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O Colocador de Pronomes Monteiro Lobato Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização. Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso. Vivia em paz com as suas certidões quando o flechou venenosa seta de Cupido. Objetivo amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada. Triburtino não era homem de brincadeira. Esgoleara um vereador oposicionista em plena sessão da Câmara e desde aí se transformou no tutu da terra. Toda a gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados, nem tufos de cabelos no nariz. Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores — o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na Rua D'Elba, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina com o Acorda, donzela... sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado. Aqui se estrepou... Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos de exclamações e reticências: Anjo adorado! Amo-lhe!... Para abrir o jogo, bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto — para umas certidõezinhas, explicou. Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mal o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse: — A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca — nunca, ouviu? que contra ela se cometa o menor deslize. Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o. — É sua esta peça de flagrante delito? O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação. — Muito bem! continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora... O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica. — ... é casar! concluiu de improviso o vingativo pai. O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos, disse, gaguejante: — Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! A gora vejo com que injustiça o julgam aí fora!... Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões. — Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha! E voltando-se para dentro gritou: — Do Carmo! Venha abraçar o seu noivo! O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro. — Laurinha quer o coronel dizer... — Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou esse bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher!... — Oh, coronel... — ... ou à preta Luzia, cozinheira. Escolha! O escrevente, vencido, derrubou a cabeça, com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da sua gramática matrimonial. — Os pronomes, como sabe são três: da primeira pessoa — quem fala, neste caso vassuncê; da Segunda pessoa — a quem se fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa — de quem fala, neste caso Maria do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha! Não havia fuga possível. O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental novo ao alcance do maquiavélico pai. Submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente: — Deus vos abençoe, meus filhos! No mês seguinte, solenemente, o moço casava-se com o encalhe, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor da língua que, durante cinqüenta anos a fio, coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica. Até dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mais a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo — empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de se ver o desenho que sai —

MONTEIRO LOBATO O Colocador de Pronomes

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O Colocador de Pronomes

Monteiro Lobato

Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto

palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.Vivia em paz com as suas certidões quando o flechou venenosa seta de Cupido. Objetivo amado: a filha mais moça do coronel

Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.

Triburtino não era homem de brincadeira. Esgoleara um vereador oposicionista em plena sessão da Câmara e desde aí se transformou no tutu da terra. Toda a gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados, nem tufos de cabelos no nariz.

Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores — o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na Rua D'Elba, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina com o Acorda, donzela... sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.

Aqui se estrepou...Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos de exclamações e reticências:Anjo adorado!Amo-lhe!...Para abrir o jogo, bastava esse movimento de peão.Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à

sua presença, com disfarce de pretexto — para umas certidõezinhas, explicou.Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.Não lhe erravam os pressentimentos. Mal o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:— A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca — nunca, ouviu? que

contra ela se cometa o menor deslize. Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.— É sua esta peça de flagrante delito?O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.— Muito bem! continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora...O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.— ... é casar! concluiu de improviso o vingativo pai.O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos, disse,

gaguejante:— Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! A gora vejo com que injustiça o julgam aí

fora!...Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.— Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!E voltando-se para dentro gritou:— Do Carmo! Venha abraçar o seu noivo!O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.— Laurinha quer o coronel dizer...— Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou esse bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dizer

amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher!...

— Oh, coronel...— ... ou à preta Luzia, cozinheira. Escolha!O escrevente, vencido, derrubou a cabeça, com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de

tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da sua gramática matrimonial.— Os pronomes, como sabe são três: da primeira pessoa — quem fala, neste caso vassuncê; da Segunda pessoa — a quem se fala, e

neste caso Laurinha; da terceira pessoa — de quem fala, neste caso Maria do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!Não havia fuga possível.O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental novo ao

alcance do maquiavélico pai. Submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:— Deus vos abençoe, meus filhos!No mês seguinte, solenemente, o moço casava-se com o encalhe, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor

Aldrovando, o conspícuo sabedor da língua que, durante cinqüenta anos a fio, coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.Até dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da

praxe, mais a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo — empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de se ver o desenho que sai —

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Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico, que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal...

Deixemo-lo, porém, evoluir e tomemo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro arcado ao pêso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho , fossando, à luz dum lampião, os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim, volta e meia, a fazer-se lembrado.

Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cor, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro um sêca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lôbo. Digeriu tôdas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulheres. A mulher e o amor — mundo, diabo, carne, eram para ele os alfarrábios feiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.

Em certa época viveu três anos, acampado em Vieira. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho, conhecia um só: o rouxinol de

Bernardim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha picar “pomos de Hespérides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-se com apóstrofes:

— Salta fora, regionalismo de má sonância!A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira à perfeição com Fr. Luís de Sousa, e daí para cá, salvo alucinações esporádicas,

vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.— A inglesia de hoje, declamava ele, está para a Língua, como cadáver em putrefação está para o corpo vivo.E suspirava, condoído dos nossos destinos:— Povo sem língua!... Não me sorri o futuro de Vera-Cruz...E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.— Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao

acaso.— Teve lugar ontem!... É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luís, como te conspurcam o divino idioma, estes

carrafaçais da moxinifada!—... no Trianon... Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevezos! Tão bem ficava — a Benfica, ou, se

querem neologismo de bom cunho — o Logratório... Tarelos é que são, tarelos!E suspirava, deveras compungido.— Inútil prosseguir. A folha inteira cocografa-se por este teor. Ai! Onde param as boas letras de antanho? Fêz-se peru o níveo cisne.

Ninguém atende a lei suma: — Horácio! Impera o desprimor, e o mau vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má mote. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com êstes olhos um gentil mancebo preferir uma sordícia de Oitavo Mirbelo — Canhenho duma dama de servir (1), creio, à... adivinhe ao quê, amigo? À Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!...

— Mas a evolução...— Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwínica, os vocábulos macacos — pitecofonemas que

“evolveram” o pêlo e se vestem hoje à moda da França, com vilro no ôlho. Por amor a Frei Luís, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.

Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distintas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transferido em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.

Abriu campanha com um memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.— “Leis, senhores, leis de Drácão, que diques sejam, e fossados, e alcáçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister

sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vede, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem...”

Os pronomes, ai! eram tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada, vê-los por aí pré ou pospostos contra regras elementares do dizer castiço. E sua representação, alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.

Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.— Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria autocondenar-nos à morte! Tinha graça!Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto e

Aldrovando, com a mortificação na alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu e, breve, dêsses “pulmões da pública opinião”, apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultraviolentas, escritas no mais estreme vernáculo.

Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e, ao cabo da aspérrima campanha, viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda a parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.

A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.

— Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recomende à podriqueira!... Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia limpar-vos a gafa!... exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.

Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.

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— Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatães de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua, gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.

Falhou a nova tentativa. Apenas as moscas vagabundas vinham esvoejar em torno da ciência que se oferecia na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana uma só, sequer, ali não veio remendar-se filologicamente.

Ele, todavia, não esmoreceu.— Experimentemos processo outro, mais suasório.E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos”.Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo

vernáculo, fosse lá, que, sem remuneração nenhuma, nêle se faria obra limpa e escorreita.Era boa, a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de versos, ofícios ao governo

pedindo concessões, cartas de amor.Tais porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um

dos clientes chegou a reclamar:— Professor, V. Sa. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim...Aldrovando ergueu os óculos para a testa:— E traduzi em latim o tal ingranzéu?— Em latim ou grego, pois que o não consigo entender...Aldrovando impertigou-se.— Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é ali com o alveitar da esquina.Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção...O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar, exasperou o apóstolo.— Hei de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula, os maraus de pau e corda? Ir-lhe-ei empós, filá-los-

ei pela gorja... Salta rumor!E foi-lhes “empós”. Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade” ia ter com o

proprietário, contra êle desfechando os melhores argumentos catequistas.Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta — “Ferra-se cavalos” — escoicinhava a santa gramática.— Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erres, alarve que és. Se erram paredros, nesta época

de ouro da corrupção...O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.— Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que

seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te em nome do asseio gramatical, que o expunjas.— ? ? ?— Que reformes a tabuleta, digo.— Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?— Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem, ali os dizeres à sã gramaticalidade.O honesto ferreiro não entendia nada de nada.— Macacos me lambam se estou entendendo o que V. Sa. diz...— Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que forma é passiva e o sujeito é “cavalo”.O ferreiro abriu o resto da boca.— O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” — “ferram-se cavalos!”— Ah! respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz V. Sa. que...— ...que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.— V. Sa. me perdoe mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu

criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos — Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se(rafim) cavalos. Isto explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.— Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem êles o mesmo!... Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil reis pela admissão dum

“m” ali...— Se V. Sa. paga...Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da

gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela.Por mal, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso

ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres, e lá raspou o “m” do professor.A cara que Aldrovando fez quando, no passeio desse dia, deu com a sua vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e

mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo:— Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando, antes que eu o ferre com

um bom par de ferros ingleses!O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.— “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto.

Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de bôrco sôbre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou...O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele já velho, com o

rim a rezingar, não se sentia com fôrças para a continuação da guerra.— Não hei de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro, onde compendie a muita ciência que hei acumulado.E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a

colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.

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Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade! Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos de gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa...

Pronto o primeiro tomo — Do pronome Se — anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera da chusma de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária acrescida de gordos proventos pecuniários.

Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais que, generoso que era, cederia por cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários, sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida, na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!... E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo...

Que vinha vindo mas não veio, ai!... As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.

— Não me vêm a mim? disse êle. Salta rumor! Pois me vou a êles!E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade. Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o

nariz, dizendo: “Não é vendável”; ou “Por que não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?”Aldrovando, com a morte nalma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.— Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com tôdas as armas e irei até ao fim. Bofe!...Para lutar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro,

venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, e não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso de sua ciência impressa. Editaria, êle mesmo, um por um, todos os volumes da obra salvadora.

Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.

Dedicou a Fr. Luís de Sousa:À memória daquele que me sabe as dores — O autor. Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua

obra. Filho dum pronome impróprio a má colocação de outro pronome lhe cortaria o fio da vida.Muito corretamente havia escrito na dedicatória: ...daquele que me sabe... e nem poderia escrever de outro modo um tão conspícuo

colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém — até os fados conspiram contra a língua! — e, por artimanha do diabo que os rege, empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na na a seu modo ...daquele que sabe-me as dores... E assim saiu milheiros de cópias da avultada edição.

Mas não antecipemos.Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao

lado direito dos sumos cultores da língua.A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI — Do método automático de bem colocar os pronomes — engenhosa aplicação duma

regra mirífica, por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria com o “914” da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta dos pronomococus.

A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso da farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzi-la a ampolas para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.

E quem se injetasse ou engolisse uma pílula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorréia aguda, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL N. 2, onde entrava a estriquinina em dose suficiente para liberar o mundo do infame sujeito.

Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou pela escada a dentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço, um deles pediu:

— Me dá um mata-bicho, patrão!...Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão fora dos mancais, e tomando um exemplar da obra ofertou-o ao

“doente”.— Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos dêste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:— Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões. Já serve!...Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu comêço à tarefa de lançar dedicatórias num certo número

de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa, quando seus olhos deram com a horrenda cinca:

“ daquele QUE SABE-ME as dores”.— Deus do céu! Será possível?Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luís de

Sousa, o horripilantíssimo — QUE SABE-ME...Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto estranha marca de dor — dor gramatical inda não descrita nos

livros de patologia — permaneceu imóvel uns momentos.Depois, empalideceu. Levou as mãos abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.Ergue os olhos para Frei de Sousa e murmurou:— Luís! Luís! Lamma Sabachtani!E morreu.De quê, não sabemos — nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o

primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.Paz à sua alma.

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— Fim —Nota(1) Octave Mirbeau — Journal d'une Femme de Chambre.http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/textos.htm - litpttextos.htm - litpt

A camisa do noivadoLuís Augusto Rebelo da Silva (1822-1871)Contos e Lendas

IQuando Telo, ao cair da tarde do outro dia, trepava a pé a ladeira do castelo de Algouço, vinha descendo o mordomo, seguido dos

homens de armas escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Soeiro Lopes; alma negra do senhor, onde alcançara com o braço, deixara sempre vestígios dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia, o vilico (era o seu título naquele tempo) não pôde conter o sorriso, rosnando por entre dentes: quantos vão que não voltarão! O noivo de Silvana desprezou o riso, e continuou o caminho; mas à porta despediram-no asperamente, respondendo que Sua Mercê repousava, e que ninguém o despertaria para dar audiência a um vilão. A princípio, Telo pôde sopear a ira; mas a pouco e pouco, a alieração irritou-o e levantou a voz. Soeiro Lopes assomou de repente à porta. Inteirado do motivo da disputa, virou-se para o besteiro e perguntou:

— A que vens aqui?

— Trazer o que mandaste e pedir o cumprimento da promessa! — redargüiu ele, friamente.

O senhor empalideceu. Um estremecimento, que não soube vencer, sacudiu-lhe os membros. Lembrou-se da tela alvíssima e transparente, que vira na choupana de Aldonça, e tremeu pela primeira vez na sua vida. Depressa se recobrou e, medindo o mancebo com indizível escárnio, replicou:

— Pedi-te duas camisas fiadas e tecidos com os fios das urtigas da sepultura de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha mortalha. Palavra de cavaleiro não quebra! Se cumpriste, não hei de faltar. As camisas?!

— Ei-las! — acudiu o besteiro. — Urtigas deram o fio e fadas teceram o pano.

Era o mesmo que já lhe respondera Aldonça. A maravilhosa tela, que o noivo de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admirável bem mostrava não ser obra de mãos humanas. Pegando na mortalha, D. Soeiro tremia. Sobre o peito, em letras cor de sangue, viu as iniciais do seu nome e pondo o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feições das três esposas que tinham passado ao túmulo do seu leito.

— Bem! — exclamou. — Silvana é tua se a achares. Quanto à mortalha.. Veremos esta noite quem a veste!

Não esperou por mais o besteiro, e partiu apressando o passo, caminho da choupana de Aldonça. Um pressentimento vago advertia-o de perigo incerto. A tristeza oprimia-lhe o peito; todavia, a boa nova, que levava, devia alegrá-lo. A noite fechou-se escura. O tempo mudado. Rugindo no pinhal, o vento arrancava por entre as ramas das árvores gemidos lúgubres. No céu apagavam-se as estrelas uma após outras debaixo do pesado toldo de nuvens, e a lua encobria-se de todo por cima do último outeiro. Sem saber por que, sentiu-se Telo desalentado. Ele, o melhor caminheiro dos arredores, o besteiro mais destro dos contornos, deu por si mais de uma vez arrastando os passos e tremendo. Quando chegou à choupana, achou a casa êrma e a porta arrombada, e acabou de crer que os presságios não mentem. Bastava olhar para dentro para adivinhar uma cena violenta. A lâmpada ardia ainda junto do lar, e luz mortiça deixava ver os escaninhos partidos, os vasos de barro pisados, as arcas espedaçadas. O pobre catre de Aldonça, despido de roupas, jazia em um feixe. O mancebo parou e debalde quis ligar as idéias. O golpe inopinado tinha-lhe quebrado as forças. Nem o ânimo, nem a razão se prestavam a ajudá-lo.

Fora rapto? Fora vingança mais atroz? A mudez da cabana não respondia! Saltaram-lhe então as lágrimas, e a dor foi tão penetrante, que, a não se encostar, cairia desfalecido. Ocorreram-lhe as palavras de Soeiro Lopes, e percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do castelo, e àquela hora entrava talvez as portas do A1cácer, que para ela eram as portas do sepulcro. “É tua, se a achares!” — dissera o roubador. A quem iria Telo pedir justiça? Lutando com a agonia, sentiu que ia enlouquecer. Mas, louco, o que restava à donzela senão a morte depois da infâmia? No auge da desesperação, erguendo as mãos, bradou, atribulado:

— Senhor! A vingança é mais vossa, do que minha! Não embainhei a espada da justiça!

No meio destas vozes pousou-lhe de leve a mão de uma mulher no ombro. Olhou. Viu Aldonça. Um sinal imperioso atalhou em seus lábios o grito que iam soltar. Guiando-o calada, a protetora de seus amores chegou a um lugar deserto, e apontando para um cavalo ajaezado, preso ao tronco de uma árvore, disse-lhe rapidamente :

— Monta!

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O besteiro obedeceu. Entregando-lhe então a trompa de prata, a velha ajuntou:

— O mordomo de Soeiro Lopes entrou aqui e levou roubada a tua noiva. Corre, que por tua felicidade corres e não pares senão na vila de Miranda. Busca os paços do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem és, dize que procuras o senhor. Já o viste. É o monteiro desta manhã. Dá-lhe a trompa, conta-lhe o sucedido e faze o que te mandar. Antes de sol nado estaremos todos juntos outra vez. As duas camisas terão cumprido o seu fado.

O mancebo, atônito, viu-a desaparecer, e, largando as rédeas, partiu direto à vila.

IIComo o Douro vai fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os penedos do seu leito! Que trovões rebramam as águas

despenhadas em cascatas contra as penhas que lhe oprimem a fúria corrente! Como a noite se cobre de luto quase de repente, de minuto para minuto! Aos bramidos do vento responde o estampido longínquo da tempestade. Os relâmpagos fuzilam sobre as eminências.

Lá em cima, nos penhascos fragosos, que vila é aquela cujas torres negras estrelam vivas luzes pelas frestas pontiagudas? Seguindo a margem do rio, Telo Vasques não sente fadiga; o brioso corcel devora a distância. Batia a hora de se alçarem as levadiças, quando o mancebo atravessa pontes e estradas, enfia ruas e vilas, e pára no terreiro, defronte dos paços do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os degraus a dois e dois até ao portal da primeira sala. Os guardas intentam detê-lo; mas, sem voltar a cabeça, e continuando responde:

— Busco o senhor.

Ninguém o suspende. De corredor em corredor, de aposento em aposento, chega à sala de armas. Entre os cavaleiros, que passeiam, divisa o monteiro desconhecido com o mesmo guarda-cós ainda.

Grossas tochas em anéis de ferro iluminavam a vasta quadra. Corpos de armas brunidas, achas, montantes, lanças e adagas entrelaçadas em caprichosos ornatos enfeitam as colunas, cujos capitéis lavrados sustentam os fechos da abóbada. O monteiro, apercebendo Telo, encaminhou-se para ele. O mancebo vinha tão sufocado, que pôde apenas dobrar o joelho e oferecer-se a trompa. Foi preciso que ele sorrisse para o besteiro narrar o sucesso que o trazia àquela hora. Concluindo, o moço ergueu as mãos, e com vista inflamada bradou:

— Levai-me aos pés de el-rei D. Pedro. Dizem que ele não conhece grandes nem pequenos. A donzela que roubaram é pura e santa como a mais pura e nobre de vossas filhas. Não deixeis sem castigo o rico-homem por ela ter nascido no berço de um vilão!

À medida que o besteiro falava, a fisionomia do desconhecido mudava de aspecto. Os olhos pretos dilatados chamejavam, e o semblante, rosado e jovial, empalidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O gesto infundia medo até nos que se acham distantes. Quando Telo pôs termo as suas queixas e levantou a vista, recuou assustado. A expressão dos olhos do seu protetor era terrível. Ensangüentados e delirantes, mais se assemelhavam às pupilas encadeadas do tigre, do que ao olhar humano. A voz cheia, mas presa, gaguejando, falava tão convulsa que pouco se entendia. Adiantando-se, o desconhecido clamou em grandes brados:

— Lourenço Gonçalves! Acudi! Um rico-homem furtou a mais linda de minhas filhas!

O brado e a imensa cólera revelaram tudo ao mancebo. Lourenço Gonçalves era o corregedor da corte. Ninguém ousaria chamá-lo assim senão el-rei. Telo prostrou-se cheio de esperança.

— Segue-me! Afonso Madeira! o meu cavalo enfreado à porta! A minha capelinha de aço. Gonçalo Vasques de Góis, escrivão da Puridade! Chamai os desembargadores, relatai-lhes o feito e lavrai a sentença. Por alma de Inês de Castro!... Pelo seu amor! — murmurou mais baixo. — Antes de nascer o sol haverá um criminoso de menos no meu reino e mais uma justiça de minhas mãos no livro das suas crônicas!

Falando assim, enlaçava a capelinha, calçava as luvas de gamo, e, com o açouto cingido, desprendia a acha de armas mais pesada.

O besteiro seguiu sem proferir palavra. Os cavaleiros montavam, e uns após outros galoparam para o alcançar. El-rei ia deixando atrás o cavalo do próprio Telo Vasques, e cego de ira metia-se pelas terras de Algouço. Por cima desta vertiginosa carreira a chuva caía em torrentes. A procela abria os céus em clarões lívidos, desarraigando as árvores anosas. Quando D. Pedro assomava diante da porta do castelo, um vulto surgiu, que lhe tomou as rédeas, convidando-o a apear-se. De um salto estava em terra e levantando a cabeça viu as frestas da torre iluminada. O vulto travou-lhe do braço, e disse:

— É ali!

— Vamos! — redargüiu o príncipe. E seguiu-o sem desconfiança.

Uma entrada falsa, além do fosso, cedeu à chave e ao impulso.

— Ide agora e Deus seja convosco! — disse a mesma voz.

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Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Inês de Castro subiu. No topo da escada de caracol, a cena que se lhe representou excitou-lhe ainda mais a cólera. Perderia o salutar do nome de “Justiceiro”, se perdoasse aquele crime.

Era espaçoso o aposento. Um lampadário alumiava parte dele; o resto mergulhava-se em profunda escuridão. No centro da sala, num leito, com as mãos ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de lenço sobre a boca até os ais lhe sufocavam! Só os olhos, os lindos olhos, banhados em lágrimas, pediam a Deus a morte, remédio extremo da infâmia. Soeiro Lopes, defronte, sorria medindo com a vista a queda lenta da areia duma ampulheta. A seu lado o vilico silencioso corria os dados sobre a mesa. A teia da mortalha, fiada e tecida com as urtigas do túmulo, estava nas mãos do cavaleiro, e suas palavras, irônicas como punhais, atravessam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos senhores de Biscaia cevava na formosura cativa o furor dos zelos.

— Por que choras, Silvana? Dera ontem o melhor arnês e o melhor cavalo por um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor, respondeste não. A tua prenda foi esta mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e os anjos por que chamavas! Brada pelo besteiro vilão, que preferiste ao rico-homem! Grita! Grita por el-rei D. Pedro! Por forte que seja o seu braço, as portas chapeadas deste castelo ainda são mais fortes. Em esta areia, que está por instantes caindo toda...

Faltou-lhe a voz. A mão erguida do vilico deixou também rodar o último dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos dele brilhava um clarão terrível. A pesada acha reluzia em suas mãos.

— Traidor! — bradou o príncipe. — Mentes! O braço de D. Pedro quebra e rompe todas portas. Vais ver!... Vilão! — ajuntou, falando ao vilico. — Solta as mãos e a boca a essa donzela. Ninguém se mova! Soeiro Lopes, conta bem os grãos de areia da tua ampulheta. É o tempo que te dou. Vais comparecer na presença de Deus!

O orgulho indômito do cavaleiro não cedeu. Empunhando a adaga, e posto que pálido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redargüiu:

— Quem dá aqui ordens e ameaça? O verdugo de Pedro Coelho e de Álvaro Gonçalves? O rei carrasco; falso à sua alma e à alma do seu pai? Imaginas que farei como os outros cavaleiros? Estou no meu solar, e a quem entra de noite e à má fé chamo-lhe inimigo. Vilico! Aperta os laços da cativa. No alto e no baixo, irado e pagado, não entrego o castelo senão a Deus. A mim, homens de armas!

— Deus é justo! — clamou el-rei, cuja fúria não conhecia limites. — O matador de três mulheres levanta-se contra o seu rei. O perseguidor cruel de donzelas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrerás como vilão às mãos dos teus vilãos. Não mancho em tal sangue o ferro da minha acha. Vilãos! — bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido. — Sou D. Pedro! Sou rei! Esse que aí está, rebelde e traidor, prendei-mo enquanto os meus não chegam!

A presença e a voz do filho de Afonso IV infundiam terror. Os homens de armas temiam, mas não amavam Soeiro Lopes. A ordem foi cumprida. Depois de curta e desesperada resistência, o cavaleiro ficou à mercê de el-rei.

— Passai um laço na cadeia do lampadário, ponde um escano para ele subir e cingi-lhe o nó na garganta! prosseguiu o soberano, indignado.

— Sou rico-homem por foro de Espanha. A afronta da morte vil cairá sobre vós e sobre todos os filhos de algo. Pedir-te-ão contas dela, verdugo! — gritou o cavaleiro, estorcendo-se.

— A Deus as darei e a mais ninguém! O desleal que violenta donzelas não é cavaleiro. Quebro-te a espada e o foro com meu cetro.

Momentos depois, Soeiro estava em cima do escano e o vilico enrolava-lhe o laço. Comovida e trêmula, Silvana lançou-se suplicante aos pés do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente:

— Pedes perdão a Deus e ao teu rei?

— Não!

O pé do príncipe tombou o escano e a morte cortou as últimas palavras do cavaleiro.

IIIA tropeada de muitos cavalos, soando a par do alarido e vozes do castelo, anunciou à aldeia, alvoroçada, a vinda do monarca. Telo

Vasques aparecia à porta quando Soeiro Lopes expirava.

— Besteiro! Por teus olhos vês que me não chamam em vão o Justiceiro. Corrias como noivo e como esposo... apesar disso cheguei primeiro! A justiça do rei ainda andou mais veloz do que o amor!

Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Soeiro, na capela, e os noivos recebiam a bênção, tendo el-rei D. Pedro por seu padrinho.

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Falou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que não se esqueceu nunca foi a Justiça que fizera em Algouço a severidade do monarca.

O castelo devolveu-se à coroa e parece que fora doado depois ao primogênito de Telo e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi verdade ou fábula, não sei. El-rei D. Pedro era tão capaz de fazer cavaleiro um vilão, como de justiçar como vilão um cavaleiro.

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— Fim —

Fonte: Contos e Novelas de Língua Portuguesa. Seleção e organização de Yolanda Lhullier dos Santos e Nádia Santos. 8 ed. São Paulo: Logos, 1962.

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O fruto proibidoRodrigo Paganinodo livro "Os Contos do Tio Joaquim"

I— Adeus, Rosa! Adeus! E adeus para sempre!

— Ai! Para sempre, meu Estêvão?

— Que queres que eu faça, dize?

— Sei-o eu, porventura? Mas partir... e o mar?... É tão bravo!

— Não só no mar há bravezas, na terra corre-se risco de maior; se eu ficasse!...

— O que fazias?

— Ou metia uma navalha no Januário ou dava um tiro nestes miolos.

— Jesus, homem, que tentação do demônio é essa, cruzes! Parte, parte, meu Estêvão, mas não te esqueças de mim.

— E tu?

— Eu! Sempre.

— Adeus!

— Não te verei ainda amanhã?!... Antes do embarque?...

— Não, o que há-de ser seja, quanto mais estiver com demoras mais me faltará o ânimo. Adeus, Rosa sê feliz.

— Adeus, Estêvão, volta breve.

— Voltar para quê? Para te ver entregue a outrem, que virás a amar, se é que não o amas agora?... Para presenciar essa vida de felicidade, que é minha desgraça, o meu tormento; para compreender que me iludiste, quando me juraste um amor eterno? Amores eternos de mulher, como as flores deste nome, que duram meses, e que os primeiros sopros do Inverno derrubam!...

— Deus te perdoe a injustiça que me fazes!

— Para que casas?

— E a maldição de meu pai?... Meu pai amaldiçoava-me, Estêvão.

— E o nosso amor?

— Fica-me no coração, há-de-me matar, descansa.

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— Antes tu morresses...

— Oh! Quem dera!

— Não falemos mais em semelhantes coisa. Para que hás-de dissimular ainda?

— Se eu pudesse rasgar este peito, que me oprime, se pudesse arrancar-lhe este coração, que é teu, e o há-de ser sempre, se te pudesse mostrar como ele padece, não duvidarias de mim.

— Queres que te agradeça talvez, queres que te bendiga, não é assim? Queres que estime saber que pertences a outro, não é verdade?

— Não, Estêvão, quero que tenhas dó de mim e que me esqueças!

— Esquecer-te, eu? E a minha existência de até hoje, que foi sempre tua, e a minha fé no futuro, que estava em ti, e a minha vida toda, que te pertence? Queres que esqueça tudo?... Se não fora minha mãe!...

—Tua mãe!

— Sim, minha mãe, pobre e santa velhinha, que não tem no mundo mais do que eu que lhe queira e que a ampare. Minha mãe, que eu mataria se morresse; minha mãe, a única que me tem tido amor na terra!...

— A única! Talvez...

— Olha, Rosa, escusas de fingir, para quê? Não vale a pena. Amanhã por estas horas já estarei daqui bem longe. Só o que te peço, como um último favor, como uma esmola, é que te lembres de minha mãe, que lhe enxugues as lágrimas, que chores com ela — não te há-de custar muito, sabes tão bem iludir! — e que depois, uma e outra vez, te lembres de que te amei... e muito.

— Pela alma de minha te juro, há-de ser minha mãe.

— Obrigado, Rosa. Adeus!

— Não me queiras mal.

— Não poderia, ainda que quisesse.

— Não queiras, Estêvão, não, que to não mereço, perdoa-me e... não te esqueças de mim!... Meu pai, que nos vê! Foge, Estêvão, ele encaminha-se para este lado.

— Adeus!

Passava-se este diálogo no pátio da Quinta de Vale do Freixo no dia de S. João, ao amanhecer.

Houvera um bailarico de primor, a que tinham concorrido os rapazes e as raparigas das vizinhanças e com eles os pais, as mães e os tios.

Era um poder de gente, que passara a noite a cantar, a dançar, a pular, a rir, a comer, a beber, a respirar alegria: a prova que os cuidados lhes não pesavam na consciência, nem o mau humor no espírito.

Fora um dos mais brilhantes bailaricos de que havia memória.

O dono da quinta pusera uma grande meda de vides à disposição da fogueira e uma pipa de vinho às ordens dos concorrentes; mandara cozer várias amassaduras de pão, frigir um pôr aí além de peixe; transplantara dois alfobres de alface para quatro alguidares, juntando-lhes também quatro cestos vindimos com a fruta do tempo, e, sobretudo, a boa vontade e o contentamento a resplandecerem-lhe na fisionomia, convidando todos a divertirem-se.

Infelizmente, porém, nem todos podiam estar alegres. Naquela multidão buliçosa duas criaturas havia tão tristes, tão atribuladas, que cortava o coração olhar para elas: parecia que tinham vindo assistir, não a uma festa, mas a um enterro.

E, na verdade, ali enterravam vinte anos de esperança e de amor: naquela noite se viam em despedida, e só Deus poderia saber se essa despedida seria eterna.

Rosa e Estêvão tinham vivido juntos desde crianças e tinham-se acostumado a amar, antes, ainda antes de saberem o que era amor. Conheceram o que era quando começaram a padecer; porque é no sofrimento que ele desabrocha, como as rosas de mais apreço nos seus berços de espinhos.

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Juntos balbuciaram as primeiras palavras, juntos aprenderam a ler, juntos iam à escola, juntos voltavam às tardes e juntos passavam as noites brincando no campo e discorrendo alegremente, como duas avezinhas chilreando próximas na mesma árvore.

E encontra-se o que quer que seja de gorjear de pássaros no palrar infantil, que borboleteia de assunto em assunto, soltando de quando em quando notas agudas de admiração, ou modulando trilos narrativos de tanta viveza e simplicidade.

Disseram em comum as primeiras orações e muitas vezes os surpreendia o passeante enternecido, de joelhos e mãozinhas erguidas para o céu repetindo em coro: — “Perdoai-nos, Senhor, as nossas dívidas...” — dívidas de um ninho surpreendido entre as giestas, ou de uma inocente mentira a denunciar-se logo pelo rubor da candura e pelo borbulhar de duas lágrimas de arrependimento, se por acaso os interrogavam.

E que lindo grupo, quando estudavam juntos a lição do mestre, ou a reza a mãe lhes ensinara, sentadinhos no limiar da porta, um repetindo entre incertezas e dúvidas, outro escutando com toda a atenção e com ares concentrados, como quem compreendia a gravidade de sua posição de professor: mas ambos a reverem-se um no outro e a casarem torrentes de luz, que lhes chispavam daqueles olhos brilhantes, vivos, buliçosos, húmidos de alegria e lânguidos de sentimento.

Com o decorrer dos anos não houve remédio senão ir gradualmente rareando aqueles doces encontros. Demais, tendo morrido a mãe de Rosa, esta ficara governando a casa e em companhia de seu pai, que não era para graças. Continuaram a ver-se, a falar-se; mas às furtadelas, e quase que às escondidas.

Rosa crescera e, ao desenvolver-se, tinha ganho cada vez maiores perfeições. Fizera-se mulher, mas mulher tão formosa, tão delicadamente formosa, que confortava a alma admirá-la.

Não parecia do campo, nem, mesmo da terra.

Devem ser assim aquelas fantásticas visões, que, aljofradas por milhares de pérolas de orvalho da manhã, se esboçam na atmosfera ao romper do Sol por entre as névoas da aurora.

Delicada flor, que a mais terna aragem encurvara, parecia quebrar-se no andar. Resvalava pelo chão, deixando apenas uma suave fragrância a denunciar a sua rápida passagem e uma indefinida sensação na mente dos que a viam.

Por aquelas vizinhanças não havia notícia de crianças tão mimosa.

Era branca, mas branca como o alabastro e como os lírios, e na suave palidez da fisionomia lia-se o sentimento daquela organização franzina e nervosa. Os cabelos, negros como o azeviche, acetinados e brilhantes, poder-lhe-iam servir de manto, quando os desatasse, ondeando pelas costas abaixo e dobrando ainda no chão; os olhos, como dois diamantes negros, sempre velados por uma doce melancolia, rasgavam-se-lhe no meio de duas pálpebras escurecidas pelas sobrancelhas finamente desenhadas e orladas dumas pestanas compridas e densas, que davam ao olhar, já de si bem triste, mais tristeza ainda, amortecendo-lhe o brilho, quando raramente o iluminava.

Quem atentasse naquele rosto sempre sentido, sempre cismando como noutro mundo, sempre voltado para o céu, sentiria, se de todo não tivesse a alma cerrada à compaixão, uma lágrima de sincera piedade cair dos olhos extáticos. Rosa era uma criatura que lembrava aqueles mistérios, os enlaces dos anjos com as formosas filhas dos homens, nas primeiras eras do mundo.

Estêvão também se desenvolvera e se formara um guapo e gentil rapaz.

Nas bem proporcionadas formas lia-se-lhe a força; no rosto franco e expansivo, a lealdade e o valor. Não havia ideia de que nunca em sua vida tivesse abusado da força: mas não constava também que tivesse recuado nunca. Não procurava o perigo, mas não se temia dele; era dotado de verdadeira coragem, fria, reflexiva, inabalável.

Estes dotes, porém, não eram de tal natureza que pudessem cativar o pai de Rosa, homem de letras gordas, e mais para o dinheiro do que para o sentimento.

Tinha casado com a senhora Plácida, depois de lhe namorar os pintos e não a fisionomia.

Vivera feliz a seu modo, porque tivera os cômodos da vida, e não compreendia felicidade possível sem dinheiro ao canto do baú, pão na arca, vinho na adega e azeite na talha. Todo esse palavreado de amor e paixão era engrimanço, que espremido não deitava nada; nem julgava que boas razões pagassem dívidas ou enchessem barriga.

Um seu vizinho e compadre, homem dos seus quarenta puxados, casca-grossa como ele, pé-de-boi, mas abastado e com fama de entender do negócio e da lavoura, tinha conversado com o Sr. Feliciano Gomes, assim se chamava o pai de Rosa, a respeito desta, afirmando-lhe que se não dava de tomar estado se encontrasse mulher tão perfeita como a filha. Feliciano, que há muito andava com o olho numa courela do compadre Januário e que pôr mais de uma vez futurara comprar-lha, alegrou-se com a ideia de arredondar a sua propriedade à custa de tão pouco.

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Tratou pois de desvanecer algumas dúvidas que ainda esvoaçavam no espírito modesto do Sr. Januário, convencendo-o de que lhe sobravam perfeições para cativar o coração mais rebelde que porventura palpitasse em peito de mulher.

— Mas, eu sei lá, homem?... Já não estou muito rapaz...

— Melhor é isso, não tem idade para loucuras.

— E se a rapariga me não quiser?

— Era o que faltava, compadre, deitava-lhe os braços abaixo e nunca mais lhe punha a vista em cima!

— Nisso é que eu não consentia!... Pobre Rosita!

— Então quem há-de mandar em minha filha, se não for eu? Quem pode saber o que lhe convém?

— Olhe, compadre, se a pequena tiver alguma inclinação...

— Sem minha licença? Não faltava mais que ver! Ensinava-a por uma vez.

— Veja lá o que faz, homem, não quero que a rapariga padeça por minha causa!

— Qual padecer, nem meio padecer. Estou vendo-a já saltando de contente, quando lhe disser: “ Não sabes, o vizinho Januário quer casar contigo. Foste feliz...”

— Isso há-de ser. Não lhe hei-de faltar com coisa nenhuma.

— Pois para as mulheres é o que é preciso: dinheiro para gastarem nos trapos, e andam satisfeitas.

— Parece-lhe, por conseguinte, que serei seu genro?

— Se me parece! Já o é desde hoje, toque lá e deixe tudo pôr minha conta.

— Lembre-se de que eu não quero ir contra a vontade dela...

— Qual vontade, nem meia vontade, compadre Januário; o dito, dito, e até amanhã.

Esta conversação foi o começo das tristes aventuras dos dois amantes que apresentei aos meus leitores, e cuja história, numa noite bem invernosa, ouvi ao tio Joaquim.

Enquanto Januário ficava cismando na vida futura e saboreando de antemão a posse da rapariga mais guapa daqueles sítios, Feliciano recolhia rindo-se e esfregando as mãos, o que nele denotava o maior sinal de contentamento.

Acabava de fazer um excelente negócio. Trocara a filha por uma courela de dez alqueires de semeadura: isto é, uma mulher que tinha de sustentar por uma terra que dava de comer.

E o olival das queimadas, e a quinta da cortiça, e o casal do petisco, e as terras do Penetra, e a horta da alamoa, e tantos outros bens e haveres que constituíam a fortuna de Januário!

Claro estava que tinha tido uma tarde feliz.

Rosa ficou surpreendida ao ver entrar seu pai em casa risonho, cantarolando, coisa de que não havia memória: e, sem lhe passar pela cabeça qual era o motivo de semelhante transformação, sentiu-se alegre também.

Havia muito anos que seu pai lhe não mostrava fisionomia tão prazenteira, nem lhe falava com tanto agrado.

De repente, deu-lhe uma pancada no coração, quando Feliciano, voltando-se para ela, lhe perguntou com certos modos em que transpareciam alegria e finura mal contidas:

— Que te parece o compadre Januário?

— Que me há-de parecer, meu pai, dizem que é tão boa pessoa!...

— Sim, sim, bem se sabe isso, boa pessoa, assim como quem diz pedaço de asno; não é pelas bondades que eu te pergunto.

— Então, meu pai?...

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— Não olhaste para ele nunca com os teus olhos... de ver?

— Eu, não senhor.

— Pois é preciso que olhes, entendes-me? — disse-lhe Feliciano derrubando as sobrancelhas e deixando cair a viseira. — Talvez te agradem mais esses alfenins lambidos, que por aí se andam a desfazer? Pois estás muito enganada comigo, percebes?...

E, ao passo que ia falando engrossava a voz e fazia cara de arremeter. Rosa tremia como varas verdes, e, com os olhos arrasados de lágrimas, encomendava-se mentalmente a todos os santos do seu calendário.

Mal teve forças para balbuciar um: — Sim senhor, meu pai — e, cambaleando, foi fechar-se no seu quarto, deitando-se em cima da cama a soluçar, convulsa, como quem se despedia deste mundo.

No dia seguinte, ao almoço, parecia que voltava do cemitério. Feliciano, porém, que se não apercebia facilmente destas mudanças, ou que, se as conhecia, fingia bem o contrário repetiu o interrompido assalto.

— É preciso que vás pensando no casamento, estás uma mulher ouviste?

Bem quisera a pobre da rapariga não ter ouvido; mas era impossível dissimular.

— Eu, meu pai, estou assim bem, eu não quero casar!...

A resposta não se fez esperar muito. Feliciano soltou uma torrente de imprecações, acompanhamento estrepitoso de uma bofetada não menos estrepitosa, que já cortava os ares ainda bem a rapariga não acabara de dizer que não queria casar.

— Grandíssima atrevida!... Eu te ensinarei a ter querer! Não queres casar, hem! E pensas que engulo essa!... Vocês, lá, que bebem ares por um marido! Mas tu o que não sabes é com quem estás metida: eu não nasci ontem e não hás-de ser tu, minha seresma, que me faças o ninho atrás da orelha. Não queres casar, hem!... Ora mete-me o dedo na boca a ver se to mordo! É volta de festa, é namorico no caso, mas apanhe-te eu, que verás por uma vez os meninos órfãos a cavalo. Não queres casar! Mas quero eu que te cases e é o que basta. O vizinho Januário pediu-te ontem e eu resolvi que havias de ser sua mulher. E é dar graças a Deus pela pechincha! Onde podes ir que mais valhas? Andar para diante e cara alegre, quero que estejas contente, que mostres ao vizinho que tens gosto no casamento e que lhe agradeces os seus afectos, senão... ponho-te fora de casa depois de Ter moer esses ossos e não quero mais que me chames teu pai.

Ao passo que ia ouvindo o seu pai, Rosa ia sucessivamente esmorecendo.

À vermelhidão, que lhe tingira o rosto ao receber a brutal bofetada, sucedera-se uma palidez citrina, que aumentava até ficar de puro alabastro.

Tinham-lhe rebentado as lágrimas dos olhos no primeiro momento; mas não correram. Uma constrição terrível lhe afogou a garganta, pensou que ia sufocar-se: pulava-lhe o coração no peito, batiam-lhe as artérias na cabeça, semelhando o marulho das ondas em torno do que mergulha ràpidamente, um cinto de ferro lhe apertava a fronte, zunidos estranhos lhe baqueavam no cérebro.

Cuidou que ia morrer e do íntimo da alma elevou ao Criador uma prece de júbilo, em acção de graças.

Era um desmaio apenas, um destes abalos que passam pelas organizações nimiamente nervosas, como o furacão pelos arbustos extremamente débeis.

Acurvam-nos até ao chão, estorcem-nos na passagem; mas não os partem.

Rosa quis segurar-se à mesa, mas estonteou-se-lhe a vista, andou-lhe a cabeça à roda, desfaleceram-lhe os braços, correu-lhe gelo pelas veias e deu redondamente no meio do chão. Parecia morta.

Feliciano largou uma desta maldições capazes de espavorir toda a milícia celeste e correu à filha; estremeceu-lhe o remorso todas as fibras do coração de pai. Não havia maldade nas intenções do velho; entendia a seu modo a felicidade da filha, que estimava deveras: não se persuadiu que o golpe tivesse tão fundo alcance, e trepidou ante as conseqüências.

Mas, ao vê-la voltar a si, recuperou a confiança e de novo tornou ao seu plano favorito. Entendeu, com aquele frio cálculo de quem já não cuida em amores, que a voz do coração era uma impertinente a que se não devia dar ouvidos em questões desta ordem, e que só o interesse devia tomar a palavra e falar de cadeira: amaciou entretanto a voz, voltou-se menos ríspido para a rapariga e disse-lhe, quase enternecido:

— É para teu bem, depois me agradecerás...

E saiu, pensando no futuro de Rosa e na conveniência de arredondar as suas terras com a cobiça courela de Januário.

II

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Pensem os que têm amado do coração no que padecera a pobre da rapariga ouvindo seu pai. Desapareceu de repente de ante si aquele encantado futuro em que se enlevara. Num momento perdeu a esperança, a alegria, a felicidade.

Quando o amor verdadeiro nos domina, só há em nós uma ideia, um pensamento fixo, quase uma monomania: a posse do que se ama, a existência a dois, participando ambos das mesmas dores, das mesmas alegrias, dos mesmos perigos, dos mesmos triunfos, das mesmas glórias. Reparte-se o coração com aquela a quem tanto se quer, e de tal maneira se alarga e aumenta a porção que lhe entregamos que por fim nos apercebemos de que já de todo nos não pertence. E, bem longe de nos pesar, enleva-nos, nos mais íntimos transportes do sentimento, essa doce espoliação no nosso ser.

Se nós somos então amor, e somente amor!

O universo inteiro resume-se numa só criatura, e tão grande nos parece esta que o julgamos ainda pequeno para a albergar. Todos os afectos resumem-se num só, de todos os fios que nos prendem ao mundo traçamos uma cadeia só, no remate da qual nos penduramos com a energia, com a tenacidade do afogado.

No outro extremo a cadeia acaba o nosso mundo. Se um pavoroso cataclismo precipitasse o globo; se as esferas se entrechocassem e confundissem se a criação voltasse ao caos; se as trevas engolissem a luz; se num rodopiar incessante o universo se contorcesse nos extremos paroxismos: ficasse a mulher que amávamos connosco, e nem nos aperceberíamos da mudança.

A luz, a ordem, a harmonia, o movimento dos céus, o revolver dos astros, o tornear da Terra, o não acabar do espaço, parecem-nos puerilidades insignificantes comparadas com o infinito do nosso amor. Só há uma ocasião, só há uma fase da existência, em que o homem se exalta, se eleva, se engrandece, se iguala ao Criador. É quando ama. Satanás, se fora o demônio do amor e não o demônio do orgulho, resistiria ao Omnipotente.

Quando se assenhoreia de nós, o amor espalha por tudo quanto nos cerca fulgores que nem a centelha do raio pode ofuscar, harmonias que nem os corpos celestiais podem fazer esquecer, encantos que não os tem assim a bem-aventurança.

É que a mulher reside para nós em tudo: tanto na florinha que mal se descortina entre a relva dos prados, como na montanha arrojada que parece lacerar os seios do infinito; se queremos recolher as flores para com elas lhe juncarmos o piso, queremos transformar-lhe a montanha em pedestal para sobre ele a levantarmos.

Da nuvem far-lhe-íamos um véu, das estrelas um dilema, dos céus sem limites um azulado cendal.

E depois, descontentes ainda, pedimos com religioso fervor ao autor dos mundos que reforme a sua obra, que dilate mais a criação, que exalte mais, porque não nos chega quando existe para a mulher por quem vivemos.

E, se é assim o homem, o que não será a mulher, toda sentimento, toda amor, toda afecto e... se não toda egoísmo, toda vaidade e toda presunção.

A mulher, que, quando ama deveras, arranca o homem das trevas descobrindo-lhe novos lumes de paixão, feições novas de sentir, delicadezas desconhecidas, mimos e enlevos, que não descortina nunca a nossa natural brutalidade. A mulher, que ou ama como cantam os cisnes, amando e morrendo desde logo pelo amor, ou nutre em si o amor, como a árvore alimenta o parasita, vivendo só para nutrir e definhando-se enquanto ela medra à custa de sacrifícios, de abnegação e de sofrimentos inapreciáveis; ou quando mesmo, presumida em excesso e vaidosa sem termos, se ama a si, amando o homem que se lhe rendeu, e bem-querendo a esse rendimento, a essa homenagem, a esse culto, porque lhe desvanece a vaidade, porque é uma confissão eloqüente das suas perfeições, porque finalmente é seu, e veio de si, para de novo voltar para si, como as plantas amam a água, que elevam da terra, entregam aos ares, para que estes lha restituam depois em amorosas lágrimas.

Rosa amava, e amava sincera, piedosa, apaixonadamente. Não havia afectação alguma naquele sentimento, que nascera do coração, proviera da alma, e que se fortalecera aquecido pelos estos da natureza. Amara criança ainda, amara com força muito maior quando a puberdade lhe transformara o ser transfundindo-lhe nas artérias faúlas de desejo.

Quando a vida nova dos dezasseis anos lhe abalou a organização infantil, quando o coração se tornou túrgido de sangue, rico de vida e farto de estímulos criadores, quando aquela flor do campo chegou ao período em que as pétalas se tingem de mais brilhantes cores para deslumbrarem e caírem breve, o amor de Estêvão, que já a possuía, transformou-se também e dominou a mulher, como dominara a criança.

Foi para ele que, corando de pudor, elevou os seus pensamentos de mais arrojado afecto, quando lhe esvoaçou diante da imaginação deslumbrada essa nova perspectiva que lhe apresentava o mundo, ao conhecer-se outra pela inspiração divina, que, nessa quadra da vida, patenteia à mulher os desconhecidos horizontes da procriação e da maternidade.

O amor de criança unira-se ao amor de Estêvão; e deste delicado enlace nascera o amor-mulher. Não lhe assomava o desejo à mente sem que esse desejo se não transformasse para ela na imagem varonil e fascinante do seu apaixonado. A sua nova existência era de Estêvão; era por Estêvão; e o homem que tal consegue da mulher pode chamar-lhe sua, sem que o considerem presumido.

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Entretanto as palavras de Feliciano operaram em Rosa uma revolução cruel. Não se persuadira nunca que o amor de filha pudesse entrar em luta com o amor de mulher; e nem por sombras se preparara para semelhante combate. Se o coração falasse unicamente, se não tratasse senão de resistir à cólera e maus tratamentos de seu pai, a escolha não seria duvidosa. Matasse-a, embora, que morreria contente, se até aos últimos momentos a deixassem amar Estêvão; mas a maldição paterna troava-lhe ainda aos ouvidos, e todas as fibras daquela organização delicada estremeciam, só ao lembrar-se de que ele lhe proibiria o nome de filha. A religião, a crença, a educação, tudo falava em favor de seu pai; em favor de Estêvão só o muito que o amava, mas não era o bastante. Amaldiçoada, via os tormentos do Inferno, o penar de sua alma, a espada de fogo do arcanjo exterminador, a condenação eterna, e a memória da sua infância e os santos de sua devoção a sumirem-se-lhe para sempre.

Não enlouqueceu, porque não teve forças para tanto; não morreu, porque a intensidade própria do sofrimento lhe deu forças para resistir, fenômeno bem vulgar nas organizações nervosas; não se matou, porque lhe afastavam tal pensamentos de si as ideias com que fora criada: sofreu muito; por fim, pelo embotamento do sofrer, pareceu resignar-se.

Triste resignação, em que amortalhara os mais puros afectos, o mais risonho futuro, a mais afagada esperança!

A ideia de que se sacrificava à vontade de seu pai, se não lhe deu consolação, deu-lhe forças; e o persuadir-se de que cumpria o seu dever animou-a a persistir: se não ganhou o santo entusiasmo com que os mártires se encaminhavam para o suplício, alcançou ao menos aquela frieza apática, da mais entranhada abnegação.

Deixou de se pertencer. Fez-se cadáver, transformou-se em instrumento da vontade de seu pai, instrumento inerte, impassível, sem vida, sem pensamento próprio. Não tivera ânimo para se matar; mas definhava-se lentamente naquele doloroso suicídio moral.

Alguns dias depois da cena que se passara entre o pai e a filha, Estêvão recolhia do trabalho cantando, e todo enlevado na sua Rosa, que julgava não ver havia tanto tempo. A voz melodiosa corria nas voltas do caminho e repetia-se mais afinada nos ecos de um monte próximo.

Ouvira-o Rosa, que, abatida e alheia ao mundo, estava mais caída que sentada numa cadeira, com os olhos pregados na imagem da Senhora das Dores, que tinha perto da cama; palpitou-lhe de novo o coração no peito: aquela voz abalou-a como o choque da pilha, e, sem se lembrar do que fazia, cedendo ao impulso, que tantas vezes a movera, correu à porta, ao mesmo tempo em que Estêvão se aproximara do limiar.

Ao vê-lo, porém, fugiram-lhe de todo as forcas e caiu-lhe desmaiada nos braços. Ao longe, parecera-lhe notar na sombra o vulto ameaçador de seu pai.

— Rosa da minha vida, que tens tu, que nunca te vi assim? — exclamara Estêvão, recebendo-a nos braços. — Torna a ti, sou eu, é o teu Estêvão!

Perto dali corria a água de um bueiro do muro; levantou-a em seus braços, pousou-a num marco próximo do jorro e às mãos-cheias lhe espargiu o rosto; depois, ao vê-la tornar à vida, curvou-se, aproximou-se mais da amada, como para lhe transfundir a vida que lhe sobrava, e tão perto lhe aflorou os lábios que dir-se-ia um rápido beijo unira por instantes as duas apaixonadas bocas. O ósculo chamou à vida e à realidade a desgraçada Rosa, que desmaiara enlevada nos gostosos sonhos de uma felicidade que lhe era defesa.

— Ai, Estêvão, estamos perdidos! — exclamou a mísera, acordando de todo, quase nos braços do amante.

— Pedidos, Rosa!... Que dizes?

— Meu pai... quer que eu case com o Januário.

— E tu?

— Eu, Estêvão!... Meu pai amaldiçoa-me.

Foi então que ele ia desmaiando também. Cambaleou, encostou-se à parede para não vergar, e foi-lhe preciso grande força de vontade para resistir.

Resistiu, porém, e como se lhe arrancassem esta exclamação do fundo da alma:

— Pensei que me tinhas mais amor!...

— Deus te perdoe, Estêvão, por duvidares de mim.

— Duvidar! Queres talvez que te agradeça, que te bendiga, porque às primeiras palavras de teu pai me atiras a monte, como erva ruim ou foice partida. Eu é que tenho a culpa, não é assim? Dize, anda, eu é que tenho a culpa: e tenho, porque te queria mais do que à própria vida, porque te queria como homem nenhum poderia querer a uma mulher. Anda, não duvides, acusa-me, Rosa, que bem o mereço. E, entretanto, Deus sabe que tesouros de amor se guardavam cá dentro, Deus sabe quanto eu te estremecia!... Pensei que não

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houvesse forças no mundo que nos separassem, pensei que nem Deus mesmo tivesse poder para tanto! Enganei-me. Foi bem feito. Se tu és mulher!... E não rebentar eu, quando me assomou este amor! Não Ter havido um raio que me partisse!... Casa, casa, e sê feliz!

Depois, entre soluços, soltou um adeus e deitou a correr como doido, fugindo à tentação que lhe afogueava o pensamento.

Rosa ficou prostrada sobre o marco, até que a água, inundando-lhe o rosto, a reanimou um pouco; seguiu, mais por instinto do que por vontade, para casa e deitou-se, já com os primeiros sintomas de uma febre cerebral agudíssima.

Feliciano não soube nunca a razão da doença de sua filha. Januário acompanhou o compadre nalgumas noites perdidas, e Rosa costumou-se a vê-lo e a agradecer-lhe o cuidado e a afeição que lhe mostrara. Afeição rude, brutal mesmo; mas, por isso, tanto mais para apreciar uma ou outra delicadeza, que surdia como enfezadinho rebento de tronco cascudo e rugoso.

Convalescente ainda, aparecera Rosa no bailarico, e ali encontrara Estêvão, que durante a doença não se afastou nunca das proximidades da casa, empregando astúcias incríveis, recorrendo a subtilezas quase inacreditáveis, para a ver sem que o visse, ou para se informar, ao menos, do estado em que se achava.

Os nossos leitores já assistiram ao diálogo que travaram. No dia seguinte, Estêvão partia a bordo da Joaquina Primeira para a Costa de África e um mês depois Rosa casava com Januário, quase sem perceber que mudava de estado.

IIITinha decorrido um ano depois do encontro de Rosa com Estêvão, que ultimamente relatamos. Não haviam chegado notícias deste

último, e corria pela terra que morrera das febres de África. Rosa nunca mais proferira o nome do seu antigo apaixonado; mas quem lhe devassasse o íntimo da alma reconheceria que a imagem querida não lhe saíra nunca do pensamento.

Aparecia-lhe nas horas suaves de melancolia, quando espraiava a vista pelos descampados, descansando depois os olhos no filhinho de mês que se lhe pendurava no seio.

Depois que desaparecera, Estêvão convertera-se para a imaginação apaixonada de Rosa numa triste visão que, saudosamente, lhe sorria dessas regiões encantadas que a fantasia povoa de arroubados devaneios.

Aquele amor depurara-se pela ausência, e a noiva, entregando-se ao marido, cumprindo religiosamente os seus deveres de mãe e de esposa, persuadia-se de que lhe seria lícito, ao menos, dispor da sua alma.

E, ainda que não quisesse, esta pertencia a Estêvão. A posse que lhe dera, que ele conquistara à força de desvelos, de solicitude e de amor, era inalienável, ganhara-a com o sacrifício da sua vida, com o holocausto da sua existência, nos altares da dedicação. E que importava a Januário este inocente roubo! Não poderia encontrar mulher que mais cuidasse dele, que mais o cercasse de carinhos, que mais se sacrificasse ao seu bem-estar.

Nenhuma seria capaz de dar melhor ordem à vida, de cuidar mais no arranjo da casa, de providenciar mais para que coisa alguma faltasse a seu marido. Delicadezas de sentimento não eram para Januário; nem as compreendia, nem se dava de semelhante coisa. O mundo, para ele, era uma série de cômodos, e o conforto da casa e da família a felicidade suprema.

Não pensara nunca em falar ao coração de sua mulher. E andara acertadamente não procurando desferir instrumento que, atormentado por aquelas mãos rudes, apenas poderia soltar gemidos; mas harmonias nunca. Onde acabava a materialidade finalizava o mundo. Idealismos, se alguém lhe falara em tal coisa, poderia contar com descompostura certa, em paga de semelhante atrevimento.

Tinha com que viver e vivia do que tinha.

O granjeiro das fazendas, o amanho das terras, os cuidados da agricultura preocupavam-lhe o dia. À noite, esperava-o uma boa ceia, uma cama de pau-santo luzidia com os lençóis alvos de neve a estenderem-lhe os braços, a esposa a sorrir-lhe no limiar, sorriso encoberto por um permanente véu de tristeza, mas isso não percebia ele, e o filho a dormir tranquilo no berço com o bracinho curvado sob a cabeça, a boquinha rosada mussitando sonhos de convivência com os anjos, seus irmãos.

E o asseio a aformosear tudo, e a tranquilidade a alegrar o interior da casa, e a arca recheada ao canto, a prometer dilatados dias de descanso e de fartura.

E até para lhe alimentar as rabugices da idade ( Januário já rastejava pelos cinquenta ), o birrento do sogro, que sempre tinha que lhe tornar e que contradizer em todos os trabalhos que empreendia seu genro.

Que mais queria, pois?

Rosa acostumara-se também a esta vida de insensibilidade e sacrifício. A ideia de que fizera a felicidade de seu pai e de seu esposo consolara-a da grande perda que sentira, e vivia transfundindo em seu filho todas as delicadezas de sentimento e de amor, de que precisava para poder viver.

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Transformação que facilmente compreendem os que sentirem deveras, o amor de Estêvão depurara-se-lhe na alma e fizera-se amor de mãe. Quantas vezes lhe parecia, embalando seu filho, que estreitava nos braços a Estêvão!... Então aconchegava a criança mais a si; apertava-a tremulamente; e duas lágrimas de saudade, ou talvez de amor, deslizavam-lhe pelas faces.

O filhinho, desperto com aquele enlace, abria os olhos e parecia fitá-los na mãe como traduzindo uma admirada repreensão: ao menos assim o julgava ela, que se sentia desfalecer e se acusava então daquela inocente infidelidade aos seus deveres de esposa. Beijava fervorosamente o seu pequeno censor, como para o abrandar e com aquela imagem afugentar a outra que tinha presente sempre.

Nestes rápidos e quase inapreciáveis movimentos se denunciava apenas a intensidade daquela violenta e concentrada paixão. Como nas pavorosas tormentas submarinas, a plácida superfície das águas só num ligeiro tremer poderia denotar a força das horrendas lutas que se travavam nas remotas profundezas.

Uma tarde ficara absorta no seu cismar contemplativo, toda embevecida naquelas divagações que tantas vezes a alheavam do mundo em que vivia. Os olhos parados e fitos pareciam procurar nos afastados horizontes aquele indefinido ponto em que os espaços se perdem de vista e que a fantasia enriquece com suas estranhas criações. Dir-se-ia a estátua do desalento poisada sobre a pedra da sepultura a remir-se nos céus, sua almejada pátria.

A imagem de Estêvão adejara-lhe na mente, e, enlevada naquela paixão que anão deixava, deixou aproximar-se a noite, sem perceber que as trevas baixavam encobrindo os campos.

Já a Lua desenhava com seus pálidos clarões figuras extravagantes, que pareciam dançar por entre o arvoredo à feição do vento, e Rosa ainda estava no mesmo lugar a na mesma posição.

De repente, soltou um grito e estendeu diante de si convulsivamente os braços, como se pretendesse afastar um fantasma aterrador. A imagem que evocara parecera tomar corpo e, num vulto que se escondia por entre árvores, cuidou reconhecer Estêvão.

Efectivamente, apenas soltara aquele grito, o vulto correu para ela. Era Estêvão.

— Estêvão!

— Rosa!

— Tu aqui?!

— Se eu não podia já viver longe de ti! Se morria se te não visse!

— E agora?

— Agora? Vi-te. Disse-te uma vez ainda: “Amo-te”, e posso morrer!

— Sabes, Estêvão, que sou mulher de Januário, sabes que tenho um filho de meu marido?

— Para que mo lembrar? Pensas que não mo tinha dito já o coração?

— Para que voltasse, então, Estêvão?

— Não to disse já? Para te ver.

— Ai! Quanto me custa que voltasse!

— Bem sei. Deveria Ter morrido, não é assim? Um homem como eu, que ninguém estima, que não tem afeições neste mundo, que vive como o espargo no monte, que, embora procure lançar raízes na terra, lhas arrancam como o escalracho, devia morrer. Não serve de nada, não deve viver, tens razão.

— E quem te diz que assim seja? Quem te diz que não há quem te ame, quem ainda se dedique por ti, quem te não esqueça nunca?! Ah! Estêvão, os homens não compreendem o coração da mulher!

— Não compreendem, não. A mulher, santa criatura, na verdade! A mulher, que mente ao marido, mente ao amante, a mulher que se enlaça como a hera no coração do homem, cravando-lhe cada vez mais fundos os espinhos, roubando-lhe cada vez mais a vida. Não te compreendi, Rosa, devia agradecer-te, porque pertences a outro, porque ontem dormiste ao lado de outro, porque daqui a pouco vais deitar-te no seu leito. Devia agradecer-te, não é assim? Dize, anda, bem vês que te vou compreendendo.

— Que mal te fiz para me tratares com esse desdém?

— Que mal me fizeste? Nenhum! Eu é que fui um louco, eu é que errei, quando prendi a minha vida à tua, quando te entreguei a minha sorte, quando em ti pus a minha esperança. Eu é que fiz mal, quando me deitei a amar esse amor, que tantas vezes me juraste,

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quando depositei fé nas tuas palavras, que pareciam tão sinceras, quando pensei que havias de ser minha, porque assim mo juraras mil vezes; eu é que mereço castigo, porque confiei na sinceridade do teu coração, porque, loucamente crédulo, não me persuadi nunca de que fingisses tão bem, que houvesse em ti dissimulação tão grande.

— Se soubesses quanto tenho padecido, não me falavas decerto assim!

— E eu? Julgas, porventura, que te sumiste um momento sequer da minha ideia? Pensas que te não vi sempre diante de mim, nas tribulações da vida, nas ondas do mar, nos sertões da África, nas extensões do céu... Sempre, sempre! Pensas que não me lembrava sempre que eras de outro, tu, que só poderias ser minha! Pensas que não me deram por doido; que me não arrojei ao mar, por mais de uma vez, para lá ficar para sempre?... Se não fosse terem-me salvo, já hoje te não inquietava!... Pensas...

— Não continues! Estamos a agravar uma ferida que não pode sarar mais! Antes não nos víssemos!

— E assim me despedes! Bem mo dizia o coração! Falsa!...

Rosa levantou a cabeça, cheia de indignação; até esse momento, parecia que escutava a sua sentença de morte: quando, porém, Estêvão assim a acusou, quando lhe pareceu que o seu enorme sacrifício não era compreendido, que o seu amor era tão mal julgado, a voz da consciência, que a defendia dos agravos do seu amante, bradou-lhe lá dentro:

— Ergue-te!...

Elevou os olhos para o céu, como para se inspirar numa resolução suprema, afastou da fronte os cabelos que a ofuscavam, levantou-se com um movimento de nobre majestade, travou da mão de Estêvão, que a olhava surpreso, e exclamando apenas: — Vem! — levou-o consigo para dentro de casa. Com o sorriso a adejar-lhe sobre a fisionomia, estava o filhinho de Januário deitado no berço, dormindo, os braços torneados descansavam fora da roupa, abertos e como estendendo-se para a mãe. No fundo da alcova, a um canto que a luz duma lamparina iluminava a custo, adivinhava-se o esposo, que dormia; o ressonar compassado e sonoro noutro quarto próximo deixava perceber que Feliciano, depois de ter largamente discutido com seu genro a conveniência de uma nova semeadura, descansara por fim, cansado de rabujar. De resto, tudo estava em sossego.

Estêvão, sem compreender para quê, deixou-se arrastar até junto do berço; a, Rosa, correndo a vista pela casa, fitou por último o olhar no seu companheiro.

— Amanhã, esta criança acordará, e aqueles dois velhos levantar-se-ão, sorrindo para mim, como sempre, cheios de confiança e de... amizade. Como até hoje, julgar-me-ão filha honrada, mãe honesta... esposa fiel!... Sacrifico-te aqui, junto deste berço... e daquele leito, todo o meu passado, todo o meu futuro, tudo!... Aqui me tens, Estêvão, vê agora se te amo. Sou tua!...

E, resignada, nobre, altiva, caminhou para ele, que recuara, como os mártires deveriam caminhar para a fogueira... serena, tranqüila, orgulhosa pelo seu sacrifício, iluminada pela divina auréola do amor.

Estêvão parecia fulminado.

Foi mistério o que se passou na sua alma; entretanto, compreendeu tudo e soube elevar-se até às sublimidades daquela mulher.

Avaliou qual era a grandeza de semelhante amor e sentiu-se digno dele. Leu de relance todas as páginas dolorosas daquela epopéia íntima e elevou no santuário de seu coração, purificado de quaisquer resquícios da natureza terrestre e material, um cântico divino de admiração, caiu de joelhos aos pés de Rosa e desatou a soluçar.

As lágrimas queimavam-lhe as faces; mas refrigeravam-lhe a alma; quando se levantou era outro.

Curvou-se sobre o berço infantil, depositou um beijo no rosto do inocente, dirigiu-se para Rosa, que ainda o esperava imóvel, mal lhe aproximou da testa os beiços, e, desviando os olhos do leito onde Januário dormia, saiu, dizendo à sua antiga amada:

— Adeus, irmã!

Foi tudo obra de um momento.

Rosa caiu sobre o berço de seu filho, cobrindo-o de beijos: Estêvão já ia longe.

A criança soltara um vagido lastimoso, acordara ao sentir-se inundar pelas lágrimas de sua mãe e, estendendo para ela os braços, sorrira.

Januário não dera sinal de si.

IVAs feridas morais não se assemelham às físicas. O coração rasga-se com o dor, sofre-se por muito; mas o tempo cicatriza tudo.

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O correr dos anos enregela a alma e acalma os horrores da paixão. Estêvão ainda foi feliz.

Rosa, essa, ninguém pôde saber se se esquecera daquela noite. O amor de seu filho consumia-lhe a vida toda.

Nunca se lhe tingiram as faces de cor, nem o mais leve sorriso lhe entreabriu os lábios: poucos a ouviram falar, raras vezes proferia alguma palavra.

Entretanto, foi sempre a esposa desvelada e filha extremosa; pouco tempo sobreviveu a seu marido.

Aquela hora fora a última em que conhecera que tinha coração; foi também a última em que se avistou com Estêvão.

Feliciano, na manhã seguinte a uma noite em que mais se exaltara discutindo com seu genro sobre o melhor modo de alqueivar uma terra, foi encontrado morto na cama.

Sucumbira a uma congestão cerebral.

A terra sobre que versara a controvérsia era propriamente a courela por amor da qual contratara o casamento da filha.

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— Fim —

Rodrigo Paganino nasceu em Lisboa, no ano de 1835. Seguiu a carreira médica, distinguindo-se no combate à febre amarela, em 1857. Fundou o Jornal de Belas-Artes e o Arquivo Universal. Depois de ter traduzido algumas peças de teatro, publicou em 1861 o seu primeiro e único trabalho original — Os Contos do Tio Joaquim —, obra altamente apreciada pelos seus contemporâneos, entre eles Júlio Dinis. Morreu tuberculoso em 22 de setembro de 1863.

Fonte: Antologias Universais: Os melhores contos portugueses. Seleção, prefácio e notas de Guilherme de Castilho. Lisboa: Portugália Editora, 1963.

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O enterro de um cãoFrancisco Teixeira de Queirósdo livro Comédia do campo

IO velho Coruja, o coveiro, o bom amigo dos mortos, tinha pelo seu pequeno cão uma afeição pura e desinteressada.

O Coisa acompanhava-o em toda a parte, com uma fidelidade insistente: nos enterros aparecia cansado, reflexivo e de cabeça baixa; no palheiro, onde ambos dormiam, deitava-se junto dele, corpo a corpo, como um companheiro familiar; nas diversas cozinhas das casas ricas da vizinhança, onde o coveiro aparecia ao meio-dia, sempre se mostrou submisso, quieto, esperando pacientemente que lhe dessem a sua broa e as rapaduras do pote de caldo de farinha.

O Coruja olhava para ele com ternura, dava-lhe do seu comer, interrogava-o com naturalidade, afagava-o, dizendo-lhe palavras boas, repassadas de carinho e de benevolência... porque partia da hipótese sensata de ser compreendido. O Coisa, pequeno, magro, de pêlo faminto, com as barbas de guloso sempre sujas, escutava-o atenciosamente, sem pestanejar, e, deitando-lhe a cabeça nos quartos, ficava como adormecido muito tempo.

O coveiro compreendia estas finas delicadezas do seu companheiro... Por isso falava-lhe com polidez, com cuidado, escolhendo as palavras, estudando um timbre de voz meigo e delicado. Que dois corações uníssonos e isócronos! As únicas desavenças que se tinham dado entre eles eram por causa das crianças pobres... O cão perseguia-as insistentemente, se as encontrava aglomeradas a pedir esmola, junto dos portais ricos! Neste ponto era formalmente desobediente à palavra austera do seu amo!... O Coruja, que, quando tinha vontade disso, sabia ser iracundo, figurava então uma voz áspera, severa e repreensiva, ameaçando-o arrogantemente:

— Pedaço de brejeiro! Tenho-te dito muitas vezes que me deixes os rapazes. Fizeram-te algum mal? Diz lá: fizeram? Não entendes isto, maroto?!...

E se, depois, o cão se lhe ia enroscar aos pés, humilde e submisso, concluía com energia:

— ... Pois devias entender. Eles são como nós ambos e como os outros desgraçados — andam na sua vida... Se são pobres, quem lhes há-de dar o pão, se não forem os ricos?! Vê-os acolá? — indicava incautamente os rapazitos. — Andam às esmolas, como tu e como eu!...

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O Coisa olhava fixamente para o seu amigo, escutando-o sem pestanejar, e, como vira que as últimas palavras haviam sido acompanhadas dum gesto em que eram apontados os pequenos pedintes, que, amedrontados, tinham fugido para longe, interpretando-as mal, arremetia de novo contra as crianças, perseguindo-as com mais raiva pelos caminhos.

O coveiro mostrava-se estúpido e confundido... Não compreendia!... Ficava cismando para ver se encontrava o motivo que o animal teria para odiar com tão afincado acinte as crianças pobres que via encostadas aos portais ricos!... Não o podia perceber, ele que ignorava inteiramente a biografia do Coisa...

Encontrara-o numa tarde de chuva, perto de um ribeiro, onde, no dia seguinte, apareceu afogado um velho pedinte, de longa barba esquálida. O pobre animal tiritava de frio, recolhido humildemente dentro do tronco carcomido duma Cerdeira desfolhada. O Coruja, vendo-o assim, teve um ar compadecido e lastimou-o com um sorriso triste. Lembrou-se que levava num bolso restos de pão do jantar, e, com um ar de bondade, atirou-lhe um pedaço, dizendo:

— Talvez tenhas fome... Pega lá, come.

O cão, saindo do esconderijo, abocou com rapidez e mastigou sofregamente, auxiliando a deglutição com movimentos rápidos e impulsivos de cabeça. O coveiro, observando este fato, disse sorrindo:

— Home... tinhas larica. Toma lá mais um naco!...

E, tirando mais broa do bolso das calças, deu-lha. O animal engoliu com rapidez o pão e aproximou-se do coveiro com obediência — arqueava a espinha dorsal arrastando a barriga na terra, tinha movimentos laterais e cadenciados de cauda, levantava a cabeça para lhe cheirar a mão benéfica e ouviram-se-lhe latidos de agradecimento. O Coruja olhou reflexivo para ele e, confiando-lhe a cabeça, observou com um sorriso:

— Diabo! Sempre és muito feio, ladrão!

Depois atirou para o ombro a enxada de abrir as covas e foi pelo caminho adiante... Ia para um enterro.

O cão ficou quieto, humilde, a olhar para o seu benfeitor. O coveiro, olhando para trás, viu-o nesta posição, quase suplicante, e gritou-lhe de longe:

— Tó Coisa!

O animal veio para ele depressa, contente, feliz, dando pulos de alegria, movendo festivamente a cauda, lambendo os pés do Coruja, que o afagava. E para mostrar logo, àquele seu amigo fortuito, um bom fundo de cão agradecido, arrastava o ventre pela terra, gania amoravelmente, roçava-se-lhe pelas pernas, e, por fim, conservou-se alguns momentos, num aspecto cativante, deitado no chão, olhando para o coveiro, com a cabeça firme, a mostrar os dentes e a piscar os olhos...

Foi assim que se tomaram por companheiros inseparáveis!... O coveiro não indagou quem era o Coisa, mas eu, que o sei, posso dizer que era o cão do pedinte que no dia seguinte apareceu morto na levada do ribeiro! Tinha sido amestrado para ladrar às crianças, para escorraçar os pequenos, magros e sujos, que pudesse encontrar pedindo esmola junto dos portais ricos. Os perseguidos fugiam assustados e chorosos, gritando muito, apertando na mão os saquinhos vazios... e ficavam, de longe, a ver quando o pobre da barba esquálida sairia dali com o maldito cão, para eles voltarem a implorar a esmola, com as suas vozes finas e plangentes.

Porém, o velho pedinte era experimentado e céptico. Se alguém, casualmente, observava a perseguição injusta que o animal fazia aos rapazitos, ele, que fingia de aleijado, chamava-o com modos de homem irritado, ralhava-lhe muito, chegava mesmo a bater-lhe. Com este procedimento conseguia, muitas vezes, captar a benevolência de quem o observava e obtinha alguma esmola, que agradecia dizendo:

— ... Pelas benditas almas... Por mais que me mate, não posso ensinar este ladrão, Um dia como-lhe os fígados. Apesar do amor que lhe tenho, sou home pra isso!

E, com o fim de se mostrar digno de admiração, erguia para o companheiro o pau da justiça, tremente de cóleras! O benfeitor, compadecido, intervinha caridosamente a favor do animal, aconselhando:

— Deixa lá. São brutos, não sabem o que fazem. Se eles não têm alma...

— É também do que me tenho lembrado, meu rico pai da caridade! Se ele tivesse uma alma, eu era capaz de lha meter no Inferno, só pelo que ele é de mau para as criancinhas... coitadas!

Mas o animal não era responsável. Tendo sido educado, por seu amo, no propósito de perseguir os concorrentes às esmolas, obedecia-lhe. Mesmo quando o velho pedinte lhe ralhava, apontando as crianças que fugiam espavoridas e ele continuava a persegui-las, é porque sabia ser este um sinal para as escorraçar com mais ímpeto! Tinham-lhe ensinado que todas as admoestações lhe impunham o dever de ladrar com maior energia e vivacidade; por isso assim procedia...

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O pobre de barba, depois de obtida a esmola, prêmio da repreensão infligida ao maleficente, dizia vagamente, de modo a ser ouvido pelo benfeitor que se distanciava:

— Diabo de cão é tolo! Não sei que mal lhe fizeram os rapazinhos!...

E, voltando-se para ele, outra vez, com o pau no ar, concluía:

— És mesmo ruim, como as cobras!

Mas, logo que ficavam sós, cofiava amoravelmente a barriga do rafeiro, chamando-lhe seu rico cachorrinho, ganindo como ele para o reconciliar consigo e dando-lhe fartamente broa da sacola, com o fim de o excitar ao crime. Incompreensível perversidade!...

Eis aqui estão os motivos em virtude dos quais o coveiro nunca poderia fazer compreender ao Coisa que a sua benevolência era sincera e não mentirosa, como a do velho pedinte que primeiro o educara. O modo compassivo como o Coruja entendia deverem ser olhadas as crianças pobres que aos sábados encontrava junto dos portais ricos, o cão não podia compreender facilmente e até o interpretava ao inverso, principalmente quando lhe apontavam os rapazitos que se conservavam agrupados e cheios de susto a olharem de longe.

Mas, apesar desta divergência, viveram muitos anos em concordante familiaridade, dormindo promiscuamente nos mesmos palheiros e comendo da mesma ração. Como o Coruja era um bêbedo declarado, entendeu que devia habituar o Coisa a gostar de vinho, exatamente como ele, e dava-lho. O cão principiou por provar com evidente repugnância. Nos dias de fome que o seu antigo amo lhe fizera passar, tomara hábitos de sobriedade. Vinho! Tal guloseima nunca provara! O pedinte de barba esquálida era extremamente egoísta... emborrachava-se só. Mas, passado algum tempo, depois de ter sido preciso abriram-lhe a boca à força para lhe emborcar o líquido nas goelas, o Coisa gostou, e por fim já escorripichava a tigela por onde o coveiro bebia a meia canada habitual... Tão fino bêbedo se mostrou depois que andava sempre lambendo, com cuidado e esmero, até as deixar enxutas, não só a tigela do amo, mas todas as cuncas de sopa de bestas que encontrava às portas das estalagens e tendas minhotas. Então dizia-lhe o seu amigo, rindo abertamente, com efusão, piscando os olhos, já muito torto:

— Anda, grandíssimo borrachão, que me pareces um padre!

Esta frase usual, sincera e inofensiva, que tantas vezes dissera impune, proferiu-a incautamente, uma vez, diante de um eclesiástico que, julgando-se ofendido, o repreendeu severamente, levantando a bengala com uma intenção agressiva! O coveiro, que, pelo hábito de viver entre batinas, não as respeitava, e considerando mesmo que os padres eram homens como os outros e igualmente pecadores, lembrando-se até que ele já tinha enterrado um bom par deles, respondeu com desdém e indignado:

— Olhe, talvez o seu coração não seja tão bô como o dele...

O padre ficou autoritário e colérico e o coveiro retirou-se cheio de justiça, por ter pugnado pelo seu camarada.

Às vezes, nos dias de muita chuva, o Coruja não podia sair do palheiro onde dormia, por causa das malditas dores que lhe vinham à perna doente. O Coisa, nessas ocasiões, parecendo-lhe que devia prover às necessidades comuns, saía a procurar comida. Nesses dias não respeitava nenhuma casa, fosse ela de quem fosse! Previdente e sagaz, obedecendo à sua primeira educação na vida mendicante, ia por aí fora... Porta que encontrasse aberta e donde saísse bom cheiro, entrava com ousadia e abocava descerimoniosamente qualquer posta de bacalhau ou qualquer salpicão que encontrasse. Mas, em vez de comer o produto da ladroagem, como faria qualquer cão vulgar e sem sentimentos, vinha depositar a comida intacta nas mãos do seu companheiro, para ele a repartir. O coveiro, no propósito de se dar seriedade, repreendia-o com brandura, sorrindo com os seus olhos vesgos:

— Ah! Grande ladrão! Home, isso não se faz!... Ir roubar o que não é da gente!... Muito mal feito, seu patife!... Come tu, anda, que eu não tenho grande fome.

No entanto, para não ser descortês e mal-agradecido, aceitava o alimento, que repartia com retidão e igualdade, dando muitas vezes ao Coisa qualquer bocado que julgava mais apetitoso.

IIUm dia, porém, o Coisa apareceu morto na beira de um caminho, no velho sulco cavado pelas rodas dos carros que ali tinham

passado durante muitos anos! Era um janeiro, o coração do Inverno no alto Minho. Fazia um frio de lobo, mas a noite era de uma limpidez fantástica, Um luar claro aos objetos um destaque enérgico. O ruído das montanhas espalhava-se sussurrante nas profundezas dos vales cobertos duma erva miserável, mirrada pelo frio intenso e prolongado, pelas geadas sucessivas que os sóis, quase primaverais, não conseguiam descoalhar. Os montes altos, cobertos de neve levantavam as suas enormes carcundas de gigantes, há séculos ali adormecidos!... O dia amanhecera com um Sol rutilante, que produzia vivos reflexos nos brincos de gelo pendentes dos braços nus das árvores, dos beirais dos telhados e das vertentes das fontes. Os pequenos pássaros, saltando nos galhos das oliveiras, pareciam mais volumosos, porque tinham as penas eriçadas. Os tordos, com os pios ingênuos, e os melros, com os assobios agudos e petulantes, denunciavam-se aos caçadores que os perseguiam, aproximando-se encobertos com os troncos das árvores, com os muros e com os penedos, para fazerem certeiramente a pontaria.

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A paisagem animara-se com o levantar do Sol. Principiava a vida dos campos — os bois iam soltos para as reles pastagens, ou, cangados, puxavam aos toscos carros de duas rodas; as éguas, lãzudas e famélicas, avistando-se de encosta para encosta, relinchavam; os rapazes, as mulheres e os homens trabalhavam nas hortas, na apanha de lenha para o lume, e nas podas, cantando sempre, para não sentirem o frio. Passavam nos caminhos alguns pedintes de capas remendadas e de sacolas a tiracolo, cheias de broa. Tinham o bom ar, alegre e folgazão, dos felizes despreocupados, para quem o dia de amanhã será sempre bom como o dia de hoje. Iam conversando animadamente em acidentes da sua vida vagabunda e caminhavam num passo largo, assobiando, cantarolando, batendo nos cães vadios com paus a que se costumavam encostar quando pediam esmola. Foram eles os primeiros que encontraram o Coisa morto na estrada, tristemente abandonado num sulco de carro, como um cão desprezível que não tivesse inspirado um afeto na vida! Junto deste morto anônimo, os pedintes, alegres, fizeram uma paragem, dizendo um deles, com ar trocista e de chacota:

— Olhem este asno onde se foi deitar!...

Acrescentando outro:

— É que tinha calor e não quis dormir na palha!

Um terceiro ainda observou, com um compadecimento fingido:

— Coitado!... Já não come mais broa!

E, por último, um mocetão robusto, desertor do três de Viana, para despertar a hilaridade na companhia, levantou pelo rabo o magro corpo do Coisa e pronunciou, conservando-o suspenso:

— Eh! Diabo! Está teso como minha avó torta!...

Riram-se unissonamente, com as bocas escancaradas, deste dito excêntrico, continuando depois o caminhar divertido.

Porém o cão não estava ali esquecido, como se poderia supor: o Coruja tinha-o procurado durante a noite. Andou nisso muitas horas, apreensivo e triste, repassado de maus prenúncios. Chamou-o alto nas encruzilhadas, assobiou por ele de cima dos muros dos caminhos, teve momentos silenciosos duma tristeza indefinida!... E, como via o Coisa não lhe aparecer, disse, com a testa avincada e com uma expressão de quem suspeita um crime:

— Que diabo! Por aí algum maroto...

Suspendeu bruscamente a frase, concluindo-a depois, mostrando um punho cerrado:

— Pois, se sei quem foi que matou, abro-lhe a cabeça com o olho da enxada! Ainda que trezentos diabos me levem pras profundas dos Infernos!

Dirigiu-se para o seu palheiro, tiritando de frio, dando suspiros e com lágrimas nos olhos. Nessa triste noite estava só. Não sentia o seu companheiro de tantos anos introduzir-se com focinho entre a palha, para adormecer mais quente. Apesar dos latidos vagabundos dos outros cães da vizinhança, o Coisa não se levantava esperto para responder ao postigo! Em vez deste, era agora o Coruja, que, ouvindo ladrar, levantava a sua cabeça para ver se aquela era a voz do seu amigo... Debalde esperou. A noite prolongava-se por séculos e o coveiro, dando valtas entre o colmo, sentia um calor abafante, suspirava com aflições e não podia dormir!

Logo muito cedo, ainda a manhã apontava, saiu do palheiro para continuar as suas averiguações. Junto da igreja encontrou umas crianças da freguesia vizinha, que vinham para a escola, e uma das quais lhe disse espontaneamente:

— Ó tio Coruja, já viu o seu Coisa?

O coveiro respondeu sufocado:

— Não! Onde esta?!

— Olhe, tio Coruja, a gente viu-o morto ali no caminho.

— Morto! — pronunciou o velho com aspecto rijo, inteiro e com voz comovida.

— Sim, senhor, lá em baixo, ao pé da cancela — certificaram os rapazitos, falando todos juntos, com a intimativa ingênua das suas vozes finas, apontando para longe, no fundo do vale!...

O coveiro foi ver. No andar tinha os movimentos rápidos e incongruentes dum coxo desvairado!... No rosto transparecia-lhe a expressão amarga e deprimente duma intensa dor, sentida com verdade! Os olhares eram impetuosos, lampejantes e vingativos; porque continuava a predominar no seu cérebro a idéia de que algum malvado lhe tinha morto o Coisa!...

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Chegou ao pé da cancela. O pequeno gozo estava deitado, imóvel, composto como se estivesse a dormir. Depois que o pedinte faceto o suspendera pelo rabo, tornara a cair casualmente no sulco do carro, onde o seu pequeno corpo se ajeitara, no último momento da vida. Com o pêlo faminto, eriçado pela geada que caíra durante a noite, reconhecia-se ser aquele mesmo o rafeiro que, nas manhãs de frio, costumava correr, doido e despreocupado, adiante do Coruja, quando ele ia para os enterros. A rigidez cadavérica, apoderando-se do seu corpo magro, com a fatalidade dum acontecimento necessário dava-lhe uma expressão de insensibilidade absoluta, expressão de indiferença pelas preocupações da vida terrestre!...

O coveiro ajoelhou na atitude piedosa dum crente. Tocou, quase instintivamente, com a mão, aquele corpo inerte, para ter a indubitável certeza da morte do seu único amigo! Fê-lo com a profunda veneração duma alma rude; mas, neste contato do corpo dum cão morto, sentiu um longo calafrio de terror!... — ele, que tantas vezes experimentara despreocupado o frio marmóreo dos cadáveres, que os costumava lavar e vestir, para depois os meter na cova e cobrir de terra.

O Coruja, levantando-se hirto, subjugado, com as feições transtornadas e com lágrimas nos olhos, disse resignadamente:

— Isto... havia de ser o diabo do frio...

Um pouco depois, como se respondesse a uma pergunta que fizera a si mesmo mentalmente, acrescentou:

— ...Fome!? Tamém seria fome?... Onte não comemos nada...

Passados momentos ainda considerou:

— Este raio de neve!... Pois ele, com um frio de mil demônios!... A gente sempre anda agasalhada; mas os animais — coitados! — nem uma vestia, nem uns socos!...

Afinal, tendo estado muito tempo sentado numa pedra a contemplar o corpo inanimado do Coisa, levantou-se com um impulso generoso e disse:

— Pois tu não és menos que os outros. Tamém hás-de ter o teu enterro com ofício.

Dominado por esta idéia generosa, foi dali, à igreja, buscar a sua enxada de coveiro, que costumava ter guardada por detrás do altar-mor! Era para abrir a cova ao Coisa. Na sacristia, revestia-se para dizer missa, o padre José Pitança.

Ao sentir pela igreja acima as pancadas sonoras e de uma intensidade desigual de uns socos, sobre o pavimento da igreja, observou ligeiramente para o sacristão:

— É o Coruja. Já vem por ai com alguma carraspana. Eh!... Eh!... Eh!...

Quando o coveiro saía atravessando a sacristia de enxada ao ombro, o eclesiástico, com as mãos sobre os rins, atando as fitas do amito, suspendeu o murmurar de reza e perguntou em voz alta:

— Quem diabo morreu, ó Coruja?

— O meu cão — respondeu com brevidade.

— E para que levas tu a enxada?

— Para lhe fazer um enterro.

O sacerdote teve uma gargalhada bulhenta de caçoador. O coveiro, ofendido, respondeu-lhe com orgulho:

— Olhe que nem eu nem você somos melhores que ele. Merece-o mais que muitos fidalgos.

E saiu bruscamente, coxeando.

O Coruja, com o fim de realizar a idéia generosa de fazer um enterro excepcional ao seu cão, procurou primeiro um caixão que lhe pudesse conter o corpo. Para isso encontrou uma tábua comprida, sobre a qual o estendeu, alinhando-o cuidadosamente, para ficar bem composto, numa posição sensata e natural. Subiu a uma oliveira, da qual cortou uns ramos para cobrir o cadáver, para o enfeitar, dizendo numa voz sossegada e de respeito: “Esta é a tua mortalha”. Depois, no propósito de organizar um acompanhamento e dar a isto uma aparência de cortejo fúnebre, conseguiu que, a troco de uma promessa de pequena recompensa, quatro rapazitos que andavam num monte à garavalha pegassem ao caixão. O caixão era a tábua com o cadáver em cima coberto pelos ramos de oliveira, posta em seguida sobre dois fueiros, tirados, pelo Coruja, duma carro que estava no caminho!... A cada extremidade de fueiro pegou um dos convidados. Depois, quando tudo estava em boa ordem, o coveiro, com a sua voz rouca e falhada, no tom faceto de uma alegria mentirosa, disse:

— Toca a andar, rapaziada. Levemos este nosso irmão para o descanso eterno!

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As crianças obedeceram com sinceridade infantil, caladas e respeitosas. O saimento foi por um estreito caminho, com direção a um alto píncaro, onde o Coruja determinou abrir a sepultura do seu velho amigo. Atrás do féretro ia ele, com a enxada ao ombro, a cabeça descoberta, um aspecto de contentamento triste, entoando o cantochão, uma voz roufenha, pausada e distraída, imitando o frasear dos sacerdotes nos ofícios:

Béu, béu, béu,Vai pro Céu.Ao que os rapazes, que conduziam o corpo, respondiam, fingindo vozes profundas e graves, espaçando as sílabas:

Engola, engola,Vai pra cova.Depois, todos juntos, comunicando uns aos outros certa alegria sorumbática e nervosa, cantavam em coro, num tom mais cadenciado,

largo e solene:

Quem'stiver no InfernoSaia cá pra fora!As crianças achavam isto divertido, apesar de procurarem adquirir semblantes sérios e respeitosos, fingindo atitudes de homens,

endireitando o tronco e esforçando-se por acertar o passo. Porém, como não sabiam coordenar bem os movimentos, em certo instante puxaram em diferentes sentidos e quase deixaram cair desastrosamente o cadáver do Coisa!... O coveiro sentiu rasgar-se-lhe o coração e deu um grito instintivo e dilacerante. Os rapazes pararam rapidamente, ficando quietos e silenciosos diante daquela manifestação inesperada de uma dor humanamente sentida! Continuaram depois o seu caminho, num silêncio meditado e mais triste!...

Quando subiam a encosta do monte, o rosto do Coruja cobriu-se de certa melancolia, caminhando devagar, com o corpo inclinado para diante, absorvido na idéia da sua perda! Chegando ao cimo, parou junto duma aglomeração de penedos. Esteve alguns segundos meditativo, encostado à enxada... Mas depois, dando à cabeça um movimento impulsivo e retomando o seu tom cômico anterior, disse, com o chapéu levantado ao ar:

— Alto aí!... ó rapaziada!

Os pequenos pararam, pousando no chão o féretro. O coveiro principiou a abrir ali mesmo a sepultura. O som baço e profundo da enxada, batendo cadentemente na terra, dilatava-se, reproduzindo-se nos ângulos da montanha.

No exercício da sua triste profissão, o Coruja tinha, neste momento único, um aspecto magoado... Todo curvo sobre a cova que ia abrindo, com uma expressão facial de rígida tristeza, impunha-se austero, digno, respeitável!...

As crianças, graves, silenciosas, olhando absorvidas para ele, obedeciam a um sentimento que não saberiam explicar!... Tomavam parte no sentimento do coveiro e, deste modo, com a sensibilidade ingênua e infantil, acabavam a tonalidade dolorosa deste quadro triste.

Em frente das montanhas imponentes e do amplo horizonte, a respiração era fácil, regular, sossegada. Todos sentiam a tranqüilidade, o sossego, a paz silenciosa dos lugares ermos! O Coruja, para acabar o seu trabalho, desceu ao fundo da sepultura e principiou a cavar com esmero dos lados. Desejava que o corpo ficasse cuidadosamente ajeitado, como num berço!... Por fim, disse aos seus companheiros, numa voz natural:

— Chegai-me pra cá esse caixão.

E tirando cuidadosamente os ramos de cima do corpo, sopesou a tábua, para a colocar no fundo com o cuidado e com o amor com que colocaria o corpo de uma criança morta! Um dos assistentes confessou com naturalidade:

— Parece... como os anjinhos.

O Coruja devolveu, a esta expressão singela e amorável:

— Tens razão. Olha que tinha uma alma como eles.

E passou a mão na cabeça desta criança que lhe penetrara o pensamento, com a amizade com que o poderia fazer a um seu filho... Acrescentou depois, com voz comprimida pela dor, mas esforçando-se por ser alegre:

— Vamos lá a cantar os ofícios, para ajudar a entrar esta alma no Céu da bem-aventurança!...

Recomeçaram dum modo mais calmo, penetrados de cômica circunspeção, o fúnebre cantochão:

Dizia o Coruja, de um lado:

Béu, béu, béu,Vai pro Céu.Respondiam as crianças, do outro:

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Engola, engola,Vai pra cova.Depois entoavam todos em coro:

Quem'stiver no InfernoSaia cá pra fora!Repetindo isto muitas vezes, andavam em volta da sepultura. As crianças seguiam o coveiro, como acólitos. O Coruja, com o ramo e

oliveira na mão, significava espargir o morto, com água benta hipotética!

Por fim cobriu-se de terra o defunto. Espetaram-se sobre a cova os ramos de oliveira, e todo o mundo se retirou. Os rapazes iam adiante do coveiro, contentes e felizes, atirando pedras que rolavam pelo monte abaixo. Um deles, vendo-lhe lágrimas nos olhos, perguntou a um companheiro:

— Porque é que o tio Coruja chora?

Ao que o interrogado respondeu inteligentemente:

— Ora... era amigo do Coisa.

Nos tempos subseqüentes ainda viram, algumas vezes, o Coruja subir aos penedos sobranceiros à sepultura! Demorava-se ali horas, olhando para o largo horizonte, cantarolando sempre, como era seu costume nos momentos tristes! Num dia em que o barbeiro Zé Máximo, com o seu ar importante de banalidade, lhe perguntou indiscretamente, sorrindo-se com modos de troça:

— Ó Coruja, tu diz que fizeste um grande enterro ao teu Coisa? — ele respondeu com azedume:

— É verdade, meu grandíssimo jumento! Merecia-o melhor que tu.

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— Fim —

Francisco Teixeira de Queirós, que usou o pseudônimo literário de Bento Moreno, foi, como romancista e contista, fiel seguidor da escola realista. Nasceu em Arcos de Valdevez em 1848, formando-se em medicina pela Universidade de Coimbra. Foi presidente da Academia das Ciências de Lisboa e, por pouco tempo, em 1915, ministro dos Negócios Estrangeiros. Logo no princípio da sua carreira literária, ainda estudante, em obediência a um plano prévio, iniciou duas séries paralelas de contos e romances, a que deu os títulos de “Comédia do Campo” e “Comédia Burguesa”, plano que pouco a pouco foi realizando, com uma tenacidade e persistência notáveis. Faleceu em 1919.

Fonte: Antologias Universais: Os melhores contos portugueses. Seleção, prefácio e notas de Guilherme de Castilho. Lisboa: Portugália Editora, 1963.

http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/

Inimiga pessoal da mulherNelson Rodrigues“O Reacionário”

Não sei se repararam, mas há qualquer coisa de alucinatório no Galeão. Os idiotas da objetividade dirão que se trata de um aeroporto, como outro qualquer. Engano. Há fatos e tipos que só acontecem no Galeão. Vamos supor: — acaba de descer um jato.

Ora, o jato entrou para a nossa rotina visual. Já o vimos às centenas, aos milhares. Mas o importante no jato não é o jato, e sim o seu elenco singularíssimo. Quando ele pousa, ainda saturado de infinito, estejam certos de que tudo é possível. Coloca-se a escadinha e abre-se a pequena porta. E, então, os passageiros começam a sair.

Descem rajás, mágicos, domadores, mímicos, profetas, bailarinos, e até brasileiros. Quanto aos brasileiros, já os conhecemos e passemos aos demais. Falei nas velhas internacionais que qualquer jato traz e qualquer jato leva? E, se duvidarem, até vampiros desembarcam dos prodigiosos aviões. Ou comedores de orelhas ou o índio que devora giletes.

Mas não falei de uma figura que é de uma singularidade ainda mais impressionante do que as citadas. Refiro-me à sra. Betty Friedan, líder feminista norte-americana. Digo “líder feminista” e começam as minhas dúvidas. Sempre escrevo que ninguém enxerga o óbvio, ou por outra: — só os profetas o enxergam. Pois é óbvio que a sra. Friedan não tem nada a ver com a mulher. E pelo contrário: — é uma inimiga pessoal das mulheres.

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Não sei se sabem, mas a mulher tem vários inimigos pessoais. Um deles, e dos mais cruéis, são os grandes costureiros. É claro que os pequenos também. Mas dou um destaque especial aos costureiros célebres, que inventam modas, que milhões de mulheres seguem, em todos os idiomas, com uma docilidade alvar. A única coisa que os move, e os inspira, é a intenção evidente e obsessiva de extinguir toda e qualquer feminilidade.

Imagino o escândalo do leitor: — “Mas por quê, ora pinóia?” (“pinóia” é a gíria finada que acabo de exumar). Aí está um mistério nada misterioso. O autor dos vestidos vê a mulher corno a rival que o há de perseguir, do Paraíso ao Juízo Final. E, por isso, o empenho com que trata de transformar a mulher numa figura cômica.

Corno são desinteressantes as mulheres que se vestem bem. E o pior é que os costureiros, com diabólico engenho, atingem em cheio os seus objetivos. Realmente, nunca a mulher foi menos amada. Outro dia, remexendo nos meus velhos papéis, descobri uma crônica de dois anos atrás, em que eu próprio escrevia: — “Nunca a mulher foi tão pouco mulher, nunca o homem foi tão pouco homem”. O raciocínio é simples: — se a mulher é menos mulher, o homem será menos homem.

Há, sim, de um sexo para outro, um tédio recíproco, que já não permite nenhum disfarce. Eu disse, certa vez, que a lua-de-mel começa depois da lua-de-mel. Hoje, diria que a lua-de-mel acaba antes da lua-de-mel. Por outras palavras: — não há mais a lua-de-mel.

O que a sra. Friedan quer é, justamente, liquidar a mulher como tal. Se vocês espremerem tudo o que ela diz, ou escreve, descobrirão que a nossa ilustre visita pensa assim, mais ou menos assim: — “A mulher é um macho mal-acabado, que precisa voltar à sua condição de macho”. Dirão vocês que estou abusando do direito de interpretar e fazendo um exagero caricatural. Pelo contrário: — estou sendo fidelíssimo ao sentido dos seus textos, de todas as entrevistas que concedeu, em todos os continentes.

Temos aqui em O Globo uma repórter adolescente e linda. Mas adolescente e linda pode parecer pouco para a reportagem. Acrescentarei que, além disso, é inteligentíssima. A sra. Friedan recebeu a nossa imprensa em entrevista coletiva. Não sei se foi coletiva. Só sei que recebeu a nossa menina e disse o que lhe veio à cabeça, com uma audácia, com perdão da palavra, cínica.

Para a líder do antifeminismo, a mulher não tem nenhuma dessemelhança com o homem. Nenhuma? Nenhuma. Nem anatômica? Se ela não faz a ressalva, vamos concluir: — nem anatômica. E essa coisa misteriosa e irresistível que nós chamamos “feminilidade”? A entrevistada tem todas as respostas na ponta da língua, e não precisa nem pensar. Responde: — “A feminilidade não existe”.

A sra. Friedan é um ser todo feito de certezas. Jamais lhe ocorre uma única e escassa dúvida. Eis o que afirma: — a “feminilidade” é uma ilusão, ou uma impostura inventada por uma “sociedade de consumo”. Hoje, não há idiota que, aqui ou em qualquer idioma, não explique com a “sociedade de consumo”, todos os mistérios do céu e da terra. Com a tal “feminilidade” a mulher tem que comprar cílios postiços, maquilagem, vestidos, sapatos, lingerie etc. etc.

Shakespeare, no seu Hamlet diz, pela boca de Horácio, que “há mais coisa entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”. Mas Shakespeare não conhecia a “sociedade de consumo”, que é, hoje, a chave de todas as dúvidas. A menina de O Globo não se conteve e disse: — “Pois eu me sinto muito feminina”. Segundo presunção dos presentes, a entrevistada não gostou de ser contestada. Com surda irritação, retrucou: — “Você pensa que é 'feminina', mas não passa de uma vítima da 'sociedade de consumo' “.

E, durante toda a entrevista, a boa sra. Friedan se limitou a fazer variações em torno da idéia fixa: — “A mulher tem que deixar de ser mulher”. E mais: — o homem é o macho perfeito e a mulher o “macho mal-acabado”. O ideal é que, no fim de tudo, tenhamos dois machos.

A nossa menina não se intimidou. Disse mais: — “Pois eu sou boneca, e estou muito satisfeita de ser boneca, e não quero outra coisa, senão ser boneca”. No fim, os colegas e a própria sra. Friedan queriam entrevistar “a boneca”.

A “boneca” voltou para a redação com um divertido horror. E o pior vocês não sabem. Quem está por trás da líder antifeminista? Quem prestigia e aplaude a sua cruzada contra a mulher, contra o casamento e contra a família? Uma série de progressistas da Igreja. Esses elementos a tratam a pires de leite como a uma úlcera.

Mas vejam vocês como vivemos numa época em que tudo se faz e tudo se diz. Há pouco tempo, ninguém teria a coragem de, alçando a fronte, declarar: — “A feminilidade não existe”. Diz mais: — que a mulher para viver dignamente precisa estar acima de “definições sexuais” como “mãe e esposa”. Para a pobre senhora a maternidade é um fato apenas físico, como se a mulher fosse uma gata vadia de telhado. Nem desconfia que sexo, para o ser humano, é amor. Há dez anos, ela não diria isso. E se o dissesse a família trataria de, piedosamente, amarrá-la num pé de mesa; e ela teria que beber água de gatinhas, numa cuia de queijo Palmira. Hoje, porém, pode sair por aí a dizer, pela Europa, América, Oceania etc. etc., afirmando que a mulher é mulher não porque o seja, não porque Deus a fez, não porque a natureza tivesse raspado a sua barba antes de apresentá-la ao homem. A mulher é mulher — afirma a sra. Friedan — porque a “sociedade de consumo” assim o quis. Entendem? Não Deus ou a natureza, mas a “sociedade de consumo”.

Mas e os sacerdotes que estão metidos com a santa senhora e a promovendo? Meu Deus, no mundo em geral e no Brasil em particular só um vendaval de patetas está varrendo tudo. A sra. Friedan só seria viável não numa “sociedade de consumo”, mas num sinistro mundo de idiotas.

[17/4/1971]

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In Rodrigues, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 192.

Poeminho do contraMário Quintanade Caderno H, 1973Todos esses que aí estãoAtravancando o meu caminho,Eles passarão...Eu passarinho!

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Conto cruelMário Quintanade Sapato Florido, 1947IDe repente, o leite talhou nos vasilhames. Foi um raio? Foi Leviatã? Foi o quê?O burgomestre, debaixo das cobertas, resfolegava orações meio esquecidas.E os negros monstros das cornijas, com as faces zebradas de relâmpagos, silenciosamente gargalhavam por suas três ou quatro bocas

superpostas.IIE amanheceu um enorme ovo, em pé, no meio da praça, três palmos mais alto que os formosos alabardeiros que lhe puseram em

torno para evitar a aproximação do público. Foi chamado então o velho mágico, que escreveu na casca as três palavras infalíveis. E o ovo abriu-se ao meio e dele saiu um imponente senhor, tão magnificamente vestido e resplandecente de alamares e crachás que todos pensaram que fosse o Rei de Ouros. E ei-lo que disse, encarando o seu povo: “Eu sou o novo burgomestre!” Dito e feito. Nunca houve tanta dança e tanta bebedeira na cidade. Quanto ao velho burgomestre, nem foi preciso depô-lo, pois desapareceu tão misteriosamente como havia aparecido o novo, ou o ovo. E os menestréis compuseram divertidas canções, que o populacho berrava nas estalagens, entre gargalhadas e arrepios de medo.

IIIMas por onde andaria o burgomestre?O seu cachimbo de porcelana, em cujo forno se via um Cupido de pernas trançadas, tocando frauta, foi encontrado à beira-rio. E

apesar de todos os esforços, só conseguiram pescar um baú, que não tinha nada a ver com a coisa, e uma sereiazinha insignificante e nada bonita, uma sereiazinha de água doce, que nem sabia cantar e foi logo devolvida ao seu elemento.

Mas quando casava a filha do mestre-escola, encontrou-se dentro do bolo de noiva a dentadura postiça do burgomestre, o que deu azo a que desmaiassem, no ato, duas gerações de senhoras, e ao posterior suicídio do pasteleiro.

E a caixa de rapé do burgomestre, que era inconfundível e única, multiplicou-se estranhamente e começou a ser achada em todas as salas de espera desertas, pelos varredores verdes de terror, depois que era encerrado o expediente nas repartições públicas e começava a ouvir-se, na rua, o passo trôpego do acendedor de lampiões.

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O JucaMário Quintanade Caderno H, 1973O Juca era da categoria das chamadas pessoas sensíveis, dessas que tudo lhes toca e tange. Se a gente lhe perguntasse: “Como vais,

Juca?”, ao que qualquer pessoa normal responderia “Bem, obrigado!” — com o Juca a coisa não era assim tão simples. Primeiro fazia uma cara de indecisão, depois um sorriso triste contrabalançado por um olhar heroicamente exultante, até que esse exame de consciência era cortado pela voz do interlocutor, que começava a falar chãmente em outras coisas, que aliás o Juca não estava ouvindo... Porque as pessoas sensíveis são as criaturas mais egoístas, mais coriáceas, mais impenetráveis do reino animal. Pois meus amigos, da última vez que vi o Juca, o impasse continuava... E que impasse!

Estavam-lhe ministrando a Extrema-Unção. E, quando o sacerdote lhe fez a tremenda pergunta, chamando-o pelo nome: “Juca, queres arrepender-te dos teus pecados?”, vi que, na sua face devastada pela erosão da morte, a Dúvida começava a redesenhar, reanimando-a, aqueles seus trejeitos e caretas, numa espécie de ridícula ressurreição. E a resposta não foi nem “sim” nem “não”; seria acaso um “talvez”, se o padre não fosse tão compreensivo. Ou apressado. Despachou-o num átimo e absolvido. Que fosse amolar os anjos lá no Céu!

E eu imagino o Juca a indagar, até hoje:— Mas o senhor acha mesmo, sargento Gabriel, que ele poderia ter-me absolvido?

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Dos chatosMário Quintanade Caderno H, 1973O maior chato é o chato perguntativo. Prefiro o chato discursivo ou narrativo, que se pode ouvir pensando noutra coisa... Me lembro

que fiz um soneto inteiro — bem certinho, bem clássico e tudo — durante o assalto ao Quarto do Sétimo, isto é, quando um veterano de 30 me contava mais uma vez a sua participação nas glórias e perigos daquela investida.

As velhotas que nos contam seus achaques também são de grande inspiração poética.Mas que fazer contra a amabilidade agressiva do chato solícito? Aquele que insiste em pagar nossa passagem, nosso cafezinho, ou

quer levar-nos à força para um drinque, ou faz questão fechada de nos emprestar um livro que não temos a mínima vontade de abrir...Ah! ia-me esquecendo dos proselitistas de todas as religiões. Os proselitistas amadores, que são os piores. Quanto aos sacerdotes que

conheço, registre-se em seu louvor que eles sempre me falam de outras coisas. Ou me julgam um caso perdido ou um caso garantido... Bem, qualquer que seja o caso, deixam-me em paz.

O que pode acontecer de mais chato no mundo é o chato que se chateia a si mesmo, o autochato.Para essa extrema contingência, descobri em tempo que a última solução não é o suicídio. É escrever, desabafar para cima do leitor, o

qual, se me leu até aqui, a culpa é toda dele.Há gente para tudo...

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Espelho MágicoMário QuintanaDa observaçãoNão te irrites, por mais que te fizerem...Estuda, a frio, o coração alheio.Farás, assim, do mal que eles te querem,Teu mais amável e sutil recreio...Do estiloFere de leve a frase...E esquece...nadaConvém que se repita...Só em linguagem amorosa agradaA mesma coisa cem mil vezes dita.Das Belas FrasesFrases felizes...Frases encantadas...Ó festa dos ouvidos!Sempre há tolices muito bem ornadas...Como há pacóvios bem vestidos.Do Cuidado da FormaTeu verso, barro vil,No teu casto retiro, amolga, enrija, pule...Vê depois como brilha, entre os mais, o imbecil,Arredondado e liso como um bule!Dos MundosDeus criou este mundo. O homem, todavia,Entrou a desconfiar, cogitabundo...Decerto não gostou lá muito do que via...E foi logo inventando o outro mundo.Das CorcundasAs costas de polichinelo arrasasSó porque fogem das comuns medidas?Olha! Quem sabe não serão as asasDe um anjo, sob as vestes escondidas...Das UtopiasSe as coisas são inatingíveis...ora!Não é motivo para não querê-las...Que tristes os caminhos, se não foraA presença distante das estrelas!Dos MilagresO milagre não é dar vida ao corpo extinto,Ou luz ao cego, ou eloquência ao mundo...Nem mudar água pura em vinho tinto...Milagre é acreditarem nisso tudo!Das IlusõesMeu saco de ilusões, bem cheio tive-o.Com ele ia subindo a ladeira da vida.E, no entretanto, após cada ilusão perdida...

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Que extraordinária sensação de alívio!Dos Nossos MalesA nós nos bastem nossos próprios ais,Que a ninguém sua cruz é pequenina.Por pior que seja a situação da China,Os nossos calos doem muito mais...Da Eterna ProcuraSó o desejo inquieto, que não passa,Faz o encanto da coisa desejada...E terminamos desdenhando a caçaPela doida aventura da caçada.Do PrantoNão tente consolar o desgraçadoQue chora amargamente a sorte má.Se o tirares por fim do seu estado,Que outra consolação lhe restará?Do sabor das coisasPor mais raro que seja, ou mais antigo,Só um vinho é deveras excelente:Aquele que tu bebes calmamenteCom o teu mais velho e silencioso amigo...Dos SistemasJá trazes, ao nascer, tua filosofia.As razões? Essas vem posteriormente,Tal como escolhes, na chapelaria,A forma que mais te assente...Do exercício da filosofiaComo o burrico mourejando à nora,A mente humana sempre as mesmas voltas dá...Tolice alguma nos ocorreráQue não a tenha dita um sábio grego outrora...Das idéiasQualquer idéia que te agrade,Por isso mesmo... é tua.O autor nada mais fez do que vestir a verdadeque dentro em ti se achava inteiramente nua...Da amizade entre mulheresDizem-se amigas... Beijam-se... Mas qual!Haverá quem nisso creia?Salvo se uma das duas, por sinal,for muito velha, ou muito feia...Da FelicidadeQuantas vezes a gente, em busca da ventura,Procede tal e qual o avozinho infeliz:Em vão, por toda parte, os óculos procura,Tendo-os na ponta do nariz!Da RealidadeO sumo bem só no ideal perdura...Ah! Quanta vez a vida nos revelaQue "a saudade da amada criatura"É bem melhor do que a presença dela...Do Amoroso EsquecimentoEu, agora - que desfecho!Já nem penso mais em ti...Mas será que nunca deixoDe lembrar que te esqueci?Da discriçãoNão te abras com teu amigoQue ele um outro amigo tem.E o amigo de teu amigoPossui amigos também...Da PreguiçaSuave preguiça, que do mau-quererE de tolices mil ao abrigo nos pões...Por causa tua, quantas más açõesDeixei de cometer!

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Do ovo de ColomboNos acontecimentos, sim, é que há destino:Nos homens, não - Espuma de um segundo...Se Colombo morresse em pequenino,O Neves descobria o novo mundo!Do mal da velhiceChega a velhice um dia...E a gente ainda pensaQue vive... E adora ainda mais a vida!Como o enfermo que em vez de dar combate à doençaBusca torná-la ainda mais comprimida...Da moderaçãoCuidado! Muito cuidado...Mesmo no bom caminho urge medida e jeito.Pois ninguém se parece tanto a um celeradoComo um santo perfeito...Da calúniaSorri com tranquilidadeQuando alguém te calunia.Quem sabe o que não seriaSe ele dissesse a verdade...Da experiênciaA experiência de nada serve à gente.É um médico tardio, distraído:Põe-se a forjar receitas quando o doenteJá está perdido...De como perdoar aos inimigosPerdoas... És cristão...Bem o compreendo...E é mais cômodo, em suma.Não desculpes, porém, coisa nenhuma,Que eles bem sabem o que estão fazendo...Da condição humanaSe variam na casca, idêntico é o miolo,Julgem-se embora de diversa trama:Ninguém mais se parece a um verdadeiro toloQue o mais sutil dos sábios quando ama.Da própria obraExalça o remendão seu trabalho de esteta...Mestre alfaiate gaba o seu corte ao freguês...Por que motivo só não pode o poetaElogiar o que fez?

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Poemas em prosaMário QuintanaA Guerra e o DesesperoAs guerras têm aparentemente o fim de destruir o inimigo. O que elas conseguem afinal é destruir parte da humanidade — quando

esta é atingida da psicose do suicídio. Isso não quer dizer que cada uma das partes se suicide pessoalmente. Nada de covardias. Para salvar as aparências, cada uma delas suicida a outra. Seria ridículo atribuir qualquer idéia de expurgo à Natureza — com N maiúsculo. E, por outro lado, seria humor negro atribuí-lo a insondáveis desígnios da Divina Providência.

Deixemos as maiúsculas em paz. Agora, o último pretexto invocado é o das guerras ideológicas. Muito bonito! Mas quem foi que disse que se trata de idéias? Trata-se de convicções. As quais nada têm a ver com a lógica. Eis um exemplo das convicções: eu sou gremista, tu és colorado. Ora, duvido que qualquer um de nós descubra alguma razão lógica para isso. Agora, passando para um domínio mais amplo, universal, vamos procurar um exemplo das idéias.

.......................................................................................................................Esta linha de pontinhos quer dizer que ainda estou procurando. Em todo caso, tenho de confessar que usar de idéias para examinar as

guerras e guerrilhas é recorrer a um instrumento inadequado - assim como quem servisse de um microscópio para distinguir um rinoceronte que já vem vindo a toda para cima da gente.

— E então, ó homo sapiens, que vais fazer nesta situação desesperada?— Ora, alistar-me... Toda opção é um ato de desespero.

Reflexos, Reflexões...

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IQuando a idade dos reflexos, rápidos, inconscientes, cede lugar à idade das reflexões - terá sido a sabedoria que chegou? Não! Foi

apenas a velhice.IIVelhice é quando um dia as moças começam a nos tratar com respeito e os rapazes sem respeito nenhum. IIIOra, ora! não se preocupe com os anos que já faturou: a idade é o menor sintoma de velhice.

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Conto familiarMário Quintanade A vaca e o hipogrifo, 1977Era um velho que estava na família há noventa e nove anos, há mais tempo que os velhos móveis, há mais tempo até que o velho

relógio de pêndulo. Por isso estava ele farto dela, e não o contrário, como poderiam supor. A família o apresentava aos forasteiros, com insopitado orgulho: “Olhem! vocês estão vendo como 'nós' duramos?!”

Caduco? Qual nada! Tinha lá as suas idéias. Tanto que, numa dessas grandes comemorações domésticas, o pobre velho envenenou o barril de chope.

No entanto, como era obviamente impraticável — a não ser em novelas policiais — deitar veneno nas bebidas engarrafadas, apenas sobreviveram os inveterados bebedores de coca-cola.

— Mas como é possível — lamentava-se agora tardiamente o pobre velho —, como é possível passar o resto da vida com esses? Com gente assim? Porque a coca-cola não é verdadeiramente uma bebida — concluiu ele —, a coca-cola é um estado de espírito...

E, assim pensando, o sábio ancião se envenenou também.

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As maneirascomo se faz um gentlemancivilidade do Sr. João FélixRamalho OrtigãoAs Farpas, Tomo VIII - Junho 1871

A arte de regular as maneiras por meio de uma combinação feita entre a nossa organização e a nossa vontade é uma das mais importantes coisas que se devem conhecer. Há homens que, sem plausivelmente sabermos porquê, alcançam tudo quanto querem nas pretensões do Estado, nas transacções comerciais, nas atenções das salas. Emerson, o célebre escritor americano, observando que os indivíduos que mais frequentemente obtêm esses triunfos não são os mais inteligentes, nem os mais belos, nem os mais honrados, averigua com muita lógica que o sucesso das nossas aspirações na sociedade depende principalmente do nosso porte. Por tal razão, Emerson define as maneiras - talento de dominar.

No modo como nós nos vestimos, como falamos, como olhamos, como nos movemos, há efectivamente uma espécie de indefinido magnetismo a cuja influência não pode furtar-se quem se lhe sujeita.

Napoleão I aprendia em lições particulares com Talma o melhor modo de traçar o manto e de se sentar no trono.

Madame de Girardin, escrevendo na Presse as cartas do Vicomte de Launay, deu aos seus compatriotas as mais delicadas regras do maintien. Balzac deixou entre os seus trabalhos inéditos um importantíssimo capítulo intitulado A teoria do modo de andar.

Carlos Dickens, por ocasião de uma viagem aos Estados Unidos, achou útil explicar aos Americanos, entre outros preceitos de civilidade, que não era de bom gosto, quando se estão vendo estátuas, bater nos mármores com as bengalas.

Em Portugal todas essas coisas se aprendem nas escolas de instrução primária, e da disciplina formada do conjunto desses preceitos são os alunos devidamente examinados nos liceus nacionais.

O mestre das maneiras portuguesas não é Talma, nem Madame de Girardin, nem Balzac, nem Emerson, nem Carlos Dickens. É simplesmente o Sr. João Félix Pereira, médico, engenheiro civil e agrónomo.

Vejamos algumas dessas leis que as crianças decoram para os seus exames e pelas quais os adultos se governam nas suas correlações sociais.

Para que o sujeito possa a todos os respeitos considerar-se um gentleman, acha conveniente o Sr. João Félix:

1º Que ele faça a barba.

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2º Que se não ponha à janela em mangas de camisa nem com o pescoço descoberto.

3º Que quando escarrar o não faça sobre a cara de pessoa com quem fale (maxime se é uma pessoa de respeito!)

4º Que não tenha os olhos em contínuo movimento.

5º Que nos jantares de etiqueta não limpe os ouvidos com o palito com que houver de palitar os dentes.

6º Que não arrote à mesa.

O Sr. João Félix especifica ainda, com um escrúpulo pelo qual nunca lhe poderemos votar o suficiente reconhecimento, que diante de gente de respeito se não cortem as unhas. E assim é! Achando-nos na presença de pessoas que respeitemos, como, verbi gratia, Sua Majestade El-Rei, um príncipe estrangeiro, um embaixador ou uma rainha, o pormo-nos repentinamente a cortar as unhas - principalmente sendo estas as dos pés - poderia ser tido por acto menos palaciano.

Se o Sr. João Félix nos permitisse um leve apêndice aos seus conspícuos preceitos, diríamos que cortar os calos nos parece também operação que só em caso de muita necessidade nos deveremos permitir no meio de grandes assembleias.

Quando se transpire depois da valsa, mudar de camisa no meio de um salão, sem previamente haver obtido para esse fim a permissão da dona da casa, igualmente nos ocorre que poderia por alguns ser talvez arguido como acto de menos etiqueta...

Tratando do modo de proceder à mesa do jantar faz o Sr. João Félix Pereira duas observações muitíssimo sábias.

A primeira é que não tomemos pitada de rapé pelo meio das coisas que estivermos comendo.

Compreende-se todo o alcance desta advertência, reparando-se, por um só momento que seja, nos equívocos a que podia dar origem a concorrência do rapé com os acepipes, resultando por exemplo lançar-se a pitada sobre a salada e meter-se no nariz beterrabas!

A segunda advertência é que nunca metamos bocado nenhum na boca enquanto não tivermos engolido o bocado antecedente. Ninguém imagina sem o ter experimentado quanto importa ser cauteloso na matéria deste capítulo! Metendo na boca os bocados sem tomarmos a deliberação de os irmos sucessivamente engolindo, chegamos por espaço de tempos a uma indefinida aglomeração de bocados dentro da nossa boca. As pessoas que insistem, por tenaz grosseria, em não engolirem os bocados que vão metendo consecutivamente na boca caem, ao cabo de alguns dias dessa terrível incúria, na dura necessidade de depositarem os bocados antigos que tenham entre a maxila superior e a maxila inferior, a fim de receberem bocados novos. Quando isto haja de se fazer convém que se tenha em vista o que o Sr. João Félix discretamente consigna com respeito aos escarros, isto é: que tais esvaziamentos se façam o menos que ser possa sobre os penteados das pessoas que nos cerquem, e muito mais particularmente quando estas tenham tido a precaução de nos advertir de que tais depósitos feitos sobre as suas cabeças lhes inspirem ideias asquerosas. Neste caso, toda a insistência da nossa parte correria o perigo de ser taxada de menos cortês.

Depois do que fica exposto nada mais nos resta para aprender do modo como nos devemos apresentar na sociedade, a não ser o que o mesmo Sr. João Félix nos determina com relação ao nosso corpo, e isto importa muito que se saiba de cor. Vem a ser:

“Conservemos direito o nosso corpo, qualquer que seja a sua postura, em pé, sentado, de joelhos: não inclinemos a cabeça, já para um, já para outro lado: se nos for preciso fazê-lo, façamo-lo com toda a gravidade.”

Seria muito para desejar que no grémio das sociedades cultas se conhecesse que tal doutrina começava a frutificar, ouvindo-se de quando em quando as seguintes vozes:

“Meus senhores e minhas senhoras, permitam-me vossas senhorias ou vossas excelências (segundo o tratamento que lhes convier pelas disposições a tal respeito do capítulo VII do grande livro do Sr. João Félix Pereira sobre a civilidade) que eu lhes exponha um caso. Achando-me desde que entrei nesta sala com a cabeça voltada a N.Nº. - ponto A - e acabando de ser chamado a N - ponto B - pela ilustríssima e excelentíssima senhora D. Joaquina, espero que a sociedade não tome por desfeita o excesso aparentemente inexplicável em que vou romper inclinando levemente a cabeça do ponto A para o ponto B.”

E só depois de havida a competente vénia dos circunstantes, o suplicante se permita inclinar-se levemente a D. Joaquina.

É o que pedem a morigeração e a decência.

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— Fim —

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Ramalho Ortigão (1836-1915) nasceu no Porto, estudando Direito na Universidade de Coimbra. De regresso ao Porto, dedicou-se ao ensino, dando aulas de Francês no Colégio da Lapa. Estabeleceu-se em Lisboa ao ser nomeado oficial da secretaria da Academia de Ciências, começando a colaborar em vários jornais e revistas. Torna-se amigo de Eça de Queirós e inicia com ele a publicação de As Farpas. Fez várias viagens ao estrangeiro, viagens estas que influenciaram o seu modo de ver Portugal. Obras: Literatura de Hoje (1866), Em Paris (1868), Histórias Cor de Rosa (1870), As Farpas (1871-1884), Banhos de Caldas e Águas Minerais (1875), As Praias de Portugal (1876), Notas de Viagem (1878), A Holanda (1885), John Bull (1887), O Culto da Arte em Portugal (1896), El-Rei D. Carlos o Martirizado (1908), Últimas Farpas (1911-1914).

Fonte: Projecto Vercial

http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/

Frei JuniperoTexto compilado naCrónica da Ordem dos Frades Menores

E como o dito frei Junipero visitasse uma vez em Santa Maria de Porciúncula a um frade enfermo, vendo-o agravado de muitas enfermidades, derretendo-se todo com compaixão e fervendo com mui ardente caridade, perguntou se o poderia servir em alguma coisa e se queria comer alguma coisa. Ao qual, como respondesse o enfermo que comeria de boa mente um pé de porco, se o tivesse, logo frei Junipero, ouvindo-lhe aquilo, disse-lhe:

— Eu bem o haverei e o prepararei mui bem, segundo o teu desejo.

E tomando um cutelo, saiu fora e, indo pelos campos, achou multidão de porcos que pasciam em um campo e correu atrás deles e tomou um deles e, com o cutelo que levava, cortou-lhe um pé e deixou ali o porco decepado. E foi diligentemente preparar aquele pé e, bem cozido e preparado, deu-o ao enfermo, o qual o comeu com grande vontade não sem grande consolação e alegria de frei Junipero.

E entretanto o senhor do porco que ficava com o pé cortado, foi informado, por aquele que os guardava, como um frade menor lhe havia cortado um pé ao porco. O qual se foi logo ao lugar onde moravam os frades e deu vozes contra os frades, chamando-lhes ladrões, falsários e malandantes que lhe haviam matado maliciosamente um porco.

E ao clamor que fazia chegou ali São Francisco com os outros frades, desculpando-se humildemente, dizendo que não sabia parte de tal coisa, porém com tudo isto prometeu de lhe satisfazer segundo sua vontade. Aos quais aquele varão, desenfreado com a raiva, disse muitos insultos e, ameaçando-os, repetia muitas vezes a maldade que lhe haviam feito e não queria receber nenhumas desculpas nem prometimentos dos frades, mas, sem mansidão, dobrava em eles insultos e maldições e partiu-se dali escandalizado.

E São Francisco, como era cheio de sabedoria, maravilhando-se os outros frades daquele facto, imaginou se por ventura frei Junipero, com algum zelo sem prudência, houvesse cometido tão grande escândalo; e por isso fê-lo logo chamar e perguntou-lhe se havia cortado a algum porco o pé nos campos. O qual, alegrando-se com a memória da caridade que havia feito ao enfermo, respondeu logo e disse que ele o havia feito e contou-lhe alegremente o que fizera e disse como frei Rufino pedira pé de porco para comer e que, querendo Deus, achara ele um porco no campo, do qual tomara somente um pé e o cozera e que confortara com ele ao enfermo.

E, ouvindo isto, São Francisco ficou triste e, cheio de vergonha, disse:

— Ó frei Junipero, porque nos alevantaste tamanho escândalo? Pois aquele homem está zangado connosco e com razão e por ventura nos difamará por toda a cidade. E porém eu te mando por obediência que vás logo atrás daquele varão e, prostrado diante dele, te conheças por culpado e lhe prometas de lhe satisfazer e quanto puderes faças para que daqui em diante não haja causa de se queixar mais de nós.

E a estas palavras frei Junipero se maravilhou muito, principalmente de que tão caritativo feito perturbasse alguém, quando lhe parecia a ele que todas estas coisas temporais não são nada senão quando servem a caridade.

E respondeu:

— Padre, não temais, que eu o amansarei logo. Pois porque se há-de perturbar, se com a coisa, que era de Deus mais do que sua, foi cumprida tamanha obra de caridade?

E assim foi correndo àquele varão que estava zangado e contou-lhe todo o feito, como corta o pé ao porco com tanto fervor e com tanto deleite, como se lhe houvera feito algum grande serviço pelo qual lhe houvesse de dar, razoavelmente, galardão.

E àquele varão cresceu-lhe a ira e assim feito furioso disse grandes injúrias, chamando-lhe louco e mentiroso e mau ladrão e malandrim.

Page 33: MONTEIRO LOBATO O Colocador de Pronomes

E maravilhando-se destas palavras, frei Junipero, ainda que com tais injúrias se alegrasse (pensando que aquele homem não havia bem entendido as palavras, pois lhe parecia a ele que mais lhe devera dar motivo de gozo que de rancor), repetia-lhe aquelas mesmas palavras, abraçando-o, dizendo-lhe que lhe agradecesse aquele feito tão grande de caridade.

E aquele varão tão duro foi vencido pela simplicidade tão grande do dito frei Junipero e voltou-se contra si mesmo e disse-lhe sua culpa das injúrias que havia dito a ele e aos outros frades e, vendo como a causa do dano havia sido obra de caridade, reconheceu ser avarento e desagradecido dos benefícios de Deus. E finalmente matou o porco e, bem aparelhado, enviou aos frades para comerem como satisfação das injúrias que lhes havia dito.

E São Francisco, considerando a tal inocência e a tão grande humildade de frei Junipero e a paciência que tinha na adversidade, dizia aos companheiros e aos outros que estavam ali:

— Frades meus, frades meus, pela minha vontade, de tais Juniperos tivesse eu uma montanha.

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— Fim —

Texto compilado na Crónica da Ordem dos Frades Menores.Fonte: Projecto Vercial

Pleito entre frades e formigasPadre Manuel Bernardes

Foi o caso (conforme narrou um sacerdote da mesma religião e província) que naquela capitania as formigas, que são muitas, e mui grandes e daninhas, para estenderem o seu reino subterrâneo e ensancharem os seus celeiros, de tal sorte minaram a despensa dos frades, afastando a terra debaixo dos fundamentos, que ameaçava próxima ruína. E, acrescentando delito a delito, furtavam a farinha de pau, que ali estava guardada para quotidiano abasto da comunidade. Como as turmas do inimigo eram tão bastas e incansáveis a toda a hora do dia e da noite, vieram os religiosos a padecer falta e a buscar-lhe o remédio: e, não aproveitando alguns do que fizeram experiência, porque, enfim, a concórdia na multidão a torna insuperável, ultimamente, por instinto superior (ao que se pode crer), saiu um religioso com este arbítrio: que eles, revezando-se daquele espírito de humildade e simplicidade com que seu seráfico patriarca a todas as criaturas chamava irmãs (irmão sol, irmão lobo, irmã andorinha, etc.), pusessem demanda àquelas irmãs formigas, perante o tribunal da Divina Providência, e sinalassem procuradores, assim por parte deles, autores, como delas, rés; e o seu prelado fosse o juiz, que, em nome da Suprema Equidade, ouvisse o processado e determinasse a presente causa.

Agradou a traça, e isto assim disposto, deu o procurador dos padres piedosos libelo contra as formigas; contestada por parte delas a demanda, veio articulando que eles, autores, conformando-se com seu instituto mendicante, viviam de esmolas, ajuntando-as com grande trabalho seu pelas roças daquele país, e que as formigas, animal de espírito totalmente oposto ao Evangelho, e por isso aborrecido de seu padre S. Francisco, não faziam mais que roubá-los, e não somente procediam como ladrões formigueiros, senão que com manifesta violência os pretendiam expelir de casa, arruinando-a. E, portanto, dessem razão de si, ou, quando não, fossem todas mortas com algum ar pestilente ou afogadas com alguma inundação ou, pelo menos, exterminadas para sempre daquele distrito.

A isto veio contrariando o procurador daquele negro e miúdo povo, e alegou, por sua parte, fielmente:

«Em primeiro lugar: que elas, uma vez recebido o benefício da vida por seu Criador, tinham direito natural a conservá-la por aqueles meios que o mesmo Senhor lhes ensinara;

Item: que na praxe e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos homens os exemplos de virtudes que lhes mandara, a saber: de prudência, acautelando os futuros e guardando para o tempo da necessidade; de diligência, ajuntando nesta vida merecimentos para a vida eterna; de caridade ajudando umas às outras, quando a carga é maior que as forças; e também de religião e piedade, dando sepultura aos mortos da sua espécie...;

Item: que o trabalho que elas punham na sua obra era muito maior, respectivamente, que o deles, autores, em ajuntar as esmolas, porque a carga muitas vezes era maior que o corpo, e o ânimo que as forças;

Item: que, suposto que eles eram irmãos mais nobres e dignos, todavia diante de Deus também eram umas formigas, e que a vantagem do seu grau racional harto se descontava e batia com haverem ofendido ao Criador, não observando as regras da razão, como elas observavam as da natureza, pelo que se faziam indignos de que criatura alguma os servisse e acomodasse, pois maior infidelidade era neles defraudarem a glória de Deus por tantas vias, do que nelas furtarem sua farinha;

Item: que elas estavam de posse daquele sítio antes deles, autores, fundarem, e, portanto, não deviam ser dele esbulhadas, e da força que se lhes fizesse apelariam para a Coroa da regalia do Criador, que tanto fez os pequenos como os grandes e a cada espécie deputou seu anjo conservador. E, ultimamente, concluíram que defendessem eles a sua casa e farinha, pelos modos humanos que soubessem,

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porque isto lhes não tolhiam, porém que elas, sem embargo, haviam de continuar as suas diligências, pois do Senhor, e não deles, era a terra e quanto ela cria (Domini est terra et plenitudo eius).»

Sobre esta contrariedade houve réplicas e contra-réplicas, de sorte que o procurador dos autores se viu apertado, porque, uma vez deduzida a contenda ao simples foro de criaturas, e abstraindo razões contemplativas com espírito de humanidade, não estavam as formigas destituídas de direito, pelo que o juiz, vistos os autos, e pondo-se com ânimo sincero na equidade que lhe pareceu mais racionável, deu sentença que os frades fossem obrigados a sinalar dentro da sua cerca sítio competente para vivenda das formigas, e que elas, sob pena de excomunhão, mudassem logo habitação, visto que ambas as partes podiam ficar acomodadas sem mútuo prejuízo, maiormente porque eles, religiosos, tinham vindo ali, por obediência, a semear o grão evangélico e era digno o operário do seu sustento, e o das formigas podia consignar-se em outra parte, por meio da sua indústria, a menos custo.

Lançada esta sentença, foi outro religioso, de mandado do juiz, intimá-la em nome do Criador àquele povo, em voz sensível, nas bocas dos formigueiros.

Caso maravilhoso e que mostra como se agradou deste requerimento aquele Supremo Senhor de quem está escrito que brinca com as suas criaturas (Ludens in orbe terrarum!). Imediatamente saíram, a toda a pressa, milhares de milhares daqueles animalejos, que, formando longas e grossas fieiras, demandaram em direitura o sinalado campo, deixando as antigas moradas, e livres de sua molestíssima opressão aqueles santos religiosos, que renderam a Deus as graças por tão admirável manifestação de seu poder e providência!

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— Fim —

O Padre Manuel Bernardes (1644-1710) professou em 1674 na Congregação do Oratório de S. Filipe de Néri. Escreveu diversos tratados de espiritualidade e vários guias morais, como Exercícios Espirituais (1686), Luz e Calor (1696) e Pão Partido em Pequeninos (1696); dois volumes de Sermões e Práticas (1711) e a Nova Floresta ou Silva de Vários Apotegmas em cinco volumes publicados entre 1706 e 1728. Esta última obra é uma colecção de «ditos bons e sentenciosos de varões ilustres» que apresenta por ordem alfabética o comentário a um pecado ou virtude. O autor não chegou a ir além da letra J e da virtude «Justiça», pois falecera entretanto.

Fonte: Projecto Vercial

http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/

A Dama do Pé de CabraAlexandre Herculano

Trova primeira1Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem em tropelias de Satanás assenta aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim,

e contarei a história de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia.

E não me digam no fim: — não pode ser. Pois eu sei cá inventar coisas destas? Se a conto é porque a li num livro muito velho, quase tão velho como o nosso Portugal. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus cantares.

É uma tradição veneranda; e quem descrê das tradições, irá para onde o pague.

Juro-vos que, se me negais esta certíssima história, sois dez vezes mais descridos do que S. Tomé antes de ser grande santo. E não sei se eu estarei de ânimo de perdoar-vos, como Cristo lhe perdoou.

Silêncio profundíssimo porque vou principiar.

2D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no inverno, sóis de estivas no verão, noites e madrugadas, disso se ria

ele.

Pela manha cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste, esperando um porco montês, que, batido pelos caçadores, devia sair naquela assomada.

Eis senão quando começa a ouvir cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar.

Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dana, era a dama quem cantava.

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O porco fica desta vez livre e quite; porque D. Diogo Lopes não corre, voa para o penhasco.

“Quem sois vós, senhora tão gentil; quem sois, que logo me cativastes?”

“Sou de tão alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor de Biscaia.”

“Se já sabes quem eu seja, ofereço a minha mão, e com ela as minhas terras e vassalos.”

“Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes, que poucas são para seguires tuas montarias; para o desporto e folgança de bom cavaleiro que és. Guarda os teus vassalos, senhor de Biscaia, que poucos são eles para te baterem a caça.”

“Que dote, pois, gentil dama, vos posso eu oferecer digno de vós e de mim que se a vossa beleza é divina, eu sou em toda a Espanha o rico-homem mais abastado?”

“Rico-homem, rico-homem, o que eu te aceitara em arras coisa é de pouca valia; mas apesar disso, não creio que m´o concedas, porque é um legado de tua mãe.”

“E se eu te amasse mais que a minha mãe, porque não te cederia qualquer dos seus muitos legados?”

“Então se queres ver-me sempre ao pé de ti, não jures que farás o que dizes, mas dá-me disso a tua palavra.”

“A lá fé de cavaleiro, não darei uma; darei milhentas palavras.”

“Pois sabe que para eu ser tua é preciso esquecer-te de uma coisa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava.

“De que, de que, donzela? — acudiu o cavaleiro com os olhos flamejantes. — De nunca dar tréguas a mourisma, nem perdoar aos cães de Mafamede? Sou bom cristão.”

“Não é isso, D. Cavaleiro — interrompeu a donzela a rir. — O de que eu quero que te esqueças é do sinal da cruz: o que quero que me prometas é que nunca mais hás de persignar-te.”

“Isso agora é outra coisa” — respondeu D. Diogo, que nos folgares e devassidões perdera o caminho do céu. E se pôs a cismar. E cismando, dizia consigo: — “De que servem benzeduras? Matarei mais duzentos mouros e darei uma herdade a Santiago. Ela por ela. Um presente ao apóstolo e duzentas cabeças de cães de Mafamede valem bem um grosso pecado.”

E, erguendo os olhos para a dama, que sorria com ternura, exclamou: “Seja assim: está dito. Vá, com seiscentos diabos.”

E, levando a bela dama nos braços, cavalgou na mula em que viera montado.

Só quando à noite, em seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa dama, notou que tinha os pés forcados como os de cabra.

3Dirá agora alguém: — “Era por certo o demônio que entrou em casa de D. Diogo Lopes. O que lá não iria.” Pois sabei que não ia

nada.

Por anos a dama e o cavaleiro viveram em boa paz e união. Dois argumentos vivos havia disso: Inigo Guerra e Dona Sol, enlevo ambos de seu pai.

Um dia de tarde, D. Diogo voltou de grande montear; trazia um javali grande, muito grande. A mesa estava posta. Mandou conduzi-lo ao aposento onde comia, para se regalar de ver a excelente presa que havia feito.

Seu filho assentou-se ao pé dele: ao pé da mãe, Dona Sol; e começaram alegremente seu jantar.

“Boa montaria, D. Diogo — dizia sua mulher. — Foi uma boa e limpa caçada.”

“Pelas tripas de Judas! — respondeu o barão. “Que há bem cinco anos não colho urso ou porco montês que este valha!”

Depois, enchendo de vinho o seu pichel de prata, virou-o de gole à saúde de todos os ricos-homens fagueiros e monteadores.

E a comer e a beber durou até a noite o jantar.

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Ora deveis saber que o senhor de biscaia tinha um alão a quem muito queria, raivoso no travar das feras, manso com seu dono e até com os servos da casa.

A nobre mulher de D. Diogo tinha uma podenga preta como azeviche, esperta e ligeira que mais não havia dizer, e dela não menos prezada.

O alão estava gravemente assentado no chão defronte de D. Diogo Lopes, com as largas orelhas pendentes e os olhos semi-cerrados, como quem dormitava.

A podenga negra, essa corria pelo aposento viva e inquieta, pulando como um diabrete: o pelo liso e macio reluzia como um reflexo avermelhado.

O barão, depois da saúde urbi et orbi feita aos monteiros, esgotava um kirie comprido de saúdes particulares, e a cada nome, uma taça.

Estava como cumpria a um rico-homem ilustre, que nada mais tinha a fazer neste mundo, senão dormir, beber, comer e caçar.

E o alão cabeceava, como um abade velho em seu coro, e a podenga saltava.

O senhor de Biscaia pegou então um pedaço de osso com sua carne e medula e atirando-a ao alão gritou-lhe: “Silvano, toma lá tu, que és fragueiro: leve o diabo a podenga, que não sabe senão correr e retouçar.”

O cão abriu os olhos, rosnou, pôs a pata sobre o osso e, abrindo a boca, mostrou os dentes anavalhados. Era como um rir deslavado. Mas logo soltou um uivo e caiu, perneando meio-morto: a podenga, de um pulo, lhe saltara à garganta, e o alão agonizava.

“Pelas barbas de D. From, meu bisavô! — exclamou D. Diogo, pondo-se em pé, trêmulo de cólera e vinho. — A cadela maldita matou-me o melhor alão da matilha; mas juro que hei de escorraça-la.”

E virando com o pé o cão moribundo, mirava as largas feridas do nobre animal, que expirava.

“A lá fé que nunca tal vi. Virgem bendita! Aqui anda coisa de Belzebu!” E dizendo e fazendo, benzia-se e persignava-se.

“Ui!” gritou sua mulher como se a houvera queimado. O barão olhou para ela: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e os cabelos eriçados.

E ia-se alevantando, alevantando ao ar, com a pobre Dona Sol debaixo do braço esquerdo: o direito, estendia-o por cima da mesa para seu filho, D. Inigo.

E aquele braço crescia, alongando-se para o menino que, de medo, não ousava bulir nem falar.

E a mão da dama era preta e luzidia, como o pêlo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bem meio palmo e recurvado em garras.

“Jesus, santo nome de Deus!” bradou D. Diogo, a quem o terror dissipara as fumaças do vinho. E, travando de seu filho com a esquerda, fez no ar com a direita uma e outra vez, o sinal da cruz.

E sua mulher deu um grande gemido e largou o braço de Inigo, que já tinha seguro, e continuando a subir ao alto, saiu por um grande fresta, levando a filhinha que muito chorava.

Desde esse dia não houve saber mais nem da mãe nem da filha. A podenga negra, essa sumiu-se por tal arte, que ninguém no castelo lhe tornou a pôr a vista em cima.

D. Diogo Lopes viveu muito tempo triste, porque já não se atrevia a montear. Lembrou-se, porém, um dia de espairecer sua tristura e, em vez de ir à caça dos cerdos, ursos e zebras, sair à caça dos mouros.

Mandou, pois, alevantar o pendão, desenferrujar e polir a caldeira e provar seus arnazes. Entregou a Inigo Guerra, que já era mancebo e cavaleiro, o governo de seus castelos, e partiu com a lustrosa mesnada de homens d´armas para a hoste d´el Rei Ramiro, que ia em fossado contra a mourisma de Espanha.

Por muito tempo, não houve dele em Biscaia, nem novas, nem mensageiros.

Trova Segunda1Era um dia ao anoitecer. D. Inigo estava à mesa, mas não podia cear, que grandes desmaios lhe vinham ao coração. Um pagem muito

mimoso e privado que, em pé diante dele, esperava seu mandar, disse então para D. Inigo:

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“Senhor, porque não comeis?”

“Que hei de eu comer, Brearte, se meu senhor D. Diogo está cativo de mouros, segundo rezam as caras que ora dele são vindas?”

“Mas seu resgate não é a vossa mofina: dez mil peões e mil cavaleiros tendes na mesnada de Biscaia: vamos correr terras de mouros: serão os cativos resgate de vosso pai.”

“O perro d´el-Rei de Leão fez sua paz com os cães de Toledo e são eles que tem preado meu pai. Os condes do rei tredo e vil não deixariam passar a boa hoste de Biscaia.”

“Quereis, meu senhor, um conselho e não vos custará nem mealha?”

“Dize lá, Brearte.”

“Por que não ides à serra procurar vossa mãe? Segundo ouço contar, ela é grande fada.”

“Que dizes tu, Bearte? Sabes quem é minha mãe e que casta é de fada?”

“Grandes histórias tenho ouvido do que se passou certa noite neste castelo: éreis vós pequenino e eu ainda não era nada. Os porquês destas histórias, isso Deus é que o sabe.”

“ Pois direi eu agora. Chega-te para cá, Brearte.”

O pagem olhou de roda de si, quase sem o querer e chegou-se para seu amo: era a obediência e, ainda mais, certo arrepio de medo que o faziam chegar.

“Vês tu Brearte, aquela fresta entaipada? Foi por ali que minha mãe fugiu. Como e porque, aposto que já te hão contado?”

“Senhor, sim!! Levou vossa irmã consigo...”

“Responder só ao que pergunto! Sei isso. Agora cala-te.”

O pagem pôs os olhos no chão, de vergonha: que era humildoso e de boa raça.

2E o cavaleiro começou o seu narrar:

“Desde aquele dia maldito, meu pai pôs-se a cismas: e cismava e amesquinhava-se, perguntando a todos os monteiros velhos se, porventura, tinham lembrança de haverem no seu tempo encontrado nas brenhas alguns medos ou feiticeiras. Aqui foi um nunca acabar do historias do bruxas e almas penadas.

Havia muitos anos que meu senhor pai se não confessava: alguns havia, também, que estava viúvo sem ter enviuvado. Certo domingo pela manhã nasceu alegre o dia. Como se fora de páscoa; e meu senhor D. Diogo acordou carrancudo e triste, como costumava. Os sinos do mosteiro, lá em baixo no vale, tangiam tão lindamente que era um céu aberto. Ele pôs-se a ouvi-los e sentiu uma saudade que o fez chorar. “Irei ter com o abade — disse ele lá consigo — quero confessar-me. Quem sabe se esta tristura ainda é tentação de Satanás?” O abade era um velhinho santo, santo, que não o havia mais. Foi a ele que se confessou meu pai. Depois de dizer mea culpa, contou-lhe ponto por ponto a história do seu noivado.

“Filho — bradou o frade — fizeste maridança com uma alma penada!”

“Alma penada, não sei” tornou D. Diogo — mas era cousa do diabo.

“Era alma em pena: digo eu, filho — replicou o abade. — Sei a história dessa mulher das serras. Está escrita ha mais de cem anos na última folha de um santoral godo do nosso mosteiro. Desmaios que te vem ao coração pouco me espantam. Mais que ânsias e desmaios costumam roer lá por dentro os pobres excomungados.”

“Então, estou excomungado?”

“Dos pés até a cabeça; por dentro e por fora, que não há que dizer mais nada.”

E meu pai, a primeira vez na sua vida, chorava pelas barbas abaixo.

O bondoso abade amimou-o, como a uma criança: consolou-o, como a um mal-aventurado. Depois pôs-se a contar a história da dama das penhas, que é minha mãe. Deus me salve!

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E deu-lhe por penitência ir guerrear os perros sarracenos por tantos anos quantos vivera em pecado, matando tantos deles quantos dias nesses anos tinham corrido. Na conta não entravam as sextas-feiras, dia da paixão de Cristo, em que seria irreverência tosquiar a vil relé de agarenos, coisa neste mundo mui indecente e escusada.

Ora a história da formosa dama das serras, como estava na folha branca do santoral, rezava assim, segundo lembranças do abade.

3No tempo dos reis godos — bom tempo era esse — havia em Biscaia um conde, senhor de um castelo posto em montanha fragosa,

cercado pelas encostas e quebradas de larguíssimo soveral. No soveral havia todo o gênero de caça, e Argimiro o Negro (assim se chamava o rico-homem) gostava. como todos os nobres barões de Espanha, principalmente de três coisas boas segundo a carnalidade: da guerra, do vinho e das damas; mas ainda mais do que tudo isso gostava de montear.

Dama, possuía-a formosa, que era a linda condessa; vinho, não havia melhor adega que a sua; caça, era coisa que na selva não faltava.

Seu pai, que fôra caçador e fragueiro, quando estava para morrer, chamou-o e disse-lhe: — “Hás de me jurar uma coisa que não te custara nada.”

Argimiro jurou que faria o que seu pai e senhor lhe ordenasse.

“É que nunca mates fera em cama e com cria, seja urso, javali ou veado. Se assim o fizeres, Argimiro, nunca nas tuas selvas e faltará em que exercites o mais nobre mister de um fidalgo. Além disso, se tu souberas o que um dia me aconteceu... Escuta-me, que é um horrendo caso.”

O velho não pôde acabar; porque a morte lhe cravou neste momento as garras. Murmurou algumas palavras emperradas, revirou os olhos e feneceu. Deus seja com a sua alma!

Passaram depois anos: certo dia chegou ao castelo do moço conde um mensageiro d'el-rei Wamba. Chamava-o el-rei a Toledo para o acompanhar com sua mesnada contra o rebelde Paulo. Os outros nobres-homens das cercanias eram, como ele, chamados.

Antes, porém, de partirem, ajuntaram-se todos no castelo de Argimiro para fazerem uma grande montaria, com mais de cem alãos, sabujos e lebreus, cinqüenta monteiros e moços de besta sem conto. Era uma vistosa caçada.

Saíram do quarto d´alva: correram vales e montes, bateram bosques e matos. Era, contudo, meio dia e ainda não haviam alevantado porco, urso, zebra ou veado. Blasfemavam de sanha os cavaleiros, praguejavam e depenavam as barbas.

Argimiro que, por longa experiência, conhecia os sítios mais profundos da espessura, sentiu lá por dentro uma tentação do diabo.

“Os meus hóspedes, pensava ele, não partirão sem beberem alguns canjirões de vinho sobre uma ou duas peças de caça. Juro-o por alma de meu pai.

E, seguido de alguns monteiros, com suas trelas de cães, afastou-se da companhia e deu a andar, a andar, até que se lançou por um vale abaixo.

O vale era escuro e triste: corria por meio uma ribeira fria e mal-assombrada. As bordas da ribeira eram penhascosas e faziam muitas quebradas.

Argimiro chegou à primeira volta do rio: parou, pôs-se a olhar de roda e achou o que procurava. Abria-se uma caverna na encosta fragosa, que descia até a estreita senda da margem por onde o cavaleiro caminhava. Argimiro entrou na boca da cova e, a um aceno, entraram após ele monteiros, moços de besta, alãos, sabujos e lebreus, fazendo grande matinada.

Era o covil de um onagro: a fera deu um gemido e, deixando suas crias, estendeu-se no chão e abaixou a cabeça, como quem suplicava.

“A ela!” — gritou Argimiro; mas gritou voltando a cara.

A matilha saltou no pobre animal, que soltou outro gemido e caiu todo ensangüentado.

Uma voz soou então nos ouvidos do conde e dizia:

“Órfãos ficaram os cachorrinhos do onagro mas pelo onagro tu ficarás desonrado.” Quem ousa aqui falar agouros? — gritou o rico-homem, olhando iroso para os monteiros Todos guardavam silêncio; mas todos estavam pálidos.

Argimiro pensou um momento. depois, saindo da cova, murmurou: — Vá, com mil Satanases.

E, com alegres toques de buzina e latidos da matilha, fez conduzir ao castelo a preá que tinha preado.

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E, tomando o seu gerifalte prima em punho, ordenou aos monteiros fossem dizer aos nobres caçadores que dentro de duas horas voltassem, porque achariam em seu paço comida bem aparelhada.

Depois, seguido dos falcoeiros, começou a encaminhar-se para o solar, lançando nebris e falcões e ajuntando caça de volateria, que a havia por aqueles montes mui basta.

4Dobrava a campa da torre de menagem no castelo do conde Argimiro: dobrava pela linda condessa, que seu nobre marido havia

matado.

Andas cobertas de dó a levam a enterrar ao mosteiro vizinho: os frades vão atrás das andas cantando as orações dos finados; após os frades vai o rico-homem vestido de grossa estamenha cingido com uma corda, e rasgando pelas sarças e pedras os pés que levava descalços.

Por que matou ele sua mulher, e por que ia ele descalço? Eis o que, a esse respeito, refere a lenda escrita na folha branca do santoral.

5Dois anos duraram guerras d el-rei Wamba: foram guerras mui de contar. E por lá andou o rico-homem com seus bucelarios, que

assim se diziam então acostados e homens d´armas. Fez estrondosas façanhas e cavalarias: mas voltou coberto de cicatrizes, deixando por campos de batalha gasta e consumida a sua valente mesnada.

E, atravessando de Toledo para Biscaia, seguia-o apenas um velho escudeiro. Velho e cheio de cãs e rugas também ele era, não de anos, mas de penas e de trabalho.

Caminhava triste e feroz no aspecto; porque de seu castelo lhe eram vindas novas d'entristecer e raivar. E, cavalgando noite e dia por montes e por charnecas por bosques e por jardins, imaginava no modo como descobriria se eram falsas ou verdadeiras essas novas de mau pecado.

6No solar do conde Argimiro, um ano depois da a sua partida, ainda tudo dava mostras da mágoa e saudade da condessa: as salas

estavam forradas de negro: de negro eram os trajos dela: nos pátios interiores dos paços crescera a erva de modo que se podia ceifar: as reixas e as gelosias das janelas não se haviam tornado a abrir: descantes dos servos e servas, sons de psalterios e harpas tinham deixado de soar.

Mas ao cabo do segundo ano tudo aparecia mudado: as colgaduras eram de prata e matiz: brancos e vermelhos os trajos da bela condessa: pelas janelas do paço restrugia o ruído da música e dos saraus; o solar de Argimiro estava por dentro e por fora alindado.

Um antigo vilico do nobre conde fôra quem destas mudanças o avisara. Doíam-lhe tantos folgares e contentamentos. Doía-lhe a honra de seu senhor pelo que ele via e pelo que se murmurava.

Eis-aqui como se passara o caso:

7Longe do condado do ilustre barão Argimiro o Negro, para as bandas da Galiza, vivia um nobre gardingo — como quem dissesse

infanção — gentil-homem e mancebo, chamado Astrigildo Alvo.

Contava vinte o cinco anos; os sonhos das suas noites eram do formosas damas; eram de amores e deleites: mas, ao romper da manhã. todos eles se desfaziam, que, ao sair ao campo, não via senão pastoras tostadas do sol e das neves e as servas grosseiras do seu solar.

Destas estava ele farto. Mais de cinco tinha enganado com palavras: mais de dez comprado com ouro; mais de outras dez como nobre e senhor que era, brutalmente violado.

Com vinte e cinco anos, já no livro da justiça divina se lhe haviam escrito mais de vinte e cinco maldades.

Uma noite sonhou Astrigildo que corria serras e vales com a rapidez do vento, montado em onagro silvestre, e que, depois de correr muito chegava alta noite a um solar, onde pedia gasalho. E que formosa dama o recebia, e que em poucos instantes um do outro se enamorava. Acordou sobressaltado e, durante o dia inteiro, não pensou em outra coisa senão na formosa dama que vira naquele sonhar da madrugada. Três noites se repetia o sonho: Três dias o mancebo cismava encostado à varanda de um eirado. Na tarde de terceiro dia, olhava triste para as montanhas do norte, que via lá no horizonte. como nuvens pardacentas. O sol começava a descer no poente, e ainda ele estava embebido em melancólico cismar.

Por acaso, volveu então os olhos para o terreiro que lhe ficava por baixo: um onagro da floresta estava ali deitado como se fosse manso jumento; era inteiramente semelhante àquele com que havia sonhado.

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Sonhos da três noites a fio não mentem: Astrogildo desceu a pressa ao terreiro. Sem bulir pé nem mão o onagro deixou-se enfrear e selar; e, a Deus e à ventura, o mancebo cavalgou nele e deitou pela encosta abaixo. Cumpria-se tudo à risca: o onagro não corria, voava.

Mas o céu começou de toldar-se com o anoitecer: a escuridão cresceu e desfechou em vento, trovões, chuva e raios. O mancebo perdia a tramontana e o onagro dobrava a carreira e bufava violentamente. Parou, enfim a horas mortas. Sem saber como, Astrigildo achou-se junto das barreiras de um solar acastelado.

Tocou a sua buzina, que deu um som prolongado e trêmulo porque ele tremia da susto e com frio. Apenas cessou de tocar, a ponte levadiça desceu muitos escudeiros saíram a recebê-lo entre tochas e as salas dos paços iluminaram-se.

Era que também a condessa tinha por três noites sonhado:

8A clepsidra aponta a hora de sexta noturna e ainda dura o sarau no solar do conde de Biscaia; porque a nobre condessa e o gentil

Astrigildo assistem às danças e aos jogos dos libertos e servos que, para eles espairecerem, trabalham lá na sala d'armas. Mas, num aposento baixo do solar, um homem está em pé com um punhal na mão, olhar furibundo e o cabelo eriçado, parecendo escutar longínqua toada.

Outro homem está diante dele, dizendo-lhe:

— “Senhor, ainda não é tempo para punir o grande pecado. Quando eles se recolherem, aquela luz que vedes acolá há de apagar-se. Subi então, e achareis desimpedido o caminho secreto para a câmara, que é a mesma do vosso noivado.”

E o que falava saiu, e dali a pouco a luz apagou-se e o homem dos cabelos hirtos e do olhar esgazeado subiu por uma íngreme e tenebrosa escada.

9Quando pela manhã cedo o conde Argimiro, do seu balcão principal, ordenava que levassem o corpo da condessa a um mosteiro de

donas que ele fundara para ai ter sou momento, ele e os de sua casa, e dizia aos homens de armas que arrastassem o cadáver de Astrigildo e o despenhassem de um grande barrocal abaixo, viu um onagro silvestre deitado a um canto do pátio.

“Um onagro assim manso é coisa que nunca vi - disse ele ao vilico que estava ali ao pé. - Como veio aqui este onagro?”

O vilico ia a responder, quando se ouviu uma voz: dir-se-ia que era o ar que falava. Foi nele que veio Astrigildo. Será ele que o levará. Por ti ficaram órfãos os filhinhos do onagro, mas por via do onagro ficaste, oh conde, desonrado. Foste cru com as pobres feras: Deus acaba de vingá-las.”

“Misericórdia! bradou Argimiro, porque naquele momento se lembrou da maldita caçada. Neste comenos os homens do conde saíam com o cadáver sangrento do mancebo: o onagro, apenas o viu, saltou como um leão no meio da turba, que fez fugir, e travando do morto com os dentes, arrastou-o para fora do castelo, e, como se tivesse em si uma legião de demônios, foi precipitar-se com ele do barrocal abaixo.

Era por isso que o conde ia cingido de corda e descalço após os frades e a turba. Queria fazer penitência no mosteiro por haver quebrado o juramento que tinha feito a seu pai.

As almas da condessa e do gardingo caíram de chofre no inferno, por terem deixado a vida em adultério que é pecado mortal. Desde esse tempo as duas miseráveis almas têm aparecido a muita gente nos desvios da Biscaia: ela vestida de branco e vermelho, assentada nas penhas, cantando lindas toadas: ele retouçando ai perto, na figura do um onagro.

Tal foi a historia que o velho abade contou a meu pai e que ele me relatou a mim, antes de ir cumprir sua penitência nessa guerra de mouros que lhe foi tão fatal. Assim concluiu Inigo Guerra. Brearte, o pagem, sentia os cabelos arrepiarem-se-lhe. Por largo tempo ficou imóvel defronte de seu senhor: ambos em silêncio. O moço rico-homem não podia engolir bocado.

Tirou por fim da escarcela a carta de D. Diogo para a tornar a ler. As misérias e lástimas que o rico-homem ali recontava eram tais que D. Inigo sentiu o pranto gotejar-lhe abundante pelas faces abaixo.

Então ergueu-se da mesa para se ir deitar. Nem o barão nem o pagem pregaram olho toda a noite; este de medroso, aquele de desconsolado.

E nos ouvidos de Inigo Guerra soavam contínuo as palavras de Brearte: — “Por que não ides à serra procurar vossa mãe?” — Só por encantamento seria, de feito, possível tirar das unhas dos mouros o nobre senhor de Biscaia.

Rompeu, finalmente, a alvorada.

Trova terceira1

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Mensageiros após mensageiros, cartas sobre cartas são vindos de Toledo a Inigo Guerra. El rei de Leão resgatava todos os dias cavaleiros seus por cavaleiros mouros; mas não tinha wali ou kayd cativo que pudesse dar em troca por tão nobre senhor como o de Biscaia.

E muitos dos redimidos eram das bandas das serras, e estes, trazendo mensagens, contavam ainda mais lástimas do velho D. Diogo, do que, se é possível, essas de que rezavam as cartas.

“À porta do aguião, em Toledo — diziam eles, tem a mourisma um grande campo, todo muito bem apalancado. Aqui fazem grandes festas, guinolas e touros nos dias dos seus perros santos, segundo lá pregam e determinam.

“Gaiolas de bestas muitas há ali, coisa de ver e pasmar: os tigres e leões não as rompem; rompê-las mãos de homens, fôra pequice tão somente imaginá-lo.

“Numa dessas prisões, quase nu, com adovas de pés e mãos, está o ilustre rico homem, que já foi capitão de grandes e lustrosas mesnadas.

“Corteses costumam ser mouros com seus fidalgos cativos. Fazem esta perraria a D. Diogo porque já são passados três anos e não há ver seu resgate.”

E os peregrinos que vinham do cativeiro e relatavam tais coisas, bem ceiados e agasalhados no castelo, iam-se no outro dia com Deus, levando provida a escarcela e em boa e santa paz.

Quem não ficava em paz era D. Inigo: — “Por que não vais tu à serra?” — dizia-lhe uma voz ao ouvido — “Por que não ides procurar vossa mãe?” repetia-lhe o pagem Brearte.

Que lhe havia de fazer? Uma noite inteira levou em claro a pensar nisso. Pela manhã, a Deus e à sorte, hei-lo que, enfim, se resolve a tentar a aventura, bem que de seu mau grado.

Benzeu-se vinte vezes, para não ter lã de persignar-se. Rezou o Pater, a Ave e o Credo; porque não sabia se em breve essas orações seriam coisa de recordar-se.

E, seguido de um mastim, seu predileto, a pé e com uma ascuma na mão, foi-se através das brenhas, por uma vereda que dizia para os píncaros tristes e ermos onde era a tradição que a linda dama tinha aparecido a seu pai.

2Trinam os rouxinóis nos balseiros; murmuram ao longe as águas dos regatos; ramalha a folhagem brandamente com a viração da

manhã: vai uma linda madrugada.

E Inigo Guerra galga, manso e manso, os carris empinados, trepa de barrocal em barrocal e, apesar de seu muito esforço, sente bater-lhe o coração com ânsia desacostumada.

Muito havia que andava embrenhado: o sol ia alto e o dia calmoso: ao canto do rouxinol seguira o rechinar da cigarra.

E encontrou uma fonte que rebentava de rochedo negro e, saltando de aresta em aresta, vinha cair em almacega tosca, onde o sol parecia dançar no bulir das ondinhas que fazia o despenho da cascata.

D. Inigo assentou-se à sombra da rocha e, tirando a sua monteira, matou a sede que trazia e pôs-se a lavar o rosto e a cabeça do suor e pó, que não lhe faltava.

O mastim, depois de beber, deitou-se ao pé dele e, com a língua pendente, arquejava de cansado.

De repente, o cão pôs-se em pé e arremeteu, com um grande ladro.

D. Inigo volveu os olhos: um jumento silvestre pascia na orla da clareira junto de um frondoso carvalho.

“Tarik! — gritou o mancebo — Tarik! — Mas Tarik ia avante e não escutava.

“Ai, deixa-o correr, meu filho. Não é para o teu mastim levar a melhor deste onagro.”

Isto dizia uma voz que, lá em cima no alto da penha, começou a soar.

Olhou: uma linda mulher estava aí assentada e, com gesto amoroso e riso d´anjo para ele se inclinava.

“Minha mãe! Minha mãe! — bradou Inigo, levantando-se: e lá consigo dizia: — Vade retro! Santo Hermenegildo me valha.”

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“Filho, na boca palavras doces: no coração palavras danadas. Mas que importa, se és meu filho? Dize o que queres de mim e será tudo feito a tua vontade.”

O moço nem acertava falar com medo. Já a este tempo Tarik gemia uivando debaixo dos pés do onagro.

“Cativo está de mouros há anos meu pai D. Diogo — disse por fim titubeando. — Quisera me ensinasseis, senhora, o modo como hei de salvá-lo.”

“Seu mal, tão bem como tu, eu sei. Se pudesse, ter-lhe-ia acorrido, sem que viesses requerê-lo; mas o velho tirano do céu quer que ele pene tantos anos quantos viveu com a... com a que sandeus chamam Dama Pé-de-Cabra.”

“Não blasfemeis contra Deus, minha mãe, que é enorme culpa” — interrompeu o mancebo, cada vez mais horrorizado.

“Culpa?! Não há para mim inocência nem culpa.” — replicou a dama, rindo às gargalhadas.

Era um rir de dorminte, triste e medonho. Se o diabo ri, como aquele deve ser o riso.

“Inigo! Prosseguiu ela — falta um ano para cumprir-se o cativeiro do nobre senhor de Biscaia. Um ano passa depressa: mais depressa eu farei passar. Vês tu aquele valente onagro? Quando uma noite acordando, o achares ao pé de ti, manso como cordeiro, cavalga nele sem susto, que te levará a Toledo onde livrarás teu pai. — E bradando acrescentou: — Estás por isto, Pardalo?”

O onagro fitou as orelhas e, em sinal de aprovação, começou a azurrar.

Depois a dama pôs-se a cantar uma cantiga de bruxas, acompanhando-se de psalteiro de que tirava muitas estranhas toadas:

Pelo cabo da vassoura,Pela corda da polé,Pela víbora que vê,Pela Sura e pela Toura;

Pela vara do condão,Pelo pano da peneira,Pela velha feiticeira,Do finado pela mão

(...)

Que ele durma um ano inteiro,Como em sono de uma hora,Junto à fonte que ali chora,Sobre a relva deste outeiro.Enquanto a dama cantava, o mancebo sentia um quebrantamento dos membros que crescia cada vez mais e que o obrigou a assentar-

se.

E logo ouviu-se um ruído abafado como de trovões e de ventanias engolfando-se em covoadas: depois o céu começou a toldar-se e cada vez era mais cris, até que, enfim, apenas uma luz de crepúsculo o alumiava.

E a mansa almacega refervia, e os penedos rachavam, e as árvores torciam-se, e os ares sibilavam.

E das bolhas da água da fonte, e das fendas dos rochedos, e d´entre as ramas dos robles, e davastidão do ar via-se descer, subir, romper, saltar... o que? Coisa muito espantável. Eram mil e mil braços sem corpos, negros como carvão, tendo nos cotos uma asa, e na mão uma espécie de facho.

Como a palha que o tufão alevanta na eira aquela multidão de candeias cruzava-se. revolvia-se unia-se, separava-se, remoinhava. mas sempre com certa cadência, como que dançando a compasso.

D. Inigo andava a cabeça à roda; as luzes pareciam azuis, verdes e vermelhas: mas corria-lhe pelos membros uma languidez tão suave que não teve ânimo para fazer o sinal da cruz e afugentar aquele bando de satanases.

E sentia-se esvaecer e pouco a pouco, adormecia e dali a pouco, roncava.

Entretanto, no castelo tinham dado pela sua falta. Esperaram-no ate a noite: esperaram-no uma semana, um mês, um ano, e não o viam voltar. O pobre Brearte correu por muito tempo a sorra; mas o sítio onde o cavaleiro jazia, isso é que não havia lã chegar.

3

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Inigo acordou alta noite: tinha dormido algumas horas: ao menos ele assim o cria Olhou para o céu viu estrelas: apalpou ao redor, achou terra, escutou ouviu ramalhar as árvores.

Pouco a pouco e que se foi recordando do que passara com sua mal-aventurada mãe; porque, a princípio não se lembrava de nada.

Pareceu-lhe então ouvir respirar ali perto: ...firmou a vista: era o onagro Pardalo. Já agora meio enfeitiçado estou eu — pensou ele: — corramos o resto da aventura. a ver se posso salvar meu pai.

E pondo-se em pé. encaminhou-se para o valente animal, que ia estava enfreado e selado: cujos eram os arreios, isso sabia-o o diabo. Hesitou, todavia. um momento: tinha seus escrúpulos - a boas horas vinham eles - de cavalgar naquele corredor infernal.

Então ouviu nos ares uma voz vibrada, que cantava muito entoado. Era a voz da terrível Dama-Pé-de-Cabra:

Cavalga, meu cavaleiroalentado corredor;Vai salvar o bom senhor:Vai quebrar seu cativeiro.Pardalo, não o comerásNem cevada nem aveiaNão terás jantar nem ceia,Rijo e leve voltarás.Nem em açoute, nem esporaRequer ele. oh cavaleiroCorre corre bem ligeiro,Noite e dia a toda a hora.Freio ou sela não lhe tires,Não lhe fales. não o ferres.Na carreira não te aterres,Para traz nunca te vires.Upa! ' firma! — avante, avante!Breve, breve, a bom correrUm minuto não perderBem que o galo ainda não cante.Vá! — gritou Inigo Guerra, com uma espécie de frenesi que nele produzira aquele cantar estranho e dum pulo cavalgou no quedo

onagro. Mas apenas se firmou na sela, pst! — hei-lo que parte

4Posto que em paz com os cristãos. Os mouros de Toledo têm pelas torres, cubelos e adarves seus atalaias e vigias, e nos montes que

dizem para a fronteira de Leão seus fachos e almenaras.

Mas se o rei leonês soubesse como descuidada jaz Toledo; como ao anoitecer, se deixam dormir vigias, só deixam de acender fachos, quebraria seus juramentos e faria contra aquelas partes um repentino fossado.

Salvo ter de ir depois ao seu confessor dizer Deo, e peccavi; porque o quebrar o juramento, ainda que seja a cães descridos dizem ser feio pecado.

Era a hora do lusco-fusco: ao sol posto os de Toledo, mirando para a banda do norte, viram, lá muito ao longe, vir correndo uma nuvem negra, ondeando e fazendo voltas no céu como a estrada as fazia na terra por entre os montes: dir-se-ia que vinha embriagada.

Era primeiro um pontinho: depois crescera e crescera: quando anoiteceu, estava já perto e cobria um grande espaço.

O almoaden, subindo, à torre da mesquita, chamava os crentes de Mafamede para a oração da tarde.

Mas com a sua voz esganiçada misturou-se o estrondear dos trovões: era como um tiple e um baixo.

E passou um tafão de vento, que, embrenhando-se e remoinhando nas barbas longas e brancas do almoaden, lhe fustigou com elas a cara.

Começou então a cair uma corda de chuva. que nem moços nem velhos se lembravam de ter visto coisa semelhante em nenhuma parte.

Aqui viríeis os esculcas a aninharem-se nas guaritas das torres; os roldas e sobre-roldas a fugirem pelos adarves: os facheiros a sumirem-se debaixo das almenaras, os hadjis a acolherem-se às mesquitas molhados até os ossos; as velhas, que tinham saído ao vozear do almoaden, levadas pelas torrentes das ruas tortuosas e estreitas, bradando por Mafoma e por Alá. E a água caindo cada vez mais!

Dois únicos movimentos fazem então os moradores de Toledo: uns fogem, outros agacham-se. E a água caindo cada vez mais!

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O pavor quebra todos os ânimos: os cacizes esconjuram a procela: os faquires penitentes gritam que se acaba o mundo. e que lhes deixe os seus haveres aquele que quiser salvar-se. E a água caindo cada vez mais !

A salvação de Toledo foi não se terem fechado suas portas: se assim não sucedesse, dentro do recinto dos muros morria toda a mourisma afogada.

5Na prisão estava D. Diogo encostado as grades de ferro. O pobre velho entretinha-se a ouvir aquele medonho chover; porque a noite

era comprida, e ele não tinha que fazer mais nada.

Mas, como terreiro ante a sua gaiola de feras era rodeado de muros, a chuva não podia escoar-se toda. e vinha crescendo de modo que já ele sentia os pés molhados..

E também começou a ter medo de morrer, apesar de sua miséria. Bem sabia D. Diogo que a morte e a maior delas todas; que não era o senhor de Biscaia ateu, filósofo nem parvo.

Mas lá divisa um vulto alvacento que saltou por cirna do palanque, e sente ao mesmo tempo no meio do terreiro — plash!

E ouviu uma voz que dizia — “Nobre senhor. Diogo, onde a que vós vos achais!!!”

“Que vejo e ouço?! — exclamou o velho — Um trajo que não alveja não é trajo de ismaelita; uma voz que não o fala algaravia não e de infiel: um salto de tal altura não e de cavaleiro do mundo. Por vossa fé dizei-me, sois anjo ou sois Santiago.”

“Meu pai, meu pai! — acudiu o cavaleiro — já não conheceis a fala de Inigo ? Sou eu que venho salvar-vos.”

E D. Inigo descavalgou e, travando das grossas reixas, tentava alui-las: a água dava-lhe já pelos artelhos, e ele não fazia nada.

Cheio de aflição, o mancebo quis invocar o nome de Jesus: mas lembrou-se de como ali viera, e o bento nome expirou-lhe nos lábios. Todavia, Pardalo pareceu adivinhar o seu íntimo pensamento: porque soltou um gemido agudo e pronto, como se lhe houvessem tocado com um ferro em brasa.

E, empurrando com a cabeça D. Inigo, voltou a anca para a grade.

Pan! — foi o som que se ouviu. Com um só coice, a reixa estava no chão, e as ombreiras de pedra tinham voado em mil rachas. Quer m'o creiam, quer não, di-lo a história: eu com isto não perco nem ganho.

D. Diogo, esse ficou-o crendo: porque uma lasca de pedra bateu-lhe nos dois últimos dentes que tinha e meteu-lhos pela goela abaixo. Por isso ele, com a dor, não podia dizer palavra. Seu filho fê-lo cavalgar ante si, e, cavalgando após ele, bradou — “Meu pai, estais salvo!”

E Pardalo de um pulo galgou de novo o palanque Pois tinha bons quinze palmos. Pela manhã não havia sinal de chuva; o ar estava limpo e sereno, o quando os mouros foram ver o que sucedera a D. Diogo Lopes não lhe acharam sequer o rasto.

6Inigo e seu pai, o velho senhor de Biscaia, passam as portas de Toledo com a rapidez da frecha: num abrir e fechar d'olhos ficam-lhes

para traz muros, torres, barbacãs e atalaias. A bátega vai diminuindo: rasgam-se as nuvens, e vêem-se já reluzir algumas estrelas, que parecem outros tantos olhos com que o céu espreita através do negrume o que se passa cá em baixo.

A estrada, pelas descidas e subidas dos recostos, converteu-se em leito de torrente, nos plair os converteu-se em lago. Mas, quer pelos lagos quer pelas torrentes, o valente onagro rompia avante, bufando como um danado.

Não subiram bem um monte, já descem pelo outro recosto abaixo; ainda bem não chegaram a uma clareira, já sentem em profunda floresta gotejarem-lhes em cima os ramos agitados das árvores.

Pouco mais é de meia-noite, e os topos nevados do Vindio recortam o chão estrelado do céu já limpo, semelhantes aos dentes de uma serra gigante capaz de dividir cérceo o hemisfério austral do hemisfério boreal. E Pardalo investe, sempre em galope desfeito. com as montanhas disformes. E desce aos vales temerosos, e cada vez mais ligeiro, como o seu nome o indica, parece menos quadrúpede que pássaro.

Mas que ruído e esse que sobreleva ao do vento:. Que e isso que, lá ao longe, ora alveja ora reluz nas trevas, como uma alcatéia de lobos envoltos em sudários brancos, com os olhos só descobertos, e despregando em fio pelo fundo do vale abaixo ?

É um rio caudal e furioso, com o seu manto de escuma, e com as escamas angulosas de seu dorso eriçado, onde batem e chispam os raios das estrelas em mil reflexos quebrados.

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Negreja sobre o rio uma ponte, ao meio desta um vulto esguio — “Será um marco, uma estátua? — pensaram os cavaleiros. Pinheiro não pode ser: não consta que em pontes nasçam.”

Pardalo ria-se de rios: pontes, fazia tanto cabedal delas como de um retraço de palha. Todavia, bem que pudesse de um pulo salvar vinte ribeiras como aquela, foi-se direito à ponte: porque não era animal que fizesse áfricas escusadas. Semelhante a relâmpago, se arrojou o onagro aquele passo estreito. Mas, tá!... Ei-lo que de repente pára. E tremia como varas verdes, e arquejava com violência: os dois cavaleiros olharam.

O vulto esguio era um cruzeiro de pedra alevantado a meia ponte: por isso Pardalo emperrava. Então, d´entre uns altos choupos, que da margem d`além se meneavam, um pouco mais abaixo daquele sítio, ouviu-se uma voz fadigosa e trêmula que cantava:

“Para traz, para trás, a galgar.Já!De redor, de redor vem passarCá!Que não ha nada aqui que te impeça.Buz,Nem palavra, vós dois!!Fugi dessa Cruz !”Santo Nome da Cristo! — exclamou D. Diogo, benzendo-se ao escutar aquela voz que conhecia, mas que, depois de tantos anos, não

esperava ali ouvir porque seu filho não lhe dissera que meio achara para o salvar.

Apenas o grito do velho soou, assim ele como D. Inigo foram bater contra o poial do cruzeiro onde ficaram de bruços envoltos em lodo. O onagro ao sacudi-los de si, soltara um rugido de besta-fera. Sentiram então um cheiro intolerável de enxofre e de carvão de pedra inglês, que logo se percebia ser cousa de Satanás.

E ouviram como um trovão subterrâneo; e a ponte balançava, como se as entranhas da terra se despedaçassem.

Apesar do seu grande terror, e de chamar pela Virgem Santíssima, D. Inigo abriu um cantinho do olho para ver o que se passava.

Nós os homens costumamos dizer que as mulheres são curiosas. Nós e que o somos. Mentimos como uns desalmados.

Que veria o cavaleiro? Um fojo aberto, bem próximo dele sobre a ponte, e que depois rompia pela água.

E depois pelo leito do rio: e depois pela terra dentro, dentro; e depois pelo teto do inferno, que outra coisa não podia ser um fogo muito vermelho que reverberava daquela profundidade. Tanto era assim, que ainda lá viu passar de relance um demônio com um desconforme espeto nas mãos em que levava um judeu empalado.

E Pardalo descia remoinhando por esse boqueirão como uma pena caindo em dia sereno do alto do uma torre abaixo.

Aquela vista fez perder os sentidos a D. Inigo que indo também a chamar por Jesus achou que não podia proferir este nome sagrado. De terror, tanto o velho como o moço ficaram ali em desmaio. Quando tornaram a si, com o romper do sol claro, conheceram o sítio em que se achavam. Era a ponte próxima á aldeia de Nusturio, no alto da qual campeava o castelo construído por D. From o saxônio, avoengo de D. Diogo Lopes e primeiro senhor de Biscaia.

Nenhum vestígio restava do que ali se passara; os dois moídos e cheios de lodo o pisaduras, foram-se arrastando como puderam até encontrar alguns vilãos a quem se deram a conhecer, e que os levaram a casa.

Festas que em Nusturio se fizeram por sua vinda, coisa é que não vos direi; porque não tarda a hora de cear, rezar e deitar.

7D. Diogo pouco tempo viveu: todos os dias ouvia missa; todas as semanas se confessava. D. Inigo, porém, nunca mais entrou na

igreja, nunca mais rezou e não fazia senão ir a serra caçar.

Quando tinha de partir para as guerras de Leão, viam-no subir a montanha armado de todas as peças e voltar de lá montado num agigantado onagro.

E o seu nome retumbou em toda a Espanha, porque não houve batalha em que entrasse que se perdesse, e nunca em nenhum encontro foi ferido nem derrubado.

Diziam à boca pequena em Nusturio que o ilustre barão tinha pacto com Belzebu. Olhem que era grande milagre!

Meio precito era ele por sua mãe; não tinha que vender senão a outra metade da alma.

Por oitenta por cento do lucro no recibo de um egresso, a dá aí inteira ao demo qualquer onzeiro, e crê ter feito uma limpa veniaga.

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Fosse como fosse, Inigo Guerra morreu velho: o que a história não conta é o que então se passou no castelo. Como não quero improvisar mentiras, por isso não direi mais nada.

Mas a misericórdia de Deus é grande. A cautela rezem por ele um Pater e uma Ave. Se não lhe aproveitar, seja por mim. Amém.

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— Fim —

Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo (1810-1877) nasceu em Lisboa. Devido ao seu envolvimento na «Revolta do 4 de Infantaria», é obrigado a emigrar para Inglaterra. Lê Walter Scott. Inicia a sua colaboração no Repositório Literário. Integra-se no exército liberal de D. Pedro IV, desembarca no Mindelo e participa no cerco do Porto. Ajuda a organizar a Biblioteca Pública do Porto. Em 1839 é nomeado director das bibliotecas reais das Necessidades e da Ajuda. Entretanto vai publicando algumas obras: A Harpa do Crente (1837), Lendas e Narrativas (2 volumes, 1839-1844), Eurico, o Presbítero (1844), o primeiro volume da História de Portugal (1846), O Monge de Cister (1848), etc. As suas obras são de cunho romântico e vão desde a poesia ao drama e ao romance. Foi, além de um dos mais importantes escritores portugueses do século XIX, o renovador do estudo da história de Portugal.

Fonte: Projecto Vercial

http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/

A célebre rã saltadora do condado de CalaverasMark Twain (Samuel Langhorne Clemens)

Atendendo ao pedido de um amigo, que me escrevera de Leste, fui visitar Simão Wheeler, bom homem, sem outro defeito que uma grande loquacidade. Ia pedir-lhe notícias de um tal Leônidas W. Smiley, amigo de meu amigo, como este me recomendara. Cumprida a missão, venho relatar aqui o resultado da visita. Tenho uma vaga desconfiança de que Leônidas W. Smiley não passa de um mito e de que meu amigo não o conheceu senão em pensamento. Penso que ele tenha feito apenas conjeturas, pois falando ao velho Simão Wheeler, este naturalmente se lembraria do infame Jim Smiley, aborrecendo-me com alguma incrível reminiscência dele, não somente longa e fastidiosa, como também inútil para mim. Se foi essa a intenção, não há dúvida de que foi bem sucedido.

Encontrei Simão Wheeler dormindo confortavelmente, junto ao fogão da sala comum, numa velha e arruinada taverna do antigo campo mineiro do Anjo. Observei que ele era gordo e calvo, possuindo uma expressão de urbanidade insinuante e de simplicidade tranqüila na fisionomia. Levantou-se e me deu os bons dias. Disse-lhe então que um dos meus amigos me encarregara de lhe fazer algumas perguntas acerca de um querido companheiro de infância chamado Leônidas W. Smiley — o Reverendo Leônidas W. Smiley, jovem ministro evangélico que, segundo ele ouvira dizer, residira durante algum tempo no campo do Anjo. Acrescentei que se Mr. Wheeler me pudesse dizer alguma coisa sobre ele, os meus agradecimentos e os do meu amigo seriam eternos.

Simão Wheeler colocou-me de costas a um canto da sala e ali me bloqueou com uma cadeira; fez-me então sentar e desenrolou a monótona história que se vai ouvir. Simão Wheeler não sorriu nem se alterou uma única vez; manteve, até o fim, o mesmo tom de voz manso e fluente com que iniciou a narrativa. No entanto, através do interminável raconto, transparecia a seriedade com que ele encarava o assunto. Pude convencer-me de que longe de ver qualquer coisa de ridículo na sua história, ele a considerava como realmente importante, e admirava os seus dois heróis como homens geniais, sobretudo quanto à delicadeza de maneiras. Para mim, o espetáculo de um homem deslizando tão serenamente em meio a tão extravagante enredo, sem sorrir uma vez sequer, era perfeitamente absurdo. Como já disse, pedi-lhe que me informasse o que sabia a respeito do Reverendo Leônidas W. Smiley. Deixei-o falar, sem interrompê-lo uma única vez:

Havia aqui um indivíduo conhecido pelo nome de Jim Smiley, no inverno de 1849, ou talvez na primavera de 50, não posso recordar exatamente, pois o que me faz crer numa ou noutra data é a lembrança de que o grande canal ainda não estava concluído quando ele apareceu pela primeira vez. Mas, em 49 ou 50, o fato é que ele era o homem mais notável que se pode imaginar. A propósito de qualquer coisa, estava sempre disposto a fazer uma aposta. Era a sua mania. Se não podia levar o adversário para o lado contrário, mudava de opinião. O que ele queria era apostar. Tinha uma sorte extraordinária: ganhava sempre. Não se podia falar no objetivo mais isolado sem que o tal camarada logo sugerisse uma apostazinha, pró ou contra. Se se tratava de uma corrida de cavalos o nosso homem enriquecia ou ficava a nenhum. Se era luta de cães, apostava; se uma briga de gatos, ou de galos, apostava; se estavam dois pássaros pousados numa árvore, queria logo apostar qual dos dois voaria primeiro; se havia reunião no campo era certo apresentar-se a apostar pelo Cura Walker, que ele afirmava ser o melhor pregador da redondeza. Se visse uma barata encaminhar-se para qualquer parte, queria logo apostar para saber quanto tempo ela levaria para chegar ao ponto do seu destino, e se pegassem na sua palavra iria atrás da barata até o México, sem pensar na distância ou no tempo que iria perder.

Ainda vivem inúmeras pessoas que o conheceram e que lhe poderão contar muitos casos sobre ele. O fato é que ninguém jamais notou a mínima diferença no seu estado de ânimo: estava sempre pronto a fazer uma aposta. Uma vez a mulher do Cura Walker esteve muito doente e parecia que não se salvaria. Certa manhã este veio ao campo e Smiley perguntou-lhe por ela. Respondeu-lhe o cura que ela estava consideravelmente melhor — graças à infinita misericórdia do Senhor — e que se sentia já tão forte que, com o favor da

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Providência, em breve estaria completamente restabelecida. Smiley, sem pensar no que dizia, retrucou-lhe: “Aposto o que quiser como não vai melhorar!”

Este mesmo Smiley possuía uma égua que os rapazes — por brincadeira, está claro chamavam-na “Lerdona”. A verdade é que ele ganhava seus bons cobres com ela, apesar da sua lerdice e das suas doenças, pois estava sempre com asma, disenteria, tísica ou qualquer outra coisa parecida. Nas corridas costumavam dar-lhe cem, duzentos ou trezentos metros de vantagem e assim mesmo passavam-lhe adiante sem dificuldade. Mas no fim da carreira ela sempre se excitava, enfurecendo-se, e o resultado é que chegava — à custa de coices, corcoveios, de muita poeira levantada e muitos rinchos e roncos — à meta quase sempre em primeiro lugar e pela diferença exatamente de uma cabeça.

Smiley possuía, também, um pequeno “bull-dog” tão insignificante que ao vê-lo não se podia imaginar valesse coisa alguma. Chegava mesmo a parecer um roubo apostar contra ele. Mas como era natural, dado o seu aspecto tão fraco, não faltavam apostadores. Bastava, porém, haver dinheiro em lance para que o cão se tornasse outro. O queixo alongava-se-lhe como o castelo de proa de um vapor, os dentes brilhavam, ferozes e unidos como as muralhas de uma fortaleza. Qualquer cão podia agarrá-lo, e mordê-lo à vontade, girando-o para todos os lados, até pô-lo em fuga. Andrew Jackson — assim se chamava o “bull-dog” — mantinha-se firme, sem denotar surpresa alguma, até as apostas se dobrassem ou multiplicassem. Quando já não havia mais dinheiro para ser jogado, ele, num salto imprevisto, agarrava o adversário pela junta da pata direita e, fincando-lhe os dentes, suspendia-o como que por brincadeira, assim permanecendo, se fosse preciso, um ano inteiro. Smiley ganhava sempre com ele. Um dia, porém, trouxeram um cão que não possuía a pata direita. Quando as coisas estavam no ponto desejado e em apostas todo o dinheiro que havia, Andrew Jackson atirou-se ao ponto predileto, mas viu, num relance, que fora logrado. Parou surpreendido e desorientado, sem fazer o menor esforço para vencer. Dirigiu a Smiley um olhar cheio de lástima, como que para lhe dizer que o seu coração estava partido e que o culpado era ele, por ter colocado à sua frente um adversário sem pata direita. Soltou, depois, um longo e angustiado gemido e, estendendo-se no chão, ali soltou o último suspiro. Era um excelente cachorro o tal Andrew Jackson. Prometia vir a ter um grande nome se vivesse, possuía estofo para tanto. Era genial, não há dúvida; as circunstâncias é que não o favoreceram. Concordareis comigo que se requer grande talento para lutar da maneira como ele fazia. Ainda fico triste quando me lembro do seu último combate e do modo como ele terminou. Continuemos, porém.

O tal Smiley possuía galos de briga, gatos bravos e tudo o mais que se pode imaginar no gênero. Ninguém podia permanecer quieto perto dele, pois não era possível apresentar-lhe nenhum objeto de aposta que ele não tivesse logo outro para opor.

Um dia Smiley apanhou uma rã e levando-a para casa nos disse que ia domesticá-la. Durante três meses não fez outra coisa senão ensiná-la a saltar. Dava-lhe uma pancadinha atrás e logo em seguida via-se a rã dar uma ou duas voltas no ar, segundo o impulso recebido, indo cair adiante, sobre as patas, como um gato. Exercitou-a na arte de apanhar moscas a fez desse exercício uma prática tão constante que as moscas, por mais longe que passassem, eram logo abocanhadas. Smiley costumava dizer que às rãs faltava somente educação e que, uma vez educadas, seria possível fazer com elas o que bem quiséssemos. Não uma, mas inúmeras vezes vi Daniel Webster — era o nome da rã — exibir as suas habilidades. Smiley dizia-lhe:

— Moscas, Daniel, moscas!

Num abrir e fechar de olhos Daniel dava um pulo, apanhava a mosca, e punha-se a coçar a cabeça com uma das pernas traseiras, como se não tivesse a menor idéia de ter realizado uma proeza superior à de qualquer outra rã. Não há memória de se ter visto rã tão modesta e simples, levando-se em conta, está claro, os extraordinários dotes de que ela era dotada. Quando se tratava de avançar em terreno plano, dava pulos de que nenhum outro animal da sua espécie seria capaz. O salto para a frente constituía o seu forte. Neste caso Smiley apostava nela todo o dinheiro que possuía no momento. Tinha um monstruoso orgulho da sua rã, e nada mais razoável do que isso, porque pessoas que tinham viajado e visto inúmeras coisas, ao chegarem ali, ficavam boquiabertas.

Smiley guardava sua rã numa gaiola e freqüentemente a levava à cidade para apostas.

Um dia, um indivíduo — estranho ao lugar — vendo-o com a gaiola, perguntou-lhe:

— Que diabo levas aí?

Smiley responde-lhe, com grande indiferença:

— Isto podia ser um papagaio ou um canário, mas não é; é simplesmente uma rã.

O outro pegou na gaiola, olhando-a por todos os lados atentamente e depois lhe disse:

— É verdade! E para que serve esse animal?

— Para que serve? Para muitas coisas. Pode bater, no salto, toda e qualquer rã do condado de Calaveras.

O outro torna a pegar na gaiola, examina-a com todo o cuidado e, restituindo-a ao dono, exclama com ar decidido:

— Já vi! E não creio que esta rã seja melhor ou pior de que qualquer outra.

Page 48: MONTEIRO LOBATO O Colocador de Pronomes

— É possível — respondeu Smiley. — Talvez o senhor entenda muito do assunto, ou talvez não entenda nada. Tenho, porém, minha opinião e aposto quarenta dólares em como esta rã será capaz de bater, no salto, qualquer outra rã do condado de Calaveras.

O outro esteve a meditar um instante e depois disse com ar de tristeza:

— Pois bem: sou estrangeiro e não trago comigo nenhuma rã. Mas se tivesse uma, aceitaria a aposta.

— Tudo se arranja, tudo se arranja, respondeu Smiley. Se quiser segurar a gaiola por um instante, irei buscar-lhe uma rã.

O estrangeiro toma a gaiola, coloca seus quarenta dólares sobre os de Smiley e senta-se, para esperar.

Como Smiley tardasse, teve tempo para pensar sobre o caso. E imagine do que foi ele se lembrar!... Agarrou Daniel, abriu-lhe a boca e com uma colher de chá encheu-lhe o bucho de chumbo e, depois de enchê-lo bem colocou-a novamente no chão. Smiley, durante esse tempo, esteve a patinhar no charco, até que por fim conseguiu apanhar uma rã, trazendo-a ao seu adversário:

— Agora, se está pronto coloque-a ao lado de Daniel com os pés dianteiros na mesma linha. Eu darei o sinal.

Em seguida, gritou:

— Um, dois, três — salta. — E tanto Smiley como o estrangeiro tocaram, cada um, sua rã, para dar-lhe o impulso inicial. A nova rã saltou vivamente, mas Daniel limitou-se a soltar um gemido e, por mais esforços que fizesse, não conseguiu sair do lugar. Não podia mover-se. Estava cravada na terra mais sòlidamente do que uma catedral. Era como se estivesse ancorada. Smiley estava surpreendido e desgostoso, mas não desconfiava de coisa alguma.

O estrangeiro apanhou o dinheiro e preparou-se para ir embora, mas ao partir, com um ar impertinente, ainda murmurou:

— Não vejo no que esta rã seja melhor do que as outras.

Smiley permaneceu um tempão a coçar a cabeça, com os olhos fitos em Daniel, até que por fim disse:

— Não posso explicar como diabo é que esta rã se recusou a saltar... A não ser que tenha alguma coisa... Doente, não está... Parece, isto sim, mais gorda...

Agarra, então, Daniel, pela pele do pescoço e ao levantá-la exclama:

— Os diabos me levem se ela não pesa cinco libras!...

Voltou-a de cabeça para baixo e a infeliz vomitou duas mãos cheias de chumbo. Quando Smiley percebeu o que sucedera, ficou como louco. Pôs a rã no chão e desatou a correr à procura do estrangeiro mas não pôde alcançá-lo. E...

(Neste ponto da narrativa. Simão Wheerler ouviu que o chamavam e foi ver quem era.) Antes disso, porém, voltou-se para mim, dizendo:

— Espere-me um instante, que não tardarei...

Mas, com licença de quem me ouve, não me pareceu que o resto da História de Jim Smiley pudesse trazer-me algum esclarecimento a respeito do Reverendo Leônidas W. Smiley e por isso tratei, também, de sair.

À porta, encontro o amável Simão Wheeler, que, segurando-me pelo braço, recomeçou:

— Pois este Smiley possuía uma vaca amarela, muito gorda, cega de um olho e sem rabo, isto é...

— Oh! Mande Smiley e sua vaca amarela para o inferno — resmunguei eu. E, desejando-lhe boas tardes, parti.

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— Fim —

História do burro e do boido livro As mil e uma noitesRené R. Khawam

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Era uma vez um mercador muito rico que morava no campo e cultivava suas terras. Tinha o dom de compreender a linguagem dos animais, selvagens ou domésticos; embora não pudesse revelar seu segredo, sob pena de morrer.

Em seu estábulo vivia um burro e um boi. Um dia estava o mercador sentado perto deles, quando ouviu o boi dizer ao burro:

— Bom apetite e boa saúde, Tio Esperto! Você pode descansar o dia inteiro, pois tem pouco serviço. Dão-lhe cevada peneirada para comer e água fresca e limpa. Quanto a mim, me arrastam para os campos para trabalhar o dia inteiro. Meu castigo é insuportável e devo receber de acréscimo os golpes com que o lavrador e os criados me gratificam. De noite, me devolvem ao estábulo e me atiram favas sobre o chão lamacento, com um pouco de palha misturada a forragem verde, e passo a noite deitado sobre bosta e mijo.

Quando o boi acabou de falar, o burro virou-se para ele e disse:

— Ó chorão, não mentiu quem lhe apelidou de Tio Agitado, pois você se esfalfa inutilmente sem saber que lhe bastaria um pouco de malícia para se livrar disso. Bem diz o provérbio: "Aquele que não sabe adaptar-se às circunstâncias arrisca-se a não chegar ao fim do caminho". Escuta, eis aqui a conduta que, de preferência, lhe aconselho a manter: amanhã, não coma o menor raminho de forragem; contente-se em cheirá-la, mas não toque nela... Contente-se com alguns fiozinhos de palha cortada... Se agir como aconselho, verá seus desejos de repouso se realizarem.

O boi ficou grato ao burro, persuadido de que o conselho lhe seria útil, e manifestou intenção de proceder daquela maneira.

Tudo isso, o mercador ouviu e compreendeu.

No dia seguinte, o lavrador foi a granja, pegou o boi, e tentou fazê-lo trabalhar. Mas o animal parecia não ter forças, e o lavrador o espancou. O boi, seguindo o conselho do burro, não fez por melhorar o resultado. De noite, o boi nada comeu, e no dia seguinte, assim que viu o lavrador, procurou reter o fôlego e dilatar o estômago, movendo fracamente as patas. A vista disso, o lavrador pensou que o boi estava doente e foi procurar o amo.

O mercador, que conhecia a tramóia, disse ao criado:

— Vá pegar o burro e atrele aquele safado à charrua... E não hesite em forçá-lo a trabalhar. Quero que ele cumpra exatamente a tarefa que devia ser feita pelo boi.

O lavrador, assumindo como sua a irritação de seu amo, foi pegar o burro e o forçou a trabalhar o dia inteiro embaixo de pancadas. De noite, o burro mal podia manter-se em pé de tão cansado.

Chegando no estábulo, o boi levantou-se em sua honra e agradeceu o benefício. O burro estava tão irritado com o boi que não respondeu. E dizia para si mesmo: "Tudo isso aconteceu pela burrice de minha conduta. O provérbio está certo: 'Se eu tivesse ficado quieto em meu canto, nenhum indiscreto teria vindo perturbar minha paz'. Preciso encontrar urgentemente um ardil que me permita devolver o boi a seus hábitos".

Como a lua brilhasse no céu, o mercador e a mulher saíram por um momento e dirigiram-se para o estábulo. E o homem então pôde ouvir o burro, que falava nestes termos:

— Ó Tio Agitado, você já decidiu como vai conduzir-se amanhã? Se não decidiu, escute o que lhe aconselho a fazer.

— É claro que seguirei teu conselho — respondeu o boi. — Simularei doença e farei roncar o estômago...

O burro balançou a cabeça e disse:

— Nada disso. Sabe o que o nosso amo dizia há pouco a seu criado? Ouvi dizer: "Se o boi recusar a ração e não puder levantar-se para o trabalho, procure o açougueiro para que venha abatê-lo. Que ele prepare a carne e limpe muito bem a pele, pois sempre se aproveitará alguma coisa..."

A tais palavras, o boi soltou um peido e pôs-se a mugir, enquanto o mercador se afastava às gargalhadas, deleitado com a maquinação dos dois animais.

— Fim —

Texto estabelecido a partir dos manuscritos originais por René R. Khawam.Tradução de Rolando Roque da Silva. Texto resumido.

http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/texto003.htm

O gigante egoísta

Page 50: MONTEIRO LOBATO O Colocador de Pronomes

Oscar WildeTradução de Oscar Mendes

Todas as tardes, ao regressar da escola, costumavam as crianças ir brincar no jardim do Gigante.

Era um jardim amplo e belo, com um macio e verde gramado. Aqui e ali, por sobre a relva erguiam-se lindas flores como estrelas e havia doze pessegueiros que na primavera floresciam em delicados botões cor-de-rosa e pérola, e no outono davam saborosos frutos. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam tão suavemente que as crianças costumavam parar seus brinquedos, a fim de ouvi-los. “Como somos felizes aqui!”, gritavam uns para os outros.

Um dia o Gigante voltou. Tinha ido visitar seu amigo o Ogre de Cornualha e ali vivera com ele durante sete anos. Passados os sete anos, dissera tudo quanto tinha a dizer, pois sua conversa era limitada, e decidiu voltar para seu castelo. Ao chegar, viu as crianças brincando no jardim.

— Que estão vocês fazendo aqui? — gritou ele, com voz bastante ríspida e as crianças puseram-se em fuga.

— Meu jardim é meu jardim — disse o Gigante —. Todos devem entender isto e não consentirei que nenhuma outra pessoa, senão eu, brinque nele.

Construiu um alto muro cercando-o e pôs nele um cartaz:

É PROIBIDA A ENTRADAOS TRANSGRESSORES SERÃO PROCESSADOS

Era um Gigante muito egoísta.

As pobres crianças não tinham agora lugar onde brincar. Tentaram brincar na estrada, mas a estrada tinha muita poeira e estava cheia de pedras duras, e isto não lhes agradou. Tomaram o costume de vaguear, terminadas as lições, em redor dos altos muros, conversando a respeito do belo jardim por eles cercados. “Como éramos felizes ali!” diziam uns aos outros.

Depois chegou a primavera e por todo o país havia passarinhos e florinhas. Somente no jardim do Gigante Egoísta reinava ainda o inverno. Os pássaros, uma vez que não havia meninos, não cuidavam de cantar nele e as árvores esqueciam-se de florescer. Somente uma bela flor apontou a cabeça dentre a relva, mas quando viu o cartaz, ficou tão triste por causa das crianças que se deixou cair de novo no chão, voltando a dormir. Os únicos que se alegraram foram a Neve e a Geada.

— A primavera esqueceu-se deste jardim — exclamaram —. de modo que viveremos aqui durante o ano inteiro.

A Neve cobriu a relva com seu grande manto branco e o Gelo pintou todas as árvores de prata. Então convidaram o Vento Norte para ficar com eles e o vento veio. Estava envolto em peles e bramava o dia inteiro no jardim, derrubando chaminés.

— Este lugar é delicioso — dizia ele —. Devemos convidar o Granizo a fazer-nos uma visita.

De modo que o Granizo veio. Todos os dias, durante três horas, rufava no telhado do castelo, até que quebrou a maior parte das ardósias, e depois punha-se a dar voltas loucas no jardim, o mais depressa que podia. Trajava de cinzento e seu hálito era frio como gelo.

— Não posso compreender por que a Primavera está demorando tanto a chegar — disse o Gigante Egoísta, ao sentar-se à janela e olhar para fora, para seu jardim frio e branco —. Espero que haja uma mudança de tempo.

Mas a Primavera nunca chegou, nem tampouco o Verão. O Outono deu frutos áureos a todos os jardins, mas ao jardim do Gigante não deu nenhum.

— É demasiado egoísta — disse ele.

De modo que havia sempre Inverno ali e o Vento Norte, e o Granizo, e a Geada e a Neve dançavam por entre as árvores.

Uma manhã jazia o Gigante acordado em sua casa, quando ouviu uma música deliciosa. Soava tão docemente a seus ouvidos que pensou que deviam ser os músicos do Rei que iam passando. Era na realidade apenas um pequeno pintarroxo que cantava do lado de fora de sua janela, mas já fazia tanto tempo que não ouvia ele um pássaro cantar em seu jardim que lhe pareceu aquela a mais bela música do mundo. Então o Granizo parou de bailar por cima da cabeça dele, o Vento Norte cessou seu rugido e delicioso perfume chegou até ele pela janela aberta.

— Creio que chegou por fim a Primavera — disse o Gigante, saltando da cama e olhando para fora.

Que viu ele?

Page 51: MONTEIRO LOBATO O Colocador de Pronomes

Viu um espetáculo maravilhoso. Por um buraco feito no muro, as crianças tinham-se introduzido no jardim, encarapitando-se nas árvores. Em todas as árvores que conseguia ver achava-se uma criancinha. E as árvores sentiam-se tão contentes por ver as crianças de volta que se haviam coberto de botões e agitavam seus galhos gentilmente por cima das cabeças das crianças. Os pássaros revoluteavam e chilreavam, com deleite, e as flores riam, apontando as cabeças por entre a relva. Era um belo quadro. Apenas em um canto ainda havia inverno. Era o canto mais afastado do jardim e nele se encontrava um menininho. Era tão pequeno que não podia alcançar os galhos da árvore e vagava em redor, chorando amargamente. A pobre árvore estava ainda coberta de geada e neve e o Vento Norte soprava e rugia por cima dela.

— Sobe, menino! — dizia a Árvore, inclinando seus ramos o mais baixo que podia. Mas o menino era demasiado pequenino.

E ao contemplar o Gigante aquela cena seu coração enterneceu-se.

— Como tenho sido egoísta — disse. Agora estou sabendo por que a Primavera não vinha cá. Vou colocar aquele pobre menininho no alto da árvore e depois derrubarei o muro e meu jardim será para todo o sempre o lugar de brinquedo para os meninos.

Sentia-se deveras muito triste pelo que tinha feito.

De modo que desceu as escadas e abriu a porta de entrada bem devagarinho, saindo para o jardim. Mas quando as crianças o viram, ficaram tão atemorizadas que saíram todas a correr e o jardim voltou a ser como no inverno. Somente o menininho não correu, pois seus olhos estavam tão cheios de lágrimas que não viram o Gigante chegar. E o Gigante deslizou por trás dele, apanhou-o delicadamente com a mão e colocou-o no alto da árvore. E a árvore imediatamente abriu-se em flor e os pássaros chegaram e cantaram nela pousados e o menininho estendeu seus dois braços, cercou com eles o pescoço do Gigante e beijou-o. E as outras crianças, quando viram que o Gigante já não era mau, voltaram correndo e com eles veio também a Primavera.

— O jardim agora é de vocês, criancinhas — disse o Gigante, que pegou um grande machado e derrubou o muro. E quando as pessoas iam passando para a feira ao meio-dia, encontraram o Gigante a brincar com as crianças no mais belo jardim que jamais haviam visto.

Brincaram o dia inteiro e à noitinha dirigiram-se ao Gigante para despedir-se.

— Mas onde está o companheirinho de vocês? — perguntou —. O menino que eu pus na árvore?

O Gigante gostava mais dele porque o havia beijado.

— Não sabemos — responderam as crianças —. Foi-se embora.

— Devem dizer-lhe que não deixe de vir amanhã — disse o Gigante. Mas as crianças responderam-lhe que não sabiam onde ele morava e nunca o tinham visto antes. E o Gigante sentiu-se muito triste.

Todas as tardes, quando as aulas terminavam, as crianças chegavam para brincar com o Gigante. Mas o menininho de quem o Gigante gostava nunca mais foi visto de novo. O Gigante mostrava-se muito bondoso para com todas as crianças, contudo tinha saudades do seu primeiro amiguinho e muitas vezes a ele se referia.

— Como gostaria de vê-lo! — costumava dizer.

Os anos se passaram e o Gigante foi ficando muito velho e fraco. Não podia mais tomar parte nos brinquedos, de modo que se sentava numa grande cadeira de braços e contemplava o brinquedo das crianças e admirava seu jardim.

— Tenho belas flores em quantidade — dizia ele , mas as crianças são as mais belas flores de todas.

Numa manhã de inverno, olhou de sua janela, enquanto se vestia. Não odiava o Inverno agora, pois sabia que era apenas a Primavera adormecida e que as flores estavam descansando.

De repente, esfregou os olhos, maravilhado, e olhou e tornou a olhar. Era realmente uma visão maravilhosa. No canto mais afastado do jardim via-se uma arvore toda coberta de alvas e belas flores. Seus ramos eram cor de ouro e frutos prateados pendiam deles e por baixo estava o menininho que ele amara.

O Gigante desceu as escadas a correr, com grande alegria, e saiu para o jardim. Atravessou correndo o gramado e aproximou-se da criança. E quando chegou bem perto dela, seu rosto ficou vermelho de cólera e perguntou.

— Quem ousou ferir-te?

Pois nas palmas das mãos da criança viam-se as marcas de dois cravos e as marcas de dois cravos nos pequeninos pés.

— Quem ousou ferir-te? — gritou o Gigante —. Dize-me, para que eu possa tirar minha grande espada e matá-lo.

Page 52: MONTEIRO LOBATO O Colocador de Pronomes

— Não — respondeu o menino —. São estas as feridas do Amor.

— Quem és? — perguntou o Gigante, sentindo-se tomado dum grande respeito e ajoelhando-se diante do menininho.

E o menino sorriu para o Gigante e disse:

— Tu me deixaste brincar uma vez em teu jardim, hoje virás comigo para o meu jardim, que é o Paraíso.

E quando as crianças chegaram correndo naquela tarde, encontraram o Gigante morto sob a árvore toda coberta de alvas flores.

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— Fim —

Fonte: WILDE, Oscar. Obra Completa. Organização, tradução e notas de Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/mestr125.htm

O Presente dos MagosO. HenryTradução de José Paulo Paes

Um dólar e oitenta e sete centavos. Era tudo. E sessenta centavos eram em moedas. Moedas economizadas uma a uma, pechinchando com o dono do armazém, o dono da quitanda, o açougueiro, até o rosto arder à muda acusação de parcimônia que tais pechinchas implicavam. Três vezes Della contou o dinheiro. Um dólar e oitenta e sete centavos. E no dia seguinte seria Natal.

Não havia evidentemente mais nada a fazer senão atirar-se ao pequeno sofá puído e chorar. Foi o que Della fez. O que leva à reflexão moral de que a vida é feita de soluços, fungadelas e sorrisos, com predomínio das fungadelas.

Enquanto a dona da casa gradualmente passa do primeiro ao segundo estágio, vamos dar uma espiada na casa. Um apartamento mobiliado, a oito dólares por semana. Não era exatamente miserável, mas tinha essa palavra pronta para o grupo de mendicância.

No vestíbulo embaixo havia uma caixa de correspondência na qual carta nenhuma seria posta, e um botão de campainha que nenhum dedo mortal jamais apertaria. Encontrava-se ali também um cartão anunciando o nome de “Mr. James Dillingham Young”.

O “Dillingham” fora acrescentado durante um anterior período de prosperidade, quando seu possuidor estava ganhando trinta dólares por semana. Agora, que a receita baixara para vinte dólares, as letras de “Dillingham” pareciam nubladas, como se estivessem pensando seriamente em abreviar para um modesto e despretensioso D. Mas sempre que Mr. James Dillingham Young voltava para casa e chegava ao seu apartamento lá em cima, era chamado de “Jim” e carinhosamente abraçado por Mrs. James Dillingham Young, já apresentada ao leitor como Della. O que está muito bem.

Della terminou de chorar e cuidou do rosto com a esponja de pó. Postou-se junto à janela e ficou a contemplar melancolicamente um gato cinzento caminhando sobre uma cerca cinzenta num quintal cinzento. Amanhã seria Dia de Natal e ela tinha apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. Estivera a economizar tostão por tostão havia meses, e esse era o resultado. Vinte dólares por semana não dão para nada. As despesas tinham sido maiores do que calculara. Sempre são. Apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. O seu Jim. Muitas horas felizes passara ela planejando comprar-lhe alguma coisa bonita. Alguma coisa fina, rara, legítima — algo que estivesse bem perto de merecer a honra de ser possuída por Jim.

Havia um espelho de tremó entre as janelas da sala. Talvez o leitor já tenha visto um espelho de tremó num apartamento de oito dólares. Uma pessoa muito esguia e muito ágil pode, com observar seu reflexo numa rápida seqüência de tiras longitudinais, obter uma concepção bastante acurada de sua aparência. Della, por ser esguia, lograra aperfeiçoar-se nessa arte.

Subitamente, afastou-se da janela e postou-se diante do espelho. Seus olhos estavam brilhantes, mas sua face perdeu a cor ao cabo de vinte segundos. Num gesto rápido, soltou o cabelo e deixou desdobrar-se em toda a sua extensão.

Ora, os James Dillingham Youngs tinham dois haveres de que muito se orgulhavam. Um era o relógio de ouro de Jim, que pertencera a seu pai e a seu avô. O outro era o cabelo de Della. Morara a Rainha de Sabá no apartamento do outro lado do poço de ventilação, e Della teria algum dia deixado o seu cabelo cair fora da janela para secá-lo e depreciar assim as jóias e as riquezas de Sua Majestade. Fora o Rei Salomão o zelador, com todos os seus tesouros empilhados no porão, e Jim teria puxado o relógio cada vez que por ele passasse, só para vê-lo arrancar as barbas de inveja.

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O cabelo de Della, pois, caiu-lhe pelas costas, ondulando e brilhando como uma cascata de águas castanhas. Chegava-lhe abaixo do joelho e quase lhe servia de manto. Ela então o prendeu de novo, célere e nervosamente. A certo momento, deteve-se e permaneceu imóvel, enquanto uma ou duas lágrimas caíam sobre o puído tapete vermelho.

Vestiu o velho casaco marrom; pôs o velho chapéu marrom. Com um ruge-ruge de saias e coma centelha brilhante ainda nos olhos, correu para a porta e desceu rapidamente a escada que levava à rua.

Parou onde havia um letreiro anunciando: “Mme Sofronie, Artigos de Toda Espécie para Cabelos”. Della subiu a correr um lance de escada e se deteve no alto, arquejante, para recompor-se. Madame, corpulenta, alva demais, fria, dificilmente faria jus ao nome de “Sofronie”.

— Quer comprar meu cabelo? — perguntou Della.

— Eu compro cabelo — disse Madame. — Tire o chapéu e vamos dar uma olhada no seu.

Despenhou-se, ondulante, a cascata de águas castanhas.

— Vinte dólares — ofereceu Madame, erguendo a massa com mão prática.

— Dê-me o dinheiro depressa — pediu Della.

Oh, as duas horas seguintes voaram com asas róseas. Perdoe-se a metáfora gasta. Della se pôs a vasculhar as lojas à procura de um presente para Jim.

Encontrou-o por fim. Fora certamente feito para ele e para ninguém mais. Nada havia que se lhe parecesse nas outras lojas, e ela as revirara de alto a baixo. Era uma corrente de platina, curta, simples e de modelo discreto, proclamando adequadamente seu valor por sua mesma substância e não por qualquer ornamentação espúria — como o devem fazer todas as coisas boas. Era digna até do Relógio. Tão logo a viu, soube que tinha de ser de Jim. Era como ele. Serenidade e valor — a descrição se aplicava a ambos. Vinte e um dólares cobraram-lhe por ela, e Della correu para casa com os oitenta e sete centavos. Com aquela corrente no relógio, Jim poderia preocupar-se decentemente com o tempo na frente de qualquer pessoa. Grande como era o relógio, ele às vezes o consultava meio envergonhado devido à velha tira de couro que usava em lugar de corrente.

Quando Della chegou a casa, seu embevecimento cedeu lugar a um pouco de prudência e razão. Pegou os ferros de frisar, acendeu o gás e pôs-se a reparar os estragos causados pela generosidade acrescida ao amor. O que sempre é uma tarefa muito árdua, queridos amigos — uma tarefa gigantesca.

Ao cabo de quarenta minutos, sua cabeça estava coberta de pequenos caracóis cerrados, que a faziam parecer, admiravelmente, um menino vadio. Contemplou sua imagem no espelho durante longo tempo, crítica e cuidadosamente.

— Se Jim não me matar — disse consigo mesma — antes de olhar-me pela segunda vez, dirá que pareço uma corista de Coney Island. Mas que podia eu fazer... oh, que podia eu fazer com um dólar e oitenta e sete centavos? Às sete horas, o café estava preparado e uma frigideira quente no fogão esperava o momento de fritar as costeletas.

Jim nunca se atrasava. Della dobrou a corrente no côncavo da mão e sentou-se a um canto da mesa, perto da porta pela qual ele sempre entrava. Ouviu então seus passos no primeiro lance da escada e empalideceu por um instante. Ela tinha o hábito de rezar pequenas preces silenciosas a propósito das mínimas coisas diárias, e agora murmurava:

— Oh, Deus, fazei-o por favor achar-me ainda bonita!

A porta se abriu, Jim entrou e a fechou. Parecia magro e muito sério. Pobre sujeito, apenas vinte e dois anos e já responsável por uma família! Precisava de um sobretudo novo e não tinha luvas.

Jim avançou alguns passos, tão rígido quanto um perdigueiro na pista de uma codorniz. Seus olhos estavam fitos em Dela e havia neles uma expressão que ela não conseguia ler e que a aterrorizava. Não era raiva, nem surpresa, nem desaprovação, nem horror; não era nenhum dos sentimentos para os quais ela estava preparada. Ele simplesmente a fitava com aquela peculiar expressão na face.

Della esgueirou-se para fora da mesa e se encaminhou para ele.

— Jim, querido — gritou —, não me olhe desse jeito! Mandei cortar o cabelo e o vendi porque não poderia passar o Natal sem dar um presente a você. Ele crescerá de novo... não se aborreça, por favor. Eu tinha de fazer isso. Meu cabelo cresce terrivelmente depressa. Diga “Feliz Natal!”, Jim, e fiquemos felizes. Você não sabe que coisa bonita, que belo presente tenho para você.

— Mandou cortar o cabelo? — perguntou Jim a custo, como se não se tivesse ainda compenetrado desse fato patente após o mais árduo esforço mental.

— Cortei-o e vendi-o — disse Della. — Você não continua a gostar de mim do mesmo jeito, então? Estou sem cabelo, não estou?

Page 54: MONTEIRO LOBATO O Colocador de Pronomes

Jim olhou à volta do aposento de modo curioso.

— Você diz que seu cabelo se foi? — insistiu, com um ar de quase idiotia.

— Não precisa procurar por ele — disse Della. — Foi vendido, como lhe disse... vendido, não está mais aqui. É Véspera de Natal, querido. Seja bonzinho comigo, fiz isso por sua causa. Talvez fosse possível contar os cabelos da minha cabeça — continuou ela, com súbita e grave doçura —, mas ninguém poderá jamais avaliar o meu amor por você. Posso fritar as costeletas, Jim?

Emergindo do seu transe, Jim pareceu despertar rapidamente. Abraçou a sua Della. Por dez segundos, contemplemos, com discreta atenção, qualquer objeto inconseqüente, noutra direção. Oito dólares por semana ou um milhão por ano — qual a diferença? Um matemático ou uma pessoa arguta daria a resposta errônea. Os magos trouxeram presentes valiosos, mas isso não estava entre eles. Esta asserção obscura será esclarecida mais tarde.

Jim tirou um pacote do bolso do sobretudo e atirou-o sobre a mesa.

— Não me interprete mal, Della — disse. — Não acho que haja alguma coisa, corte de cabelo, raspagem ou xampu, capaz de fazer-me gostar menos da minha mulherinha. Mas se você abrir esse pacote, poderá ver por que fiquei abafado no princípio.

Alvos dedos ligeiros desfizeram o atilho e o embrulho. Ouviu-se então um grito estático de alegria, e depois, ai!, uma súbita mudança feminina para as lágrimas e os gemidos, que exigiram o imediato emprego de todos os poderes de consolação do senhor do apartamento.

Pois sobre a mesa jaziam Os Pentes — o jogo de pentes para cabelos que Della adorara havia muito numa vitrine da Broadway. Belos pentes, de tartaruga legítima, orlados de pedraria — da cor exata para combinar com o lindo cabelo desvanecido. Eram pentes caros, ela o sabia, e seu coração se limitara a desejá-los e a suspirar por eles sem a menor esperança de vir um dia a possuí-los. E agora pertenciam-lhe, mas as tranças que os anelados enfeites deveriam adornar não mais existiam.

Ela, porém, os apertou contra o peito e, por fim, pôde erguer os olhos nublados, sorrir e dizer:

— Meu cabelo cresce tão depressa, Jim!

E então Della pulou como um gatinho chamuscado e gritou:

— Oh! oh!

Jim ainda não vira o seu belo presente. Ela lho estendeu ansiosamente na palma da mão aberta. O fosco metal precioso parecia brilhar com o reflexo do seu jubiloso e ardente espírito.

— Não é uma beleza, Jim? Vasculhei a cidade toda para achá-lo. Doravante, você terá de ver as horas uma centena de vezes por dia. Dê-me o seu relógio. Quero ver como fica nele.

Em lugar de obedecer, Jim deixou-se cair no sofá, pôs as mãos atrás da cabeça, e sorriu:

— Della — disse —, vamos pôr os nossos presentes de Natal de lado e deixá-los por algum tempo. São lindos demais para poderem ser usados agora. Vendi o relógio para conseguir o dinheiro com que comprei os seus pentes. Que tal se você fritasse as costeletas agora?

Os magos, como sabem, eram homens sábios — homens maravilhosamente sábios — que trouxeram presentes para a Criança na manjedoura. Inventaram a arte de dar presentes natalinos. Sendo eles sábios, seus presentes eram sem dúvida igualmente sábios. Possivelmente admitiam o privilégio de troca em caso de duplicação. E aqui lhes contei canhestramente a desimportante crônica de duas crianças tolas, num apartamento, as quais da maneira a mais insensata, sacrificaram, uma pela outra, os maiores tesouros de seu lar. Mas como derradeira palavra para os sensatos dos dias que correm, seja dito que, de todos que dão presentes, os dois foram os mais sábios. Todos que dêem e recebam presentes como os deles são os mais sábios. Em toda parte, os mais sábios. São os magos.

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— Fim —

O. Henry (1862-1910). Nasceu William Sidney Porter, em Greensboro, falecendo em NY. Era especialista em narrativas sobre a vida urbana, com especial foco nas virtudes e mesquinharias da classe média. Foi também chamado de o "Maupassant americano".

Fonte: O. HENRY. Caminhos do Destino e outros contos. Seleção e prefácio de José Paulo Paes. Tradução de Alzira Machado Kawall e José Paulo Paes. Ediouro, 1988.

http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/mestr162.htm

Page 55: MONTEIRO LOBATO O Colocador de Pronomes

O homem do pára-raiosHerman MelvilleTradução de Olívia Krähenbühl

Que magnífico trovão anômalo, pensei eu, de pé na minha lareira de pedra entre os montes de Acroceraunia, enquanto raios dispersos ribombavam no alto e estrondeavam entre os vales, cada um seguido de coriscos ziguezagueantes e rápidas bátegas oblíquas de chuva grossa, que vibravam audivelmente como uma carga de pontas de lança no meu telhado baixo, feito de tábuas. Suponho, entretanto, que as montanhas vizinhas rebentam e agitam o trovão, de modo que ele é, aqui, muito mais soberbo que na planície. Mas... escutemos! Alguém se aproxima da minha porta. Quem será que escolheu um tempo destes para fazer visitas? E por que não usa a aldrava, como um homem, em vez de bater lugubremente, com o punho, a modo de empresário fúnebre, na almofada oca da porta de entrada? Mas deixemo-lo entrar. Ah, aí vem ele — Bom dia, senhor! — (Era um perfeito estranho.) — Faça o favor de sentar-se. — Que bengala aquela, de estranho aspecto, que o homem trazia... — Uma bela trovoada, senhor.

— Bela? Horrorosa!

— Está molhado. Venha para a lareira, junto ao fogo.

— Por nada deste mundo!

O estranho permanecia bem no centro da cabana, no lugar exato onde primeiro se plantara. A sua singularidade pedia um escrutínio mais rigoroso. Era uma figura magra e sombria. Os cabelos negros e escorridos caíam-lhe emaranhados sobre a testa. Halos cor de anil circundavam-lhe os olhos profundamente encovados, onde brincavam com uma espécie inócua de relâmpagos: o clarão sem o raio. Todo ele pingava. Estava de pé no piso de carvalho sem tapete, e a estranha bengala descansava verticalmente a seu lado.

Era esta uma vara de cobre polido, de quatro pés de comprimento, ligada, na largura, a um bem-feito cajado de madeira mediante a sua inserção em duas bolas de vidro esverdeado, cingidas por fitas de cobre. A vara de metal terminava no topo, à moda de uma trípode, e seus três dentes agudos eram brilhantemente dourados. O homem segurava-a apenas pela parte de madeira.

— Senhor — disse eu, inclinando-me polidamente —, tenho a honra de ser visitado por aquele ilustre deus, Júpiter Tonante? Assim aparecia ele na antiga estátua grega, empunhando o raio. Se é ele, ou seu representante, tenho de agradecer-lhe pela nobre tempestade que preparou entre nossas montanhas. Escute: que trovão soberbo! Ah! Para um amante do majestático, boa coisa é ter o Tonitruante em sua própria cabana! O trovão fica mais belo por isso. Mas, por favor, sente-se. Esta velha cadeira de assento de palhinha, reconheço-o, é um pobre substituto para o seu olímpico trono de pinheiro; mas condescenda em sentar-se.

Enquanto eu assim falava amavelmente, o estranho me fitava, meio maravilhado, meio tomado de estranho horror; mas não moveu o pé.

— Sente-se, senhor; é preciso enxugar-se antes de tornar a sair.

Plantei a cadeira tentadoramente na ampla lareira, onde um pequeno fogo fora aceso aquela tarde para dissipar a umidade, não o frio — pois estava-se no princípio de setembro.

Mas, sem atender ao convite, e ainda de pé no meio da sala, o estranho fitou-me com expressão pressaga e começou a falar.

— Senhor — disse ele —, queira desculpar-me; mas, em vez de aceitar seu convite para me sentar nessa lareira, advirto-o solenemente de que é melhor o senhor aceitar o meu, vindo ficar comigo no meio da sala. Justos céus — exclamou, sobressaltado —, mais um desses horríveis trovões! Advirto-o, senhor: saia da lareira.

— Senhor Júpiter Tonante — respondi tranqüilamente, voltando-me para ele. — Estou muito bem aqui.

— Mas o senhor é tão horrivelmente ignorante — exclamou — a ponto de não saber que a parte mais perigosa da casa durante uma tempestade aterradora como esta é, de longe, a lareira?

— Não, eu não sabia — respondi, mudando-me involuntariamente para a primeira tábua junto à pedra.

O estranho assumiu então um ar de tal modo desagradável ao ver bem sucedida a sua advertência que... outra vez involuntariamente, voltei a pisar na lareira, onde me pus na posição mais ereta e superciliosa que me foi possível. Nada disse, porém.

— Pelo amor de Deus — exclamou ele numa estranha mistura de alarme e intimidação —, pelo amor de Deus, saia daí! Não sabe que o ar aquecido e a fuligem são condutores, para não falar daqueles imensos cães de lareira? Saia desse lugar... conjuro-o... ordeno-lhe!

— Senhor Júpiter Tonante, não estou acostumado a receber ordens em minha própria casa.

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— Não me chame por esse nome pagão. Ainda pode fazer-se profano nesta hora de terror?!

— Senhor, faça-me um obséquio: quer ter a bondade de dizer-me qual a sua ocupação? Se procura abrigo contra a tormenta, bem-vindo seja; isso, durante todo o tempo em que usar de delicadeza; mas, se vem a negócio, desembuche. Quem é o senhor?

— Sou negociante de pára-raios — disse o estranho, suavizando a voz. — O meu negócio é... Deus de misericórdia! Que estrondo! O senhor já foi atingido alguma vez, isto é, a sua casa já foi atingida alguma vez? Não? Mas é melhor prevenir — e fez significativamente matraquear seu cajado sobre o assoalho. — Por natureza, não há castelos inexpugnáveis nas tempestades; no entanto, diga apenas uma palavra, e desta cabana farei um Gibraltar, mediante uns poucos acenos desta vara de condão. Escute: que Himalaia de estrondos!

— Não se interrompa; estava a ponto de falar sobre sua ocupação particular.

— Minha ocupação particular é viajar pelo país granjeando encomendas de pára-raios. Este é o espécime — e deu umas pancadinhas na vara. — Tenho as melhores referências — e remexeu nos bolsos. — No mês passado, em Griggan, instalei vinte e três pára-raios em apenas cinco edifícios.

— Vejamos. Não foi em Criggan que semana passada, quase à meia-noite de sábado, um raio caiu no campanário, no grande olmo e na cúpula da sala da assembléia? Havia nesses lugares algum dos seus pára-raios?

— Nem na árvore nem na cúpula; apenas no campanário.

— Então para que serve o seu pára-raios?

— Para a vida ou para a morte. Mas meu empregado estava distraído. Ao ajustar a vara no alto do campanário, deixou uma parte do metal roçando o revestimento de estanho. Daí, o acidente. A culpa não foi minha, mas dele. Escute!

— Não se incomode. O estouro foi bastante alto para que eu o distinguisse sem ser preciso o senhor apontá-lo com o dedo. Ouviu falar no que aconteceu em Montreal, no ano passado? Uma empregada rezava à beira de sua cama quando atingida por um raio; tinha na mão um rosário cujas contas eram de metal. Seu negócio se estende até o Canadá?

— Não; ouvi dizer que lá só se usam varas de ferro. Deviam preferir as minhas, que são de cobre. O ferro se funde com facilidade. Depois, fazem as varas tão delgadas, que não têm corpo suficiente para conduzir toda a corrente elétrica. O metal se derrete; o edifício é destruído. Minhas varas de cobre não agem assim. Aqueles canadenses são tolos. Alguns fazem no alto da vara uma protuberância que arrisca a uma explosão mortal, em vez de imperceptivelmente conduzir a corrente para a terra, como faz a minha espécie de pára-raios. O meu é o único verdadeiro. Veja-o. Um dólar o pé.

— Esse abuso ao falar dos outros pode levar a gente a desconfiar do senhor.

— Escute! O trovão está se alteando. Aproxima-se de nós, aproxima-se da terra também. Escute! Um estrondo dobrado! Mercê da proximidade, todas as vibrações se juntaram numa só. Outro relâmpago. Segure aí.

— Que faz? — perguntei, vendo-o largar instantaneamente a vara e inclinar-se atentamente para a janela, tocando o pulso esquerdo com o polegar e o dedo médio da mão direita.

Nem bem as palavras me escaparam, outra exclamação lhe saiu dos lábios.

— Que estardalhaço! Apenas três batidas de pulso... menos de três milhas de distância... acolá... em algum lugar daquela mata. Passei, ali, por três carvalhos novos atingidos, derrubados agora mesmo, e em fogo. O carvalho atrai o raio mais que qualquer outra árvore, tem ferro em solução na seiva. Este seu assoalho parece-me de carvalho...

— Cerne de carvalho. Pela hora peculiar em que veio visitar-me, penso que escolhe de propósito um tempo de tormenta para viajar. Quando o trovão ribomba, acha que a hora é especialmente propícia para criar impressões favoráveis aos seus negócios.

— Escute! É horroroso!

— Para quem pretende armar o próximo com a armadura da intrepidez, o senhor me parece impropriamente timorato. Os homens comuns escolhem tempo bom para viajar; o senhor escolhe dias de trovoada; todavia...

— Viajo em dias de trovoada: reconheço; mas não sem precauções especiais, tais como as que só conhece um homem que lida com pára-raios. Escute! Rápido: veja este espécime; apenas um dólar o pé.

— Um belo pára-raios, ouso dizer. Porém, quais as precauções especiais a que alude? Mas primeiro deixe-me fechar aquelas folhas de janela, acolá; a chuva oblíqua está entrando pelas vidraças. Vou pôr a tranca.

— Está doido? Não sabe que uma tranca de ferro é um condutor muito rápido? Desista.

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— Então vou só fechar as folhas de madeira, e em seguida pedirei ao rapaz que me traga uma tranca de pau. Por favor, puxe o cordão da campainha.

— Está maluco? O arame do cordão pode fulminá-lo. Jamais toque num cordão de campainha durante uma tempestade, nem toque campainha ou sino de qualquer espécie.

— Nem sino de campanário? Diga-me, por favor, onde e como poderá a gente ficar em segurança num tempo destes? Haverá nesta casa algum lugar que eu possa tocar com esperança de continuar vivendo?

— Há, sim, mas não esse lugar onde agora está. Afaste-se da parede. Às vezes a corrente desce por uma parede abaixo e... e, sendo um homem melhor condutor que uma parede, aquela saíra da parede e entrará nele. Opa! Esse parece ter caído muito perto. Devia tratar-se de um raio globular.

— Provavelmente. Diga-me, agora mesmo: qual é, na sua opinião, a parte mais segura desta casa?

— Esta sala, e este lugar onde estou. Venha aqui.

— Primeiro, diga-me as razões.

— Atento! Depois do relâmpago, as lufadas. As vidraças estremecem. A casa! A casa! Venha para cá!

— As razões, faça-me o favor.

— Venha para junto de mim!

— Novamente lhe agradeço, vou experimentar a mesma posição de antes: na lareira. E agora, homem dos pára-raios, nos intervalos dos trovões tenha a bondade de me dar as razões por que acha esta sala o cômodo mais seguro da casa, e o lugar em que está o mais seguro em toda a sala.

Fez-se então, por um instante, uma pequena pausa na tempestade. O homem do pára-raios pareceu aliviado, e respondeu:

— Sua casa tem apenas um andar, mais um sótão e um porão: esta sala fica no meio. Daí, a sua relativa segurança. Pois o raio às vezes passa das nuvens para a terra, e às vezes, da terra para as nuvens. Está compreendendo? E escolho o meio da sala porque, se o raio atingir a casa, descerá pelas paredes ou pela chaminé; tão claro! Por isso, quanto mais afastado o senhor estiver de ambos, tanto melhor. Agora, venha para cá.

— Daqui a pouco. Mas algo do que disse, em vez de assustar-me, inspira-me uma estranha confiança.

— Que foi que eu disse?

— Disse que, às vezes, o raio vai da terra para as nuvens.

— Ei! é o golpe de retorno, quando a terra, sobrecarregada de fluido, devolve o excesso para cima.

— O golpe de retorno: isto é, da terra para céu. Cada vez melhor. Mas venha secar-se perto da lareira.

— Estou melhor aqui, e estar molhado é melhor ainda.

— Como assim?

— É a coisa mais segura que se pode fazer... Opa! Outra vez! Isto é, permanecer-se completamente encharcado durante uma tempestade. As roupas molhadas são condutores melhores que o corpo; assim sendo, se o raio cai, pode descer pelas roupas molhadas sem tocar o corpo. Mas... a tempestade volta a aumentar. Há um tapete nesta casa? Os tapetes são maus condutores. Arranje-me um, para que eu possa pisar sobre ele, e o senhor também. O céu escurece; é meio-dia, e no entanto já está escuro... o tapete! o tapete!

Dei-lho. As montanhas encapuzadas pareciam fechar-se e cair dentro da casa.

— E agora, como não nos ajudará ficar mudos — disse eu, voltando par ao meu lugar —, deixe-me saber as precauções que toma quando viaja em dia de tormenta.

— Espere até que esta se acalme.

— Não, continue com as precauções. O senhor ocupa o lugar mais seguro possível, segundo o seu próprio relato. Prossiga.

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— Fa-lo-ei sucintamente. Evito pinheiros, casas altas, celeiros abandonados, pastagens em planaltos, água corrente, rebanhos de gado e carneiros, multidões... Se viajo a pé, como hoje, vou devagar; se no meu trolinho, não toco no encosto nem nos lados; se a cavalo, desmonto e puxo-o pela rédea; mas, principalmente, evito homens altos.

— Estarei sonhando? Um homem a evitar outro homem? e, para cúmulo, em tempo de perigo?

— Evito homens altos quando a tempestade desaba. É o senhor tão grosseiramente ignaro que não sabe que a altura de um homem de seis pés é suficiente para levar uma nuvem elétrica a descarregar-se sobre ele? Os solitários homens de Kentucky, quando aram, não são acaso atingidos nos próprios sulcos que não lograram acabar de abrir? Se um homem de seis pés se abeira de um rio, a nuvem, às vezes, o escolherá como condutor para a água corrente. Mas... escute! Rachou-se aquele píncaro negro, acolá! Sim, o homem é bom condutor. O raio passa e repassa num homem; quanto à árvore, o raio apenas arranca-lhe a casca. Mas o senhor me obrigou tanto tempo a responder às suas perguntas que não pude falar-lhe de negócios. Não vai encomendar um pára-raios? Veja este espécime; é de um cobre superior. O cobre é o melhor condutor. Sua casa é baixa; mas, edificada na montanha, sua pouca altura não influi. Vocês, os montanheses, são os mais expostos. Em terras montanhosas, o vendedor de pára-raios deveria fazer os maiores negócios. Veja esta amostra, senhor; basta um só pára-raios para uma casa pequena como a sua. Leia as instruções. Basta um só, senhor; custa apenas vinte dólares. Mas... escute! Lá se vão todas as montanhas Iacônicas e Hoosicas... de granito, estilhaçadas como calhaus. Pelo som, devia ter acertado alguma coisa. Um pára-raios de cinco pés de altura protegerá sua casa num raio de vinte pés. Apenas vinte dólares, senhor; um dólar o pé. Escute! Que horror! Encomenda-me um? Não vai comprar? Posso anotar-lhe o nome? Imagine só, o senhor deixar-se transformar num montão de refugos calcinados como um cavalo preso ao cabresto, queimado em sua própria baia; e tudo num relâmpago!

— O senhor se pretende enviado extraordinário e ministro plenipotenciário de Júpiter Tonante — disse eu, dando uma risada. — O senhor, simples mortal que aqui vem colocar-se, e mais esse cano, entre a terra e o céu, imagina que, só porque pode arrancar luz verde de uma garrafa de Leyde, pode igualmente desviar o raio que vem do alto? Seu pára-raios enferruja, quebra-se, e onde fica você? Quem lhe deu o poder, seu Tetzel, de mascatear indulgências que libertem das divinas ordenações? Os fios de nossos cabelos estão todos contados, bem assim os dias de nossa vida. Com chuva ou sol, estou à vontade nas mãos do meu Deus. Falso mercador, fora daqui! Veja: as nuvens voltam a enrolar-se, a casa está incólume, e, no céu azul, leio no arco-íris que a deidade não fará guerra de propósito à terra do homem.

— Homem ímpio e infeliz! — espumejou o estranho, e o rosto se lhe escureceu ao refulgir do arco-íris. — Vou tornar públicas suas idéias infiéis.

— Vá-se embora! Ande depressa... se é que pode fazê-lo, você que, como o verme, só sai cá fora para mostrar seu brilho em tempos de umidade.

A carranca ainda se lhe tornou mais negra; os círculos anilados se ampliaram em redor de seus olhos, como os círculos de tempestades em torno à lua da meia-noite. Depois saltou sobre mim, pisando o meu coração com seu pára-raios de três dentes...

Agarrei-o, quebrei-o, atirei-o ao chão, pisoteei-o; e, arrastando para fora da porta o sombrio rei do pára-raios, arremessei após ele o cetro de cobre escangalhado.

Mas, a despeito do tratamento que lhe dera e da conversa que tive com os vizinhos para dissuadi-los, o homem do pára-raios ainda reside na região; viaja ainda em tempos de tormenta, e faz próspero negócio com os medos dos homens.

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— Fim —

Nathaniel Hawthorne, escritor norte-americano nascido em Salem (1804-1864). Destaca a força espiritual do neopuritanismo inglês, cuja decadência é personificada pelos heróis de suas novelas. Autor de "The Scarlet Letter", "The House of the Seven Gables", "The Blithedale Romance", "The Marble Faun". Grande contista, une uma imaginação vigorosa a um grande poder de análise do coração humano.

Fonte: Os melhores contos de Herman Melville. Seleção, tradução e introdução de Olívia Krähenbühl. São Paulo: Círculo do Livro.

http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/mestr170.htm

VozitaUmberto EcoTradução de Miguel Serras Pereira

[O manuscrito a seguir publicado foi-nos cedido pelo chefe dos guardas da prisão comunal de um lugarejo do Piemonte. As notícias incertas que o homem nos deu acerca do misterioso prisioneiro que abandonou este texto numa cela, a névoa em que se encontra envolto

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o destino posterior do seu autor, uma certa reticência global e inexplicável que descolora e protege o indivíduo que escreveu estas páginas, são fatores que nos induzem a contentarmo-nos com o que sabemos e a termos de nos satisfazer com o que os resta do manuscrito — um resto roído pelos ratos —, base que pensamos sempre permitir ao leitor formar uma idéia da aventura extraordinária deste Umberto Umberto (mas o misterioso prisioneiro não terá sido talvez Vladimir Nabokov, paradoxalmente esquivo como é, e não nos revelará talvez o manuscrito o anti-rosto do proteiforme imoralista?) e, finalmente, extrair destas páginas aquilo que constitui a sua lição oculta — sob os farrapos da libertinagem, uma lição superior de moralidade.]

Vozita. Flor da minha adolescência, angústia das minhas noites. Não poderei voltar a ver-te nunca mais. Vozita. Vozita. Vozita. Três sílabas, como um abandono todo tecido de doçura: Vo-zi-ta. Vozita, possa eu recordar-te até que não seja apenas treva a tua imagem, e sepulcro somente o teu lugar.

Chamo-me Umberto Umberto. Quando tudo aconteceu, estava eu sucumbindo com audácia ao triunfo da adolescência. No dizer dos que me conhecem, não dos que me vejam agora, leitor, emagrecido nesta cela, com os primeiros sinais premonitórios de uma barba profética que me endurece as maçãs do rosto, no dizer dos que me conhecem, eu era então um bravo efebo, com essa sombra de melancolia que penso dever aos cromossomos meridionais de um antepassado da Calábria. As jovenzinhas que conheci cobiçavam-me com toda a violência dos seus úteros em flor, tornando-me a telúrica angústia das suas noites. Dos rapazinhos que conheci pouco recordo, porque me encontrava atrozmente na condição de presa de um paixão muito diversa, e os meus olhos mal afloravam as maçãs doiradas dos rostos deles, à contraluz de uma penugem cerosa e transparente.

Eu amava, amigo leitor, e amava com a loucura dos meus anos mais célebres, amava as que tu chamarias, com distraída inércia, “velhas”. Desejava, do mais profundo emaranhado das minhas fibras de imberbe, essas criaturas já marcadas pelos rigores de uma idade implacável, vergadas pelos ritmos fatais dos oitenta anos, terrivelmente minadas pelo fantasma apetecível da senilidade. Para designá-las, ignoradas pelos demais, esquecidas pela indiferença lúbrica dos usagers habituais de sólidas friulanas de vinte e cinco anos, adotarei, leitor — oprimido mesmo agora pelo regurgitar de uma impetuosa presciência que me corrompe todos os gestos de inocência que possa tentar —, um termo cuja exatidão não desespero: parquitas.

Que direis, vós que me julgais (toi, hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!), da caçada matinal que se oferece nos pântanos deste nosso mundo subterrâneo ao apaixonado cheio de ardor das parquitas? Vós que correis pelos jardins vesperais, dedicados à caça banal de garotinhas ainda mal começadas a intumescer, que sabeis vós da caça submissa, umbrátil, grotesca que o apreciador de parquitas pode conduzir pelos bancos dos jardins antigos, na sombra olorosa dos basiliscos, pelas trilhas ensaibradas dos cemitérios suburbanos, à hora da missa aos domingos na esquina dos asilos, à porta dos albergues noturnos, nas filas salmodiantes das procissões em honra dos santos padroeiros, nas quermesses de beneficência, numa cilada amorosa cerradíssima e por desgraça inexoravelmente casta, para mirar de perto os rostos escavados por rugas vulcânicas, os olhos lacrimosos de cataratas, o movimento vibrátil dos lábios consumidos, afogados na depressão refinada de uma boca sem dentes, sulcados de quando em quando por um regato lugidio de êxtases salivares, as mãos triunfantes de nós, nervosas no tremor lúbrico e provocante do desfiar de um rosário de infinita lentidão!

Nunca poderei fazer-te participar, leitor amigo, no langor desesperado dos encontros de olhos fugidios, o frêmito espasmódico de certos contatos labilíssimos, um toque de cotovelo no tropel do bonde (“Desculpe-me, minha senhora, quer sentar-se?” Oh, satânico amigo, como ousar então recolher o olhar úmido de reconhecimento e o “Obrigado, meu bom rapaz”, tu que terias desejado encenar ali mesmo a tua comédia báquica de possesso?), aflorar — roçando-o — um joelho venerável com a perna, entre duas filas de cadeiras na solidão da tarde de um cinema de bairro, apertar com ternura contida — esporádico momento do mais extremo contato! — o braço ossudo de uma velhota que se ajuda a atravessar nos semáforos com ar contrito de jovem explorador!

As vicissitudes da minha idade risível induziam-me a outros encontros. Já disse que possuía uma aparência talvez fascinante, com as minhas maçãs do rosto tisnadas e um delicado rosto de moça oprimida por uma virilidade mórbida. Não ignorei os amores adolescentes, mas sofri-os, como um tributo às razões da idade. Recordo que uma tarde de maio, pouco antes do pôr-do-sol, quando no jardim de uma villa aristocrática — era um local próximo do lago vermelho do sol poente — estendi-me na sombra de um crepúsculo com uma moça cheia de pintas de dezesseis anos, implume, tomada de um ímpeto amoroso dos sentidos verdadeiramente constrangedor. E foi nesse instante, enquanto lhe concedia sem vontade o horizonte caduceu da minha taumaturgia púbere, que vi, leitor, deixando adivinhar-se a uma janela do primeiro andar, a silhueta de uma criada decrépita curvamente desdobrada em duas, enquanto despia ao longo da perna a massa informe de meias pretas de algodão. A visão fulgurante daquele seu membro cheio, marcado pelas varizes, acariciado pelo movimento inábil das velhas mãos aplicadas a desenrolar o volume da peça de vestuário interior, surgiu-me (olhos meus, concupiscentes!) como um atroz e invejável símbolo fálico, brandido por um gesto de virgem: e foi nesse instante que, apanhado num êxtase que a distância exasperava, explodi agonizante numa efusão de assentimento biológico, que a moça (imprudente rãzinha, quanto te odiei!) recolheu gemebunda, como se de um tributo aos seus fascínios acerbos se tratasse.

Terás jamais compreendido, meu néscio instrumento de paixão em atraso, que fruíste das iguarias de uma outra mesa, ou ter-me-á a vaidade obtusa dos teus poucos anos feito aparecer-te como um cúmplice, inesquecível e fogoso? Depois de partires no dia seguinte, com a família, enviaste-me, no fim de uma semana, um cartão assinado com estas palavras: “A tua velha amiga”. Intuíste a verdade, revelando-me a tua perspicácia no uso acertado do adjetivo, ou terá sido apenas a bravata verbal de uma aluna de ginásio em guerra com as boas maneiras filológico-epistolares?

Como fixei desde então, tremendo, tantas janelas na esperança de ver surgir a silhueta desnuda de uma octogenária no banho! Quantas noites, semiescondido por uma árvore, consumei as minhas orgias solitárias, com o olhar na direção da sombra perfilada, atrás

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de uma cortina, de uma avó suavissimamente entregue a uma refeição salivante! E a horrível decepção, súbita e fulminante (tiens, donc, le salaud!) da figura que se subtrai à mentira das sombras chinesas e se revela no peitoril como aquilo que realmente é: uma bailarina nua, de seios túmidos e ancas ambarinas de égua andaluza!

Assim, durante meses e anos, corri insaciado à caça das adoráveis parquitas, entregue a uma busca que, bem o sei extraía a sua origem indestrutível do instante do meu nascimento, quando uma parteira desdentada e velha — resultado das buscas infrutíferas do meu pai, que, àquela hora da noite não foi capaz de encontrar outra senão ela, com um pé já na cova — me livrou da prisão viscosa do seio materno e me mostrou à luz da vida o seu rosto imortal de jeune parque.

Não procuro justificações para vós, que me ledes (à la guerre comme à la guerre), mas quero pelo menos explicar-vos a fatalidade do concurso de acontecimentos que me levou à vitória.

A festa para que fui convidado era um miserável petting party de jovens despidas e universitários impúberes. A luxúria flexível daquelas mocinhas indesejadas, a oferta negligente que faziam dos seios através da blusa desabotoada no impulso de um passo de dança, desgostava-me. Estava já pensando em escapar-me rapidamente daquele local de vulgar comércio de virilhas ainda intactas, quando um som agudíssimo, quase estridente (e como poderei alguma vez exprimir a freqüência vertiginosa, a rouca descida das cordas já gastas, l'allure suprème de ce cri centenaire?), um lamento trêmulo de mulher velhíssima mergulhou no silêncio os circunstantes. E na moldura da porta, vi-a, com o semblante da longínqua parca do choque pré-natal, marcado pelo entusiasmo cadente da cabeleira encanecidamente lasciva, o corpo encarquilhado que vincava com ângulos agudos o tecido liso e negro, as pernas flébeis que o tempo emagrecera e curvara inexoravelmente em arco, a linha frágil do fêmur vulnerável, perfilando-se por baixo do pudor antigo da venerável saia.

A mocinha insípida que nos recebera exibiu um gesto de cortesia enfadada. Ergueu os olhos para o céu e disse: “É a minha avó...”

[Termina neste ponto a parte intacta do manuscrito. Do que se torna possível inferir das linhas esparsas que se conseguem ler depois, a intriga deve ter-se desenrolado como segue: Umberto Umberto rapta poucos dias mais tarde a avó de sua anfitriã e foge com ela, levando-a no quadro da bicicleta, através do Piemonte. Começa por conduzi-la a um asilo de velhos pobres, onde à noite a possui, descobrindo entre outras coisas que aquela não é a primeira experiência do gênero da anciã. De madrugada, enquanto está fumando um cigarro na semiobscuridade do jardim, aproxima-se dele um rapazelho de aspecto duvidoso, que lhe pergunta manhosamente se a velha é, realmente, sua avó. O autor do manuscrito, preocupado, deixa o asilo, na companhia de Vozita, e inicia uma peregrinação vertiginosa pelas estradas do Piemonte. Visita a Feira dos Vinhos de Caneli, a Festa de Tartufo de Alba, participa no desfile de Gianduja, em Caglianetto, no mercado de gado de Nizza Monferrato, na eleição da Bela Moleira de Ivrea, na corrida de sacos da festa do padroeiro de Condove. No final deste errar demente, por toda a imensidade da região que o abriga, dá-se conta de que, há tempos, a sua bicicleta é dissimuladamente seguida por um jovem aventureiro de lambretta, que evita todas as suas emboscadas. No dia em que, em Incisa Scapaccino, leva Vozita a um calista e se afasta por um momento para comprar cigarros, quando regressa, vê-se abandonado pela velha, fugida com o raptor. Passa alguns meses mergulhado em desespero, e por fim consegue redescobrir a velhota, no momento em que ela regressa de um instituto de beleza a que a levara o sedutor. O seu rosto encontra-se agora sem rugas, os cabelos estão pintados de um louro acobreado, a boca tratada. Umberto Umberto é colhido por um sentimento de piedade abissal e desespero mudo à vista de semelhante ruína. Sem dizer palavra, adquire uma espingarda de dois canos e parte em busca do celerado. Encontra-o num acampamento, enquanto está esfregando dois pauzinhos para fazer fogo. Faz pontaria nele uma, duas, três vezes, falhando sempre, até que acaba por ser agarrado por dois sacerdotes de boina negra e jaqueta de couro. Imediatamente detido, é condenado a seis meses de prisão por porte de arma sem licença e caça fora de estação.]

1959

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— Fim —

Fonte: ECO, Umberto. Diário Mínimo. São Paulo: DIFEL, 1985.

http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/mestre92.htm