Monteiro Lobato - Urupes Livro

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Este livro destina-se ao uso exclusivo de deficientes visuais, no podendo ser utilizado com quaisquer fins lucrativos. Ignorar essa advertncia significa violar a Lei n 9610, que regulamenta os direitos autorais no Brasil. Nota: Este livro foi scanneado e corrigido por Carlos Antnio. Seu uso exclusivo de deficientes visuais. Urups Monteiro Lobato OBRAS COMPLETAS DE MONTEIRO LOBATO Literatura geral Literatura infanto-juvenil Amrica Aritmtica da Emlia A barca de Gleyre Caadas de Pedrinho Cartas de amor A chave do tamanho Cartas escolhidas Dom Quixote das crianas 'Cidades mortas Os doze trabalhos de Hrcules Conferncias, artigos e crnicas Emlia no pas da gramtica Crticas e outras notas Fbulas O escndalo do petrleo e ferro Geografia de Dona Benta Idias de Jeca Tatu Hans Staden Literatura do minarete Histria das invenes Mr. Slang e o Brasil e o problema Histrias de Tia Nastcia vital Histrias diversas Mundo da lua e miscelnea Histrias do mundo para as crianas Na antevspera Memrias da Emlia Negrinha O minotauro A onda verde Peter Pan Prefcios e entrevistas O Picapau Amarelo O presidente negro O poo do Visconde Urups A reforma da natureza Reinaes de Narizinho O saciSeres de Dona Benta Viagem ao cu *** MONTEIRO LOBATO URUPS editora brasiliense Copyright - by herdeiros de Monteiro Lobato Nenhuma parte desta publicao pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrnicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecnicos ou outros quaisquer sem autorizao prvia da editora. ISBN 85-11-18042-7 3 7." edio revisada, 1994 4" reimpresso, 1998 Reviso: Henrique S. Neves, Renato J. Bento, Agnaldo A. Oliveira, Ivete B. Santos Capa: Maria Eliana Paiva Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lobato, Monteiro, 1882-1948 Urups / Monteiro Lobato, - 37." ed. revisada - So Paulo Brasiliense, 1994. ISBN 85-11-18042-7 1. Contos brasileiros 1. Ttulo 94-2845 CDD-869.935 ndices para catlogo sistemtico: 1. Contos : Sculo 20 : Literatura brasileira 869-935 2. Sculo 20 : Contos : Literatura brasileira 869.935 editora brasiliense s.a. MATRIZ: Rua Atucuri, 318 - Tatuap - So Paulo - SP cep: 03411-000 Fone/Fax: (011) 6942-0545 VENDAS/DEPSITO: Rua Mariano de Souza, 664 - Tatuap - So Paulo - SP cep: 03411-090 Fones: (011) 293-5858, 293-0357, 6942-8170, 6191-2585 Fax: (011) 294-0765 *** SumrioNota dos Editores 7 Ligeira nota sobre a ortografia de Monteiro Lobato 9 Monteiro Lobato e a Academia 13 URUPS Os faroleiros 19 O engraado arrependido 33 A colcha de retalhos 45 A vingana da peroba 55 Um suplcio moderno 71 Meu conto de Maupassant 83 "Pollice verso" 87 Buclica 99 O mata-pau 107 Bocatorta 117 O comprador de fazendas 131 O estigma 145 Prefcio da 2 Edio de Uru ps 157 Velha praga 159 Urups 165 Nota dos Editores Este livro de Monteiro Lobato, cuja gnese vem descrita n'A BARCA DE GLEYRE, foi bafejado pelas circunstncias e tornou-se em nossa literatura mais que um livro do tipo comum, pois emitiu pseudpodos, influenciou a indstria, deu palavras e expresses lngua, hoje dicionarizadas. Cndido de Figueiredo aumentou o seu dicionrio com setenta e tantas expresses da lngua brasileira tomadas de URUPS, com as definies dadas por Lobato; e a lngua no Brasil enriqueceu-se com a palavra "jeca" e derivados, j nos dicionrios. O livro tambm afetou a indstria nacional, dando margem criao duma empresa impressora e editora que se desenvolvia vertiginosamente, sofreu um colapso e ressurgiu, transformada na Companhia Editora Nacional, a maior do Brasil e uma das maiores da Amrica do Sul. Os servios que essas duas editoras, filhas de URUPS, prestaram cultura nacional so infinitos e se projetaro indefinidamente, no futuro. Cremos que, em literatura nenhuma, em tempo nenhum, um simples livro de contos deu de si tantas conseqncias diretas e indiretas. Ligeira nota sobre a ortografia de Monteiro Lobato (Entrevista com os Editores) Monteiro Lobato pensa em tudo por si prprio. Muito antes de oficializada a atual ortografia, j ele tinha reagido contra a etimologia - e agora reage contra os acentos. Em tudo quanto escreve, e nas tradues, no usa acentos, afora os antigos. Qual a razo dessa ojeriza? Interpelamo-lo e a sua resposta merece meno. - "No ojeriza. o horror que eu tenho imbecilidade humana sobqualquer forma que se apresente. H uma lei natural que orienta a evoluo de todas as lnguas: a lei do menor esforo. Se eu posso dizer isto com o esforo de um quilogrmetro, por que diz-lo com o esforo de dois? Essa lei norteia a evoluo da lngua e foi o que fez com que cassem as inteis letras dobradas, os hh mudos, etc. A reforma ortogrfica veio apenas apressar um processo em curso. Por si mesma a palavra phthysica passou a tsica, e o ph j havia sido desmontado pelo f E assim seria em tudo. Essa grande lei do menor esforo conduz simplificao da ortografia, jamais complicao - e os tais acentos a torto e a direito que os reformadores oficiais impuseram nova ortografia vm complicar, vm contrariar a lei da evoluo! So, pois, uma coisa incientfica, tola, imbecil, cretinizante e que deve ser violentamente repelida por todas as pessoas decentes. Escrever 'h' ou 'sse', ou 'utro', ou 'freqncia', s porque uns ignarssimos 'alhos' gramaticais resolveram assim, ser covarde, bobo. Que a lngua dum pas? a mais bela obra coletiva desse pas. Oua este pedacinho da Carolina Michalis: 'A lngua a mais genial, original e nacional obra d'arte que uma nao cria e desenvolve. Neste desenvolve est a evoluo da lngua. Uma lngua est sempre se desenvolvendo no sentido da simplificao, e a reforma ortogrfica foi apenas um simples apressar o passo desse desenvolvimento. Mas a criao de acentos novos, como o grave e o trema, bem como a intil acentuao de quase todas as palavras, no desenvolvimento para a frente e sim complicao, involuo e, portanto, coisa que s merece pau, pau e mais pau'." - Nega ento a utilidade do acento? - "Est claro, homem! Pois no v que a maior das lnguas modernas, a mais rica em nmero de palavras, a mais falada de todas, a de mais opulenta literatura - a lngua inglesa - no tem um s acento? E isto teve sua parte na vitria dos povos de lngua inglesa no mundo, do mesmo modo que a excessiva acentuao da lngua francesa foi parte de vulto na decadncia e queda final da Frana. O tempo que os franceses gastaram em acentuar as palavras foi tempo perdido - que o ingls aproveitou para empolgar o mundo. Ora, depois dessa formidvel demonstrao da coisa desastrosa que o acento, virem os nossos gramticos decuplicar a nossa acentuao, coisa que eu explico s dum modo: quinta-colunismo! Essa gente suspeita! Essa gente quer arrastar este pas a um imenso desastre futuro! Quer que tenhamos o ignominioso destino da Frana, a pobre vtima do excesso de acentos!" - Mas a acentuao j est imposta por lei. - "No h lei humana que dirija uma lngua, porque lngua um fenmeno natural, como a oferta e a procura, como o crescimento das crianas, como a senilidade, etc. Se uma lei institui a obrigatoriedade dos acentos, essa lei vai fazer companhia s leis idiotas que tentam regular preos e mais coisas. Leis assim nascem mortas e um dever cvico ignor-las, sejam l quais forem os paspalhes que as assinem. A lei fica a e ns, os donos da lngua, o povo, vamos fazendo o que a lei natural da simplificao manda. Trema!... Acento grave!... 'utro' com acento circunflexo, comose houvesse meio de algum enganar-se na pronncia dessa palavra!... Imbecilidade pura, meu caro. E a reao contra o grotesco acentismo j comeou. Os jornais no o aceitam e os escritores mais decentes idem. A aceitao do acento est ficando como a marca, a caracterstica do carneirismo, do servilismo a tudo quanto cheira a oficial. Eu, de mim, solenemente o declaro, no sou 'm', e portanto no admito esses acentos em coisa nenhuma que eu escreva, nem leio nada que os traga. Se algum me escreve uma carta cheia de acentos, encosto-a. No leio. E se vem alguma com trema, devolvo-a, nobremente enojado..." At a 36 edio, a ortografia de Monteiro Lobato foi respeitada. A partir da 37 edio, optou-se por seguir o Vocabulrio Ortogrfico da Lngua Portuguesa. MONTEIRO LOBATO E A ACADEMIA Em 1925, Monteiro Lobato inscreveu-se candidato a uma vaga da Academia Brasileira e obteve 14 votos. Mais tarde, inscreveu-se de novo mas arrependeu-se e, em carta ao presidente Carlos de Laet, retirou a sua apresentao. E nunca mais pensou em Academia. Em 1944, um grupo de acadmicos tomou a iniciativa de meter Monteiro Lobato l dentro, pelo processo novo da indicao espontnea, processo que se havia inaugurado com a indicao, por dez acadmicos, do sr. Getlio Vargas. E Mcio Leo, presidente da Academia Brasileira, enviou a Monteiro Lobato a seguinte comunicao: "RIO DE JANEIRO, 9 de outubro de 1944. Ilustre amigo dr. Monteiro Lobato: Tenho o prazer de comunicar-lhe que, em documento apresentado Presidncia da Academia Brasileira de Letras, em data de 7 do corrente e subscrito pelos srs. Olegrio Mariano, Menotti del Picch ia, Viriato Correia, Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Cassiano Ricardo, Mcio Leo, Oliveira Viana, Barbosa Lima Sobrinho e Clementino Fraga, foi o nome de v. exa. indicado para a substituio do nosso saudoso e querido companheiro Alcides Maia. De acordo com o Regimento em vigor, cabe-me trazer a v. exa. esta comunicao. Ainda de acordo com o Regimento, a inscrio de v. exa. se tornar efetiva, nos termos do art. 18, pargrafo primeiro, mediante carta que v. exa. dentro de dez dias, ter a bondade de enviar a esta presidncia, dizendo que aceita a indicao e que deseja portanto concorrer vaga. Queira receber os protestos de minha grande estima e sincera considerao. (assin.) Mcio Leo Presidente da Academia Brasileira de Letras". A resposta de Monteiro Lobato poder constituir uma surpresa para muita gente, mas no para os que com ele privam e sabem da sua extraordinria coerncia e fidelidade a si mesmo. a seguinte: S. PAULO, 11 de outubro de 1944.Sr. Mcio Leo D.D. Presidente da Academia Brasileira: Acuso o recebimento da carta de 9 do corrente, na qual me comunica que em documento apresentado Academia Brasileira, subscrito por dez acadmicos, foi meu nome indicado para a substituio de Alcides Maia; e que nos termos do Regimento devo declarar que aceito a indicao e desejo concorrer vaga. Esse gesto de dez acadmicos do mais alto valor intelectual comoveu-me intensamente e a eles me escravizou. Vale-me por aclamao - honra com que jamais sonhei e est acima de qualquer merecimento que por acaso me atribuam. Mas o Regimento impe a declarao de meu desejo de concorrer vaga, e isso me embaraa. J concorri s eleies acadmicas no bom tempo em que alguma vaidade subsistia dentro de mim. O perpassar dos anos curou-me e hoje s desejo o esquecimento de minha insignificante pessoa. Submeterme, pois, ao Regimento seria infidelidade para comigo mesmo - duplicidade a que no me atrevo. De forma nenhuma esta recusa significa desapreo Academia, pequenino demais que sou para menosprezar to alta instituio. No nimo dos dez signatrios no paire a menor suspeita de que qualquer motivo subalterno me leva a este passo. Insisto no ponto para que ningum veja duplo sentido nas razes de meu gesto... No modstia, pois no sou modesto; no menosprezo, pois na Academia tenho grandes amigos e nela vejo afina flor da nossa intelectualidade. apenas coerncia; lealdade para comigo mesmo e para com os prprios signatrios; reconhecimento pblico de que rebelde nasci e rebelde pretendo morrer. Pouco social que sou, a simples idia de me ter feito acadmico por agncia minha me desassossegaria, me perturbaria o doce nirvanismo ledo e cego em que ca e me o clima favorvel idade. Do fundo do corao agradeo a generosa iniciativa; e em especial agradeo a Cassiano Ricardo e Menotti o sincero empenho demonstrado em me darem tamanha prova de estima. Fao-me escravo de ambos. E a tudo atendendo, considero-me eleito - mas numa nova situao de academicismo: o acadmico de fora, sentadinho na porta do Petit Trianon com os olhos reverentes pousados no busto do fundador da casa e o nome dos dez signatrios gravados indelevelmente em meu imo. Fico-me na soleira do vestbulo. Malcomportado que sou, reconheo o meu lugar. O bom comportamento acadmico l de dentro me d aflio... Peo, senhor presidente, que transmita aos dez signatrios os protestos da minha mais profunda gratido e aceite um afetuoso abrao deste seu Admirador e amigo MONTEIRO LOBATO Os faroleiros - Navio?Dava azo dvida uma luz vermelha a piscar na escurido da noite. Escurido, no direi de breu, que no o breu de sobejo escuro para referir um negror daqueles. De cego de nascena, v. Cu e mar fundia-os um s carvo, sem fresta nem pique alm da pinta vermelha que, sbito, se fez amarela. - L mudou de cor. E farol. E, como era farol, a conversa recaiu sobre faris. Eduardo interpelou-me de chofre sobre a idia que eu deles fazia. - A idia de toda a gente, ora essa! - Quer dizer, uma idia falsa. "Toda a gente" um monstro com orelhas d'asno e miolos de macaco, incapaz duma idia sensata sobre o que quer que seja. Tens na cabea, respeito a farol, uma idia de rua recebida do vulgo e nunca recurihada na matriz das impresses pessoais. Erro. - Confesso-me capaz de abrir a boca a um auditrio de casaca, se me desse na telha discursar sobre o tema; mas no afiano que o farol descrito venha a parecer-se com algum... - Pois eu te asseguro, sem fazer pouco no teu engenho, que tal conferncia, ouvida por um faroleiro, poria o homem de olho parvo, a dizer como o outro: Se percebo, sebo! - Acredito. Mas perceberia melhor uma tua? - retorqui abespinhado. - de crer. J vivi uma inesquecvel temporada no farol dos Albatrozes e falaria de cadeira. - Viveste em farol?!... - exclamei com espanto. - E l fui comparsa numa tragdia noturna de arrepiar os cabelos. O escuro desta noite evoca-me o tremendo drama... Estvamos ambos de bruos na amurada do Orion, em hora propcia ao esbagoar dum dramalho indito. Esporeado na curiosidade, provoquei-o. - Vamos ao caso, que estes negrumes clamam por espectros que os povoem. calamidade Shakespeare ou Ibsen? - Assina o meu drama um nome maior que o de Shakespeare... -? ? ? - ... a Vida, meu caro, a grande mestra dos shakespeares maiores e menores. Eduardo comeou do princpio. - O farol um romance. Um romance iniciado na antiguidade com as fogueiras armadas nos promontrios para norteio das embarcaes de remo e continuado sculos em fora at nossos possantes holofotes eltricos. Enquanto subsistir no mundo o homem, o romance "Farol" no conhecer eplogo. Montono como as calmarias, embrecham-se nele, a espaos, captulos de tragdia e loucura - pungentes gravuras de Dor quebrando a monotonia de um dirio de bordo. O caso dos Albatrozes foi um deles. Gerebita meteu-se no farol aos vinte e trs anos. raro isso. - Quem Gerebita? - Sab-lo-s em tempo. raro isso porque no geral s se metem nas torres homens maduros, quarentes batidos pela vida e descrentes das suas iluses. Deixar a terra na quadra verdolenga dos vinte anos apavorante. A terra!...Ns mal damos tento da nossa profunda adaptao ao meio terreno. A sua fixidez, o variegado de aspectos, o bulcio humano, a cidade, os campos, a mulher, as rvores... Conhecem os faroleiros melhor do que ningum o valor dessas teias. Enlurados num bloco de pedra, tudo quanto para ns sensao de todos os instantes, neles saudade e desejo. Cessam os ouvidos de ouvir a msica da terra, rumorejo de arvoredo, vozes amigas, barulho de rua, as mil e uma notas duma polifonia que ns sabemos que o , e encantadora, unicamente quando a segregao prolongada nos ensina a lhe conhecer o valor. Cessam os olhos de rever as imagens que desde a meninice lhes so habituais. Para os ouvidos s h ali, dia e noite, ano e ano, o marulho das ondas s chicotadas no enrocamento da torre; e para a vista, a eterna massa que ondula, ora torva, ora azul. Variantes nicas, as velas que passam de largo, donairosas como garas, ou os transatlnticos penachados de fumo. Figura a vida de um homem arrancado querncia e assim posto, qual triste gal, dentro duma torre de pedra, grudada como craca a um ilhu. Ter poesia de longe; de perto alucinante. - Mas o Gerebita... - Uma leitura de Kipling despertara-me a curiosidade de conhecer um farol por dentro. - O Perturbador do Trfego... - Parabns pela argcia. Foi justamente a histria do Dowse o ponto inicial do meu drama. Esse desejo incubou-se-me c dentro espera d'ocasio para brotar. Certo dia fui espairecer ao cais - e l estava, de mos s costas, a seguir o vo dos joo-grandes e a notar a gama dos verdes luzentes que sombra dos barcos ondeia na gua represada dos portos, quando uma lancha abicou, e vi descer um homem de feies duras e pele encorreada. Ao passar por um magote de catraeiros, um deles chasqueou em tom insinuativo: - "Gerebita, como vai a Maria Rita?" O desembarcadio rosnou um palavro de grosso calibre, e seguiu caminho, de sobrecenho carregado. Interessou-me aquele tipo. - "Quem ?", indaguei. - "Pois quem h de ser seno o faroleiro dos Albatrozes? No v a lancha?" De fato, a lancha era do farol. A velha idia deu-me cotoveladas: hora! Fui-lhe no encalo. - "Sr. Gerebita..." O homem entreparou, como admirado de ouvir-se nomear por boca desconhecida. Emparelhei-me com ele e, enquanto andvamos, fui-lhe expondo os meus projetos. - "No pode ser", respondeu; "o regulamento probe sapos na torre. S com ordem superior." Ora, eu tenho corrido mundo, sei que marosca essa de ordens superiores. Meti a mo no bolso e cochichei-lhe o argumento decisivo. O faroleiro relutou uns instantes, mas corrompeu-se mais depressa do que esperei. Guardou o dinheiro e disse: - "Procure o Dunga, patro da Gaivota Branca, terceiro armazm. Diga-lhe que j falou comigo. De quinta-feira em diante. E bico, veja l!"Prometi-lho caladssimo, e tornei ao cais cata do Dunga. Que sim - foi a resposta do catraeiro, ilhu palavroso, logo que expus o negcio -' j fizera isso certa vez a "outro maluco" e sabia prender a lngua para no atanazar a vida aos amigos. E como me informasse do faroleiro: - " o Gerebita, d'apelido ganho no Purus, onde serviu como grumete. Ao depois se meteu na lanterna, p'r'amor d'amores, o alarve, como se faltassem elas por a, e bem catitas. Mulheres! A mim que no me empecem, no, as songuirihas. O demo que as tolha que eu... E foi pelas mulheres alm, a dar de rijo, com razes nem melhores nem piores que as de Schopenhauer. No dia aprazado, antemanh, a Gaivota largou de rumo ao farol. Saltei num rude atracadouro de difcil abordagem, e encontrei o faroleiro ocupado em polir os metais da lanterna. Recebeume de boa sombra, largando o esfrego para fazer as honras da casa. Examinei tudo, dos alicerces ao lanternim, e hora do almoo j entendia de farol mais que uma enciclopdia. Gerebita deu trela lngua e falou do ofcio com melanclica psicologia. Tambm contou sua vida desde menino, a grumetagem no Purus, sua paixo pelo mar e por fim a entrada para o farol aos vinte e trs anos de idade. - "Por que assim to moo?" - "Caprichos do corao, m sorte, coisas...", respondeu com ar triste; e acrescentou aps uma pausa, mudando de tom: - "Pois a vida c isto que v. Boazinha, hein? Entretanto, boa ou m, temos, os faroleiros, um orgulho: sem ns, essa bicharada de ferro que passeia nas guas fumando seus dois, seus trs charutos..." - "L vem um!" - interrompeu-se, fisgando com a luneta uma fumaa remota. - "Bandeira alem... duas chamins... rumo sul... H de ser um 'Cap' - o Trafalgar, talvez. Seja l que diabo for, v com Deus. Mas, como ia dizendo, sem os faroleiros a manobrarem a 'ptica', esses comedores de carvo haviam de rachar toinha a pelos bancos de areia. Basta cair a cerrao e j se pem tontos, a urrar de medo pela boca das sereias, que mesmo um cortar a alma gente. Porque ento nem farol nem caracol. a cegueira. Navegam com a Morte no leme. Fora disso, salva-os o foguinho l de cima. Pouco antes de minha entrada para aqui houve desgraa. Um cargueiro da Bremen rachou o bico ali no Capelo... Quem o Capelo? Ah! ah! ah! O Capelo... Pois o Capelo o raio da terceira pedra a boreste. So trs deste lado, a Menina, que a primeira, a Curutuba, que a do meio. A criminosa o Capelo, que reponta mais ao largo e s mostra a coroa nas grandes vazantes. C a bombordo ainda h duas, a Virgem e a Maldita, onde bateu o cargueiro Rotterdam." - " aquela lisinha, acol?" - "Uma coitada que nem nome tem. mansa, est muito perto da terra, no faz mal a navio. Ali mora um anequim (2), bichanca de tamanho do diabo, que gosta de virar canoas. Mas, aqui para ns, moo, isso embromao. Peixe mora em todo o mar, no tem toca como bicho de terra. abuso de pescador. Quando h mar, no se enxerga nada por ali; mas se a gua serena e vem yindo avazante, vai aparecendo um lombo de pedra lisa com jeito de peixe. Passa um pescador atolambado, v aquilo de longe. ' anequim! anequim!' e toca a safar, com o medo n'alma. Se acontece embravecer a gua, e d temporal, e a canoa vira: 'Qu' de Fulano?' T, t, t, foi o anequim! Toda a gente pega, feito mulher velha. 'Foi o anequim do farol!' Ora a est como so as coisas. h muito anequim e tintureira (3) por aqui. Onde mar sem cao? Mas dizer que um tal mora aqui ou ali, isso embroma." E na sua pinturesca linguagem de martimo, que s vezes se tornava prodigiosamente tcnica, narrou-me toda a histria daquelas paragens malditas. Falou de como, segundo a tradio, se foram batizando os arrecifes; falou dos crimes de cada um; das hecatombes peridicas de aves noturnas que, cegadas pela luz, batem de peito contra os vidros da lanterna, juncando o cho de corpinhos latejantes; das medonhas tormentas nas quais o farol estremece como a tiritar de pavor. De que no falou Gerebita naquele inesquecvel dia? - "E o ajudante? Tem-no c?", perguntei. O rosto do meu faroleiro mudou de expresso. Vi de relance que eram inimigos. - " aquele estupor que l pesca", disse, apontando da janela um vulto imvel, acocorado num penedo. "Est a apanhar garoupinhas. o Cabrea. Mau companheiro, mau homem... Entreparou. Percebi que mascava uma confidncia difcil. Mas a confidncia denunciou-se apenas. Gerebita sacudiu a cabea e murmurou como de si para si: - "Est c de pouco, e o nico homem no mundo que no podia c estar. J reclamei do capito do porto, j mostrei o perigo. Mas, qual!..." Estranha criatura, o homem! Insulados do mundo naquela frgua, ambos nufragos da vida, o dio os separava... No faltavam no farol, entretanto, acomodaes para as famlias dos seus guardies. Por que no as tinham ali? Seria um bocado de mundo a lenir as agruras do emparedamento. Interpeleio; Gerebita retrucou-me de modo enviesado. - "Famlia no tenho, isto , tenho e no tenho. Tenho, porque sou casado, e no tenho porque... Histrias! Estas coisas de famlia bom que fiquem com a gente." Notei de novo que a pique duma revelao mascava o segredo por desconfiana ou pudor. Suas feies endureceram. Sombras ms anuviaram-lhe a fisionomia. E mais torvo ainda me pareceu quando Cabrea entrou, sobraando um balaio de pescado. Tipo de m cara, passou em direitura cozinha sem nos volver um olhar. Mal se sumiu, Gerebita exclamou: "Raio do diabo!" assentando num caixote expiatrio um murro de fender pinho. Depois: - "O mundo to grande, h tanta gente no mundo, e cai-me aqui justamente o nico ajudante que eu no podia ter..." - "Por qu?" - "Por qu?... Porque... um louco." Entre o primeiro e o segundo "porqu" notei transio radical. Dbio o primeiro, o segundo afigurou-se-me resoluto, como iluminado pelo claro duma idia brotada no momento.Desde esse dia nunca mais o faroleiro abandonou o tema da loucura do outro. Demonstrava-ma de mil maneiras. - "E aqui onde at os sos perdem a tramontana", argumentava ele, "um j assim rachado de telha aos trs por dois rebenta como bomba no fogo. Eu jogo que ele no vara o ms. No v seus modos?" Metade por sugesto, metade por observao leviana, razovel me pareceu a profecia; e como sem cessar Gerebita malhasse na mesma tecla, acabei por convencer-me de que o casmurro ajudante era um fadado ao hospcio, com pouco tempo de equilbrio nos miolos. Um dia Gerebita abordou a questo nestes termos: - "Quero que o senhor me resolva um caso. Esto dois homens numa casa; de repente um enlouquece e rompe, como cao esfomeado, para cima do outro. Deve o outro deixar-se matar como carneiro ou tem o direito de atolar a faca na garganta do bicho?" Era por demais clara a consulta. Respondi como um rbula positivo: - "Se Cabrea enlouquecesse e o agredisse, mat-lo seria um direito natural de defesa - no havendo socorro mo. Matar para no morrer no crime - mas isto s em ltimo caso, voc compreende." - "Compreendo, compreendo", respondeu-me distraidamente, como quem l segue os volteios duma idia secreta; e depois de longa pausa: "Seja o que Deus quiser murmurou entre si, suspirando e recaindo em cismas. Deixei-me ficar janela a ver cair a noite. Nada mais triste do que as ave-marias no ermo. A treva espessava as guas e absorvia no cu os derradeiros palores da luz. No poente, um leque aluarado enrubescia nas varetas, com dedadas sangrentas de nuvens a barr-lo de listres horizontais. Triste... A ardsia do mar; as primeiras estrelinhas entreluzindo a medo; o marulho na pedra, tch, tch, compassado, eterno... A alma confrangeu-se-me de angstia. Vi-me nufrago, retido para sempre num navio de pedra, grudado como desconforme craca na pedranceira da ilhota. E pela primeira vez na vida senti profundas saudades dessa coisa srdida, a mais reles de quantas inventou a civilizao - o "caf", com o seu tumulto, a sua poeira, o seu bafio a tabaco e a sua freguesia habitual de vagabundssimos "agentes de negcios"... Correram dias. Minto. No vazio daquele dessaborido viver no ermo o tempo no corria - arrastava-se com a lentido da lesma por sobre cho liso e sem fim. Gerebita tornara-se enfadonho. No mais narrava pinturescos incidentes da sua vida de marujo. Aferrado idia fixa da loucura do Cabrea, s cuidava de demonstrar-me os seus progressos. Fora desse tema sinistro, sua ocupao era seguir de olhos os navios que repontavam ao largo, at v-los sumirem-se na curva do horizonte. Velas, poucas alvejavam, tirante barquinhas de pescadores. Mas uma que surgisse l nos levava os olhos e a imaginao. Como se casa bem com o mar o barco de vela! E que srdido barato craquento ao p dele o navio a vapor! Escunas, corvetas, pequeninos cutters, fragatas, lugres, brigues, iates... O que l vai passado de leveza e graa!...Substituem-nas, s garas leves, os feios escaravelhos de ferro e piche; a elas, que viviam de brisas, os negros comedores de carvo, bicharocos que mugem roncos de touro enrouquecido. Progresso amigo, tu s cmodo, s delicioso, mas feio... Que fizeste da coisa linda que a vela enfunada? Do barco antiga, onde ressoavam canes de maruja, e todo se enleava de cordame, e trazia gajeiro na gvea, e lendas de serpentes marinhas na boca dos marinheiros, e a Nossa Senhora dos Navegantes em todas as almas, e o medo das sereias em todas as imaginaes? Desfez-se a poesia do reino encantado de Anfitrite ao ronco do Lusitnias, hotis flutuantes com garons em vez de "lobos-do-mar", incaractersticos, cosmopolitas, sem donaire, sem capites de suas, pitorescos no falar como seiscentos milhes de caravelas. O fumo da hulha sujou a aquarela maravilhosa que desde Hanon e Ulisses vinha o veleiro pintando sobre a tela ocenica... - Se paras o caso dos loucos e te metes por intermezzos lricos para uso de meninas olheirudas, vou dormir. Volta ao farol, romantico de m morte. - Eu devia castigar o teu prosasmo sonegando-te o eplogo do meu drama, filho do "caf" e do carvo! - Conta, conta... Certa tarde, Gerebita chamou minha ateno para o agravamento da loucura de Cabrea, e aduziu vrias provas concludentes. - "Queira Deus no seja hoje!..." - "Tens medo?" - "Medo? Eu? De Cabrea?" Queria que visses a estranha expresso de ferocidade que lhe endureceu o rosto!... A conversa parou a. Gerebita chupava cachimbadas nervosas, fechado de sobrecenho como quem rumina uma idia fixa. Deixou-me, e logo em seguida subiu. Como anoitecesse, recolhi-me pouco depois e deitei-me. Dormi e sonhei. Sonhei um sonho guinholesco, agitadssimo, com lutas, facadas, o diabo. Lembro-me que, agredido por um facnora, desfechei contra ele cinco tiros de revlver; as balas, porm, grudaram-se parede e deram de ressoar dum modo que me despertou. Mas acordado continuei a ouvir o mesmo barulho, vindo de cima, da lanterna. Pressinto a catstrofe esperada. Salto da cama e aguo o ouvido: barulho de luta. Corro escada, galgo-a aos trs degraus e no topo esbarro com a porta fechada. Tento abriLa: no cede. Escuto: era de fato luta. Rolavam corpos pelo cho, fazendo retinir os vidros da lanterna, e ouvia-se um resfolego surdo, entremeado de embates contra os mveis. Trevas absolutas. Nenhuma rstia de luz coava para a escada. Minha situao era esquerda. Ficar ali, intil, quando portas adentro dois homens se entrematavam? Permanecia eu nessa dubiedade, quando choque violento escancaroume a porta. Um claro de sol chofrou-me os olhos. Senti nas pernas um tranco - e rodei escada abaixo de cambulhada com dois corpos engalfinhados. Ergui-me, tonto, e vi em rebolo no cho os dois faroleiros. Atirei-me Luta em auxlio de Gerebita.- "Dois contra um!", gemeu Cabrea, sufocado. " covardia!" Pela primeira vez lhe ouvi a voz - e hoje noto que nada nela denunciava loucura. No momento pensei diversamente, se que pensei alguma coisa. Gerebita, com grande assombro meu, tambm me repeliu. - "No! No! Eu s!" Nisto, um pego de nortada, varrendo a torre, trancou a porta do lanternim com estrondo. Envolveu-nos de novo a escurido. E comea aqui o horror... Os rugidos que ouvi, os arrancos e soces formidveis da luta nas trevas, a minha ansiedade... Pavorosos minutos de vida que no desejo renovados. Perdi a noo do tempo. Durou muito aquilo? No sei dizer. S sei que a tantas ouvi escapar-se ao peito de Gerebita um urro de dor, e logo em seguida uma imprecao, "Desgraado!", cujas derradeiras slabas morreram num trincar de dentes atassalhando carnes. Cabrea grugulejou uns roncos que se casaram com o arquejar do peito de Gerebita, e a luta esmoreceu. Sem palavras na boca, cegado pela escurido, eu s ouvia, fora, os uivos da nortada, e ali, aquele arquejo do vencedor exausto cado beira do vencido. Com os olhos da imaginao eu via esse quadro, que com os da cara enxergava tanto como se os tivera envoltos em veludo negro. No te conto os pormenores do eplogo. Obtive luz e o que vi no te conto. Impossvel pintar o hediondo aspecto de Cabrea com a cartida estraalhada a dente, cado num lago de sangue. Ao seu lado Gerebita, com a cara e o peito vermelhos, a mo sangrenta, estatelava-se no cho, sem sentidos. Os meus transes diante daqueles corpos martirizados, quela hora da noite - daquela terrvel noite negra como esta e sacudida por um vento do inferno!... Na manh seguinte, Gerebita pousou-me a mo sobre o ombro e disse: - "O mar no leva daqui os corpos praia e o mundo no precisa saber de que morreu Cabrea. Caiu n'gua morte de marinheiro e o moo testemunha de que matei para no morrer. Foi defesa. Agora vai jurar-me que isto ficar para sempre entre ns." Jurei-o lealmente, tocando de leve a mo mutilada. E ele, num acesso de infinito desalento, quedou-se imvel, a olhar para o cho, murmurando insistentemente: - "Eu bem avisei. No me acreditaram. Agora, est a, est a, est a..." Nesse mesmo dia veio buscar-me o Dunga. Mal a Gaivota largou, narrei-lhe a morte do faroleiro, romanceando-a: Cabrea, louco a despenhar-se torre abaixo e a sumir-se para sempre no seio das ondas. Dunga, assombrado, susteve no ar os remos. - "Pois morreu? E louco." - "Est claro!" - "Claro que lhe parece, que a mim... - "Conhecia-o?" - "No conhecia outra coisa. Des'que furtou a Maria Rita..." - "Que Maria Rita?"- "Pois a Maria Rita, mulher do Gerebita, ento no sabe? Que ele seduziu, hom'essa." Abri a minha maior boca e arregalei o que pude os olhos. - "Como sabe disso?" - " boa! Sei porque sei, como sei que aquela gaivota que ali vai uma e que este mar mar. A Maria Rita era uma morena de truz, perigosa como o demo. O tolo do Gerebita derreou-se d'amores pela bisca e l casou. E vai ela, a songuinha, mal o homem saa no Purus, metia em casa ao Cabrea. E nesse jogo viveram at que um dia fugiram juntos para outras terras. O pobre Gerebita se no acabou de paixo que teso. Mas entrou para o farol, o que tambm um modo de morrer p'r'o mundo. Pois bem. A bola vira, o tempo corre, e vai, seno quando, quem mete o Governo no farol em lugar do defunto Gabriel? Ao Cabrea! Ao Cabrea que tambm andava descrente da vida porque a Rita lhe fugira com terceiro. Coisas do mundo. Diz-me agora vossoria que o homem enlouqueceu, e rolou no penedo, e l o ri o peixe. Est bem. Antes assim, que do contrrio era em ponta de faca que aquilo acabaria..." Calei-me. H situaes na vida que as idias embaralham de tal forma que de bom conselho deixarmo-las se assentarem por si. Eis como... - ... o meu grande amigo Eduardo foi empulhado por um assassino vulgar! - Perdo. O fato de se no manejarem floretes no tira quele pugilato o carter de duelo. - "Cavalleria rusticana", ento? - E por que no? Notas: 1. O conto "Os Faroleiros" foi publicado na Revista do Brasil, n 20, de agosto de 1917, sob o ttulo de: "Cavalleria Rusticana". Numa carta a Godofredo Rangel, Lobato explica a mudana: "Minha Cavalleria Rusticana, que vou mudar para Os Faroleiros porque toda a gente confunde "cavaleria" com "cavalaria" (que cavalos!)... 2. Anequim: Espcie de tubaro. 3. Tintureira: Espcie de tubaro. O engraado arrependido Francisco Teixeira de Souza Pontes, galho bastardo duns Souza Pontes de trinta mil arrobas afazendados no Barreiro, s aos trinta e dois anos de idade entrou a pensar seriamente na vida. Como fosse de natural engraado, vivera at ali custa da veia cmica, e com ela amanhara casa, mesa, vesturio e o mais. Sua moeda corrente era micagens, pilhrias, anedotas de ingls e tudo quanto bole com os msculos faciais do animal que ri, vulgo homem, repuxando risos ou matracolejando gargalhadas. Sabia de cor a Enciclopdia do Riso e da Galhofa, de Fuo Pechincha, o autor mais dessaborido que Deus botou no mundo; mas era tal a arte do Pontes, que as sensaborias mais relambrias ganhavam em sua boca um chiste raro, defazer os ouvintes babarem de puro gozo. Para arremedar gente ou bicho, era um gnio. A gama inteira das vozes do cachorro, da acuao aos caititus ao uivo lua, e o mais, rosnado ou latido, assumia em sua boca perfectibilidade capaz de iludir aos prprios ces - e lua. Tambm grunhia de porco, cacarejava de galinha, coaxava de untariha, ralhava de mulher velha, choramingava de fedelho, silenciava de deputado governista ou perorava de patriota em sacada. Que vozeiro de bpede ou quadrpede no copiava ele s maravilhas, quando tinha pela frente um auditrio predisposto? Descia outras vezes pr-histria. Como fosse d'algumas luzes, quando os ouvintes no eram pecos ele reconstitua os vozeires paleontolgicos dos bichos extintos - roncos de mastodontes u berros de mamutes ao avistarem-se com peludos homos repimpados e fetos arbreos - coisa muito de rir e divulgar a cincia do sr. Barros Barreto. Na rua, se pilhava um magote de amigos parados esquina, aproximava-se de mansinho e - nhoc! - arremessava um bote de munheca barriga da perna mais a jeito. Era de ver o pinote assustado e o - passa! nervoso do incauto, e logo em seguida as risadas sem fim dos outros, e a do Pontes, o qual gargalhava dum modo todo seu, estrepitoso e musical - msica d'Qffenbach. Pontes ria parodiando o riso normal e espontneo da criatura humana, nica que ri alm da raposa bbada; e estacava de golpe, sem transio, caindo num srio de irresistvel cmico. Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas aes mais triviais da vida, o raio do homem diferenava-se dos demais no sentido de amolec-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presena. Mal o avistavam, j as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora!, eram cascalhadas, eram rinchavelhos, eram guinchos, engasgos, fungaes e asfixias tremendas. - da pele, este Pontes! - Basta, homem, voc me afoga! E se o pndego se inocentava, com cara palerma: - Mas que estou fazendo? Se nem abri a boca... - Qu, qu, qu - a companhia inteira, desmandibulada, chorava no espasmo supremo dos risos incoercveis. Com o correr do tempo, no foi preciso mais que seu nome para deflagrar a hilaridade. Pronunciando algum a palavra "Pontes", acendia-se logo o estopim das fungadelas pelas quais o homem se alteia acima da animalidade que no ri. Assim viveu Pontes at a idade do Cristo, numa parbola risonha, a rir e fazer rir, sem pensar em nada srio vida de filante que d momos em troca de jantares e paga continhas midas com pilhrias de truz. Um negociante caloteado disse-lhe um dia entre frouxos de riso babado: - Voc ao menos diverte, no como o major Carapua que caloteia de carranca.Aquele recibo sem selo mortificou seu tanto ao nosso pndego; mas a conta subia a quinze mil ris - valia bem a pelotada. Entretanto, l ficou a lembrana dela espetada como alfinete na almofadinha do amor-prprio. Depois vieram outros e outros, estes fincados de leve, aqueles at a cabea. Tudo cansa. Farto de tal vida, entrou o hilario a sonhar as delcias de ser tomado a srio, falar e ser ouvido sem repuxo de msculos faciais, gesticular sem promover a quebra da compostura humana, atravessar uma rua sem pressentir na peugada um coro de "L vem o Pontes!" em tom de quem se espreme na conteno do riso ou se ajeita para uma barrigada das boas. Reagindo, tentou Pontes a seriedade. Desastre. Pontes srio mudava de tecla, caa no humorismo ingls. Se antes divertia como o Clown, passava agora a divertir como o Tony. O estrondoso xito do que a toda a gente se afigurou uma faceta nova da sua veia cmica verteu mais sombra na alma do engraado arrependido. Era certo que no poderia traar outro caminho na vida alm daquele, ora odioso? Palhao, ento, eternamente palhao fora? Mas a vida de um homem feito tem exigncias sisudas, impe gravidade e at casmurrice dispensveis nos anos verdes. O cargo mais modesto da administrao, uma simples vereana, requer na cara a imobilidade da idiotia que no ri. No se concebe vereador risonho. Falta ao dito de Rabelais uma excluso: o riso prprio espcie humana, fora o vereador. Com o dobar dos anos a reflexo amadureceu, o brio cristalizou-se, e os jantares cavados deram a saber-lhe a azedo. A moeda pilhria tornou-se-lhe dura ao cunho; j a no fundia com a frescura antiga; j usava dela como expediente de vida, no por fogana despreocupada, como outrora. Comparava-se mentalmente a um palhao de circo, velho e achacoso, a quem a misria obriga a transformar reumatismo em caretas hlares como as quer o pblico pagante. Entrou a fugir dos homens e despendeu bons meses no estudo da transio necessria ao conseguimento de um emprego honesto. Pensou no balco, na indstria, na feitoria duma fazenda, na montagem dum botequim - que tudo era prefervel paspalhice cmica de at ali. Um dia, bem maturados os planos, resolveu mudar de vida. Foi a um negociante amigo e sinceramente lhe exps os propsitos regeneradores, pedindo por fim um lugar na casa, de varredor que fosse. Mal acabou a exposio, o galego e os que espiavam de longe espera do desfecho torceram-se em estrondoso gargalhar, como sob ccegas. - Esta boa! E de primeirssima! Qu! qu! qu! Com que ento... Qu! qu! qu! Voc me arruina os fgados, homem! Se pela continha dos cigarros, v embora que me dou por bem pago! Este Pontes tem cada uma... E a caixeirada, os fregueses, os sapos de balco e at passantes que pararam na calada para "aproveitar o esprito", desbocaram-se em qus de matraca at lhes doerem os diafragmas. Atarantado e serissimo, Pontes tentou desfazer o engano.- Falo srio, e o senhor no tem o direito de rir-se. Pelo amor de Deus, no zombe de um pobre homem que pede trabalho e no gargalhadas. O negociante desabotoou o cs da cala. - Fala srio, pff! Qu! qu! qu! Olha Pontes, voc... Pontes largou-o em meio da frase, e se foi com a alma atenazada entre o desespero e a clera. Era demais. A sociedade o repelia, ento? Impunha-lhe uma comicidade eterna? Correu outros balces, explicou-se como melhor pde, implorou. Mas por voz unnime, o caso foi julgado como uma das melhores pilhrias do "incorrigvel" - e muita gente o comentou com a observao de costume: - No se emenda o raio do rapaz! E olhem que j no criana... Barrado no comrcio, voltou-se para a lavoura. Procurou um velho fazendeiro que despedira o feitor e exps-lhe o seu caso. Depois de ouvir-lhe atentamente as alegaes, conclusas com o pedido do lugar de capataz, o coronel explodiu num ataque de hilaridade. - O Pontes capataz! 1h! 1h! 1h! - Mas... - Deixe-me rir, homem, que c na roa isto raro. 1h! 1h! 1h! muito boa! Eu sempre digo: graa como o Pontes, ningum! E berrando para dentro: - Maricota, venha ouvir esta do Pontes. 1h! 1h! 1h! Nesse dia, o infeliz engraado chorou. Compreendeu que no se desfaz do p p'r'a mo o que levou anos a cristalizar-se. A sua reputao de pndego, de impagvel, de monumental, de homem do chifre furado ou da pele, estava construda com muito boa cal e rijo cimentado para que assim esboroasse de chofre. Urgia, entretanto, mudar de tecla, e Pontes volveu as vistas para o Estado, patro cmodo e nico possvel nas circunstncias, porque abstrato, porque no sabe rir nem conhece de perto as clulas que o compem. Esse patro, s ele, o tomaria a srio - o caminho da salvao, pois, embicava por ali. Estudou a possibilidade da agncia do correio, dos tabelionatos, das coletorias e do resto. Bem ponderados os prs e contras, os trunfos e naipes, fixou a escolha na coletoria federal, cujo ocupante, major Bentes, por avelhantado e cardaco, era de crer no durasse muito. Seu aneurisma andava na berra pblica, com rebentamento esperado para qualquer hora. O s de Pontes era um parente do Rio, sujeito de posses, em via de influenciar a poltica no caso da realizao de certa reviravolta no governo. L correu atrs dele e tantas fez para mov-lo sua pretenso que o parente o despediu com promessa formal. - Vai sossegado que, em a coisa arrebentando por c e o teu coletor rebentando por l, ningum mais h de rir-se de ti. Vai, e avisa-me da morte do homem sem esperar que esfrie o corpo. Pontes voltou radioso de esperana e pacentemente aguardou a sucesso dos fatos, com um olho na poltica e outro no aneurisma salvador.A crise afinal veio; caram ministros, subiram outros e entre estes um politico negocista, scio do tal parente. Meio caminho j era andado. Restava apenas a segunda parte. Infelizmente, a sade do major encruara, sem sinais patentes de declnio rpido. Seu aneurisma, na opinio dos mdicos que matavam pela alopatia, era coisa grave, de estourar ao menor esforo; mas o precavido velho no tinha pressa de ir-se para melhor, deixando uma vida onde os fados lhe conchegavam to fofo ninho, e l engambelava a doena com um regime ultrametdico. Se o mataria um esforo violento, sossegassem, ele no faria tal esforo. Ora, Pontes, mentalmente dono daquela sinecura, impacientava-se com o equilbrio desequilibrador dos seus clculos. Como desembaraar o caminho daquela travanca? Leu no Chernoviz o captulo dos aneurismas, decorou-o; andou em indagaes de tudo quanto se dizia ou se escreveu a respeito; chegou a entender da matria mais que o doutor Iodureto, mdico da terra, o qual, seja dito aqui puridade, no entendia de coisa nenhuma desta vida. O pomo da cincia, assim comido, induziu-o tentao de matar o homem, forando-o a estourar. Um esforo o mataria? Pois bem, Souza Pontes o levaria a esse esforo! - A gargalhada um esforo, filosofava satanicamente de si para si. A gargalhada, portanto, mata. Ora, eu sei fazer rir... Longos dias passou Pontes alheio ao mundo, em dilogo mental com a serpente. - Crime? No! Em que cdigo fazer rir crime? Se disso morresse o homem, culpa era da sua m aorta. A cabea do maroto virou picadeiro de luta onde o "plano" se batia em duelo contra todas as objees mandadas ao encontro pela conscincia. Servia de juiz a sua ambio amarga e Deus sabe quantas vezes tal juiz prevaricou, levado de escandalosa parcialidade por um dos contendores. Como era de prever, a serpente venceu, e Pontes ressurgiu para o mundo um tanto mais magro, de olheiras cavadas, porm com um estranho brilho de resoluo vitoriosa nos olhos. Tambm notaria nele o nervoso dos modos quem o observasse com argcia mas a argcia no era virtude sobeja entre os seus conterrneos, alm de que estados d'alma do Pontes eram coisa de somenos, porque o Pontes... - Ora o Pontes... o futuro funcionrio forjicou, ento, meticulosos planos de campanha. Em primeiro era mister aproximar-se do major, homem recolhido consigo e pouco amigo de lrias; insinuar-se-lhe na intimidade; estudar suas venetas e cachacinhas at descobrir em que zona do corpo tinha ele o calcanhar-de-aquiles. Comeou freqentando com assiduidade a coletoria, sob pretextos vrios, ora para selos, ora para informaes sobre impostos, que tudo era ensejo de um parolar manhoso, habilssimo, calculado para combalir a rispidez do velho. Tambm ia a negcios alheios, pagar coisas, extrair guias, coisinhas; fizera-se muito servial para os amigos que traziam negcios com a fazenda. O major estranhou tanta assiduidade e disse-lho, masPontes escamoteou-se interpelao montado numa pilhria de truz, e perseverou num bem calculado dar tempo ao tempo que fosse desbastando as arestas agressivas do cardaco. Dentro de dois meses j se habituara Bentes quele serelepe, como lhe chamava, o qual, em fim de contas, lhe parecia um bom moo, sincero, amigo de servir e sobretudo inofensivo... Da a l em dia d'acmulo de servio pedir-lhe um obsquio, e depois outro, e terceiro, e t-lo afinal como espcie de adido repartio, foi um passo. Para certas comisses no havia outro. Que diligncia! Que finura! Que tato! Advertindo certa vez o escrevente, o major puxou aquela diplomacia como lembrete. - Grande pasmado! Aprenda com o Pontes, que tem jeito para tudo e ainda por cima tem graa. Nesse dia, convidou-o para jantar. Grande exultao na alma do Pontes! A fortaleza abria-lhe as portas. Aquele jantar foi o incio duma srie em que o serelepe, agora facttum indispensvel, teve campo de primeira ordem para evolues tticas. O major Bentes, entretanto, possua uma invulnerabilidade: no ria, limitava suas expanses hlares a sorrisos irnicos. Pilhria que levava outros comensais a erguerem-se da mesa atabafando a boca nos guardanapos, encrespava apenas os seus lbios. E se a graa no era de superfina agudeza, ele desmontava sem piedade o contador. - Isso velho, Pontes, j num almanaque Laemmert de 1850 me lembro de o ter lido. Pontes sorria com ar vencido; mas l por dentro consolava-se, dizendo, dos fgados para o rim, que se no pegara daquela, doutra pegaria. Toda a sua sagacidade enfocava no fito de descobrir o fraco do major. Cada homem tem predileo por um certo gnero de humorismo ou chalaa. Este morre por pilhrias fesceninas de frades bojudos. Aquele pla-se pelo chiste bonacheiro da chacota germnica. Aquel'outro d a vida pela pimenta gaulesa. O brasileiro adora a chalaa onde se pe a nu a burrice tamancuda de galegos e ilhus. Mas o major? Por que no ria inglesa, nem alem, nem francesa, nem brasileira? Qual o seu gnero? Um trabalho sistemtico de observao, com a metdica excluso dos gneros j provados ineficientes, levou Pontes a descobrir a fraqueza do rijo adversrio: o major lambia as unhas por casos de ingleses e frades. Era preciso, porm, que viessem juntos. Separados, negavam fogo. Esquisitices do velho. Em surgindo bifes vermelhos, de capacete de cortia, roupa enxadrezada, sapates formidolosos e cachimbo, juntamente com frades redondos, namorados da pipa e da polpa feminina, l abria o major a boca e interrompia o servio da mastigao, como criana a quem acenam com cocada. E quando o lance cmico chegava, ele ria com gosto, abertamente, embora sem exagero capaz de lhe destruir o equilbrio sangneo. Com infinita pacincia, Pontes bancou nesse gnero e no mais saiu dali. Aumentou o repertrio, a gradao do sal, a dose de malcia, e sistematicamente bombardeou a aorta do major com os produtos dessa hbil manipulao.Quando o caso era longo, porque o narrador o forja no intento de esconder o desfecho e realar o efeito, o velho interessava-se vivamente, e nas pausas manhosas pedia esclarecimento ou continuao. - "E o raio do bife?" "E da?" "Mister John apitou?" Embora tardasse a gargalhada fatal, o futuro coletor no desesperava, confiando no aplogo da bilha que de tanto ir fonte l ficou. No era mau o clculo. Tinha a psicologia por si - e teve tambm por si a quaresma. Certa vez, findo o carnaval, reuniu o major os amigos em torno a uma enorme piabanha recheada, presente dum colega. O entrudo desmazorrara a alma dos comensais e a do anfitrio, que estava naquele dia contente de si e do mundo, como se houvera enxergado o passarinho verde. O cheiro vindo da cozinha, valendo por todos os aperitivos de garrafaria, punha nas caras um enternecimento estomacal. Quando o peixe entrou, cintilaram os olhos do major. Pescado fino era com ele, inda mais cozido pela Gertrudes. E naquele brdio, primara a Gertrudes num tempero que excedia as raias da culinria e se guindava ao mais puro lirismo. Que peixe! Vatel o assinaria com a pena da impotncia molhada na tinta da inveja, disse o escrevente, sujeito lido em Brillat-Savarin e outros praxistas do paladar. Entre goles de rica vinhaa, ia a piabanha sendo introduzida nos estmagos com religiosa uno. Ningum se atrevia a quebrar o silncio da bromatolgica beatitude. Pontes pressentiu oportuno o momento do golpe. Trazia engatilhado o caso dum ingls, sua mulher e dois frades barbadinhos, anedota que elaborara custa da melhor matria cinzenta de seu crebro, aperfeioando-a em longas noites de insnia. J de dias a tinha de tocaia, s aguardando o momento em que tudo concorresse para lev-la a produzir o efeito mximo. Era a derradeira esperana do facnora, seu ltimo cartucho. Negasse fogo e, estava resolvido, metia duas balas nos miolos. Reconhecia impossvel manipular-se torpedo mais engenhoso. Se o aneurisma lhe resiste ao embate, ento que o aneurisma era uma potoca, a aorta uma fico, o Chernoviz um palavrrio, a medicina uma misria, o doutor Iodureto uma cavalgadura e ele, Pontes, o mais chapado sensaboro ainda aquecido pelo sol - indigno, portanto, de viver. Matutava assim o Pontes, negaceando com os olhos da psicologia a pobre vtima, quando o major veio ao seu encontro: piscou o olho esquerdo - sinal de predisposio para ouvir. - E agora! - pensou o bandido. E com infinita naturalidade, pegando como por acaso uma garrafinha de molho, ps-se a ler o rtulo. - Perrins; Lea and Perrins. Ser parente daquele lorde Perrins que bigodeou os dois frades barbadinhos? Inebriado pelos amavios do peixe, o major alumiou um olho concupiscente, guloso de chulice. - Dois barbadinhos e um lorde! A patifaria deve ser marca X. P. T. O. Conta l, serelepe. E, mastigando maquinalmente, absorveu-se no caso fatal. A anedota correu capciosa pelos fios naturais at asproximidades do desfecho, narrada com arte de mestre, segura e firme, num andamento estratgico em que havia gnio. Do meio para o fim, a maranha empolgou de tal forma o pobre velho que o ps suspenso, de boca entreaberta, uma azeitona no garfo detida a meio caminho. Um ar de riso - riso parado, riso estopim, que no era seno o armar bote da gargalhada, iluminou-lhe o rosto. Pontes vacilou. Pressentiu o estouro da artria. Por uns instantes a conscincia brecou-lhe a lngua, mas Pontes deulhe um pontap e com voz firme puxou o gatilho. O major Antonio Pereira da Silva Bentes desferiu a primeira gargalhada da sua vida, franca, estrondosa, de ouvirse no fim da rua, gargalhada igual de Teufelsdrock diante de Joo Paulo Richter. Primeira e ltima, entretanto, porque no meio dela os convivas, atnitos, viram-no cair de borco sobre o prato, ao tempo que uma onda de sangue avermelhava a toalha. o assassino ergueu-se alucinado; aproveitando a confuso, esgueirou-se para a rua, qual outro Caim. Escondeu-se em casa, trancou-se no quarto, bateu dentes a noite inteira, suou gelado. Os menores rumores retransiam-no de pavor. Polcia? Semanas depois que entrou a declinar aquele transtorno que toda a gente levara conta de mgoa pela morte do amigo. No obstante, trazia sempre nos olhos a mesma viso: o coletor de bruos no prato, golfando sangue, enquanto no ar vibravam os ecos da sua derradeira gargalhada. E foi nesse deplorvel estado que recebeu a carta do parente do Rio. Entre outras coisas, dizia o s: "Como no me avisaste a tempo, conforme o combinado, s pelas folhas vim a saber da morte do Bentes. Fui ao ministro mas era tarde, j estava lavrada a nomeao do sucessor. A tua leviandade fez-te perder a melhor ocasio da vida. Guarda para teu governo este latim: tarde venientibus ossa, quem chega tarde s encontra os ossos - e s mais esperto para o futuro." Um ms depois, descobriram-no pendente duma trave, com a lngua de fora, rgido. Enforcara-se numa perna de ceroula. Quando a notcia deu volta pela cidade, toda a gente achou graa no caso. O galego do armazm comentou para os caixeiros: - Vejam que criatura! At morrendo fez chalaa. Enforcar-se na ceroula! Esta s mesmo do Pontes... E reeditaram em coro meia duzia de - nico epitfio que lhe deu a sociedade. Nota: O conto "O Engraado Arrependido" foi publicado na Revista do Brasil, n 16, de abril de 1917, com o ttulo de "A Gargalhada do Colector". A colcha de retalhos - Upa! Cavalgo e parto. Por estes dias de maro a natureza acorda tarde. Passa as manhs embrulhada num roupo de neblina e com espreguiamentos de mulher vadia que despe os vus dacerrao para o banho de sol. A nvoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado atravs dum cristal despolido. Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e nada mais vejo seno, a espaos, o vulto gotejante dalguns angiqueiros marginais. Agora, uma porteira. Ali, a encruzilhada do Labrego. Tomo destra, em direitura ao stio do Jos Alvorada. Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roado no capoeiro do Bilu, nata da terra que pelas bocas do caet legtimo, (1) da unha-de-vaca(2) e da caquera(3) est a pedir foice e covas de milho. No difcil a puxada: com cinqenta braas de carreador boto a roa no caminho. Trs alqueires, s no bom. Talvez quatro. A noventa por um - nove vezes quatro trinta e seis; trezentos e sessenta alqueires de oito mos. Descontadas as bandeiras (4) que o porco estraga e o que comem a paca e o rato... Ser a filha do Alvorada? - Bom dia, menina! O pai est em casa? a filha nica. Pelo jeito no vai alm de quatorze anos. Que frescura! Lembra os ps d'avenca viados nas grotas noruegas. Mas arredia e it (5) como a fruta do gravat. Olhem como se acanhou! D'olhos baixos, finge arrumar a rodilha. (6) Veio pegar gua a este corrego e milagre no se haver esgueirado por detrs daquela moita de taquaris, ao ver-me. - O pai est l? - insisti. Respondeu um "est" enleado, sem erguer os olhos da rodilha. Como a vida no mato asselvaja estas veadinhas! Note-se que os Alvoradas no so caipiras. Quando comprou a situao dos Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me at que entrava em sua casa um jornal. Mas a vida lhes correu spera na luta contra as terras ensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que d de si o homem. Foram rareando as idas cidade e ao cabo de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina, rebento floral em anos outonios, e que a geada queimou o caf novo - uma tamina, (7) trs mil ps - o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do stio. Se o marido deu assim em urumbeva, a mulher, essa enraizou de peo para o resto da vida. Costumava dizer: mulher na roa vai vila trs vezes - uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar. Com tais casmurrices na cabea dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo d'gua (tinha esse apelido a Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo s gentes. Fora uma vez vila com vinte dias, a batizar. E j l ia nos quatorze anos sem nunca mais ter-se arredado dali. Ler? Escrever? Patacoadas, falta de servio, dizia a me. Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora, se des'que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roa, como na roa. Deixei a menina s voltas com a rodilha e embrenheime por um atalhoconducente morada. Que descalabro!... Da casa velha alura uma ala, e o restante, alm da cumeeira selada, tinha o oito fora do prumo. O velho pomar, rodo de formiga, morrera de inanio; na nsia de sobreviver, trs ou quatro laranjeiras macilentas, furadas de broca e sopesando o polvo retranado da erva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios de compridos acleos. Fora disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e aras, promiscuamente com o mato invasor que s respeitava o terreirinho batido, fronteiro casa. Tapera quase e, enluradas nela, o que mais triste, almas humanas em tapera. Bati palmas. - de casa! Apareceu a mulher. - Est seu Z? - Inda agorinha saiu, mas no demora. Foi queimar um mel na massaranduva do pasto. Apeie e entre. Amarrei o cavalo a um moiro de cerca e entrei. Acabadinha, a Sinh'Ana. Toda rugas na cara - e uma cor... Estranhei-lhe aquilo. - Doena! - gemeu. - Estou no fim. Estmago, fgado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda. Casa velha, o que . - Metade cisma - disse-lhe para consolo. - Eu que sei! - retrucou-me suspirando. Entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada, no ceme, rija e tesa, que saudou e: - Est espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora no presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo no me troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso, sim!... - Mec gabola porque nunca padeceu doena - nem dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! S admiro ainda estar fora da cova... A vem o Z. Chegava o Alvorada. Ao ver-me, abriu a cara. - Ora viva quem se lembra dos pobres! No pego na sua mo porque estou assim... s melado. Bonito, hein? Estava difcil, num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre tirei. No jiti, no! mel-de-pau. Deps num mocho a cuja dos favos e se foi janela, lavar as mos caneca d'gua que a mulher despejava. Ps os olhos no meu cavalo. - Hoje veio no picao... Bom bicho! Eu sempre digo: animais aqui no redor, s este picao e a ruana do Iz*48 de Lima. O mais eguada de moenda. Neste momento entrou a menina de pote cabea. Ao v-la, o pai apontou para a cuja de mel. - Est a, filha, o doce da aposta. Perdi, paguei. Que aposta? Ah! ah! Brincadeira. A gente c na roa, quando no tem servio com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse loa: "So mais de dez!" Pingo negou: "No chega l!" Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roa mel . Esta songuiriha s vendo; no o que parece, no... A loquacidade daquele homem no desmedrara com oatraso da vida. Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade. Expus-lhe o negcio. Alvorada enrugou a testa; refletiu um bocado, de queixo preso. Depois: - Eu hoje, franqueza, no valho mais nada. Des'que ca daquela amaldioada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. No escoro servio, e para lidar com camaradas no eito no basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa no vai, no! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois sa perdendo. O tranca do Joo Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuzos, no livrei o jornal. Desde ento fiz cruz em servio alheio. Se ainda teimo neste sapezal amaldioado por via da menina; seno, largava tudo e ia viver no mato, como bicho. Pingo que inda me d um pouco de coragem, concluiu com ternura. A velhinha sentara-se luz da janela e, abrindo uma caixeta, pusera-se a coser, de culos na ponta do nariz. Aproximei-me, admirativo. - Sim, senhora! Com setenta anos! Sorriu, lisonjeada. - para ver. E isto aqui tem coisa. uma colcha de retalhos que venho fazendo h quatorze anos, des'que Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso. Veja que galantaria de servio... Estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padro. - Esta colcha o meu presente de noivado. O ltimo retalho h de ser do vestido de casamento, no , Pingo? Pingo d'gua no respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta. Mais dois dedos de prosa com Alvorada, um cafezinho ralo - escolha (8) com rapadura - e: - Est bem - rematei, levantando-me do mocho de trs pernas. - Como no pode ser, pacincia. Apesar disso acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se esto pagando os roados a oitenta mil ris o alqueire. D para ganhar, no? - Que d, sei que d - mas tambm sei para quem d. Um perrengue como eu no pensa mais nisso, no. Quando era gente, muitos peguei a sessenta e no me arrependi. Mas hoje... - Nesse caso... Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Sinh'Ana faleceu. Era fatal a dor que respondia na cacunda. E no mais me aflorava memria a imagem daqueles humildes urups, quando me chegou aos ouvidos o zunzum corrente no bairro, uma coisa apenas crvel: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo d'gua aos Periquitos. - "Como isso? Uma menina to acanhada!..." - " para ver! Desconfiem das sonsas... Fugiu, e l rodou com ele para a cidade - no para casar, nem para enterrar. Foi ser 'moa', a pombinha..." O incidente ficou a azoinar-me o bestunto. noite perdio sono, revivendo cenas da minha ltima visita ao stio, e nasceu-me a idia de l tornar. Para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentrios da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne. Fui. Setembro entumecia gomos em cada arbusto. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se ntida at aos cabeos dos morros distantes. Por amor simetria, montava eu o mesmo picao. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesmo trilho. No crrego vi, com os olhos da imaginao, o vulto da menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda s voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As trs rvores do pomar extinto eram j galhaa resseca e poenta. S os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lgubre. Rura o oito e o terreirinho pintalgara-se de moitas de guanxuma, cordo-de-frade e jos. - O de casa! - gritei. Silncio. Trs vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma sombra acurvada e trmula. - Bom dia, nh Joaquina. Est seu Z? No me reconheceu a velhinha. Z fora vila, vender a sitioca para mudar de terra. Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da m vista. - Tem coragem de estar aqui sozinha? - Eu? Sozinha estou em toda parte. Morreu-me tudo, a filha, a neta... Sente-se - murmurou apontando para o mocho de dois anos atras. Sentei-me, com um n na garganta. No sabia o que dizer. Por fim: - O que a vida, nh Joaquina! Parece que foi ontem que estive aqui. Apesar das doenas, iam vivendo felizes. Hoje... A velha limpou no canho da manga uma lgrima. - Viver setenta e dois anos para acabar assim... Felizmente a morte no tarda. J a sinto c dentro. Confrangia-me o corao aquele ermo onde tudo era passado - a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas, salvo trmulo espectro sobrevivente como a alma da tapera - a triste velhinha encanecida, cujos olhos poucas lgrimas estilavam, tantas chorava. - Que mais agora? - murmurou pausadamente em voz de quem j no deste mundo. - At "desgraa", eu no queria morrer. Velha e intil, inda gostava do mundo. Morreu-me a filha, mas restava a neta - que era duas vezes filha e o meu consolo. Desencaminharam a pobrezinha... Agora, que mais? S peo a Deus que me retire, logo e logo. Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos pousaram ali, marasmados. A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se, tomou-a nas mos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremuras na voz: - Dezesseis anos - e no pude acabar a colcha... Ningum imagina o que para mim esta prenda. Cada retalho tem sua histria e me lembra um vestidinho de Pingo d'gua. Aqui leio a vidinha dela des'que nasceu. Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu... To galantinha! Estou a v-la no meu brao, tentando pegar os culos com a mozinha gorda... Este azul, de listras, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos trs anos. Ela j andava pela casa inteira armando reinaes, perseguindo o Romo - que um dia, por sinal, lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me " aquina Este vermelho de rosinhas foi quando completou os cinco anos. Estava com ele por ocasio do tombo na pedra do crrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, no reparou? Este c, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o fiz, e o fiz de saia comprida e palet de quartinho. Ficou to engraada, feita uma mulherzinha! Pingo d'Agua ja sabia temperar um virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mos. Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao p dela, a contar histrias! Como gostava da Gata Borralheira!... A velha enxugou na colcha uma lgrima perdida e calou-se. - E este? - perguntei para aviv-la, apontando um retalho amarelo. Pausou um bocado a triste av, em contemplao. Depois: - Este novo. J tinha feito quinze anos quando o vestiu pela primeira vez num mutiro (9) do Labrego. No gosto dele. Parece que a desgraa comea aqui. Ficou um vestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho engraar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava. - Este - disse-lhe eu, fingindo recordar-me - o que ela vestia quando c estive. - Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem. - verdade, verdade! menti. Agora me lembro, isso mesmo. E este ltimo? Aps uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabea e balbuciou: - Este o da desgraa. Foi o derradeiro que fiz. Com ele fugiu... e me matou. Calou-se, a lacrimejar, trmula. Calei-me tambm, opresso dum infinito aperto d'alma. Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade louca!... E ficamos ambos assim, imveis, de olhos presos colcha. Ela por fim quebrou o silncio. - Ia ser o meu presente de noivado. Deus no quis. Ser agora a minha mortalha. J pedi que me enterrassem com ela. E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do corao. Um ms depois morria. Vim a saber que lhe no cumpriram a ltima vontade. Que importa ao mundo a vontade ltima duma pobrevelhinha da roa? Pieguices... Notas: 1, 2, 3. Padres de terra boa. 4. Bandeira de milho, diz-se de qualquer trecho do milharal 5. It: Sabor agreste, adstringente, cido. 6. Rodilha: Rodela de pano torcido que os carregadores de gua usam entre a cabea e o pote ou a lata. 7. Tamina: Ninharia, coisa de nada. 8. Escolha: Caf de nfima qualidade - resduo do "caf escolhido". 9. Ajuntamento de vizinhos num servio de roa. A vingana da peroba A cidade duvidar do caso. No obstante, aquele monjolo do Joo Nunes no Varjo foi durante meses o palhao da zona. Sobretudo no bairro dos Porungas, onde assistia Pedro Porunga, mestre monj oleiro de larga fama, fungavam-se conta do engenho risos sem fim. Sitiantes ambos em terras prprias, convizinhavam separados pelo espigo do Nheco - e por malquerena antiga. Levantara Nunes uma paca, certo domingo; mas ao dobrar o morro a bicha esbarrou de frente com um Porunguinha que casualmente lenhava por ali. Zs! Certeiro golpe de foice d com ela em terra. At a nada. Mas comeram-na, sem ao menos mandarem um quarto de presente ao legtimo dono. Legtimo, sim, porque, afinal de contas, aquela paca era uma paca nomeada. Sabida como um vigrio, dizia o Nunes, nem cachorro-mestre, nem mundu, podiam com a vida dela. Escapulia sempre. A gente do outro lado no ignorava isso. Paca velha e matreira tem sempre a biografia na boca dos caadores. Paca muito conhecida, portanto; moradora em suas terras. Paca do Nunes, homessa. Ora, justamente no dia em que, numa batida feliz, ele a apanhara desprevenida, fazer aquilo o Porunguinha? - "Mas uma criana!" Sim, mas o pai no aprovou? No disse, entre risadas, "o Nunes que se fomente?" Haviam de pagar! Veio da a malquerena. O espigo vinha do perodo um pouco mais remoto em que a crosta da terra se solidificou. Agravava a dissenso uma rivalidade quase de casta. Pertencia Nunes classe dos que decaem por fora de muita cachaa na cabea e muita saia em casa. Filho homem s tinha o Jos Benedito, d'apelido Pernambi, um passarico desta alturinha, apesar de bem entrado nos sete anos. O resto era uma rcula de "famlias mulheres" Maria Benedita, Maria da Conceio, Maria da Graa, Maria da Glria, um rosrio de oito mariquinhas de saia comprida. Tanta mulher em casa amargava o nimo do Nunes, que nos dias de cachaa ameaava afog-las na lagoa como se fossem uma ninhada de gatos. O seu consolo era mimar Pernambi, que aquele ao menos logo estaria no eito, a ajud-lo no cabo da enxada, enquanto o mulherio intil mamparrearia por ali a espiolhar-se ao sol.Pegava, ento, do menino e dava-lhe pinga. A princpio com caretas que muito divertiam o pai, o engrimano pegou lesto no vcio. Bebia e fumava muito sorna, com ares palermas de quem no deste mundo. Tambm usava faca de ponta cinta. Homem que no bebe, no pita, no tem faca de ponta, no homem, dizia o Nunes. E cnscio de que j era homem o piquirinha batia nas irmas, cuspilhava de esguicho, dizia nomes me, alm de muitas outras coisas prprias de homem. Do outro lado tudo corria pelo inverso. Comedido na pinga, Pedro Porunga casara com mulher sensata, que lhe dera seis "famlias", tudo homem. Era natural que prosperasse, com tanta gente no eito. Plantava cada setembro trs alqueires de milho; tinha dois monjolos, moenda, sua mandioquinha, sua cana, alm duma gua e duas porcas de cria. Caava com espingarda de dois canos, "imitao Laporte", boa de chumbo como no havia outra. Morava em casa nova, bem coberta de sap de boa lua, aparado a linha, com mestria, no beiral; os esteios e portais eram de madeira lavrada; e as paredes, rebocadas mo por dentro, coisa muito fina. J o Nunes - pobre do Nunes! - no punha na terra nem um alqueire de semente. Teve gua, mas barganhou-a por um capadete e uma espingarda velha. Comido o porquinho, sobrou do negcio o caco da pica-pau, dum cano s e manhosa de tardar fogo. Sua casa, de esteios com casca e portas de embaba rachada, muito encardida de picum, prenunciava tapera prxima. Capado, nenhum. Galinhada escassa. Ao cachorro Brinquinho no lhe valia ser mestre paqueiro de fama; andava de barriga s costas, com bernes no toutio. O pobrezinho no caminhava dez passos sem que parasse, pondo-se aos rodopios sobre os quartos traseiros, tentando inutilmente abocar o parasita inatingvel. Que preasse. Cachorro bicho ladino e o mato anda cheio de pres atolambadas. E tudo mais no Vaijo afinava pela mesma tecla. Certa vez contaram ao Nunes que Pedro Porunga trazia negcio duma besta arreada. Besta arreada, o Porunga! Doeulhe aquilo no fundo da alma. Era atrepar demais. - Qu! J roncam assim? - bravateou. - Pois hei de mostrar Porungada quem o Joo Nunes Eusbio dos Santos, da Ponte Alta! E entrou-se, desd'a, de grandes atarefamentos. A mulher pasmava na sbita reviravolta do marido, duvidando e esperando. - Durar esse fogo? Quem sabe? Planeava Nunes grandes coisas, roa de trs alqueires, conserto da casa, monjolo... Aqui a mulher repuxou os lbios num muxoxo de dvida. - Monjolo? Ch, qu'esperana! Nunes, metido em brios, roncou: - Boto, mulher, boto monjolo, boto moenda, boto at moinho! Hei de fazer a porungada morder a munheca de inveja. Vai ver!... Com assombro de todos no ficou em prosa fiada apromessa. Nunes remendou mal e mal a casa, derrubou um capoeiro descansado de oito anos e, num esforo de mouro, meteu na terra nove quartas de milho. Pedro Porunga soube logo da bravata. Riu-se e profetizou: - Eh! Aquilo fogo de jac velho. Calor de pinguo no dura... O ano correu bem. Vieram chuvas a tempo, de modo que em janeiro o milho desembrulhava pendo, muito medrado de espigas. Nunes no cabia em si. Visitava as roas muito contente da vida, urthando os caules viosos j em pleno arreganhamento da dentua vermelha, ou apalpando as bonecas tenras, a madeixarem-se da cabelugem louro-translcida. Segurava ento a barbica do queixo e sonhava opulncias futuras, balanceando prs e contras. Os contras j estavam de fora. S havia prs. E conclua, entrando em casa, para a mulher: - Este ano quebro um milho desgramado! Carecia, pois, de armar monjolo. Desdobrado em farinha o milho, vinham dobrados os lucros. No foi o que empolou os Porungas, a farinha? Uma resoluo de tal vulto, porm, no se toma assim do p pr'a mo: era preciso meditar, calcular. E Nunes "maginava"... O ch-pan do futuro engenho batia-lhe na cabea como um ritornelo de msica do cu. - Hei de mostrar ao Porunga que ele no o nico monjoleiro do mundo. Empreito o servio com o compadre Teixeirinha da Ponte Alta. A mulher botou as mos na cabea. - Nossa Virgem! coisa de louco! Pois o compadre nem brao tem... - B! - urrou Nunes, estomagado. - Cale essa boca! Mulher no entende das coisas... E ela, nas encolhas: - T bom. Depois no se queixe. - B! - rematou o marido. Esta troada era o argumento decisivo de Nunes nas relaes familiares. Quando ali roncava o "b", mulher, filhas, Pernambi, Brinquinho, todos se escoavam em silncio. Sabiam por dolorosa experincia pessoal que o ponto acima era o porretinho de sapuva. Se a mulher emudecia, emudecia com ela a razo, porque o Teixeirinha Maneta era um carapina ruim inteirado, dos que vivem de biscates e remendos. S a um bbado como o Nunes bacorejaria a idia de meter a monjoleiro um taramela daqueles, maneta e, inda por cima, cego duma vista. Mas era compadre e acabou-se. B! Uma nova semana passou Nunes em trabalhos de "maginao". Coava lentamente a cabea, pitava enormes cigarres, muito absorto, com os olhos no milharal e o sentido em coisas futuras. Decidiu-se, por fim. Rumou Ponte Alta e trouxe de l o velho carapina, com a ferramenta capenga. S restava resolver o problema da madeira. Nas suas terras no havia seno pau de foice. Pau de machado, capaz de monjolo, s a peroba da divisa, velha rvore morta que era o marco entre os dois stios, tacitamente respeitada de l e c. Deit-la-ia por terra sem dar contas ao outro lado - como lhe fizeram paca.Boa pea! Nunes gozava-se da picuinha, planeando derrubar a rvore noite, de modo que pela madrugada, quando os Porungas dessem pela coisa, nem Santo Antnio remediaria o mal. - Est resolvido: derrubo a peroba! Dito e feito. Dois machados roncaram no pau alta noite, e ainda no raiava a manh quando a peroba estrondeou por terra, tombada do lado do Nunes. Mal rompeu o dia, os Porungas, advertidos pela ronqueira, saram a sondar o que fora. Deram logo com a marosca, e Pedro, frente do bando, interpelou: - Com ordem de quem, seu... - Com ordem da paca, ouviu? - revidou Nunes provocativamente. - Mas paca paca e essa peroba era o marco do rumo, meia minha, meia sua. - Pois eu quero gastar a minha parte. Deixo a sua p'r'a!... - retrucou Nunes apontando com o beio a cavacana cor-de-rosa. Pedro continha-se a custo. - Ah, cachorro! No sei onde estou que no... - Pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogo na primeira "cuia" que passar o rumo!... Esquentou o bate-boca. Houve nome feio a valer. O mulherio interveio com grande descabelamento de palavres. De espingardinha na mo, radiante no meio da barulhada, Nunes dizia ao Maneta: - V lavrando, compadre, que eu sozinho escoro este cuiame!... (2) A Porungada, afinal, abandonou o campo - para no haver sangue. - Voc fica com o pau, cachaceiro -toa, mas inda h de chorar muita lgrima p'r'amor disso... - B! ... - estrugiu Nunes triunfalmente. Os Porungas desceram resmoneando em concilibulo, seguidos do olhar vitorioso do Nunes. - Ento, compadre, viu que cuiada choca? s ch de lngua, p, p, p; mas, chegar mesmo, quando! O guampudo conheceu a arruda pelo cheiro! E assombrou o velho com muitos lances hericos, quebramentos de cara, escoras de trs e quatro, o diabo. - O dia est ganho, compadre, largue disso e vamos molhar a garganta. A molhadela da garganta excedeu a quanta bebedeira tinham na memria. Nunes, Maneta e Pernambi confraternizaram num bolo acachaado, comemorativo do triunfo, at que uma soneira letrgica os derreou pelo cho. Com a derradeira Maria pendurada do seio magro, a mulher olhava para aquilo sacudindo a cabea, a cismar... - Que monjolo sair disto, me do cu!... Esvados os fumos da pinga, tornaram no dia seguinte peroba, muito acamaradados. A cachaa cimentara o compadresco antigo, e a feitura do monjolo teve incio com grande quebreira de corpo. Nunes passava os dias na obra, vendo o compadre desbastar a madeira com um brao s. Pasmava daquilo, e do ajutrio que ao brao perfeito dava o toco aleijado. O velho Maneta sabia casos e casos, que Nunes respondia com outros, sempre tendentes a patentear a ruindade dos Porungas.Falquejado o toro, correram um barbante embebido num mingau de carvo. "Pegue nesta ponta, compadre, dizia o velho; agora estique; isso." E tomando entre os dedos o cordel pelo meio, plaf, chicoteava a madeira, riscando nela um trao negro. Nunes revelou grande vocao para esfnia-verruma. Esfnia-verrumas so os "empaliadores" dos carapinas. Sentam-se com uma ndega beira da banca e durante horas pasmam do rebote correr na tbua encaracolando fitas, ou do formo ir lentamente abrindo uma fura. Ora pegam da enx, examinam-na, passam o dedo pelo fio e perguntam: " Gnive? (Greaves) Quanto custou?" E quando sai da madeira a verruma, quente da frico, pegam-na e pem-se a sopr-la muito srios. Enquanto isso, muito desajeitadamente ia o Maneta escavando o cocho (3) a machado e enx. Depois rasgou as furas furas da haste (4) e afeioou a munheca. (5) Prontas que foram, atacou o pilo. (6) Escava que escava, em trs dias p-lo de banda, concluso. Restava somente aparelhar a "virgem". (7) - O compadre sabe a histria do pau de feitio? Nunes no sabia. Nunes no sabia coisa alguma, tirante emborcar o gargalo e difamar os Porungas. Sem interromper o esquadrejamento da virgem, Maneta narrou o caso que ouvira ao pai, o Teixeiro serrador, madeireiro de fama. - Em cada eito de mato, dizia o meu velho, h um pau vingativo que pune a malfeitoria dos homens. Vivi no mato toda a vida, lidei toda casta de rvore, desdobrei desde embava e embiruu at blsamo, que raro por aqui. Dormi no estaleiro quantas noites! Homem, fui um bicho-do-mato. E de tanto lidar com paus, fiquei na suposio de que as rvores tm alma, como a gente. - T'esconjuro! - espirrou Nunes. - Isto dizia l o velho; eu por mim no dou opinio. E tm alma, dizia ele, porque sentem a dor e choram. No v como gemem crtos paus ao carem? E outros como choram tanta lgrima vermelha, que escorre e vira resina? Ora pois tm alma, porque neste mundo tudo criatura de Deus. - L isso... - Ento, dizia ele, h em cada mato um pau que ningum sabe qual , a modo que peitado p'r'a desforra dos mais. o pau de feitio. O desgraado que acerta meter o machado no cerne desse pau pode encomendar a alma p'r'o diabo, que est perdido. Ou estrepado ou de cabea rachada por um galho seco que despenca de cima, ou mais tarde por artes da obra feita com a madeira, de todo jeito no escapa. No 'dianta se precatar: a desgraa peala mesmo, mais hoje, mais amanh, a criatura marcada. Isto dizia o velho - e eu por mim tenho visto muita coisa. Na derrubada do Figueiro, alembra-se? morreu o filho do Chico Pires. Estava cortando um guamirim quando, de repente, soltou um grito. Acode que acode, o moo estava com o peito varado at as costas. Como foi? Como no foi? Ningum entendeu aquilo. Eu fiquei cismando e disse: " feitio de pau..." Como este um, quantos casos? O mundo est cheio. O Sebastiozinho da Ponte Alta fez uma casa, o pau da cumeeira ele mesmo o derrubou. Pois no que a cumeeira arreia e estronda a cabea do rapaz? Porisso meu pai, sabido que era, especulava primeiro se por ali perto no tinha havido desgraa. Era para ver se o feitio estava solto ou preso, e precatar-se. Com estas e outras ia Maneta florejando de lrias as horas de servio, enquanto dava os derradeiros retoques no engenho. Estava pronto o monjolo. Jubiloso, via Nunes quase realizado o primeiro sonho das futuras grandezas. Faltava apenas o assentamento, que pouco - e ele batia tapas amigos na peroba vermelha. - A, minha velha! Mansinha, hein? H de chamar-se Tira-prosa de Porungas, Cabaas e Cuias, eh! eh! Recolheram cedo nesse dia para solenizar o feito custa dum ancorote (8) de cachaa, que esvaziaram a meio. Dias depois, bem fincado, bem socado o pilo, o monjolo recebeu gua. Aberta a bica, um jorro d'enxurro espumejou no cocho, encheu-o, desbordou para o "inferno". (9) A engenhoca gemeu na virgem e alou o pescoo. O cocho despejou a aguaceira - ch! A munheca bateu firme no pilo - pan! Nunes pulava d'alegria. - Conheceu, Porungada choca, quem Joo Nunes Eusbio da Ponte Alta? Mas no lhe bastou aquele barulho, nem a gritaria da meninada a palmear, nem os ladridos do Brinquinho que, espantado da maluqueira, latia de longe, a salvo de pontaps. Queria mais. Correu espingarda, espoletou-a e, erguendo-a 64 MONTEIRO LOBATO para o "outro lado", desfechou. Mas o caco velho da pica-pau no compartilhou da sua alegria, rebentou a espoleta e calou-se. Nunes inda a manteve uns segundos alada, esperando o tiro. Como o fogo tardasse demais, remessou com ela para longe, embrulhada num palavro. Lembrou-se depois de trs foguetes sobejados de uma reza; foi busc-los; atacou-os em direo aos Porungas. - Cheira essa plvora, cuiada! Infelizmente as bombas, muito midas, negaram fogo por sua vez. - Tudo nega, compadre! Vamos ver se o ancorote nega tambm. No negou. E a prova foi roncarem logo p'r'ali como dois gambs. No outro dia partiu Maneta para a Ponte Alta, com grande sentimento do Nunes que perdia nele um companheiro. Quanto ao monjolo, como no houvesse milho a pilar, ficou sua estria para quando se quebrasse a roa. Cessaram as chuvas de vero. Entrou o outono, refrescado, limpo. Amarelaram as folhas do milharal, as espigas penderam, maduras. Comeou a quebra. Muito impaciente, Nunes debulhou o primeiro jac recolhido e atochou o pilo. Ai! No h felicidade completa no mundo. O engenho provou mal. No rendia a canjca. Desproporcionada ao cocho, a haste no dava o jogo da regra. A mo, por muito leve ou por defeito de esquadria na virgem, guinava esquerda ao bater, espirrando milho para fora. Por mal dospecados, primeira chuvinha o pilo entrou a rever agua. Fora escavado em madeira ventada. (10) No prestava. Nunes, de m sombra, represando a clera, meteu-se a reparar tantas "torturas". Diminuiu o peso ao macaco, (11) engrossou as guas, amarrou ali, especou acol, calafetou fendas. Consumiu dias em luta surda contra as manhas do mal-engonado. Mas a peste do monstrengo respondia a cada arranjo com uma reincidncia de desalentar. O pobre homem explodiu, ento. Da boca lhe espirraram injrias sem fim contra o patife do carapina. - Excomungado do diabo de maldelazento de maneta... Impossvel meter no papel todas as contas do rosrio; as midas inda cabem, mas as gradas no podem sair do Varjo. Alm de injrias, ameaas. Que iria Ponte Alta rachar o compadre foice; que lhe vazava a outra vista; que... Num desses desabafos, a tola da mulher meteu a colher torta no meio. - Eu bem disse, eu bem avisei. Mas o "queixo duro" no fez caso... Ai! Nunes, que s esperava por aquilo, passou a mo na sapuva (12) e encarnando na esposa o odiado maneta deslombou-a numa sova de consertar negro ladro. - Toma, cachorro! Toma, excomungado do inferno! Aprende a fazer monjolo, porco sujo! e malhava... A mulher sumiu-se aos pinotes mata adentro, seguida do mulherio mido; e por oito dias andou em esfregaes de salmoura pela polpa avergoada. Nunes, porm, melhorou consideravelmente com o derivativo. Mundificou-se da blis. A nova de tais sucessos chegou Porungada. Pedro, exultante, no teve mo de si, quis ver com os prprios olhos a caranguejola que o vingava to a pique. Meditou um plano, e l um dia transps o espigo, rumo casa do rival. Voltou uma hora depois espremendo risos fungados. - Eh, eh, minha gente! Vocs no calculam. Quando virei o espigo ja ouvi o barulho - ch-pan -, uma ronqueira dos diabos! Disse comigo: roncar, ele ronca, eh, eh! Fui chegando. O Nunes, jururu, estava debulhando milho na porta. Quando me viu entreparou, amode que assombrado. - " de paz!" eu disse, e me plantei diante dele. "Dois chefes de famlia, ainda mais vizinhos, no podem viver toda a vida assim de focinho "trucido" um p'r'o outro. O que foi, foi. Acabou-se. Toque." Ele relanceou os olhos p'r'o lado da ronqueira - eh, eh! - e muito desconchavado me espichou a mo sem abrir o bico. - "Traga um caf!", gritou p'ra dentro. Enfiei os olhos pela casa: estava "assim" de mulherada na cozinha! Peguei de prosa. Ele foi respondendo. Conversa sem graa, amarradinha. Por fim especulei: "E o monjolo, vizinho, ficou na ordem?" Nunes amarelou que nem esta folha! - " bonzinho, rende bem..." - "Quero ver", disse eu, "se no curiosidade..." - "Pois v", respondeu sem se mexer do lugar.E fui. Nossa Virgem! Aquilo nunca foi monjolo, nem aqui nem na casa do diabo! S se v amarrilhos de cip e espeques e macacos. A haste tem nove palmos e o cocho a m que tem dez!... - Qui! qui! qui! - cacarejou a roda, que em matria de monjolo era entendidssima. - A mo no pesa, homem, no pesa nem arroba e meia! A virgem est errada e fora do prumo. Milho est que est alvejando o cho. A mo pincha duma banda. Os Porunguinhas babavam. - Ento, roncar ele ronca? - Nossa! Ronca que nem uma trumenta. Mas, socar? O boi soca! Nem trs litros rende por dia. Homem, gentes, aquilo coisa que s vendo! A cara dos Porungas, anuviada desde o incidente da peroba, refloriu dali por diante nos saudveis risos escarninhos do despique. As nuvens foram escurentar os cus do Varjo. Era um nunca se acabar de troas e pilhrias de toda ordem. Inventavam traos cmicos, exageravam as trapalhices do mundu. Enfeitavam-no como se faz ao mastro de So Joo. Sobre as linhas gerais debuxadas pelo velho, os Porunguinhas iam atando cada qual o seu buqu, de modo a tornar o pobre monjolo uma coisa prodigiosamente cmica. A palavra Ronqueira entrou a girar nas vizinhanas como termo comparativo de tudo quanto risvel ou sem p nem cabea. Aos ouvidos do Nunes foram bater tais rumores. O orgulho, muito medrado no perodo dos sonhos de grandeza, murchara-lhe como fruta verde colhida antes do tempo. Mas, impossibilitado de vingar-se, deu de criar um rancor surdo contra a Ronqueira, que, trpega, l ia malhando, dia e noite, ch-pan, muito lerda, muito parca de rendimento. Para acalmar a blis, Nunes dobrou as doses de cachaa. A mulher amanhava a casa num grande desconsolo da vida, esmolambada, sem mais esperanas d'arranjo p'r'aquele homem. Sempre rentando o pai, somssimo, Pernambi parecia um velhinho idiota. No tirava da boca o pito e cada vez batia mais forte no mulherio mido. Brinquinho desnorteara. Sentado nas patas traseiras olhava, inclinando a cabea, ora para um, ora para outro, sem saber o que pensar da sua gente. E assim, meses. Afinal, veio a desgraa. Feitio de pau ou no, o caso foi que o inocente pagou o crime do pecador, como da justia bblica. Certo dia soube Nunes que o Jos Cuitelo da Pedra Branca, outro compadre, pusera nome a uma gua lazarenta de Ronqueira. Era demais. - At aquele cachorro do Cuitelo! - gemeu o msero, passando a mo na garrafa. Sorveu um gole e: - Pernambizinho, vem c. Bebe com teu pai, meu filho. O menino no esperou novo convite: bebeu, um, dois e trs goles, estalando a lngua. O resto da garrafa soverteu-se no bucho do caboclo. Mal tonteado pelos eflvios do lcool, o menino banzou um bocado por ali e depois saiu.Nunes estirou-se ao sol para dormir. Era um dia feio de agosto. Cu turvo do fumo das queimadas. Sol de cobre, sem brilho, a modorrar no ocaso. Folhinhas carbonizadas a descerem lentas do alto, regirantes. Transcorrida uma hora, o bbedo acordou, relanceou em torno os olhos mortios. - Quedele Pernambi? - disse s filhas acocoradas soleira da porta. As meninas no sabiam do irmo. - Chamem Pernambi, engrolou o bbedo, recaindo em cochilo. Uma das pequenas saiu no encalo do menino. Os olhos de Nunes a custo se abriam; sua cabea oscilava, como se lhe houvessem desossado o pescoo. Da boca escorria-lhe baba, e molhadas nela as palavras vinham vagas, mal atadas. Sbito, um grito lancinante ao longe alvorotou a casa. A mulher, estonteada, surge de dentro do casebre, pra porta, orienta-se e corre para onde a voz. As filhas disparam-lhe atrs, rumo ao monjolo. Silncio trgico. Depois novos gritos - gritos em coro -, gritos de desespero. - Coitadinho do meu filho! - uivava l longe a me. Nunes soergue-se, amparado ao portal. - Que isso? - grunhe. Ningum lhe responde. No h ningum por ali. Mas no monjolo recrudesce a grita. Para l segue o bbedo, cambaleante. Em caminho d de cara com a mulher, que voltava descabelada, a falar sozinha. - Que que foi, mulher? Arrostando com o marido, a pobre me afuzila nos olhos um raio de clera incoercvel. - O que ? tua obra, cachaceiro do inferno! a tua pinga, homem -toa, esterco imundo! V ver, v ver, v ver, desgraado!... Nunes alcana o monjolo com dificuldade. E topa um quadro horrendo. No meio das filhas em grita, o corpinho magro de Pernambi de borco no pilo. Para fora, pendentes, duas pernas franzinas - e o monjolo impassvel, a subir e a descer, ch-pan, pilando uma pasta vermelha de farinha, miolos e pelanca... Esvaem-se-lhe os vapores do lcool e em semidemncia Nunes corre ao machado, ringi