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1 Introdução A síndrome de Asperger, SA daqui por diante, tem sido caracterizada por dificuldades de relacionamento interpessoal e comportamento “autístico”, mas com bom nível cognitivo. Atualmente, manuais de medicina como o DSM IV e CID 10 afirmam que a linguagem desses sujeitos não apresenta alterações relevantes, o que é bastante questionável. Nos escritos sobre o assunto destacam-se dois pioneiros que descreveram o Autismo: Leo Kanner (1943) nos Estados Unidos e Hans Asperger (1944) na Áustria, cujo trabalho foi escrito em idioma alemão, em 1944. O trabalho deste segundo pesquisador não foi amplamente divulgado na época devido talvez à dificuldade de leitura da língua alemã em diversos países. Nos dois trabalhos os autores chamaram atenção para o fato de que crianças diagnosticadas como portadoras da SA apresentavam características comuns e notáveis, presentes provavelmente desde o nascimento. Foram enfatizados aspectos relacionados à forma particular de comunicação, à dificuldade de adaptação ao meio social, às estereotipias motoras e ao caráter enigmático e irregular das capacidades intelectuais. Ambos denominaram tal patologia de “autismo”, inspirando-se no termo utilizado por Ernst Bleuler em 1911, para descrever um dos sintomas de base da esquizofrenia, caracterizado pelo isolamento social (FRITH, 1991). A definição de autismo, ou psicopatia autística, dada por Asperger (1944), é mais ampla que a de Kanner (1943), pois este autor inclui inicialmente tanto pacientes com lesões orgânicas graves, como pacientes próximos da “normalidade”. Asperger (1944) descreveu crianças com uma alteração fundamental manifestada através de seus comportamentos e modos de expressão, com dificuldades consideráveis e típicas na integração social: a singularidade do olhar, a mímica facial pobre, a utilização da linguagem de forma pouco natural, a falta de linguagem infantil

monografia v definitiva - humanas.ufpr.br · 2 típica para a idade, a falta de humor, o pedantismo, a invenção de palavras, a impulsividade de difícil controle, a dificuldade

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Introdução

A síndrome de Asperger, SA daqui por diante, tem sido caracterizada por dificuldades de

relacionamento interpessoal e comportamento “autístico”, mas com bom nível cognitivo.

Atualmente, manuais de medicina como o DSM IV e CID 10 afirmam que a linguagem desses

sujeitos não apresenta alterações relevantes, o que é bastante questionável.

Nos escritos sobre o assunto destacam-se dois pioneiros que descreveram o Autismo:

Leo Kanner (1943) nos Estados Unidos e Hans Asperger (1944) na Áustria, cujo trabalho foi

escrito em idioma alemão, em 1944. O trabalho deste segundo pesquisador não foi amplamente

divulgado na época devido talvez à dificuldade de leitura da língua alemã em diversos países.

Nos dois trabalhos os autores chamaram atenção para o fato de que crianças

diagnosticadas como portadoras da SA apresentavam características comuns e notáveis, presentes

provavelmente desde o nascimento. Foram enfatizados aspectos relacionados à forma particular

de comunicação, à dificuldade de adaptação ao meio social, às estereotipias motoras e ao caráter

enigmático e irregular das capacidades intelectuais. Ambos denominaram tal patologia de

“autismo”, inspirando-se no termo utilizado por Ernst Bleuler em 1911, para descrever um dos

sintomas de base da esquizofrenia, caracterizado pelo isolamento social (FRITH, 1991).

A definição de autismo, ou psicopatia autística, dada por Asperger (1944), é mais ampla

que a de Kanner (1943), pois este autor inclui inicialmente tanto pacientes com lesões orgânicas

graves, como pacientes próximos da “normalidade”. Asperger (1944) descreveu crianças com

uma alteração fundamental manifestada através de seus comportamentos e modos de expressão,

com dificuldades consideráveis e típicas na integração social: a singularidade do olhar, a mímica

facial pobre, a utilização da linguagem de forma pouco natural, a falta de linguagem infantil

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típica para a idade, a falta de humor, o pedantismo, a invenção de palavras, a impulsividade de

difícil controle, a dificuldade de aprender o que lhes é ensinado, a freqüência de áreas de

interesse especiais, a capacidade freqüentemente presente para a lógica abstrata e as

peculiaridades da linguagem não verbal: falta de contato olho a olho, as alterações de gestos, de

postura, e de qualidade vocal.

Segundo Volkmar e Klin (200) O documento pioneiro de Hans Asperger foi um marco

para a psiquiatria infantil, mesmo que de forma tardia, a comunidade científica teve acesso a este

trabalho e, a partir do início dos anos 80, cresceu o interesse por Hans Asperger e pela síndrome

por ele descrita.

Em crianças com esta síndrome, as dificuldades não se limitam ao relacionamento com o

outro, mas também afetam a forma de lidar com objetos. Hans Asperger relatou em seu trabalho

as obsessões desses sujeitos por coleções de objetos. Asperger superestimou as habilidades

intelectuais, apesar de ter reconhecido na síndrome a existência de déficits de atenção e distúrbios

de aprendizagem em crianças, segundo ele, com bom nível intelectual. Na maior parte dos casos

a característica mais flagrante é a falta de integração no grupo social, mas, em outros casos, esta

falta é compensada por uma originalidade particular na forma de pensar, que pode levar a

capacidades excepcionais. Em seus últimos artigos, Wing (1991), estudiosa do Autismo,

enfatizou dois aspectos a respeito da síndrome: o alto grau de inteligência e a presença de

habilidades especiais nas áreas da lógica e abstração.

Os “talentos excepcionalmente brilhantes”que esses indivíduos apresentam surpreendem

as pessoas a sua volta. É comum a memorização de trechos de catálogos telefônicos, bandeiras de

todos os países, algumas vezes acompanhada da memorização de todas as capitais e dos hinos

nacionais, capacidade surpreendente para calculo matemático, memorização de horários de

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partidas de trens ou ônibus, memorização de resultados de jogos de futebol em anos seguidos,

capacidade surpreendente para executar partituras musicais de memória, entre outras

possibilidades que apareçam como obsessões. A hiperlexia (grande habilidade para leitura e o

fascínio por letras).também pode aparecer exacerbada, sendo um sintoma de alguns indivíduos

com Síndrome de Asperger.

Provavelmente toda essa descrição fez com que a terminologia Síndrome de Asperger

passasse a ser reservada aos sujeitos com características autísticas com acentuado nível de

inteligência e que, segundo os manuais não apresentam alterações na linguagem. Este pode não

ter sido o objetivo principal da pesquisa do médico austríaco, mas se tornou extremamente útil do

ponto de vista clínico.

A Síndrome de Asperger é vista de forma distinta do autismo, sobretudo pela melhor

comunicação, assim como pela melhor facilidade de obter sucesso na adaptação social. Há

autores que sugerem que a Síndrome de Asperger seja uma entidade clínica separada e não

meramente um subgrupo do Autismo; outros autores defendem que a S.A e o Autismo de Alto

Funcionamento( High Functioning Autism ) são síndromes semelhantes. Entretanto, a maioria dos

trabalhos assume que ambas as sindromes fazem parte do espectro autístico.

De qualquer forma, atualmente o diagnóstico da Síndrome de Asperger é amplamente

difundido e sua classificação faz parte, dentre outros manuais, do CID 10 (ORGANIZAÇÃO

MUNDIAL DE SAÚDE, 1993) e do DSM IV ( ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE

PSIQUIATRIA, 2002). Em relação ao DSM IV, para elaboração do diagnóstico médico do

Transtorno de Asperger, terminologia utilizada por este manual, que o situa dentro do âmbito dos

Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, são utilizados os seguintes critérios:

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Critérios Diagnósticos para F84.5 - 299.80 ou Transtorno de Asperger

A. Prejuízo qualitativo na interação social, manifestado por ao menos dois dos seguintes

quesitos:

(1) prejuízo acentuado no uso de múltiplos comportamentos não-verbais, tais como

contato visual direto, expressão facial, posturas corporais e gestos para regular a

interação social

(2) fracasso para desenvolver relacionamentos apropriados ao nível de

desenvolvimento com seus pares

(3) ausência de tentativa espontânea de compartilhar prazer, interesses ou realizações

com outras pessoas (por ex., deixar de mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse

a outras pessoas)

(4) falta de reciprocidade social ou emocional

B. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e atividades,

manifestados por ao menos um dos seguintes quesitos:

(1)insistente preocupação com um ou mais padrões estereotipados e restritos de

interesses, anormal em intensidade ou foco

(2) adesão aparentemente inflexível a rotinas e rituais específicos e não funcionais

(3) maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por ex., dar pancadinhas ou

torcer as mãos ou os dedos, ou movimentos complexos de todo o corpo)

(4) insistente preocupação com partes de objetos

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C. A perturbação causa prejuízo clinicamente significativo nas áreas social e ocupacional ou

outras áreas importantes de funcionamento.

*D. Não existe um atraso geral clinicamente significativo na linguagem (por ex., palavras

isoladas são usadas aos 2 anos, frases comunicativas são usadas aos 3 anos).

*E. Não existe um atraso clinicamente significativo no desenvolvimento cognitivo ou no

desenvolvimento de habilidades de auto-ajuda apropriadas à idade, comportamento

adaptativo (outro que não na interação social) e curiosidade acerca do ambiente na infância.

F. Não são satisfeitos os critérios para um outro Transtorno Invasivo do Desenvolvimento ou

Esquizofrenia.

(ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2002: 107).

Ainda segundo o DSM IV, as dificuldades de interação se evidenciam no ambiente

escolar. É nesse período também que aparecem determinados interesses idiossincráticos. Na

descrição proposta pela CID 10, divulgada pela Organização Mundial de Saúde, a síndrome

inclui se na categoria geral de Transtornos Globais do Desenvolvimento, e exclui a existência de

alterações no campo lingüístico ou cognitivo, tal como pode ser observado abaixo.

“Transtorno de validade nosológica incerta, caracterizado por uma alteração qualitativa

das interações sociais recíprocas, semelhante à observada no autismo, com um repertório de

interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo.

Ele se diferencia do autismo essencialmente pelo fato de que não se acompanha de um

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retardo ou de uma deficiência de linguagem ou do desenvolvimento cognitivo. Os sujeitos que

apresentam este transtorno são em geral muito desajeitados.

As anomalias persistem freqüentemente na adolescência e idade adulta. O transtorno se

acompanha por vezes de episódios psicóticos no início da idade adulta.”

(ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1993: 252

A pouca relevância dada aos problemas lingüísticos e cognitivos nos critérios

diagnósticos para Síndrome de Asperger se deve, sobretudo, ao mínimo índice de alterações

fonológicas, morfológicas e sintáticas que se pode observar e às já referidas áreas de interesse

especiais que apresentam. Se fossem analisados somente esses aspectos formais desconsiderando-

se os níveis semântico-pragmáticos, poder-se-ia até considerar tais critérios. No entanto, esses

aspectos, além de constituírem parte integrante da linguagem são indispensáveis para que a

comunicação se dê de forma satisfatória. A partir dos anos 80 aumentou o interesse de

pesquisadores na investigação dessas alterações, tal qual será descrito no próximo capítulo.

O objetivo deste trabalho é analisar as dificuldades de compreensão apresentadas por

pacientes portadores da Síndrome de Asperger, a fim de compreender melhor as limitações que

apresentam na comunicação.

Para a análise dos casos, procurando licitar o estudo de singularidades, adotei como

procedimento de investigação o paradigma indiciário, conforme estudos desenvolvidos por Carlo

Ginzburg, como perspectiva de compreensão do sujeito, da linguagem e da relação que estabelece

entre ambos na Síndrome de Asperger.

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1. O Paradigma Indiciário como instrumento para análise de dados singulares

Ao entrar em contato com a linguagem dos dois sujeitos portadores da S.A. e ao procurar

compreender as marcas de singularidade de cada sujeito de acordo com suas diferentes maneiras

de operar a linguagem, tornou-se necessária a adoção de um modelo epistemológico cujos

pressupostos sejam diferentes do modelo de origem galileana, centrado na quantificação e na

experimentação controlada em busca de regularidades.

Essa exigência me levou á procura de um modelo de cunho qualitativo, cujo rigor

científico possa ter lugar em conjecturas intuitivas a partir da observação e da análise do

individual, de pistas e indícios que em suas singularidades, podem revelar formas consistentes de

compreensão do fenômeno de interesse: trata-se do paradigma indiciário delineado GINZBURG

(1983, 1991).

Segundo GINZBURG, o modelo científico indiciário encontra suas raízes nas ações dos

primeiros caçadores nos primórdios da humanidade. Esses caçadores, através da observação de

indícios aparentemente insignificantes, tais como pegadas, cheiros e restos de pêlos,

desenvolveram habilidades que lhes permitiam reconstituir as espécies de animais que haviam

passado para determinado lugar:

Essa forma de produção de conhecimento, enriquecido e transmitido de geração a

geração, pode ser observada a partir do resgate de lendas e de relatos orais antigos. GINZBURG

cita a história de três irmãos contada no Oriente Médio, ao lado da qual podemos colocar algumas

peripécias de Zadig1, de Guilherme de Baskerville2 e de outras personagens da ficção literária ou

1 Personagem do conto “Zadig o Sábio” .VOLTAIRE (1971). Um dia, quando passeava perto de um pequeno bosque, Zadig é interpelado sobre um cão e um cavalo desaparecidos. Apontando as características do cão, Zadig afirma que na verdade se tratava de uma fêmea que acabava de dar cria, manca de uma pata e de orelhas compridas. Com relação ao cavalo, Zadig afirmou que se tratava do melhor galopador, com cinco pés de altura e os cascos bem pequenos, a cauda tinha três pés e meio de comprimento, as chapas trabalhadas do freio eram de ouro de vinte e três quilates, as ferraduras eram de prata de onze dinheiros. Ao ser indagado sobre o destino tomado pelos animais,

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cinematográfica detentores de um conhecimento análogo ao dos caçadores, cujo traço

característico é o de permitir saltar de fatos aparentemete insignificantes, que podem ser

observados, para uma realidade complexa, a qual, pelo menos diretamente, não é dada a

observação (GINZBURG, 1983, p99)

Na reconstituição das origens históricas do paradigma indiciário, Carlo Ginzburg aponta

para a existência de uma prática de produção de conhecimentos similar à dos caçadores nas artes

divinatórias da antiga Mesopotâmia, as quais pretendiam, a partir de alguns sinais da natureza

prognosticar o futuro, Da mesma forma que a divinação, embora com objetivos diferentes,

também a fisiognomonia3, as ciências jurídicas e a medicina mesopotâmicas se pautavam em

procedimentos análogos

Na Grécia Clássica, no entanto, de acordo com esse autor, passou a predominar o modelo

platônico de produção de conhecimento em razão de gozar de maiores prestígios nos círculos

acadêmicos então em voga. Todavia, principalmente a medicina, em virtude de sua própria

impossibilidade de observar diretamente o fato que buscava compreender, nunca deixou de ser

indiciária, de recorrer aos indícios, aos sintomas, aos sinais presentões no corpo a fim de

identificar a natureza complexa de cada doença. Observando manchas no corpo, verificando

fezes, urina e fazendo exames, os médicos conseguiram diagnosticar doenças inobserváveis

diretamente, da mesma forma que através de pistas os caçadores identificavam a espécie de caça

que perseguiam.

Zadig respondeu que nunca os havia visto, o que lhe custou a imediata voz de prisão como possível ladrão dos animais. No entanto, em sua defesa junto ao conselho, o sábio explicou qual foi o processo de raciocínio que desenvolveu para chegar àquela conclusão: observando pequenos detalhes e fazendo conjecturas. 2 Personagem do livro “O nome da Rosa”, ECO (1983). Com o fim de caracterizar a riqueza intelectual do personagem Guilherme no início de seu romance, Eco faz uma colagem da narrativa Volteriana, construindo uma cena na qual Guilherme vive uma situação quase idêntica á cena vivida por Zadig. 3 Arte de conhecer o caráter de uma pessoa através de traços fisionômicos

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No final do Século XIX, um modelo de investigação baseado na semiótica médica

ressurgiu no âmbito das ciências humanas, mais especificamente nos métodos de raciocínio de

Freud, Morelli e Sherlock Holmes. O fator histórico de encontro dos métodos dessas três

personagens está atrelado à forma de produção de conhecimento característica de medicina

indiciária, o que é perfeitamente justificável pelo fato de Freud, Morelli e Conan Doyle terem

sido médicos

GINZBURG aponta para o fato de que Freud, em sua prática psicanalítica, dirige a sua

atenção a pequenos detalhes, os quais podem, muitas vezes, revelar realidades psicológicas

profundas e complexas. Da mesma forma que Freud, Morelli, um historiador de artes do Séc

XIX, desenvolve um método de análise de pinturas baseado na observação de pequenos detalhes

aparentemente insignificantes do corpo, como marcas no traçado das unhas e das orelhas, os

quais, no entanto, muitas vezes são capazes de revelar autorias e desvendar imitações e

atribuições incorretas de diversas obras. Para Morelli, é pelos pequenos detalhes, por serem eles

inimitáveis que pode ser reconhecido um autor, da mesma forma que para Holmes são as

pequenas coisas que infinitamente têm mais valor. E

A relevância atribuída a pequenos detalhes por natureza não quantificáveis constitui a

essência do paradigma indiciário e implica o rompimento com o modelo cientifico de origem

galileana, centralizado na quantificação e na busca de regularidades.

Na perspectiva indiciária, o dado singular constitui prova da maior relevância, pois

permite encontrar explicações para o caso investigado.

Qualquer caso, num sentido trivial é um caso singular, principalmente se considerarmos o

conceito de sujeito sob perspectiva teórica que estamos assumindo, ou seja, enquanto indivíduo

real que constrói e reconstrói representações da realidade a partir de diferentes interações sociais,

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constituindo, dessa forma, uma consciência individual de si e do mundo que o cerca,

caracterizando-se como único, diferente da totalidade em que insere, singular, portanto.

Diante disso, como critério inicial para caracterizar um caso singular, devemos ter em

vista uma compreensão da totalidade da qual ele se destaca, ou seja, a primeira pergunta que

devemos fazer é: o caso é especificamente com relação o que? Como meu objetivo não é apenas

descrever curiosidades, após responder a essa pergunta, devemos tornar claro o estudo da

relevância do estudo desses casos em relação a totalidade de que fazem parte. Dessa forma, a

segunda pergunta que devemos fazer é: o que o caso singular revela com relação à totalidade que

buscamos compreender?

Ao traçar como objetivo geral deste estudo a tentativa de compreender aspectos das

singularidades estabelecidas nas relações entre sujeito e linguagem de indivíduos portadores da

Síndrome de Asperger, buscando caracterizar diferentes representações da linguagem utilizada

por estes sujeitos através da explicação de estratégias utilizadas por eles para a construção de

textos escritos, adotei como aporte teórico metodológico o paradigma indiciário.

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2. Linguagem e Cognição na Síndrome de Asperger

Pesquisadores interessados em estabelecer as características da SA têm realizado diversos

estudos sobre o assunto, pontuando a existência de alterações lingüísticas e cognitivas. Autores

como COX e SZATMARI,(1991) ressaltaram que a linguagem para essas pessoas não apresenta

uma função comunicativa sócio-interacional, mas aparece desprovida de objetivo, com um fim

em si mesma. (SZATMARI, 1991) ainda considerou que um dos sintomas mais importantes

dessa Síndrome seria as alterações verbais e não-verbais da linguagem.

FRITH, (1989), referindo se ás capacidades lingüísticas de pessoas com características da

síndrome de asperger, relatou que a tentativa de estabelecer conversação suscita, às vezes, apenas

respostas metódicas, curtas. Citou também que, para além das capacidades lingüísticas ditas

primárias, pesquisadores que concentram seus esforços na área da pragmática são unânimes em

afirmar que é justamente na área da pragmática que se situam os distúrbios universalmente

característicos do espectro autista.

Esta autora descreveu, ainda, as idiossincrasias da linguagem, que parecem surgir como

resultantes de associações singulares sem fazer referência a uma experiência mais vasta, que o

sujeito tornaria acessível também ao interlocutor. É como se não percebesse o interesse ou a

necessidade de compartilhar com seu interlocutor um contexto mais amplo, no qual os dois

estariam ativamente implicados, Outra questão abordada por Frith é a dificuldade na

compreensão de ironias e metáforas.

TOMASELLO (1999), apontou que esses quadros tratam de uma “síndrome da ontogenia

humana, específica e de base biológica, na qual os indivíduos são incapazes de entender outras

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pessoas como agentes mentais/intencionais e, também, de engajar-se em habilidades de

aprendizado cultural típicas da espécie humana”.

“... as crianças com autismo, as quais crescem em meio a produtos culturais cumulativos, não são

capazes de levar vantagem com a sabedoria coletiva corporificada porque, por razões biológicas,

elas não possuem habilidades sociocognitivas...” (TOMASELLO, 1999:8)

Essa capacidade correlaciona-se com a noção de Teoria da Mente, que consiste na

habilidade de reconhecer seus próprios “estados mentais” e de outros.

Pesquisadores britânicos descobriram que as crianças autistas eram especificamente

prejudicadas quanto a essa capacidade (BARON-COHEN, LESLIE & FRITH, 1985; 1986).

(BARON-COHEN 1989) e (FRITH 1989) publicaram trabalhos demonstrando que esses

indivíduos seriam incapazes de atribuir “estados emocionais”, mostraram também que tais

estados mentais seriam diferentes de outros estados mentais como estar com dor, estar deprimido,

ou estar em alerta. Sem essa capacidade de mentalização, a comunicação da criança ficaria

prejudicada, uma vez que ela não conseguiria levar em consideração as crenças e os

conhecimentos da pessoa com que está falando. Segundo os pesquisadores, a falta dessa

habilidade específica poderia explicar a dificuldade no faz de conta, a incompetência da interação

social e os problemas nos aspectos pragmáticos da linguagem.

(LESLIE, 1987) concluiu que existem dois mecanismos para representação, que suscitam

instrumentos diferenciados. O primeiro demanda representações primárias, ou de primeira ordem,

relacionados ao estado físico do mundo; o segundo mecanismo envolve meta representações ou

representações de segunda ordem, e correlacionam-se com estados mentais. Nessa perspectiva, as

representações da realidade, como um jogo de faz de conta, são consideradas de primeira ordem.

Já as representações de segunda ordem são as que se relacionam com estados mentais como

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pretensões, crenças e desejos, exigindo a representação da representação (meta-representação).

Por exemplo, se for afirmado: “hoje está fazendo sol” pode ser uma representação primária, mas

dizer “ele acha que está fazendo sol” já passa a envolver uma meta representação. Tais estruturas

trariam, envolvendo o ponto de vista do locutor, uma dificuldade adicional para pacientes com o

espectro autista.

(BOUCHER, 1989) já havia descrito que esses indivíduos podem descobrir soluções

corretas para problemas que requerem uma Teoria de Mente, mas o fazem por meios mais lentos

e desajeitados, alterando o tempo de suas respostas. Essa característica torna-os estranhos nas

interações sociais. Embora sejam hábeis para contornar sua falta de conhecimento intuitivo do

comportamento social num grau suficiente para passar nas situações de teste, não conseguem

fazer o mesmo na vida real. Esse autor considera que a maior dificuldade do indivíduo portador

de transtorno autístico é a impossibilidade de compreender estados mentais de outras pessoas, ou

seja, aquilo que a outra pessoa quer dizer nas entrelinhas, do seu discurso, aquilo que se percebe

no outro independente do que ele me estaria dizendo, estabelecendo se padrões sociais

específicos que estariam comprometidos nestes indivíduos.

(FRITH, 1989) investigou o que chamou de força de coesão central em indivíduos do

espectro autístico e em grupos de controle, como também testou a reação de grupos de indivíduos

com e sem esses transtornos, utilizando histórias elaboradas a fim de verificar se elas percebiam o

pensamento de outras pessoas. Os espantosos desempenhos em áreas específicas como as

habilidades de memória, as chamadas ilhas de capacidade, são sinais da incapacidade dessas

crianças de levar em conta o contexto, pois carecem do que a autora nomeia de “força

organizadora coesiva central”. Para exemplificar tal fato, a autora assinala que os resultados de

testes neuropsicológicos que visam a identificação de formas geométricas, que não formam

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nenhuma figura, são superiores em pacientes de quadros autísticos, enquanto que em tarefas mais

fáceis para outros indivíduos por apresentarem algum conceito, esses pacientes costumam falhar.

(MINSHOW et al. 1992) exploraram a noção de flexibilidade cognitiva, mostrando a falta

dessa habilidade em pacientes com S.A Esses sujeitos mostram um pensamento rígido e não

adaptado a mudanças ou falhas. Elas apresentam uma abordagem única para um problema e

precisam de instrução para pensar em alternativas. (ATTWOOD, 1998) chamou atenção para

essa característica de inflexibilidade presente no autismo, exemplificando-a analogicamente a

uma “mente de mão única”.

Essa última geração de pesquisadores tem reconhecido os transtornos na comunicação,

mesmo nos quadros ”autísticos” que possuem fluência verbal, tal como a Síndrome de Asperger,

só existindo discordância teórica sobre a natureza social ou cognitiva deste déficit.

A fim de realizar este trabalho, optei por analisar dois sujeitos com histórias de vida

diferentes, mas com uma característica marcante em comum: ambos foram diagnosticados como

portadores da Síndrome de Asperger.

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3. O texto

Para analisar as pistas deixadas na linguagem pelos portadores da Síndrome de Asperger,

a fim de caracteriza-la, farei um olhar sobre a produção escrita dos sujeitos R e M.

O texto foi escolhido por ser um lugar privilegiado para serem observadas as relações

entre sujeito e linguagem. Segundo FÁVERO E KOCH (1988) o texto é “a forma específica de

manifestação da linguagem”.Diante da eleição do texto como objeto de análise, se faz necessário

explicitar um conceito de texto.

GERALDI (1991) trás o conceito mais adequado ao trabalho de análise a ser realizado.

Esse autor define texto como “uma seqüência verbal escrita formando um todo acabado,

definitivo e publicado que:

a) se constrói numa relação entre um eu e um tu

b) opera com elementos que, sozinhos, são insuficientes para produzir um sentido fixo;

c) inevitavelmente tem um significado, construído na produção e na leitura, resultado das

múltiplas estratégias possíveis de interpretação compartilhadas por uma comunidade

lingüística, a que apelam tanto o autor quanto o leitor”

Para este teórico, a produção do texto compreende o cumprimento das seguintes

exigências:

a) “se tenha o que dizer;

b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer;

c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer;

d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz;

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e) se escolham as estratégias para realizar a, b, c e d “

Essa definição de texto se constituirá em nosso ponto de partida para a observação

longitudinal das produções dos textos e para a análise das estratégias adotadas e desenvolvidas

pelos sujeitos em suas tentativas de dizer, através da escrita, algo a alguém, pois ao conceber pó

texto como produto do trabalho interacional entre interlocutores concretos, considerando a

necessidade de ter o que dizer que advém de quem escreve.

Com o objetivo de tornar mais precisos alguns conceitos utilizados nas analises textuais,

que realizarei, ao lado do conceito geral de texto em que a linguagem é concebida enquanto

trabalho realizado por indivíduos enquanto situação concreta de interlocução, farei uso de

conceitos da lingüística textual, especialmente os fatores responsáveis pela textualidade descritos

pelo modelo de BEAUGRANDE E DRESSLER (1981), reinterpretado pelos trabalhos de

FÁVERO (1985,1986, 1993), KOCH (1985, 1986, 1992), KOCH E TRAVAGLIA (1991),

COSTA VAL (1991).

De acordo com esse modelo, existem sete fatores responsáveis pela textualidade, que

fazem com que o texto seja de fato um texto. Esses fatores são divididos em dois grupos: o

primeiro é constituído por fatores centrado no texto: a coerência e a coesão; o segundo é

constituído por fatores pragmáticos relacionados ao processo sociocomunicativo:

intencionalidade, aceitabilidade, informatividade, intertextualidade, situacionalidade.

BEAUGRANDE E DRESSLER segundo FAVERO (1993), consideram que a coesão e a

coerência constituem de níveis diferentes de análise. No entanto, de acordo com COSTA VAL

(1991) “as ocorrências de um texto não devem ser analisadas per si, mas o teto deve ser

percebido e interpretado integralmente, cada elemento sendo avaliado em função do todo”.

Vendo o texto em sua totalidade recorro a KOCH E TRAVAGLIA (1991), para quem é

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preciso ter em mente que a coerência é um fenômeno que resulta da ação conjunta dos níveis

semântico, pragmático, estilístico e sintático e da influência desses níveis no estabelecimento do

sentido do texto, “uma vez que a coerência é, basicamente, um princípio de interpretabilidade e

compreensão de texto, caracterizado por tudo de que o processo aí implicado possa depender,

inclusive a própria produção do texto, a medida que o produtor quer que seja entendido e o

constitui para isso” (p. 40). A coesão, por sua vez, segundo KOCH (1992) concerne “ao modo

como os componentes da superfície textual, isto é, as palavras e frases que compõe um texto,

encontram-se conectadas entre si, numa seqüência linear, por meio de dependência de ordem

gramatical”. Para os autores, existe uma relação entre coesão e coerência porque “a coerência é

estabelecida a partir da seqüência lingüística que constitui o texto, isto é, os elementos da

superfície lingüística é que servem de pistas, de ponto de partida para o estabelecimento da

coerência”. Dessa forma, aspectos relacionados a coesão, no tocante a referencialidade ou a

sequenciação, conforme aponta KOCH (1992) pode resultar em prejuízos a coerência do texto,

dificultando a sua compreensão.

Nessa mútua relação que estamos estabelecendo entre coesão e coerência, também temos

em vista as “meta-regras” de coerência estipulada por CHAROLLES (1997): “meta-regra de

repetição, de progressão, de não contradição e de relação”. Esses conceitos de “meta-regras” são

atualizados por COSTA VAL (1991) que os denomina: “continuidade, progressão, não

contradição e articulação”.

Segundo essa autora, a continuidade diz respeito a retomada de elementos no decorrer do

discurso, tendo haver com sua unidade, “pois um dos fatores que fazem com que se perceba um

texto como um todo único é a permanência, em seu desenvolvimento, de elementos constantes; a

progressão ao contrário da continuidade diz respeito a apresentação de novas informações e não

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apenas a repetição de uma mesma informação; a não contradição se refere a compatibilidade de

informações, não sendo possível em um texto, por exemplo, afirmar um fato e depois “desafirmá-

lo”; articulação refere-se à “maneira como os fatos e conceitos apresentados no texto se

encadeiam, como se organiza, que papeis exercem uns com relação aos outros, que valores

assumem uns em relação aos outros” (p. 27).

Ao lado da coesão e da coerência, os fatores relacionados a processos sócio-

comunicativos também são intrinsecamente ligados. Vejamos. Ainda de acordo com COSTA

VAL (1991), entendemos a informatividade como a capacidade que tem um texto de informar um

leitor (p. 31), ou seja, dizer algo a alguém; a intertextualidade pode ser entendida como as

relações de dependência existente entre textos, ou seja, o reconhecimento de um texto como

dependendo do reconhecimento de outros textos; a intencionalidade entendemos como o querer

dizer do produtor, com o fim de atingir determinados objetivos; aceitabilidade entendemos como

a ação do interlocutor em reconhecer o texto como relevante e atuar cooperativamente no sentido

de procurar atribuir sentido à palavra do autor; a situacionalidade entendemos como o contexto

interlocutivo em que o texto se realiza.

Considerando esses conceitos, podemos dizer que um texto só concretiza enquanto tal na

medida que esse fatores aparecem simultaneamente interligados, ou seja, exista uma intenção por

parte do autor, uma situação interlocutiva, o produto verbal seja aceito pelo leitor como texto, as

informações sejam relevantes para o autor e para o leitor e, que esses sejam capazes de

reconhecer as alusões a outros textos, ou seja, as relações intertextuais. Caso um desses fatores se

faça ausente, a textualidade será prejudicada.

Vendo o texto como a conjunção desses sete fatores, podemos estabelecer uma

aproximação entre esses conceitos que circulam no âmbito da lingüística textual e o conceito de

19

texto proposto por Gerardi, enquanto projeção da concepção constitutiva da linguagem.

Nessa aproximação, relacionamos coesão e coerência às manifestações de estratégias de

dizer, ou seja, formas específicas de operar sobre a linguagem na articulação de um todo acabado

e definitivo. No que diz respeito aos fatores sócio-comunicativos, relacionamos às condições

sociais de produção de um texto, em que um “eu” se dirige a um “tu”; à intencionalidade,

relacionamos o querer dizer do sujeito, associado com um ter que dizer fruto de uma motivação

para se dizer; à informatividade, relacionamos a manifestação concreta do querer dizer do autor; à

intertextualidade, relacionamos as relações dialógicas entre os evento discursivos, em que algo já

dito é recuperado na construção de um novo dizer; à aceitabilidade, relacionamos a construção de

sentido pelo leitor, como resultado “de múltiplas estratégias possíveis de interpretação

compartilhadas por uma comunidade lingüística”.

Na análise que realizarei das manifestações da patologia na linguagem de sujeitos

portadores da Síndrome de Asperger, irei me reportar a esses conceitos da lingüística textual. No

entanto, adotarei o mesmo princípio de COSTA VAL (1991). Essa autora citando HALLIDAY e

HASAN (1976), afirma que “a natureza do texto é melhor compreendida se se abre mão do rigor

e da exatidão tecnicista e se dá espaço para intuição e o bom senso”. Ao privilegiar o desapego ao

rigor e à exatidão tecnicista, esse princípio torna coerente com o rigor estabelecido pelo

paradigma indiciário.

20

4. Os Sujeitos

M, um dos sujeitos da pesquisa, é do sexo masculino, tem atualmente 22 anos e cursa a

Escola Panamericama de Arte e Design . Nasceu no Rio de Janeiro e hoje reside em São Paulo,

filho de pais letrados, a mãe é professora universitária e o pai é advogado.

Freqüentou a escola Chez´l infant, uma escola particular, onde iniciou o jardim de infância de

1987 a 1989, segundo relatos da mãe, sem nunca comunicar se com ninguém, ficando sempre

debaixo das cadeiras ou mesas.

Quando a família procurou um especialista a fim de descobrir a razão da alienação de M,

obteve o diagnóstico de autista-hiperativo.

No ano de 1990 a família de M mudou se para a cidade de São Paulo. Já em outra escola,

em 1991 M foi retido na pré-escola por não ter se alfabetizado este fato motivou a mãe a buscar

novos caminhos

Após muitas recusas, em 1992, M foi aceito na pré-escola do colégio Graphein,

especializado no trabalho com crianças com diversos graus de comprometimento, ou com

diagnóstico em aberto. Foi nesta escola que M permaneceu durante 12 anos, de 1992 a 2004,

quando concluiu o 3º colegial.

Em 2000, SM foi finalmente diagnosticado pelo psiquiatra Arnaldo P Lopes Filho como

portador da Síndrome de Asperger.

Em relatos proferidos pela mãe fica evidente que ao longo de toda a vida de SM, este

sempre possuiu habilidades para o desenho, fato que levou a família a estimulá-lo a tentar

21

carreira universitária. Sem êxito no vestibular, M começou a cursar aulas de Arte na escola

Panamericana de artes e Design, onde estuda até os dias atuais.

M possui uma namorada virtual, representada por desenho em papel que carrega consigo

onde quer que vá. Esta namorada virtual é um mangá, ou seja, um desenho japonês que é a sua

área de interesse especial, na qual apresenta capacidade exacerbada.

O segundo sujeito por mim analisado é R, que durante um período de 2 anos foi meu

aluno particular em uma escola de Curitiba. R sexo masculino, tem atualmente 15 anos e estuda

em uma escola particular de ensino regular, R Nasceu em Curitiba, filho de pais letrados, com

escolaridade superior. Em casa conviveu desde muito cedo com material escrito, mas foi

alfabetizado apenas na escola, quando cursava a primeira série do ensino fundamental. Conforme

me relatou a professora, o método utilizado foi o mesmo que os demais alunos utilizavam,

portanto o aluno não se sentia rejeitado ou desmotivado em relação aos demais colegas.

O método de alfabetização privilegiava a silabação, no qual os alunos aprendem as vogais

e depois as consoantes, cada qual a seu tempo e em seguida fazem a somatória das sílabas para

formar palavras. Sempre utilizando as sílabas já apresentadas

Ex: a+i= ai ca+bo= cabo

bo+i= boi ze+bu= zebu

Ao final da apresentação das famílias silábicas, parte se para a formação de frases e

posteriormente à construção de textos.

Conforme relatado pela professora, R tinha muita facilidade para reproduzir histórias de

livros baseando se apenas nas ilustrações, os colegas adoravam ouvir as histórias que ele criava,

pois muitas vezes coincidiam com as histórias dos livros que utilizava.

Ainda segundo os mesmos relatos, R aprendeu a ler na fase da formação das frases, que

22

ocorreu no primeiro ano de alfabetização.

R possui duas amigas imaginárias e conversa com elas como se estivessem presentes,

reais em sua imaginação. R reconhece suas amigas como sendo imaginárias, mas conversa com

elas e não compreende como as demais pessoas não vêem as “meninas”.

Tanto as amigas imaginárias de R, como a “namorada virtual” de M servem para atestar

que a capacidade imaginativa dos dois sujeitos é saliente e que esses sujeitos são capazes de criar

universos virtuais diversificados.

23

5. O Corpus Investigado: a seleção dos dados singulares

O acervo de dados empíricos é constituído de textos naturalmente coletados em tarefas de

produção escrita dos sujeitos analisados: escrita espontânea e algumas produções escolares.

Disponho ainda de registros de grande parte da produção escrita de um mesmo sujeito,

representativa, de escrita espontânea produzida em ambiente doméstico, dados coletados de

forma regular e natural, durante um período de 4 anos. Estes dados me foram disponibilizados

pela mãe do sujeito M

Com o objetivo de evidenciar o caráter singular de alguns dados representativos da

escrita de portadores da Síndrome de Asperger, selecionei para comentar neste capítulo alguns

episódios ocorridos em meu corpus. A opção por centrar a discussão em dados singulares, deve

se ao fato de que por trás da produção textual , escondem se motivações mais reveladoras das

singularidades dos sujeitos e da relação por eles estabelecida com a linguagem relacionada ao

processamento lingüístico na Síndrome de Asperger.

Nesse contexto, a ortografia não é um problema, os problemas em questão são:

a) a estruturação das sentenças

b) a interpretação literal

c) a referência a si próprio em terceira pessoa

Vejamos a seguir como os problemas se manifestam na linguagem de cada um dos

sujeitos.

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5.1 O Corpus de N

O Corpus de N, é constituído de centenas de escritos coletados de maneira natural, ao

longo de 4 anos. Assim, lado a lado com atividades elaboradas por mim, encontramos escritas

produzidas em casa, com base nas motivações do próprio sujeito, registradas em cadernos e/ ou

folhas soltas de papel, por vezes acompanhadas da escrita da mãe, sempre muito atenta, que

descrevia as situações de produção dos textos.

O Material encontra-se classificado por tipo (carta, diário, história) e data.

5.2 O Corpus de R

O Corpus de R é constituído de dezenas de escritos coletados naturalmente ao longo de 2

anos. Assim, lado a lado com cadernos escolares, deveres de casa, trabalhos em grupo e redações,

encontramos também escritos produzidos durante o período em que o sujeito esteve comigo

realizando acompanhamento.

Durante o acompanhamento eu solicitava ao sujeito que realizasse atividades diferentes

daquelas que ele estava habituado a realizar.

O Material encontra-se classificado por data e por contexto de produção.

Os textos que comentarei neste trabalho são de grande relevância para o estudo dos traços

da patologia na linguagem de portadores da Síndrome de Asperger.

No próximo capítulo darei conta de analisar alguns textos marcantes da produção de N.

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6. A Produção de N

Para discutir o papel do individual na constituição da sistematicidade da linguagem

presente na escrita, trago dados escritos sob a forma de diário.

Os textos de M são a manifestação de sua individualidade e retratam minuciosamente os

fatos ocorridos durante o seu dia-a dia.

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No texto 1, produzido em 31/07/2005, M inicia sua narração referindo-se ao seu “querido

diário” e prossegue com a descrição das tarefas realizadas durante o seu dia.

Conforme vemos no dado, as duas ocorrências do advérbio “principalmente” estão

colocadas no texto de forma irregular, o que causa um rompimento na coerência textual.

Os tempos verbais também estão em desacordo com as regras, fato que prejudica a

estruturação das frases e conseqüentemente a informatividade do texto.

É importante ressaltar também que a linguagem utilizada no texto se assemelha muito a

linguagem oral, que nos dá indícios de uma produção bastante imatura, uma vez que as

transcrições da linguagem oral para a linguagem escrita são comuns nos estágios iniciais da

produção textual.

Quando se utiliza a linguagem escrita como forma de comunicação é necessário nos

atentarmos para que os sete fatores responsáveis pela textualidade sejam devidamente cumpridos.

No texto 2, produzido em 22/08/2005 é importante salientar a grande quantidade de

parênteses, indício que demonstra a preocupação de M com a compreensão do seu texto.

Os tempos verbais são o maior problema e o que mais dificulta a compreensão do texto

M refere-se a si próprio na segunda pessoa do plural.

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No texto 3 permanecem as referências a si próprio na segunda pessoa do plural e os

demais verbos continuam em desacordo.

O fato marcante nessa produção é a presença da namorada virtual, que daqui em diante

será uma constante nas produções textuais de M

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No texto 4 persistem as deformidades verbais e as explicações entre parênteses.

M é muito detalhista e se preocupa em relatar tudo o que ocorre em seu dia.

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Nos textos, 5, 6 e 7 persistem os mesmos indícios que levam a falta de coerência,

alardeados por fatos ligados à sua área de interesse especial.

Os mangás fazem parte da rotina diária de M.

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As evidências apresentadas nos textos 1 a 7 mostram que não é possível estabelecer a

coesão e a coerência nos textos devido ao rompimento dos principais quesitos para o

estabelecimento da textualidade.

Além dos indícios já apresentados, existe outro fato marcante na produção textual de M.

A compreensão de frases.

A fim de testar a compreensão de alguns provérbios de uso corrente, enviei para M uma

lista com 20 provérbios para que M interpretasse à sua maneira.

Vejamos a seguir:

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Conforme visto, a interpretação dos provérbios se dá de forma bastante literal, M as vezes

recorre a conhecimentos de senso comum para explicar os provérbios, e às vezes até responde-

los. O que confirma mais um indício da patologia na linguagem de portadores da Síndrome de

Asperger.

7.A produção de R

A produção de R, que será analisada a seguir consiste em textos produzidos no contexto

escolar.

O Textos 1 e 2 produzidos em 06/06/06 partem da área de interesse especial de R e visa

investigar de que maneira R compreende os enunciados.

Conforme vemos abaixo, o texto corre em um ritmo frenético devido a falta de pontuação.

R não atende ao enunciado, deixando sua produção com caráter quase livre.

Este texto apresenta indícios de refacção textual e sinônimos apresentados um ao lado do

outro como forma de enfatizar as idéias.

A estruturação das sentenças que R produz não apresenta maiores problemas e este é um

ponto que difere muito os dois sujeitos.

R opera melhor a língua e dessa forma a textualidade é melhor articulada.

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Os textos 3 e 4 trazem indícios da linguagem oral e a ausência de sensações emocionais.

No texto 3, foi solicitado para que R imaginasse um personagem e relatasse o seu diário. R

relatou o seu próprio diário, com o mesmo ritmo sem pausas que já vinha sendo utilizado em

outras produções, como as vistas anteriormente.

R escreve sem a preocupação de passar uma mensagem ao leitor, as ordens não são

cumpridas da maneira esperada, porém a conexão das frases não apresenta problemas.

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No texto 4 R traz a narrativa para o contexto escolar e utiliza se de linguagem coloquial

para expor suas idéias.

Continua recorrendo a sinônimos como forma de enfatizar as suas idéias sem respeitar o

que é solicitado no enunciado, restringindo se a primeira frase do enunciado a fim de saber do

que se trata a produção.

Além dos textos, foram testados provérbios de uso corrente, com a finalidade de verificar

se a compreensão seria literal como foi com M.

R também demonstrou não compreender os provérbios, com exceção ao provérbio “cada

macaco no seu galho” que foi fornecido como exemplo, os demais foram interpretados de forma

literal ou baseados em conhecimentos de senso comum. ]

Vejamos a Seguir:

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8. Conclusão

Apresentei como objetivo geral desse trabalho a tentativa de compreender aspectos das

singularidades reveladas em diferentes relações estabelecidas entre sujeitos portadores da

Síndrome de Asperger e a escrita. Para isso me voltei ao estudo de dois casos com os quais

trabalho há 4 anos. A partir da análise de textos produzidos por estes sujeitos procurei listar os

indícios da patologia presentes na linguagem de cada um deles.

Inicialmente, fiz a exposição do pressuposto teórico-metodológico adotado, o qual me

parece compatível com o objetivo proposto. Foram apresentados os fundamentos do paradigma

indiciário e também foi apresentado como objeto de estudo o texto escrito, compreendido como a

forma específica de manifestação da linguagem. Diante disso busquei uma definição de texto

compatível com a concepção de linguagem adotada, o que me levou a estabelecer relações entre o

conceito de texto formulado por GERALDI (1991) e os fatores de textualidade descritos pelo

modelo de BEAUGRANDE e DRESSLER (1981). A definição de texto assumida me serviu

como base para o olhar genérico que direcionei sobre os dados analisados.

Após a exposição do referencial teórico-metodológico, apresentei as concepções de

linguagem e cognição no âmbito da Síndrome de Asperger , que de modo geral, ressaltam que a

linguagem para essas pessoas não apresenta uma função comunicativa sócio-interacional, mas

aparece desprovida de objeto e com um fim em si mesma.COX e SZATMARI (1991)

Ao entrar em contato com os dados dos sujeitos M e R, deparei-me com casos

problemáticos e irregulares. Esses casos nos indicavam relações singulares estabelecidas entre

sujeito e escrita, e, para compreende-las agimos como detetives, procurando pistas nas

informações registradas sobre a história de cada sujeito e nos dados registrados de sua escrita,

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deixando que, dentre essas informações e dados, aquilo que saltasse a nossos olhos como

relevante se torna-se objeto de investigação. A partir disso, passei a estabelecer relações entre

essas pistas sem, contudo, enquadra-los em modelos de análise preexistentes.

No decorrer da análise procurei caracterizar a relação estabelecida entre sujeito e

linguagem escrita como constitutivamente singular. Dessa forma, os casos estudados demonstram

características singulares que residem no âmbito da Síndrome de Asperger.

Ao apontar para essas singularidades constitutivas demonstradas nos estudos dos casos

posso comprovar que o que foi sugerido como suspeito intuitiva inicial, ou seja, que o portador

da Síndrome de Asperger opera a linguagem sem a construção da devida textualidade.

A compreensão de provérbios é feita de forma literal, o portador da Síndrome de Asperger

não compreende as relações estabelecidas entre a linguagem que levam a construção da

metáfora.

45

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Anexos

Nota se que o sujeito com Síndrome de Asperger prefere livros informativos a livros de ficção, os

quais descrevem o caráter e as experiências profissionais das pessoas e suas interações com o

mundo. A ficção enfatiza as experiências sociais e emocionais e a não ficção exige um

entendimento das pessoas, de seus pensamentos, de seus sentimentos e vastas experiências

(colocar em algum lugar)