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MONTAIGNE Ensaios (Seleções)

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/cAPÍTULO V

I Da consciência

, Achando-nos certa vez em viagem duranteas nossas guerras civis, meu irmão, Sr. de IaBrousse, e eu, encontramos um fidalgo de boaaparência. Era do partido contrário mas eunão o sabia, porquanto simulava ser dos nos-sos. Aí está um dos maiores percalços dessasguerras: as cartas tanto se misturaram que oinimigo não se distingue do amigo de ummodo visível, nem pela língua nem pela condu-ta; condicionam-se a idênticos costumes e leis,têm igual aparência, sendo assim difícil evitara confusão e a desordem. Isso me levavamesmo ao receio de encontrar os nossos exér-

citos em um lugar em que eu não fosse conhe-cido, do que resultaria ter dificuldade em pro-var minh a identidade c expor-me assim aospiores vexames, como me aconteceu de umafeita, quando perdi homens e cavalos e umpajem, morto estupidamente, fidalgo italianoque eu vinha educando cuidadosamente emuito prometia.

Nosso companheiro de jornada estava tãoapavorado, eu o via tão desnorteado cada vezque deparávamos com alguns grupos de cava-leiros ou que atravessávamos cidades do parti-do do rei, que acahei por adivinhar que seus

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temores provinham de urna consciência intr an-qüila. Parecia-lhe que, em sua fisionomia eatravés das cruzes que trazia ao casaco, seliam seus mais íntimos pensamentos. talo efei-to maravilhoso e irresistível da consciência.Obriga-nos a nos denunciarmos, a combater-mo-nos a nós mesmos e, na ausência de outratestemunha, depõe contra nós: "servindo elaprópria de carrasco e fustigando-nos com láte-go invisível'" 6.

Eis uma anedota que está sempre n a bocadas crianças: um Sr. Besso, da Peônia, a quemcensuravam por ter destruido, sem motivoplausível, um ninho de pardais e matado osfilhotes, respondeu que não o fizera sem razão,pois as avezinhas não cessavam de acusá-loerroneamente do assassínio de seu pai, Esseparricida permanecera até então ignorado, masas fúrias vingadoras da consciência fizeramque fosse denunciado por quem devia arcarcom a punição, isto é, por ele mesmo. Diz Pla-tão que o castigo segue de perto o pecado.Hesíodo assim retifica o aforismo: nasce o cas-tigo no momento mesmo em que nasce o peca-

. do. Quem quer que receie o castigo já o estáI recebendo. E quem o merece o apreende. A, maldade engendra os próprios tormentos: "o.mal recai em quem o .faz " '. Assim a vespa,ao picar, perde o ferrão e com este as suas for-ças, para sempre: "deixa a vida no ferimentoque provoca ". 8. As cantáridas trazem em si ocontraveneno de seu veneno. É o que tambémocorre com quem se compraz no vício; engen-dra um desprazer que lhe atormenta a cons-ciência, na vigília como no sono: "numerososculpados revelam durante o sono ou o delírioda febre, crimes de há muito escondidos ».9.

Apolodoro via em sonhos os citas esfolarem-no, jogarem-no dentro de uma marmita,enquanto sua alma murmurava: sou a causadesses suplícios. O mau, diz Epicuro, não temonde se esconder, porque não tem certeza deestar escondido, pois que sua consciência odenuncia a si próprio: "o primeiro castigo doculpado está em não poder absolver-se a seuspróprios olhos "50.

Se a consciência nos inspira temor, dá-nosigualmente segurança e confiança. Posso afir-mar que me conduzi em várias circunstânciasdifíceis com muito maior decisão em virtudeda convicção íntima em que estava da. purezade minhas intenções e de minha vontade denão desistir: "Enche-se a alma de esperança ou

& 6 Juvenal.• 7 Aulo Gélio.48 Virgílio.49 Lucrécio.5. Juvenal.

temor segundo o testemunho que damos de nósa nós mesmm"5'. E há mil exemplos disso.Contentar-me-ei com três.

Estava Cipião certa vez sob grave acusaçãocontra ele lançada diante do povo romano. Emvez de se desculpar ou procurar enternecer osjuizes, disse-lhes: "Não vos cabe, em verdade,julgar lima acusação capital contra quem vosdeu o poder de julgar o mundo inteiro." Outravez, em lugar de se defender contra as imputa-ções de que era alvo por parte de um tribunado povo, exclamou: "Cidadãos, como respos-ta, iremos render graças aos deuses pela vitóriaque me deram contra os cartagineses e cujoaniversário se festeja hoje." Tendo Calão inci-tado Petílio a pedir-lhe que prestasse contasdos dinheiros postos à sua disposição paraadministrar a província de Antioquia, Cipiâo,no Senado, apresentou seu caderno de notasafirmando que receita e despesas aí se inscre-viam com fidelidade. E como o instassem paraque o depositasse no arquivo, recusou obser-vando que não desejava impor a si mesmosemelhante humilhação; e o rasgou em peda-ços. Não penso que alguém com a consciênciasuja pudesse demonstrar igual 'confiança em si.Cipiâo tinha naturalmente um belo caráter eestava habituado à fortuna, escreve Tito Livio,para se rebaixar à defesa de sua inocência.

A.tortura é uma invenção perigosa que pare-ce antes pôr à prova a resistência à dordo quea sinceridade. Quem a não pode suportaresconde a verdade tanto quanto quem a supor-ta; pois por que a dor o levaria a confessar oque é mais do que o que não é? E, inversa-mente, se quem não cometeu o que lhe recrimi-nam é bastante resistente para suportar a tor-tura, por que não o há de ser o culpado que emtal circunstância joga a vida? Penso que oemprego desse processo tem sua origem naação da consciência; dir-se-ia que no culpadoem a enfraquecendo ela colabora com a tortu-ra e o induz à confissão, enquanto fortalece adeterminação do inocente, Em verdade, trata-se de um meio cheio de incertezas e perigos,pois que não se há de dizer e fazer a fim de ob-viar a tais suplícios? "A dor obriga o próprioinocente a mentir" 62. Daí ocorre que aquele aquem o juiz inflige a tortura para não se expora condenar um inocente, na realidade morreinocente e torturado. Mil e muitos acusadossob os efeitos da tortura confessam o que nãofizeram. Entre esses incluo Filotas, a julgarpelas circunstâncias do processo que lhemoveu Alexandre e os resultados das torturasa que foi submetido. Como quer que seja e em-

e t Ovídio.52 Públio Siro.

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bora se diga que é o que de menos falho encon-trou o homem.em sua fraqueza, para chegar àverdade, considero a tortura um processo ínu-mano e bem pouco útil.

Muitos povos, menos bárbaros a esse res-peito do que os gregos e os romanos que assimos chamavam, achavam horrível e cruel tortu-rar alguém cuja culpabilidade não estivesseest abelecida. Que culpa terá ele de nossa igno-rância? Não somos injustos em obrigâ-lo asuportar coisa pior do que a morte, a fim denão matà-lo sem razão? E não se negará queassim seja, pois vemos muitos inocentes prefe-rirem a morte a submeter-se a tal meio deinformação mais penoso do que a execução eque pela sua violência não raro acarreta de

antemão a morte. Não me lembro onde depareicom este caso; mas ele mostra bem como enca-rar esse processo justiceiro: diante de um gene-ral de exército muito rigoroso, uma camponesaacusava um soldado de ter roubado a seus fi-lhos o pouco de sopa que Ihes restava. Nãohavia prova. O general depois de advertir amulher acerca. do alcance do que dizia e dechamar sua atenção para a responsabilidadeque assumia, mandou abrir o ventre do solda-do a fim de verificar o fundamento da acusa-ção. E aconteceu que a camponesa tinharazão. Condenação instrutiva 53. ::J53 Que instruía ao mesmo tempo o processo. (N.doT.) .

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(CAPITULO XVI

Da glória

Há em tudo o nome e a coisa. O nome é apalavra que marca e significa a coisa; não fazparte dela, a ela não se incorpora; é um acessó-rio que se acresce, POr fora.

Deus, que é, em Si, plenitude e inteira perfei-ção, não pode ampliar-se e crescer por dentro,em essência, mas Seu nome se amplia e engran-dece com QS louvores e bênçãos que damos àsSuas obras manifestas. Esses louvores que nãoO podem penetrar e se tornar parte integranted'Ele próprio, tanto mais, quanto nada seacrescenta ao que Ele é, nós os atribuímos aSeu nome, o qual, fora d'Ele mesmo, é o que de

',< mais perto O toca. A glória e a honra só aDeus pertencem, portanto nada será maisabsurdo do que as reivindicarmos. Somos,essencialmente, tão pobres, tão necessitados,tão imperfeitos, que nossa preocupação cons-tante deve ser a de trabalhar continuadamente,pata melhorarmos. Totalmente vazios, não éde vento e de palavras que devemos encher-nos; precisamos, para fortalecer-nos, de ali-mentos mais substanciais e sólidos. Umhomem esfaimado seria um simples de espíritose procurasse obter uma bela roupa em vez deuma boa refeição; cumpre correr sempre aomais urgente: "Glória a Deus nas alturas ti pazaos homens na terra", como dizemos em nos-sas orações. Temos penúria de beleza, saúde,sabedoria, virtude e outras qualidades essen-ciais; cabe-nos alcançar essas coisas de pri-meira necessidade, antes de obter o que nosadorna exteriormente. Mas são questões essasde que a teologia trata mais aprofundadamentee com maior competência.

Crisipo e Diógenes foram os primeiros adesprezar a glória, e com maior resolução. Di-

ziam que, entre todas as volúpias, não há maisperigosa, nem de que mais se deva fugir do quea aprovação alheia. Abundam efetivamente oscasos em que sua traição causou graves prejuí-zos. Nada envenena tanto os príncipes quantoa lisonja, e nada há que mais imponham osmaus aos que os rodeiam. Cumular as mulhe-res de lisonjas, repetir-lhas sem cessar é o meiomais comum de triunfar sobre asua castidade;é o modo de sedução que empregam as sereiaspara enganar Ulisses: "Vem, Ulisses, vem, tutão digno de louvores, tu de quem mais sehonra a Grécia"'··. Tais filósofos afirmavamque toda a glória do mundo não justifica queum homem sensato levante um dedo para aconquistar: "que é a glória, por grande queseja, se não passa de glória?" J •• Digo con-quistar a glória pela glória, pois não raro elaacarreta vantagens que a podem tornar desejá-vel. Ela nos oferece a boa vontade alheia, e fazque estejamos menos expostos às injúrias e aoutras coisas semelhantes.

Era também um dos principais dogmas deEpicuro este preceito de sua escola: "escondetua vida", o qual proíbe que se embaracealguém com cargos e gestões dos negócios pú-blicos. E pressupõe assim que forçosamentedesprezemos a glória, a qual consiste na apro-vação da coletividade às nossas ações maisevidentes, Ordenar-nos que escondamos avida, que nos ocupemos de nós mesmos e nãoqueiramos se intrometam os outros no quefazemos, é querer ainda menos que nos hon-rem e glorifiquem. Por isso Epicuro aconselha'

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3118 Homero.3 •• Juvenal.

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a Idomeneu a não orientar seus atos em aten-ção à opinião comum, a menos que ° sejanecessário a fim de evitar outros inconve-nientes por vezes resultantes do desprezo queos homens venham a demonstrar.

Essas recomendações são, a meu ver, perfei-tamente certas e razoáveis; mas somos, não seicomo, dois seres em um SÓ, o que faz que, emuma mesma coisa, acreditemos e não acredite-mos, não podendo desfazer-nos do que conde-namos. Reportemo-nos, com efeito, às últimaspalavras de Epicuro, ao morrer. São grandes edignas de um filósofo como ele; revelam con-tudo vestígios de sua preocupaç ão com a repu-tação ligada a seu nome e com essa disposiçãode espírito que censurava em seus preceitos.Eis a carta que ditou pouco antes de exalar oderradeiro suspiro: "Epicuro a Herrnaco,salve! - Escrevi o que segue neste último diade minha vida, dia feliz embora sofra incrivel-mente da bexiga e dos intestinos; mas meusofrimento é compensado pelo prazer que trazà minha alma a recordação das idéias que ino-vei e da defesa delas. Tu, toma sob tua prote-ção os filhos de Metrodoro; conto, a esse res-peito, com a afeição que desde a infânciativeste por mim e pela filosofia."

Eis a carta. O que me leva a pensar que esseprazer, que diz sentir em sua alma por causadas idéias inovadas, se liga à reputação queesperava adquirir depois de morto, são osdispositivos testamentários pelos quais deter-mina que Aminômaco e Timócrates, seus her-deiros, fornecessem anualmente, no mês dejaneiro, para a comemoração de seu aniversá-rio, a soma a ser fixada por Hermaco; bemcomo a necessária às despesas com a recepçãode seus amigos filósofos, os quais se reuniriamno vigésimo dia de cada lua para honrar suamemória e a de Metrodoro.

C arnéades foi o chefe da seita de opiniãocontrária. Afirma que a glória é desejável emsi, como natural é a afeição que dedicamos aosfilhos a nascerem depois de nossa morte, em-bora não os devamos conhecer. Esta opiniãofoi naturalmente a mais comumente seguida,como ocorre com aquelas que correspondemàs nossas preferências. Aristóteles coloca aglória em primeiro lugar entre os bens que nosvêm de fora de nós mesmos, e considera igual-mente criticâvel buscá-Ia exageradamente oudela fugir. Creio que se possuíssemos o que Cí-cero escreveu a propósito, veríamos opiniõesespantosas, pois ele foi obcecado por essa pai-xão, a ponto de, se ousasse, cair no absurdoem que outros caíram de considerar a própriavirtude válida tão-somente, e desejável, na me-dida em que acarreta honrarias. "A virtudeescondida não difere muito da obscura ocicsi-

dade "! 90. Uma tal maneira de pensar é tãofalsa, a meu ver, que não posso acreditar tenhajamais entrado na cabeça de um homem queteve a honra de figurar entre os filósofos. Seassim fosse, não se deveria praticar a virtudesenão em público; e não nos adiantaria manterno bom caminho a nossa alma, verdadeirasede da virtude, desde que seus movimentosnão chegassem ao conhecimento de outrem.Bastaria então fazer o mal com suficiente habi-lidade para que ficasse ignorado. "Se perce-bes" diz Carnéades "que urna serpente seesconde no lugar em que, sem o saber, vai sen-tar-se alguém cuja morte te beneficia, comete-rás uma má ação em não o avisar, principal-mente se o que fazes só de ti é conhecido." Senão buscamos em nós mesmos a obrigação 'defazer o bem, se a impunidade é consideradajustiça, quantas maldades não seríamos indu-zidos a praticar diariamente!

Devolvendo fielmente a Plótio os valoresque este lhe confiara sem que ninguém o sou-besse, e agindo como eu mesmo o fiz não raro,Sexto Peduceu cumpriu menos uma açãopropriamente meritória do que deixou de malagir em não o fazendo. É útil lembrar, em nos-sos tempos, que Cícero censurava a SextílioRufo por ter aceito uma herança que sua cons-ciência condenava, não porque fosse a coisacontrária à lei, mas apesar de não a contrariar.Não se mostra menos severo com relação aCrasso e Hortênsio que, com sua autoridade einfluência, haviam sido incluídos em umaherança, obtida por um estrangeiro mediantetestamento falso. Contentando-se ambos comnão ter participado da falsificação, não ha-viam recusado os benefícios dela, pois legal-mente se encontravam a coberto contra quais-quer acusações ou testemunhos. "Deviamlembrar-se de que havia o testemunho de Deus,isto é, da própria consciência'?" 9 '.

Seria a virtude coisa vã e frívola, se à glóriapedisse recompensa; não valeria a pena, nessecaso, atribuir-lhe um lugar especial e estabe-lecer uma distinção entre ela e a sorte, pois quehaveria de mais fortuito do que a reputação?"A sorte estende seu domínio sobre todas ascoisas; eleva uns, abaixa outros, menos emconseqüência do mérito do que segundo o pró-prio capricho" ",2. Cabe à sorte fazer com quenossas ações sejam vistas e conhecidas; a sorteé que distribui a glória, ao sabor de sua fanta-sia. Vi-a por vezes preceder o mérito e de ou-tras feitas ultrapassá-lo. Quem primeiro teve a

3 9 o Horácío,391 Cícero.392 Salústio.

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idéia de comparar a glória a uma sombra foimais feliz do que pensava: são duas coisas vãs.A sombra também nos precede por vezes e nãoraro excede, de muito, o comprimento de nossocorpo. Os que ensinam à nobreza a não buscara glória senão através da valentia, "como seurna ação só se tornasse virtuosa com acelebridade'têê ê, que lhe inculcam, senão ocuidado de nunca se expor sem ser vista? Quelhe sugerem; senão que arranje testemunhascapazes de contar suas proezas? Senão a evitarde agir sem ser observada, embora não lhe fal-tem oportunidades de bem fazer?

Quantas belas ações ocorrem em uma bata-lha! Quem se preocupasse com atentar para osgestos alheios, na confusão, nada produziria eforneceria contra si mesmo os testemunhosque colhesse acerca da conduta de seuscompanheiros de armas: "Uma alma real-mente grande coloca o bem, principal objetivode nossa natureza, nas ações virtuosas e nãona glória"? 9 4.

A glória a que aspiro é a de ter vivido tran-qüilo, não como o entendem Metrodoro, Arce-silau ou Aristipo e sim a meu modo. Em sendoa filosofia incapaz de mostrar o caminho queconduz ao repouso da alma e a todos convêm,que cada qual por seu lado o procure.

A que devem César e Alexandre seu imensorenome, senão à sorte? Em torno de quantoshomens estabeleceu ela o silêncio, no momentoem que principiavam a aparecer? Quantos,cuja existência ignoramos, tiveram coragemidêntica à desses heróis mas se viram desde oinício esmagados pelo azar? Não recordo terlido que, através dos numerosos e grandesperigos que enfrentou, César tivesse sido feri-do; no entanto milhares morreram em circuns-tãncias muito menos perigosas. Por uma belaação de que se beneficia o autor, inúmeras ou-tras passam despercebidas, porquanto nin-guém houve para testemunhá-Ias. Nem semprenos achamos na brecha ou à frente do exército,sob os olhos do general, como em um estrado.Podemos ser surpreendidos entre a cerca e ofosso. E, segundo as exigências do momento,obrigados a destruir um galinheiro ou a desa-lojar de uma barracão quatro pobres arcabu-zeiros. Ou ainda, destacados do resto da tropa,ser forçados a agir isoladamente. E não custaverificar que, em verdade, as ações que menosnos colocam em evidência são as que apresen-tam maior perigo. E nas guerras de nossaépoca perderam-se mais bravos guerreiros emescaramuças de somenos, ou no assalto a algu-ma choupana, do que nas batalhas memorá-

393 Id.394 Cícero.

veis e suscetíveis de tornar famosos os seusparticipantes.

Quem considera mal empregada a morteque não traz celebridade, acaba obscurecendoa vida e deixa fugir-lhe numerosas e justasoportunidades de se aventurar. Ora, tudo o queé justo comporta sempre ilustração suficiente,otestemunho da consciência já constituindopor si' glória bastante: "nossa glória está notestemunho de nossa conscíêncía'?" 5. Quemsôé homem de bem sob à condição de que osaibam, quem só quer fazer o bem para quesua virtude alcance a celebridade, não prestapor certo grandes serviços. "Creio que o restodo invêrrio Rolando fez coisas dignas de regis-tro; mas permaneceram tão secretas até agora,que não cabe culpa se não as conto, poisRolando sempre se mostrou mais disposto afazer do que a publicar e seus feitos só sedivulgaram quando tiveram testemunhas'" 9 6.

É preciso ir para a guerra por dever e não espe-rar senão a recompensa que não falta nunca,mesmo para as ações mais discretas, mesmopara os pensamentos virtuosos, e que consiste)1.a satisfação de uma boa consciência. É preci-so servalente .para si mesmo, e pela vantagemde réi- a coragem bem alojada e segura, e firmecontra os embates da sorte: "a virtude brilhacom luz sem mistura; ela ignora a recusavergonhosa, não se apropria das rochas consu-lares, nem as abandona ao sabor de um povovolúvel'P " 7.

Não é para se exibir que nossa alma devedesempenhar seu papel; é para nós e em nós,onde ninguém a vê senão nós mesmos, ondenos resguarda do temor à morte, da dor e davergonha, onde nos dá ânimo se perdemosfilhos, amigos e bens, e, quando necessário,nos impele a enfrentar os azares da guerra:"não em vista de alguma recompensa mas pelasatisfação da virtude"39B. É esse um proveitobem maior, bem mais digno de nossa ambiçãoque a honra e a glória, as quais não passam deuma apreciação favorável a nosso respeito.

Para julgar o direito de propriedade de umlote de terra, selecionamos em toda umanação, uma dúzia de homens; ao passo quepara julgar nossas intenções e ações, coisamais difícil, e importante, reportamo-nos àopinião pública, à apreciação da massa igno-rante, injusta e inconstante. Será razoávelentregar ao juizo dos loucos a vida de umsábio? Que haverá de mais insensato do queestimar em conjunto o que se despreza parcela-

39' São Paulo.3 9 9 Ariosto.39 7 Horâcio.398 Cícero.

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damenteê " "?" Quem procura agradar à multi-dão não o consegue jamais; ela oferece apenasum alvo mal definido e inatingível: "nada émenos honroso do que o julgamento damassa '00". Demêtrío, referindo-se à voz dopovo, dizia, zombeteiro, que apreciava tãopouco o ruído que vinha de cima quanto o quelhe saía de baixo. Cícero é mais sarcásticoainda: "digo que uma coisa, embora não oseja, parece vergonhosa se louvada pela multi-dão". Nenhum talento, nenhuma sutileza con-seguem dirigir nossos passos com um guia tãoerrado e desregrado. Em meio a essa confusãotumultuosa e sem consistência de ruídos, deintrigas, de opiniões vulgares d as multidõesque nos cercam, nenhum caminho se abre quepossamos trilhar. Não nos proponhamos, pois,um objetivo tão flutuante e indeciso e marche-mos com a razão, Que a aprovação públicanos siga se quiser, e, como depende unica-mente do acaso, não há motivo para esperar-mos que torne este ou aquele rumo. Se eu nãoseguisse o caminho reto, pela sua retidão,ainda o seguiria por ter verificado, pela expe-riência, que, afinal de contas, é o que de costu-me nos torna mais felizes e nos é mais útil: "Éobra valiosa da Providência ter feito com queas coisas honestas sejam igualmente as maisúteis,ol," Durante violenta tempestade umnauta dos tempos antigos assim falava a Netu-no: "6 Deus, tu me salvarás se quiseres, tu mecondenarás se preferires, mas eu manterei reta,assim mesmo, a barra do leme." Tenho vistomuitas pessoas hábeis, espertas, ambíguas,indubitavelmente mais prudentes do que eunos negócios deste-mundo, perderem-se emcircunstâncias em que me salvei: "ri-me de verque a esperteza pode malogrnr-se+v"."

Paulo Emílio, de partida para sua gloriosaexpedição na Macedônía recomendava acimade tudo ao povo de Roma que não desse com alíngua nos dentes acerca de suas operações.Quão nociva, com efeito, aos negócios impor-tantes, é a licença com que os julgam, sem con-tar que nem todos têm, em relação aos movi-mentos populares, às injúrias e à oposição, afirmeza de ânimo de Fábio, o qual preferiu serdespojado de sua autoridade a prejudicar o quelhe parecia certo, embora com isso granjeassereputação e popularidade.

Há não sei que doçura natural em.sentir quenos louvam. Mas damos demasiada impor-tância a isso: "não odeio o aplauso, porquetenho sensibilidade; mas nunca os 'muito bem,

1u.

3'.'00

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CíceroTito Lívio.Quintiliano.Ovídio .

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bravo' me hão de parecer o objetivo que sedeva propor à virtude 403". Preocupo-me bemmenos com o que posso' ser aos olhos de ou-trem do que com o que sou a meus própriosolhos; quero ser rico por mim mesmo e nãomediante empréstimos. Os estranhos não vêemno que nos concerne senão as aparências exte-riores, mas todos podem mostrar-se satisfeitospor fora e ser devorados in ternamente pelafebre e o medo. Nosso coração não se vê, e simnossa atitude, É justo que condenemos a hipo-crisia na guerra, pois nada é mais fácil a umhomem experiente do que se furtar ao perigo efingir de valente, com um coração de covarde.Há tantos meios de evitar as oportunidades dese expor seriamente, que é possível enganar milvezes os outros antes de se encontrar em situa-ção de não poder evitar um risco; e ainda queo risco se verifique, ocasionalmente, é possível,uma vez ao menos, fazer das tripas coração eembora com pavor na alma mostrar algumasegurança. Quantos, se possuíssem o anel deGiges, referido por Platâo, que tornava invisí-vel quem o trouxesse ao dedo, virado para apalma da mão, quantos não o utilizariam a fimde se esconder nos momentos em que maisdeveriam mostrar-se? E não se arrependeriamde se achar, em vista de sua situação honrosa,na obrigação de assumir atitude resoluta!"Quem pode ser sensível à lisonja e temer acalúnia, senão o desonesto ou o mentiro-so 4 o 4?" Eis por que todos os juizos que assen-tam nas 'aparências exteriores são eminente-mente incertos e duvidosos, e ninguém temmais fiel testemunha de si do que a própriaconsciência. Quanto malandro temos porcompanheiro de glória! E quem fica brava-mente na trincheira fará mais e melhor do queos cinqüenta infantes que, por cinco soldosdiários, vão à frente, abrindo passagem ecobrindo-lhe o corpo? "Quando a tumultuosaRoma deprecia alguma coisa, tu não aprovas ojulgamento nem tentas reequilibrar os pratosda balança; não procures, portanto, o que ésfora de ti mesmo v? s."

Achamos que tornar um nome ilustre é colo-câ-Io em bocas numerosas; esforçamo-nos porque seja considerado e que o lustre adquiridonos traga proveito - e é a melhor desculpaque possamos dar de nossa conduta. Mas adoença leva-nos tão longe que muitos tentamfazer com que falem deles de qualquer manei-ra. Trago Pompeu e Tito Lívio diziam deHeróstrato e de Mânlio Capitolino que prefe-riam uma grande a uma boa reputação, O malé freqüente, Preocupamo-nos mais com que

.• OJ Pêrsio.

.•o.. Horâcio.405 Pêrsio.

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falem de nós do que com o modo por quefalam. Basta-nos que o nosso nome ande deboca em boca. Dir-se-ia que ser conhecidoconsiste em outorgar a outrem o cuidado denossa vida e sua duração.

Quanto a mim, considero que sou somenteeu "mesmo. Essa outra vida, feita com o quemeus amigos sabem de mim, a encará-Ia comoé, despojada de qualquer artifício, bem sei queo que dela tiro e o gozo que me dá não passamde vaidade produzida pela imaginação. Quan-do morrer, sentirei ainda menos esse efeito;perderei então, totalmente, o uso das coisasrealmente úteis que por vezes devemos à vida.Não poderei mais usufruir de minha reputaçãonem ela poderá tocar-me, atingir-me. Nãoposso, efetivamente, confiar em que ela se liguea meu nome, e antes de mais nada porque nãosou o único a usá-Io; sobre os dois que tenho,um é comum a todos os membros de minhafamília, e de outras. Uma destas existe emParis e Montpellier a que chamam Montaigne;outra na Bretanh a e Saintange, a qual se inti-tula "de ta Montaigne". Essa interposição deuma sílaba não basta para que nossos feitos egestos não se confundam a ponto de não podereu participar de sua glória e não poderem eles.ser respingados pela minha indignidade; e issoembora os meus se tenham chamado outroraEyquem, sobrenome aplicável igualmente auma família conhecida na Inglaterra. Quanto ameu outro nome, é prenome que pertence aquem o queira usar e a honra que lhe couberpoderá caber também a um carregador. Poroutro lado, ainda que me tornasse um persona-gem marcante, que significará a marca? Pode-rá designar algo inexistente e dar-lhe brilho?"Que a posteridade me aplauda, ser-me-à maisleve a pedra que cobrir meus ossos? Meusmanes, meu túmulo, minhas cinzas afortuna-das, se cobrirão com isso de violetas 40 6'!"Mas desse assunto já tratei alhures.

Numa batalha em que dez mil homens sãomortos ou feridos, falar-se-à de uma quinzenaapenas. É preciso que a sorte nos gratifiquecom um feito de armas realmente importantepara que se evidencie alguma ação particular,perpetrada já não digo por um arcabuzeiromas por um capitão; pois, embora matar umhomem, dois ou dez, e enfrentar corajosamentea morte sejam de fato alguma coisa para qual-quer um de nós, que tudo jogamos na parada,para o mundo nada têm de extraordinário.Vêem-se tantas coisas semelhantes diaria-mente, e são necessárias tantas para que seobtenha um resultado sensível, que não pode-mos esperar venham a chamar a atenção de

40 G Pêrsio.

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um modo especial: "São acidentes comuns,ocorridos com muitos outros e que figuramentre os inúmeros azares do destino 40 "."

Entre os milhares de valentes soldados quemorreram em França, de armas nas mãos, nãohá cem cuja memória nos tenha alcançado. Arecordação, não somente dos chefes mas igual-mente dos próprios exércitos, extinguiu-se. Osacontecimentos marcantes de mais de metadedo mundo, por não se haverem registrado, nãoos conheceu ninguém fora do lugar onde ocor-reram, Caíram no esquecimento. Se possuísseos relatos das ocorrências ignoradas, acharianeles, creio, exemplos de toda espécie maisimportantes do que nos fornecem os fatosconhecidos. Temos a prova na história da Grê-cia e de Roma, tão rica de feitos nobres eraros. Embora com fartos testemunhos e tan-tos escritores para os registrar, bem poucoschegaram até nós. "Com dificuldade, um ventobrando trouxe-nos a sua fama 408." E dentrode cem anos, talvez nem se lembrem de que emnossa época houve guerras civis em França.Os lacedemônios, ao entrar em guerra, ofere-ciam sacrifícios às musas, a filo de que seusfeitos fossem bem e dignamente transmitidos àposteridade, pois consideravam que é porfavor divino, raramente concedido, que asbelas ações encontram testemunhas que as sai-bam contar e rememorar,

Suponhamos que todas as vezes que nosexpomos ao fogo dos arcabuzes, ou corremosum risco, um escrivão se encontre no localpara registrâ-lo. Que outros cem escrivães oreproduzam, falar-se-à, ainda assim, da coisadurante três dias, se tanto, e ninguém mais delase ocupará em seguida. Não possuímos a milê-sima parte dos escritos antigos; a sorte é quelhes dá uma vida mais ou menos longa; e osque nos sobram podem ser os piores ou osmelhores. Cabe-nos duvidar, porquanto nãoconhecemos os restantes. Não se faz históriacom tão pouco; é preciso ter conquistadoimpérios e ganho cinqüenta batalhas, comoCêsar, Dez mil bons companheiros morreramcom ele, corajosamente, "sepultes na glória deum momento+"!". Mesmo a memória daque-les de que vimos pessoalmente a obra, não-dura mais do que dois ou três anos; esquecem-se, depois, e são como se nunca houvessemexistido. Quem quer que atente para a glóriaque alcançaram as pessoas e os feitos cujarecordação se perpetua nos livros, há de con-cluir que, guardadas as proporções, bem pou-cos terão direito a igual destino. Quantos ho-mens virtuosos conhecemos que, sobrevivendo

40' Juvenal ..0. Virgílio ..0. Id.

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à sua reputação, tiveram a desgraça de ver,ainda em vida, apagarem-se a honra e a glória,justamente conquistadas em sua mocidade!Nesse ponto, tão importante, propõem os sá-bios um fim mais belo e justo: 'l!:~.Ç9..J.TlI~.I:~?aa uma nobre ação está em a ter realizado; ofruío-do·-servlç-ô· prestadii' ..e··o'··prõpriofruto 41 0". Será possivelmente muito· com:

\ preensível que um pintor ou qualquer artista,. , ou um retórico, ou um gramâtico, se esforce

li' ;para ganhar renome com sua obra; mas osi :atos que nos inspira a virtude são demasiado( : nobres em si para que busquemos uma recorn-

; pensa fora deles, principalmente na inanidade: dos juizos humanos.

Se, entretanto, essa idéia falsa contribuipara manter os homens no caminho do dever, eos predispõe à virtude; se os príncipes são sen-siveis ao fato de se honrar a memória de Traja-no e se execrar a de Nero; se os comove ver onome deste grande malfeitor, outrora objeto deterror, hoje maldito e insultado livremente porqualquer estudante; deixemo-Ia desenvolver-seà vontade e cuidemos dela com carinho.

Platão que atentava para tudo o que pudesseimpelir seus concídadãos à virtude, aconse-lha-os, entre outras coisas, a não desprezarema consideração e a estima do povo, e diz que,por uma espécie de inspiração divina, até osmaus sabem distinguir, em seus juízos, o maldo bem. Esse filósofo e Sócrates, seu mestre,entendem-se perfeitamente e não hesitam emfazer intervirem as revelações divinas sempreque a força humana se revela impotente, "aexemplo dos poetas trágicos que recorrem aosdeuses quando não sabem encontrar um desen-lace para sua peça 41 "", Eis talvez por queTímon, invectivando-o, o tachava de grandefabricante de milagres.

Se os homens são incapazes de apreciar amoeda verdadeira, usa-se a falsa. Todos oslegisladores assim o fizeram; não há legislaçãoem que não se depare com alguma mistura decerimônias fúteis ou de lendas fantasistas queservem para manter o povo no caminho dodever. É por isso que em sua maioria têm elasorigem na fábula e se enriquecem de mistériossobrenaturais, o que deu crédito a essas reli-giões nascidas do erro e fez que pessoas sensa-tas as aceitassem. É também por isso, paralevar mais seguramente os homens a acredi-

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410 Sêneca.411 Cícero.

tarem neles, que Numa e Sertório os alimen-tavam com tolices. E dizia um de sua ninfaEgêria e outro de sua corça branca que Ihescomunicavam as opiniões dos deuses. Essamesma autoridade que Numa emprestava àssuas leis mediante intervenções divinas davaZoroastro às suas, servindo-se de Oromasdes;

e T rismegisto, através de Mercúrio, assim seconduziu com os egípcios. Zâmolxis valeu-sede Vesta junto aos citas; Carondas, de Satur-no, na Calcedônia; Minos, de Júpiter, em Cân-dia; Licurgo, de Apolo, na Lacedemônia;Draco e Sólon, de Minerva, em Atenas. Todalegislação traz um deus à frente. Em todas tra-ta-se de um falso deus; somente emana do ver-dadeiro Deus a que Moisês deu ao povo daJudéia à saída do Egito. A religião dos beduí-

nos, diz Joinville, declara, entre outras coisas,que a alma de quem morre por seu príncipepassa para um corpo mais feliz, mais belo,mais forte do que o primeiro, o que os induz ase exporem de bom grado ao perigo:"desafiavam o ferro, abraçavam a morte,I Iconsiderando covardia poupar uma. vida quedevia renascer" 2". Eis uma crença salutar,embora falsa. E cada nação possui certo núme-ro de crenças semelhantes. Mas o assunto me-rece comentário especial.

Uma palavra ainda. Não aconselho tam-pouco às senhoras denominarem honra o queconstitui seu dever, "assim como na linguagemcomum só se chama bem ao que parece glo-rioso ao povo" 3". O dever é o fruto, a honra,a casca, e as mulheres se prejudicam a si mes-mas invocando tal desculpa quando se recu-sam a entregar-se, pois sua intenção, seu dese-jo, sua vontade nada têm a ver com a honra, edevem ser mais considerados, no caso, do queo fato em si: "já sucumbiu aquela que recusaporque não lhe é permitido sucumbir" 4". A'ofensa a Deus e à consciência é tão gríMÍdêq!iiiÚlQresülta~.do.desiijo:.~êõ.iíiõ:quaiid~~o-yél1l_.<!º.JaJ9, .S;9lJ~J,lJ11.aQ.o.Adem ais, são fatosque ocorrem em lugares geralmente ocultos, e .'<ser-lhes-ia muito fácil escondê-tos dos outros, _que outorgam a honra, se .lJiiQ.praticassem a·

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412 Lucano, ~413 Cícero." 4 Ovídio.

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C CAPÍTULO XIX

. Da liberdade de consciência

.é.f[eqüente vermos as boas intenções, quan-do' mal orientadas, provocarem os piores rêsul"iãdõ~:Nessecoriflito que leva a França à guer-rac'ivil, o melhor partido, o mais justo, é semdúvida o que tem corno objetivo a manutençãoda religião e do governo que existiam antes daperturbação da ordem. No entanto, entre oshomens de bem que o seguem (não falo dosque vêem nisso unicamente a oportunidade derealizar suas vinganças pessoais, ou um pre-texto para satisfazer sua avareza, ou aindapara conciliar a boa vontade dos príncipes, esim dos que são movidos pelo amor à religiãoe ° desejo respeitável de manter em sua pátriaa paz e o estado de coisas existentes), entre

esses homens, digo, alguns há cuja paixão im-pele a ultrapassar os limites da razão e a tomarresoluções injustas, violentas e mesmo temerá-rias.

É certo que nos primeiros tempos, quandonossa religião principiou a ser admitida pelasleis, o zelo dos prosélitos incitou à destruiçãode livros pagãos e a excessos que acarretarammais prejuízos do que os incêndios perpretado spelos bárbaros. Tem-se em Cornélio Tácito umexemplo típico do que afirmo, pois embora oimperador, seu parente, houvesse, mediantedecretos especiais, espalhado sua obra pelasbibliotecas do mundo inteiro, nem um sóexemplar completo escapou à sanha dos que,

(ENSAIOS - 11 )

por causa de cinco ou seis trechos contrários anossas crenças, o destruíram.

Naquela época exaltaram-se também exces-sivamente os imperadores favoráveis ao cris-tianismo e condenaram-se de caso pensadotodos os atos dos que lhe eram hostis, como sepode ver no que concerne ao Imperador Julia-no, o Apóstata, Este príncipe foi, em verdade,'um grande homem, excepcional, profunda-mente cioso dos princípios de sua filosofiapelos quais orientava suas atitudes. E por certonão há virtude de que não tenha dado exemplo.Quanto à castidade, nunca deixou de observá-Ia de maneira irrefutável, e conta-se dele umcaso semelhante aos atribuídos a Alexandre ea Cipião: quando lhe trouxeram numerosasbelas escravas, não quis saber de nenhuma, eno entanto estava então na flor da idade, poisquando foi morto pelos partos tinha apenastrinta e um anos. Quanto à justiça, cuidava deouvir pessoalmente as partes c, embora porcuriosidade indagasse da religião que professa-vam, nunca a inimizade que dedicava à nossafez pender a balança contra os cristãos. Elepróprio redigiu boas leis e reduziu considera-velmente os impostos e taxas de seus predeces-sores.

Dois historiadores foram testemunhas ocu-lares de seus atos. Um deles, Amiano Marceli-no, critica severamente em diversos trechos desua obra o edito daquele príncipe que proibia aprática do ensino aos retóricos e gramáticascristãos. E Marcelino acrescenta que tal deter-minação deveria ser estigmatizada. É provável,portanto, que se alguma medida grave tivessesido tomada contra nós, não teria esquecido demencioná-Ia esse historiador tão afeiçoado anosso partido. Na realidade, ele foi duro masnão cruel; e são os nossos que contam dele ofato seguinte: passeando certa vez pelos arra-baldes de Calcedônia, Maris, bispo da cidade,ousou chamá-Ia de "malvado traidor de Cris-to". Juliano contentou-se com responder:"Vai-te, infeliz, chorar a perda de teus olhos."Ao que o bispo atalhou: "Rendo graças aJesus Cristo por me ter tirado a vista, o que mepermite não ver teu rosto impudente." O impe-rador nessa ocasião deu prova de uma paciên-cia bem filosófica, ao que dizem os que rela-tam o caso. O fato é que isso não se acomodaàs crueldades que alegam ter ele cometido con-tra nós. Eutrópio, o segundo historiador, afir-ma que ele foi inimigo do cristianismo, masnão sanguinário.

Para voltar a seu sentimento de justiça,nada se lhe pode censurar além de seu rigor, noinício de seu reinado, contra os que haviamadotado o partido de Constâncio, seu prede-cessor. Quanto à sobriedade, alimentava-se

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como um soldado, e em plena paz vivia comoquem se prepara para a austeridade da guerra.Era a tal ponto previdente, que dividia a noiteem três ou quatro partes: dormia um período eempregava os outros em fiscalizar o exército eestudar, pois entre as qualidades que o distin-guiam dos outros sobressaía em todos os gêne-ros literários. Dizem de Alexandre, o Grande,que, receoso de ser dominado pelo sono eimpedido assim de meditar, mandava colocarao lado do Icito uma bacia com água e comuma das mãos, que deixava estendida parafora, segurava uma pequena bola de cobre, demodo que se o sono o vencesse, ao se descer-rarem os dedos, caísse ela na água e o ruído odespertasse. Juliano concentrava-se tanto noque queria e tinha o espírito tão lúcido, porcausa de sua abstinência, que não precisavarecorrer a tal expediente.

No que concerne às qualidades militares, foiadmirável em tudo o que é da alçada de umgrande chefe; aliás passou quase toda a vidaguerreando, em particular contra nós, naGâlia, e contra os alemães e os francos naFrancônia. E não há memória de homem quetenha corrido maiores riscos e se esforçadomais, pessoalmente.

Sua morte assemelha-se até certo ponto à deEpaminondas. Como este, foi ferido por umdardo que tentou arrancar das carnes e o hou-vera feito se não cortasse a mão na afiada ares-ta. Nesse estado, contudo, não cessou de pedirque o levassem de volta à batalha, a fim de ani-mar os soldados, os quais, de resto, emborasem sua presença, se bateram obstinadamentepela vitória, tendo a noite separado os doisexércitos. Devia à prática da filosofia seu sin-gular desprezo pela vida e pelas coisas huma-nas, e acreditava firmemente na imortalidadeda alma.

Foi por certo um desviado em matéria dereligião; apelidaram-no Apóstata por haverabandonado o cristianismo. Acho mais prová-vel que nunca tenha sido um verdadeiro crente.Mas precisava dissimular seu pensamento paraobedecer às leis, o que fez até subir ao trono.Era tão supersticioso que dele zombavam atéseus próprios partidários, observando que,vitorioso dos partos, houvera multiplicado ossacrifícios a ponto de acabar com todos osbois da terra. Tinha absoluta confiança naciência dos adivinhos e acreditava em todaespécie de prognósticos. Entre outras coisasdisse, ao morrer, ser grato aos deuses por onão haverem abatido subitamente, de surpresa,pois o tinham avisado com antecedência dahora e do lugar; e também por não lhe tereminfligido uma morte mole ou covarde, comosói reservarem aos ociosos e requintados, ou

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uma morte lenta e dolorosa. Rendia-lhes gra- 'ças por o terem julgado digno de morrerhonrosamente no desenrolar de uma vitória eno fastígio da glória. Por duas vezes tiverauma visão análoga à de Marco Bruto. Umaprimeira vez na Gália, pela qual fora advertidode um perigo que o ameaçava; a segunda vezna Pêrsia, pouco antes de sua morte. Quantoàs palavras que lhe atribuem ao sentir-se feri-do, "venceste, nazareno", os relatos de meusdois historiadores, que não esqueceram asmais insignificantes minúcias desse fim, não asomitiriam sem dúvida, como não omitiram osmilagres porventura ocorridos, por pouco quehouvessem acreditado nessas histórias.

Mas voltemos ao assunto. Segundo AmianoMarcelino, o Imperador Juliano pensava desdemuito, em seu íntimo, restaurar o paganismo.Mas seu exército era inteiramente formado porcristãos, e ele só ousou revelar seu, projetoquando se achou bastante forte para tornar pú-blica sua vontade, Mandou então reabrir ostemplos dos deuses e tentou por todos os meiosrestaurar a idolatria. Para consegui-lo, cha-mou a palácio os prelados da Igreja Cristã,divididos como o povo em suas opiniões, econvidou-os a aplacarem suas dissençôes demodo que lodos pudessem, sem obstáculo nemreceio, praticar a religião como a entendessem.

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Esforçou-se grandernente por convencê-Ios, naesperança de que uma tal liberdade aumen-tasse o mundo de facções e cabalas, impedindoo povo de se unir contra ele, imperador, com aforça que teria auferido de urn entendimentounânime, Verificara, pelas crueldades cometi-das por alguns cristãos, que "não há animalmais feroz no mundo e mais temível para ohomem do que o próprio homem".

Essa tática do Imperador Juliano é digna denota, porquanto a fim de atiçar as agitaçõesprovocadas pela discórdia, pôs em jogo essemesmo instrumento da liberdade de cons-ciência de que se valem nossos reis para apazi-.guá-las. O que nos leva a dizer que, se, de umlado, dar inteira liberdade de opinião aos parti-dos redunda em semear e desenvolver dissen-ções, auxiliar a ampliá-Ias destruindo quais-quer barreiras e restrições das leis que ascoíbem, por outro lado, !JII'gar as rédeas e per-mitir, a todos os partidos que manifestem suas~~~i6~s ê ta~bém enfraquecê-los pela fa~ili-dade .e latitude, que.,s!:..Inell outorgam; é embo-tar o dardo que os,estimuíã,êq~e a;arid'ad";;, anoxidade.e ..a,dit1culc.l!lde,afí:üjj; Para llõiiradenossos reis, prefiro acreditar que não tendoconseguido o que desejariam, fingiram desejaroque podiam.

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