Monteiro Lobato Nas Paginas Do Jornal

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Literatura - Escritores

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  • MONTEIRO LOBATO NAS PGINAS DO JORNAL

    Thiago alves valenTe

    um estudo dos artigos publicados em O EstadO dE s. PaulO (1913-1923)

  • Monteiro Lobato nas pginas do jornaL

  • CONSELHO EDITORIAL ACADMICO

    Responsvel pela publicao desta obra

    lvaro Santos Simes Jnior Ana Maria Domingues de Oliveira

    Carlos Eduardo Mendes de Moraes Cleide Antonia Rapucci

  • Monteiro Lobato nas pginas do jornaL

    um estudo dos artigos publicados em

    o estado de s. paulo(1913-1923)

    thiago alves valente

  • Editora afiliada:

    2010 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    V25m

    Valente, Thiago Alves

    Monteiro Lobato nas pginas do jornal: um estudo dos artigos publicados em O Estado de S. Paulo (1913-1923) / Thiago Alves Leite. - So Paulo : Cultura Acadmica, 2010.

    Inclui bibliografia

    ISBN 978-85-7983-107-2

    1. Lobato, Monteiro, 1882-1948 - Crtica e interpretao. 2. Lobato, Monteiro, 1882-1948 - Viso poltica e social. 3. O Estado de S. Paulo (Jornal). I. Ttulo

    11-0101. CDD: 869.98 CDU: 821.134.3(81)-8

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

  • Ao Centro de Documentao e Apoio Pesquisa (Cedap) e Biblioteca Accio Jos Santa Rosa, da Unesp de Assis; ao Cen-tro de Documentao Cultural Alexandre Eullio (Cedae), da Unicamp; ao Arquivo do Estado de So Paulo, pela disponibili-dade do material pesquisado.Aos professores Carlos Erivany Fantinati e Tnia Regina de Luca, pelas preciosas ori-entaes na banca de qualificao; a Jzio Hernani Bomfim Gutierre e Marisa Phil-bert Lajolo, pela cuidadosa arguio na banca examinadora. Ao professor Joo Luis C. T. Ceccantini, alvo cada vez maior de admirao pessoal e profissional.

  • Alis, ningum desconfia mais do que l nos jornais do que os prprios jornalistas, imaginando o que pode estar por trs de cada notcia.(Gilberto Dimenstein, Nos bastidores do poder)

  • Sumrio

    Introduo 13

    1 Monteiro lobato e O Estado: convergncias no tempo e espao 15

    2 a formao de um publicista: Monteiro lobato por lobato 43

    3 Monteiro lobato, "jornalista" 954 os artigos de lobato (1913-1923) 139

    Consideraes finais 229Referncias bibliogrficas 241

  • introduo

    a fase compreendida pelos historiadores como de consolidao ou profissionalizao da imprensa, incio da Repblica at a dcada de 1930, corresponde a um perodo relevante da atuao do escritor Monteiro lobato (1882-1948) como jornalista.

    o intuito de se abordar os artigos publicados no jornal O Estado de S. Paulo, peridico fundado em 1875 como baluarte das questes ide-olgicas republicanas, permite situar o incio da produo de lobato, em 1913. o limite de 1930 justifica-se pelo momento histrico, ou seja, a transio de um pas rural para um estado em franca urbanizao com o advento da era vargas.

    Como veculo fugaz, o jornal apresenta-se como oportunidade para se rever uma faceta menos literria do escritor. a observao do con-junto de textos produzidos como artigos para O Estado entre os anos de 1913 e 1923 revela um escritor em fina sintonia com o veculo do qual participava e ajudava a construir, fosse na esfera dos ideais, fosse no crculo das atividades exercidas dentro do jornal. lobato , com efeito, um jornalista participando ativamente dos ideais polticos e sociais de um grupo cuja influncia extrapolava a to autoproclamada neutralidade do jornal. havia um projeto de pas em boa parte comum a escritor e jornal, ou melhor, entre o publicista atento e o peridico bem-sucedido. Uma velha praga, Urups ou o quase no lembrado entre duas

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    crises so textos que, postos lado a lado e lidos na sequncia e frequncia que surgem em O Estado, compem um mosaico esclarecedor da viso projetada por lobato e por um grupo de intelectuais cuja ao pblica, poltica, identifica-os como grupo do Estado.

    a intensidade com a qual essas relaes se deram ou mesmo o que aproximou esses homens envolvidos com causas que julgavam caras ao desenvolvimento do Brasil reflete-se nas pginas de O Estado. Con-tudo, preciso lembrar que para lobato h um espao legitimado no sistema literrio e cultural brasileiro de modo geral, e O Estado um captulo em sua vida que merece ateno, entre tantos outros textos vividos e experimentados por essa personalidade marcante da primeira metade do sculo XX.

  • 1monteiro Lobato e O EstadO:

    convergnciaS no tempo e eSpao

    A roda que sempre freqentara pertencia oposio. Era um grupo pequeno, de elite, composto de intelectuais desejosos da refor-ma da cultura e dos costumes brasileiros, homens sobretudo de trato social apurado, moralmente ntegros. (Edgar Cavalheiro, Monteiro Lobato: vida e obra)

    em 1875 editam-se em so Paulo e no Rio de Janeiro dois jornais que vo atravessar o marco de um sculo de existncia, sendo que um deles se incluir entre os de maior prestgio no pas e na amrica latina. trata-se de A Provncia de S. Paulo, na idade republicana O Estado de So Paulo (Bahia, 1954, p.80). Como mercado, o Rio de Janeiro apresentava grande nmero de jornais dirios, revistas, tipografias e editoras de livros, concentrando-se ali a atividade literria com des-taque na poesia, no romance, no ensaio e na filosofia.

    A Provncia de S. Paulo constitua um caso evidente da mobili-zao de proprietrios rurais interessados na imprensa. sinal de que, desde 1880, entrava-se num estgio empresarial, como nos pases mais avanados:

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    o desenvolvimento do jornalismo no perodo que abrange o fim da primeira e o comeo da segunda fase absorve as profundas mudanas econmicas que vive o pas na passagem do imprio para a Repblica. a economia assinala, ento, duas transies: uma, para o trabalho assalariado e, outra, para um sistema industrial.

    Compreendem os editores de jornais e empresrios grficos que o mbito restrito de um jornalismo mais literrio e mais poltico j no atende s exigncias da sociedade, de um pas em transformao, vido por incorporar os avanos das comunicaes. Uns e outros partem na direo da melhor qualidade de seus produtos. (ibidem, p.108)

    no curso da Primeira guerra Mundial, a imprensa percebe e absorve as mudanas sociais, especialmente a relao dos povos com o sistema de comunicao de massa. o jornal menos literrio e mais noticioso se faz com as notcias vindas de bonde, de trem e de navio, alm do emprego de escritores e publicistas consagrados, cujos textos eram publicados em oficinas com linotipos a motor eltrico em subs-tituio ao motor a gs. no h como separar desenvolvimento tcnico de produtividade intelectual:

    De um ponto de vista estritamente tcnico, a grande transformao por que passa a imprensa brasileira na virada de sculo o incio do emprego dos mtodos fotoqumicos de reproduo. e isto se d, de fato, a partir de 1 de maio de 1900, quando comea a circular a Revista da semana, de lvaro de teff. at ento, os processos de reproduo mais comuns eram ou a litografia que obrigava um agostini, por exemplo, a desenhar diretamente sobre pesadas pedras, s avessas, para que, na impresso, o resultado aparecesse natural ou a gravura em zinco ou cobre onde o ilustrador deveria desenhar sobre papel gelatinado, obedecendo ao tamanho exato que deveria ter o clich, fosse ele de uma polegada. Mtodos substitudos desde 1900 pelo fotozinco e pela fotogravura. (sssekind, 1987, p.72)

    a expanso territorial da imprensa seria inevitvel, pois essa permitira criar uma base econmica mais slida s empresas em cres-cente fortalecimento. anunciava-se o corte do cordo umbilical com

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    o estado, embora esse ainda fosse o grande patrocinador de boa parte do sucesso de muitos peridicos nacionais. tal como a Repblica, a imprensa haveria de ser alguma coisa para um pblico parco, irri-srio, comparado a mercados amplos como o norte-americano.

    a fase de consolidao indicava outros rumos em termos de viso de mundo das oligarquias. ainda que orbitando ao redor dos deten-tores dos capitais, a imprensa vai se libertando medida que o carter empresarial firma-se em contraposio ao provinciano costume da encomenda de notcias. a fase de transio de uma imprensa panfle-tria para uma profissionalizada apresenta uma conscincia dominante de que a imprensa deve situar-se num plano de interesse pblico, de identificao com os sentimentos de valorizao da ordem jurdica, de aperfeioamento das instituies e de conquistas sociais voltadas para o indivduo (Bahia, 1954, p.108). Mesmo com as encomendas das opinies por parte do governo, sem dvida o jornalismo vivia um momento prspero, indito na histria da imprensa brasileira (luca & Martins, 2006, p.37-8):

    essa fase prspera resultou da especial conjuntura vivida pelo pas, definida pelo momento econmico de apogeu do caf e diversificao das atividades produtivas; pela nova ordem poltica republicana, com programas de alfabetizao e remodelao das cidades; pela agilidade introduzida pelos novos meios de comunicao; pelo aperfeioamento tipogrfico e avanos na ilustrao, enquanto as mquinas impressoras atingiam velocidades nunca vistas.

    a imprensa mais profissionalizada passou a figurar como segmento econmico polivalente, de influncia na melhoria dos demais, visto que informaes, propaganda e publicidade nela estampadas influenciavam outros circuitos, dependentes do impresso em suas variadas formas. o jornal, a revista e o cartaz veculos da palavra impressa potencializavam consumo de toda ordem.

    no difcil imaginar que virar jornalista passa a ser uma ambi-o de jovens da capital e do interior. embora no dominando o meio, indivduos advindos das oligarquias agrrias do interior transformam-se em empresrios, o que abre portas para profissionais em busca de

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    alocao nas salas editoriais. Decretava-se o fim do jornal como em-preendimento individual, como aventura isolada nas grandes cidades, sendo esse tipo de imprensa relegada ao interior, onde sobreviveria com menor ou maior folga ao longo do tempo.

    a relao do pblico com o jornal no mais se d simplesmente por adeso a este ou aquele grupo poltico. Mesmo quando perdedores nos embates com o governo, os jornais saem fortalecidos pela identificao popular com suas posies ideolgicas, ainda que popular no significas-se mais que uma camada letrada da cidade e dos leitores da oligarquia no interior paulista. o contexto em que apareceria a marca de Monteiro lobato, com a figura do Jeca tatu (Bahia, 1954, p.178):

    nesse perodo de quase quinze anos, contado a partir da primeira agn-

    cia nacional, A Ecltica, na dcada de 10, tcnicas de outdoor, painis de estrada, mala direta, house organ, promoes, se desenvolvem rapidamente com base em recentes processos de produo grfica, geram empregos, formam novos especialistas.

    esse surto de tecnologia da comunicao impressa coincide com o aparecimento do Jeca tatu o caboclo pobre, casado com mulher magra e feia, pai de crianas plidas e tristes, vivendo no mato, numa casinha de sap de Monteiro lobato, cuja histria divulga as virtudes da ankilos-tomina e do Biotnico Fontoura. o folheto (preparado por lobato com o estmulo de Cndido Fontoura, ambos redatores de O Estado de S. Paulo) alcana em 1941 a marca de 10 milhes de exemplares.

    Lobato na grande imprensa

    Quando lobato vem luz no mundo da grande imprensa, essa j caminhara um trecho na conquista da solidez econmica e da liberdade poltica de opinio. lobato est a caminho de sua profissionalizao como colaborador de peridicos. embora herdeiro, a partir de 1911, da Fazenda do Buquira, escrever para jornais corresponderia muitas vezes, conforme o escritor deixa registrado para a posteridade nas cartas aos amigos, ganhar dinheiro (luca & Martins, 2006, p.40):

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    logo, o literato profissionalizou-se por meio do jornalismo, pois havia um fato real: pagava-se! os jornais introduziram tabelas fixas para salrios, contemplando com valores substanciosos nomes de expresso no panorama poltico e literrio. isso desencadeou muito questionamento e crtica. intelectuais bem-sucedidos, que tambm atuavam com sucesso na propaganda, especialmente Coelho neto e olavo Bilac, tornaram-se alvos preferenciais dos ataques.

    nas prprias palavras de lobato, percebem-se os indcios da pas-sagem de uma escrita dos escolhidos para uma escrita mensurvel em valor de troca, o que observado na carta de 7 de junho de 1909, a Rangel, em A barca de Gleyre (lobato, 1957, p.238-9):

    nada sei de Ricardo. estar no Comrcio de S. Paulo? suspeitei-o, en-contrando por acaso um nmero desse jornal em que vinham os clssicos e nunca assaz republicados Elefantes do lecomte de lisle da sua traduo e tambm o meu Gens ennuyeux, que entra assim na quarta edio em jornal. a mim no convidou para colaborar. Donde recebi convite foi da Tribuna de santos, jornal cor de rosa que o valdomiro silveira dirige, e j mandei como pano de amostra uma coisa cruel contra o hermes. Prometem pa-gar a colaborao logo que concluam l umas reformas. preciso que a literatura renda ao menos para o papel, a tinta e os selos. a primeira coisa paga que escrevi foram artigos sobre o Paran, coisa de oitiva. Renderam-me 10$000 cada, uma assinatura de Reveu Philosophique (33 francos), um aristfanes completo e um belo canivete de madreprola com saca-rolha. no foi mau o negcio, e assim pilhemos to alta remunerao para tudo quanto produzirmos.

    ainda em relao a lobato, o ano de 1914 marca-se pela apario

    reconhecida num jornal de grande porte como O Estado, porm, no o surgimento de um literato a profissionalizar-se, pois que sua formao j vinha de anos se dando em outras folhas. o que acontece a partir de 1914 a intensificao de um processo de participao no meio jornalstico de maior calibre tanto em nmero de leitores quanto em finanas. a compra da Revista do Brasil, em 1918, surgiria como a possibilidade de dizer tudo o que gostaria e como quisesse (azevedo et al., 2006, p.119):

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    nascida em setembro de 1915 como uma sociedade annima for-mada por sessenta acionistas, na sua maioria intelectuais, polticos e jornalistas ligados ao grupo do Estado, a Revista do Brasil lanada em janeiro do ano seguinte. a vingana da peroba, no terceiro nmero, marcou a estria de lobato no peridico, onde colabora com contos, artigos e crticas de artes plsticas.

    h algum tempo lobato j se considerava um dos donos da Revista, conforme confessou, em tom de gracejo, ao amigo Rangel. agora, com disponibilidade financeira, comeava a pensar seriamente na hiptese.

    apesar dos conflitos entre o literato e o jornalista, lobato no via os peridicos com ceticismo mesmo porque considerar-se um dos donos forte indcio de uma presena de liderana no grupo, no de simples colaborador. em 1918 efetiva a compra atravs de escritura passada no 1 tabelionato da capital, de Filinto lopes, por cinco contos de ris negcio incluindo mveis, o estoque de exemplares e o ttulo, avaliados em torno de trs contos , alm de um passivo que girava por volta dos dezessete contos (ibidem, p.120).

    o ano 1918 tambm marca o envolvimento de lobato com o problema do saneamento bsico brasileiro. ao se posicionar em mais uma causa nacional, o jornal O Estado de S. Paulo demonstrava sua capacidade de mobilizao e influncia no cenrio sociopoltico. a presena de lobato, por sua vez, implicava algo semelhante. viajando com a equipe de artur neiva, conferiu in loco o problema e sua pena era posta a favor da causa. antes de findar o ano de 1918, so os artigos reunidos em volume, por deciso da sociedade eugnica de so Paulo e da liga Pr-saneamento do Brasil (Cavalheiro, 1955, p.235). lobato efetivamente tornara-se um nome no jornalismo da primeira metade do sculo XX, um nome que, embora indique seu papel de jornalista, indica ainda um diferencial em relao categoria profissional em franca ascendncia.

    Como vrias vezes anunciara por cartas a godofredo Rangel, o jornal havia propiciado a janela de que precisava para se transformar em escritor. Comandando a Revista do Brasil, est a um passo de editar a si mesmo, o que faz rapidamente nos anos de 1917 e 1918, respectivamente:

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    Com a experincia bem-sucedida de duas primeiras publicaes auto-financiadas O Saci-Perer: resultado de um inqurito e Urups lobato desenvolve ali mesmo, paralelamente ao comando da Revista do Brasil, o embrio de uma seo editora. Dado o xito junto ao pblico a primeira edio de Urups, de mil exemplares, esgotara-se em surpreendente velo-cidade, assim como as trs posteriores, consumidas com igual rapidez , ele repete a experincia com outros autores. e, na contramo das prticas editoriais, prioriza os novatos, lanando gente praticamente desconhecida. naquele tempo, para algum editar um livro tinha que possuir um destas qualidades: ser rico, ter prestgio junto a um medalho, ou ser filho de pai ilustre, explicaria mais tarde. (azevedo et al., 2006, p.122-4):

    a figura de Monteiro lobato envolvido com causas defendidas abertamente nas pginas do Estado no se contrape a prticas em-presariais mais vigorosas. o que se explica tambm em relao a O Estado. o jornal insurgia-se contra a tendncia centralizadora da poltica brasileira desde sua fundao, dado que em seu projeto po-ltico, fazia-se presente uma concepo de estado que se fundava na teoria evolucionista, no princpio liberal de autonomia dos estados e na experincia prtica de alguns pases, como, por exemplo, os estados Unidos da amrica do norte (Capelato & Prado, 1980, p.26).

    as relaes com a imprensa americana se intensificaram nos anos 1920. as datas so importantes para se compreender tanto a atuao da imprensa brasileira no cenrio internacional quanto o prprio contexto em que se inseria lobato como ativo membro do grupo: Do Primeiro Congresso Panamericano de Jornalistas, em maio de 1926 na cidade de Washington, participaram 14 representantes brasileiros (silva,1 1991, p.76). entre eles, gilberto Freyre, representando o Dirio de Pernambuco. herbet Moses de O Globo e nestor Rangel Pestana de O Estado de S. Paulo fizeram-se presentes tanto por meio dos telegramas quanto por meio da aproximao que se dava de modo oficial entre os

    1 importante ressaltar que no h homogeneidade na abordagem sobre a relao da imprensa americana com a brasileira. Para esse autor, por exemplo, a influncia se d muito mais pela poltica imperialista americana que por outros mecanismos de apropriao, como sugerem Bahia (1954) e sodr (1966).

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    pases. no caso do congresso, o ponto principal era a ampla liberdade de imprensa. no quadro de internacionalizao, Monteiro lobato seria pea-chave para convencer o pblico jornalstico produtores e leitores dos benefcios dessa aproximao:

    entre intelectuais que exerciam a profisso jornalstica de forma inter-mitente, mas que ainda assim tinham grande ascendncia sobre a categoria e sobre a opinio pblica, a maioria continuava contrria influncia dos americanos. entre estes, alceu amoroso lima, antonio torres e agripino grieco. Mas um passaria a defend-la com entusiasmo crescente: Montei-ro lobato, que em 1927 foi nomeado adido comercial do Brasil em nova York, onde morou por quatro anos e meio. sinto-me encantado com a amrica. o pas que eu sonhava. eficincia. galope. Futuro. ningum andando de costas. o poder de lobato no deve ser medido apenas pela influencia que possa ter exercido sobre seus contemporneos. impossvel contabilizar, mas no desprezvel, o que ele transmitiu ao longo das ge-raes seguintes de valores compatveis com o modo de pensar americano a milhares de crianas que se tornariam jornalistas e responsveis pelas redaes dos mais importantes dirios do pas. (ibidem)

    o entusiasmo de lobato com a amrica estaria em consonncia com sua viso de mercado para a literatura: Monteiro lobato foi o primeiro escritor brasileiro a conceber a literatura como mercadoria. no teve o menor pudor de enviar uma carta aos donos dessas casas comerciais propondo: quer vender tambm uma coisa chamada livro? (Costa, 2005, p.75). evidentemente, porm, conceber a literatura como produto no justificaria to simplesmente a aproximao do escritor com o jornal. so, pois, as questes ideolgicas, concepes de mundo no contexto das quais o mercado um dos fatores, que fazem de lobato um sapo permanente da lagoa de O Estado. sapo de redao, ttulo que, atribudo aos partidrios das ideias do jornal, poderia ser um nome mais chistoso, suave, para a presena intensa de personalidades fortemente atadas s concepes de sociedade e poltica do peridico.

    justamente a conjuno de funes, caracterstica do momento vi-venciado pelo jornalismo no Brasil, que permite ao escritor paulista fazer de seus textos publicados em jornais livros em que os artigos vinham a

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    pblico organizados segundo critrios do prprio autor. se isso tem a vantagem editorial e literria de registrar de modo mais pertinente a obra de um escritor, tambm contribui de modo relevante para se obscurecer o jornalista Monteiro lobato. o apagamento do escritor de jornal se deu pelo prprio autor que, apesar dos reveses vivenciados na busca de dar ao pas riqueza das mais diversas formas, legou posteridade um conjunto de textos por ele selecionados como representativos de sua produo, muitos dos quais retirados das pginas de O Estado e reescritos pelo experiente autor e editor para suas obras completas.

    A presena de Lobato em O Estado

    a fim de se compreender a dimenso das alteraes posteriormente realizadas nos textos publicados em O Estado entre 1913 e 1923, o cotejo entre os artigos publicados em jornal e a verso das obras com-pletas ainda em circulao pode elucidar alguns pontos a respeito da produo lobatiana para jornal.

    o primeiro artigo publicado por lobato em O Estado de S. Paulo aparece em 30 de outubro de 1913, com o ttulo entre duas crises, pgina 3 do jornal:

    Quadro 1 artigos de Monteiro lobato publicados em O Estado de S. Paulo (ano/pgina)

    ttulo Datanmero(s) da(s) pgina(s)

    1. entre duas crises 30.10.1913 32. Uma velha praga 12.11.1914 33. Urups 23.12.1914 64. a caricatura no Brasil i 27.1.1915 45. a caricatura no Brasil ii 28.1.1915 56. Como se formam lendas 16.2.1915 4 e 57. a hostefagia 11.4.1915 48. o problema nacional 26.5.1915 3 e 49. a propsito de Wasth Rodrigues 9.1.1916 510. a conquista do nitrognio 15.1.1916 311. Pensionamento dos artistas 16.1.1916 3

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    12. Cidades mortas 29.2.1916 3 e 413. os subprodutos do caf 29.11.1916 3 e 414. o aproveitamento integral da laranja 13.12.1916 315. a esttua do patriarca 25.12.1916 1016. a grande oficina-escola (i) 1.1.1917 417. a grande oficina-escola: a exposio anual (ii) 5.1.1917 418. a criao do estilo (iii) 6.1.1917 519. a questo do estilo 25.1.1917 320. o saci 5.2.1917 321. a questo do estilo 11.2.1917 322. o problema do trigo no Brasil 7.4.1917 223. saneamento do Brasil: a ao de oswaldo Cruz (i) 18.3.1918 324. saneamento do Brasil: 20 milhes de opilados (ii) 19.3.1918 425. saneamento do Brasil: trs milhes de papudos e idiotas (iii)

    20.3.1918 3

    26. saneamento do Brasil: Doze milhes de impa-ludados (iv)

    21.3.1918 4

    27. saneamento do Brasil: Diagnstico (v) 22.3.1918 328. saneamento do Brasil: Reflexos morais (vi) 23.3.1918 3 e 429. Problema do saneamento: Primeiro passo 5.4.1918 330. o saneamento: Dficit econmico, funo do dficit de sade

    7.4.1918 3

    31. o problema do saneamento: Um fato 12.4.1918 332. a fraude bromatolgica 14.4.1918 333. Rondnia: viso do futuro e viso do passado (i) 19.4.1918 334. Rondnia (ii) 23.4.1918 335. o problema do saneamento: incio da ao (i) 12.5.1918 336. o problema do saneamento: iguape (ii) 15.5.1918 337. saneamento e higiene: as novas possibilidades das zonas clidas

    3.6.1918 4

    38. exposio georgina luclio de albuquerque 25.2.1919 339. a revoluo do ensino 18.11.1920 440. estradas 2.4.1921 341. o cinema cientfico 26.5.1921 342. Um grande artista 16.11.1921 443. o teatro brasileiro 14.10.1922 344. oswaldo teixeira (pintura) 18.5.1923 445. a futura essem do serto 6.6.1923 3

    importante lembrar que as datas revelam a periodicidade relativa presena de lobato na edio matutina de O Estado a oficial. Para-

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    nia ou mistificao a propsito da exposio Malfatti, por exemplo, aparece na edio vespertina do peridico, em 20 de dezembro de 1917, motivo pelo qual no se encontra registrado no Quadro 1.

    observa-se pela localizao que os artigos situam-se entre as pginas 2 e 5, isto , no miolo do jornal; nunca na primeira pgina geralmente dedicada a relatos sobre problemas polticos de dimen-so nacional ou internacional, nem passando da quinta, pois que as posteriores eram voltadas para os anncios das demais publicaes comerciais. oscilando entre 12 e 16 pginas, o jornal mantinha a configurao bsica por meio dessa diviso. as estreitas colunas, re-gularmente oito, eram preenchidas conforme a necessidade sem muito cuidado para com os olhos dos leitores. Por vezes, uma notcia iniciada no meio de uma coluna passava outra, inserindo-se entre anncios publicitrios, apresentao certamente habitual para o leitor que tinha em O Estado um dos melhores jornais em circulao.

    em 1913, lobato publicou apenas entre duas crises, artigo que no aparece em seus livros. Uma velha praga e Urups, de 1914, so publicados em Urups, de 1918. os artigos sobre carica-tura, a caricatura no Brasil i, a caricatura no Brasil ii; Como se formam lendas e a hostefagia, esto compilados em Idias de Jeca Tatu, de 1919, com exceo de o problema nacional, embora do mesmo ano, dos demais, 1915, no publicado posteriormente em livro. De 1916, a propsito de Wasth Rodrigues, a conquista do nitrognio, Pensionamento dos artistas e a esttua do patriarca so editados em Idias de Jeca Tatu (1919); Cidades mortas compe livro ao qual empresta seu ttulo, Cidades mortas, tambm de 1919, e os subprodutos do caf e o aproveitamento integral da laranja no so publicados. em 1917, os dois primeiros textos do ano abordam o liceu de artes e ofcios de so Paulo a grande oficina-escola (i) e a grande oficina-escola: a exposio anual (ii), artigos no publicados integralmente nas obras completas de lobato, tal como o problema do trigo no Brasil tambm no ficaria registrado em colet-neas posteriores. o terceiro texto da srie, a criao do estilo (iii) que aparece em Idias de Jeca Tatu (1919), obra na qual tambm esto dois artigos intitulados a questo do estilo, um de janeiro, outro de

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    fevereiro; e o saci. os artigos sobre saneamento bsico, publicados em O Estado em 1918, so quase todos enfeixados em O problema vital, tambm de 1918: a ao de oswaldo Cruz, 20 milhes de opilados, trs milhes de papudos e idiotas, Doze milhes de impaludados, Diagnsticos, Reflexos morais, Primeiro passo, o saneamento: Dficit econmico, funo do dficit de sade, Um fato, a fraude bromatolgica, incio da ao, iguape e as novas possibilidades das zonas clidas. embora da mesma srie de artigos, Rondnia: viso do futuro e viso do passado (i) e Rondnia (ii) integram Idias de Jeca Tatu (1919). De 1919, o artigo exposio georgina-luclio de albuquerque viria a compor, pos-tumamente, Conferncias, artigos e crnicas (obras completas, 1959). em 1920, aparece em novembro a revoluo do ensino, texto no publicado em livro. o cinema cientfico e Um grande artista, de 1921, registram-se em Idias de Jeca Tatu (1919), sendo estradas, do mesmo ano dos outros dois textos, no editado posteriormente. De 1922, o teatro brasileiro aparece em Conferncias, artigos e crnicas (1959). Finalmente, encerrando o perodo anterior aos anos 1930, os artigos oswaldo teixeira (pintura) e a futura essem do serto, de 1923, tambm no esto publicados.

    Como se nota, a produo dos artigos cresce de modo exponencial entre 1913 e 1918. Da presena nica de entre duas crises de 1913, tem-se em 1918 a ostensiva campanha sanitarista empreendida por O Estado na qual lobato atuou de forma marcante os quinze artigos publicados ao longo do ano permitiram enfeix-los tanto no livro O problema vital quanto, como atestaria o prprio escritor, ver seus textos comentados e republicados nos mais diversos peridicos do pas.

    Pela comparao das datas dos artigos com as obras completas, nota-se que alguns textos foram posteriormente agregados aos livros da coletnea os artigos de 1921 aparecem em Idias de Jeca Tatu (1919) na edio atualmente2 em circulao. o que no invalida a hiptese de ter sido primeiramente publicado em livro e posteriormente em

    2 atualmente referncias s obras completas de Monteiro lobato, pela editora Brasiliense, ainda em circulao (2010).

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    jornal, embora esse no fosse o caminho mais comum dos artigos de lobato. ao se refinar o Quadro, percebe-se que dos 44 textos, 11 no foram publicados em livro:

    Quadro 2 artigos de lobato no publicados em livrottulo Data1. entre duas crises 30.10.19132. o problema nacional 26.5.19153. os subprodutos do caf 29.11.19164. o aproveitamento integral da laranja 13.12.19165. a grande oficina-escola (i) 1.1.19176. a grande oficina-escola: a exposio anual (ii) 5.1.19177. o problema do trigo no Brasil 7.4.19178. a revoluo do ensino 18.11.19209. estradas 2.4.192110. oswaldo teixeira (pintura) 18.5.192311. a futura essem do serto 6.6.1923

    Do total do conjunto, destacam-se mais uma vez os textos de 1918, os quais foram integralmente aproveitados em publicaes posteriores. se isso se deve ao sucesso da campanha e do mercado editorial em que lobato se encontrava, no se pode deixar de notar que os textos de O problema vital, livro do mesmo ano da srie sobre saneamento e sade estampada em O Estado, incorporou o calor da hora e veio a pblico como resultado do trabalho investigativo empreendido pelos intelectuais especialmente lobato envolvidos na campanha sanitarista.

    o problema de definir os temas: a tentativa de categorizao sobre o que escrevia lobato leva ao impasse da produo lobatiana como um todo em O Estado. Uma velha praga trata de sociedade? De economia? ou de representao do homem brasileiro? o tema central realmente a queimada, ou apenas o mote para expor as inumerveis pragas do Brasil? ou se quer apenas tratar de uma praga, o caboclo ignorante francamente oposto imagem do homem festejado como ideal no pas ideal?

    a proposta de se definir do que tratam os textos de lobato falha medida que eles dialogam com temas recorrentes, reiterados ao longo de toda a produo, mesmo quando o autor se debrua sobre algo aparentemente to ameno como a caricatura. o atraso brasileiro em

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    relao aos pases desenvolvidos, a ausncia de iniciativas para alar o Brasil a um estado de desenvolvimento requerido tanto por lobato quanto por aqueles que compartilhavam desse iderio em O Estado, constituem o assunto que perpassa e permanece no conjunto.

    Depreender o discurso sanitarista da srie publicada em O pro-blema vital (1918) tarefa sem nenhuma dificuldade para o leitor de hoje, e possivelmente o fora ao leitor de 1918; mas um texto como os subprodutos do caf (29.11.1916) coloca em xeque qualquer categorizao mais simplista: abordam-se questes econmicas por meio da cincia? ou a cincia abordada sobre uma viso econmica? Busca-se a valorizao do saber cientfico? ou crtica implcita ao ensino de cunho bacharelesco no Brasil?

    o mesmo se d com o teatro brasileiro (14.10.1922) entre a crtica ao modo de fazer teatro e a viabilidade econmica, o leitor depara com um texto otimista em relao ao teatro nacional. otimismo que se d pela via da projeo de uma arte para todos, a preo baixo, com qualidade e, sobretudo, visceralmente nacional. arte ou economia? sociedade ou educao das massas? tudo converge para um ponto: dar caminhos para um Brasil construdo nos textos de lobato e dos demais companheiros de O Estado.

    em outros termos, alguns assuntos podem ser vistos como temas geradores os quais lobato toma para conduzir o leitor por outras pers-pectivas, ainda que se tenha frente um texto ainda menos pretensioso como o saci (5.12.1917), o qual, no seu contexto, equivale nada menos a uma proposta brasileira para a arte brasileira o intuito do escritor parece contar justamente com a leveza do tema para cooptar mentes a seu favor.

    Quanto ao cotejo dos textos publicados em jornal e as edies das obras completas, h alteraes de vocbulos e estruturas frasais em todo o conjunto de artigos transpostos aos livros. Porm, para o leitor atual seria muito arriscado afirmar, por exemplo, que este ou aquele vocbulo foi substitudo por ser mais acessvel ao leitor do jornal ou do livro da poca. alm disso, so os cortes ou acrscimos de trechos que oferecem material mais rico para a observao da relao do escritor com o texto em circulao em O Estado.

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    na sequncia cronolgica, o primeiro texto que merece ateno Uma velha praga (12.11.1914). aps comentar sobre a justia para o responsvel pelas queimadas uma justia sumria que no pune, entretanto, dado o nomadismo do paciente o artigo do jornal acres-centa: nas leis do pas no h penas, nem meios de colher nas malhas da justia tais rus, e tolo ser quem recorrer s autoridades: os escrives redobraro os prejuzos da queimada. entendendo autoridade como os representantes da justia, lobato ataca uma instncia fundamental para a constituio da sociedade democrtica que defendia. Mas ao final do texto, no ponto em que o artigo publicado em livro encerrado, que se faz apelo ao poder pblico quanto prtica das queimadas. lobato aponta o problema das inspetorias, demonstra ineficincia do estado e da Unio para intervir, restando s cmaras municipais a nica sada:

    h uma postura adotada em quase todos os cdigos municipais, prescrevendo, sob pena de multa, um aceiro de tais e tais dimenses em redor de todos os roados destinados queima. Como, entretanto, se no curou dos meios de lhe fiscalizar a execuo, to sbia providncia dorme no cemitrio da letra morta. mister, urgente tir-la da completando-a de modo a extrair dela todo o benefcio de que capaz. e isso se conseguir facilmente. Um meio prtico seria atribuir aos inspetores de quarteiro a tarefa de verificar se os aceiros obedecem s condies exigidas, proibindo-se terminantemente, sob fortes penas, o deitar fogo s roas sem a prvia inspeo dessa autoridade.

    avultado como o nmero de tais inspetores, ramsculos terminais que so da rvore da autoridade, o servio se organizaria facilmente, com grande eficcia, sem despesas, sem barulho, sem burocracia.

    s das Cmaras lcito esperar alguma coisa neste sentido. a Unio cuida de casos polticos, e mesmo que voltasse a ateno para este pro-blema, viria com uma dessas mquinas pesadas, complicadas, matraco-lejantes, carssimas, como a Defesa da Borracha de papeluda memria, caranguejolas que s funcionam nos relatrios e nas folhas do tesouro.

    o estado...s as Cmaras, s as Cmaras podero providenciar eficazmente, s

    eles conhecem de perto as necessidades locais, s delas podero sair a me-dida prtica e simples capaz de acalmar o funestssimo fogo de agosto.

    a elas, pois, o brado de misericrdia da legio de prejudicados.

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    Deixando, pois, ao texto das obras completas a denncia de tal prtica prejudicial qualidade do solo, no texto jornalstico lobato fazia da concluso apelo direto e irrefutvel ao poder municipal. J em Urups (23.12.1914) as alteraes so bem menores. no entanto, em meio aos comentrios nada elogiosos ao caboclo, o escritor no contm uma espetada nos figures: note-se o orgulhoso entono com que respeitveis figures batem no peito exaltando comovidos: sou raa de caboclo!.

    Dos textos sobre caricatura, a caricatura no Brasil i (27.1.1915) e a caricatura no Brasil ii (28.1.1915), o segundo que sofreria modificao significativa. a segunda parte da matria, no dia 28, tem a arte caricatural em terras nacionais como objeto de anlise. o primeiro corte perceptvel contribui para a diminuio do descritivismo no raro chicoteava uma flecha no galo da igreja matriz porque j as havia com o galo de lata a cantar ventos na torre. Celerados, meirinhos, e preto dangola intra-muros: extra-muros serto, papagaios, jagua-res e aimors sanhudos: era isso o pas os pargrafos recortados da sequncia demonstram a agressividade alcanada por um texto cuja pretenso de colocar a sociedade brasileira caricaturalmente em letras de jornal no pode ser negada:

    sobretudo depois que o Brasil se naturalizou cidado francs.o riso nosso uma careta muscular sem gnese na alma. Pelos cassinos,

    diante de canonelistas francesas de tutu na cintura e duas rodelas de zarco na cara, semelhantes a caquis, o brasileiro come-lhes as pernas com os olhos e careteia nas frascarices mais acentuadas sem entend-las.

    e sai assobiando rias, muito ancho, na convico de que riu, e que se divertiu.

    nos garden-paty do veldromo: parece que se renem ali para o sai-mento fnebre da alegria. tais festas teriam melhor cenrio no cemitrio do ara, onde ao menos ririam as caveiras dentro das tumbas.

    os rapazes recm-sados do alfaiate s tem olhos para o vinco das calas; em vez de elegantes saem-no bezerros bem enfarpelados, mas com visveis sintomas de tnia.

    as moas entre-examinam-se de esguelha; lembram terneiras de raa recobertas de gaze e sedas, mal aclimadas e corrodas do mesmo

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    mal dos rapazes. Circulam, bocejam, e se vo, nos antes reluzentes, como sonmbulas.

    o mal do pas esse, a bezerrice. se algum qumico decompuser o ar que se respira nos sales talvez encontre metido entre o oxignio e o azoto algumas molculas desse novo gs ambiente.

    Matria de riso h as toneladas, para todos os paladares, para a chalaa offembachiana, para o sorriso do ea, para o rinchavelho adiposo de Ra-belais. no obstante os nossos revisteiros e comedigrafos importam da velha grcia os telmacos e Ulisses que lhes ho de divertir o pblico. os nossos poetas so um chorar lgrimas como punhos sobre tais e tais iluses perdidas no fundo dos quais todo o mundo percebeu um amanuensado que falhou, quando no, a tbua da menina enfermia dos fgados em cujos olhos de vitelinha clortica se afogou o corao do tolo. no h olhos para a feio do cmico indgena, nem verso, nem lpis que lha ironize.

    a descrio cida e no discriminatria: a bezerrice geral, em ho-mens e mulheres. tambm retirado outro trecho de menor extenso, o que no diminui o tom caricatural do texto. apontando a vontade dos leitores de serem retratados pela fotografia em pginas de jornais e revistas, o autor escreve que com se multiplicarem tais grupos em tais revistas, pela reproduo fotogravada, a meia imortalidade con-ferida pelo azotato de prata se integrava em imortalidade inteiria, to slida como a da Brasileira de letras e a folha apanha um bando de assinantes. Para o leitor da poca, expe mais detalhadamente o problema da circulao de peridicos no Brasil, informao possivel-mente julgada desnecessria para as obras completas:

    o bice de maior calibre oposto ao periodicismo, entre ns, reside nos excessivos hiatos do povoamento. entre um ncleo de populao e outro, interpe-se o deserto, qual muralha insuladora.

    Raro vinga uma folha transpor esse espao pelo simples projetar-se na publicidade, como a bala, mirando o alvo da opinio pblica; a distncia encurva-lhe a trajetria, forando-a a cair muito perto do ponto de partida; donde a necessidade de criar engenhosos meios de expanso.

    tambm retirado o trecho no qual a metfora da planta em cres-cimento explicava o sucesso dos caricaturistas citados no artigo:

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    o apelo foi ouvido, e atendido.todas as belas floraes so assim, oriundas de uma semente fincada

    num monte de esterco. o aproveitamento industrial de todas as vaida-dezinhas ingnuas e provincianas do pas inteiro criou prodigioso! a revista ilustrada de ampla divulgao. no se lhes condenem o uso siste-mtico do cato, da insulsez, da ausncia de arte e bom gosto; foram meios de criar indiretamente a atmosfera propcia ao desabrochar do desenho humorstico de boa liga.

    a metfora do mata-pau que encerra o artigo de 1915, trecho que no aparece na publicao em livro, lembrando que poca das obras completas, entre 1946 e 1947, o contexto editorial do pas era outro. imagem recorrente nos artigos, o parasita vegetal serve, no caso, para explicitar a forma como grandes publicaes podem se manter vivas ao longo dos anos, mesmo quando consideradas de segunda categoria, desprestgio corrente para a arte caricatural:

    h pelos sertes uma parasita chamada mata-pau. as aves depe-lhe as sementes no esgalho de uma perobeira. a semente germina, e cresce com preguia, emitindo razes em fios a prumo, que descem procurando a terra.

    enquanto esses filamentos no na alcanam, a vida do mata-pau uma mentira, um viver de brisas, um morrer agoniado pela dispnia da seiva.

    Um dia, porm, alcanam as raizinhas dbeis o solo e uma transfigura-o estupenda assombra a mata. as radculas engrossam como calabrs, a clorose da folhagem vira pletora, a plantilha tolhia de h pouco cresce aos pinotes, numa nsia irrefrevel de cu. as folhas incham de verdura. que a boa seiva da terra l sobe em jorros pela cordoalha e turge-lhe os tecidos de sucos vitais. entra em luta com a perobeira, mata-a por estrangulao, como as jibias, constringindo-a em cngulos que se vo anelando pelo tronco da vtima. e a figueira mata-pau, estufada de orgulho, mostra floresta espavorida, sobraando-o ainda, o cadver seco da perobeira.

    isto no retrica, verdade e serve de smile neo-caricatura indgena que, abandonando a esfera restrita das camadas que entrajam casimiras, vai meter razes no suculento esterco que o povo, nico alfobre capaz de vitalizar a arte.

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    em Como se formam lendas (16.2.1916), retira-se apenas uma estocada mais afiada nos tipgrafos mais sonolentos: enriquecer assim a elocuo humana de locues de uso dirio e to belas como as onze mil virgens e as rosas de Malherbe, por meros cochilos de composi-o, assombra, deixando entrever de que prodgios tal raa de copista e tipgrafo seria capaz quando despertos. Quanto a a hostefagia (11.4.1915), os textos em livro mostram-se mais concisos, evitando-se reflexes desnecessrias ao andamento do texto, ou citaes menos pertinentes ao leitor da poca, como a que faz a Fulton, no momento em que cita napoleo Bonaparte como exemplo de heri: embora bem pesadas as credenciais o desprezado Fulton, seu contemporneo, mais merecesse tal situao se a humanidade fosse composta de filsofos; ou reflexes interruptoras da linha de raciocnio principal do texto: progredir: conhecer, alcanar, ter conscincia, de quanto a alma humana j nos tempos mais remotos sabia de instinto, isto , inconscientemente. ora, uma antropofagia consciente no destoa deste conceito. importante notar que o trecho antecipa ao leitor sua tese, isto , uma antropofagia blica, o que evitado na verso em livro, deixando para o consumidor da obra-livro a funo de deduzir a ideia central do artigo.

    lobato, porm, certamente usou muitos de seus textos publica-dos nos peridicos como substrato para outros textos publicados em livros, prtica que pode impedir a percepo sobre filiao entre as publicaes. essa correlao entre material de substrato e material re-elaborado pode ser percebida em a propsito de Wasth Rodri-gues (9.1.1916) e Pensionamento de artistas (16.1.1916), os quais compem dois outros textos de ttulos diversos. o primeiro aparece em Idias de Jeca Tatu, de 1919, como parte do texto esttica ofi-cial, embora o artigo a paisagem brasileira: a propsito de Wasth Rodrigues indique ao leitor uma correlao que, na verdade, se d somente pelo tema, no pela reedio do texto. a outra parte de esttica oficial (texto do livro) composta por Pensionamento de artistas. no jornal, ao final deste artigo, encontram-se pargrafos posteriormente no publicados em livro, ainda que o contedo, como se afirmou, estivesse diludo em outros textos:

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    Bem poucas excees biam flor da regra geral. a espaos surde um Wasth Rodrigues sopesando copiosa ruma de estudos, denunciadores de uma operosidade assombrosa a servio de um talento da melhor gua.

    v-se-lhe da exposio e do muito que no exps, que materialmente impossvel produzir mais e progredir a passadas mais firmes.

    um que trabalhou por si e por uma dzia de colegas esperdiados num cio sem dignidade por cafs onde bebericam absinto e alcouces onde praticam a jardinagem perfumada do xeique nefzani.

    Por mal seu o nosso pblico dinheiroso compra quadros unicamente por injunes do esnobismo, raro pela influio espontnea de um na-tivo senso esttico. adquire-os por virtude do nome bem colocado que se exibe a vermelho num canto, embora o gatafunho clebre assine, s vezes, em tamanco.

    J vimos um figuro, de nome entre amadores, tomar de sobre a coluna uma estatueta de bronze, revir-la de pernas para o ar, apontar com o beio a assinatura Charpentier, Mnusier ou Maon e exclamar entre babos de puro gozo apolneo:

    hein? que beleza, no? Mil francos e foi de graa.a crtica, sua conta, tem graves culpas no cartrio. entra-se de medo

    pnico quando lhe compete analisar a obra dum novo sem nome; fica-se medrosa em generalidades vagas, de um encomistico frouxo, aplicveis indistintamente a a. ou B. ou C.

    s tira da gaveta as bem adjetivadas anlises darte com citaes de taine, quando recebe senha da crtica europia. esta a verdade, nus como quando saiu do poo.

    o caso de Wasth Rodrigues tpico. sua exposio foi recebida com parcimoniosa economia de juzos crticos; o pblico, na dvida, incapaz de avaliar por si, vacila. e, no entanto, se no definem para Wasth todos os louvores de uma e todos os favores de outro, para quem se reservam tais mimos?

    este brilhante caso que Wasth Rodrigues, como exceo que , no salva da condenao o sistema paulista de fomento arte.

    apesar de permanecer o elogio ao pintor nos textos em livro, explcito o enaltecimento no texto do jornal. a meno ao figuro reaparece, e at mesmo o pblico acusado de se portar dubiamente diante de obras que no mereceriam tal atitude. o despeito do escritor

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    em O Estado evidente, encerrando a matria com uma pergunta irnica, ausente na publicao em livro: e a gente rir-se tambm, pois havia de chorar?.

    ataques mais diretos, citando personalidades, tambm poderiam justificar um corte posterior no artigo. em a conquista do nitrognio (15.1.1916), mesmo em meio a consideraes cientficas, lobato no perde de vista o interlocutor da oposio, afirmando o atraso brasileiro, pois que a repartio de agricultura dos estados Unidos distribua milhares de quilos de sementes inoculadas pela bactria capaz de reter nitrognio nas razes das plantas, diz-se que os resultados ex-cederam expectativa, apresentando as plantas esse vio enaltecido pelo sr. teixeira de Freitas, na seo livre das folhas, sob o riso de incredulidade do sr. Cardoso de almeida que, pelos modos, ainda est em liebig. Para encerrar o artigo, um ataque em tom de pergunta retrica: agora uma pergunta: a descoberta de Bottomley no ser a mesma lei encantadora de inefveis douras que o ser. t. de Freitas conta em prosa cariciosa com mimos at aqui s empregados no verso para descantes mulher amada?.

    a alterao mais significativa em Cidades mortas (29.2.1916) a ausncia de um trecho reflexivo, ideia que reiterada ao longo de todo o texto, possivelmente percebida como excessiva pelo escritor:

    a nossa gente no vinga prosperar seno onde uma vitalidade prodi-giosa poreja do hmus negro da terra virgem como o fumegar quente de uma rs carneada de fresco.

    em sendo mister lutar contra a avareza crescente do solo, refazer-lhe a fertilidade anemiada, criar fontes novas de riqueza, diversas das cos-tumeiras, o homem fraqueja, coa a cabea, e, se forte, emigra, se fraco, tomba em modorra para logo atolar na misria.

    a criao do estilo (6.1.1917) perde um trecho de pouca impor-tncia para o leitor do livro, no necessariamente contemporneo do debate nas pginas de O Estado: na casa silveira Cintra, construo deste ltimo, o pretrio, o telhado, o fronto e inmeros detalhes so inspirados pela arte colonial e dispostos com grande felicidade. ou

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    porque a casa j no existisse, ou porque a referncia estivesse muito datada, lobato faz to somente essa modificao mais relevante. o mesmo ocorre com a questo do estilo (25.1.1917). o saci (5.2.1917), por sua vez, apresenta modificao em razo do prprio contexto; em livro, fica o tema e sai a relao direta com o inqurito realizado na edio vespertina do peridico:

    este inqurito pela massa preciosa de informaes colhidas, fornecer elemento para um livro curiosssimo onde o saci seja estudado rigoro-samente luz da cincia demonolgica. livro para o psiclogo e para o povo, duplamente interessante, pois. este encontrar nele um reflexo da sua mentalidade, e divertir-se- com os inmeros casos narrados; aquele ter ali material para preciosas dedues. o inqurito continua aberto e breve ser feito um concurso entre desenhistas e escultores, com prmios s melhores representaes do moleque demonaco. entrar ele, assim, definitivamente, para o seio da arte.

    Para a edio em livro, lobato acrescenta consideraes mais li-terrias, apropriadas ao leitor que no pudera participar do inqurito pelo jornal: e dubitativos uns, cticos outros, afirmativos mui-tos a concluso de todos a mesma: o saci existe!...; Como o Putois, de anatole France?; Que importa? existe. Deus e o Diabo ensinaram-lhe essa maneira subjetiva de existir.... a questo do estilo (11.2.1917) tambm no aparece com modificaes quanto a redues ou acrscimos em sua passagem para livro.

    em 1918, adentra-se ao conjunto de textos publicados posterior-mente como Problema vital. o primeiro, abrindo a srie, a ao de oswaldo Cruz (18.3.1018) no apresenta modificaes, bem como os demais textos no seriam modificados de modo mais marcante que a simples substituio de um ou outro vocbulo e a redistribuio de pargrafos. em Reflexos morais (23.3.1918), porm, v-se a retirada de um pargrafo em que o escritor faz referncia direta a personalidade da poca: se cotejamos o que ramos sob Pedro segundo e o que somos sob Pereira gomes, o sangue aflui-nos s faces mas ficamos nisso. Reconhecemos que Pedro segundo era a tampa, e que foi grande erro destamparmo-nos mas onde a bela coragem de readaptar o uso da

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    tampa?. o uso do mundo biolgico como representao das relaes sociais tambm mais restrito na verso em livro, considerando que a mesma relao j havia sido exposta em exemplo anterior: no imoral o ato do tubaro humano que se guinda a um alto cargo poltico e ali se locupleta a si e sua camarilha; imoral o subjugado que se deixa espoliar sem gesto de reao.

    Comparao registrada em Primeiro passo (5.4.1918) tambm sofre restrio na reviso do escritor:

    adaptados ao meio, eles copiam a ttica dessa abelhinha preta muito nossa conhecida, que se enrodilha nos cabelos. Como elas, eles se alojam nos ocos dos jornaizinhos da roa, e nas rachaduras dos peridicos mais ou menos clandestinos das cidades grandes, onde fabricam o seu mel de cachorro.

    nesse texto tambm que lobato atacava diretamente o governo brasileiro por sua complacncia com o estrangeiro, enquanto a populao local padecia as amarguras das verminoses endmicas e da alimentao precria. o trecho que no aparece na verso das obras completas carregado de ironia e referncia contrastante realidade brasileira:

    os povos fortes desprezam o estrangeiro. em Roma hospes era hostes. Para ns hospes fetiche. Cada povo vive para si ns quere-mos viver para ingls ver. inda no nos capacitamos da verdade de hobbes: o homem o lobo do homem. eles, o estrangeiro, coerentes com esse axioma sociolgico, desprezam-nos ns adotamo-los. Pagamos todos os insultos com lngua meiga de co batido e tal atitude s d em resultado aumentar-se o desprezo que eles nos votam. viciamo-nos na sabujice a ponto de erigir como princpio a atitude acocorada e boquiaberta diante do atrevido dolicocfalo melado. esgotamo-nos em criar-lhes facilidades para que eles tenham c um paraso terreal e venham derrotar-nos dentro de nossa prpria casa, enriquecer-se s rpidas, apossar-se de tudo, fazendo do pobre brasileiro um paria faminto e errante a gemer de lazeira num territrio que cada vez menos seu. os nossos governos vivem apostados em amimar quanto bpede louro, vermelho ou cor de coco, pe p em nossos cais; do-lhes o que eles pedem e o que no pedem; do-lhes at

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    justia fcil e rpida esse sonho inatingvel do aborgine. os congressos fazem leis protecionistas para prosperar as fbricas que eles se dignam armar por aqui. a vida encarece para a populao inteira que importa? Compensam-nos a honra de ver cogumelar do protecionismo novos con-des. Milhes de brasileiros pagamos uma caixa de mau fsforo por cem ris, podendo t-lo como outrora, e de primeira qualidade, a vintm, para que meia dzia de dlicos espertos se repastem em milheiros de contos, e faam velas para a ptria com a amrica feita.

    Cretinos! lobato no economiza adjetivos que possam retratar a realidade local. em Dficit econmico, funo do dficit da sade (7.4.1918) a eficincia do brasileiro comparada detalhadamente para que o leitor no duvide do fracasso nacional, ainda que, em livro, no mais aparea:

    alegaro os medrosos da verdade nua que a argentina uma terra privilegiada, senhora de tima mesologia, terras planas fertilssimas, nao beijada ao bero pelas fadas boas de Perrault. ser. Mas comparemo-nos com a Bolvia , onde o dissdio geogrfico no assim to acentuado. o boliviano tem uma eficincia econmica muito maior que a do brasileiro. Mas a Bolvia favorecida por isto ou por aquilo, reguingaro os Pangloss. Perfeitamente. tomemos o Paraguai. aqui sim, levamos uma pequenina vantagem. Ufanias! a ironia tambm pode ter sido possivelmente diminuda em favor

    da fatura do conjunto, lembrando que, em livro, os artigos consti-tuem captulos, pelos quais muitas crticas se reiteram e se mostram por meio de diversos exemplos: como primeiro passo nada mais digno da viso de lince dos estadistas frgios. Belisrio que calcula a porcentagem dos opilados em 70% da populao total do pas, deve rejubilar-se com a munificncia governamental. Mais uma vez, no jornal, lobato faz da concluso uma epgrafe apropriada campanha pela saneamento e, por que no, contra o bacharelismo reinante: o animus photographandi uma precauo sugerida pelo instinto do pudor. apesar dos cortes serem mais comuns, s vezes lobato prefere acrescentar alguma considerao para que o leitor da obra

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    compreenda melhor os fatos, como o caso de a fraude bromato-lgica (14.4.1918), que recebe esclarecimentos em O problema vital, de 1918 (lobato, 1957, p.288-9): cada falsificador tem sua cauda uma corte de advogados administrativos, prepostos a inutilizar a ao dos poderes pblicos, porque no h melhor negcio do que defender um falsificador. gente que paga bem!. acrescenta ainda na mesma verso em livro (ibidem, p.293): agora, se um fiscal honesto apreende um produto falsificado e a higiene sanitria inicia o processo contra o homem, saltam logo em sua defesa os advogados da fama, que embrulham tudo, corrompem a justia e acabam forando o estado a pagar ao malandro gorda indenizao.

    Quanto aos artigos sobre Rondnia, Rondnia viso do futuro e viso do passado (19.4.1918) e Rondnia (23.4.1918), ambos publicados sob o ttulo sinttico de Rondnia em Idias de Jeca Tatu, de 1919, em relao ao segundo texto que ocorrem alteraes mais relevantes. no livro, visvel o entusiasmo do crtico com a obra Rondnia, de Roquette Pinto. Porm, na edio do jornal, lobato se estende por mais trs pargrafos nos quais focaliza a figura do autor-etnlogo, comentando inclusive a forma de escrever do cientista:

    o livro de Roquette Pinto o mais interessante estudo publicado por um patrcio sobre um tema que at aqui interessou muito mais aos estran-geiros do que a ns. Francamente, ns temos coisas muito mais srias do que isto de cincia, esta maada de raas autctones e gs e nu-aruaks. temos, por exemplo, o estudo comparativo dos cem mil instantneos fotogrficos publicados pelas nossas revistas ilustradas onde se fixam as atitudes atuais, os sorrisos, os gestos, as passadas, as caretas do paredros gs e dos estadistas nus. no nos sobra tempo para estudo dos outros, dos que trazem tanga. apesar disso, nos momentinhos de folga que a instantneographin Comparada nos concede, possvel darmos nosso quarto de hora de ateno obra deveras notvel do emrito professor do Museu nacional. Pela forma fragmentria de notas, pela amenidade da forma, pelo entregachamento de observaes pitorescas relativas paisagem, e aos incidentes da viagem, esse livro consagra um sbio e jeitoso processo de fazer cincia para elos. a cincia bem dosada nas pink-pills ingerida sem que o percebamos. arrastados pela parte

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    anedtica vamos a boiar pela corrente do livro, com os olhos distrados pelos quadros marginais e com o esprito alerta e alegre pelos casos e retratos, e observaes psicolgicas com que o autor entremeia e disfara a aridez do estudo etnolgico.

    o dr. Roquette Pinto eminentemente compreensivo. sabe fazer livros como os precisamos, livros que nos incutam cincia malgnous.

    se para finalizar dissermos do elemento sedutor que a sua simpatia pes-soal sabe defluir no estilo, teremos feito o elogio completo da sua excelente Rondnia. e restar apenas estranhar o critrio editorial do governo. Foi o governo o editor do livro, mas ao contrrio de todos os outros editores, no o ps venda. Publicou-o para guard-lo a sete chaves nos arquivos, donde os amigos filam alguns exemplares e o resto o caruncho comer. em matria de publicidade um critrio perfeitamente ge. Critrio falso, mas, concorde-se, riqussimo de cor local.

    se a delonga estava tambm a servio da divulgao do livro como mercadoria os recortes de incio da ao (12.5.1918) esto relacio-nados, possivelmente, a questes polticas da poca, compreendendo-se essa no s em relao aos poderes institudos, mas s comunidades referidas ou identificadas:

    se, por exemplo, algum mdico fsico espontneo vai vila ame-ricana, e l, em comcio na praa, convence ao prefeito de que mister metralhar o livro, bandeira de morte, de Belisrio Pena saneamento do Brasil, e se esse prefeito desfaz pelo desleixo todo o servio de terra realizado pela comisso sanitria, um enorme dispndio de esforo e di-nheiro estar irremediavelmente perdido. entretanto, pela conservao rigorosa dessa obra, a vila ir restituindo rapidamente aos cofres pblicos, por meios indiretos, o que deles saiu para empatar-se l. na sequncia, o autor inicia comentrio sobre o norte do pas,

    concluindo o texto:

    o Brasil por l desandou demais, desandou fora de toda a conta e medida.no Par j aconteceu esta coisa inconcebvel: os empregados do

    Museu goeldi, esfaimados pelo calote oficial comeram um belo dia o famoso pirarucu, que era a maior curiosidade do museu. outros apetites,

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    vendo aquilo, surgiram, e mais vorazes ainda, devoraram o resto. fato virgem no mundo, o Museu goeldi desapareceu da face da terra pela via digestiva das piranhas humanas. ora, l possvel crer em movimentos saneadores em zonas onde um fato como este nada diante de outros bem mais sugestivos?

    excesso de informao ou referncia imprpria parcial ao rock-felliana lembrando o elogio pblico que O Estado dedicaria misso de Rockfeller contra a ancilostomose no Brasil, em 18 de maro de 1918 trecho mais extenso tambm cortado em iguape (15.5.1918), em sua edio como captulo de O problema vital:

    na de iguape no se abrem privilgios dessa ordem poupando a vida a parasitos de tanta letalidade como o ancilstomo, e alm disso fere-se de frente com igual energia o Moloch malrico.

    temos o vezo doentio de malsinar o nosso para realce do alheio. Fu-gindo a ele, arrastados pela evidncia e premidos pela justia, hemos de confessar que a ao de iguape, sobre modelar rene a maior economia mais alta eficincia. se houver procura de um paradigma para norteio de aes futuras ali que ho de procur-lo. o mtodo Melchades, consis-tente em no espaar como de praxe, a dose de timol e d-la de uma s vez, em bloco, sem perigo de nenhuma conseqncia m, permite reduzir grandemente o trabalho e tambm encurtar a durao da refrega. Merece ampla divulgao.

    a agressividade do texto tambm se mostra reduzida na verso em livro, retirando-se, por exemplo, trecho referente aos opositores campanha sanitarista: nem a campanha de rua da medicina fsico-espontnea nem o finco maledicente dos que possuem a verminose localizada no crebro. Fechando a srie, as novas possibilidades das zonas clidas (3.6.1918), publicado em O problema vital como as grandes possibilidades dos pases quentes tem tambm sua referncia ao gnero piteco minimizada, talvez uma suavizao da imagem do homem selvagem primitivo: lembrando um troglodita ressurrecto pelo atavismo, nas florestas da sumatra, como lembrete vivo da nossa prospia memento homo quia simius est.

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    ltimo texto submetido comparao, Um grande artista (16.11.1921), publicado em edies posteriores de Idias de Jeca Tatu a primeira edio de 1919, portanto, anterior ao artigo em jornal traz uma concluso posteriormente retirada para o livro, a qual demonstra como a adequao ao veculo fato relevante para a escrita: vejamos agora como s. Paulo acolhe o maior pintor que a tem visitado. vejamos se a Paulicia se reabilita da ximenada em que escorregou. evidentemente, a concluso um apelo ao pblico, uma busca de convencimento justificada somente num veculo dirio e contemporneo do leitor das pginas de O Estado de 1921.

    Como se pode notar tanto pelos temas quanto pelo aproveitamento do material jornalstico para publicao em livro, lobato divulga suas ideias numa cadeia de textos que, por todos os ngulos que se tente abord-los, deixa ao leitor pistas de que o conjunto tem uma coerncia interna no veculo em que est publicado. se existe um ethos do enun-ciador (Fiorin, 2004, p.120), isto , uma imagem do autor, essa imagem est imbricada na imagem do enunciador O Estado. os valores, os temas, a freqncia de publicao, os elementos constitutivos do fazer jornalstico conformam uma prxis pela qual o lobato jornalista pode receber outro ttulo: publicista (Zilberman, 1985, p.13).

    longe da inteno de criar categorias para o enaltecimento do escritor, nome-lo como publicista oportuno para se compreender como se d a integrao do escritor com O Estado e, ao mesmo tempo, como seu discurso to prximo de outros intelectuais da roda do ve-lho rgo pde se destacar de um conjunto no qual as diferenas de contedo e forma no eram as mais radicais para que o leitor pudesse, com espanto, encontrar um novo jeito de escrever at ali indito no peridico. o lobato publicista possivelmente o que tem mantido o lobato jornalista estabelecido ao longo da histria do sistema cultural brasileiro no sculo XX.

  • 2a formao de um pubLiciSta:monteiro Lobato por Lobato

    Editar um veculo de comunicao e informao defensor da democracia, da livre iniciativa, idneo, moderno e comprometido com o seu permanente aprimoramento.(Misso, Manual de redao e estilo de O Estado de S. Paulo, 1997)

    ser neto de visconde pode implicar muitas coisas. entre elas, a possibilidade de ter acesso a um mundo de leitura muito distante da maioria das crianas brasileiras do final do sculo XiX, e isso numa grande biblioteca de um casaro da cidade: estantes enormes, cheias de grossos tomos. ainda era cedo para entend-los, mas o menino adorava folhear a Revista ilustrada, de ngelo agostini, ou a novo Mundo, de J. C. Rodrigues. Uma coleo do Journal des voyages, foi, no entanto, o seu maior encanto (Cavalheiro, 1995, p.23).

    a importncia que as revistas ganhavam no incipiente e magro mercado nacional aparece na preferncia das leituras de lobato. muito provvel que nelas o menino tenha se encontrado com textos literrios, mas tambm com os mais diversos gneros textuais nos quais a filosofia e a cincia certamente no estavam ausentes. o Journal des

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    Voyages, por exemplo, aparece em carta de 20 de janeiro de 1904, a godofredo Rangel (ABG, 1957, i, p.50-1):1

    a biblioteca do meu av tima, tremendamente histrica e cientfica. imagina que nela existem o Zan-Avesta, o Mahabarata e as obras sobre o egito de Champollion, Maspero e Breasted; e o larousse grande; e o Cant grande; e o elyse Reclus grande; e inmeras preciosidades nacio-nais, como a coleo inteira da Revista Ilustrada, do angelo agostini, a do Novo Mundo de J. C. Rodrigues e mais coisas assim. h uma coleo do Journal des Voyages que foi o meu encanto em menino. Cada vez que naquele tempo me pilhava na biblioteca do meu av, abria um daqueles volumes e me deslumbrava.

    voltando os olhos para as origens, no se pode esquecer que a regio de taubat encontrava-se em um momento de progresso econmico visvel da cafeicultura paulista. Dentre os sinais de desenvolvimento, os jornais so indcios da circulao do dinheiro nas comunidades urbanas. no se pode afirmar, porm, que lobato tenha sido assduo leitor dos jornais locais. Mas seu envolvimento com tabloides estu-dantis parece indicar que o neto do visconde conhecia bem a funo do veculo, ideal para provocar furor entre os colegas, desancar a oposio, divulgar as prprias ideias. antes de ser o produtor de seus jornais, lobato j se iniciara numa prtica de destrinar os peridicos em busca do que mais lhe agradava, rudimentar processo de conhecer as entranhas do objeto de leitura que tinha nas mos:

    suas tendncias iam todas para os livros, para as leituras. arranjando um caderninho, gruda nele tudo quanto acha de mais interessante nos

    1 Para evitar a repetio exaustiva dos ttulos das obras, passa-se a referenci-las pelas iniciais: A barca de Gleyre aBg (i para o primeiro tomo; ii para o segundo tomo); A onda verde e o Presidente negro ov/Pn; Amrica a; Cartas escolhidas Ce; Cidades Mortas CM; Conferncias, artigos e crnicas CaC; Idias de Jeca Tatu iJM; Mister Slang e o Brasil MsB; Mundo da lua e miscelnea Ml/M; Na antevspera na; Negrinha n; O escndalo do petrleo e ferro oePF; Prefcios e entrevistas Pe; Problema vital Pv; Urups U . Usa-se nR para nota de rodap.

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    jornais e revistas que lhe chegam s mos. ltimas palavras de alguns homens ilustres, Prelo histrico, lenda rabe, as minas de car-vo, Circulao de trens, torpedeira rpida, episdio da vida de napoleo, o grande, os micrbios, os palmares, Matana de reses so os ttulos de alguns desses recortes, que de mistura com simples anedotas, ora ilustradas por ele, ora por decalcomania, enchem o caderninho. (Cavalheiro, 1955, p.40)

    o guarani fora um jornalzinho estudantil gerado no Colgio Paulista, em que aos 14 anos o futuro escritor estrearia com um peque-no artigo com o pseudnimo de Josben. Pode-se deduzir que o tipo de produo empreendida pelo adolescente possivelmente no agradou a muitos paladares locais, ainda que todos juvenis, como o autor. e a estava o temvel h2o como prova:

    no contente em colaborar nas folhas dos colegas e da terra, funda o prprio jornal, que intitula cabalisticamente de h2o. era um jornalzinho manuscrito, lido pelo prprio autor todos os sbados, no recreio, dentro de um quadrado de defesa. acontecia que semanal-mente o h2o bulia com um grupo, poupando os demais. estes eram convidados a formar o quadrado de defesa, contra os ataques de cavalaria dos bulidos, os quais avanavam furiosos para empastelar o pasquineiro.

    albino Camargo relembra que lobato no perdoava os deslizes e os ridculos alheios. sua pena, j nessa poca, sabia causticar o adversrio, conhecia o segredo de ferir a nota justa no aceso da polmica. era desa-busado, e no perdoando a ningum, enfrentava depois as vtimas com uma valentia no justificada pelo seu pequeno porte. apesar disso, asse-gura albino, jamais fugia s provocaes, e na hora do rolo, agentava a parada, embora no fosse dos mais fortes. Mas possua muita coragem, e as ameaas no conseguiam fazer com que modificasse os conceitos e opinies que ironicamente ia expendendo sobre os colegas nas pginas manuscritas do h2o. (ibidem, p.52)

    Pelo menos um trao do que os garotos concebiam como jornal facilmente perceptvel nas atitudes do jovem lobato, ou seja, a escrita por meio da qual se critica, ataca, polemiza. Monteiro lobato, j

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    experiente nas letras do mundo adulto, que relembra a inaugurao de sua participao em o guarani e a frmula de h2o ao jornalista silveira Peixoto (PE, 1961, p.169-71):

    Quando comeou a escrever? Foi num jornalzinho do Colgio Paulista, de taubat, onde

    nasci a 18 de abril de 1882. Mas foi no tal jornalzinho o guarani que publiquei a minha primeira coisa. apareceu sob o pseudnimo de Josben...

    [...] e a tal primeiro coisa que escreveu e o guarani publicou? era uma anedota de meia coluna. eu tinha quatorze anos. aos de-

    zesseis anos meu jornal foi um peridico que se editava naquela mesma cidade. no me lembro o nome, mas ainda conservo os recortes.

    solcito, sai e volta com um livro enorme, em que esto colados in-meros artigos.

    Foi Purezinha quem produziu este livro, diz ele. Dona Maria da Pureza Monteiro lobato. Colou tudo isto. Uma trabalheira danada.

    aqui esto as primeiras coisas: Poemas da juventude, tilcara, guaxar... tudo fantasias rescendentes s primeiras leituras: Jos de alencar, Coelho neto, Catulle Mendes... e tudo assinado com pseu-dnimo. eu usei um bando de pseudnimos: helio Bruma, anto de Magalhes, lobatoyewsky, Rodando Cor de Rosa, osvaldo, guy dh, Manoel de sousa, Pascalon o engraado, Yewsky, enoch vila lobos, B. do Pinho, oscarino, Yan sada Yaco, she, ed. shelling, olga de lima, nero aguiar, vieira lion, F. h. Rangel, Marcos twein, Bertoldo... escrevi, depois, em vrias folhas colegiais: numa Ptria do instituto de Cincias e letras, aqui em s. Paulo, no h2s?... (sic)

    h2s?... (sic) era um jornalzinho manuscrito que mantive naquele colgio, e

    que eu mesmo lia em voz alta no recreio todos os sbados, dentro de um quadrado de defesa...

    Quadrado de defesa... sim. Cada semana, o h2s (sic) bulia com um grupo e poupava os

    demais. estes eram convidados a formar o quadrado de defesa, contra os ataques de cavalaria dos bulidos, os quais avanavam furiosos para empastelar o pasquineiro...

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    a participao de lobato em jornais acadmicos continuaria com sua entrada nas arcadas da Faculdade de Direito, de so Paulo. o espao, porm, vai ganhando mais seriedade quando as palavras dos estudantes no ferem somente uns aos outros, antes respingando na conservadora sociedade paulistana. em carta de 2 de janeiro de 1896 (CE, 1970), lobato, ainda em curso preparatrio na cidade de so Paulo, conta me um embate com a polcia. J em carta de 5 de fe-vereiro de 1908, narra novamente me outro embate dos estudantes com a polcia, agora como estudante de direito, acusando os jornais de mentirem a respeito do caso. lobato acompanha a repercusso desses fatos nas folhas paulistanas, numa evidente demonstrao do quanto o jornal era importante, fosse para si mesmo, fosse como instrumento de luta ideolgica (CE, 1970, p.30): os jornais se combinaram para mentir sobre o caso e soltar a boca nos estudantes mas eles que no duvidem muito que comem pau; aquele que no se manifestasse tambm se mostraria conivente com a fora policial, entendia lobato: o nico jornal que no disse nada a respeito foi o Comrcio, por isso vo fazer uma manifestao a ele.

    Compromisso com a verdade. imparcialidade. no isso que se encontra em O Minarete. entre 1903 e 1907, os jovens do Cenculo, grupo de estudantes que compartilhavam o mesmo espao na capital paulista quando no moravam, compartilhavam espiritualmente dela foi publicado um jornal que agitou Pindamonhangaba (sP). o peridico era dirigido por Benjamim Pinheiro, formado em direito e pretenso prefeito da localidade. Para alcanar seu objetivo, precisava de um jornal que derrubasse a situao: a proposta feita para o Cenculo demonstra o quanto as polticas interioranas comungavam de certa ingenuidade na recm-criada mquina republicana, dando para um grupo de jovens estudantes a responsabilidade de redigir um veculo de comunicao que deu certo justamente pela irresponsabilidade de seus editores (ABG, 1957, 28-31 i nR): Z Bento: preciso de um artigo bastante severo, atacando a Cmara por causa duma racha na parede do teatro. e outro sobre o capim que h nas ruas. ataque de rijo. e eu atacava, mesmo sem conhecimento pessoal da extenso da racha nem da quantidade do capim nas ruas.

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    Conta lobato sobre a escolha do ttulo (ABG, 1957, p.28-31 i nR): Um jornal um minarete de cujo topo o jornalista d milho s galinhas da assinatura e venda avulsa. Fica muito bem esse nome e nome que no est estragado. Tribunas do povo, por exemplo, existem centenas. Dentro de quatro anos, a situao vem abaixo... e Benja-mim assume a prefeitura. Com a vitria poltica, o desaparecimento do jornaleco em que muita coisa simplesmente saa da literatura lida pelos rapazes do Cenculo, continua o escritor:

    eu me divertia fazendo de longe o Minarete quase inteiro. Quantos nmeros totalmente escritos por mim o soneto, os contos, o humoris-mo, as variedades, o rodap, o artigo de fundo! isso me forava a um grande sortimento de pseudnimos, para dar ao pblico a impresso de que o jornal dispunha de um exrcito de colaboradores: lobatoyewisky, Yewsky, Pascalon o engraado, Ruy dh, helio Bruma, enoch vila-lobos, Matinho Dias, B. do Pinho, osvaldo, P., n., Yan sada Yako, Mem Bugalho, she, anto de Magalhes, nero de aguiar, Bertoldo, Marcos twein, olga de lima, etc. etc. e todos l do Cenculo nele escrevamos. Bruno de Cadiz publicava as saudosas crnicas do Album do Minarete. Raul de Freitas, as suas to sentimentais Recordaes. Candido apareceu nos primeiros nmeros com a coluna Fen d Brut, assinando Bompard. Rangel tambm publicava no Minarete muitos dos seus sonetos e as tra-dues de Rostand e lecomte.

    o caso a seguir realmente elucidativo para se compreender a inci-piente presena do jornal numa sociedade em que a palavra escrita valia por si mesma. lobato estava de sada quando recebe um recado de Ben-jamim para redigir um artigo sobre iluminao pblica. Passa o servio a Candido, um dos redatores de O Minarete. Quando retorna, o artigo est pronto: Candido elaborara um texto sobre o lampio belga, usando para isso uma experincia fictcia na qual aparecem as personagens do Tartarin de Tarascon (1872), romance de Daudet (1840-1897). Desa-pontado, quer tirar satisfao com o amigo, que retruca: Mande. eles no percebem.... Relata lobato que o texto no s foi publicado, mas tambm virou baluarte de argumentao para um vereador da oposio que ainda exigiu a transcrio do artigo nos anais da Cmara.

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    o que aconteceu com o artigo s escuras, criado por um es-tudante como exerccio puramente imaginativo num quarto em so Paulo, ratifica a observao de que a palavra escrita tinha um valor de verdade acima de qualquer suspeita. Mais: se questionar o fato de ningum ser leitor de Tartarin de Tarascon, clssico entre os jovens da poca, pode revelar uma sociedade pouco afeita s leituras literrias evidentemente, uma concluso superficial sobre um tema to amplo , espanta ao leitor de hoje o fato de entre os membros da vereana ningum ter tido a simples ideia de investigar a veracidade da infor-mao, de saber, no mnimo, se o sucesso do lampio belga na cidade francesa de Beaucaire foi factualmente um sucesso. venceu, portanto, o jornal pelo simples dizer.

    a previsibilidade do peridico era grande, como afirma lobato: os artigos de encomenda os pelouros eram os clssicos Me-lhoramentos Municipais, Cemitrio Municipal, o Calamento, Fechamento de Portas, Policiamento, iluminao Pblica. era ali que o aspirante a escritor tambm se lanava, a sim autenticamente, ao fazer literrio, isto , num jornal inteiramente fora dos moldes do interior, com editores que escreviam para satisfao pessoal. o primei-ro nmero havia sido inaugurado com o rodap dos lambeferas, segundo lobato (ABG, 1957, p.31 i nR), um romance absurdo, de captulos curtinhos e esquizofrnicos.

    no s de minaretes alou a voz o jovem lobato. O Combatente outro captulo na vida agitada do pretenso escritor. embora afirmasse a Rangel que o caso do Minarete era nico, o escritor teve a seu dispor o peridico de oscar Breves, que mantinha um jornaleco de pegar anncios. sob a orientao de Ricardo, outro membro do Cenculo, o grupo tomou para si o peridico do Breves, e tanto fizeram que a publicao acabou encerrada por fechamento policial. Relata lobato que, enquanto o jornalzinho de Pinda se limitava a desovar literatura ou combater impessoalmente a poltica local, em O Combatente levavam o tempo todo a serrar personalidades da mocidade elegante de so Paulo (ABG, 1957, p.32 i nR).

    Um jornal mais srio, contudo, acenava com uma imprensa mais exigente, que dava seus passos no sentido da profissionalizao.

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    O Povo pedia artigos com insistncia ao jovem Monteiro lobato. ainda que no se saiba qual a periodicidade dessa insistncia, o ter-mo indica a existncia de um mercado mais ativo, menos caseiro, um mercado nascente de textos e imagens, no qual o escritor incipiente detectava a exigncia do pblico em relao ao jornal. Concomitan-temente, destacava-se a profisso de reprter, jornalista. em suas cartas, lobato e Rangel identificam pessoas conhecidas por ambos por essas funes: eu naquela poca trabalhava como escrivo de subdelegacia no posto policial do Braz. Foi onde conheci o Ricardo, que um dia l apareceu como reprter do Correio Paulistano, conta Rangel (ABG, 1951, p.21 nR).

    Um reprter, outro colaborador; possvel ter um jornalzinho de pegar anncios. a carta de 11 de julho de 1904 o anncio de que a molecagem de O Minarete e o humor de O Combatente esto perdendo o lugar na imprensa paulista para o capital representativo e de leitores mais atentos aos produtos impressos (ABG, 1957, p.64 i) o caso do Minarete foi uma sorte grande nossa, Rangel. no se repete. no h dois Benjamins no mundo e nunca haver outro diretor de jornal to passivo como aquele. eu era para ele um dogma. era eu dizer e era ele executar.

    sobre isso, a extino de O Combatente smbolo de um fazer jornalstico cujas polmicas ainda no se despegam do ataque pessoal, ao mesmo tempo em que um estado autoritrio tambm no se situou bem, ou mesmo no quer reconhecer, a funo da imprensa. em carta de 7 de novembro de 1904 (ABG, 1957, p.78-79 i), lobato anuncia o bito do peridico:

    saltando de norte a sul, direi que o Breves morreu o Breves jorna-lista, porque o outro, da burocracia biolgica, esse vige e via, sempre apurado e na concha. o tito Franco deu de fazer nO Combatente piadas contra o Chefe de Polcia, e o Chefe diz o Ricardo chamou o Breves para explicaes e Breves as deu com desesperante prolixidade. Dizem que comeou assim: senhor Doutor e conceituado Chefe do Policiamento local, a mame... e enveredou por a, com a eterna mame puxando a fila. e o caso que O Combatente morreu. Perdeste o nico editor, meu

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    caro Rangel. onde outro que tome a srio o teu, o nosso preconizadssi-mo talento? o Breves publicou o teu De S. Paulo ao Guaruj apenas por sugesto do Ricardo. o poeta abriu-se diante dele em exclamaes sobre a tua genialidade. ele sorria aquele clebre sorriso postal que era uma obra prima de incredulidade, e de medo do Ricardo te publicava. agora, de medo do Chefe de Polcia nem sequer edita mais o jornaleco.

    Quem estava moribundo, afinal, era o fazer jornalstico que Mon-teiro lobato vivenciara entre a infncia e a juventude. Dos jornais de viagens, ilustrados e cheios de relatos envolventes, para as pginas de jornais politiqueiros, o escritor percebe o meio editorial medida que participa de sua prpria constituio. o convite para escrever em jornais mais srios, lembrando a frequncia com a qual lobato usava pseudnimos, no vem somente dos textos, mas da construo de uma personalidade jornalstica num meio privilegiado por todas as conjunturas de uma sociedade em transformao. Monteiro lobato, neto do visconde, usufrui como criana, adolescente e jovem no s da biblioteca do av, mas tambm de uma vida estudantil profcua em literatura, artes, polmicas, poltica em sentido amplo. Privilgio de quem tem o suporte financeiro de tradio familiar e poder esco-lher entre a continuidade dos negcios da famlia e o investimento na carreira intelectual.

    sobre isso, importante observar as contingncias sociais com as quais o jovem lobato deparou. se possvel, num primeiro olhar, coloc-lo entre aqueles que, sofrendo o declnio do poder econmico das grandes lavouras busca no trabalho intelectual forma de legitimao de seu espao social (Miceli, 2001), essa afirmao mostra-se insus-tentvel quando se compara a trajetria do escritor com a de outros intelectuais, como lima Barreto. sem dvida, lobato no passa de proprietrio de terras categoria de intelectual. antes, funcionrio pblico bem colocado por interveno do av, quando, a sim, assume a frente dos negcios da lavoura.

    e mesmo a, para quem manifestara tantas ideias de empreen-dimento, investir na Revista do Brasil, em 1918, no conota falta de expectativas do escritor. Contrariamente, esses elementos indicam

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    a possibilidade de se investir com certo grau de rentabilidade, o que garantia a lobato, no a busca de oportunidade para evitar a decadncia, mas o estabelecimento de outras relaes econmicas e sociais por outros mecanismos. era uma relao de continuidade, no de substituio.

    Fazer jornal, ainda que em tom galhofeiro e desprendido de qualquer preocupao, torna-se um caminho possvel para revelar, discutir, problematizar os fatos locais e os mais distantes. o escritor vai se modificando junto com seu contexto. Benjamim Pinheiro no teria segunda edio, nem o mercado brasileiro de peridicos, o qual no permitiria mais o surgimento de Benjamins e Breves, ainda que bem intencionados. Porm, essas experincias haviam sido pertinentes formao do publicista Monteiro lobato.

    a mesma imprensa na qual lobato se formou quando criana e adolescente vai, no entanto, afastar o bacharel aristocrata de suas pginas. as crticas que o escritor viria a desferir contra a sociedade de taubat, areias e regio mostram o quanto a leitura do jornal e da realidade que o circundava foi se alterando com a experincia obtida nos anos passados na capital, a qual era ponto de convergncia dos modismos vindos da europa, das conquistas cientficas, dos exaltados estudantes das arcadas.

    o modelo de jornal antes vivenciado por lobato em sua infncia e adolescncia no vale do Paraba estava vencido. era preciso outra forma, outro jornal. objeto que j existia, estava em trnsito, mas que no havia descido do trem nos vales paulistas.

    Formado, portando o diploma caracterstico de sua classe social, em taubat e areias, continua a exercer o ofcio de escritor, apesar de no se encontrar como autntica voz opinativa num meio que desejava somente o beneplcito do neto do visconde, como escreve em carta de 24 de janeiro de 1905 a Rangel, na qual afirma estar transformado na ltima palavra da crtica local. a lucidez do escritor marcante: o povo olha-me com uma espcie de terror sagrado, tantas foram as coisas bonitas que, em estilo de atelier de Paris, eu disse na anlise dos quadros de georgina chama-se georgina. o meio de sermos admirados pelo povo no sermos entendidos.

  • MONTEIRO LOBATO NAS PGINAS DO JORNAL 53

    a crtica sobre os quadros de uma pretensa namorada prtica co-esa com a visita dos outros artistas da terra, geniosinhos municipais, os quais desejam o mesmo: querem tambm que eu diga deles coisas incompreensveis. as autoridades locais no titubeiam, elegem-no como a nica autoridade crtica da terra e, para continuar agradando o consenso e exercendo sua fina ironia, declara ao amigo que acabara de preencher cinco tiras com quanto argot musical assimilara em so Paulo nas crticas do Camarate e do Barjona: saiu-me coisa to boa que, relendo-a, eu mesmo no entendi nada. imagine o sucesso que vai ser! (ABG, 1957, p.90-1 i).

    lobato, pois, no est sozinho em sua busca pelo jornal decente onde poderia se fazer publicar sem o exerccio dos lava-ps que prati-cavam em taubat. sua intensa correspondncia com Rangel denuncia que os amigos de Cenculo tambm continuavam o trabalho de abrir espao no mundo da publicao peridica.

    Quando um colega conseguia fazer-se publicar em jornal, merecia parabns. lino, em carta de 15 de agosto de 1906, recebe congratu-laes e, pelas palavras de lobato, nota-se a importncia de ser lido no meio social (CE, 1970, p.50): Meus parabns pelo artigo do heitor de Moraes. Comeas ento de vez, a entrar definitivamente na grande vitrina da sociedade, esse sonho de toda criatura humana, l onde moram os Ruis, os nabucos, os lafaiates. e o entusiasmo de lobato se estende para todo o grupo: J s discutido, comentado; j entre 600 rapazes tiram voc e mais um s aqui da roa, o eco dos sucessos entusiasmou-me e reentro a admirar o grande Cenculo convicto que dele sair ainda muita coisa para o futuro.

    Pela missiva de 10 de setembro, do mesmo ano (ABG, 1957, p.141 i), lobato levava notcias do mundo da imprensa ao interlocutor mi-neiro, nas quais os amigos esto envolvidos. Comeando por nogueira, conta que esse levara barriga como reprter do Comrcio, demitindo-se, e: Barriga em gria de redao engolir uma notcia falsa e faz-la sair no jornal. Como bom narrador que , resume a situao: sempre reclamando da falta de novidades, os amigos resolvem brincar com o companheiro. arranjam um atestado mdico falso em que constava o atropelamento e esmagamento do p de determinada personalidade.

  • 54 THIAGO ALVES VALENTE

    o nogueira, ento, na voz de lobato, cai e tece uma notcia linda, com pormenores naturalsticos Zola, coisa absolutamente daprs nature, de quem viu, ouviu e cheirou o chul do homem. sai a notcia e h protestos. agricio apresenta na redao o p inclume. Para completar a trgica experincia do ex-Cenculo, continua lobato, os outros jornais piam sobre a leviandade do Comrcio e nogueira, furioso, vai para a seo livre e desce a marreta em meio mundo, e cita o Ramaiana e os vedas, e at um latim de Juvenal. Porm, segundo lobato, o rapaz demite-se porque est de olho em outro emprego.

    h mais notcias para Rangel. Breves continuava na ativa. encontrara com o funcionrio dos

    Correios e tivera o relato de tudo que acontecera com O Combatente, desde que sara de so Paulo.

    o jornal como empreendimento individual, como aventura isolada, estava desaparecendo nas grandes cidades. no aguentando arcar com muitas dessas transformaes, diversos peridicos iriam desaparecer sem chance de voltar a circular. Breves no estava errado; havia mil coisas para lidar, agora, mesmo num jornaleco de pegar anncios. as empresas jornalsticas iniciavam a consolidao de sua estrutura numa fase de inquietao poltica, ainda que menos intensa que a presenciada no sculo XiX.

    De taubat, lobato partiria para localidade ainda menor: areias, para onde segue com Purezinha, com quem casara aos 28 dias de maro de 1908. Promotor sem causa e sem trabalho, embora empregado, continua sua colaborao para os jornais. escreve a Rangel em 2 de dezembro de 1908 que, para neutralizar o marasmo da cidade, tomara uma assinatura do Weekly Times, de londres edio semanal em que vm os melhores artigos do The Times, dirio, o grande, o velho, o tremendo Times de londres (ABG, 1957, p.225-6 i). Com os ps na grade da sacada, conta, injetava-se de ingls, tentando fugir s conversas sobre e das panelinhas polticas locais.

    lobato, como se v, no qualquer curioso por jornais. Para leitura, escolhe um modelo de publicao no meio editorial internacional, o Times. Como toda escolha, essa tambm no gratuita: alm de ser um dos melhores jorna