Nesse sentido, contar histórias deve ser um exercício praticado em quaisquer tempo e espaço,

portanto, essa atividade é muito bem vinda na sala de aula. A contação de histórias é uma

fonte extremamente importante para a construção da língua oral da criança, pois se trata de

uma linguagem estruturada que possibilita observar seu funcionamento e sua apropriação.

Através dos contos, afirma Élie Bajard (2004, p.17), a criança toma conhecimento das regras

da sociedade, ou seja, daquilo que pode ou não se feito mediante amigos e inimigos, além

disso, também possibilita descobrir as regras que comandam a vida do ser humano no planeta

e sua relação com a natureza. Descobre que os elogios e as punições são conseqüências de

suas ações, depende se elas forem benéficas ou perigosas, e aí ela toma consciência de que

cabe a cada um refletir e decidir qual o melhor caminho a seguir.

Porém, quando se fala em contação de histórias como prática de sala de aula, a maioria dos

educadores se remete aos alunos da Educação Infantil, esquecendo que esta prática também é

importante para os alunos dos Anos Iniciais, pois eles ainda são crianças em plena fase de

formação intelectual e emocional e além do que, a contação de histórias é uma prática

enriquecedora para todas as fases de desenvolvimento do ser humano.

Talvez as tarefas mais importantes e difíceis na criação da criança é ajudá-la a encontrar um

significado de vida, para tanto é necessário que muitas experiências sejam vividas, isto é, à

medida que ela se desenvolve vai aprendendo pouco a pouco a si entender melhor os outros e

relacionar-se, de forma satisfatória e significativa. Como por exemplo, os contos de fadas,

uma das modalidades de histórias que podem ajudar muito a criança na compreensão do

significado da vida.

Conforme Walter Benjamin (1996, p.215), o conto de fadas é até hoje o primeiro conselheiro

das crianças, pois foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, resistindo firmemente o passar

dos anos e a modernização. Segundo ele, o primeiro e verdadeiro narrador é o que continua

sendo o narrador de conto de fadas. Há muitos séculos o conto de fadas, através de seus

narradores, vem ensinando a humanidade, e ainda hoje ensina as crianças, que o mais coerente

é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância. Portanto o conto de fadas tem

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o poder mágico que faz a criança perceber que a natureza é cúmplice do ser humano liberado

e não uma entidade mítica. Como nos afirma Walter Benjamin (1996, p. 215):

O adulto só percebe essa cumplicidade ocasionalmente, isto é, quando está feliz; para a criança, ela aparece pela primeira vez no conto de fadas e provoca nela uma sensação de felicidade.

Os contos de fadas têm uma grande importância no desenvolvimento psicológico infantil, pois

sua característica principal é colocar um dilema existencial de forma breve e categórica,

permitindo que a criança aprenda o problema em sua forma mais essencial, ou seja, os contos

de fadas buscam simplificar para as crianças as relações e tensões presentes na da vida. Os

contos de fadas ajudam a desenvolver a mente e a personalidade da criança, porque estimulam

a sua imaginação e ajudam a clarear as suas emoções, harmonizando muitas vezes suas

ansiedades e aspirações. Além disso, fazem também com que a criança reconheça plenamente

suas dificuldades e sugerem soluções para os problemas que a perturbam, ou seja, o conto de

fadas possui recursos que, segundo Bettelheim (1980, p.13) são necessários às crianças

lidarem com suas dificuldades e problemas interiores. Por isso sugere a importância de

trabalhá-los também na escola com as crianças dos anos iniciais.

É necessário que o educador redescubra o valor da contação de histórias na formação

reflexiva das crianças nos anos iniciais, e deixe de lado a crença de que este tipo de prática

pedagógica só é cabível na educação infantil. Ao adotar esta prática pedagógica, o educador,

deve planejá-la estabelecendo o objetivo que pretende alcançar com a história escolhida,

respeitando a faixa etária, as condições sócio-econômicas, o ponto de vista literário e o

interesse dos alunos-ouvintes. Estudar a história escolhida, segundo Betty Coelho (1986,

p.31), é captar a mensagem que nela está implícita e também identificar os seus elementos

essenciais; estudar a história significa também escolher o recurso mais adequado de

apresentá-la e quais as atividades posteriores à contação de história poderiam ser trabalhadas

pelos alunos, pois a história não acaba quando chega ao fim, como nos mostra Betty Coelho

(1986, p.59):

Sempre que possível, convém propor atividades subseqüentes. As chamadas atividades de enriquecimento ajudam a “digerir” esse alimento num processo de associação a outras práticas artísticas e educativas.

19

No entanto, o educador, não deve substituir em momento algum a linguagem infantil pela

linguagem adulta, mas agir no sentido de que a linguagem do aluno vá progressivamente

evoluindo a partir do que esta tem de mais expressivo e artístico.

2.3 A Performance do narrador

Segundo Walter Benjamin (1996, p.198) a experiência que vai passando de pessoa a pessoa

foi a fonte que sempre inspirou todos os narradores ao longo dos anos, portanto o que o

narrador conta geralmente é retirado da sua própria experiência ou da relatada por outras

pessoas e ao contá-las as incorpora à experiência de seus ouvintes. Por isso, entre as histórias

escritas, as melhores são, com certeza, aquelas que não se distanciaram tanto das histórias

orais contadas pelos narradores anônimos, porque ali existe uma união de experiências, que só

foi possível pelo fato de existirem pessoas que ainda tem o prazer de compartilhar suas

experiências. Fato este que atualmente está cada vez mais raro, pois parece que as pessoas não

têm mais tempo para se encontrar e trocar experiências, é como se as pessoas não soubessem

mais narrar, tanto que muitos ficam embaraçados quando é cogitado por alguém o desejo de

ouvir uma história, como nos afirma Walter Benjamin (1983, p.26) “É como se uma faculdade

que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou

seja: a troca de experiências.”.

Para esse mesmo autor o narrador surgiu de dois grupos, um deles entre os viajantes que ao

chegam sempre de uma viajem trazem na sua bagagem muitas histórias para contar e o outro

entre os honestos trabalhadores do campo que tinham a necessidade e o prazer de passar suas

tradições através das histórias como nos aponta Walter Benjamin (1996, p.199):

Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e o outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores.

Conforme esse autor, o narrador é uma pessoa que sabe dar conselhos, que através da sua

sabedoria leva os seus ouvintes a refletir sobre o que ouvem e buscar novos caminhos ou

simplesmente deixar sua alma se deleitar com sábias palavras, mas os conselhos estão se

tornando antiquados aos olhos das novas gerações, isso indica que as experiências estão

deixando de ser comunicáveis. Nessa perspectiva, a arte de narrar estaria definhando porque a

sabedoria está cada vez mais em extinção. Porém, este processo que de certo modo tenta

20

excluir aos poucos a narrativa oral do meio em que vivemos ao mesmo tempo lhe dá uma

beleza encantadora e cativante, fazendo com que a mesma se desenvolva acompanhando ao

longo dos anos a evolução das forças produtivas, (BENJAMIN, 1996, p.200).

Quando o narrador conta uma história ele acaba imprimindo nela sua marca, pois a narrativa,

segundo Walter Benjamin (1996, p.205), mergulha na vida do narrador para em seguida

emergir dele, então podemos dizer que contar histórias é de certa forma algo artesanal, que

trás impresso nela a marca do seu narrador, como um vaso feito artesanalmente por um oleiro

que deixa nele as marcas de suas mãos.

A narrativa oral começou a ser vista como algo arcaico, quando os romances encontraram,

depois de muito tempo, o seu lugar no meio burguês, mas segundo Walter Benjamin (1996,

p.202), o florescimento do romance só foi o começo do definhamento da narrativa oral, pois a

grande responsável por tornar a arte de narrar cada vez mais rara entre as pessoas, foi o

surgimento da informação que rapidamente cativou os ouvintes, por possibilitar uma

averiguação imediata e a exatidão dos fatos. Ou seja, essa celeridade de informar na mesma

hora um fato que ocorre do outro lado do mundo, sugere que estamos, imediatamente, a par

do acontecimento.

No entanto a informação tem um valor instantâneo, só interessa enquanto for novidade, depois

desse evento a sua grande maioria cai no esquecimento dos ouvintes. Esse tipo de

comunicação difere muito da narrativa oral, mesmo depois de passar muito tempo ela

conserva suas forças e ainda é capaz de gerar outras narrativas. Um exemplo disso são as

histórias do antigo Egito, que ainda hoje causa espanto e reflexão nas pessoas. Portanto, uma

“aura” mágica na narrativa oral, algo que faz com que suas histórias vençam o tempo como

nos mostra metaforicamente Walter Benjamin (1996, p. 204):

Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas.

O narrador contemporâneo ao narrar uma história geralmente utiliza-se de uma performance

artística, dominando técnicas corporais e vocais. Ao estabelecer critérios para escolher as

histórias, estes narradores que vivem, atualmente, no contexto urbano sugerem que é

necessária uma performance de alto padrão para contar histórias e envolver os seus ouvintes.

21

Essa articulação de expressões corporais torna essa prática mais difícil que a representação de

um papel no palco. E segundo Burke (1989, p.170):

Combinar fórmulas e motivos e adaptá-los a novos contextos não é um processo mecânico; na verdade, “ toda boa improvisação é um ato criativo”. Mas a variação ocorre não só em virtude de atos criativos individuais conscientes, mas também de maneira inconsciente.

A área de atuação do contador de histórias contemporâneo, na verdade, se aproxima muito das

artes cênicas. O que difere a contação dos espetáculos cênicos é especificamente a relação

estabelecida pelo olhar do narrador com seus ouvintes, também pela naturalidade e

simplicidade que narra as histórias, por isso, a performance é a vida que o narrador dá a

história através da sua voz. Ou, ainda “um ato de comunicação que se distingue de outros atos

da fala principalmente por sua função expressiva ou poética” (BUSATTO 2005, p.26).

Conforme Paul Zumthor (2000, p.35), a performance completa é exatamente aquela de uma

narrativa oral, onde, o ouvinte ao mesmo tempo em que ouve pode ter uma visão global da

situação de enunciação, ao contrário da leitura solitária e silenciosa. A performance possui

regras as quais, de certa forma, determinam simultaneamente o tempo, o lugar, a finalidade da

transmissão, a ação do narrador e conseqüentemente a resposta do público ouvinte. São estas

regras que importam para a narração tanto, ou mais do que as regras textuais. Segundo Paul

Zumthor (2000, p.37):

A performance e o conhecimento daquilo que se transmite estão ligados, naquilo que a natureza da performance afeta o que é conhecido. A performance, de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando ela o marca.

A performance é algo que diz respeito tanto às condições de expressão quanto a de percepção,

ou seja, ela indica um ato de comunicação onde à palavra se torna a presença concreta de

participantes envolvidos nesse ato, neste caso o narrador e seus ouvintes. E conforme Paul

Zumthor (2000, p.62) comunicar não é simplesmente passar uma informação, e sim, buscar de

certa forma mudar algo naquele que está ouvindo, pois quer queira ou não quando alguém

recebe uma comunicação acaba sofrendo alguma transformação. Portanto a performance é

também um momento de recepção, onde a mensagem é realmente recebida.

Para uma história prender os seus ouvintes, sejam eles crianças ou não, ela deve ser narrada

de um jeito que os leve a visualizar cada momento, cada ação da história, e para isso o

22

narrador deve ter toda uma postura. Um bom exemplo disso é o filme “Narradores de Javé”,

no início da narração o personagem Zaqueu, estava à beira de uma estrada, enquanto aguarda

o seu ônibus, começou a contar a história do seu povoado que estava sendo sucumbido pela

chegada do progresso, ao começar a contação ele tinha apenas um ouvinte, mas ao encerrá-la

estava rodeado de pessoas que se interessaram em ouvi-lo.

Em sua narrativa falava da historia de um povoado que nenhum dos ouvintes presentes

conhecia, portanto muitos ouvintes poderiam até nem se interessar pelo que estava sendo

narrado, porém, o narrador usou sabiamente as palavras e as impregnou de magia e lhes deu

vida. Seu olhar e sua alma transpiravam cada palavra narrada! Um narrador deve amar o que

conta e o ato de contar, pois esta arte milenar, que apesar de tantos escritos, ainda perdura

vencendo o tempo e aqueles que não mais a valorizam.

Na sala de aula, devemos esforçar para inundá-la dessa magia, a história só irá prender a

atenção dos alunos e envolvê-los na trama da narrativa, se o narrador souber conduzir bem

este momento. Para isto o narrador precisa conhecer bem as histórias que vai contar, ensaiar

com antecedência e mostrar paixão por aquilo que está contando, assim ele conseguirá dar

vida e emoção a história no momento da narração. Segundo Celso Sisto (2005, p.30) parece

um mistério, mas precisamos sentir algo especial pelo conto, pois acreditamos que

conseguiremos contar bem uma história somente se ela nos tocar de forma especial. “É a

paixão que vai permitir o trânsito e a circulação da história.” (CELSO SISTO 2005, p.30).

Ao narrar uma história, principalmente para crianças, é preciso fazê-la de um jeito que pareça

que você já viu ou já viveu tudo aquilo que está contando, criar suspenses, dar pausas, criar

intervalos durante a narração, conforme Fanny Abramovich (1991, p.21) é necessário

respeitar o tempo para que o imaginário dos ouvintes possa construir o seu cenário e

visualizar tudo o que está sendo narrado, ou seja, viajar no mundo mágico da imaginação.

O mais importante é que as crianças deixem sua imaginação interagir com as histórias, para

quando voltarem à realidade possam fazer ligações, refletir com o mundo real e retirar delas

os diversos sentidos que a mesma sugestiona para aquele momento vivido por cada um.

Portanto, como nos afirma Celso Sisto (2005, p.21):

23

O mais importante é que todos saiam satisfeitos, com a sensação de que a criação da beleza pode se dar em palavras, com a força de quem refaz o mundo no espírito, no mistério, no humor, na maravilha, e depois abre a porta para o insuspeito.

Por esta razão o narrador precisa estar disposto a criar uma cumplicidade entre história e

ouvinte, deixando espaços para que o ouvinte se envolva e recrie. Esses espaços que servirão

para o ouvinte transitar pelas histórias podem ser construídos segundo Celso Sisto (2005,

p.22) “[...] pelas pausas, silêncios, ações, gestos e expressões de forma harmônica”, ou seja,

nunca de forma mecânica, senão a narrativa perde sua vivacidade e o seu poder de

encantamento.

Quando o narrador, no caso da sala de aula, tem a intenção de através desta prática da

contação de histórias alcançar alguns objetivos, terá inicialmente que conhecer seus alunos,

perceber o momento que estão vivendo e os referenciais de que estão necessitando, para só

então selecionar as histórias que serão narradas. Utilizando estes critérios talvez consiga

posteriormente através de algumas atividades lúdicas constatar se realmente alcançou ou não

os objetivos inicialmente traçados.

Porém o mais correto é que estas histórias contadas em sala de aula, não fiquem somente no

didatismo e lição de moral, presas a conteúdos programáticos, mas que seja um momento de

prazer, onde o aluno realmente consiga se deixar levar pelo mundo mágico das palavras e

através dessa viagem faça suas reflexões construindo os seus significados, de acordo com a

sua subjetividade e suas reais necessidades.

2.4 Como as crianças recebem as histórias contadas

A contação de histórias é uma prática muito importante para a formação reflexiva das

crianças, ela traz consigo muitas oportunidades para que as crianças façam várias reflexões

sobre a vida, e isso ocorrerá de acordo com a necessidade de cada uma, ou da forma como

cada uma recepcionará a história, no momento em que percebe a trama entra em jogo a

subjetividade e o modo de cada uma se relacionar internamente com o mundo externo. Pois as

histórias narradas trazem consigo lacunas, espaços em branco, que de certa forma dá liberdade

para que cada criança, de acordo com a sua percepção vá preenchendo, dando sentido, sentido

este que, segundo Paul Zumthor (2000, p.62) é transitório e ficcional. Portanto em uma sala

de aula os vários alunos e alunas poderão dar diferentes sentidos para uma mesma história,

24

como também, uma criança ao ouvir uma mesma história em momentos diferentes da sua vida

com certeza refletirá diferentemente em cada momento.

A contação de histórias leva a criança a refletir e lhe possibilita desenvolver sua capacidade

critica, ao ouvir belas histórias de princesas a criança poderá, por exemplo, fazer ligações com

o mundo real, onde a sociedade atual impõe através da cultura do consumo uma beleza

estereotipada, ou seja, a mulher deve ser sempre bela e magérrima. Mas se as mulheres não

são todas iguais porque buscar uma beleza homogênea, quando se sabe que esse atributo

estético é marcado por um tempo que certamente é efêmero e que os qualificativos femininos

estão apenas no corpo, então quer dizer que a mulher não pode ter outros atributos além da

beleza? Por que a beleza tem que ser padronizada? Beleza é algo heterogêneo, é múltipla.

Outro ponto que pode ser indagado a partir da reflexão da criança é o fato de que hoje ao

contrário do passado as meninas crescem aprendendo que a mulher precisa conquistar o seu

espaço, ou seja, adquirir sua independência financeira e profissional, mas apesar de tantas

mudanças no comportamento feminino, elas ainda alimentam o sonho de um dia encontrar o

seu príncipe encantado.

Nesse sentido é importante lembrar com Paul Zumthor (2000, p.90), que uma pessoa quando

ouve uma história acaba criando uma unidade muito forte na ordem da percepção, ou seja, o

ouvinte se utiliza ao mesmo tempo da audição, da visão, do tato contaminando

simultaneamente a compreensão e a emoção que ficam entrelaçadas. Essa mistura é

promovida pela presença comum do narrador e do ouvinte dentro de um único espaço. Pode-

se dizer que a prática da contação de histórias é algo forte e profundo porque envolve mais

tanto experiências de vida como o faz de conta o prazer de estar junto de alguém praticando e

dividindo algo, que está cada vez mais difícil de se presenciar – nos tempos de hoje – ouvir e

contar histórias. Conforme Paul Zumthor (2000, p.98):

[...] escutar um outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa voz, dirigindo-se a mim, exige de mim uma atenção que se torna meu lugar, pelo tempo dessa escuta.

Quando se conta uma história se abre um portal para o pensamento mágico, onde através do

som das palavras e do gesto corporal se invoca imagens, que vão surgindo magicamente na

cabeça dos ouvintes, embalados por uma emissão emocional. Fazendo com que o ouvinte, de

acordo com Celso Sisto (2005, p.28), vivencie uma suspensão temporal, ou seja, naquele

25

exato momento não interessa mais o tempo cronológico, mas o afetivo, que é de certa forma o

elo da comunicação.

Por isso esse autor afirma com tanta sabedoria que “contar histórias hoje significa salvar o

mundo imaginário.” Celso Sisto (2005, p.28). Porque diante da sociedade em que hoje

vivemos, as imagens, em muitos casos, são reproduzidas massivamente pelos meios de

comunicação, deixando em alguns momentos pouco espaço para que as crianças exercitem a

sua imaginação criadora. Por isso a necessidade de dar outras oportunidades para a criança

trabalhar a sua imaginação criadora, como através da prática da contação de histórias, que

apesar de na maioria das vezes não trabalhar com imagens, somente com vozes, a magia das

palavras permite que a criança viaje imaginariamente para lugares diferentes, visualize cada

personagem, cada momento da história, enfim recrie e vivencie toda a história na sua mente,

sem necessariamente precisar de imagens.

Segundo Celso Sisto (2005, p. 37), “o ouvinte de uma história é ao mesmo tempo espectador

e leitor. E conjugar essas duas posições ao mesmo tempo requer traquejo”. Porém diria mais,

trata-se mais do que traquejo, de um precioso exercício de muita concentração e muita

imaginação. No transcorrer da história o ouvinte costuma tecer um emaranhado de

significados através da sua leitura subjetiva; ao mesmo tempo em que ouve

compenetradamente a história que está sendo narrada vai fazendo suas leituras não só no que

está sendo narrado, mas também, nas entrelinhas, aquilo que o narrador vai deixando no

percurso da contação.

A recepção das histórias se dá em circunstâncias psíquica privilegiada como através da

performance do narrador, pois é tão-somente neste momento que o ouvinte, segundo Paul

Zumthor (2000, p.61), encontra a obra de maneira indizível e pessoal, ou seja, é o momento

no qual ouvinte e obra se encontram e tornam-se cúmplices dos mesmos sentidos e

pensamentos concretizando finalmente a recepção. A esse respeito é importante a reflexão de,

Paul Zumthor (2000, p.59), para quem “[...] a performance é a única que realiza aquilo que os

autores alemães, a propósito da recepção, chamam de ‘concretização’”.

26

3 O CONTEXTO CULTURAL DA ESCOLA MUNICIPAL DA

ENGOMADEIRA

3.1 A escola e o bairro

Esta pesquisa foi realizada na Escola Municipal da Engomadeira que fica situada, à rua da

Engomadeira, nº 189, bairro Engomadeira – Salvador – BA, foi fundada em 1989, para

atender aos alunos da comunidade da Engomadeira, Cabula e adjacências. No ano de 1998, a

escola foi ampliada, no intuito de atender um número maior de alunos e passou a funcionar

nos três turnos. Seu público é formado por filhos de trabalhadores do mercado informal e

diaristas, sendo que muitos desses alunos ingressam na escola com uma idade avançada por

terem que trabalhar para ajudar na renda familiar, esse pode justificar o alto índice de

defasagem idade-série. A escola atende a todas as séries dos Anos Iniciais do Ensino

Fundamental, a Educação Infantil e a EJA.

Localiza-se na periferia de Salvador, em um bairro que abriga famílias de classes populares,

numa rua pavimentada, possui salas razoavelmente espaçosas, bem iluminadas, mas pouco

arejadas, água encanada, luz elétrica, telefone e o maior problema enfrentado no momento é a

segurança pública. A escola é bem localizada, vizinha de um posto médico, pois possui pontos

de ônibus muito próximos, muitas opções de linhas de ônibus que facilitam o acesso à mesma,

inclusive dos funcionários e de alunos que moram em bairros adjacentes.

O bairro da Engomadeira, onde a escola se localiza, já abrigou no passado fazendas de

coronéis e chácaras onde as pessoas cultivavam agricultura de subsistência e tinha muitas

fontes e nascentes que eram utilizadas nas tarefas domésticas, no lazer e nos ritos ás

divindades afro-brasileiras. Segundo moradores mais antigos a ação feminina foi decisiva

para a formação do bairro, tanto que o nome do bairro é decorrência da atividade mais

praticada pelas mulheres daquela época, famosas lavadeiras e engomadeiras das roupas dos

quartéis das forças armadas.

Hoje é um bairro povoado e urbanizado desordenadamente por famílias de classes populares.

É considerado um dos bairros mais violentos da cidade de Salvador e o grande índice de

27

violência se dá devido ao tráfico de drogas, fato que repercute na mídia local é visualizado e

identificado na fala dos alunos através de conversas paralelas no período das aulas e durante a

oração – prática inicial da aula – onde as crianças diariamente têm um momento para

conversar com Deus e a oportunidade de fazer seus pedidos e agradecimentos, sendo que a

maioria dos pedidos são para amenizar o sofrimento de vitimas, conhecidas ou não das

crianças, que sofreram algum tipo de violência naquela localidade.

O bairro apresenta um expressivo processo de organização cível através de entidades como:

Conselho de Moradores do Bairro da Engomadeira (COMOBE); Terreiro Kafunji Odé

L’Funji; Cooperativa múltiplas fontes de Engomadeira, (COOFE); Rádio Hits Modulada

comunitária; Terreiro Viva Deus Filho; Artebagaço Odear; Associação de capoeira de defesa

e ataque nova geração ;Grupo de capoeira angola Cabula (GCAC); Bloco afro arca do axé e

Vídeo Produtora da Engomadeira (VIPE). Essas instituições, em sua maioria, desenvolvem

trabalhos de assistência social voltados para a população local, também buscam resgatar a

auto-estima dos afro-descendentes em situação de vulnerabilidade social, através do

reconhecimento da história de seu povo contada por seus antepassados, e também colaboram

para a preservação da origem e da cultura dos seus antepassados. O foco dessas ações se

direciona para tradições e cultura afro-baiana porque o bairro da Engomadeira compõe a área

do Cabula, território remanescente de quilombo que detém um grande patrimônio cultural

vivo.

3.2 Os alunos do 5º ano B

A turma escolhida para esta pesquisa-ação foi o 5º ano B do turno vespertino, na qual estou

fazendo meu estágio supervisionado, ou seja, procurei unir “o útil ao agradável”, já que este

semestre é atípico, e foi totalmente reduzido. E também para fazer um trabalho como este,

onde atuarei como narradora mediando através das histórias e das discussões em sala de aula a

reflexão, a criatividade e a criticidade das crianças, é necessário conhecer a turma e ter certa

afinidade para que eles se sintam seguros para expor suas reflexões de forma escrita.

A turma é composta por 32 alunos, 14 meninas e 18 meninos, com a faixa etária de 09 a 17

anos, sendo que 07 deles têm a idade de 13 a 14 anos e 01 de 17 anos. A maioria deles moram

no próprio bairro ou em bairros adjacentes. A turma possui vários alunos que trabalham na

informalidade e, na maioria, pertencem a famílias constituídas por 5 pessoas, com pais

28

trabalhadores autônomos, diaristas, desempregados. Alguns deles moram com avós ou tios,

muitos têm pais separados, ou seja, a maioria deles vive a real e atual situação familiar deste

século. É percebível na fala de muitos o descontentamento dessa situação familiar, pois se

entristecem em falar que não tem pai, mãe ou por não terem a possibilidade de morar com os

pais.

A grande maioria dessas crianças nunca foi ao shopping, cinema e tão pouco ao teatro, a

diversão delas se resume em brincadeiras na sua própria rua e uma minoria que se diverte

indo a Lan House do bairro. São crianças extremamente desfavorecidas econômica e

afetivamente. Mas ainda assim, são crianças inteligentes, alegres, comunicativas e bastante

levadas.

Todos os alunos estão no mesmo nível de alfabetização, ou seja, todos sabem ler e escrever,

fato este que foi constatado mediante atividades feitas em sala de aula, a dificuldade maior da

turma são nas quatro operações matemáticas, pois a maioria deles não consegue abstrair na

hora de resolver os problemas, ainda estão muito presos ao concreto. A turma é disciplinada,

participativa e não apresenta sinais de agressividade entre si durante a aula, porém no

intervalo gostam de brincadeiras que envolvem lutas, das quais até as meninas participam.

Existe entre eles e a professora regente um respeito mútuo. Apesar de eles serem de uma

classe mais desfavorecida em vários sentidos, a professora regente não deixa que os mesmos

se sintam vitimas da situação – “uns coitadinhos” -, ela mostra que todos são muito

inteligentes e capazes de aprender, basta ter força de vontade.

3.3 A professora regente do 5º ano B

A turma do 5º ano B tem como regente a professora A. Q. com formação no Ensino Médio

em Magistério concluído no Instituto Central de Educação Isaías Alves (ICEIA), Graduada

em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pós-graduada em Pedagogia

Organizacional e Desenvolvimento de Recursos Humanos pelo Centro de Pós-graduação Olga

Metting (CEPOM), tem 33 anos de idade, e há 16 anos atua em sala de aula. A professora

regente tem um ótimo domínio da turma, não precisa em momento algum alterar a voz, é

paciente, atenciosa e carinhosa. Freire (1993, p.38) em “Professora Sim, Tia Não”, mostra que

a professora precisa ter consciência e a ousadia para se fazer educadora, com paixão e com

29

postura profissional. Portanto é indispensável uma postura profissional, mas é preciso também

amar o que faz para que sua atuação tenha um verdadeiro sentido.

A professora regente também possui um ótimo domínio dos conteúdos e procura trabalhá-los

de forma contextualizada, aproveitando sempre as experiências dos seus alunos, está sempre

valorizando as descobertas dos mesmos, admirando-os e respeitando-os. Percebe-se que o que

existe entre ela e seus alunos é uma verdadeira troca de conhecimentos, ou seja, nesta sala

todos saem aprendendo. Sabe aproveitar o tempo de aula ao máximo, utilizando-o de forma

encadeada e lógica, utiliza também todos os recursos disponíveis. Procura atender os alunos

como um todo e também individualmente, chamando a atenção para os erros ocorridos

durante as atividades e mostrando o que e como poderia estar melhorando. Como Candau

(2002, p.41) nos mostra, os problemas da prática dos educandos deverão ser considerados

como ponto de partida e ponto de chegada do processo, garantindo uma reflexão com o

auxilio de fundamentação teórica que amplie a consciência do educador em relação aos

problemas e que aponte caminhos para uma atuação coerente, articulada e eficaz, frente aos

problemas diários da sala de aula.

Foi possível ainda perceber que a professora regente é uma pessoa bem comprometida com o

seu papel de educadora, pois está sempre muito preocupada com a aprendizagem dos seus

alunos, aprendizagem esta que vai além dos conteúdos programáticos, ela se preocupa muito

com a formação social dos seus alunos e neste sentido Freire, nos chama sempre a atenção,

para a perspectiva da importância do diálogo para formação de sujeitos autônomos como um

ponto fundamental para se pensar sobre o papel da educação na construção de uma sociedade

mais democrática.

3.3.1 A professora regente do 5º ano B e a prática de narrar na sala de aula

Entrevistei a professora regente do 5º ano B com o intuito de descobrir se praticava a

contação de histórias em sala de aula e quais eram seus objetivos. Para isso convidei a

professora e ao receber uma resposta positiva, combinei com ela o local, o dia e à hora da

entrevista, em seguida organizei uma entrevista semi-estruturada, a escolha desse instrumento

de pesquisa se deu pelo fato dele possibilitar um contato direto com a fala da informante,

enriquecendo a analise das respostas, pois neste caso podemos fazer leituras até dos silêncios

do entrevistado.

30

Na entrevista que me concedeu a professora regente relatou que gosta muito de ler jornais,

revistas, livros didáticos, histórias bíblicas, entre outros. Que cresceu ouvindo o seu pai, tias e

avós contando histórias das mais variadas, desde reais até as fictícias, ou seja, era uma prática

que fazia parte do seu circulo familiar e afirma:

Minha mãe nos incentivava a ler histórias comprando muitos livros e até discos de vinil que traziam histórias contadas.

Relatou que estas histórias ouvidas durante a sua infância lhe ajudaram muito na sua

formação:

Sem dúvida ouvir histórias me ajudou a construir muitos mundos, minhas fantasias, meus sonhos, mas também, me ajudou a considerar experiências alheias e a aprender com elas de forma a superar dificuldades e a me desenvolver.

Por isso ela confessa gostar de trabalhar com a prática da contação de histórias na sua sala de

aula e para isso ela é bastante criteriosa, escolhe histórias interessantes e empolgantes que

possam ser aplicadas na vida das crianças e que também estimule a imaginação e a

criatividade, por isso costuma selecionar com cuidado as histórias que irá contar:

Seleciono-as de acordo com a faixa etária de meus alunos e seus pontos de interesse. Só conto histórias que me empolguem para que eu também tenha bastante motivação para contá-las.

Esse relato da regente vem reafirmar as observações anteriores, quando contamos uma

história que amamos, ela consegue envolver com muito mais magia e amplitude os ouvintes e

segundo Fanny Abramovich (1981, p.20) cada narrador deve ter o seu critério para escolher as

histórias que irá narrar e para isso é preciso conhecer as suas crianças e quais os seus

interesses para que a contação se torne realmente um momento de alegria e prazer.

A professora regente cita que os alunos gostam muito desta prática na sala de aula, que ficam

muito ansiosos e bastante curiosos e observa que ao ouvir as histórias muitos deles mudam o

seu comportamento perante a vida e as pessoas, se sentem mais a vontade para opinar.

Segundo ela:

Eles reagem como alguém que aprendeu com a experiência de outros, se tornam mais maduros, mais espertos, mais vividos.

Sempre que utiliza a prática de contação na sala de aula procura propor uma atividade

posterior à mesma:

31

Reconto coletivo, Interpretação de texto, apresentação teatral, transcrição do texto, desenho das cenas, etc.

Esta atitude por parte da professora regente é muito positiva, conforme Betty Coelho (1986,

p.59) que é importante propor atividades subseqüentes a contação, porque a história funciona

como um agente desencadeador de criatividade e reflexão fazendo com que cada pessoa sinta

vontade de se expressar de alguma forma.

Através dessa entrevista foi possível constatar que a professora regente é uma pessoa

realmente comprometida com a formação dos seus alunos, pois ela entende que apesar dos

seus alunos serem do 5º ano eles também precisam desses momentos de contação de histórias

para trabalhar e enriquecer a criatividade, a critica e a reflexão, como a própria Fanny

Abramovich (1981, p. 23) afirma, “[...] mesmo as crianças maiores, que já sabem ler, também

podem sentir grande prazer no ouvir...”.

É preciso que o educador que está atuando em sala de aula compreenda que as histórias não

são somente para ensinar conteúdos, mas um momento para viajar no mundo da imaginação e

quando emergir desse mundo mágico poder trazer de lá respostas para muitas perguntas,

soluções para inúmeras questões, conforme Fanny Abramovich (1981, p. 23), “Não devíamos

esquecer nunca que o destino da narração de contos é o de ensinar a criança a escutar, a

pensar e a ver com os olhos da imaginação”.

32

4 A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA ESCOLA MUNICIPAL DA

ENGOMADEIRA

4.1 Momentos da contação de histórias na turma do 5º ano B

Foram selecionadas propositalmente três histórias para serem contadas durante a aula com o

intuito de averiguar a reflexão, a criticidade e a criatividade dos alunos da turma do 5º ano B

do turno vespertino. As histórias foram contadas com o intervalo de quinze dias, respeitando o

planejamento programático da unidade. Cabe aqui ressaltar que as histórias foram contadas

com o objetivo de trabalhar a reflexão das crianças e não os conteúdos programáticos.

Estudei as histórias antes de contá-las na sala de aula, buscando me apropriar da essência e da

magia de cada uma contei várias vezes para meus filhos e para mim mesma procurando obter

um equilíbrio entre naturalidade e emoção. Quando as narrei na sala de aula busquei ser

natural, enfatizar os momentos de suspense, o tom e a modulação da voz em concordância

com as personagens. Segundo Celso Sisto (2005, p.22) para garantir que uma narração seja

viva e envolvente é necessário agregar elementos como a originalidade, surpresa, conflitos

instigantes, questionamentos nas entrelinhas e a expressividade. Por isso procurei ser bastante

expressiva, ou seja, narrei com o olhar, com a voz e com alma, pois entendo que só assim é

possível envolver as crianças neste mundo mágico das palavras e levá-las a refletirem sobre o

que ouviram.

A metodologia aplicada para alcançar tal objetivo foi à pesquisa – ação, onde atuei como

narradora procurando, de certa forma, mediar através da narração das histórias a reflexão, a

criticidade e a criatividade dessas crianças que infelizmente possuem muito poucas

oportunidades para aguçar sua imaginação criadora e sua liberdade de expor os seus

sentimentos, seus problemas, suas angústias e até mesmo relaxar e ter um momento de prazer,

ou seja, viajar na magia das palavras por puro e mero prazer. Conforme Cecília Meireles

(1981, p.154), “[...] precisamos pensar e exprimir o pensamento. Porque precisamos ser

lúcidos e exatos. O mundo sofre por uma imperfeita comunicabilidade dos homens. Não

dizemos o que pensamos? Ou não pensamos o que dizemos?”.

33

4.1.1 Primeira história contada na sala de aula: Bom dia todas as cores

Em seu livro “Bom dia todas as cores”, a autora Ruth Rocha narra a história de um camaleão

que, apesar de adorar a cor-de-rosa, sempre estava usando outras cores, isso acontecia porque

ele não sabia dizer não a ninguém e queria sempre agradar os amigos, ou seja, se deixava

levar pela opinião dos outros.

Porém, certo dia ele percebeu que essa postura estava virando um problema, pois, além de ser

cansativo mudar de cor o tempo todo, ele nunca estava feliz consigo mesmo. Foi aí que ele

descobriu que antes de agradar aos outros precisava agradar primeiro a si mesmo, a partir

desse dia mudou sua postura e passou a usar somente a cor que ele gostava sem se importar

com a opinião dos outros. E assim se tornou um camaleão mais feliz.

No intuito de verificar o comportamento dos alunos diante de uma história – meu objeto de

estudo –, utilizei a contação da história “Bom dia todas as cores” de Ruth Rocha, cujo

experimento foi realizado com a turma do 5º ano. A primeira reação da turma ao saberem que

iria lhes contar a história foi de um coro de “vivas”. Esse momento foi de suma importância,

pois representou uma aceitação e um envolvimento daquelas crianças com a minha proposta.

Após o primeiro momento de descoberta, os alunos me informaram que gostavam muito de

ouvir histórias e me pareceram entusiasmados com a idéia. Quando a história começou a ser

contada, todos ficaram em silêncio prestando muita atenção, ficaram com olhares e ouvidos

atentos e compenetrados.

A fim de averiguar a atenção e a reflexão dos alunos diante da história que ali se contava,

realizei algumas perguntas, provocativas.

- Para minha surpresa não responderam nada.

- Talvez, por ser nosso primeiro encontro, o primeiro contato direto: narradora e

ouvintes em sala de aula, a falta de costume pode ter gerado uma timidez;

- Essa postura tímida me levou a perceber que havia um certo receio para opinar sobre

qualquer coisa.

34

Ao término da narração da história, iniciou-se uma discussão sobre o que a história tratava e

se realmente haviam gostado de ouvi-la. Essa tentativa é válida, pois busca verificar o

entendimento sobre o que foi contado e se a prática da contação de história conseguia

envolver e atiçar as crianças em seu gosto.

Diante desta provocação, surgiram tímidos comentários de que a história era muito boa e um

dos alunos comentou que achou a história engraçada. Isso leva a refletir que a contação de

história foi bem recebida e o processo investigativo poderia ser aplicado. Quando

questionados sobre o que tratava a histórias apenas dois alunos fizeram comentários:

A gente tem que fazer o que gosta pró. (R.11anos) A pessoa tem que ser decidida. (A. 14 anos)

Porém um terceiro aluno ficou mais interessado em saber por que o camaleão – o animal

verdadeiro – muda tanto de cor, pergunta esta que foi respondida. Refletindo sobre o

questionamento de J. 12 anos – que perguntou sobre o camaleão – me fez perceber que a

história conseguiu envolvê-los e possibilitou uma ponte entre o mundo da história e o mundo

real, ou seja, fez com que aquela criança saísse por um momento do imaginário e buscasse

referência sobre aquela personagem, o camaleão, no seu contexto real. E esse fato foi

extremamente importante, pois foi possível perceber que a contação de história possibilitou de

alguma forma a interferência na sua aprendizagem.

Conforme Betty Coelho (1986, p.15) a história é como a uma alimentação, não se dá para um

lactente feijão, pois fará mal a ele, é preciso esperar que ele cresça e seu organismo esteja

preparado para receber este alimento. Segundo essa autora “a história também é assimilada de

acordo com o desenvolvimento da criança e por um sistema muito mais delicado e especial”.

Por isso a necessidade de se escolher a história a ser contada, tendo em vista a quem contar,

para que a contação não se torne um momento chato e sem sentido.

Outra questão que me chamou atenção foi analisar a dificuldade deles em expor o que

pensavam sobre a história através das inferências e durante a discussão. A incapacidade deles

em dialogar me deixou frustrada, tanto que conseguiu abalar a confiança que eu depositava na

prática da contação de história referente à formação reflexiva das crianças.

35

Buscando diagnosticar o que representou a prática da contação de história, solicitei, ao

término da tímida discussão, que os alunos fizessem uma redação falando sobre o seu perfil.

O título intencionalmente planejado foi “Quem sou eu?”, pois assim poderia através da

atividade verificar a reflexão critica sobre a história contada. Como planejado, em todos que

realizaram essa atividade observei: animação, envolvimento, perda da timidez e participação.

Percebi ainda, a necessidade deles em escrever tudo àquilo que não quiseram falar durante a

narração e a discussão, e escreveram de forma autônoma e livre. A percepção deste

comportamento – nas crianças – é fundamental, pois se verifica que a contação de história

interfere na auto-estima, segurança, autoconfiança e é uma atividade agregadora de valores e

rompe com a barreira entre a criança e o professor-narrador.

A leitura da atividade proposta, conforme supracitado no parágrafo anterior, seu deu em

minha residência. A ansiedade que me envolvia fez romper com a minha rotina diária – largar

os livros, beijar meus filhos, tomar meu banho e preparar o jantar –, naquele momento só o

que me interessava eram os registros das crianças, pois era extremamente importante

averiguar se realmente a contação de história tinha alcançado o meu objetivo inicial, que era

ver como elas refletiram após a narração daquela história. Para minha surpresa e alegria, todas

as redações apresentaram uma grande riqueza em termos de reflexões e criticidade,

demonstrando que realmente a contação de histórias é muito importante para a formação

reflexiva das crianças.

As redações das crianças revelaram que ao ouvir a história elas refletiram e se libertaram de

certas amarras, deixando fluir idéias e reflexões, que naquele instante diante de uma simples

folha de papel e de um momento mágico puderam abrir o coração e desabafar suas dores, falar

dos seus amores e contar seus segredos mais íntimos, sem se preocupar com a possibilidade

de alguém ler ou não.

Para ilustrar o que foi citado no parágrafo anterior, apresento o relato da aluna J.17 anos que

fez questão de registrar na sua redação os amores que teve até hoje, detalhando de como se

apaixonou por cada um deles, o que a levou deixá-los e decididamente nunca mais procurá-

los:

Comecei a namorar com 13 anos, mas minha mãe não queria, pois dizia que eu era muito nova e ele era casado. Foi quando descobri que ele estava me traindo e então terminei tudo. Depois conheci João Paulo no campo da

36

barreira, fiquei muito apaixonada por ele, no começo ele era muito bom, me agradava, mas descobri que ele também me traia, então brigamos e ele terminou tudo. Eu chorei muito e sofri, mas não quero mais saber dele. (J. 17 anos)

Esse relato da aluna demonstra que ela refletiu sobre a história narrada, tanto que buscou uma

ligação com a sua realidade, relatando estes fatos em seu perfil para provar que ela era alguém

decidida, que sabe o que quer da vida, ao contrário da personagem principal da história, o

camaleão. Conforme Fanny Abramovich (1991, p.17) ao se deparar com as personagens das

histórias a criança pode “[...] esclarecer melhor as próprias dificuldades ou encontrar um

caminho para a resolução delas...”

Outro caso de reflexão interessante, decorrente dessa contação de história foi a do aluno D. 11

anos, que utilizou desse momento para relatar o seu sofrimento por presenciar, junto com seus

irmãos, o pai agredir fisicamente a mãe e em seguida a alegria e o alivio de ver o pai partir,

deixando-os em paz:

Eu e meus irmãos chorávamos, porque não agüentávamos ver meu pai e minha mãe brigando. Meu pai chegava a bater na minha mãe. Eu agradeço porque o meu pai foi morar na casa da minha avó. E assim nós estamos felizes porque não estamos mais vendo meu pai e minha mãe brigarem. (D. 11 anos)

É possível averiguar neste caso que a contação de histórias, por se tratar da história pessoal

de alguém, o camaleão, que passou por um problema, mas um belo dia resolveu superá-lo, o

ajudou emergir do imaginário da história e relatar sem medo seus problemas reais e confessar

como estava aliviado e feliz por estar superando o seu problema. Segundo Fanny Abramovich

(1991, p.17) as histórias possibilitam a descoberta de um mundo imenso de conflitos e

impasses, mas também de soluções do qual todos vivemos e atravessamos, por isso

dependendo do momento que a criança está vivendo ela pode se identificar com as

personagens, com seus problemas e suas soluções.

O mesmo ocorreu com o aluno D. C. 11 anos que revelou na sua redação ser apaixonado por

uma colega de classe, segredo este que ele só dividia com o seu melhor amigo:

A menina que eu mais gosto é Carolaine e o meu amigo mais querido é Rodrigo, só ele sabe que eu gosto dela. Ela é muito bonita e eu acho que ela também gosta de mim. (D. C. 11 anos)

37

Aqui foi possível constatar que ele se sentiu tão à vontade, após ouvir a história, que revelou

seu segredo mais intimo, em sua redação é interessante perceber é que da forma como

escreveu era como se ninguém fosse ler aquilo que ele escreveu, por isso ele se sentiu livre

para falar do seu amor.

Mediante esta história, ainda foi possível perceber que todas as crianças tiveram a necessidade

de revelar as expectativas futuras do que gostariam de ser quando crescesse, assim como

registraram também quais as pessoas da família que mais gostavam ou detestavam. Neste

momento é possível averiguar a necessidade que as crianças têm de falar de si, dos seus

sonhos e sentimentos e a contação da história dá esta oportunidade, libertando-as para que

falem um pouco de si sem medo, sem vergonha ou qualquer outro sentimento de reprovação.

E para comprovar o que foi dito, cito abaixo alguns relatos que foram registrados nas

produções escritas dos alunos:

O que eu mais odeio é o meu irmão ele é insuportável. (I. 11 anos) Eu gosto muito de bater no meu irmão, de reclamar com ele. Eu fico muito nervosa porque ele também gosta de me bater. Meu pai reclama comigo porque bato no meu irmão, mas eu não obedeço ao meu pai e nem a minha mãe. (M. A. 12 anos)

Eu gosto muito da minha família principalmente da minha vó Clarice, ela mora no interior, mas sempre que posso vou visitá-la. (P. 9 anos) Eu gosto muito dos meus irmãos, dos meus amigos e da minha mãe. Eu amo o meu pai. (I. 12 anos) Eu quero ser quando crescer eletricista como o meu pai. (M. 11 anos) Eu quero ser um administrador de empresas e viajar por vários países. (A. 14 anos) Adoro animais e quando eu crescer quero ser uma veterinária. (C. 11 anos) Adoro cozinhar, inventar comidas diferentes, acho que quando crescer vou ser cozinheiro. (R. T. 13 anos)

Segundo Nely Novaes Coelho (2000, p. 54), as histórias são extremamente importantes nesta

fase de amadurecimento interior e para a formação da criança e na relação que estabelece

entre si mesma e o mundo à sua volta. As diversas facetas das personagens ajudam as crianças

a compreenderem certos valores básicos da conduta humana ou do convívio social.

38

4.1.2 Segunda história contada em sala de aula: A serpente de Olumo

O autor Félix Omidire narra no seu conto “A serpente de Olumo” a história de Ayobami, um

belo jovem que ao chegar à idade de se casar precisou se decidir entre duas pretendentes, Olu

e Yemessi, sendo que ambas eram suas amigas de infância, muito bonitas e gostavam muito

dele. Diante de tamanha indecisão do pobre moço, os deuses resolveram dar “uma mãozinha”

e enviaram uma serpente mágica que mordeu Ayobami e o levou a óbito deixando suas

pretendentes desesperadas.

Diante do desespero uma delas, Olu, pediu para que a serpente também lhe mordesse, pois

preferia morrer com o seu amado a viver sem ele, e a serpente prontamente lhe atendeu. Já a

outra pretendente, Yemessi, resolveu matar a serpente para vingar o seu amado, mas, muito

astuta fez um acordo com a jovem prometendo que, ressuscitaria o seu amado, se ela a

deixasse partir viva, mas impunha outra condição teria que ressuscitar também a outra

pretendente. Após, fechar o trato os falecidos foram ressuscitados.

Depois de voltar à vida e se deparar com suas duas pretendentes Ayobami, não perdeu mais

tempo em ficar pensando com quem se casaria, decidiu logo. Porém, o autor da história não

afirma qual foi à escolhida, com quem ele casou e utiliza esse artifício, na verdade, para

provocar a imaginação de cada ouvinte. Terá aqueles que irão preferir aquela que morreu por

amor a ele e outros que irão preferir àquela que o trouxe de volta a vida.

Esta história foi contada a turma do 5º ano B, com o intuído de averiguar a reflexibilidade, a

criticidade e a criatividade das crianças. Ao comunicar que seria contada uma história, todos

reagiram como da primeira vez, com muita alegria e ficaram bastante motivados para ouvir.

Isso demonstrou que realmente esta prática leva alegria e motivação para a sala de aula, mais

um fator positivo para que essa prática seja adotada e utilizada com mais freqüência pelos

professores.

A história envolveu totalmente os alunos, não houve nenhum que ficasse alheio a contação,

todos de olhos fixos e os ouvidos atentos, para não perder um detalhe da história. Quando um

interrompia para perguntar algo os outros colegas ficavam chateados com a interrupção,

pediam silêncio, pois estavam curiosos para saber o que iria acontecer no final. Neste

momento ficou claro o quanto a contação de histórias aguça a curiosidade das crianças e ajuda

39

a concentração e a construção do hábito de ouvir. Hábito este que atualmente está cada vez

mais difícil de presenciar na sociedade em que vivemos.

Ao contrário da primeira história, onde quase ninguém quis opinar, desta vez todos queriam

falar, tinham algo a dizer sobre o que ouviram e dar sua opinião sobre com quem à

personagem principal, Ayobami, deveria se casar. Neste exato momento foi diagnosticado que

histórias com suspense, que envolvem magia são mais indicadas para esta faixa etária (9-17),

pois prende a atenção dos ouvintes, envolvendo-os com maior profundidade ao contexto da

história narrada. Por isso, é importante fazer uma seleção inicial das histórias que serão

contadas. Segundo Betty Coelho (1986, p.13) é preciso levar em conta ao fazer este

levantamento bibliográfico ”[...] entre outros fatores, o ponto de vista literário, o interesse do

ouvinte, sua faixa etária, suas condições sócio-econômicas”.

Ao término da história, apenas um aluno R.T. 12 anos se posicionou afirmando “não ter

gostado do final”, pois gostaria que o autor definisse o final da história, e que de preferência

fosse um final feliz. Demonstrando como as crianças estão habituadas a ouvirem sempre

histórias com um final estabelecido e feliz, mostrando assim a necessidade de também se

contar na sala de aula histórias onde o final não seja tão previsível, para que as crianças

exercitem sua reflexibilidade, sua criatividade e sua criticidade, discutindo entre si sobre qual

seria, na opinião de cada um o final da história, quais as decisões que tomariam a respeito do

final, como provocações para deixar a imaginação correr solta. Os demais adoraram a história,

todos tinham algo para dizer sobre o que acabaram de ouvir, deixando perceber que uma

simples história pode mexer com o pensamento das crianças.

Ao término da discussão solicitei que as crianças criassem um final para a história que haviam

acabado de ouvir de acordo com o desejo e a criatividade de cada um. A maioria dos meninos

foi categórica, achavam que a personagem principal, Ayobami, deveria se casar com uma e

namorar a outra às escondidas ou ficar com as duas. Fato este pode ser explicado à

necessidade de auto-afirmação do gênero masculino, além de sugerir que na nossa sociedade

em que vivemos, muitos homens ainda acham que precisam ter mais de uma mulher para

afirmar sua masculinidade, essa conduta moral é muitas vezes passada para o menino através

do seu contexto sócio cultural no qual a figura masculina que possui uma referência

fundamental. Constatou-se também na opinião apresentada pelos meninos, que quando o

assunto em pauta é amor os homens, na maioria, são mais práticos.

40

Ayobami deveria se casar com uma e continuar namorando a outra, escondido. (R. 14 anos) Coitado de Ayobami morreu virgem, se eu fosse ele casaria com as duas. (R. G. 11 anos) Ele casou com as duas. (R.11 anos)

Já as meninas se pronunciaram de forma romântica, ou seja, apesar de estar conquistando

pouco a pouco o seu espaço na sociedade atual a mulher não deixa o seu lado romântico

sucumbir, umas achavam que ele deveria se casar com aquela que morreu por amor e outras já

achavam que ele deveria casar com aquela que o ressuscitou. Portanto nesta situação foi

averiguado que quando se trata de situações “do coração”, as mulheres tende a refletir com

romantismo.

Ele escolheu se casar com Olu porque ela morreu por amor a ele, e com isso ela provou o seu amor. (A. 9 anos) Ele decidiu ficar com Yemessi, a mulher que salvou a vida dele. E eles viveram felizes para sempre. (C. 12 anos) Se eu fosse ele eu casava com Yemessi, porque ela salvou a vida dele. (E. 9 anos)

Celso Sisto (2005, p. 23) nos mostra que “as histórias são feitas, na cabeça do ouvinte, pela

construção de expectativas, frustrações, reconhecimentos e identidades”. O fato das crianças

ouvirem a mesma história e terem construído um final diferente uma das outras, explica que

naquele momento cada uma teceu diferentemente os significados de acordo com seu contexto

social, suas expectativas de vida e sua identificação pessoal.

4.1.3 Terceira história contada em sala de aula: O cavalo voador ou Julieta e Custódio

Esta história é uma adaptação do cordel O cavalo voador ou Julieta e Custódio do autor José

Costa Leite, que relata a emocionante aventura de Custódio, um camponês simples que com a

ajuda de um cavalo voador que na verdade se trata de um ser mágico, busca vencer vários

obstáculos, o principal deles é superar seu próprio medo, enfrentar e vencer um gigantesco

monstro marinho que mantinha aprisionada em uma das torres do seu castelo, para resgatar

sua amada a bela princesa “Julieta” que havia sido seqüestrada.

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Com muita dificuldade e uma grande ajuda do cavalo voador Custódio conseguiu vencer o

gigantesco monstro marinho e resgatar Julieta. Ao retornar ao castelo do Limo Verde, no qual

reinava Julieta, foram recebidos com uma grande festa e em seguida os dois jovens se

casaram e foram muito felizes.

O cavalo voador como era um ser mágico, foi enviado exclusivamente para auxiliar Custódio

na busca da princesa Julieta, após terem conseguido o feito ele se transformou em uma linda

garça e da forma mágica que apareceu no caminho de custódio, foi embora.

Ao iniciar a história percebi que muitos deles estavam desatentos e inquietos, talvez pelo fato

da sala de aula estar muito quente devido o calor que fazia naquele dia, mas pouco a pouco

eles foram se aquietando e se interessando pela história que estava sendo narrada e terminou

que todos se interessaram de uma forma que não viam a hora de chegar ao final para descobrir

o que realmente iria acontecer, se a personagem principal ia se tornar um grande herói ou

seria vencido pelo medo e desistiria da sua princesa amada, ou seja, a narrativa da história

conseguiu prender a atenção de todos. Conforme Bettelheim (1980, p.13) para uma história

prender a atenção de uma criança ela deve entretê-la e despertar sua curiosidade, mas para ter

algum significado para a sua vida ela deve também lhe estimular a imaginação ajudando-a a

desenvolver o seu intelecto e deixar claro suas emoções.

Ao término da história todos se deram por satisfeitos, pois a personagem principal, Custódio,

era realmente um herói e o final foi feliz. Aproveitando o ensejo da discussão sobre o

comportamento da personagem principal, levantei uma discussão que os levou a refletir sobre

o sentimento do medo, o porquê desse sentimento, do que realmente sentiam medo, quando

sentiam medo e como cada um deles conseguiam vencer ou não este medo?

Os alunos responderam que a maioria tinha muito medo de morrer de bala perdida, ou em

assalto, esse sentimento pode ser explicado no cotidiano dessas crianças já que convivem

freqüentemente com um auto-índice de violência no bairro em que moram, infelizmente a

Engomadeira é considerado um dos bairros mais violentos da cidade de Salvador, fato este

visível na mídia local.

Não gosto da rua em que moro, porque tem muita violência, muitos tiroteios e morrem muitas pessoas, tenho medo de morrer também com uma bala perdida. (E. 11 anos)

42

Eu tenho medo de perder a minha vida. O meu sonho é ir embora dessa Engomadeira. (I. 12 anos) Eu tenho medo de morrer de bala perdida. (J. 10 anos) Tenho medo de estar andando na rua de noite e receber do nada uma bala perdida no coração. (M. 14 anos)

Logo após a discussão solicitei que cada um registrasse em uma redação os seus medos e

como costumavam vencê-los, para verificar se tudo aquilo que foi relatado oralmente durante

a discussão refletia o sentimento de medo e se concretizaria na escrita. De acordo com

Bettelheim (1980, p.18) na maioria das vezes a criança tem certa dificuldade em expressar

certos sentimentos em palavras, neste caso o medo. Mas aos poucos foram surgindo na folha

de papel os relatos de cada um:

Morro de medo de barata voadora, porque um dia uma saiu voando atrás de mim, mas para vencer este medo só basta eu ser forte e acreditar em Deus, que ele vai me proteger. (C. 12 anos) Eu tenho medo de barata e rato, mas prá não ter medo eu chamo a minha mãe e o meu pai. Um dia o meu medo vai acabar e eu vou ser muito corajosa para matar as baratas e os ratos. Meus pais são uns heróis. (D. 12 anos) Eu tenho medo de perder a minha mãe, porque não vou ter mais o seu carinho, nem a sua comida deliciosa e também não vou ter mais ninguém para me ajudar nas coisas que eu não sei fazer. (D. 11 anos) Eu tenho medo da minha mãe morrer, e se ela morrer não tenho mais ninguém para cuidar de mim. Eu tenho medo de perder a minha irmã como eu perdi o meu pai. (J. 13 anos) Eu tenho medo de perder os meus familiares e tenho medo de morrer. A minha vida é muito importante para mim. Agora eu não tenho mais medo graças a Deus. (L. 9 anos) O medo é algo sem explicação, muitas vezes eu tenho medo, vou ser sincero, do escuro e de vozes. Tenho medo também de morrer cedo, de tomar um tiro ou uma facada. Mas eu tento superar esse medo porque servo de Deus não tem que ter medo. (L. 13 anos) Eu tenho medo de perder a minha família e também tenho medo de morrer cedo demais, eu quero esquecer isso porque eu sei que Deus não vai deixar isso acontecer comigo. (P. 9 anos) Eu tenho medo de morrer, de perder meus pais, mas para eu vencer meu medo eu preciso ter fé em deus porque ele meu protetor. Eu quero ter coragem para enfrentar o meu medo. (M. 9 anos)

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Além dos medos comuns de crianças dessa idade é fácil perceber que eles têm medo da morte,

seja das suas mesmas ou das pessoas que amam. Esse sentimento não deveria prevalecer nesta

idade, acredito que manifestação de medo ocorre devido à violência que eles presenciam no

bairro onde moram e também por ser uma temática muito explorada pela mídia, hoje o que

predomina nos tele-jornais que mais assistimos são fatos ligados a violência no Brasil, no

mundo. Isso acaba criando um sentimento de insegurança para as pessoas, e isso não poderia

ser diferente para as crianças já que elas são mais frágeis e mais vulneráveis.

As crianças demonstram também um medo excessivo de perder aqueles que são o seu porto

seguro, os pais e seus familiares, porque eles são tudo o que estas crianças têm no mundo, o

seu ponto de referência, seu aconchego e sua proteção, principalmente hoje que as crianças

não crescem mais dentro da segurança de uma família numerosa ou de uma comunidade bem

estruturada, se imaginar sem eles é perder o rumo é perceber o quanto o ser humano é frágil

diante deste imenso mundo em que habitamos.

Nos relatos citados avaliei também que as crianças conseguem vencer o seu medo através dos

seus heróis mortais, seus pais, ou então através de Deus, ou seja, demonstram claramente que

a fé em um ser supremo é algo muito presente nas suas vidas. Fato este muito incentivado

pela professora regente da turma, tanto que ela criou o momento da oração, para eles exporem

seus pedidos e agradecimentos a Deus, antes de iniciar a aula.

Conforme Fanny Abramovich (1991, p.17), ouvindo histórias às crianças podem sentir

emoções importantes, como a tristeza, a raiva, o medo, a alegria, o alivio, a insegurança, entre

outras, e ainda segundo a autora “[...] e viver profundamente tudo o que as narrativas

provocam em quem as ouve – com toda a amplitude, significância e verdade que cada uma

delas fez (ou não) brotar...”.

Somente dois alunos disseram que já havia sentido medo quando pequenos, mas agora que já

estavam grandes não tinham medo de nada. Isto me pareceu mais uma forma de demonstrar

que já era grande o suficiente para sentir medo. Eles são alunos que não gostam muito de

serem repreendidos quando estão fazendo algo de errado, se acham adultos e auto-suficientes.

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Eu não tenho medo de nada, mas quando eu era pequeno eu tinha medo de morrer, mas depois como eu fiquei maior vi que não ia ficar para semente. (R. G. 12 anos) Eu não tenho medo de nada, perdi o meu medo quando eu tinha 3 anos, antes até que eu tinha medo de me machucar, da minha mãe me bater. (S. 13 anos)

Como deixei todos muito à vontade para relatarem o seu sentimento de medo da maneira que

desejassem, teve alunos que criaram com muita imaginação e criatividade uma história onde a

personagem principal eram eles lutando contra o seu medo, ou seja, eles eram os heróis da sua

própria história.

Pablo e o dragão da caverna foi o título que R. 11 anos deu a sua história, que se parece muito

com a história que narrei para a turma, só com uma diferença, o seu inimigo era um dragão

que morava em uma caverna junto com um feroz dinossauro. Mas o corajoso Pablo conseguiu

salvar sua princesa, neste caso ela se chamava Margarida, se casaram, tiveram oito filhos e

foram felizes para sempre.

Já D. C. 11 anos deu a sua história o titulo de D. C. e a caverna do dragão onde um menino de

11 anos sai em busca de um diamante que ajudaria a salvar o seu reino. Ele tinha recebido de

um velho sábio um dom, mas só poderia usar este poderoso dom o dia que perdesse todos os

seus medos, que eram morrer afogado e levar um tiro na guerra. E isso ocorreu quando ele

chegou à caverna do dragão, onde estava escondido o tal diamante. Ele se deparou com um

grande lago profundo e muitas armas penduradas em uma parede, mas pelo seu reino ele

enfrentou o seu medo mergulhou no lago e pegou o diamante, tornando-se em seguida

magicamente um adulto.

Estas histórias criadas por estes dois meninos para falar dos seus medos demonstram o desejo

de cada um deles ser um herói. Mas quem nunca desejou, ao ouvir as histórias de heróis, ser

um deles? Seja buscando se sentir mais forte, mais inteligente ou corajoso para enfrentar os

seus medos de frente como um verdadeiro herói! Portanto estas entre outras, são reflexões que

podem ser feitas pelas crianças ao ouvir uma história, criando nelas uma atitude mais critica

diante do que ouvem, e isso pode ocorrer a partir do momento que elas façam uma ponte entre

o mundo da fantasia e o mundo real, vendo que muitas das coisas que ouvimos nas histórias

fazem bem para a nossa alma e outras servem para nos alertar que nem tudo é maravilhoso e

que na vida devemos ter uma posição diante dos fatos e das exigências que a sociedade nos

45

impõe. Criando nelas coragem para vencer seus medos e buscar vencer todos os obstáculos,

tendo a certeza que, como um herói, elas poderão alcançar o que desejam, basta ter coragem,

conforme Bettelheim (1980 p. 32) “Os contos de fada declaram que uma vida compensadora e

boa está ao alcance da pessoa apesar da adversidade, mas apenas se ela não se intimidar com

as lutas do destino, sem as quais nunca adquire identidade”.

Teve ainda uma terceira história, mas esta quem criou foi uma menina R. 12 anos. Ela narra à

história de Chapeuzinho Vermelho, que neste caso é ela, que no caminho para a casa da vovó

encontra um homem que apesar de ser seu conhecido, ela inicialmente se recusa a conversar

com ele, pois diz que a mãe não a autoriza falar com estranhos. Ele insiste, ela com medo por

estar só na floresta titubeia, pois ele aparentemente pode ajudá-la naquele momento de

insegurança, mas segue o seu caminho. Quando chega à casa da vovó encontra um lobisomem

no lugar dela, e a pobre velhinha presa no armário, o lobisomem pede para ela fazer um chá,

com isso ela esquece o fogo ligado. Em fim quando ela se dá conta que o lobisomem havia

tomado o lugar da vovó, já é tarde demais, pois ele esta preste a comê-la, nisso o fogão

explode e surgem muitos bombeiros que além de apagar o fogo prendem o lobisomem, e avó

e neta terminam felizes para sempre.

Portanto neste texto criado por R 12 anos para relatar o seu medo, além de apresentar muita

criatividade é também muito interessante já que ela se utiliza de um conto de fadas. Conforme

Bettelheim (1980, p.205) “[...] só a criança pode saber quais os significados são importantes

para ela no momento” e a história só alcança um sentido pleno para a criança quando ela

descobre espontaneamente os significados previamente ocultos, por isso nunca se deve narrar

os contos detalhando os significados, porque além de quebrar o encanto da história também

destrói a amplitude dos significados que cada criança encontrará de acordo com a sua

necessidade.

Esta personagem, “Chapeuzinho Vermelho” nos leva a refletir sobre o fato de que não

devemos confiar nas boas intenções de todos, porque muitas vezes as intenções podem não ser

tão boas quanto se pensava e nos colocar como reféns de armadilhas. Há algo no lobo mau

que nos atrai de forma que ele acaba tendo um poder sobre nós, portanto é preciso descobrir o

que o torna atraente aos nossos olhos e assim se dar conta de que “Por mais atraente que seja a

ingenuidade, é perigoso permanecer ingênuo toda a vida”. (BETTELHEIM 1980, p.209).

46

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não importa se contamos para instruir ou divertir, para curar, salvar ou embalar. O que não podemos esquecer é que temos nas mãos, ou melhor, na voz, um produto oriundo do imaginário dos nossos ancestrais e, se queremos nos apropriar dele para encantar, é necessário a consciência de que “o amor à palavra é uma virtude; seu uso, uma alegria.

CLÉO BUSATTO

A escola precisa abrir as portas para a contação de histórias também para as crianças dos

Anos Iniciais, romper com essa idéia de que esta é uma prática aplicável e importante

somente para a Educação Infantil. Deixar-se levar pela magia das palavras e com elas

mergulhar no mundo da imaginação é um prazer que todo e qualquer ser humano deveria

experimentar para ter o direito de se deleitar independente da sua idade.

Entretanto o professor precisa ter a consciência de que a contação de histórias não deve ser

utilizada na sala de aula com as crianças dos anos Iniciais somente para trabalhar conteúdos

programáticos ou para aprenderem “a moral da história”, mas para aguçar a criatividade e

ajudar aos seus alunos a exercitarem mais as críticas e as reflexões, ou seja, o objetivo é

formar pessoas bem resolvidas psicologicamente que saibam ouvir o outro. Ter cuidado para

não esmiuçar as histórias quebrando o encanto da narrativa; é interessante deixar que a

criança vá tecendo através das histórias narradas os seus significados, ela saberá com certeza

retirar das histórias o que realmente lhe interessa e o que é importante para si.

A contação de histórias trás em sua essência, uma pedagogia para a sensibilidade, para a

compreensão e para o respeito mútuo, leva as crianças refletirem sobre situações do seu

cotidiano, ensina a ouvir e também a compartilhar, porque a aprendizagem é compartilhada

entre quem narra e quem ouve, onde os segredos da narrativa integram performance e

recepção, portanto esta prática é um processo de interação, onde de alguma forma ouvinte e

narrador interagem através da palavra, do olhar e do silêncio das pausas.

É maravilhoso no momento da narração, olhar para cada rostinho e ver a alegria, o prazer e a

curiosidade aguçada, naquela expectativa do próximo passo do enredo, querendo saber o que

mais a narrativa reserva, os olhares acompanhando cada movimento, cada pausa, cada

palavra. A contação de histórias realmente é um momento mágico onde os olhares interagem

47

entre o silêncio e as batidas do coração, onde é permitido se deixar levar pelas emoções e

viajar sem precisar sair do lugar, onde sonhar acordado não é proibido.

Este estudo só veio reafirmar a hipótese que eu já havia levantado desde o inicio da minha

pesquisa, que realmente a contação de histórias é algo mágico e que ajuda muito na formação

reflexiva e critica das crianças dos Anos Iniciais, considero que os objetivos da minha

pesquisa foram alcançados, pois os textos escritos pelos alunos do 5º ano B da Escola

Municipal da Engomadeira, após as contações de histórias feitas em sala de aula são de uma

riqueza imensurável.

Através desses textos pude averiguar a criatividade, a criticidade e a reflexibilidade de cada

criança daquela turma, através da narração das histórias eles se libertaram de amarras, do

medo e da vergonha, e sem maiores segredos foram relatando tudo o que os deixavam felizes,

tristes, medrosos, angustiados, amorosos, irados, enfim todo e qualquer sentimento que

naquele momento emergiu junto às reflexões feitas a partir de cada história ouvida.

Foi um trabalho de muita emoção, ao passo que fui lendo as reflexões feitas pelos alunos do

5º ano B, posso dizer que teve momentos que me admirei com tamanha criatividade, cada

história linda e criativa, outros achando muita graça das histórias divertidas e em outros chorei

em me deparar com relatos de dor, mágoa e medo, verdadeiros desabafos, exposições de

situações de tensões familiares e sociais que não deveria fazer parte da infância de ninguém.

Acompanhei nos relatos que são crianças que vivem a sombra da violência, todos

expressaram que têm muito medo de morrer, não me lembro em momento algum da minha

infância ter sentido medo de morrer [...] Essa exposição me entristece muito, porque vejo

neste medo de morrer relatado por todos os alunos um aspecto constitutivo do mundo que se

vive hoje, no qual a violência cresce em múltiplas direções de forma descontrolada. Vejo aqui

mais um motivo para levar a contação de histórias para as salas de aula, buscando além de

trabalhar a critica, a reflexão e a criatividade das crianças, também proporcionar momentos de

cor, de magia e encantamento para estas crianças que tem vivido dias tão nublados... tão

difíceis.

Percebo que através deste meu estudo na turma do 5º ano B, eu poderia ter feito muitas outras

descobertas, ter esmiuçado mais as reflexões feitas por eles e até quem sabe me aprofundado

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na linha da interpretação do comportamento, mas infelizmente devido ao semestre atípico que

tivemos, totalmente reduzido, acabei tendo muito pouco tempo para concluir essa monografia.

Portanto esclareço que este estudo não acabou por aqui, pois o mesmo apresenta novas

possibilidades de investigação em estudos posteriores, tanto no âmbito da atuação do

professor-narrador, como no âmbito da formação reflexiva dos alunos, perpassando por um

olhar psicanalítico.

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