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Montesquieu Rousseau - cld.pt · de alegre expectativa com a chegada do novo século e com a expan ... culo em Tempos Modernos de Chapim, ... Professor da Sociologia do Direito. Teoria

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Montesquieue

RousseauPioneiros da Sociologia

Émile Durkbeim

MontesquieueRousseau

Pioneiros da Sociologia

Tradução: Julia Vidili

Publicado originalmente em francês sob <> iiu.ilo Mowesqaieu a Rousseau. Direitos de tradução para todos os paises ern língua portuguesa © 20üS. Madras Hditora Ltda.Editor,Wagner Veneziani CosiaProdução c Capai Equipe Técnica MadrasTradução:Julia VidiliRevisão:Renata Assumpção Liliar.c Fernanda 1’edroso A manda Maria de Carvalho Neuza Alves

Dados Internacionais dc Catalogação na Publicação (CIP) _____________ (Câmara Brasileira do Livro. SP, Brasil)___________

Durkheim, Lmile. 1S5S-1917.Montcsquicu c Rousseau: Pioneiros via Sociologia / Émile Durkheim : traduçào Julia Vidili. São Paulo: Madras. 2008.Título original: Montesc.uieú ei Rousseau: précurseurS de Ia sociologie

ISBN 978-85-370-03 14-5

I . Monlesquieu. Charles de Seeondat. Baron dc. 1689-1755 - O espirito das leis 2. Rousseau. Jean-Jacques. 1712-177S - O contrato social 3. Sociologia - História 1. Tílulo.

Os iirreítos dc traduyào desta obra perleneem à Madras Editora, assim como a sua adaptação e coordenação. Fica. portanto, proibida a reprodução tora5 ou parcial desta obra. de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecâ­nico. inclusive por meio de processos xcrográíicos. incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão expressa da Madras hdi-ora. na nessoa de seu editor (í.ei n° 9.610. de 19.2.9S).

Todos os direitos desta edição, cm língua portuguesa, reservados pela

OS-OÜ15S CDD-30I.09índices para catálogo sistemático:

1. Sociologia: História 301.09

índice

P re fá c io ....................................................................................................... 7A contribuição de M ontesquieu à ascensãoda Ciência S o c ia l.................................................................................... 13Condições necessárias para o estabelecimento daCiência S o c ia l.........................................................................................17Até que ponto Montesquieu definiu o campo daCiência S o c ia l? ........................................................................................27A classificação das sociedades por M ontesqu ieu ..........................35Ate que pomo M ontesquieu acreditava que osfenômenos sociais estào sujeitos a leis defin idas?..........................47O método de M ontesquieu....................................................................59C onclusão ................................................................................................. 69O Contraio Social de R ousseau ....................................................... 73O estado de natureza............................................................................. 75Origem das sociedades..........................................................................85O Contrato Social c o estabelecimento do corpo p o liiico ..........99Da soberania em geral..........................................................................111Da lei em g e ra l ..................................................................................... 121Das leis políticas em particu la r......................................................... 127C onclusão ............................................................................................... 139

Prefácio

A obra de David Ém ile Durkheim ( 1858-1917) exerceu notável influência sobre o desenvolvimento do pensamento social, e. embora vinculado ao Positivismo de A ugustc Com te, que já preconizava a Sociologia como a ciência da sociedade. Durkheim é considerado o principal fundador da Sociologia moderna, um de seus “pais" funda­dores.

Filho de rabino-chefe, teve seu período de m isticism o, toman- do-se agnóstico após algum tempo em Paris. No Lycce Louis-te- Grand, localÍ7ado no Q uartir Latin, entre a Sorbonne. o Collègc dc France e a Facultè de Droit, preparou-se para o baccalauréat, que lhe permitiu entrar para a Fcole Normale Supérieure. estabelecimento dc* primeira plana na formação universitária mundial, em 1879. Em 1872, recebeu a agregação» a condição de agrêgé de Philosophtc. Ensinou Filosofia em vários liceus da província (Sens. St. Quentin, Troves) e interessou-se pela Sociologia. Como a França, embora berço da disciplina, não apresentasse cursos regulares desta ciência, tirou um ano de licença (1885-S6) e foi para a Alemanha, onde se deparou com o trabalho de sociólogos da envergadura de Max Wcber, por exemplo.

Ao regressar, iniciou seu trabalho de professor universitário ao ser indicado por I.iard e F.spinas para ministrar aulas de Pedagogia e Ciência Social na Facultè des Lèttres de Bordcaux. dc I 887 a 1902.

s M o n te s q u ie u c Rousse.v.i

Hste foi o prim eiro curso de Sociologia que se ofereceu em uma universidade francesa. lendo sido. pelo trabalho desenvolvido por Durkheim. transformado em cJiaire magistrale cm 1896. Nessa ci­dade. base dc intenso com ércio, mas calm a, encontrou condições adequadas para produzir sua obra. a com eçar por suas icses de doutoram ento. A principal. De la division du tnivail social, que alcançou grande repercussão, foi publicada em IS93 c reeditada no ano em que deixou Bordeaux ( 1902), mostrando, cm particular, que os ideais do individualismo expressam a emergência de um novo tipo de ordem soci.il. capaz de transcender as formas tradicionais da socieda­de pela ' ‘solidariedade orgânica”, envolvendo a moralização das rela­ções sociais, mesmo que essa nova ordem contrastasse radicalmente com a antiga, vencida pelos preceitos da revolução burguesa de 1789.

A sua tese com plem entar, escrita em latim, que visava apenas m ostrar a erudição do candidato, foi publicada em iS92, m as em francês, só em 1953. sob o títu lo de Momesquieu et Rousseau: précurseurs de la Sociologie, e é o texto que ora se apresenta integralmente vertido do latim ao português.

L ogo após, cm 1895. publicou Les règles de la méthode socioiogique c, apenas dois anos depo is , Le su icide - éiude socioiogique. Três quartos da obra sociológica de Durkheim foram editados em seis anos. como pudem os ver.

Em Paris, foi nomeado assistente de Buisson na cadeira dc Ciên­cia da Educação na Sorbonnc em 1902 e. em 1906, com a morte do titular, assumiu como catcdrático c. já cm 1910. conseguiu transformá- la em cátedra de Sociologia, consolidando o statas acadêmico dessa nova disciplina na maior instituição universitária francesa. Suas aulas na Sorbonne transformaram-se em eventos relevantes, exigindo um grande anfiteatro para com portar o elevado número de ouvintes.

P re fa c io 9

N'a adolescência. Durkheim testemunhou acontecim entos que m arcaram decisivamente todos os franceses: em setem bro de 1870, a derrota dc Sedar;; cm 28 de janeiro de 1871. a capitulação diante das tropas alemãs: de IR de março a 28 de maio, a insurreição da Comuna de Paris; cm setem bro do mesmo ano, a proclam ação da 111 República, com a formação do governo provisório de Thiers até a votação da Constituição de 1875 e a eleição do seu prim eiro presi­dente (M ac-M ahon). T hiers fora encarregado de assinar o tratado de Frankfurt e de reprim ir os communards. Além disso, acom pa­nhou a pendenga fraiico-alemà: em 1871. os franceses perderam parte da Lorcna. sua região natal, importante área de jazidas de ferro situada em Vosges, e, com isso, Épinal tom ou-se um a cidade fronteiriça.

Durante a Primeira Guerra Mundial, viu partir para o front vá­rios de seus discípulos, inclusive seu fílho Andrês (morto na retirada sérvia de 1915-16), que parecia vocacionado à Sociologia, entre os quais poucos voltaram.

Nesse entretempo, por força da derrota, das dívidas de guerra e pelo enfraquecimento moral decorrente, algumas medidas políticas acarretaram, à luz de Durkheim. impactos ao estado dc coisas. A primeira é a instituição do divórcio na França (Lei Naquei) e a se­gunda, a implantação da instrução laica, por jules Ferry. M inistro da Instrução Pública, em 1882. A escola tornou-se obrigatória (e gratui­ta) dos 6 aos 13 anos, c o ensino religioso tornou-se proibido, sendo substituído pela “instrução moral e cívica” .

Em 1895. a criação da Confédêration Generale du Travail (CGT), no Congresso de Limoges, expunha a tensão das relações entre proletários e patrões, mas não excluía uma espécie de euforia, de alegre expectativa com a chegada do novo século e com a expan­são dc novas tecnologias. Assim, apesar de uma sucessão de crises do Capitalismo em 1900-01.1907,1912-13. o aço. a eletricidade (que

10 M o n te s q u ie u c R o u ssc a u

substituía o carvão) c o petróleo apontavam possibilidades novas de produção em escala e, se isso agravava os problemas de concentração de renda, sugeria, pelo m enos, a manutenção c o crescim ento do emprego. Essa Segunda Revolução Industrial, a do m otor de com ­bustão interna, do dinamo e da telegrafia, remetia a uma sucessão de descobertas que m udariam definitivam ente o destino da Hum anida­de: o automóvel; o avião, as rotativas c o linotipo; o rádio, o cinema prefigurando alterações sociais importantes.

E. se ludo leva à produção em série, à intercambiabilidade das peças, isto c. à possibilidade de substituir qualquer peça de qualquer organismo m ecânico sem que as demais devam ser adaptadas - sendo esse o grande marco da produção serial, também o trabalhador precisa ser reeducado para cooperar nesse tipo de produção - . surgem as grandes teorias de produção com o o fordism o, o fayolism o e o tavlorismo.

Essa excessiva necessidade de produzir, tão bem exposta ao ridí­culo em Tempos Modernos de Chapim, aumenta ainda mais as ten­sões entre o patronato e operários, e a Igreja trata da questão mediante a enciclica Rerum Novarum , de Leão XIII, impressa em 1891 e que propõe que a desproletarizaçâo, isto é, a inserção do proletário, dc alguma forma na esfera do investimento, poderia reduzir as tensões sociais. Surgem idéias in teressantes com o o cooperativ ism o, o corporativismo, a participação nos lucros, a inclusão de operários no planejamento da atividade industrial, etc., isto é, surge o “espirito mo­derno”.

Na Ecole Norm ale Supérieure, na qual ingressara após dois frustrados vestibulares, o jovem Durkheim convivera com intelectuais brilhantes: Nenri Bergson e Jean Jaurès foram seus veteranos; Jant e Brunot foram seus colegas de classe e todos tiveram o professor Emile Boutroux corno influência determ inante de seus ensinamentos em uma época marcada pelo progresso da ciência, agora capaz de

P re fá c io 11

transform ar a realidade pelo progresso da democracia, cm decorrên­cia do voto secreto c da maior participação do povo nos assuntos públicos, além do aumento do bem -estar geral (W eltare Stare) e do acesso gera! à instrução gratuita e ditusão do material impresso, como jornais, revistas e livros.

M as seu laborioso trabalho de pesquisa e ensino foi interrom ­pido no fim de 1916, quando teve um ataque e. em bora parcialm ente recuperado, nào mais reuniu condições de prosseguir, vindo a falecer em 15 de novem bro de 1917, na cidade de Paris.

O b ra s (le D u rk h e im :i 893 - Da ia division du travai! social.1895 - Les règles dc la mãthoda socioiogique.1897 - Le suicide. E rude socioiogique.1912 - Lesfonv.es êl ementa iras da lu vie religieuse.1922 - Êducation et Soaologie.1924 Sociologia d Philosophie.1925 - L 'êducation moràle.1928 Le socialisma: sa dáfinition; ses débuts: la doer ri ne

saim-simoniénne.1938 - L 'évoiution pédagogique en Franca.1950 Leçons de Sociologia: Physiqua dês níoeurs er du Droir.1953 - Montesquieu«?/ Rousseau: preeurseurs dela Sociologia.1955 - Pmgmatisme at Sociologie.1969 - .Journal Socioiogique.1970 - La Science sociaie ei l 'aclion.1975 Te.xtes.

Márcio PugliesiDoutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito paia

Universidade de São Paulo;Professor da Sociologia do Direito. Teoria Gerai do

Direito e Filosofia do Direito no mestrado a doutorado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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A contribuicão deo

Montesquieu à ascensão da

Ciência Social 1

Ignorantes de nossa história, adquirim os o hábito dc encarar a Ciência Social como algo estranho a nossos hábiios e ao espirito francês. O prestigio de trabalhos recentes sobre o assunto, escritos por em inentes filósofos ingleses e alemàes, fizeram-nos esquecer que essa ciência veio à iuz em nosso país. Não foi apenas um fran­cês. Augusto Comte. que firmou seus primeiros alicerces, çjisiinguiu

suas panes essenciais e a chamou Sociologia um nom e um tanto bárbaro, na verdade com o tam bém o próprio ím peto de nossa atual preocupação com problem as sociais veio de nossos filósofos do século XVIII. Nesse brilhante grupo de escritores. M ontesquieu ocupa um lugar de destaque. Foi ele quem , no livro Espirito das f.eis. expôs os princípios da nova ciência.

; A tese em latim de Hmile Durklieiti?, Quirí Secundanis poiiticae seiemiae nsrircnàae conndcrii. foi impressa em Hordeaux, em I $9?. pela Imprimcric Gounouiihou: c dedicada a hustel de Coulan&es. tfma irutiução <le F. Alcngrv foi publicada na Revae d'hisroire poliu que a coustiíutioniielle (julho-setembro de 1937). [Noia do tradutor para o •yi lcs]

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M o n te s q u ie u e K o u sse a u

Para ser exato. M ontesquieu nào tratou dc todos os fenômenos sociais nessa obra, mas apenas de um tipo em particular, as t e . Apesar disso, seu método de i nterpretação das diversas formas de direito também é válido para outras instituições sociais e pode, de modo geral, ser aplicado a ela?;. Como as leis abrangem toda a tfida social, ele traia necessariam ente de quase todos os aspectos da so­ciedade. Assim, para explicar p. nature7a do direito doméstico, para m ostrar com o as !cis se harm onizam com a religião, a moralidade, etc., ele é obrigado a investigar religião, m oralidade e a familia, de forma que, na verdade, escreveu um tratado sobre os fenômenos sociais com o um todo.

Nào quero dizer com isso que a obra de M ontesquieu contém m uitas p roposições que a c iênc ia m oderna pode aceitar como teoremas bem dem onstrados. Quase todos os instrumentos dc que precisam os para explorar a natureza das sociedades eram inexisten­tes no tempo de M ontesquieu. A ciência histórica vivia sua infância e com eçava a se desenvolver; os relatos dc viajantes sobre povos dis­tantes eram raros e pouco confiáveis; a estatística, que nos capacita a classificar os diversos eventos da vida (mortes, casam entos, cri­mes. etc.) segundo um m étodo definido ainda nào era usada. Além disso, como a sociedade é um grande organismo vivo com uma m en­te característica com parável à nossa, um conhecim ento da mente humana e suas leis nos ajuda a perceber as leis da sociedade com mais exatidào. No últim o século, esses estudos csiavam cm seu es­tágio mais primitivo. A lém disso, a descoberta de verdades inquestio­náveis não é, de forma algum a, o único modo de coniribuir para a ciência. É igualm ente im portante conscientizar a ciência de seu as­sunto. sua natureza e método e preparar as bases sobre as quais se estabelecerá. Foi exatam ente o que M ontesquieu fez por nossa ciên­cia. Ele nem sempre interpretou a história corretam ente, e é fácil

A c o n tr ib u iç ã o d c M o n te s q u ie u à a s c e n sã o 02 C iê n c ia S ocial 15

dem onstrar seus erros. Mas ninguém antes dele fora tào longe na estrada que levou seus sucessores à verdadeira Ciência Social. Nin­guém cmrcvira tão claramente as condiçòes necessárias para o esta­belecimento dessa disciplina.

Comecemos por estabelecer essas condições.

Condições necessárias para o estabelecimento da

Ciência Social

m ______________________________________________________________________________________

Uma disciplina só pode ser chamada ciência se tiver um campo definido a explorar. A ciência traia de coisas, realidades. Se nào tiver um material definido a descrever e interpretar, existe um vácuo. Além da descrição e da interpretação da realidade, ela nào pode ter fcnçào real. A Aritmética trata de números; a Geometria, de espaço e figuras: as Ciências Naturais* de corpos anim ados e inanimados; e a Psicolo­gia, da mente hum ana. Antes que a Ciência Social pudesse começar a existir, era preciso atribuir-lhe um assunto definido.

A prim eira vista, esse problema nào apresenta dificuldade: o assunto da Ciência Social sào as "coisas” sociais, ou seja, leis, costu­mes, religiões, etc. Todavia, se olharm os para a história, percebemos que, até bem recentem ente, nenhum filósofo jam ais encarara esses assuntos sob essa luz. Pensavam que todos os fenômenos dependiam da vontade hum ana e. por isso. nào conseguiram perceber que eles sào os verdadeiros objetos, como todas as outras coisas na natureza, que têm suas características particulares e, conseqüentem ente, exi­gem ciências que possam descrevê-los e explicá-los. Parecia-lhes

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M ontesquieu e Rousscau

suficiente afirm ar aquilo por que a vontade humana deve lutar e o que deve evitar em sociedades constituídas. Desse modo. eles nào procuravam conhecer o que realm ente são os fenômenos sociais, sua natureza e origem, mas o que eles deveriam ser: seu objetivo nào era oferecer um a imagem da natureza tào verdadeira quanto possí- vel, m as confrontar nossa irnaginaçào com a idéia de uma sociedade perfeita, um modelo a ser seguido. M esm o Aristóteles, que dedicou muito m ais atenção que Platàc à experiência, tinha com o objetivo descobrir não as leis da existência social, mas a m elhor forma de sociedade. Ele parte da suposição de que o único objetivo dc uma sociedade deve ser obter a felicidade dc seus m em bros por meio da prática da virtude, e que a virtude reside na contemplação. Nào esta­belece esse princípio com o uma lei que as sociedades realmente ob­servam, mas como uma que devem seguir para que os seres hum a­nos possam estar de acordo com sua natureza específica. M ais tar­de. é verdade, ele se volta para os fatos históricos, mas sem outro objetivo senào o de julgá-los e m ostrar como seus próprios princípios poderiam ser adaptados a diversas situações. Os pensadores políti­cos que vieram depois dele seguiram seu exem plo em m aior ou me­nor grau. Tenham eles completamente ignorado a realidade ou presta­do uma cena atenção a ela. têm todos um único propósito: corrigi-la ou transformá-la completamente, cm vez de conhecê-la. Xão tinham pra­ticamente qualquer interesse no passado c no presente, mas olhavam para o futuro. E uma disciplina que olha para o futuro carece de um assunto determinado c, por isso. nào deve ser chamada de ciência, mas de arte.

Afirmo que essa arte sem pre envolveu um a cena ciência. N in­guém já afirmou que determ inado tipo de Estado c preferível a outro sem tentar apoiar sua preferência com provas, e essas provas têm de se basear em alguma realidade. Se: por exemplo, consideram os a democracia superior à aristocracia, devemos m ostrar que ela é mais conforme à natureza hum ana ou apontar exemplos históricos que demonstram que as nações que gozaram de liberdade eram superio­res às que não a tinham, etc. Quando procedemos m etodicam ente -

C o n d iç õ e s n c c c s s ir ia s p a r a o e s ta b e le c im e n to d.í C iência ... 19

seja ao explorar a natureza ou ao definir regras de com portamento - devemos reverter às coisas, ou seja, à ciência.

M as com o os escritores inclinam-se a derivar suas opiniões a respeito desses assuntos da existência hum ana e nào do estado das sociedades, essa ciência - se podem os chamá-la assim - normal­mente nada contém de verdadeiram ente social. Quando um autor demonstra que os homens nasceram para a liberdade ou, ao contrá­rio, que aquilo de que precisam acim a de tudo é segurança, c a partir disso conclui que o Estado deve ser constituído de tal ou tal forma, onde, nisso tudo, está a C iência Social? Tudo o que se parece com ciência nessas discussões vem da Psicologia e o que se relaciona à sociedade tem a natureza de arte. Quando uma descrição ou interpre­tação dos fenômenos sociais de fato ocorre, representa um papel ape­nas secundário. Isso se aplica à teoria de Aristóteles sobre as causas subjacentes ã m odificação ou à derrocada dc regim es políticos.

Além disso, quando a ciência se envolve com a arte, sua natu­reza especifica tende a ser alterada; ela degenera em algo duvidoso. Arte é ação: é im pulsionada pela urgência e qualquer ciência que possa conter é em purrada junto. O fato é que sempre que precisamos decidir o que fazer c tais decisões são o papel da arte nào pode­mos temporizar demais: devemos nos decidir tào rapidamente quanto possível porque a vida continua. Se o Estado está doente, é impossível continuar duvidando e hesitando ate que a Ciência Social tenha des­crito a natureza da moléstia e descoberto suas causas: deve-se tomar uma atitude sem demora. Porem, somos dotados de inteligência e da faculdade de deliberação; nào tom am os nossas decisões ao acaso. Devem os compreender, ou ao menos pensar que com preendem os, as razões para nossos planos. Por isso apressadam ente reunim os, com ­paramos e interpretamos os fatos que nos caem nas mãos; em suma. improvisamos uma ciência conform e prosseguimos, de forma que nossa opinião parece ter um alicerce. Esse ê o tipo de ciência - enor­m emente adulterada, com o se pode ver imediatamente - que encon­tramos na aite. Mas como procedem os sem método, essa ciência nào

20 M o n t c s c n i í e u ç R o u ^ e a u

oferece m ais do que probabilidades duvidosas, que têm tanta autori­dade quanto quiserm os lhes eonceder. Se agimos com base nelas, não ê porque os argum entos em que parecem se basear nào deixam espaço para incerteza, m as porque se adaptam a nossos sentimentos pessoais; elas invariavelm ente levam à m esm a direção que nossas inclinações espontâneas. Além do mais. quando nossos inteYcsses pessoais estào am eaçados, tudo mexe com nossas em oções. Quan­do alguma coisa afeta seriam ente nossa existência pessoal, somos incapazes de exam iná-la com atcnçào e calma, líá coisas de que gostamos, outras que detestam os; outras, ainda, que desejamos, e a cada situação trazem os nossos gostos, desgostos e desejos, iodos obstáculos à reflexão. Além disso, nào há uma regra firme e rápida que possa nos capacitar a perceber o que é intrinseeamente útil e o que nào é, pois a mesma coisa pode ser útil em um aspecto e danosa em outro. Com o a utilidade e o prejuizo não podem ser comparados matem aticamente, cada indivíduo age de acordo com sua própria natureza e. seguindo sua inclinaçào pessoal, concentra sua atençào em um único aspecto da coisa e negligencia o outro. A lguns homens, por exemplo, sào tão inflam ados pela idéia de harmonia entre os cidadãos que nada consideram tão importante quanto um Estado for­temente unificado e nào se perturbam com a supressão de liberdade que isso possa gerar. Para outros, a liberdade vem antes de tudo. A reunião de argum entos com os quais esses homens apóiam suas opi­niões não refiete fenômenos, realidades ou a verdadeira ordem das coisas, mas sim plesmente estados de mente. Esse procedim ento é o oposto da verdadeira ciência.

A eiência é tào diferente da arte que apenas pode ser fiel à sua própria natureza ao declarar com pleta independência, ou seja. ao aplicar-se, com total desconsideração pela utilidade, a um objeto definido com o fito de conhecê-lo. D istante de debate público ou privado, livre de qualquer necessidade vital, um cientista deve dedi- car-se a seus estudos na paz e na quietude do gabinete, sem que algo o force a apressar suas conclusões além do justificável por seus ar­

C o n d iç õ e s n e c e s sá r ia s p a ra o e s ta b e le c im e n to d a C iên c ia . 21

gum entos. M esm o em questões abstratas, sem dúvida, nossas idéias vèm do coração, pois ele é a fonte de toda nossa vida. Mas para que nossos sentim entos nào nos façam dispersar, devem ser governados pela razão. A razão tem de ser posta acim a dos acidentes e contin­gências da vida. pois. de outra forma, tendo menos força que os de­sejos de todos os tipos que nos animam, inevitavelmente tomará a direção por eles imposta.

Isso nào quer dizer que a ciência seja inútil na condução da vida humana. M uito pelo contrário. Quanto mais definida a distin­ção entre a Ciência e a A rte. m ais útil a primeira pode ser à segunda. O que é mais desejável para um ser humano do que ser sadio na m ente e no corpo? Apenas a ciência pode nos d izer o que constitui uma boa saúde física e mental. A Ciência Social, que classifica as diversas sociedades humanas, nào pode deixar de descrever a forma normal da vida soeial em cada tipo de sociedade, pela sim ples razào de que descreve o tipo em si: o que quer que pertença ao tipo é nor­mal, e o que quer que seja normal ó saudável. A lem disso, com o um outro ramo da ciência trata de doenças e suas causas, somos infor­m ados não apenas a respeito do que ê desejável, mas também sobre o que deve ser evitado e com o os perigos podem ser afastados. Por isso. é importante para a própria arte que a ciência seja separada e, por assim dizer, em ancipada dela.

M ais que isso, cada ciência deve ter seu objeto específico; pois se com partilhasse seu objeto com as outras ciências, seria in­distinguível delas.

[ i i i ____________________________________________________________________________________

Nem todos os assuntos admitem o estudo cientifico.A prim eira tarefa da Ciência é descrever como são as realida­

des com que lida. Mas se essas realidades variarem entre si em um grau tal que não constituam urn tipo, nào poderão ser descritas por qualquer m étodo racional. Terão de ser consideradas um a a uma. cada qual independente das outras. M as cada caso individual envol­

77 M o n te s q u ie u c R o u sse a u

ve um número infinito de propriedades, entre as quais nenhuma es­colha pode ser feita: o que c infinito não pode ser descrito. Ü melhor que poderíamos fazer seria tratar essas realidades à maneira dos poe­tas c contadores de histórias, que retraiam as coisas como parecem ser, sem m étodo ou procedim ento racional. Se. por outro lado, as realidades podem ser reduzidas a um íipo. elas apresentam algo que pode ser acuradam ente definido e que caracteriza o tipo em questão, pois as características comuns ao mesmo tipo sào finitas cm número e sua essência é manifesta. Precisamos apenas reunir esses indivíduos e notar seus pontos em comum. Em suma. a cicncia nào pode descre­ver indivíduos, mas apenas tipos. Se as sociedades humanas não po­dem ser classificadas, permanecem inacessíveis à descrição científica.

t. verdade que Aristóteles distintos, há muito tempo, entre m o­narquia. aristocracia e KÕÂiTia [politia]. M as os tipos de sociedade nào devem ser confundidos com os diferentes tipos de Estado: duas cidades podem ser de tipos diferentes, mas governadas do mesmo modo. Assim, algum as das ftoX£iç[/w//.v], as cidade-estado gregas, e a m aioria das nações bárbaras poderiam ser corretam ente chamadas de m onarquias e eram de falo denom inadas assim por Aristóteles porque ambos os grupos eram governados por reis. Todavia, eram de natureza diferente. Além disso, uma mudança no sistema de governo de uma naçào nào envolve necessariamente uma mudança no tipo prevalescente dc sociedade. Conseqüentemente, a classificação das sociedades feita por Aristóteles nada nos diz a respeito dc sua nature­za. Os filósofos posteriores que trataram do assunto aceitaram sua ciassificaçào e nào tentaram estabelecer uma outra, pois julgavam impossível com parar sociedades humanas sob qualquer outro aspec­to que não a forma do Estado. Os outros fatores - moralidade, reli­gião, vida econômica, família, etc. - pareciam tào fortuilos e variáveis que ninguém pensou em classificá-los em tipos. Todavia, esses fatores têm uma fone influência sobre a natureza das sociedades; são o ver­dadeiro recheio da vida e, conseqüentemente, o assunto da Ciência Social.

C o n d içò è S n e c e s sá r ia s p a r a o e s ta b e le c im e n to d a C iênc ia ...

IJUULI

A descrição, porém, c apenas o primeiro passo do procedim en­to cientifico, que é completado pela interpretação. F. a inierpretação exige ainda um a condição que, por muito tempo, se ju lgou faltar nos fenômenos sociais.

Interpretar coisas é sim plesmente arranjar nossas idéias a res­peito delas cm uma ordem determ inada, qi;e deve ser a m esm a das próprias coisas. Pressupomos, assim, que uma ordem está presente nas próprias coisas, que elas formam séries continuas, cujos elem en­tos estão relacionados de tal forma que um dado efeito é sempre produzido pela mesma causa e nunca por qualquer outra. Se supu­sermos. porém, que não existe essa relação causai e que os efeitos podem ser produzidos sem uma causa ou por qualquer causa, tudo se torna arbitrário e fortuito. M as o arbitrário não admite interpretação. Por isso, deve-se fazer uma escolha: ou os fenômenos sociais sào incompatíveis com a ciência ou sào governados pelas mesmas leis que o restante do Universo.

Este nào é o lugar para um exame cuidadoso da questão. Dese­jam os apenas m ostrar que se as sociedades nào estão sujeitas a essas leis, nenhuma Ciência Social c possível. E sem Ciência nào pode haver Arte, a m enos que. ao estabelecer as regras da vida humana, lancemos mão de uma faculdade diferente da razão. Todavia, como o princípio de que todos os fenômenos do Universo estão firm em en­te inter-relacionados foi testado nos outros dom ínios da natureza e nunca se mostrou falso, ele tam bém é válido, com toda probabilida­de. para as sociedades humanas, que são parte da natureza. Parece contrário a qualquer método sensato supor que existem todos os ti­pos de exceções a essa regra, quando conhecemos apenas um único exemplo. Muitas vezes já se argumentou, na verdade, que a necessi­dade c irreconciliável com a liberdade humana, mas. como já de­monstramos alhures2, esse argumento deve ser excluído J á que, se a

2. D a d iv isã o d o tra b a lh o s o c ia l, pp. 1 c 11.

: ■ M o iu e sc m ic i: c R w issc .m

liberdade realmente elim ina a lei. disso advem, uma vez que a vonta­de humana inevitavelmente se manifesta em coisas externas, que nào apenas a m ente, mas também o corpo e os Seres inanim ados terào de ser considerados estranhos a qualquer ordem e, portanto, à ciência. Mas hoje ninguém ousaria questionar a possibilidade da Ciência Na­tural. Nào há razão por que a Ciência Social não deva gozar do mesmo estatuto.

Todavia os homens, e m esm o os filósofos, sào naturalmente inclinados a excluir os princípios que estam os discutindo dos fenô­menos sociais. Normalmente, pensamos que os únicos motivos sub­jacentes a nossos atos sào os conscientes c negam os a existência de outros porque não os sentim os. Assum imos a m esm a atitude em re­lação a instituições sociais, atribuindo importância primordial às cau­sas m ais aparentes, embora elas derivem seu poder de outras causas. F. urna tendência natural considerar o que vem prim eiro na ordem do conhecim ento com o a prim eira coisa na ordem da realidade. E. no caso das intituiçòes políticas, legais e religiosas, nada há de mais m anifesto, de mais pungente, que a personalidade daqueles que go­vernaram Estados, esboçaram leis e estabeleceram cerimônias reli­giosas. Assim, a vontade pessoal de reis, legisladores e profetas pa­rece ser a fonte da qual nasce toda a vida social. Seus atos sào reali­zados à vista de todos: nada há de obscuro a respeito deles. Outros fenômenos sociais, porém, sào muito mais difíceis de perceber. F.ssa é a origem da difundida superstição de que um legislador dotado de um poder quase ilimitado é capaz de criar, m odificar e descartar leis a seu bel-prazer. Embora os historiadores m odernos tenham demons­trado que a lei deriva do costum e, ou seja. da própria vida, por um processo de desenvolvim ento quase imperceptível não relacionado às intenções combinadas tios legisladores, essa opinião tem raízes tão profundas na mente hum ana que muitos insistem nela. M as aceitá- la c renegar a existência de qualquer ordem determ inada nas socie­dades hum anas, pois se isso fosse verdade, as leis. costum es e insti­tuições não dependeriam da natureza constante do Estado, mas do

C o n d iç õ e s n e c e s sá r ia s p a ra o e s ta b e le c im e n to d a C iê ncia.

acaso que deu preferência a um legislador ao invés dc um outro. Se os mesmos cidadãos sob um governante diferente pudessem produ­zir um Estado diferente, isso significaria que a m esm a causa, agindo sob as mesmas circunstâncias, teria o poder de produzir efeitos di­versos: nào haveria cio racional entre os fenômenos sociais.

Nada atrasou tanto a Cicncia Social quanto esse ponto dc vista, que os filósofos, seja consciente ou inconscientemente, também acei­taram. Os outros obstáculos aos quais nos referim os ou que devemos discutir mais adiante nào podem ser removidos enquanto este ainda tiver força. Enquanto tudo nas sociedades hum anas parecia tão abso­lutamente fortuito, ninguém teria pensado em classificá-los. Nào pode haver tipos nas coisas a menos que haja causas que. em bora operantes em diferentes locais e distintas épocas, sempre e em toda parte pro­duzam os mesmos efeitos. E onde está o objeto da Ciência Social se o legislador pode organizar e dirigir a vida social como quiser? 0 assunto da ciência apenas pode consistir de coisas que tenham uma natureza estável e sejam capazes de resistir à vontade humana. Quando as coisas sào infinitam ente flexíveis, nada nos impele a observá-las e elas nada oferecem que se preste à observação. Pois se tivessem um caráter próprio, seria impossível m anipulá-las ã vontade. Isso expli­ca por que. por m uito tempo, a Ciência Social era apenas uma arte.

Mas, poder-se-ia argumentar, ninguém jam ais negou que a cicn­cia da natureza humana é indispensável a quem quer que queira go­vernar seres humanos. Claro. Mas, como demonstramos, essa ciência devc scr chamada Psicologia c nào Ciência Social. Para que esta de fato exista, é preciso supor que as sociedades possuem uma certa natureza que resulta da natureza e do arranjo dos elem entos que as compõem, c que é a fonte dos fenômenos sociais. Uma vez que a existência desses elementos é assegurada, nosso legislador desapa­rece junto com sua lenda.

26 MontssqxiSeu e Rou sscau

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Entretanto, nào basta ter um assunto cientificam ente cognosci- vcl. Se tipos e leis perm anecem lào escondidos nas profundezas das coisas que nào há modo de percebê-los, a ciência dos fenômenos naturais perm anecerá eternam ente em um estado de m era possibili­dade. Antes que ela possa dc fato passar a existir, devem os possuir um método apropriado à natureza das coisas estudadas e aos requisi­tos da ciência.

N ão se deve supor que esse método vem espontaneam ente no momento em que abordam os uma ciência. Pelo contrário, só o en­contramos depois de muitas tentativas. Foi apenas muito recente­m ente que os biólogos descobriram como estudar as leis da vida com a observação de criaturas vivas reais. A Psicologia também tateou por muito tem po antes de conseguir organizar um método próprio. A Ciência Social enfrenta dificuldades ainda maiores. Os fenômenos de que trata sào tão diversos que aquilo que têm em comum parece estar oculto ã vista. São tào fluidos que parecem enganar o observa­dor. Causas e efeitos sào tào entrelaçados que é necessário tomar um extremo cuidado para desembaraçá-los. Além disso, é impossível fazer experiências com sociedades humanas e não é fácil encontrar um método que possa tomar o lugar rfo experimento. Fica claro que o método nào pode ser estabelecido antes que a ciência comece a to­mar forma; o método deriva da ciência, embora também seja indis­pensável à ciência.

Vamos agora ver até que ponto M ontesquieu, no Espirito das Leis. obedeceu a essas condições indispensáveis à Ciência.

Até que ponto Montesquieu definiu o

campo da Ciência Social?

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Parccc estranho que tenha havido tanla discussão a respeito do propósito de M ontesquieu ao escrever seu livro, pois ele afirma seu objetivo em diversos trechos: “Este livro trata das leis. costumes e diversas práticas de todos os povos da Terra. Seu assunto é vasto, pois engloba iodas as instituições que vigoram entre os seres huma­nos". Montesquieu tenta chegar ao fundo dos fenômenos sociais para “buscar as origens e descobrir suas causas m orais e físicas” . Quanto a representar o papel de legislador, ele afirma com modéstia que isso está alem de seus poderes. De fato, toma cuidado particular para não im itar aqueles que tentam reconstruir a sociedade a partir do zero: “ Não escrevo para censurar o que quer que esteia estabelecido em qualquer país que seja. Todas as nações encontrarão aqui as razões em que suas máximas se baseiam ... Se apenas eu pudesse ter èxito em fornecer a cada homem novas razões para amar seu príncipe, seu país, suas leis; novas razões para torná-lo mais sensível, cm toda

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28 M ontesquieu e Rousscau

nação c governo, às bênçàos que recebe, poderia considerar-me o mais feliz dos m ortais” .

Ele cum priu tào bem esse objetivo que muitas vezes foi censu­rado por nào achar defeito em nada. por ter respeitado a realidade a tal ponto que nunca se aventurou a julgá-la. Porém, ele estava longe dc encarar os assuntos hum anos com essa serenidade; os que o acu­sam de tal indiferença certamente nào conseguiram compreender o significado de sua obra. Todavia. ele acreditava que muitos costumes que se afastam dos nossos e que todos os povos europeus atualmente rejeitam têm uma base legitima na natureza de ecrtas sociedades. Afir­mava. por exemplo, cue a poligam ia, falsas religiões, uma forma m oderada e hum ana de escravidão e muitas outras instituições desse tipo haviam sido apropriadas para certos países e periodos. Conside­rava até mesmo o despotismo, a forma de regim e político que mais detestava, necessário aos povos orientais.

Disso nào devemos concluir que Montesquieu mantinha-se afas­tado dos problem as práticos. Pelo contrário, ele próprio declara estar tentando determ inar “as instituições mais apropriadas à sociedade e a caca sociedade, as que tém algum grau de virtude em si m esm as e as que nào possuem , e das duas práticas perniciosas, qual o é em m aior e qual é em m enor grau", isso explica por que o livro nào trata apenas dc leis, mas também das regras da vida hum ana; nào somente com a Ciência, mas também com a Arte. De fato. ele pode. com certa justiça, ser acusado de nào ler conseguido distinguirnitidamenre entre Arte e Ciência. Ele não dedica uma parte de seu livro ao que é e outra ao que deveria ser; Arte e Ciência estão tão misturadas que muitas vezes passam os sem perceber dc uma à outra. Na verdade, há dois conjuntos de problem as envolvidos e seu hábito de discuti-los si­multaneam ente tem suas desvantagens, já que eles exigem métodos diferentes.

Todavia, nào c a mesma confusão que reinou enire filósofos an­teriores. Em primeiro lugar, a ciência de Montesquieu é de fato Ciên­cia Social. Trata de fenômenos sociais. e não da vida do indivíduo.

A té QUc p o n to M o n lc s u u ic u d c tsn r.i o c a m p o á d C iO nda._

Essa nova Ciência nào é suficientem ente distinta da Arte,- mas ao menos existe. E longe de ser sufocada sob problem as que envolvem ação. ela é o principal assunto de seu livro. É a senhora, mas nunca a serva da Arte, e por isso é mais capaz de perm anecer fiel a sua natureza específica. O principal objetivo do autor é conhecer e expii- car o que existe ou existiu. A m aioria das regras que ele define são verdades - declaradas em outra linguagem - que a Ciência já com ­provou com seus próprios métodos. Ele não está preocupado com a instituição de uma nova ordem política, mas com a definição de nor­mas políticas. E qual a funçào da Ciência se não a definição de nor­mas? Como a suprema lei de todã sociedade é o bem -estar de seus membros, e como uma sociedade não pode se preservar sem prote­ger sua natureza específica, basta descrever essa natureza para de­term inar por que aquela sociedade deve em penhar-se e o que deve evitar, pois a saúde é sempre desejável e a doença deve ser evitada. Por exemplo: depois de dem onstrar que a democracia só é possível em pequenos Estados. M ontesquieu nào tem dificuldade cm deter­minar que uma dem ocracia deve se abster dc estender suas frontei­ras. Como pudem os observar, apenas em casos excepcionais a Arte substitui a Ciência sem am pla justificativa.

Além disso, corno essas regras são estabelecidas por novos m étodos, sào muito diferentes daquelas ditadas pelos escritores po­líticos anteriores, que form ularam tipos que supostam ente trans­cendiam todas as considerações dc local e época adequadas a ioda a humanidade. Estavam convencidos de que uma única forma de regi­me político, um a única disciplina moral e um a legal, era conforme à natureza de todos os hom ens, e que todas as outras formas encontra­das na história eram más ou. no minimo. imperfeitas, e deviam sua existência apenas ã inexperiência de seus fundadores. Essa necessi­dade não nos surpreende. Esses escritores ignoravam a história e nào conseguiram perceber que os hom ens nào sào sempre os mesmos em toda parte. que. pelo contrário, sào dinâm icos e diversificados, de forma que diferenças de costum es, leis e instituições sào inerentes á

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natureza das coisas. M ontesquieu, porém, com preendeu que as re­gras da vida variam com as condições de existência. Ao longo de suas investigações.ele observou diferentes tipos de sociedade, todas igualmente “norm ais”, e nunca passou por sua cabeça estabelecer regras válidas para todos os povos. Eie adaptou suas regras para cada um dos diferentes tipos de sociedade. O alim ento da m onarquia é o veneno da dem ocracia. Porém , nem a monarquia nem a democracia são, em si mesmas, superiores a todos os outros regimes políticos. A conveniência de um a ou outra forma dc governo depende dc condi­ções particulares de época e local.'

Como vem os, M ontesquieu nào era inteiram ente indiferente às vantagens das coisas que descreveu. M as tratava desses problemas segundo um novo método. N ão aprovava tudo o que já havia sido feito, mas dividia o que era bom e o que não era baseado cm normas derivadas dos próprios fenômenos e. por isso, correspondentes ã sua diversidade.

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M ontesquieu traça uma acentuada distinção entre fenômenos sociais e os fenômenos estudados por outras ciências.

Na verdade, ele define íeis que derivam da natureza do ho­mem. qualquer que seja a forma particular de sociedade em que ele vive, c que por isso pertencem ao dominio da Psicologia pura. Cha­ma-as de leis da natureza. São elas: o direito de preservar a própria vida ou dc viver em paz, o direito de comer, o direito dc ceder à atração pelo sexo oposto e o direito de manter relações sociais com seus próximos. Acrescenta que uma certa idéia de Deus é a primeira dás leis naturais em importância, senão em ordem cronológica, em ­

3. Ele. sem dúvida, admira a monarquia porque vê maior arte em sua estrutura que na dc outras formas, tuas a seu ver isso nào é razão suficiente para considerá-la inirinsecamente a melhor forma dc listado. liem ao contrário, se uma monarquia fosse estabelecida cm urna sociedade com um pequeno número de cidadãos, essa sociedade, afirma eíe, estaria destinada a desaparecer.

A te q u e p o n to M o n te s q u ie u d e f in iu o c a m p o d a C iênc ia ... 31

bora sua relação com às outras leis não fiqtic bem clara. De qualquer modo, esses fatores têm seu princípio c fim na vida dos indivíduos c não na da sociedade; no m áxim o, preparam o cam inho para a vida social, pois embora o instinto que nos impele a travar relações com outros hom ens abra o caminho para a sociedade, ele nào produz as formas, a nátureza ou as leis da sociedade. As instituições sociais nào podem ser explicadas por esses fatores. O tratam ento que M ontesquieu dá a todo esse problema c apressado e superficial. O tópico não tem relaçào direta com o tema dc seu trabalho. O filósofo passa por ele apenas para definir seu assunto com m ais precisão, ou seja. para separá-lo dos problemas relacionados.

D as leis naturais, ele distingue claramente as leis relacionadas à sociedade, às quais dá um nom e especial porque nào podem ser inferidas pela natureza do homem. Estas sào o assunto de seu livro, o verdadeiro objeto de sua busca: incluem o direito das nações, o d i­reito civil, o direito político e todas as principais instituições sociais. M as devemos ter cuidado ao interpretar a terminologia de M ontes­quieu. t verdade que ele não aplica o termo natural a essas diversas formas de direito, mas isso nào quer dizer que ele as considera estra­nhas à natureza. Para ele, elas se baseiam na realidade, mas nào do mesmo modo que as leis naturais, já que resultam não da natureza do homem, mas da natureza das sociedades. Suas causas devem ser bus­cadas em condições sociais, e nào na mente humana. Se. por exem­plo. desejamos com preender o direito civil dc uma determ inada na­ção. devemos considerar o tamanho de sua população c a natureza dos laços sociais entre seus cidadãos: se nosso objetivo è interpretar seu direito político, devemos exam inar as situações respectivas dos governantes e dos cidadàos comuns, etc. Obviam ente, com o as so­ciedades sào compostas de homens individuais, sua natureza deve depender, em parle, da natureza dos homens. M as o próprio homem varia de uma sociedade à outra: sua mentalidade nào é sempre a mesma, nem seus desejos iguais na monarquia, na dem ocracia ou no despotismo. Se M ontesquieu aplicou a palavra “natural" apenas às

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leis da vida individual - com o se as outras leis nào merecessem ser chamadas assim isso deve ser atribuído aos hábitos de seu tempo. Para os filósofos da época, um ‘‘estado de natureza” era o estado do homem que vivia sem sociedade, e ‘ie is naturais" eram aquelas ãs quais o hom em se conform ava nesse estado. M ontesquieu aceitavao uso habitual do term o apesar da am bigüidade que envolvia.

A visào de M ontesquieu a respeito dos fenômenos sociais deu origem a uma nova filosofia do direito. Até aquele momento, exis­tiam duas escolas dc pensam ento. De acordo com uma delas, o direi­to em geral nào tinha raizes na natureza das coisas, mas era estabele­cido pela Vontade deliberada de seres humanos por meio de algum tipo de acordo original. A outra afirmava que apenas uma parte do direito era natural, ou seja. a pane que podia ser derivada da noção geral de homem. Apenas a natureza do homem individual parecia suficientem ente estável e bem definida para servir com o um a base sólida para o Direito. D esse modo. essa escola tinha uma opiniào muito parecida com a dos filósofos anteriores. Como apenas os prin­cípios básicos dos quais havia m uito poucos podiam ser relacio­nados á natureza do hom em , as incontáveis leis particulares em que abundavam os códigos das diversas nações eram um produto huma­no artificial. Esses pensadores, sem dúvida, discordavam de Hobbes. que negava que o hom em íosse impelido ã vida social por um impul­so natural. Acreditavam ainda que as formas políticas e a maioria das instituições sociais, senào apropria sociedade, eram produtos de pura convenção. M ontesquieu, p o r outro lado. declara que nào apenas as ieis gerais, mas também todo o sistema de leis. passadas c presentes, eram “naturais'5. Todavia, suas leis não vêm da “natureza” do ho­mem. mas daquela do organismo social. Ele com preendia com es­pantosa lucidez que a natureza das sociedades não é menos estável e consistente que a do hom em e que nào é m ais fácil m odificar o tipo de uma sociedade do que a espécie de um animal. Assim, é bastante injusto com parar M ontesquieu com M aquíavel, que via as leis como m eros instrum entos que os p ríncipes pod iam u sar com o lhes aprou\ esse. M ontesquieu estabeleceu o Direito em um a base tão fir­

me quanto Grócio e seus discípulos, embora, como dissemos» de um modo inteiram ente novo.

É verdade cue em diversos trechos ele parece falar de certos princípios, inclusive princípios de Direitos civil e politico. como se eles fossem auto-suficientes e independentes da natureza das socie­dades. “Antes que as leis fossem feilas” . ele escreve, “havia relações de possível justiça. D izer que nada há de justo ou in justo senào o que é ordenado ou proibido por leis positivas é o mesmo que falar que antes da descrição de um circulo nem todos os raios eram iguais."

Xão obstante, esse trecho nào é. de forma algum a, conflitante com a interpretação apresentada acima. Dizer que os sistem as legais das sociedades tèrn raízes na natureza não é concluir que não há sem elhança entre as leis e costum es de diferentes povos. Assim como todas as sociedades, mesmo as mais dessemelhantes têrn algo em comum, tam bém certas leis podem ser encontradas em todas as soci­edades. Essas são as leis que M ontesquieu considera adequadas à sociedade em geral. Presentes onde quer que a sociedade exista, es­tão im plícitas na própria noção de sociedade e podem ser explicadas por ela. Assim, sua verdade pode ser demonstrada, não importa se foram de fato estabelecidas pelo homem ou se as sociedades existem ou se nunca existiram. Basta concebê-las como possíveis. Em outro trecho, M ontesquieu cham a a essas leis de lei ern um sentido absolu­to e universal e declara que elas não são mais que a razao humana considerada como o poder que governa iodas as sociedades, t ia s podem ser deduzidas, pela pura força da razào. a partir da definição de sociedade, logo que se tenha essa definição. Talvez porque pos­sam ser encontradas em todas as nações e sejam concebidas, em cer­to sentido, como anteriores ao estabelecimento das sociedades, ele nào as distingue claram ente das leis da natureza.

I lá apenas uma objeção justificada a essa doutrina: é que ela divide o Direito e a Ética, que sào um só. ern duas partes diferentes em origem e em natureza. Nào é fácil perceber com o elas se unem. principalm ente porque m uitas vezes estão em desacordo. O Direito

A te q u e p o n to M o n te s q u ie u d e í in k i o c a m p o C ic n c i.i -_________

M cm Ursquieu c R otisscau

natural e o direito civil ou politico às vezes exigem atitudes conflitantes. Se não tiverem uma base com um , como se pode decidir a qual obe­decer? M ontesquieu parece pensar que devemos dar .prioridade às leis da natureza.1 M as por que a natureza do homem seria m ais sa­grada em todos os casos do que a da sociedade? Ele deixa a questão sem resposta. Essa dificuldade nào existia para os filósofos anterio­res, já que estes derivavam o direito dc um único princípio. M as se houver dois princípios, nossa vida é arrastada cm duas direções, muitas vezes diam etralm ente opostas. Há apenas um modo de sair desse impasse, que é pressupor que todas as regras do Direito e do costu­me. mesmo as pertencentes à vida individual, resultam da existência social. Mas. nesse ponto e em muitos outros. M ontesquieu, apesar da inovação de seu ponto de vista, perm anece prisioneiro das con­cepções m ais antigas.

4 . V er L iv ro X X V I, cap s . 3 . 4 e. e s p e c ia lm e n te , 5.

A classificacão das sociedades por Montesquieu

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Montesquieu não classificou as sociedades, mas antes os modos corno são governadas. Conseqüentem ente, ele sim plesmente utili­zou as categorias tradicionais com ligeiras m odificações. Distinguiu três tipos: a república - que inclui aristocracia e dem ocracia . a monarquia e o despotismo. Com te o criticou duram ente por deixar de lado o plano estabelecido no início do livro e retom ar um a con­cepção aristotélica.' Mas, se examinarm os a obra mais de perto, per­ceberemos que a sem elhança com Aristóteles c apenas aparente.

Para começar, sua classificação não é. corno a deste, baseada no número de governantes. M ontesquieu considera a dem ocracia e a aristocracia com o variedades de um m esm o c único tipo, em bora na prim eira iodos os cidadãos participem do governo e na última ape­nas um pequeno núm ero. M as. em bora o poder esteja nas mãos de urna única pessoa, tanto na m onarquia quanto no despotismo, essas form as não são apenas dessemelhantes, mas tam bém antagônicas. M uitos críticos disseram que essa distinção é confusa e am bígua, e

5. Cóurs dv philaçaphie positiva, IV, 18 1 ( cd Schlcichcr. IV. 129).

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M o rite s q in é u c K o u sse a u

essa acusação seria justificada se fosse verdade que M ontesquieu levava em consideração apenas os regim es políticos das sociedades. M as o alcance de sua visão é muito mais amplo. pois. da forma como os descreve, os três tipos dc sociedade diferem não apenas no núme­ro de seus governantes e na adm inistração dos negócios públicos, mas em sua natureza com o um iodo.

Pode-se perceber isso logo que vemos o modo com o distingue um do outro. Aristóteles e seus seguidores derivam «ua classificação de uma noção abstrata dc Estado, porém M ontesquieu baseia-se nos próprios fenômenos. File não deduz seus três dpos a partir de um prin­cípio a prioris mas dc uma comparação das sociedades que conheceu com seus estudos de História, em relatos de viajantes ou cm suas pró­prias viagens, ü . de fato. o significado que dá aos termos nos escapa, a menos que descubramos primeiro a quais nações ele se refere.

Ele não dã o nome de “república” a todas as sociedades admi­nistradas por todos ou parte de seus membros, mas às cidades-estado gregas e italianas da A ntiguidade e às grandes cidades italianas da Idade M édia. Todavia, cie eslá preocupado principalm ente com as antigas cidades-estado. e sem pre que se refere à form a republicana fica claro que tem em m enle Roma. Atenas e Esparta. Isso explica por que atribui tanto à dem ocracia quanto à aristocracia a caicgoria de repúblicas. Como am bas as formas eram encontradas nas antigas cidades-estado e, em alguns casos, uma até mesmo sucedia a outra na m esm a nação, não era possível separá-las com pletam ente. Na verdade, as nações bárbaras, embora freqüentemente governadas por todo o corpo dos cidadãos, nào foram, como veremos, incluídas na citada categoria, e podem os ter certeza de que se M ontesquieu esti­vesse familiarizado com a forma política da França atual ele não a teria considerado republicana.

Quanto ã m onarquia, ele só encontra essa estrutura social entre ;ís grandes nações da Europa moderna. Ele demonstra que cia nào podia ser conhecida pelos povos da Antiguidade e que apareceu pela primeira vez quando os germ ânicos invadiram e dividiram o Im pero

A c la ss if icação d a s so c ie d a d e s p o r M o n te sq u ie u v

Romano. Obviamente, ele sabia que os gregos e latinos haviam sido governados por reis por muito tempo, mas a natureza de seu regim e parecia-lhe algo bern diferente da verdadeira monarquia. Quanto ao despotismo, embora em certo sentido pudesse aparecerem qualquer forma política por meio da corrupção, ele acredita que tivesse exis­tência natural apenas no Oriente. Tinha em mente os turcos, os persas e muitos outros povos asiáticos, aos quais devem ser som adas as nações da Europa Setentrional. Mas quem poderia duvidar que as an­tigas cidades-cstado, os reinos orientais e as nações européias mo­dernas representam três tipos totalmente distintos de sociedade?

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Montesquieu distingue os três tipos de sociedade nào apenas porque sào governadas de forma diferente, mas também porque di fe­rem em número, arranjo e coesão de suas partes com ponentes/'

A forma republicana prosperou em pequenas cidades e nunca conseguiu estender-se além de seus estreitos limites; as cidades da Antiguidade são exem plos dessa forma. O F.stado despótico, por ou­tro lado. é encontrado em grandes sociedades que se estendem por vastas áreas as nações asiáticas, por exemplo. O Estado monárquico é de tam anho médio e, em bora tenha unia população maior que a república, tem m enos súditos que o despótico.

Além disso, a estrutura dessas diversas sociedades nào é sem ­pre a mesma, nem seus m em bros sào unidos pelos mesmos laços. Em um a república, particularm ente em uma dem ocracia, todos os cidadãos são iguais e mesmo indistintos. A cidade-esiado parece ser uma espécie de bloco formado por com ponentes homogêneos, ne­nhum superior aos outros.’ Todos zelam igualmente pelo bem co­mum. A queles que ocupam posições de autoridade nào estào acima

6. Sabemos que esses são os elementos que o próprio Durkhcim usa como base para aquilo a que chama "morfologia social" [Nota do tradutor para o inglês] ' . H a isse que Dwrkhciin chama, na Divisão do trabalho social. "so-idariedade mecânica". (Nota do tiúdu-or para o ingdêsj

Montcsq-.iieu e Rousseau

dos outros, pois exercem o oficio apenas por um determinado período. M esmo na vida privada há pouca diferença entre eles. De Falo, é o principio da república, ou ao m enos o objetivo pelo qual ela se em ­penha, que os recursos pessoais de um homem nào excedam em muito os dc seus concidadãos; po is em bora seja difícil atingir a igualdade absoluta, as leis de qualquer república formam urna barreira a dife­renças excessivas dc fortuna, e essa igualdade seria impossível sem restrições ã riqueza individual. Os bens de todos os homens devem ser modestos se tiverem de ser mais ou menos iguais. “Como rodo indivíduo deve gozar da m esm a felicidade e das mesmas vantagens", diz M ontesquieu. “eles devem , conseqüentem ente, provar os m es­mos prazeres e formar as mesmas esperanças, o que só se pode espe­rar de um a frugalidade geral".

F.m tal Estado, as fortunas privadas nào represcnlam um papel importante 11a vida c no pensam ento dos indivíduos, que estão mais preocupados com o bem -estar comum. Assim, a principal fonte de diferença entre os homens é eliminada. Até mesmo a vida privada é mais ou menos a m esm a para iodos; a condição modesta de todos os cidadàos. estabelecida por lei. elimina quase lodo o estimulo ao co­mércio, que mal pode existir sem uma certa desigualdade. Conse­qüentem ente. a atividade de todas as pessoas é aproximadamente a mesma. Eles lavram um pedaço de terra, que é do mesmo tamanho para todos, e dali retiram a subsistência. Em suma, nào há divisão de trabalho entre os m em bros do corpo político, a menos que aplique­mos o term o à rotação do oficio público.

Esse é notavelm ente um retrato da democracia. Quanto á aris­tocracia. M ontesquieu a considera um a forma corrom pida de dem o­cracia (quanto mais se pareça com urna dem ocracia, mais perfeita é), e podemos, por isso. deixá-la de lado.

Ê fácil im aginar o que a voniade unânim e dos cidadàos pode realizar em uma sociedade assim. A idéia da nação c a principal no espirito dos homens. Com o praticamente não há propriedade priva­da. o indivíduo é indiferente ao lucro pessoal. Nào há partidos anta­gônicos para criar a desunião entre os cidadàos. Essa é a virtude que

V

A c la ss if ic a ç ã o d a s so c ie d a d e s p o r M o n te sq u ie u ______________ 3y

M ontesquieu considera a base da república. Ele nào se refere ã virtu­de ética. mas ã virtude política que reside no am or pelo pais e leva os homens a pôr os interesses do Estado acima dos próprios. O termo se presta a criticas, pois é ambíguo, mas o uso que dele faz M ontesquieu não deve nos surpreender. Nós m esm os nào o aplicamos a qualquer atitude moral que estabeleça lim ites ao interesse pessoal?

F.m um a república, em todos os casos, todos os cidadãos de­vem necessariam ente ter essa mesnií. atitude, já que todos têm o "es­pírito social" se pudermos usar esse termo e em vista da frugali­dade geral, o amor-próprio não tem do que se alimentar. A pane da consciência individual que é um a expressão da sociedade e que é a mesma para todas as pessoas é am pla e poderosa. A pane relaciona­da ao indivíduo e seus assuntos pessoais c fraca e limitada. Os cida­dãos nào têm dc ser estimulados por uma força externa, m as por um impulso natural subordinam seus próprios interesses aos do Estado.

A natureza da monarquia é bastante diferente. Nela. todas as fun­ções da vida pública, assim como as da vida privada, são divididas entre as diversas ciasses de cidadãos. Alguns se ocupam de agricultu­ra; outros, de comércio; outros, ainda, das diversas artes e ofícios. A l­guns fazem as leis. outros as executam como juizes ou governantes e ninguém tem a permissão de afastar-se de seu papel ou de prejudicar o dos outros. Assim, a monarquia não pode ser definida como o poder de uma só pessoa. Montesquieu acrescenta que mesmo que um a socie­dade seja governada por um único indivíduo, não deve ser chamada monarquia a menos que tenha leis estabelecidas segundo as quais o rei governa e que ele não pode modificar arbiirariamcntc. Isso pressupõe que haja ordens estabelecidas que limitem seu poder. Embora ele seja superior a elas. elas devem ter um poder próprio e nào estar tào abaixo a ponto de não poder resistir a ele. Pois se não houvesse barreiras à autoridade do príncipe, nào poderia haver lei limitando sua vontade, já que as próprias leis dependeriam inteiramente dela. F. esse o principio que distingue a monarquia de outros regimes políticos. A divisão de. trabalho, que nào existe na república, tende a seu desenvolvimento

M o n te s q u ie u c: K ou.sscai:

máximo na monarquia. A sociedade monárquica pode scr comparada a um organismo vivo, do qual cada pane realiza uma função especifica de acordo com sua natureza.

Isso explica por que M ontesquieu considera a liberdade política peculiar à monarquia. A s classes - ou. para usar um rermo contem­porâneo. os órgãos - do corpo social limitam nào apenas a autorida­de do principc, mas também uns aos outros. Como cada um é impe­dido pelos outros de tom ar-se demasiado poderoso e absorver todos os poderes do organismo, ele é livre para desenvolver sua natureza especial, mas com m oderação. Estamos agora em posição de enten­der o papel representado pela famosa teoria da divisão dc poderes no pensamento de M ontesquieu. E sim plesmente uma forma particular do principio de que as diversas funções públicas devem ser realiza­das por diferentes pessoas. Se M ontesquieu atribui tanta importân­cia ã distribuição da autoridade, nào é para elim inar toda discordância entre os diversos poderes, m as antes para forjar uma tal rivalidade que nenhum dentre eles possa ser capaz de erguer-se acim a dos ou­tros e reduzi-los ã insignificância.

O vinculo social em um a monarquia nào pode ser o mesmo que o de uma república. Como cada classe se relaciona a uma área limi­tada da vida social, ela nada vê além da função que realiza. A mente dos homens estã imbuída da idéia dc sua ciasse, não da do pais. Cada ordem tem apenas um objetivo, que não é o bem com um mas o auto- enaitecimcnlo. Mesmo o indivíduo pr ivado preocupa-se principalmente com seus próprios interesses. Enquanto na república a igualdade de todos os cidadàos resulta inevitavelm ente em uma frugalidade geral, a diversidade de condições característica da monarquia desperta a ambição. Quando há diversos graus de posição, honra e riqueza, cada indivíduo tem diante dc seus olhos pessoas com um padrão de vida superior ao seu e que inveja. Assim, os membros da sociedade igno­ram o bem -estar geral em favor de seus interesses pessoais, dc forma que inexistem as condições para aquela virtude que é o fundamento da república. Mas essa m esm a diversidade das partes componentes

À c la ss ific ação d a s so c ie d a d e s p o r M o n te sq u ie u Jl

contribui para a coesào. A ambiçào que promove a rivalidade entre as classes e indivíduos também as leva a realizar suas funçôcs parti­culares da m elhor maneira possível. Desse modo, trabalham incons­cientemente para o bem comum, embora em sua mente estejam pro­movendo apenas seus interesses pessoais. A emulação resulta em urna harmonia entre os diferentes elementos da sociedade.

M ontesquieu chama a esse esiirnuio ã vida pública em uma m onarquia honra. Usa o lermo para designar as am bições partícula res de indivíduos ou classes que fazem os hom ens sc em penhar para atingir a condição m ais elevada possível. Essa atitude sò ê possivel se os homens tiverem um a certa preocupação com a dignidade e a liberdade. Assim, a honra nào deixa de ter sua grandeza, mas pode dar origem a um amor-próprio excessivo e tornar-se facilm ente um defeito. Em diversos trechos. M ontesquieu fala com uma certa seve­ridade de honra e dos costum es m onárquicos em geral. Todavia, ele nào tem a intenção de depreciar a monarquia. Esses inconvenientes nascem som ente do desenvolvim ento dos negócios particulares e da m aior liberdade de que gozam os indivíduos na busca de seus inte­resses. A Virtude, para ele. é tào rara e ditlcil de atingir que o gover­nante prudente deve usá-la com a m aior das cautelas. Essa sábia or­ganização ca sociedade, que sem exigir a virtude estimula os ho­mens a grandes em preendimentos, é tào admirável, na opinião dc M ontesquieu, que ele prontam ente lhe perdoa cenas imperfeições.

Pouco direi sobre o despotism o, já que o próprio M ontesquieu parece ter se preocupado menos com ele. Essa forma de governo fica a meio caminho entre as sociedades que acabamos dc discutir. Um despotism o pode ser uma variedade de monarquia em que todas as ordens foram abolidas e não há divisão dc trabalho ou uma dem ocra­cia em que todos os cidadàos, exceto o governante, são iguais, mas iguais em estado de servidão. Por isso. tem o aspecto de um monstro, no qual apenas a cabeça c viva. tendo absorvido todas as energias do organismo. O princípio da vida social nessa sociedade não pode *er a virtude, porque o povo não participa dos assuntos da comunidade.

.:2 M o n tesq u ieu e R ousscau

nem a honra, porque não há diferenças de condição. Se os homens concordam com uma sociedade assim, c porque se submetem passi­vamente ã vontade do príncipe, ou seja. som ente por medo.

O que foi dito basta para deixar claro que M ontesquieu distin- guia tipos definidos de sociedade. Isso seria ainda mais evidente se entrássem os em detalhes, pois eles nào diferem apenas em princí­pios estruturais, mas cm todos os aspectos da vida. Costumes, práti­cas religiosas, família, casamento, criação de filhos, crimes e castigos nào são iguais em um a república, em um a m onarquia ou em um des­potismo. M ontesquieu parece ter se interessado mais pelas diferen­ças entre as sociedades que por suas semelhanças.

um______________________O leitor pode se perguntar por que, se M ontesquieu dc fato

classificou e descreveu tipos de sociedades, ele as definiu assim e lhes deu esses nomes. Ele nào as distingue e nom eia baseado na divi­são do trabalho ou na natureza de seus laços sociais, mas apenas de acordo com a natureza da autoridade soberana.

Esses diferentes pontos de vista nào são incompatíveis. Era ncccssário definir cada tipo em termos dc sua propriedade essencial, a partir da qual as outras se seguiriam. A prim eira vista, a forma de governo parece atender a essa condição. Nenhum aspecto da vida pública é mais aparente, m ais evidente a todos. Com o o governante está no topo. por assim dizer, da sociedade, e ê muitas vezes, nào sem razão, chamado de "cabeça" da nação, tudo, acredita-se, depen­de dele. Além disso, os predecessores de M ontesquieu ainda não haviam descoberto nenhum outro aspecto dos fenômenos sociais que pudesse servir como um princípio de classificação e. apesar da origi­nalidade de sua abordagem , foi-lho difícil rom per inteiram ente com o ponto de vista antigo.

Assim se explica por que ele classificou as sociedades de acor­do com a form a de governo. \ a verdade, esse m étodo está sujeito a muitas objeçôes. A lorma de governo nào determ ina a natureza de

sA c la ss if icação d a s so c ie d a d e s p o r M o n te s q u ie u B

uma sociedade. Como dem onstram os, a natureza do poder supremo pode ser modificada, ao passo que a estrutura social permanece into­cada. ou. inversamente, ela pode perm anecer idêntica em sociedades que diferem ao extremo. M as o erro reside nos termos mais do que nas realidades, pois além do regim e político M ontesquieu menciona muitas outras características pelas quais as sociedades podem ser diferenciadas.

Se deixarm os de lado sua term inologia, p.*ovavelmente nào poderemos encontrar algo mais confiável ou mais penetrante em todo o trabalho do que essa classificação, cujos princípios sào válidos até hoje. As très formas de viria social descritas constituem três tipos realmente distintos e ele dá um relato bastante exato de suas nature­zas específicas, assim com o das diferenças entre eles. Obviam ente nào havia tanta igualdade e frugalidade nas antigas cidades-estado quanto supôs M ontesquieu. M as é verdade que naquelas sociedades o escopo dos interesses privados era mais limitado e os assuntos da comunidade ocupavam um lugar m aior que rias nações modernas. M ontesquieu tinha um a admirável com preensão rio fato de que o cidadão individual de Roma e de A tenas linha pouquíssim as posses pessoais e que isso contribuía com 2 unidade social. Na sociedade moderna, por outro lado. a vida individual tem um campo mais am­plo. Cada um dc nós tem sua própria personalidade, opiniões, reli­gião e modo de vida; caria um traça um a distinção profunda entre si próprio e a sociedade, entre suas preocupações pessoais e os assun­tos públicos. Por isso. a solidariedade social nào pode ser a mesma, nem pode vir da mesma fonte: ela resulta da divisão de trabalho, que torna os cidadãos e a ordem social dependentes uns dos outros. Com grande visão. M ontesquieu distingue aquilo a que chama de governo despótico de outros tipos de organização, pois os im périos persa e turco nada tinham em comum com as cidades gregas e italianas ou com as nações cristãs da Europa.

Pode-se argumentar, porém, que 0 governo despótico é sim­plesmente uma forma de monarquia, pois mesmo em um a monar­quia 0 rei tem o direito de m odificar leis, de forma que sua vontade é

41 M o n te s q u ie u c R o u s sc a u

a lei suprema. M as as estruturas dessas sociedades sào bastante distintas. As diferenças cie condição peculiares à monarquia nào exis­tem no Estado despótico. A lém do mais. em um a monarquia nào c importante o fato de o rei ter ou não o direito de modificar as -eis: na prática real ele nào pode fazê-lo porque seu poder é limitado pelo poder das ordens. Já se objetou, com razão, que nenhum déspota jam ais teve poder ilim itado. Mas o próprio M ontesquieu corrige sua prim eira definição e reconhece que m esm o em um Estado despótico há certos controles sobre o poder soberano, em bora sejam diferentes» dos que agem na m onarquia, já que não têm sua fom e 110 poder rias diversas ordens, m as na autoridade suprema e única representada pela religião, nào apenas jun to ao povo. m as também no espírito do déspota. Sem som bra de dúvida, a religião tem esse poder nessas sociedades. Ela não apenas independe da vontade do príncipe, mas também, com o M ontesquieu observa com pertinência, ê a fonte de seu poder exorbitante. Assim , nào surpreende perceber que a reli- giào limita seu poder.

Para com preender claram ente o ponto de vista de M ontesquieu sobre esse assunto, devem os acrescentar um quarto tipo de socieda­de. que seus com entaristas costumam ignorar m as que requer nossa atenção por ser a fonte da monarquia. Consiste nas sociedades que vivem da caça ou da criação de gado. Sào diferentes das outras em muitos aspectos importantes. Por exemplo, sua população é muito pequena; a terra nào ê dividida entre os membros; nào têm leis. mas apenas costumes; os anciãos têm a autoridade suprema, m as sào tão ciosos da liberdade que nào toleram um poder duradouro. Inquestio­navelmente essas sào características de sociedades inferiores - po­deriam ser classificadas com o dem ocracias inferiores. M ontesquieu divide esse tipo em duas categorias: quando os hom ens vivem dispersos em pequenas sociedades sem ter laços cnlre si. ele os cha­ma.'$elvagens\ quando vivem em sociedades, unidos para lbrm ar um todo maior, ele os denom ina bárbaros. Os prim eiros geralm ente são caçadores; os últimos, sào criadores de gado.

A c ía^ s iticaçã o d a s so c ie d a d e s po : M o iU e so u ie u

A classificação das sociedades de M ontesquieu é apresentada na tabela que se segue:

C'om um poder soberano claramente definido

SOCIEDADES

Monarquia

República:

Despotismo

Aristocracia

Democracia

Sèm um poder soberano clara­mente definido

Povos bárbaros

Povos selvaeens

Deve-se considerar esta tabela e a ampla variedade de povos que ela abrange para pereeber que M ontesquieu não utilizou sim­plesmente a classificação dc Aristóteles com leves alterações, mas produziu um sistem a original.

Até que ponto Montesquieu acreditava

que os fenômenos sociais estão sujeitos a leis definidas?

m ________________________________________________________

M ontesquieu não se lim ita a classificar as sociedades. Kie acre­dita que os fenôm enos sociais, sobretudo aqueles de que {rala especi­almente. recaem em um a ordem determ inada e sào, por isso. adequados a um a inlerprelaçào racional. P.ssa idéia e declarada no início do livro, em que encontram os a fam osa definição: ‘‘Leis sào relações necessárias que surgem da natureza das coisas", fcssa defin ição sc aplica nào apenas às leis da natureza, m as tam bém às que governam as sociedades hum anas.

De acordo com A ugusto Com te, M ontesquieu subseqüentem en­te se afasta desse principio , resultando em que nenhum a ordem pode ser percebida na m assa de fatos que acum ulou.* Hssa aeusaçào é in ­fundada. Sem pre que M ontesquieu form ula uma lei. m ostra que ela

S. Cours de phihsophie positive. cd. Schleicher, IV. I S 1

•1S M o n te sq u ieu c R ousscau

depende de cond ições defin idas. Estas são de dois tipos: p rim eiro , <is inerentes na natureza das co isas às quais a lei pertence; p o r exem ­plo. a natureza do com érc io sc ela pertence ao com ércio , a da re li­gião se tem a v er com relig ião: e em segundo lugar, as condições m ais ex tensas e im portan tes inerentes à natureza da sociedade en­volvida. C om o já d issem os, a m aioria das leis nào pode ser as m es­m as em u m a m onarqu ia e em um a repúb lica ou em um E stado des­pótico . E ntre os povos in te rio res as leis sequer ex istem . D ado o lipo de listado , o sistem a dc le is deve necessariam ente seguir-se.

M ontesquieu leva a in d a m ais lor.ge essa seqüência causai. N ão con ten te em m o stra r que a s leis dependem da form a da sociedade, ele busca as causas das q u a is a própria fo rm a da sociedade depende e, en tre essas causas, aquela que represen ta o papei p rincipal, ou seja. o volum e da sociedade.

C onsiderem os, por exem plo , um a sociedade confinada a lim i­tes estreitos. O s assun tos d a com unidade estão em todos os m om en­tos presentes ã v ista e na m en te dc cada c idadão . C am o as condições de existência sào aprox im adam ente as m esm as para todos po is em tal sociedade a sim ples fa lta de espaço tom a a d iversidade im possí­vel o m odo de vida c m a is ou m enos o m esm o para todos. M esm o os que estão no poder são apenas primi inter pares, pois sào investi­dos apenas de um a au to ridade lim itada conform e aos lim ites da so ­ciedade. Sem pre p resen te n o esp irito de todos, o pensam ento de seu pais tem m uita força p o rq u e não é lim itado por q u a lq u er outro. Essa c claram ente um a descrição da república. M as se a sociedade cresce, tudo m uda. Fica m ais d ifíc il para o c idadào individual ter um sen ti­m ento c s bem púb lico , po is ele percebe apenas um a pequena parte dos in teresses do país. A d iferenciação crescen te da sociedade dá origem a posições e ob je tivos d ivergentes. M ais que isso. o poder soberano sc tom a tào g rande que a pessoa que o exerce está m uito acim a das outras. A sociedade não pode deixar de m udar da form a republicana para a m onárquica. M as sc o volum e aum enta ainda m ais e se to rna excessivo , a m onarqu ia abre cam inho ao despo tism o, pois

A té C|t;e p o n to M onstesciuteti a c red itav a q u e OS lenõm er.os...

um vasto im pério não pode sob rev iver a m enos que o príncipe tenha um p oder absoluto que o capacite a m an ter a un idade en tre p o p u la ­ções espalhadas por um a área tào am pla. E tào p róx im a a relação entre a na tu reza de um a sociedade e seu volum e que o p rincip io pe­cu liar a cada tipo deixa de ag ir se a popu lação aum enta ou d im inui

em excesso.O bviam ente , m uitas ob jeçòes aparecem nesse m om ento, M u i­

tas nações cu ja população é lim itada ou m esm o bastan te pequena sào governadas p o r déspotas. O utras, com o a nação ju d a ica , cu ja popu lação era bem m aio r que as das c id ad es g regas e ita lianas, tinham um a certa form a dc organ ização dem ocrática. E se o lharm os em detalhe, m uitas vezes descobrim os algo bastan te vago e incerto na própria explicação. A pesar d isso . M ontesquieu dem onstra grande percepção ao atribuir essa influência ao núm ero de unidades sociais. Esse fator é realm ente da m aior im portância para determ inar a natureza das sociedades e. em nossa opinião, está na origem das maiores diferen­ças entre cias. A religião, a ética, o direito, a família, etc. não podem ser os m esm os em um a soeiedade grande e em um a pequena. Há um ponto, porém , que M ontesquieu deixou de notar, ou seja. que o essencial não c o núm ero de pessoas sujeitas à m esm a autoridade, mas o núm ero ligado por algum tipo de relacionam ento. Pois por m aior que seia o núm ero de pessoas que obedece a um m esm o líder, se a distância ente grupos for tào grande que só possa haver pouca ou nenhum a relação entre eles. o tam anho da população nào tem qualquer efeito.

M ontesquieu m enciona m uitos ou tros fatores que afetam a n a ­tureza das sociedades, e foi neles que os com entaristas concentraram sua atenção. P or exem plo , há a carac terística geográfica do te rritó ­rio. P lan ícies am plas e in in terruptas favorecem o estabelecim ento do E stado despótico porque grandes im périos podem se espalhar m ais facilm ente em um terreno desse tipo. R egiões m on tanhosas e ilhas, p o r outro lado, são cidadelas de liberdade porque m ontanhas e m ar sào obstácu los à au to ridade de um líder. N ão apenas a lopografia. m as tam bém a natureza do so lo deve ser levada cm consideração.

M o n te s q u ie u e R ousücüu

Um solo estéril c p ro p ic io à indústria e ã frugalidade, o que abre cam inho à rcpúb lica . U m so lo fértil, po r ou iro lado. estim ula o inte­resse p róprio c o am or pela riqueza c conduz à m onarquia . Um solo excessivam ente fértil convém às form as inferiores de dem ocracia, po is um a vez que é n a tu ra lm en te p rodu tivo nào precisa ser cu ltiva­do, nem . conseqüen tem ente , d iv id ido entre os m em bros do grupo. Por fim , um clim a quente deb ilita a m ente e o corpo e força os ho ­m ens ã servidão.

Esses fa tores parc ia lm ente determ inam nào apenas a natureza rie um a sociedade e sua estru tu ra legal ern geral, m as m esm o a subs­tância de leis cm particu lar. A ssim , um c lim a ex trem am ente quente dá origem à escrav idão c iv il, à po ligam ia e a de term inados costum es d o m é s tic o s . A in d ife re n ç a de m en te e c o rp o re su lta n te traz a im utabilidade das leis. das práticas re lig iosas e dos costum es. Isso explica p o r que o com érc io é tào d iferen te no O rien te e na Europa.

E m bora M ontesquieu nào ponha n topografia e o clim a 110 m es­m o grau que o tam anho d a população e em bora reconheça que sào dom inantes apenas en tre povos selvagens, deve-se adm itir que sua influência nào foi. em parte algum a, tào grande quanto ele pensava. A virtude dom éstica, p o lítica e privada é encon trada em países to ta l­m ente d iferen tes em c lim a e fertilidade do solo . Todavia, m esm o esse exagero m ostra 0 quan to M ontesquieu achava que os fenôm e­nos sociais estão sujeitos a leis defin idas.

() que foi dito até ago ra pode ser resum ido da seguin te form a: o tipo de sociedade, as leis e institu ições de um país podem se r deduzi­dos a partir do tam anho dc su a população, de sua topografia, clim a e solo.

M as d iscu tim os apenas um a p an e da dou trina apresen tada por M ontesqu ieu rio Espirito das Leis. Vamos passar a um a outra, que parece con trad izer a p rim eira . A con trad ição deve ser exam inada m uito de perto , po is nos perm itirá ob ter um a com preensão m elhor nào apenas das idéias de n osso autor, m as tam bém das d ificu ldades encontradas pelo desenvo lv im ento da C iência Social, nào som ente no tem po de M ontesquieu , m as tam bém no nosso.

A te q u e p o n to M o n s tc sq u ie u a c r e d i ta v a q u e 05 f e n ô m e n o s ,.

m ________________________________________________________

C om o v im os, iogo que nos certificam os de que há um a ordem determ inada na existência social, necessariam ente reduzim os o pa­pe! do legislador. Pois se as in stitu ições sociais vêm da natu reza das coisas, nào dependem da vontade de qualquer c idadão ou cidadãos. Na obra de M ontesquieu , porém , o leg islador aparece com o o indis­pensável artesão das k is . Em d iversas passagens, ele fala das leis dc Rom a. F.spaita e A tenas com o se e las tivessem sido criadas com to ­das as peças po r R ôm ulo, N um a, Sòlon e Licurgo. Q uando, em outra obra. e le conta o inicio da história do E stado rom ano, assum e com o princíp io que as institu ições das novas nações são criadas pelos lide­res e que apenas depo is os lideres siio form ados pelas institu ições. P o r essa razão, ele d istingue c laram ente entre leis e costum es: os costum es surgem espon taneam ente a p a rtir da ex istência social; as leis são estabelecidas peia vontade espon tânea do legislador. Esse é o sen tido da seguin te a firm ação no prim eiro cap ítu lo do livro: ‘'F or­m ado p ara v iver em sociedade, e le poderia esquecer seus deveres sociais; e p o r isso os leg isladores o confinam a seus deveres’'. O bv i­am ente, M ontesquieu nào acreditava que as leis pudessem ser feitas arb itrariam ente: afirm ava que os costum es e com a re lig ião estavam acim a do poder do leg islador e que m esm o as leis re lac ionadas a ou tros assun tos tinham de ser com patíveis com os costum es e com a religião. M as o verdadeiro estabelecim ento dessas leis está nas m üos do legislador. 1 lá até m esm o sociedades em que nào apenas as leis, com o tam bém a relig ião e os costum es podem , ate cerio pon to , ser m oldadas pelo príncipe. Em bora isso seja raro. a afirm ação m ostra a im portância dada por M ontesquieu à au toridade politica.

Isso p o d e ser fac ilm en te en ten d id o se perg u n tarm o s o que M ontesquieu queria d izer ao declarar que as leis hum anas surgem da natureza das coisas - porque isso pode ser interpretado de duas m anei­ras. Pode querer dizer que as leis se seguem à natureza das coisas ou seja, das sociedades assim com o um efeito se segue à causa

M o n tcsm iieu e K ousscau

que o produz; ou ainda, p o d e querer d izer que são sim plesm ente ins­trum entos que a natureza da sociedade ex ige p ara se realizar, ou seja. para a tin g ir seu fim . E m outras pa lavras, será que teríam os de en tender que o estado da sociedade é a causa efic ien te das leis ou apenas sua causa final? M ontesquieu parece nem m esm o suspeitar que p o ssa ex istir o p r im e iro sig n ificad o . E le nào d iz que as leis de um a dem ocracia resu ltam necessa riam en te do n ú m ero lim itado dc seu s c id ad ão s assim com o o c a lo r re su lta necessa riam en te do fogo, m as an tes que apenas elas possib ilitam a frugalidade e a igualdade gerais que estào na natureza desse tipo de sociedade. Disso tam bém nào advém que as leis podem se r feitas arb itrariam ente J á que, sob determ inadas condições sociais, apenas um corpo dc leis é ap rop ria ­do e n en h u m o u tro p o d e ria se r im p o sto a u m a so c ied ad e sem eorroro.pè-la. M as o que é adequado a um a sociedade em particu lar pode ser determ inado ap en as p o r hom ens que tenham um a visào persp icaz de sua natureza e sejam capazes de ind icar po r que o b je ti­vo ela deve se em penhar e com o. Essa é a tarefa dos legisladores. A ssim , nào é de su rp reen d er que M ontesquieu lhes a tribua um a cer­ta p rim azia . Se supuserm os, porém , que as leis sào p roduzidas por causas efic ien tes das quais os hom ens m uitas vezes podem nào es­tar conscien tes, a função d o leg islador é reduzida. F.la consistirá, então, s im plesm ente de exp ressar com clareza superio r aquilo que é fracam ente percebido pe la m ente dos outros. M as o leg islador nada produz - ou quase nada - de novo. M esm o que e le nào existisse, seria preciso haver leis, m esm o que fossem m enos c laram en te defi­nidas. Todavia, som ente ele pode red ig i-las. C erto. M as ele é apenas o instrum ento de sua prom ulgação» nào sua causa geradora.

F.ste nào é lugar ce rto para d iscu tir se há institu ições sociais que dependam in te iram en te de causas finais. De qualquer m odo, podem os te r a certeza dc que existem m uito poucas. A vida social inclui tan tos fenôm enos que nào há m ente capaz de considerá-los todos. P o r isso. não existe um m odo fácil de p rever o que seria útil c o que seria prejudicial. M esm o sc esse cálcu lo não estivesse, na m aior

A~c g » c p o n to .V o r .s lc sq u ie u a c re d i ta v a qiu~ os fen ô m en o s...

parte, alem dos p o d ere i da m ente hum ana, d c seria tão obscuro que pouco influenciaria as ações deliberadas dos hom ens. O s fenôm enos socia is não são, v ia de regra, p rodu to dc ação calcu lada. A s leis não sào d ispositivos pensados pelo leg islador porque parecem esta r em harm onia com a natu reza da sociedade. E las surgem com m ais fre­qüência de causas que as engendram p o r um Tipo de necessidade fisica. Em conseqüência da situação particu la r da sociedade, a vida com unal deve necessariam ente assum ir um a certa form a definida. E ssa form a e expressa pelas leis, que assim acabam p o r ter a m esm a inevitab ilidade das causas efic ien tes. N egá-lo seria adm itir que a m aioria dos fenôm enos sociais, particu larm ente os m ais im portan­tes, nào têm qualquer causa. As leis adequadas à sociedade rom ana nunca poderiam te r sido deduzidas a partir cio pequeno tam anho da R om a prim itiva. A igualdade e a frugalidade, que de acordo com M ontesqu ieu eram im postas peias leis. nào foram criadas por essas leis. E las resu ltaram de um m odo de v ida e foram sim plesm ente con ­so lidadas pelas leis.

M ontesquieu sem d ú v ida teria visto isso caso reconhecesse que as leis não d iferem , em natureza, dos costum es, m as, p e lo contrário , derivam d e le s .S à o sim plesm ente costum es m ais n itidam ente d e fi­nidos. C om o iodos sabem , os costum es nào sào criados deliberada­m ente. m as engendrados por causas que produzem seus efeitos quase sem conhecim ento dos hom ens. O m esm o se aplica à origem da m aior parte das leis. Isso nào sign ifica que e la s sejam inúteis. Bem pelo contrário . E las não poderiam con tin u ar fo n es se nào cum prissem certas funções sociais ú teis. M as nào foi essa utilidade que as fez v ir a ser. L onge de deliberadam ente lu tar p o r ela» os hom ens em geral

9. Na verdade, ele exige que o legislador se conforme aos costumes e ao gênio peculiar de um determinado povo (Livro XIX. caps. ?.-<>) c n; ostra que as lc:s tem uma certa influência na formação dos costumes {ib id . ca p. 27). 'lodavia. cie dis- tinyue os dois a ponio de considerar o que foi estabelecido por lei como imuiãve'.. cxceiò pela lei. assim como apenas o costume pode mudar o que porience ao cos­tume {ibin . cap, 14). Por isso é difícil entender como essas coisas se misturam no caso de certos povos (ibid.. cap. 16 c ff.).

5'í M o n te sq u ieu ^ R uusseau

nào têm m uita consciência d e sua ex istência . S entim os que as regras do d ire ito e do costum e sào boas. m as $e rios pergun tassem para que servem , a d iscussão seria in fin ita . E m bora possam os com preender com o um a de term inada lei é útil à so c iedade , isso nào exp lica sua origem . Por isso. quem q u e r que lim ite sua busca às causas finais dos fenôm enos sociais perde de visla suas origens e é infiel à C iência. É o que acon teceria à S ocio log ia se segu íssem os o m étodo de M ontes­quieu .',0

[ m i ______________________________________________________

A s regras do D ireito não nascem necessariam en te da natureza de um a sociedade, jã que perm anecem escond idas nas profundezas da realidade a m enos que u m leg islado r as d istinga e as traga à lu /. M ais que isso. de acordo co m M ontesquieu , e las podem até m esm o assum ir um a form a d ife ren te daquela resu ltan te das causas que as p roduz. Ele atribui à$ soc iedades hum anas um a espécie de hab ilida­de para desv iar-se de sua pr ópria natureza. Para ele. os hom ens nào observam as leis naturais ineren tes ã sua constitu ição com a m esm a necessidade das coisas inan im adas, e podem em certas ocasiões sa ­cud ir o jugo . M ontesqu ieu in troduz assim nos fenôm enos sociais um elem ento de incerteza que parece , ao m enos à prim eira vista, irre- eonciliável com a existência dc um a determ inada ordem , já que. onde essa incerteza prevalecesse, a rclaçào entre causa e efeito deixaria de se r constan te e im utável. E essencial que definam os essa incerteza, po is há razoes para tem er que ela possa d estru ir os próprios funda­m entos da C iência Social.

P ode-se supo r que M ontesquieu apresen tou esse princip io p o r­que o ju lg av a indispensável ao conceito de liberdade hum ana. M as se essa fosse a verdadeira razão , a incerteza nào adm itiria exccçào e

10. A qui se pode d ize r que D urkheim <le falo parccc dem asiado sev ero com M on­tesquieu. Ver o ensa io <.1? M. D avy. [Nota do tradu tor para o inglês]

A le <jutr p o n lo M o n stcsq u icu a c red itav a CjUc os fenôm enos... 35

sc estenderia a toda a vida. N ão esperaríam os que nosso autor, que diz tão defin itivam ente que os hom ens e as sociedades sào governa­dos por leis que ele se esforçou p o r descobrir, se con trad issesse d e s­sa m aneira. M ais que isso. parece bastan te im provável que seu ponto de v ista se baseie em qualquer m etafísica . N ada. em todo seu trab a ­lho. sugere a m ais leve preocupação com problem as m etafísicos. Fim nenhum a parte surge a questão do liv re-arbítrio . C onseqüentem ente, não h á razão para su p o r que um a h ipótese filosó fica devesse assum ir tam anha im portância para ele. E há um trecho no prim eiro cap ítu lo do livro que vai d istin tam ente contra essa in terpretação. A li, M on­tesquieu afirm a que esse elem ento de incerteza nào é p ecu lia r ao hom em . E le tam bém o encontra em anim ais e m esm o as p lan tas nào parecem in teiram ente desprovidas dele.

F.le nos conta que ele p róprio o concebera apenas com o um m eio de explicar a o rigem do erro. Sc nunca com etêssem os erros, deveríam os obedecer ãs leis de nossa natu reza sob q u a isq u er c ir­cunstâncias. Se desejam os d esco b rir o que o levou a essa opinião , devem os antes de term inar o que quer d ize r com a "natu reza das co i­sas". A o usar esse term o, cie nào se refere a todas as p ropriedades de um a coisa, m as apenas àqueias que incluem as outras e determ inam a espécie à qual a coisa pertence: em sum a. sua essência. A lém disso, ele acredita haver um laço lógico entre a natureza de um a coisa e suas form as norm ais, estando as últim as im plíc itas na prim eira . A s­

sim . se é verdade que hom ens e sociedades nunca se desv iam de sua natureza, eles serào sem pre e em toda parte o que devem ser. M as tan to a vida individual quanto a vida social sào, sob m uitos aspectos, im perfeitas. H á leis in justas e in stitu ições defec tivas que as so c ied a­des receberam dos erros dos legisladores. N a opiniào de M ontesquieu, isso tudo parece ind icar que o hom em tem um a certa facu ldade de se desv iar das leis da natureza. Isso nào ju s tifica fa lar de fatos que nào têm causas. M as essas causas sào fortu itas e. p o r assim dizer, ''a c i­d en ta is '’. For isso nào podem ser reduzidas a leis: elas corrom pem a natu reza das coisas, que as leis. ao contrário , expressam .

5ê M o n te sq u ieu e R ousscau

() principio do qual ioda essa linha dc argum entação depende é cenam enie falso. N a m edida ein que esses erros se relacionam á ex is­tência social, são sim plesm ente doenças do organism o social. M as a doença, assim com o a saúde, e inerente ã natureza dos seres vivos. Os dois estados nào são contrários. Pertencem ao m esm o tipo. Podem , por isso. ser com parados e a interpretação de am bos se beneficia dessa com paração. M as essa falsa opinião se encaixa tào bem com a aparên­cia ex terna das co isas que persistiu por m uito tem po, m esm o em Psicologia. C om o parecia ev idente que os seres vivos eram natu ra l­m ente saudáveis, conclu iu -se que a doença e um a v io lação do estado da natureza porque é um obstácu lo à saiklc. A ssim . A ristó te les ac re ­d itava que a doença, os m o n stro s e todas as form as aberrantes da vida eram o resultado de algum a incerteza obscura. N ão seria possível livrar a C iência Social desse erro de um a vez só. particularm ente por­que a doença nào ocupa, em lugar a lgum , um lugar tão im portante quanto nas sociedades hum anas e porque o estado norm al nào é tào indeterm inado em qualquer outro lugar, nem tào difícil de definir.

A ssim se explicam d iversos trechos em que M ontesquieu pa­rece a tribu ir ao leg islador o estranho poder de fazer vio lência ã p ró ­pria natu reza. Por exem plo , em p aíses nos quais o c a lo r excessivo inclina os habitantes à indolência , eie recom enda que o leg islador a reprim a de iodas as m an eiras possíveis. M as em bora esse vício nas­ça de causas tísicas. M on tesqu ieu nào acha que se opo r a ele seria v io lar as leis da natureza, m as an tes que isso rep resen taria um esfor­ço para trazer os hom ens d e volta a sua natu reza norm al, que é in­com patível corri essa indolência . Pela m esm a razao. e le diz que em sociedades de pessoas soberbas e destem idas devem -se em pregar severas pun ições para d im in u ir esse ardor. Se o leg islado r tem todo esse poder em todos esses casos, nào é porque as sociedades care­çam de leis ou de natureza d efin ida , podendo, portanto, ser organiza­das da m aneira que ele dese ja , m as an tes porque sua açào será no sen tido de m anter a natureza, norm al do hom em e das sociedades e se lim itará apenas a auxiliá-la.

At c. qiic p o n to M onstosquicr. a cred itav a q u e os feiK>:;i<rno*.._______£~

A ssim , o ponlo dc visia dc M onlesquieu nào im plica um a ver­dadeira contradição. E!e nào c!z que um a determ inada ordem existe ou falie cm rclaçào aos m esm os falos sociais. Sem pre que as co isas são norm ais, elas seguem leis necessárias, e essa necessidade cessa apenas quando há um desv io do cSlado norm al. C onseqüentem ente, o elem ento d e inceneza não dcsirói a C iência Social, m as apenas lim ita seu alcance. A C iência Social irata quase que exclusivam ente das form as norm ais de vida em sociedade: na opinião de M ontesquieu. as doenças csiào p ra ticam ente além do a lcance da ciência , porque não estão su jeitas às le is da natureza.

M esm o sua concepção de lei natural, que é fundam ental a to ­das as suas idéias, perm anece m uito obscura e im precisa. Leis são as relações necessárias en tre as coisas, m as se podem ser v io ladas às vezes, a necessidade nào é m ais real. m as puram ente lógica. Nesse caso. elas expressarão o que está im plicado na defin ição de um a so­ciedade. m as ta lvez ;i defin ição nào su rja rac ionalm ente da natureza da sociedade em questão . Elas nos d irão então o que é racional, em vez do que de falo existe. E realm ente, em bora M ontesquieu. longe de achar que os hom ens sem pre, ou m esm o freqüentem ente, se d es­viam do cam inho reto. m ostre um tipo de respeito espontâneo pelo que foi confirm ado pela experiência geral prolongada, ele reconhece m esm o assim que to d o s os indivíduos de um a espécie idêntica reve­lam certas anom alias. N ào consegue ver que. o que quer que esteja un iform em ente presen te em um a espécie inteira, não pode de ix a r dc co rresp o n d era necessidades defin idas. Por exem plo: em bora a insti­tu ição da escravidão ex istisse em iodas as c idades gregas e italianas, ele diz ser repugnante à natureza das repúblicas. E m bora apenas os hom ens gozem do d ireito de repud iar sua esposa em sociedades nas quais as m ulheres vivem em um regim e dc escravidão dom éstica , ele insiste cm que nessas m esm as sociedades o contrário deveria ser verdade. C hega até m esm o a d izer que apenas um tipo de sociedade é inerentem ente •*’ tivo e co rrup to , o despotism o, em bora reco ­nheça que é necessário cm certos lugares. Sob essas circunstâncias, a

M o n te sq u ieu e R ousseau

ordem que a ciência deve b u scar seria d iferen te de qualquer coisa que já existiu. C onseqüentem ente, as leis que a expressam podem ter apenas um a form a ideal, p o is dem onstram o que deveria ser. e nào o que é. F.ssas leis não sào. com o as outras leis da natu reza , inerentes aos fenôm enos, ou an tes não são o s próprios fenôm enos considera­dos sob um aspecto particu la r; estão acim a dos fenôm enos, em bora nem sem pre sua au to ridade seja respeitada.

N esse aspecto. M ontesqu ieu retorna, até certo ponto - m as ape­

nas até certo pon to à an tiga concepção de C iência Social. A lgum as vezes* na verdade, ele nào fica longe de con fund ir leis naturais com regras que prescrevem a condu ta apropriada. M as está longe de se ­guir as pegadas dos an lig o s filósofos que ignoram a natu reza com o é e m ontam u m a outra natu reza própria. M esm o sem form ular um prin­cípio exato a esse respeito , e le com preendeu instintivam ente que uma co isa raram ente pode ser un iversal a m enos que seja saudável e ra­cional ao m esm o tem po. Foi por isso que ten tou , com o vim os, des­crever e exp licar os tipos so c ia is segundo um a base h istórica . Ele nào se aventurou a co rrig i-lo s até descobrir algo que lhe parecesse inconsistente com sua essência da form a com o a concebera a partir da observação da rea lidade . Em bora a concepção que M ontesquieu fazia da lei natural não se estenda ã to talidade da existência social, ela se ap lica à m aio r parte de la . Sc seu trabalho ainda guarda algo da an tiga confusão en tre A rte e C iência, algo vago e incerto , esse defei­to só se m anifesta ocasionalm ente.

O método de Montesquieu

m _______________________________________ _____________

E nquanto a C iência Social era apenas u m a arte , os que escre­viam a respeito de questões socia is em pregavam p rincipalm en te o m étodo dedutivo. A partir da noção geral de hom em , eles derivavam a form a de soc iedade con fo rm e a natu reza hum ana e os p receitos a serem observados na vida social. É prec iso falar um pouco sobre as defic iências desse m élodo . M esm o na arte. a dedução só fornece hi­póteses sim ples. Se um a regra nào tiver sido testada pela experiência, nào é -possível es tabelecer sua u tilidade apenas pe la razào. P articu­larm ente na c iência - quando d istin ta da arte o papel da dedução sò pode ser secundário , ao m enos quando tra tam os dc realidades e nào de noções abstra tas com o na M atem ática. O bviam ente , a dedução nos traz idéias que nos guiam pelas obscuridades da experiência, m as, a m enos que essas idéias sejam confirm adas pela observação, não podem os dizer se. de fato , expressam a realidade. O único m odo de descobrir as leis da natureza é estudar a própria natureza. M ais que isso, nào basta observar a natureza. Hla deve ser questionada, perseguida, subm etida a teste de mil e um a m aneiras. C om o a C iên ­cia Social trata dc fenôm enos, e la só pode realizar seus ob je tivos com o m étodo experim ental.

N ào é fácil ad ap tar esse m étodo ã C iência Social, pois é im pos­sível fazer experiências com sociedades. T odavia, há um m odo de

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co M oiuescju ieu c R ousseav

con tornar essa d ificu ldade. Para descobrir as leis da natureza, basta fazer um núm ero suficiente de com parações entre as diversas form as de um a co isa dada. Desse m odo , as re lações constan tes e im utáveis expressas na lei sào d is tin tas daquelas que são apenas efêm eras e acidentais. A essência da experim en tação e sim plesm ente varia r li­v rem en te os fenôm enos de form a q u e o fe reçam um cam po am plo e rico para co m p aração . M as não há o b jeção a co m p arar fenôm enos socia is da m esm a c iasse d a form a com o aparecem ern d iferen tes soc iedades e n o ta r aq u e les que sem pre co n co rd am , os que d esap a ­recem sim u ltan eam en te e o s que variam no m esm o tem po e nas m esm as proporções. E m bora nào se ja possive! fazer essas com para­ções repetidam ente, e las podem , m esm o assim , a ten d er à necessida­de dos experim en tos na C iência Social.

E m bora M on tesqu ieu nào tenha d iscu tido o assun to , reconhe­ceu instin tivam ente a n ecessidade desse m étodo. Seu propósito ao reun ir um grande corpo dc dados a partir da h is tó ria de d iversas na­ções era com pará-los e d e riv a r leis deles. De fato. iodo seu trabalho é c laram en te um a com paração das leis observadas pelo s m ais d iver­sos povos e ê perfeitam ente correto afirm ar que. no Espirito das Leis. M ontesquieu institu iu um novo cam po dc estudo , a que agora cha­m am os Direito Comparado.

E m bora a dedução ten h a dado lugar à experiência em sua obra.

ela a inda represen ta um papel m aior do que o perm itido pela Cien cia. Em seu p refác io , in fo rm a o leitor dc que pre tende tratar da Cièri • cia Social de m aneira q u ase m atem ática, que ele apresen ta princíp i­os dos quais as leis particu lares das sociedades derivam -se de m anei­ra lógica. O bviam ente, ele percebia que esses princíp ios deveriam ser tirados da observação da realidade, m as acred itava que toda a c iência estava im plícita , p o r assim dizer, em tal observação , dc for­ma que um a vez derivados os p rincíp ios, o ed ifício poderia se r com ­pletado p o r pura dedução . N ào hã dúv ida dc que tentou ag ir segundo essas linhas.

O m é to d o dc M o n te s q u ie u G1

Exam inem os antes de tudo seu m odo de usar o m étodo indutivo. Ele nào com eça reunindo todos os fatos re levantes ao assunto , arran- jando-os para que possam ser exam inados e avaliados o b je tivam en­te. Na m aior parte do tem po , cie tenta, p o r pura dedução , p ro v ar a idéia que j á form ou. M ostra que ela está im plícita na natu reza o u , se preferir, na essência do hom em , sociedade, com ercio , re lig ião , cm sum a. na defin ição das co isas em questão. A penas en tão eie ap resen­ta os fatos que. em sua opin ião , confirm am .;ua h ip ó tese .11 M as se acred itam os que as relações entre as coisas só podem ser dem onstra­das por experim entos, nào podem os subordinar o experim ento à dedu­ção. N ão podem os dar prim azia a argum entos em que nào confiam os e que consideram os rela tivam ente inúteis para fins de dem onstração . P rim eiro , observam os os fenôm enos e apenas depois in terpretam os dedutivam ente aquilo que observam os.

Sc exam inarm os as próp rias dem onstrações de M ontesqu ieu , é fácil perceber que sào essencialm en te dedutivas. E verdade que ele norm alm ente confirm a suas co n c lu sõ es co m observações, m as toda essa p a n e de su a a rgum en tação é m uito fraca. Os fatos que em p res­ta da H istó ria sào ap resen tad o s dc form a b rev e e sum ária e não se esfo rça p ara es tab e lecer sua v e rac id ad e , m esm o q u ando sào con ­tro v e rs o s .: Ele os enum era a esm o. Se a firm a que nào ex iste relação causai entre dois fatos, nào se incom oda cm m ostrar que em todos ou. ao m enos. na m aioria dos casos, eles aparecem sim ultaneam ente,

11. Q ualquer núm ero de exem plos poderia sei c itad o ao longo do :ial>a!lio. Assim , depois d e de fin ir os irôs tipos dc sociedade, e ie deriva seus p rincíp ios das d e fin i­ções. - is so " , cscrcvc c>c, "m e capacita a descobrir seus p rincíp ios <juc. portento, derivam -se naturalm ente” (L ivro III. cap. ?.i. A p a n ir desces princíp ios ele infere, entiio. as leis civ is, penais c icis sobre a posição d;i m ulher correspondentes- Cf. os títulos dos L ivros VI c V II (C onscqficncias dos p rincíp ios dc d iferen tes governos en'. relação ã sim plic idade das icis; civii e Criminal, a form a de juIgameutOS e a ap licação de punições - C onseqüências dos d iferentes p rincíp ios dos três gover­nos cm re lação às leis su n tuãnas . ao luxo e a cond ição dás m ulheres).12 .0 m esm o vale para o que eie diz a respeito dc frugalidade c igualdade en tre os antigos, as razões pelas quais os p rincíp ios das sociedades são corrom pidos e a condição das m ulheres (L ivro XV I). Todas essas a firm ações envolvem inum erá­v e is d ificu ldades que nào podem ser re so lv idas im ediatam ente.

62 M ontesquieu e Rousseau

desaparecem ao m esm o tem po ou variam da m esm a m aneira . C on­tenta-se ern alegar alguns exem plos que correspondem grosseiram ente à lei suposta . Por vezes, ch eg a a a trib u ir a todo um tipo um a p rop ri­edade que observou em apenas urna sociedade. T om e-se. por ex em ­p lo . a separação dos p o deres. E m bora se ja encontrada som ente na Inglaterra, ele diz que é a característica essencial da m onarquia, acres­cen tando a inda que a liberdade é um a conseqüência dessa separa­çào. em bora nào saiba se a liberdade de falo ex iste entre os próprios

ingleses. E m sum a. em v ez de usar a dedução para in terp retar o que foi p rovado pela experiência , ele usa a experiência para ilustrar as conclusões da dedução. U m a vez efe tuada a dedução , ele supõe que a dem onstração está com pleta .

Vam os exam inar o assun to m ais a fundo. C om o v im os, M on- tesquieu acred itava que houvesse certas in stitu ições que. em bora ex istissem ou tivessem ex istido em d iversas sociedades, eram . m es­m o assim , inadequadas a essas m esm as sociedades. M as essa afir­m ação só pode se basear em um a determ inada consideração , ou seja. q ue para e le aquelas institu ições nào poderiam ter nascido dos p rin ­cípios que ele já estabelecera . M ostra que a institu ição da escravidão entrava em conflito com a defin ição de repúb lica . D a m esm a m anei­ra. detesta o governo despó tico po rque está em conflito lógico com a essência do hom em - e m esm o da sociedade - da form a com o a

concebe. E m certo s caso s, portan to , a dedução p revalece sobre a observação e a experiência.

F.mbora a indução tenha surgido pela p rim eira vez na C iência Social com M ontesquieu. a inda nào estava c laram en te separada do m étodo oposto e era con tam inada pela m istura. M esm o que M ontes­quieu tenha aberto um a nova trilha, ele próprio era incapaz de aban­donar os cam inhos j á exp lo rados. Essa am bigü idade m etodológica é um a conseqüência da am bigü idade dou trinai a que nos referim os. Se as form as norm ais de sociedade estão im plícitas na natureza da so­ciedade. podem ser deduzidas a p a rtir de u m a defin ição da natureza da sociedade. A essas necessidades lógicas M ontesquieu dá o nom e

O :iiélodo de M ontesquieu

cle leis. E m vista dessa afin idade en tre fenôm enos e a razão hum ana, a razão basta para a in terpretação dos fenôm enos. Pode parecer sur­p reenden te que essa natureza in tim a dos fenôm enos deva ser tão c la­ram ente aparente a ponto de poder ser reconhecida e defin ida nos prim eiros estág ios de um a ciência, pois norm alm ente se esperaria essa percepção apenas em um a ciência que tivesse ating ido a m atu ri­dade. M as essa conclusão é bastan te consisten te com os princíp ios de M ontesquieu . A ssim com o a conexão entre os fenôm enos sociais e a essência da sociedade é racional, assim tam bém essa essência, que é a fonte de toda a .dedução, c tam bém dc natureza racional: ou seja, consiste de urna sim ples noção que a razão pode p erceber em um a olhadela . M ontesquieu não percebia p lenam ente até que ponto, com o diz B acon.* a sutileza das co isas excede a su tileza da m ente hum ana. Isso explica sua enorm e con fiança na razão e na dedução. N ão estam os d izendo que os fenôm enos sociais, com o tais, sào iló­gicos. M as em bora possam te r um a certa lóg ica fundam ental, não é a lógica à qual se conform a nosso raciocín io dedutivo. Ela nào tem a mesma sim plicidade. Talvez observe outras leis. Para aprender essa lógica, devem os consultar as próprias coisas.

A confusão de que falam os tem ainda outra causa. V im os que as leis da sociedade podem ser v io ladas. Por isso, não podem ser estabelecidas apenas por m eio da observação ou m esm o da com para­ção dc fenôm enos. A s realidades nào sào necessariam ente racionais, m as as leis sào racionais sob todos os aspectos. Por isso. m esm o se algum a coisa for provada pela H istória, não podem os te r certeza ab ­soluta de que se ja verdade. Todas as sociedades do m esm o tipo têm

certos defeitos; portanto , é im possível descrever a form a norm al des­sas sociedades baseado naquilo que encontram os nelas. Sc nào p o ­dem os ob ter um a visão fiel dos fenôm enos através da experiência , a experiência apenas nào poderá nos ensinar o que resulta da natureza

*N.E.: Sugerim os n leitura cle FrancLs Bacon Da Proficiência e o Avanço dos Conhecimentos Divino e Humano, d e F ian cis Bacon. M adias Hditora.

6-1 M o n te sq u ieu e K ousseau

dos fenôm enos. Só resia u m a saída: devem os xeniar ating ir a própria essência , dcfin i-la c. a p a r tir da defin ição , deduzir o que ela im plica. D isso não devem os co n c lu ir que a observação é inútil, m as an tes que ela precisa ser m antida sob suspeita a té ser con firm ada pela razão e. se por acaso nào puder se r confirm ada, deve ser rejeitada. Vemos o quanto é indispensável, n a C iência Social, descobrir nos p róprios dados algum a ind icação defin ida que nos capacite a d istingu ir entre d oença e saúde. Se nào h o u v er esse sinal, som os levados a nos refu ­giar na dedução e a nos a fasta r dos fa tos concretos.

m _______________________________________________________

Q uer proceda p o r dedução ou por indução, M ontesquieu obser­va um a regra m etodológica que a ciência m odem a nào deve ignorar.

O s fenôm enos so c ia is são norm alm ente c lassificados de a c o r­do com considerações q u e . à p rim eira v ista , p odem parecer to tal­m ente nào relacionadas. R elig ião , d ireito , m oralidade, com ércio e adm inistração parecem , d e fato. te r d ife ren tes naturezas. Isso exp li­ca por que cada classe d e fenôm enos foi poi m uito tem po tratada sep arad am en te e a in d a é com o se pud esse se r exam inada e explicada por si m esm a, sem referência às ou tras, assim com o os físicos não levam a cor err. consideração ao tra ta r do peso. N ão se nega que um a classe de fenôm enos se re lacione às outras, m as as

re lações sào co n sid erad as sim plesm ente acidentais, de form a que. com o a natureza intim a d o s fenôm enos não pode ser determ inada, parece seguro ignorar as re lações entre eles. Por exem plo , ?. m aior ia dos m oralistas trata da m oralidade e de regras de conduta com o se e la s ex istissem por si m esm as c nào se preocupam em considerar o cará te r econôm ico das sociedades em questão . Os que tratam do as­

sum o da riqueza a firm am , de m aneira sem elhante , que sua ciência, ou seja, a econom ia p o lítica , é abso lu tam ente au tônom a e pode pros­seguir sem a m enor a tenção ao sistem a de regras a que cham am os érica. Seria possível c ita r m uitos outros exem plos.

O m éto d o d e M o n te sq uieu

M ontesquieu . porém , v ia m uito claram ente que iodos esses e le ­m entos form am um todo e que, se tom ados separadam ente, sem re­ferência aos ou tros, nào podem ser com preendidos. Ele não separa o direito da m oralidade, do com ércio , da religião, etc. e. acim a de tudo, não co n sid era que eie se ja d is tin to da fo rm a de so c iedade , que a fe ­ta todos os ou tros fenôm enos socia is . P o r m ais que se jam d ife ren ­tes, todos esses fenôm enos expressam a vida de um a dada sociedade. São os e lem entos ou órgãos do organism o social. A m enos que ten te ­m os com preender com o se harm onizam e in teragem , é im possível conhecer suas funções. Podem os ate m esm o não d istingu ir suas na­turezas. pois c ies parecerão realidades d istin tas, cada um com sua existência independente, em bora sejam na verdade partes dc um todo. Essa atitude é responsável p o r certos erro s que a inda sào com uns entre c ien tistas sociais, isso exp lica por que m uitos econom istas p o ­líticos consideraram o in teresse pessoal com o o único p rincíp io da sociedade e por que negaram o direito do leg islador dc in terferir em ativ idades re lac ionadas ao com érc io e à indústria. Inversam ente, em bora pela m esm a razão , os m oralistas em geral consideravam os direitos de p ropriedade fixos e im utáveis, em bora, na verdade, de­pendam de fatores econôm icos extrem am ente variados e instáveis.

E sse e rro tinha de ser d issipado antes que a C iência Social p u ­desse se desenvolver e m esm o passar a existir. A s diversas disciplinas que tratavam separadam ente de diferentes categorias de fenôm enos sociais de fato prepararam o cam inho para a C iência Social: foi a partir deias que ela pôde se desenvolver. M as a C iência Social, no sentido estrito , passou a ex istir apenas quando sc percebeu clara­m ente que os ram os antes m encionados cslavarn ligados pela estrita necessidade e eram partes de um todo. M as essa concepção nào p o ­deria surg ir até que se percebesse que todos os acontecim entos na sociedade estào re lacionados. A o apon tar a im errelaçào dos fenôm e­nos sociais. M ontesquieu pressen tiu ;í unidade de nossa ciência em bora sua visào do assunto ainda fosse vaga. Em nenhum ponto ele diz que os p rob lem as de que trata poderiam ser o assunto dc um a

M onte$C|u icu c Rou.^c.m

ciência defin ida que inc lu ísse to d o s os fenôm enos sociais e tivesse um m étodo e um nom e próprios. M esm o assim , se in suspeitar dessa im plicação para seus e sfo rços, ele deu ã posteridade urna prim eira am ostra dessa ciência . E m bora nào tenha deliberadam ente tirado as co nc lusões im plícitas, em seus p rincíp ios, p reparou o cam inho para seus sucessores, que, ao institu ir a Sociologia, pouco m ais fizeram que d ar um nom e ao cam po dc estudo que ele inaugurara.

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r.x isic , todavia, u m a noçào da qual M ontesquieu parccc nào tei se dado conta c que, em nossa época, transform ou o m étodo da C iên­cia Social, que é a noçào de progresso. V ejam os o que isso significa.

Q uando com param os diferen tes povos, ó com o se certas form as ou p ropriedades m anifestam ente ineren tes à natureza da sociedade fossem sim plesm ente esboçadas en tre certo s povos e se m ostrassem m ais c laram ente em ou tros. A lgum as sociedades são pequenas e es­palhadas p o r grandes áreas; ou tras sào g randes e densas. A lgum as não têm um a autoridade firm em ente estabelecida; outras têm um a adm in istração dc listado sistem aticam ente organizada, que faz sentir sua in fluência p o r todo o organ ism o social. Fm rc esses d o is tipos há incontáveis variações interm ediárias. N ó que toca à organização, essas sociedades não estào no m esm o n ível, por assim dizer. A lgum as p o ­dem ser consideradas su p erio res às outras. M as já se observou que as sociedades superiores saem das inferiores. O bviam ente , não q u e ­ro dizer que as sociedades form am urna sim ples série linear que vem dos povos antigos na extrem idade inferior até as nações m odernas no cum e. Seria m ais com o u m a árvore cujos galhos se estendessem em diferentes direções. M as isso pouco tem a v er com nosso assunto. M esm o assim , é verdade que as sociedades nascem de outras socieda­des e que as m ais recentes sào superiores às m enos recentes. É a isso que se cham a progresso da hum anidade. A s m esm as observações po­dem ser feitas se considerarm os um único povo em si m esm o. A partir do m om ento em que passa a existir, ele se desenvolve pouco a pouco

O m éto d o He M ontesqu ieu 67

cm um tipo superior àquele cio qual veio. 0 progresso da natureza hum ana consiste nesses pequenos desenvolvim entos cum ulativos.

T odavia. M ontesquieu nào conseguiu p erceber isso. Ê verdade que nào punha todas as sociedades no m esm o nível. P referia a repú­blica e a m onarquia ao despo tism o, a m onarqu ia à república e a re­pública à dem ocracia dos p o v o s bárbaros. M as nào suspeitava que esses d iferen tes tipos de sociedade cresc iam sucessivam ente a partir da m esm a raiz. Pensava que cada um a surg ia independentem ente das outras, exceto a m onarquia que. a seu ver. se desenvolve a partir da dem ocracia in ferio r.1* M as essa ún ica exceçào m ostra o quão a fas­tado ele estava da idéia do progresso , já que a dem ocracia prim itiva, que ele considera superio r a qua lquer ou tra form a de so c ied ad e ,14 é para cie o tipo orig inal exatam ente por ser in ferio r a todas as outras. Pela m esm a razào. em bora ele não negue que o princip io social de povos particulares pode ser desenvolvido ou corrom pido, acredita, mesm o assim , que esse p rincíp io c determ inado quando um povo pas­sa a existir e deve perm anecer intacto po r toda sua história. N ão conse­gue perceber que toda sociedade contem em si fatores conflitantes, sim plesm ente porque gradualm ente em ergiu de um a form a passada c tende para um a futura. N ào reconhece o processo em que um a socie­dade, sem pre perm anecendo fiel ã sua natureza, está constantem ente se tom ando algo dc novo, dai a singularidade de seu m étodo.

A existência social é de term inada p o r dois tipos dc condições. Um a consiste nas c ircunstâncias p resen tes, com o a topografia ou o tam anho da populaçào . A outra pcrtcncc ao passado h istórico . A ssim corno um a criança seria d iferente se tivesse outros pais. assim tam bém a natureza dc um a sociedade depende da form a das sociedades que a

13. Hle d iz que a m onarquia dos p o vos germ ânicos foi resultado tia corrupção de seu governo (L ivro XI. cap. 8) c que os alem ães v iveram a vida de povos bárbaros (L ivfo VTIL c:ips. 20 = 30; d '. L iv ro XV1IL cap . 14).14. n , obviam ente , a dêmacratie inférieure que c questionada. [Nota do tradu tor para o inglês]

M o n lesq u icu c R ousseau

precederam . Se e la for a continuação cle sociedades in feriores, nào pode ser igual a urna que surgisse dc nações a ltam ente civilizadas.

Sem consegu ir perceber as re lações dc sucessão c parentesco entre as sociedades, M ontesquieu om ite com pletam ente as causas desse tipo. Nào leva em con ta esse vis a tergo que im puisiona as sociedades, m as co n sid e ra apenas os fatores am b ien ta is .15 Q uando tenta in terp retar a h is tó ria de um a sociedade, nào a situa em urna série dc sociedades, m as cu ida apenas d a natyreza dc sua topografia, do núm ero de cidadàos, etc. Isso é total m ente contrário ao método adotado m ais tarde p o r C om tc ao tratar do m esm o problem a. Comle afirm a que a natureza das sociedades depende inteiram ente do m o­mento em que cias surgiram e que a C iência Social consiste quase inteiram ente em estabelecer a série das sociedades. N em é preciso d i­zer que nenhum a dessas doutrinas expressa m ais que um a parte da verdade.

15. Ver, sobre iodos esses tóp icos, o ensaio neste livro x o artigo dc M . D avv na Jlevue de Mèttíphysique cr de M onile (ju lho-uu tnbro de 19*19): “A explicação so ­ciológico e o recurso ã h istó ria segundo C om te. Nr.ll e D urkhcith” . espccialm entc as pp. 346-53. C itam os aqui o trech o que conclui esse artigo: "A explicação histó rica da gênese, com suas fases e iaram ente separadas. iíe l'áto com pleta a explica çào :necnnistica com todas as .-^uas im plicações. [Em Regras do método sociológi­co] a causalidade das condiçò-es do am bien te social, sobre a causalidade do am ­biente. nào nos com pele de fo rm a algum a a ignorar aquelas do estado anterior no estado atua). Há um a in terdependência de influencia dos d iferentes fatores do p re ­sente dos fatores do passado n o p resen te". [N ota dc> tradu to r para •;> inglês]

Conclusão

Em sua história da filosofia política . Paul Janct, depois de ap re­sen tar a teo ria de M ontesquieu, queixa-se . com razão, de que a m aior parte dos com entaristas se in teressou apenas p o r expor seus erros. A crescenta que teria sido p referíve l, c m uito m ais ju s to , “ te r dado um a idéia detalhada da vastidão e obscuridade do tem a que ele esco­lheu e da to rça in telectual com a qual ele o tratou” ." ’ Foi isso que ten tam o s faze r no atual trab a lh o . N ào d iscu tim o s a o p in ião dc M ontesquieu cm questões d e detalhes, m as tra tam os apenas do que consideram os sua principal realização. Em bora sem pre seja um erro re traçar o nascim ento de um a ciência a um pensador em p a rtic u la r- já que toda ciência é o p rodu to de um a cadeia in in terrupta dc con tri­bu ições c c difícil d izer quando exatam ente ela passou a ex istir m esm o assim , foi M ontesquieu quem prim eiro estabeleceu os p rin ­cíp ios fundam entais da C iência Social. T N ào que os ten h a afirm ado em term os explícitos. Ele especulou m uito pouco sobre as condições da ciência que inaugurou. M as esses p rinc íp ios e cond ições sào ine­rentes a suas idéias e nào é d ifícil reconhccc-lo s e form ulá-los.

56. ffisroire de la srfmcQpalhique. (3"1 ec.. II. 317-19 c 4* cd.. pp. 197-9S).17. Km seu Cnurs de pluloxophie posilive (cd. Schlcichcr. IV. 178-95), C om íe reconhece a g rande div ida da C iência Social a M ontesquieu . Todavia, a avaliação que faz da contribuição dc M ontesqu ieu é m uito breve e. com o m ostram os, um tanto incorreta. Ela não parece m ostrar um a a tenção cuidadosa à teo ria dc seu predcccssor.

70 M ontcscuieu c Roti^seau

V im os qua is suo. N ào apenas M ontesquieu com preendeu que os fenôm enos sociais são assunto para um estudo cien tifico , com o tam bém ajudou a d ar fo rm a às duas idéias fundam entais necessárias ao estabelecim ento da C iência Social: as idéias de lipo e de lei.

F.m rcíaçào ao tipo, M ontesqu ieu m ostra que a natu reza do p o ­d er soberano e da ex istência social em geral difere de um a sociedade para outra, m as que as d ife ren tes form as podem m esm o assim ser com paradas. Hssa é um a condição ind ispensável para a classifica-

çào ; nào basta que as sociedades m anifestem sem elhanças de um tipo ou outro; dev e ser possível com pará-los em toda sua estru tura e ex istência . M o n tesqu ieu nào apenas fo rm u lo u p rin c íp io s , com o lam bém os usou com g rande habilidade. A classificação que esbo ­çou conlém um considerável elem ento dc verdade. M as se enganou em dois pontos. Prim eiro, erroneam ente supõe que as form as sociais são determ inadas pelas form as de soberania e podem ser definidas de acordo. Segundo, afirm a que há algo intrinsecam enle anorm al a res­peito de um dos tipos que d istingue: o Estado despótico. F.sse ponto de vista é incom patível com a natureza de um tipo, pois cada tipo tem sua própria form a perfeita que - dependendo das condições de época e local tem o m esm o nível da form a perfeita dos outros tipos.

Q uanto ;> noçào de lei. foi m ais d ifícil transferi-la das outras c iências em que jà eslava estabelecida para a nossa. E m todas as ciências, a noçào de tipo ap arece antes da de lei. pois a m ente hum a­na pode concebê-la m ais rapidam ente. B asta o lhar em volta para per­ceber certas sem elhanças e d iferenças entre as coisas. M as as relações determ inadas a que cham am os leis estào m ais p róx im as da natureza das co isas c conseqüen tem en te o cu ltas dentro dela. Estilo cobertas po r um véu que devem os rem over se qu iserm os chegar a elas e trazê- las à luz. F.m relaçào à C iência Social, houve certas d ificu ldades especiais que resultaram d a própria natu reza da ex istência social, que c tào m óvel, d iversificada e rica em form as que. p ara m im . nào pode ser reduzida a leis fixas e im utáveis. A lém disso , os hom ens nào gostam de p en sa r que estão unidos pela m esm a necessidade que outros fenôm enos naturais.

C onclusão 71

M esm o assim , ap esar d as aparências, M ontesquieu -afirma que os fenôm enos sociais tèm um a ordem fixa e necessária. N ega que as sociedades estejam o rgan izadas a esm o e que sua história dependa de acidentes. F.stá convencido dc que essa esfera do un iverso é g o ­vernada p o r leis. m as a concepção que faz delas c confusa. D e acor­do com ele. e las não nos contam com o a natureza dc um a sociedade dá origem às institu ições sociais, m as am es indica as institu ições que a natu reza de um a sociedade ex ige, com o se sua causa efic ien te ti­vesse de se r buscada apenas na vontade do legislador. T am bém ap li­ca a palavra leis às re lações en tre idéias, e nào en tre as c o is a s .? Na verdade, essas idéias são as que um a sociedade deve m anter se for fiel à sua natureza, m as pode se separar delas. M esm o assim , sua C iência Social não degenera em outra d ialética porque ele percebe que aquilo que é racional c p rec isam ente o que ex isle com m aior freqüência na realidade. D esse m odo. sua lógica ideal situa-se , em certo ponto , no m undo em pírico . M as há exceções que introduzem um elem ento de am bigü idade em seu conceito de lei.

D esde M ontesquieu. toda a C iência Social conseguiu d issipar essa am bigüidade. N ão era possível p rogred ir m ais a té que se esta­belecesse que as leis das sociedades não são d iferen tes das que g o ­vernam o resto da natureza c que o m étodo pelo qual sào descobertas é idên tico ao d as ou tras ciências. Essa foi a contribu ição dc A ugusto C om te. E le e lim inou da noção dc lei todos os elem entos estranhos que ate então a haviam falsificado e insistiu com razão na p rim azia do m étodo indutivo. A penas en tão nossa c iência pôde te r p lena cons­ciência dc seu ob jetivo e m étodo e todos os seus fundam entos indis­pensáveis estariam com pletos. C) p resen te estudo a judará o le ito r a ju lg a r a contribu ição dc M ontesquieu a essa preparação.

IS. D urkhcim reexam ina essa idéia em Ri-gtes- dc Ia mèihodcsocwhgiautt cap. I. p. 25 (cd. 1947, p. 19), ao ap licá-la ao próprio Com tc.

O Contrato Social de Rousseau1 9

O principal objetivo do Contrato Social, apresentado no L ivro i. Cap. I. pode ser resum ido assim : encon trar u m a form a de associação ou, com o R ousseau tam bém a cham a, de estado civil, cu jas le is pos­sam ser sobrepostas às leis fundam entais inerentes ao estado de na­tureza sem vio len tá-las. Para com preender a doutrina de Rousseau.

devem os: ! ) determ inar o que seria o “estado de natu reza” , que é com o um padrão para m ensurar o grau dc perfe ição atingido pelo “estado civil9’: 2) determ inar com o os hom ens conseguiram afastar-se dessa condição ao fundar as sociedades, pois se a form a perfeita de sociedade ainda p rec isa ser descoberta , devem os co n c lu ir que a rea­lidade nàò oferece um m odelo. A penas en tão poderem os exam inar as razoes de R ousseau para acred itar que esse afastam ento nào era inevitáve! e suas ob serv açõ es a respeito de com o os dois estados, contrad itórios em d iversos aspectos, podem ser reconciliados.

19. O presen te estudo. que D urkheim esboçou após um curso que acabava <Je dar na U niversidade dc B ordèaux, loi pub licado postum am ente p o r X av ier Léon na Revue de Màtaphysiquc et fie \fortife. XX V (191S). 1-23 e 129-61. O m itim os as prim eiras très páginas, que tratam da “ história do livro” , c m que o au to r explica que O Contrato Social seria p an e de um traba lho sobre as institu ições pu b licas. As inform ações b ib liográficas com ple tas podem ser encontradas cm duas excelentes edições do Contrato Social, uma editada por G B eauvalon. R ieder. 190?. 3J cd.. 1922. c a outra por M. H albw aebs. Aufoier, 1943. e na tese cc R obcrt D erainé, Jear,-Jacques Rousseau et la sciençe potiiique de son icmps (B ib liog raph ie de la Science pob tique , Pr esses U niversitaircs F rançaiscs. 1950)

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O estado de natureza

O estado de natureza não é. com o já se d isse, o estado em que o hom em viv ia am es da in stitu ição das sociedades. () term o pode. de fato, sugerir um periodo h istó rico no inicio do desenvolv i­m ento hum ano. N ão foi a in tcnçâò de R oussèau. T rata-se, segundo ele. de um estado "que não m ais existe, que ta lvez nunca tenha ex is­tido , que provavelm ente nunca ex is tirá '' (P refácio ao Discurso so­bre a origem da desigualdade). O hom em natural c sim plesm ente o hom em sem aquilo que ele deve à sociedade, reduzido ao que seria se sem pre tivesse v iv ido em isolam ento. A ssim , o problem a é m ais psico lóg ico que h istórico , ou seja. d istingue en tre os e lem entos so ­ciais da natu reza hum ana e os inerentes à constitu ição psico lóg ica do indivíduo. N o estado de natureza, o hom em consiste apenas destes últim os. Para de te rm inar o que ele era “quando surgiu das m ãos da natureza", devem os desp i-lo “de todos os dons sobrenatu ra is que possa te r recebido e de todas as faculdades artific ia is que só pode ter adquirido por m eio de um longo p rogresso" {ibid.. e P arte 1). Se. com o supuseram R oussèau. M ontesquieu e quase iodos os pensado­res até C om te (e m esm o S pencer recai nessa trad icional con tusão) a natureza term ina no indivíduo, tudo o que está além deste fatal­m ente será artificial. R oussèau nào pergun ta se o hom em perm ane­ceu no estado de natu reza por a lgum tem po considerável ou se co ­m eçou a afastar-se dele a partir do m om ento em que surgiu , pois a questão é irrelevante para seu propósito .

M o n tc sq u icu c R oussèau

C onseqüentem ente. a h istó ria tem pouca u tilid ad e para ele. que leg itim am en te a d e sco n sid e ra . "V am os co m eçar por ignorar todos os fa tos, pois não se re lac io n am i\ questão . Todas as in v esti­gações do assu n to nào devem ser co n sid erad as v erdades h istóricas, m as esp ecu laçõ es h ip o té tic a s c cond ic io n a is , que mais provavel­mente esclarecerão a natureza das coisas do que revelarão sua real origem" (ibid.. in ic io , in fine). M esm o os se lv ag en s dão unia idéia bem pouco ex a ta d o estad o de n atu reza . “ M uitos pensadores se enganaram a re sp e ito d as ten d ên c ias p rim itiv as do hom em e lhe a trib u íram , p o r exem plo , um a crue ldade n a tiva , p o r nào p e rceb e­rem su fic ien tem en te com o esses povos [os se lv ag en s] já estavam afastad o s do p rim eiro e s tad o de "na tu reza1. C) se lvagem está ce rta ­m ente m ais p ró x im o à n a tu reza . Em seu estad o m enta l, sem dúvida é m ais fácil, sob m u ito s a sp ec to s , d is tin g u ir o fundo o rig inal, pois está m enos o cu lto pelas aq u is içõ es da c iv ilização . M as essa é um a im agem a lte rad a que d e v e se r ex am in ad a com grande cau te la ." C om o p ro ced er en tão? R o u ssèau nào tem ilusões a respeito das d ificu ld ad es de sua em p re itad a . “U m a so lu ção sa tisfa tó ria p ara o seguin te problem a nào m e pareceria indigna dos A ristó teles e Plínios dc nosso sécu lo . Q ue ex p eriên c ia d ev eríam o s ex ig ir para conhecer o hom em natural e p o r q u e m eios pod eríam o s rea liza r essas ex p e­riências para o ben efíc io d a soc iedade (ibid, P re fác io )?" Essas ex ­p eriên c ias sào im possíve is . Q ue técn icas pod eriam su b stitu í-la s? R oussèau nào as ex p lic ita , m as os p rin c ip a is m éto d o s parecem ser:I ) o b serv ação de an im a is , que fo rnecem ex em p lo s de v ida m ental nào -in fluenciada pela sociedade; 2} observação dos se lvagens, com a reserva ac im a m en c io n ad a : 3) um tipo de d ia lé tica com o o b je ti­vo de d ed u z ir todos os fa to re s m en ta is que parecem esta r lo g ica ­m ente im p licados pelos d esen v o lv im en to s so c ia is subseqüen tes (com o a linguagem ).

P or que R oussèau ag iu dessa form a? Por que a teo ria do estado de natureza, assim defin ida , é a base de seu sistem a? Porque, respon­de ele, essa cond ição p rim itiva é ';a ra iz" do estado civil. i;Se me

O estad o dc n a tu reza

estendi tan to na suposição dessa cond ição prim itiva, foi porque, ten­do de destru ir an tigos erros e preconceitos inveterados, acred ite i .ser necessário cav ar a té a ra iz” (ibid.. P arte í). P arecia-lhe óbvio que a Sociedade só poderia ser um a concretização das p rop riedades ca rac ­terísticas da natureza do indivíduo. Portan to , é da natu reza ind iv i­dual que devem os com eçar e a eia devem os retornar. Para ju lg a r as form as h istó ricas de associação, devem os exam iná-las em relação con. a natu reza hum ana, ten tando defin ir se elas ad v im logicam ente dela ou se a deform am . E quando buscam os determ inar que form a deveria substitu i-las. um a análise do hom em natural deve fornecer as p rem issas de nosso raciocín io . M as p ara chegar a esse hom em natural, devem os de ixar de lado tudo o que. em nós, é produto da ex istência social.

De outro m odo, en traríam os cm um circulo vicioso , pois esta- ríam os ju stificando a sociedade com base na sociedade, ou seja, nas idéias e sen tim entos que a sociedade im plantou em nós. E stariam os dem onstrando um preconceito com outro . Se desejam os p ro ced er de form a critica e efetiva, é preciso escapar à ação da sociedade e dom iná- la; é p reciso com eçar da origem e rever a seqüência lógica das co i­sas. Esse é o ob je tivo da operação que acabam os dc descrever.

A preocupação constan te de R ousseau era ev ita r “o erro daque­les que. ao rac iocinar sobre o estado de natureza, usam idéias re tira ­das da sociedade” (ibid.. P an e I). Para esse fim. devem os nos liv rar de todas as pré-coriccpções de origem social, se jam verdadeiras ou falsas, ou. com o ele d iz . “ lim par o pó c a areia que rodeiam o ed ifí­c io” e "descobrir o fundam ento sólido no qual ele se ap ó ia” {ibid. P refácio , in fine). Esse fundam ento só lido é o estado de natureza.

N ão se pode deixar de no tar a sem elhança entre esse m étodo e o de D escartes. A m bos os pensadores afirm am que a p rim eira opera­ção da C iência deve ser um a espécie dc purgação in telectual que lim pe a m ente de todos os ju lg am en to s m ed ia to s que não tenham sido dem onstrados cientificam ente para despojar os axiom as dos quais todas as ou tras proposições devem dcrivar-sc.

M o n tcsq u icu c R ousscau

A m bos sugerem rem o v er o cascalho c descobrir a rocha sólicta sobre a qual ioda a estru tura do conhecim ento deve repousar; em um dos casos o conhecim ento teórico, no outro o conhecim ento prático. A concepção de R oussèau d e um estado de natureza nào é. com o já pensou, um a ticçào de devaneio sentim ental, uma restauração filosó­fica da antiga crença na idade do ouro. É um dispositivo m etodológico.2 em bora, ao ap licar esse m étodo. R oussèau possa te r distorcido os fa­tos para deixá-los m ais de acordo com seus sentim entos pessoais. De qualquer modo, ele não vem de um a visão*exageradám ente otim ista do hom em prim itivo, m as de um desejo de estabelecer os com ponen­tes básicos de nossa constitu ição psicológica.

U m a vez exposto o p rob lem a nesses term os, com o R oussèau o reso lveu? E m que consiste , para eie, o estado de natureza?

ü que caracteriza o hom em nesse estado - não im poria se c real ou ideal é um perfeito equ ilíb rio entre suas necessidades e os re­cursos à sua d isposição . P o r quê? P orque o hom em natural c reduzi­do exclusivam ente a sensaçócs. "Q uan to m ais pensam os nessa ques­tão, m aio r parece a d istância en tre as sensações puras e m esm o o

2(1. i: in teressan te com parar a interpretação cc D urkhcim com o que li. Derathc d i / cm Jean-Jacqnes Roussèau cs ia scieàcepoliiique desnn lemps (p. 377): “ Sca concepção (dc R ousscau) c freqüentem ente m al com preendida porque ê conside­rada apenas um a apo log ia ao “se lvagem ", um a g lorificação da ' ‘inocência de ou- t r o n r ou da "vida feliz da idade do ouro". Na verdade, d ; / D erathé. essa hipótese tem "um sign ificado bastante d iferen te" , c ele se re fere ã seg u in te declaração cm Dèiermmaiion ditfait moral de Durkhem i (em Rulieti» cie ia Sociéré françaisedi Philosophie. abril de 1906, p. 132. ou 5odofogieetPhilosphie, p. 179): "R ousscau dem onstrou hâ m uito tem po q u e se o hom em fo r despido de tudo o que tira da sociedade, nada resta senão um scr reduzido ã sensação c pouco diferente de um anim at” . A ficção d o estado de natureza tem a intenção dc estabe lecer justam ente essa proposição . D er.uhé co n tin u a (p. 379): "E le (R o u sscau ) m ostra que o d e se n ­volvim ento intelectual e m oral do hom em é um a conseqüência da cxistcncia soci­al. A esse respeito , ele d eve ser considerado o pioneiro da socio log ia con tem porâ­nea. Foi com base em sua an á lise de R oussèau que D urkhcim escreveu (Divisior, ihi iravad sodalx 5* ed . Paris. ]9 2 6 . p. 33S): "A grande d iferença entre o hom em e o anim al, ou seja, <> desenvo lv im en to superior da v ida psíqu ica do hom em , pode ser resum ida á m aior so c iab ilidade do hom em . D urkhcim estava p lenam ente cons- c ien ie de ter sico in fluenciado p o r R oussèau. cue era um de seus autores favori­tos". (A .C .)

O estad o de n a tu reza 79

m ais sim ples conhecim ento ; é im possível conceber com o um ho­m em poderia ter p reench ido sem elhante brecha p o r seus próprios m eios” (ibid.. P arte T). R ousseau foi levado a essa proposição por duas considerações: 1) o exem plo dos anim ais, que têm apenas sen­sações m as pensam m esm o assim : ‘‘Todo anim al tem idéias, já que tem sen tidos” ; 2) A teo ria de C ondillac - que ele a c e i t a v a - a respei­

to da origem do conhecim en to geral, abstrato : ele é im possível sem linguagem ; m as a linguagem é m;i p rodu to da v ida social. P o r isso podem os re je itar com segurança todas as idéias a respeito do estado de natureza que p ressuponham um sistem a de sinais inaiticu lados.

N osso hom em natural pode d ese jar apenas as co isas que se en ­contram cm seu am biente físico im ediato , pois nào p o d e im aginar qualquer outra. Por isso seus desejos serào puram ente físicos e ex ­trem am ente sim ples. “ Seus desejos não vão alem de su as n ecessida­des tísicas: em todo o un iverso as ún icas coisas dese jáveis que eie conhece são alim ento , um a fêm ea e repouso’" (ibid.). Ele seq u er se preocupa em assegurar a satisfação de seus apetites fu turos. S eu co­nhecim ento pu ram en te sensorial nào o capacita a an tec ipar o futuro: nada pensa além do presen te. "S eus p lanos mal se estendem até o

fim do d ia .” D ai sua notória im previdência. M as essas necessidades sào facilm ente satisfeitas. A natureza as atendeu. E m u ito raro que as co isas de que precisa faltem . A harm onia é conseguida espon tanea­m ente. O hom em tem tudo o que deseja porque deseja apenas o que tem . “C om o ele d ese ja apenas o que co n h ece e co n h ece ap en as o que está em seu poder p o ssu ir sua alm a está perfeitam ente tranqüila e sua m ente é ex trem am ente lim itada” . M esm o se os p rodu tos da civ ilização estivessem d ispon íveis p a ra ele, o deixariam indiferente, pois não têm valor fora da c iv ilização que os cria. Vamos supo r que de a lgum m odo m iraculoso um deus ofereceu ao hom em prim itivo a arte da agricu ltura e im plem entos para cu ltivar a terra. O que teria ele feito com aquilo? Q ual seria a im portância de cu ltivar o solo se a propriedade nào fosse garantida, se os fru tos de seu trabalho nào fossem pro teg idos? M as a verdadeira instituição de um d ire ito co n ­

9fí M ontesquieu e R ou^cau

firm ado de propriedade p ressupõe a sociedade. Sob essas circuns­tâncias, em sum a. o hom em está cm harm onia com seu am biente porque é um ser puram ente físico, dependente de seu am biente físico e nada m ais. A natu reza dentro dele necessariam ente corresponde á natu reza fora. U m a é o reflexo da outra. As cond ições que poderiam causar um ã d iscórd ia não existem .

Sob essas c ircunstânc ias , qual seria a relação en tre os seres hum anos? Não haveria um estado de guerra. R ousseau rejeita a teo­

ria de H obbes, que rep ro v a duram ente , em bora louve seu gênio. A h ipó tese do estado de guerra era inaceitável a R ousseau por duas razões: 1) O incentivo ã guerra , ou seja. necessidades insatisfeitas, nào existe. C om o o hom em tem o que precisa , por que atacaria os ou tros? H obbes chegou a seu sistem a apenas p o r te r a tribu ido ao hom em natural a co m p lex a sensib ilidade do hom em civilizado. 2) H obbes erroneam ente negou ao hom em prim itivo qualquer sen tim en­to de p iedade. C om o essa v irtude precede toda reflexão, não há ra­zão para negar sua ex is tên c ia rio estado de natureza. A lém disso, há s inais dela em anim ais. A piedade im plica sim plesm ente em uma identificação l'do an im al espectador com o anim al que so fre". .Vias é ev idente que essa iden tificação deveria ser in fin itam ente m ais pró x i­m a no estado de natu reza que no estado de razão.

A lguns com entaristas viram um a con trad ição entre esse trecho e o segu in te , do Ensaio sobre a origem das [ínguas (eap. 9): “C om o som os m ovidos ã p iedade? Ao sair de nós m esm os, ao nos identificar com o sofredor. Pense n o conhecim ento adqu irido im plicado nesse transportei C om o eu im aginaria sofrim entos dos quais não tenho idéia? C om o poderia so fre r vendo um outro so fre r se nào sei o que ele e eu tem os em com um ? Um hom em que nunca refletiu não pode ser nem gentil nem com passivo*'. “ É p o r isso", d iz eíe no m esm o ensaio , “que os hom ens nào sabiam ser irm ãos e se acred itavam ini­m igos sem nada saber, tudo tem iam : atacavam em autodefesa1'. Com o esse ensaio foi escrito d ep o is do Discurso sobre a origem da desi­gualdade, os críticos se pergun taram se o pensam ento de R ousseau

O e stad o de n a tu re z a SI

nào havia m udado, ap rox im ando-se dc H obbes c sua teo ria sobre o estado de guerra. M as essa in terpretação é invalidada pela seguinte declaração que aparece no m esm o cap ílu lo : “ A queles tem pos bárba­ros foram a idade do ouro ... a Terra in te ira estava em paz". () que R ousseau quer d izer nesse trecho con troverso é que para um hom em poder ver um a criatura sem elhante cm todo ser hum ano, é prcciso ter poderes de abstração e reflexão inexistentes nos prim itivos. Para eles. a hum anidade lim ita-se ao seu am biente im ediato , o peq u en o circulo de ind iv íduos com os quais têm relações. “T inham a idéia de pai. filho c irm ão, m as não de hom em . Sua cabana con tinha todas as cria tu ras que lhes eram sem elhantes, excetuando-se estas e sua fam í­lia. o U niverso nào lhes d iz ia nada .” (ibid.). A v erdadeira p iedade, portan to , só era possível nesse pequeno circulo. ‘'D aí as aparen tes contrad ições que observam os entre os irm ãos das nações, tào fero­zes cm seus costum es c de coração tão terno: tan to am or pela fam ília e tan ta aversão aos sem elhan tes." A ssim , ele nào repudiou a noção de que a p iedade é um sen tim en to natural ao hom em e precede a reflexão. S im plesm ente nota que essa reflexão é necessária antes que a com paixão possa estender-se a toda a hum anidade. O Ensaio pode ser v isto , no m áxim o, com o um esclarecim ento e um a correção par­cial da idéia desenvolv ida no segundo Discurso. De qualquer m odo, ele defin itivam ente continuou a re je itar o pessim ism o de H obbes a respeito do hom em pré-social. P or m ais lim itada que possa ic r sido a p iedade do hom em , nào havia guerra , pois os hom ens não tinham contato: "Talvez os hom ens atacassem uns aos outros quando se en ­contravam . m as raram ente se encontravam . O estado de guerra re i­

nava em toda p an e e a Terra estava em p az” (ibid).M as m esm o que o hom em não seja o lobo de seu sem elhante,

isso nào quer necessariam ente d izer que está inclinado a se un ir com ele perm anen tem ente e fo rm ar sociedades no sen tido estrito da pa la ­vra. E le nào tem nem os m eios nem a necessidade de fazê-lo . C arece dos m eios porque sua inteligência, lim itada a sensações do m om en­to, sem ter concepção do futuro, não pode nem m esm o im aginar o

S2 M o n tcsq u ieu e Kous.scau

que essa associação - da qual não tem exem plo visível - poderia ser. A ausência de linguagem b as ta em si m esm a para to rn ar im possíveis

relações sociais. A lém d isso , por que ele asp iraria a tal existência? Seus dese jos estão sa tisfe ito s. E le nào pode cobiçar o que nào tem . "F. im possível im ag inar po r que, nesse estado p rim itivo , um hom em precisaria de outro hom em m ais do que um m acaco ou um lobo pre­cisariam de um sem elhante” (seg u n d o Discurso, parte I). D iz-se que o hom em deve ter sido p ro fundam ente m iserável nesse estado . M as que im porta, se fora constitu íd o de tal form a pela natureza que nào tinha deseio de m udar? A lém disso , a pa lavra “ m iserável” nada quer dizer, a m enos que im plique em privação dolorosa. M as dc que um hom em pode ser privado se nada lhe falta, se “ seu coração está em paz e eie é saudável de co rp o "? Será que o selvagem se queixa de sua existência e busca m udá-la? Ele só poderia so frer po r isso se tivesse a idéia de um ou tro estado e se , alem disso , o outro estado lhe ap a re ­cesse sob um a luz a ltam ente atraen te. M as “graças a um a sábia pro ­vidência, suas faculdades potenciais se desenvolveram apenas quando houve ocasião para exercê-las” . Ele tinha apenas instinto e o instinto lhe bastava, m as não o levava à existência social. Para viver em sociedade, ele precisava da razão, que é o instrum ento de adaptação ao am biente social, assim com o o instinto c o instrum ento de adaptação ao am biente físico. Ela acabou vindo, mas no início cra apenas virtual.:l

D evem os, portanto , p e n sa r no hom em natural “vagando pela floresta, sem ocupação , sem palavra , sem dom icilio , sem guerra e sem laços, sem p rec isa r de seu sem elhante e sem qua lquer desejo de fazer-lhes m al, talvez sequer reconhecendo-os individualm ente ''. Nes­se estágio de desenvo lv im ento , ele não era insociável, m as associai. ‘‘Ele nào é hostil à sociedade, m as nào tem inclinação para ela. Tem dentro de si as sem entes q ue , se cu ltivadas, se desenvolverão em

21. i.e ia o trccho inteiro. M uito im portan te , p o is m ostra que a existência social n ão é um a m aquinação d iabó lica , m as foi p rov idencia lm cnte desejada c que. em ­bora a natu reza p rim itiva não ten h a necessariam ente levado a cia. m esm o assim com inha po tenciaim entc o que te ria possib ilitado a existência social quando isso se tom ou nccessàrio (nota dc Durlcheim).

O estad o d e n a tu reza

virtudes sociais, inclinações sociais, m as são apenas po tencia lida­des. A perfectibilidade, as v irtudes socia is e outras faculdades que eram p o tencia is no hom em natural nunca poderiam te r se desenvo l­vido por si mesmas'* (segundo Discurso, fim da Parte 1). D a m esm a m aneira , o hom em nessa cond içào não é nem m oral nem im oral: c am oral. “C om o os hom ens nesse estado nào tinham qua lquer tipo de laço m oral en tre e les c nenhum d ev er conhecido , não pod iam ser bons nem m aus e não tinham vicios nem v irtudes" (ibid). A m orali­dade só poderia passar a ex istir com a sociedade. R ousseau freqüen­tem ente se refere a esse estado com o estado da inocência.

Seria esse estado o m ais perfe ito ideal que os hom ens podem alm ejar? Km relação às condições determ inadas às quais ele co rres­ponde, ó perfeito em seu gênero . D esde que essas cond ições não m udem supondo-se que sem pre sejam ob tidas p lenam ente de m a­neira geral e durável - nada poderia ser m elhor, já que a harm onia entre o se r hum ano e aquilo a que cham aríam os atualm ente seu am ­b ien te nào deixa nada a desejar. F.m outras palavras, enquan to o ho ­m em tem re laçõ es apenas com o am b ien te físico , o instin to e a sen sação b astam p ara todas as suas necessidades. E le nada m ais pode desejar, e há nad a p a ra d esp erta r as d iversas ap tidões que dor­m em dentro dele. C onseqüen tem ente, ele está feliz. M as se as coisas m udam , as condições de sua fe lic idade não podem perm anecer as m esm as. Sào essas m udanças que ríào origem à preocupação. A lgo deve ter incom odado o equ ilíb rio existente ou. se ele nunca foi real­m ente estável, certos fa tores devem tê-lo frustrado desde o inicio. Q ue fatores são esses?

Origem das sociedades

C hega um ponto , d iz R ousseau no Contrato Social, “ em que os obstácu los no cam inho de sua conservação [dos hom ens! no esta­do dc natureza m ostram m ais resistência que os recursos à disposição de cada indivíduo p ara sua m anutenção naquele estado. E ntão , essa condição prim itiva não pode m ais subsistir; e a raça hum ana perece­ria a m enos que m udasse sua m aneira dc ser" (1. 6, início). E xplicar a gênese das sociedades é encon trar essas forças conflitan tes com o estado de natureza. R ousscau reconhece que esse p rob lem a só pode scr tratado por conjectura , pois. d iz ele, “'os even tos que descreverei poderiam ter ocorrido de m uitos m o d o s’’ (segundo Discurso, fim da P arle I). M as em bora essas con jectu ras sejam bastan te p lausíveis, j á que advêm logicam ente da defin ição do estado de natureza, um conhecim ento detalhado do que aconteceu tem pouca im portância p ara as conseqüências que podem scr tiradas do sistem a.

A sociedade só p o d e passar a ex istir se o hom em for im pedido d e perm anecer no estado descrito anteriorm ente. Vias isso exige um a causa ex terna. C om o o ún ico am biente que o afeta é seu am biente físico, é ali que a causa deve ser p rocurada. Se a terra sem pre satisfez às suas necessidades, é d ifícil p erceber com o o estado de natureza pôde um dia chegar ao fim . “ Im agine um a prim avera perpétua na Terra. Im agine os seres hum anos su rg indo das m ãos da natureza e d ispersados nesse am biente. N ào vejo com o eles poderiam ie r re­nunciado à sua liberdade prim itiva e abandonado a v ida isolada, tão ap ro p riad a à sua in d o lên c ia n a tu ra l” (Origem das línguas. IX).

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M or.tcsgn iei; e R oussèau

R oussèau apóia essa crença observando que “o s c lim as suaves e as terras férteis foram os p rim eiro s a ser hab itados e o s últim os em que se form aram nações” (ibid.). M as a resistência que os hom ens cn- con traram na natu reza estim ularam iodas as suas facu ldades. “A nos estéreis, invernos longos c severos, verões tó rridos que tudo consu­m iam . que ex ig iam novos esfo rço s.’’ O frio lhes deu a idéia dc vestir a pele dos an im ais que m atavam ; os raios e vulcões, ju n to com a n ecessid ad e de p ro teção c o n tra as tem p era tu ras invernais, ibes deu a idéia de conservar o fogo: e assim por d iante. D esse m odo. a inte­ligência com eçou a desenvo lver-se alem da sensaçào . N ovas neces­sidades surgiram . O equ ilíb rio com eçava a se perlurbar.

Logo ficou evidente que a ajuda dos ou tros era útil para satisfa­zer essas nov as e m ais com plexas necessidades. “Tendo aprendido pela experiência que o am o r pe lo bem -estar era o ún ico m otivo da ação hum ana, ele foi capaz d e d istingu ir as raras ocasiões em que o interesse com um o obrigava a contar com a ajuda de seus com panhei­r o s ' (segundo Discurso, P arte II). A ssim se form aram os prim eiros rebanhos inconstantes de seres hum anos. Sua reunião era facilitada por urna serie de c ircunstâncias m encionadas cm deta lhe no Ensaio sobre a origem das línguas;

“Inundações, ressacas, erupções vu lcânicas, terrem otos, incên­dios causados p o r raios que destru íam florestas, tudo o que pudesse assustar e d ispersar os h ab itan tes selvagens de um a regiào os reunia

em segu ida para reparar ju n to s os danos so fridos em com um ". “As nascentes e rios. desigualm en te d istribu ídos, eram outro pon to dc encontro particu larm ente necessário , já que os hom ens podem m e­nos ab rir m ão da água que d o tb g o 'T (Ensaio, IX). “D esse prim eiro contato , nasceu um princíp io de linguagem . Im aginam os que entre hom ens assim aprox im ados e forçados a v iver lado a lado deve ter se form ado um idiom a com um , m ais do que en tre aqueles que erravam livrem ente pelas flo restas” (segundo Discurso, Paire II).

A ssim , um a prim eira ex tensão de necessidades físicas cria uma ligeira tendência a form ar g rupos. U m a vez o rganizados esses g ru ­pos. e les. p o r sua vez, despertam inclinações sociais. F. um a vez que

O rigem das sociedades 87

o s hom ens se acostum em a es ta r ju n to s , acham d ifícil v iv e r sozi­nhos. “ Eles se acostum aram a reun ir-se . De tan to se verem , não pod iam m ais ficar sem se ver.” Isso deu origem a novas idéias a respeito das relações hum anas, a necessidade da civ ilidade, o dever de re sp e ita r ob rigações co n tra tu a is . Foi ap ro x im ad am en te nesse m om ento que os se lvagens deixaram de ser selvagens.

M as a hum anidade foi m ais longe. C onform e os hom ens em er- g ian : de sua indolência o rig inal, con fo rm e suas facu ldades eram aguçadas por relações m ais ativas, sua m ente se abria a novas idéias. A lguns descobriram o p rincíp io da agricu ltura , da qual as ou tras ar­tes se derivaram . A idéia de usar o fogo nas ativ idades agríco las ocor­reu naturalm ente. A ssim nasceu a p rim eira d iv isão de trabalho; por u m lado a m etalurg ia, pe lo outro a lavoura e o cu ltivo do solo. A agricu ltu ra exigia a repartição da terra. A partir da recogn içào da propriedade nasceram as p rim eiras regras da ju stiça . O cam inho es­tava aberto a todos os tipos de desigualdades. X o estado de natureza, os hom ens eram m uito pouco d iferen tes en tre si e nada hav ia que os fizesse acen tuar e desenvo lver suas diferenças. M as agora havia um a recom pensa àquele que pudesse p roduzir m ais e m elhor. D esejos re- cém -descobertos levaram à com petição . “A ssim , de m ãos dadas com o p rogresso , a desigualdade natural e a de com binação espalhou-se im pcrccplivelm ente; as d iferenças entre os hom ens, desenvo lv idas pelas diferenças das circunstâncias, to rnaram -se m ais aparentes e per­m anen tes em seus efeitos c com eçaram a exercer um a in fluência p a ­ralela no destino dos indivíduos” (ibid).

M as logo que com eçaram a ex istir ricos e pobres, poderosos e

fracos, “a sociedade nascen te deu iugar ao m ais terrível estado de guerra. A viltado e deso lado , incapaz de vo ltar atrás ou de renunciar a suas in fortunadas aqu isições, a raça hum ana ating ira a beira d e sua ru ína" (ibid. ). A ssim , o estado de guerra não e, com o pensava H obbes, a origem , m as antes, um efeito do eálado social. A ntes que os ho ­m ens pudessem conceber a idéia de buscar, às custas uns dos outros, um a felicidade além daquilo que já possuíam , um a prim eira associa­ção deve te r desencadeado suas paixões, am pliado sua in teligência

M o n tcsq u ieu g R ousscau

e. em sum a, pertu rbado o equi líb rio orig inal. Um a vez que essa ca la­m idade a ting iu a hum anidade, o hom em rico . que era o m ais afetado porque linha m ais a perder, concebeu “o m a is astu to projeto que já ocorreu à m en te hum ana: em pregar em seu favor as próprias forças daqueles que o atacavam , transfo rm ando seus oponentes em seus defensores". C om essa in tenção , p ropôs a seus com panheiro s que institu íssem regras dc paz e ju s tiç a às quais todos teriam de se con­formar, que todas as forças ind iv iduais se unissem em um único poder

suprem o que pro tegeria c d efenderia todos os m em bros da associa­ção . A ssim se estabeleceram a s leis e o governo .

E ssas sào as o rigens do estado civ il. Se considerarm os os te r­m os em que R oussèau im aginava o problem a, não podem os deixar de adm irar a engenhosidade d ialé tica com a qual tratou dele. Ele com eça com o ind iv íduo e. sem atribu ir-lhe sequer a m ais ligeira inclinação socia l ou tendências conflitan tes que pudessem to m ar a sociedade necessária pe los co n flito s e m ales que elas engendrariam , ele se encarrega de exp licar co m o um se r tão fundam entalm ente in­diferente a qua lquer form a de v id a em com um veio a form ar socie­dades. i£ com o se . cm M etafísica , depois dc su p o r que o sujeito é au to-sufic ien te , tentássem os ded u zir o objeto a partir dele. O p rob le­m a é obviam ente insolúvel c po d em o s sab er com antecedência que a so iuçào de R ousscau está rep le ta de contrad ições. M as está longe de ser ilusória. Para com preender o que se segue, devem os ter em m en­te a instab ilidade do equ ilíb rio original. N ào devem os nos esquecer que. em bora a v ida social não existisse no com eço, ^eus g e n n e s es­tão p resen tes. E les sào em brionários, m as se as c ircunstâncias favo­ráveis su rg irem , não deixarão de se desenvolver. O hom em ainda não sente a necessidade de sc aperfeiçoar, m as j á é perfcctível. É sua perfectib ilidade, diz R oussèau , que o d istingue do anim al (segundo Discurso. P an e 1). E le não é co m o o an im al, que é incapaz de m udar. Sua in te ligência e sensib ilidade nào estào circunscritas p o r m oldes fixos, l lá nele um elem ento de instab ilidade laten te que pode ser trazido à tona por um nada. P a ra que ele não varie, o am bien te deve

O rigem das sociedades

perm anecer estacionário e invariável, ou antes, tudo no am bien te deve corresponder á o rgan ização da natu reza e nada deve acon te­cer p ara perturbá-lo . U m a vez que o equilíbrio é pertu rbado , não p o d e scr restaurado . U m a desordem nasce de outra. L ogo que o lim ite natural é a travessado , nào há m ais volta. A s p aixões geram paixões e estim ulam a in te ligência , que lhes oferece novos objetivos que os exasperam . A té as satisfações que obtêm os to m a m ais exi­gentes. “ A superílu idade desperta a cobiça. Q uanto m ais se tem . m ais se q u er" (fragm en to in titu lado Distinção fundamental. dos m anuscrito s de N eufchâtel. ed. D reyfus-B risach . p. 312). O s ho ­m ens passam a necessitar cada vez m ais uns dos outros c tornar-se cada vez m ais in terdependentes. A ssim , saem natural mente do es­tado de natureza.

E m bora a fórm ula pareça autocontrad itória , exprim e o pen ­sam ento de R ousseau. V am os ten ta r en tender isso.

Sào causas naturais que levam o hom em a gradualm ente for­m ar sociedades. M as isso nào to rna a sociedade um fenôm eno natu ­ral, pois ela não está log icam ente im plícita na natureza do hom em . N ão foi a constitu ição orig inal rio hom em que o obrigou a en tra r em um a v ida social, cujas causas sào ex teriores ã natureza hum ana, ad- ventícias. R ousseau chega m esm o a d izer que elas são fortu itas, que poderiam m uito bem nào te r ocorrido. “ D epois de m ostrar que as v irtudes sociais nunca poderiam ter se desenvolv ido p o r si m esm as, que para isso necessitavam do auxilio fortu ito dc d iversas causas estrangeiras que poderiam nunca ter surg ido e sem as quais o hom em teria perm anecido e ternam ente em seu estado p rim itivo , devo agora considerar c com parar os d iferen tes acasos que trouxeram o hom em e o m undo a seu estado a tual" (segundo Discurso. P arte I. ir, fine). A sociedade surgiu porque os hom ens p recisam uns dos outros. Essa assistência m útua não é naturalmente necessária. Cada indivíduo pode ser auto-suficiente. A ssim , para que a sociedade possa surgir, as cir­cunstâncias externas devem aum entar as necessidades do hom em e. conseqüen tem ente, m odificar sua natureza.

30 M o n te sq u ieu e R o u ssèau

M as ainda há um a ou tra razão para d izer que a sociedade não é natural. Ela é artificial em um grau ainda m ais alto. \ ã o apenas essa in terdependência . que é a p rim eira causa m otora da evolução social, nào se funda na natu reza hum ana, corno até m esm o quando existe não é suficiente em si m esm a p ara fazer sociedades. A essa base o rig inal, que já e um p rodu to da arte hum ana, deve-se acres­centar algo m ais. que ten h a a m esm a origem . A té que esse com ércio seja regu lado c o rganizado d e m aneira defin itiva, ele nào constitui um a sociedade. C arece da “ ligação entre as partes, que constitui o todo '’ (Manuscrito dc Genebm, ed. D rcvfus. cap. II. p. 248). Uma sociedade c um a "entidade m oral com qualidades específicas distintas daquelas dos seres ind iv iduais que a com põem , assim com o os com ­ponentes qu ím icos têm propriedades que não devem a quaisquer de seus e lem entos. Se a ag regação resu ltan te dessas vagas relações de fato fo rm asse um corpo socia l, haveria um a sorte de sensório co ­mum que sobrev iveria à co rrespondência de todas as partes. O bem e o m al púb licos nào seriam apenas a som a do bem e do mal individu­ais, com o em um a sim ples agregação , m as resid iriam na relaçào que os une. Seria m aio r que a so m a. e o bem -estar público não seria o resultado da felicidade dos ind iv íduos, m as an tes sua fon te" (ibid. p. 249). M as o sim ples fato de que os hom ens percebam que podem ajudar-se en tre si. de que adqu iriram o hábito de fazê-lo , m esm o quando som ado ao sen tim en to de que iodos têm algo em com um , de que todos pertencem â raça hum ana, nào faz com que se agrupem em um a ind iv idualidade m oral, de u m gênero novo, com cará te r e Com posição específicos, ou seja. um a sociedade. A ssim , “é certo que a raça hum ana sugere um a idéia puram ente co letiva que nào p ressupõe qualquer un ião real dos indivíduos que a com põem ".

E sse no tável trecho p ro v a que R oussèau es tav a v ivam ente conscien te da especificidade d a ordem social. E le a concebia c la ra ­m ente com o u m a ordem de fatos d iferen tes cm gênero dos fatos puram ente individuais. É um novo m undo sobreposlo ao m undo pura­m ente psicológico. Um a concepção desse tipo é m uito superior até

O rigem das sociedades 91

m esm o à dos teóricos recentes com o Spencer, que acreditam ter prova­do que a sociedade se baseia na natu reza ao observar que o hom em tem um a vaga sim patia por seu sem elhan te e que é de seu interesse tro car serv iços com eles. S en tim entos desse tipo podem responder por con ta tos m om entâneos en tre ind iv íduos, m as essas re lações in- tcm iitcn tes e superfic ia is que, com o d isse R ousseau, ca recem da “ ligação entre as partes, que constitu i o todo” , não sào sociedades. R ousseau percebeu isso. Em sua visão , a sociedade não é nada se nào for um corpo uno e defin ido, d istin to de suas partes. Ele afirm a em outro ponto que o "corpo polilico. visto individualm ente, pode ser considerado um corpo v ivo e o rgan izado , sem elhante ao do hom em . O p o d er soberano represen ta a cabeça, os cidadãos são o corpo e os m em bros que fazem a m áqu ina se m o v er e trabalhar, e um ferim ento in flig ido a qua lquer parte leva um a sensação dolorosa ao cérebro se o anim al tiv e r boa saúde" {Economia política). T odavia, com o ap e­nas o ind iv íduo é real e natu ral, o todo só pode ser um produto da razào. corpo po litico é apenas um produ to da razão” (fragm ento de Distinção fundamental, p. 308). O s indivíduos o criam e. com o continuam a ser o m aterial e a substância da construção, ele nunca pode a ting ir o m esm o grau de unidade e realidade de um a obra da natureza: “A d iferença en tre a arte hum ana e o trabalho da natu reza pode se r percebida em seus efeitos. O s cidadãos podem m uito bem d izer que sào os m em bros do Estado, m as não podem unir-se com o os verdadeiros m em bros se unem com o corpo. Ê im possível evitar que cada um tenha um a existência individual e distinta e busque atender ás suas próprias necessidades” (ibid.. p. 310). R ousseau ignorava que houvesse o rganism os naturais cu jas partes têm essa m esm a in ­dividualidade.

N ão apenas o corpo politico . m as tam bém a fam ília , é um pro­duto da razào. É de fato um grupo natural no sentido de que os filhos estào ligados a seus pais pela necessidade de autopreservaçào. M as essa necessidade dura apenas um certo tem po. U m a vez que o filho é capaz de cu idar de si m esm o, fica com seus pais apenas se desejar.

32 M o n tcg q u icu c R ousscau

N ada há na natureza das co isas que o obrigue a m an ter suas asso­ciações com eles. “ Se eles p e rm an ecem unidos, nào será m ais n a tu ­ralm ente. m as v o lun tariam en te1' [Contraio Social i. 2). M as con ­clu i-se de m uitos trechos q u e essa associação por acordo m útuo foi a p rim eira a se formar. D e fa to , R oussèau p arece às vezes conside­rá-la con tem porânea ao estad o m ais prim itivo .

Em sum a, ioda soc iedade é um a en tidade artificial porque o hom em nào tem necessid ad e natural deia, po is é essencialm en te um corpo o rganizado e porque nào há corpos sociais en tre os corpos naturais. Essas duas idéias, que norm alm ente consideram os confli­tantes - a concepção de sociedade com o um produto da razão e a concepção d a sociedade co m o um organism o - podem se r encon tra­das em R ousscau. F. e le não p a ssa de um a p ara outra por conseq ü ên ­cia de um a evo lução consc ien te ou inconsciente que tentasse escon­der dc seus leitores e ta iv ez até de si m esm o. N ào . as duas idéias estão estreitam ente re lac io n ad as em seu pensam ento . U m a parece im plicar na outra. É porque a sociedade é um organism o que é um a obra de arte , pois. segundo esse pon to de v ista, é superio r aos ind iv í­duos, ao passo que na n a tu reza nada há a lem do indivíduo. F orm ula­da nesses term os, a teoria pode m uito bem parecer contraditória. Pode parecer m ais lógico d izer que se há algo acim a dos ind iv íduos, há algo ex terio r a cies. Toda ten ta tiv a de am pliar o círculo dos fenôm e­nos naturais exige um g rande esforço, e a m ente recorre a todos os tipos de subterfúgios e evasões antes de se con form ar a urna m udan­ça tão grande em seu sistem a de idéias. Seria a con trad ição m enor nos escritos de Spencer, que p o r um lado considera a sociedade um produto na natureza, um ser v iv o com o os ou tros, c po r outro lado a despe dc seu cará ter espec ifico , reduzindo-a a u m a ju stap o sição m e­cânica de indiv íduos? R oussèau tenta ao m enos reso lver o prob lem a sem abandonar qualquer dos do is princíp ios em questão: o principio individualista (que está na base de sua teoria do estado de natureza, assim com o na da teo ria do d ire ito natural de Spencer); e o principio contrário (que poderia m uito b em ser cham ado de princíp io socialis­ta. se essa palavra não tivesse um a cono tação d iferente na língua-

O rig e m d as stx :icd ad c$ 93

gem dos partidos po liiicos). que está na base dc sua concepção o rgâ­nica da sociedade. C om o verem os, a coexistência desses do is p rin c í­p ios ex p lica o aspecto d u p lo nào ap en as da filo so fia soc ia l de R ousseau , que poderíam os ch am ar de sua Socio logia , m as tam bém de suas doutrinas políticas.

M as será que precisam os ir além ? Dado que a sociedade nào está na natureza, deveríam os, por isso. concluir que é contrária ã natureza, que é e só pode ser um a corrupção da natureza hum ana, a conseqüência de algum tipo de queda e degeneraçào: em sum a. que a sociedade com o tal é um mal que pode ser reduzido, m as nào eliminado?

Ê preciso distinguir. A sociedade, da form a com o é ho je, é cer­tam ente urna m onstruosidade que nasceu c continua a ex istir graças apenas a um concurso de circunstâncias acidentais e deploráveis. O desenvo lv im ento social levou a desigualdades artific ia is to talm ente con trárias às ineren tes ao estado de natureza. A desigualdade natural ou tís ica é aquela que “vem de um a d iferença de idade, saúde, fo rça fisica e qualidades m entais e esp irituais. A outra desigualdade, que pode ser cham ada m oral ou poliiica. depende de um tipo de conven­ção e re su lta dos d iversos priv ilég ios de que gozam alguns cm d e tri­m ento de outros, com o o priv ilégio de ser m ais rico . m ais respeitado, m ais poderoso" (segundo Discurso, in icio). E ssas convenções in­vestem indivíduos ou grupos de ind iv íduos que, no estad o de natu re­za. não seriam superiores e poderiam até ser inferiores aos ou tros, dc poderes excepcionais que lhes conferem um a superioridade con trá ­r ia à natureza. “É m anifestam ente con trário ã lei da natureza, com o quer que a definam os, que um a criança com ande um velho, q u e um to lo gu ie um sábio e que um punhado de pessoas se saturem de su­pérfluos enquanto a m ultidão fam inta carece do m ais básico necessá­rio" (segundo Discurso, ú ltim as linhas). Essas desigualdades resultam principalm ente da convenção social conhecida com o herança. N o estado de natureza, a desigualdade quase nào existe. Seu desenvo l­vim ento é estim ulado pela evolução social, e lise to rna estável e legi­tim o p o r meio do estabelecim ento da propriedade e das leis".

94 M ontesquieu c Rousscau

A prim eira violação da lei da natureza levou a um a segunda. Quando os hom ens se tornaram desiguais, ficaram dependentes uns ilos ouiros. Conseqüentem ente, a sociedade é com posta de mesires e escravos. Os próprios m estres, em certo sentido, são escravos daqueles que dominam. “Um homem crê que é m estre dos outros, embora na verdade seja mais escravo que eles" (Contrato Social I.1). “A própria dominação é servil quando se baseia na opinião públi­ca (Emite. II), pois ela depende dos preconceitos daqueles a quem governa com preconceitos. Essa interdependência dos seres hum a­nos é contrária à natureza. O s homens sào naturalmente indepen­dentes uns dos outros. Esse é o significado da famosa declaração: “O hom em nasceu livre e em toda parte está acorrentado". No esta­do natural, ele depende apenas da natureza, do am biente físico, ou seja. de forças impessoais e invariáveis que não são controladas por qualquer indivíduo, mas que dom inam a todos da m esm a maneira.

A im pcrsonalidade das forças físicas c a regularidade de sua açâo certam ente são. na opinião de Roussèau, sinais pelos quais se pode distinguir o que ê norm al e fundam entado daquilo que é anor­mal e acidental. Para ele. o que é bom deve ter um certo grau de necessidade. Por isso, urna d as razoes pelas quais ele considera m órbido o atual estado social é sua extrem a instabilidade. Logo que os hom ens com eçam a sc relacionar, “nascem m ultidões de relações vagas e inform es que os hom ens alteram e m udam conti­nuam ente; para cada indivíduo que tenta estabilizá-las. há cem que se esforçam para destruí-las” (Manuscrito de Genebra, ed. Dreyfus. cap. II. p. 247). A crescentarem os o seguinte trecho de Emile: “To­das as coisas estào misturadas nesta vida. Nào perm anecem os no mesmo estado por dois mom entos consecutivos. A s afeições da alma e as m odificações do corpo estào em um fluxo perpetuo" (11). Pois as vontades dos indivíduos se m ovem em diferentes direções e con­seqüentemente entram em conflito. Ora uma prevalece, ora outra. Elas se com binam , um a sc rende à outra, mas sempre de maneiras

O rigem da:> sociedades 95

diferentes, e o equilíbrio está sem pre perturbado. “Há dois tipos dc dependência. a das coisas, que c utti fenômeno da natureza, e a dos hom ens, que é um fenômeno social. A prim eira nào é um obstáculo à liberdade e nào gera vicios; mas como a segunda nào tem ordem ou estabilidade, ela engendra todo vício; e é por meio dessa dependên­cia que o mestre e o escravo se pervertem m utuam ente” (Emite. II). Quando o homem depende apenas de coisas, ou seja, da natureza, ele necessariamente \ív e em um estado dc equilíbrio estável, já que suas necessidades estào em harmonia com seus meios. A ordem é conseguida automaticamente. O homem, entào. está verdadeiramente livre, pois faz tudo o que deseja porque deseja apenas o que é possível. “O homem realmente livre deseja apenas o que é possível e faz o que lhe agrada” (ibid.).

A liberdade, da form a como concebe Rousseau, resulta dc um tipo de necessidade. O homem é livre apenas quando uma força su­perior se impõe a ele, desde que. todavia, ele aceite essa superiorida­de e que sua subm issão nào seja obtida por m entiras e artificio. Ele é livre se for contido. Porém, a energia que o segura deve ser real e não um a mera fícçào com o a desenvolvida pela civilização. Apenas nes­sa condição ele pode desejar ser dominado. E Rousseau acrescenta: “Se as leis das sociedades, com o as da natureza, se tom assem tão inflexíveis que nenhuma força hum ana pudesse dobrá-las. a depen­dência dos homens se tom aria a dependência das coisas" (ibid.).

M as sc o estado civil tal como ê agora viola a lei da natureza, seria o m esm o em todo estado civil? O mal atual estaria necessaria­mente implícito em toda organização social ou ó, antes, um erro que pode ser corrigido? Seriam o estado de natureza e a vida em socieda­de um a antitese irredutível ou haveria algum modo de reconciliá- los?

M uitas vezes, em prestou-se a Rousseau a opinião de que a per­feição era possível para os seres hum anos apenas em um estado de isolamento, que eles estavam condenados à corrupção e ã degenera-

96 M oiltesquieu c Rousscai:

çâo logo que começaram a viver juntos, que a idade do ouro era coisa do passado, que desaparecera para sempre quando renuncia­mos à santa simplicidade dos tempos primitivos e da qual nos afasta­mos cada vez mais conforme nos envolvemos na rede dc laços sociais. Segundo esse ponto de vista, o Contrato Social tom a-se ininteligí­vel, pois se ?. sociedade como tal é um mal, nossa única preocupação com ela seria um esforço para reduzir seu desenvolvim ento a um mínimo c nào podemos mais compreender todo o esforço de Rousseau para dar a ela uma organização positiva. Particularmente, a impor­tância que ele dá ã discip lina coletiva e a subordinação em que posiciona, sob certos aspectos, o indivíduo, tomam-se totalmente inex­plicáveis.

Rousseau certamente prefere o estado de natureza ao estado civil que vê a seu redor, pois à sua maneira é um estado de perfeição. Talve/ ele se expresse violentamente às vezes, e podemos ficar tentados a nos perguntar se suas diatribes sào dirigidas às sociedades modernas apenas, ou à sociedade em geral. F.m vista das dificuldades envolvidas na aven­tura social, podemos entender como ele deve ler deplorado as circuns­tâncias que trouxeram o fim do isolamento do homem primitivo. Mas nào há porque supor que ele considerava esse estado de perfeição o único possível e que acreditava ser impossível definir e estabelecer um outro, de um tipo diferente m as de valor igual. Uma razào para nào emprestara Rousseau o pessimismo radical que lhe foi atribuído é que o germe da existência social é inerente ao estado de natureza. O equilíbrio original poderia ter sido mantido indefinidamente apenas se o homem não quisesse aceitar qualquer mudança, se ele nào fosse perfectível. Mas o que mais o distingue do animal c a "capacidade de se aperfeiçoar. Essa habilidade que, com o auxílio das circunstâncias, sucessivamente de­senvolve todas as outras faculdades, é caracteristica da espécie assim como do indivíduo” (segundo Discurso, parte I).

E verdade que a perfectibílidade permanece dorm ente no ho­mem natural até ser despertada pelas circunstâncias. M esm o assim, é latente desde o início, c a série de eventos que resultam dela nào

O rig em das sociedades

pode ser considerada necessariamente contrária à natureza, já que existe na natureza. Esses eventos podem assum ir um curso anormal, mas esse curso nào é predeterm inado por suas causas. Da mesma m aneira, a razão, que c para o am biente sociaí aquilo que o instinto é para o am biente físico, foi despertada no homem pela Providência (segundo Discurso). Por isso, a existência social não é contrária ã ordem providencial.

Em bora o atual estado civil seja im perfeito, elo tem qualidades que não sào encontradas no estado de natureza. Em bora o homem natural nào seja mau. ele não é bom ; a m oralidade nào existe para ele. Se ele é feliz, não está consciente de sè-lo. “As estúpidas criaturas dos tempos primitivos sào insensíveis” à sua felicidade (ed. Dreyfus, p. 248). Embora Rousscau (no segundo Discurso) enfatize os sofri­mentos causados pela civilização em sua forma atual, ele não fecha os olhos à sua grandeza; parece apenas duvidar se essa é uma com ­pensação suficiente. “Parece aconselhável suspender o julgam ento que sc poderia fazer sobre tal situação até que. depois de pesar bem as coisas, tenhamos determ inado se o progresso de seu conhecim en­to é uma com pensação suficiente para o mal que eles fazem uns aos outros à medida que se instruem mais e m ais” (Parte I). M as se hou­ver um modo de corrigir essas im perfeições ou tom á-las impossí­veis, apenas a grandeza restará e talvez essa nova perfeição seja su­perior ã do estado original. Permanece, é claro, o fato de que essa perfeição terá sido adquirida ao custo de um grande sofrim ento, mas Roussèau nào parece ter perguntado se o preço seria demasiado caro. Na verdade, a questão não vem ao caso, pois as circunstâncias que tom am a sociedade necessária são dadas e a perfeição hipotética do estado de natureza é. conseqüentem ente, impossível.

Rousscau declarou, já no segundo Discurso, que os atuais de­feitos do estado civil nào sào necessários. Como. então, a sociedade pode ser organizada de modo a nos tornar melhores e m ais felizes? A proposta do Contraio Social é responder a essa questão.

O Contrato Social e o estabelecimento do corpo

Antes de qualquer coisa, vejam os como, à luz do que foi dito, Rousseau apresenta o problema.

Quando a$ circunstâncias que impedem o homem de perm ane­cer no estado de natureza se desenvolvem além de um ccrto ponto, elas devem, para que o homem sobreviva, ser neutralizadas por cir­cunstâncias contrárias. Um sistema de contraforças deve ser estabele­cido. Como essas forças nào sào dadas no estado de natureza, devem ser trazidas pelo homem. “M as como os homens nào podem gerar novas formas, mas apenas unir e dirigir as já existentes, nào têm outro meio de se preservar além da formação, por agregação, de uma soma de forças grande o bastante para superar a resistência. F.las têm de ser postas em jogo por um único móvel e obrigadas a agir em conjunto. Essa soma de forças só pode nascer da uniào de muitas pessoas” {Contrato Social, I, 6). Disso advém que, um a vez que o estado da natureza se tom e impossível, uma sociedade constituída é o único ambiente em que o homem pode viver.

M as se. no processo de formação, a sociedade violar a natureza do homem, o mal que foi evitado será substituído por um outro, que nào será menor. O homem viverá, mas será infeliz porque seu modo

ICO M on tesq n ic ii c R ousseau

de existência estará cm consUmte conflito com suas tendências bási­cas. Essa nova vida deve portanto ser organizada sem violar a lei da natureza. Como isso c possível?

Estaria Rousseau tentando, de um modo vagamente eclético, sobrepor à condição prim itiva uma nova condição» que se soma à prim eira sem m odificá-la? Estaria sim plesm ente justapondo o ho­mem social a um homem natural que permanece intacto? Isso lhe pareceria inconsistente. “Q uem quer que tcnle preservar os senti­mentos naturais na ordem social não sabe o que quer. Sem pre em contradição consigo mesmo, ele nunca será um hom em , nem um ci­dadão” (Emile, I). "Boas instituições sociais sào as m ais capazes de alterar a natureza do hom em , de subtrair-lhe sua existência absolu­ta... e de transportar o eu para a com unidade."

Assim , a natureza e a sociedade não podem ser reconciliadas por uma justaposição exterior. A natureza deve ser remodulada. O ho­mem deve mudar completamente se quiser sobreviver ao ambiente que ele próprio criou. Isso significa que os atributos característicos do estado de natureza devem ser transformados e, ao mesmo tempo, man­tidos. Daí a única soluçào c encontrar um meio de adaptá-los às novas condições de existência sem deformá-las em nenhum aspecto essen­cial. Elas devem assumir um a nova forma sem deixar de ser. Podem fazê-lo apenas se o homem social, embora profundamente diferente do homem natural, mantiver a mesma relação com a sociedade que o homem natural com a natureza tísica. Como isso é possível?

Se nas sociedades atuais as relações fundam entais do estado de natureza foram perturbadas, é porque a igualdade prim itiva foi subs­tituída por desigualdades artificiais e, com o resultado, os homens se tom aram dependentes uns dos outros. Se em vez de ser apropriada por indivíduos e personalizada a nova força nascida da combinação de indivíduos em sociedades fosse impessoal e se, conseqüentem en­te. transcendesse todos os indivíduos, os homens seriam todos iguais em relaçào a ela, já que nenlium deles poderia dispor dela a titulo privado. Assim, eles dependeriam não uns dos outros, mas de uma

O C o n tra to Social e o e stab e lec im en to do corpo político 10:

força que, por sua im pessoalidade, seria idêntica, mutatis mutandis, às forças da natureza. O am biente social afetaria o homem social do mesmo modo como o am biente natural afeta o hom em natural. “Se as leis das nações, como as da natureza, pudessem ser tào inflexíveis que nenhuma força hum ana pudesse dobrá-las, a dependência dos homens se tom aria novamente a dependência das coisas. Todas as vantagens do estado natural e do estado civil esíariam unidas na re­pública. A moralidade que ergue o hom em ao plano <Ja virtude seria somada à liberdade que o mantém livre de vícios” (Emite, 11). O único modo de rem ediar o mal. diz ele no mesmo trecho, é arm ar a lei “com uma força superior à ação da vontade individual”.

Em uma carta ao M arquês de M irabcau (26 de julho de 1767), ele formula aquilo a que chama o grande problema da política: “En­contrar uma forma de governo que ponha a lei acima do hom em ”.

M as não basta que essa força, pedra fundamental do sistema social, seja superior a todos os indivíduos: ela deve também basear-se na natureza, ou seja. sua superioridade nào deve ser ficcional, mas racionalmente justificável. De outro modo. ela seria precária, assim como seus efeitos. A ordem resultante será instável, sem a ínvariabi­lidade e a necessidade características da ordem natural. Nào poderá resistir exceto por uma com binação de acidentes que podem deixar de existir a qualquer momento. A menos que os indivíduos sintam que sua dependência da ordem social é legítima, a ordem social será precária. A sociedade deve, portanto, ter princípios “derivados da natureza da realidade e baseados na razão” (Contrato SocialT 1, 4). Como a razào nào pode deixar de examinar a ordem assim constituí­da pelo duplo aspecto ético e do interesse, esses pontos de vista de­vem estar em harmonia, pois um a antinom ia tom aria a ordem social irracional e instável. Se houvesse um conflito entre esses dois m oti­vos. nunca seria possível saber qual prevaleceria. “Nesta pesquisa”, diz Rousseau logo no inicio do livro, “farei o possível para sempre aliar o que o direito perm ite com o que o interesse prescreve, para que a justiça e a utilidade nào sejam divididas” (Contrato Social,

102 M o n tc sq u icu c R uusseau

in trodução). Pode parecer su rpreenden te , à prim eira vista, ver Rousseau, para quem a sociedade nào pertence ao dom ínio da natu­reza. dizendo que a força na qual a sociedade se baseia deve ser natural, ou seja. baseada na natureza. Mas natural é aqui sinônimo de racional. M esmo a confusão ê explicável. Embora a sociedade seja obra do homem, ele a m olda com a ajuda dc forças naturais. Ela será natural, em um sentido, se ele usar essas forças de acordo com a natureza delas, sem violentá-las, se a açào do homem consistir em com binar e desenvolver constantem ente propriedades que. sem sua intervenção, teriam perm anecido latentes, m as que estão sempre pre­sentes nas coisas. É isso que possibilita a Rousseau conceber, dc maneira geral, que apesar da diferença entre eles, o am biente social c apenas uma nova forma do am biente prim itivo.

Assim os homens poderão sair do estado de natureza sem vio­lar a lei da natureza, com a condição de que se unam em sociedades dependentes de uma força ou sistem a de forças baseado na razão e que domine todos os individuos.

Será que esse resultado pode ser atingido, e com o? Será sufi­ciente que os m ais fortes subjuguem o restante da sociedade? Mas sua autoridade será durável apenas se reconhecida como um direito. O poder físico não pode dar origem a um direito nem a um a obriga­ção. Além disso, se o direito segue a força, ele muda com esta e cessa quando ela desaparece. Com o a força varia de inúmeras m aneiras, o direito varia também. M as um direito tào variável nào c um direito. Assim, para que a força faça o direito, eia prccisa scr justificada, o que nào ocorre apenas por sua existência (Contrato Social, 1, 3).

Grócio tentara dar ao direito do mais forte um fundamento ló­gico. Partindo do principio de que um indivíduo pode alienar sua liberdade, conclui que um povo pode fazer o mesmo, Rousseau re­jeita sua teoria por diversas razoes: 1) Essa alienação só é racional certas vantagens forem oferecidas em troca. Diz-se que o déspota assegura a tranqüilidade a seus súditos. M as essa tranqüilidade está longe de ser com pleta; c perturbada pelas guerras que nascem do

O C o n tra to Social e o e stab e lec im en to do co rp o político !.03

despotismo. Além disso, a tranqüilidade por si mesma não é um bem: ela pode ser encontrada em calabouços. 2) A liberdade das gerações futuras não pode ser alienada. 3) R enunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem e não há com pensação possível para tal renún­cia. 4) Um contrato que estipule que uma das partes contratantes terá autoridade absoluta significa nada. pois nada pode estipular para a parte que não tem direitos.

Grócio alega que o direiiO de guerra im plica no direito de es­cravidão. Como o vencedor tem o direito de m atar o vencido, este pode com prar sua vida cm troca de sua liberdade. Todavia: 1) O suposto direito de matar o vencido ainda nào foi provado. M as entre indivíduos nào existe um estado crônico e organizado de guerra, nem na vida civil, na qual rudo é governado por leis. nem no estado de natureza, em que os homens nào são naturalmente inimigos, já que suas relações nào são constantes o bastante para ser de guerra ou dc paz. Um Estado que nunca existiu não pode ser invocado como o fundamento de um direito. A guerra nào é uma relação entre homem e homem, mas entre Estado e Estado. Estaria Grócio falando da guerra entre nações e do direito de conquista? Mas a guerra nào dá ao ven­cedor o direito de m assacrar o povo vencido. Portanto, ela nào pode justificar o direito de escravizá-lo. Urna vez que os defensores do Estado inimigo baixam as armas, o vencedor nào tem direitos sobre sua vida. Só se tem o direito de m atar o inimigo quando se é incapaz de subjugá-lo. Assim, o direito de subjugar não se baseia no direito de matar. 2) A aceitação da escravidão não acaba com o estado de guerra. Ao tirar do vencido o equivalente à vida, o vencedor nào lhe concede uma graça. F.le comete um ato de força, nào de autoridade legitima (Contrato Social. 1 ,4).

M esm o se o direito do m ais forte pudesse ser justificado racio­nalm ente. ele nào serviria de base a uma sociedade. Uma sociedade é um corpo organizado no qual cada parle depende do todo e vice- versa. Não há essa interdependência no caso de uma m ultidão lidera­da por um comandante. F.ssa m ultidão é “um a agregação, mas nào

M o n tesq u ieu e R ousseau

uma associação" {Contrato social. I. 5). Os interesses do com an­dante são diferentes dos da m assa. P. por isso que a multidão, que estava unida apenas por depender dele. se dispersa quando ele m or­re. Para que haja um povo. os indivíduos que o com põem devem sentir-se unidos de modo a form ar um lodo, cuja unidade não depen­da dc causa exiem a. Essa unidade não pode ser conseguida pela vontade do governante; deve ser interna. A forma de governo é se­cundária. O povo deve existir antes dc poder determ inar como será governado. “Antes de exam inar o ato pelo qual um povo se entrega a urn rei", seria melhor "exam inar o ato pelo qual um povo é um povo”. Esse ato é "o verdadeiro fundamento da sociedade” {ibid.).

Esse ato pode. obviam ente, consistir apenas dc uma associa­ção. Assim, o problem a pode ser enunciado do seguinte modo: "En­contrar uma forma dc associação que defenda c proteja com toda a força com um a pessoa e os bens de cada associado, e na qual cada um. unido a todos, obedeça ainda a $i mesmo c continue livre como antes”. Essa associação só pode resultar de um contrato pelo qual cada m em bro se aliena, com todos os seus direitos, à comunidade.

Por esse contrato, cada indivíduo se dissipará em uma vontade com um e geral, que é a base da sociedade, A força assim estabeleci­da c infinitamente superior ã soma das forças de todos os indivíduos. Tem uma unidade interior, pois ao entrar em associação, as partes com­ponentes perderam parle de sua individualidade e liberdade de m ovi­mento. Como a alienação foi feita sem reservas, nenhum membro tern o direito de reclamar. Assim, a tendência anti-social inerente a cada indivíduo simplesmente porque ele tem uma vontade individual é abolida. "Em vez da personalidade individual de cada contratante, esse ato de associação cria um corpo moral e coletivo com posto de tantos m em bros quantos votantes houver na assembléia e que recebe desse ato sua unidade, sua identidade comum, sua vida e sua vontade” {Con­trato Social í, 6). Pouco im porta se esse contrato é de fato escrito e se tem a devida forma. Talvez a s cláusulas nunca tenham sido enun­ciadas. Mas na medida em que a sociedade é normalmente constitu­ída. elas são reconhecidas tacitam ente em toda parte {ibid).

Com o conseqüência desse contrato, cada vontade pessoal é absorvida pela vontade coletiva, pois cada hom em , “ao se entregar a todos, se entrega a ninguém ”. Essa vontade geral nào é uma vontade individual que subjuga todas as outras e as reduz a um estado de dependência imoral. Ela tem o caráter impessoal das forças naturais. Um homem não c menos livre por se subm eter a ela. Não apenas nào nos escravizamos ao obedecer a essa vontade, como somente ela pode nos proteger contra a servidão, pois se. para que ela seja possível, devemos renunciar a subjugar os outros, os outros devem fazer a mesma concessão, lal é a natureza da equivalência e com pensação que restabelecem o equilíbrio das coisas. Se há uma com pensação para a alienação de minha pessoa, não é. com o disse Paul Janct. por­que recebo em troca a personalidade de outros. Essa troca pareceria bem incompreensível, h até m esm o contrária à cláusula básica do contrato social, de acordo com a qual é o corpo político, enquanto ser moral sui generis. e nào os indivíduos, que recebe as pessoas de seus m em bros (“em nossa capacidade combinada, recebemos cada membro como parte indivisível do todo" - ibid.). O que recebem os é a segurança de que serem os protegidos por toda a força do organis­mo social contra as invasões individuais de outros. M esmo a conces­são que fazemos nào é uma minoraçào de nossa liberdade, pois não é possível escravizar os outros sem escravizar a nós mesmos. “A liber­dade consiste menos em fazer sua vontade do que cm não estar sujei- to à dos outros. Ela também consiste em não sujeitar a vontade dos outros à nossa. Um senhor nào pode ser livre" (8a Cana da Montanha). O mesmo vale para a desigualdade. F.la permanece tão completa quanto no estado de natureza, em bora tenha assum ido uma nova forma. Ori­ginalm ente, ela vinha do fato de que cada indivíduo formava uma “unidade absoluta” ; seu atual fundamento é que “como cada um se entrega igualmente. ;is condições são as mesmas para todos” (I, 6). Dessa igualdade resulta também um estado de paz de um novo tipo. Com o a condição de todos os homens é a mesma, “ninguém tem interesse de tom á-la onerosa aos outros" {ibid.).

O C o n tra to Sociíii e o e stab e lec im en to do corpo po lítico 103

106 M o n tcsq u ie u e R ousseau

Nào apenas a liberdade e a igualdade foram preservadas; de certo modo, elas estão ainda m ais perfeitas que no estado de nature­za. Hm prim eiro lugar, elas estào mais seguras porque sào garantidas nào peio poder do indivíduo, m as pelas forças da coletividade que “sào incom paravelm ente m aiores que as de um indivíduo ” (1.9). Em segundo lugar, elas lêm um caráter m oral. N o estado natural, a li­berdade de cada pessoa “é lim itada apenas pela força do indiví­duo" (I. 8). ou seja, apenas pelo am biente m aterial. Assim , é um falo físico e nào um direito. N o estado civil, ela é lim itada e regida pela vontade geral e transform ada de acordo. Em vez de ser vista exclusivam ente com o um a vantagem individual, ela se relaciona a interesses que transcendem o indivíduo. O ser coletivo - superior a todos os seres individuais - não apenas determ ina a liberdade indi­vidual como tam bém a consagra e assim lhe com unica um a nova natureza. A liberdade de um indivíduo se baseia agora, não na quan­tidade de energia disponível a ele. mas cm sua obrigação, vinda do contraio fundam ental de respeita r a vontade gerai. É isso que torna a liberdade individual um direito.

O m esm o vale para a igualdade. No estado de natureza, cada homem possui o que pode. M as essa posse “c simplesmente o efeito da força" (ibid.). Embora o privilegio do primeiro ocupante tenha uma base moral mais firme que o privilégio do mais fone, ele também se tom a “um direito real apenas quando o direito de propriedade iá foi estabelecido", ou seja, apòs o estabelecim ento do estado civil. Cada membro da comunidade se entrega a ela com ioda a proprieda­de que possui de falo. Toda essa propriedade jun ta torna-se o territó­rio público. A sociedade restilui ou ao menos pode restituir - aos cidadàos o que recebeu dessa forma. M as as circunstâncias dessa nova posse sào bem diferentes. Os cidadàos passam a possuir sua propriedade nào m ais a titulo privado, mas como "depositários do bem público". A usurpação, assim , é transformada “em um verdadei­ro direito e o usufruto, em propriedade" (1.9), pois eles sào baseados na obrigação de cada indivíduo de se contentar com o que lhe é

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concedido. 'T endo recebido seu quinhão, ele deve se lim itar a ele” para estar de acordo com a vontade geral (ibid.). “E por isso que o direito do primeiro ocupante, que no estado de natureza é tão fraco, recebe o respeito de todos os homens da sociedade civil. N esse di­reito não respeitamos tanto aquilo que pertence ao outro quanto aquilo que não pertence a nós m esmos." Tsso. na verdade, nào pode bastar para instituir qualquer tipo de igualdade. Se a sociedade consagrasse o direito do primeiro ocupante sem subordiná-lo a qualquer regra, na maioria dos casos ela estaria sim plesm ente consagrando a desigual­dade. O exercício desse direito deve. portanto, ser sujeito a ceitas condições: I) o território deve estar livre no m om ento da ocupa­ção; 2) um indivíduo só deve ocupar a terra dc que precisa para sobreviver; 3) ele deve sc apossar deia não com uma cerim ônia vazia, mas com trabalho. Essas três condições, particularm ente a segunda, protegem a igualdade. Se. porém , a igualdade se torna um direito, não será por virtude desses três princípios, mas essencial­mente porque a com unidade lhe im prim e esse caráter. Nào é por­que essas très regras são o que sào, m as porque refletem a vontade geral, que a distribuição igual de bens que advém delas é justa e o sistem a assim estabelecido deve ser respeitado. Desse modo. “o pac­to fundamental substitui por uma igualdade moral e legitima a desi­gualdade física que a natureza poderia ter posto entre os hom ens" (Livro 1. últimas linhas).

A passagem do estado de natureza para o estado civil produz “uma m udança muito notável** no homem. Ela resulta em uma trans­formação da ordem de fato para um a ordem de direito e no nasci­mento da moralidade (I. $). As palavras “d e v e r’ e “direito” nào têm sentido antes de a sociedade se constituir, porque até entào o homem “considerava apenas a si m esm o”, ao passo que agora ''e le sc vc obrigado a agir segundo outros principios". Acima dele há algo que ele é obrigado a levar cm conta {o dever) e que seus semelhantes tam bém sào obrigados a levar em conta (o direito). “ A virtude não é m ais que a conformidade da vontade particular à geral" {Economia

108 M ontesqu.ieu e Rousseau

política).11 M as seria um erro sério interpretar essa teoria como se ela implicasse que a moral se baseia na m aior força material resul­tante da com binação das forças individuais. Esse poder coercivo, sem dúvida, é importante; ele garante os direitos que passam a exis­tir com o estado civil, mas nào os cria. A vontade geral deve ser respeitada, não porque c mais forte mas porque é geral. Para que haja justiça entre os indivíduos, deve haver algo exterior a eles, um ser suigeneris, que age com o árbitro e determina o direito. Esse algo é o ser social, que nào deve sua suprem acia moral ã sua supremacia físi­ca. mas à sua natureza, que é superior à dos indivíduos. Ele tem a autoridade necessária para regular os interesses privados porque está acim a deles, por nào adotar partido na causa. Assim, a ordem moral transcende o indivíduo; ela nào existe na natureza material ou imate- rial. mas deve scr introduzida. Porém, ela exige uma base em um ser e. como nào há um ser na natureza que satisfaça as condições neces­sárias. esse ser deve ser criado. Trata-se do corpo social. Em outras palavras, a moral nào deriva analiticam ente dos fatos. Para que as relações de fato se tom em m orais, eias devem ser consagradas por uma autoridade que não pertença aos falos. A ordem moral deve ser som ada a eles sintelieam ente. Para efetuar essa conexão sintética é necessária uma nova força: a vontade geral.

Portanto, é bem injusto que certos críticos tenham acusado Rousseau de contradizer a si m esm o ao condenar, por um lado, a alienação da liberdade individual em beneficio de um déspota e, por outro, ao fazer dessa abdicação a base de seu sistema, quando feita em favor da comunidade. Se é im oral em um caso, dizem eles, por

22. A o com parar o estado c iv ji. assim conceb ido , ao estado de natureza. R ousseau cx ah a as van tagens lio prim eiro , "que transform ou um anim al g rosseiro c estúpido cm um hom em e um ser inteligente” (ibid.). No m esm o trecho, na verdade, ele destaca a lam entável racilidade com q u e esse estado e corrom pido e o hom em atirado a um a situação in ferio r à sua s itu ação o rig inal. M esm o assim ele afirm a çuc a hum anidade, n« sentido estrito da palavra, é contem porânea à sociedade e que o estado social é o m ais perfe ito , em bora in felizm ente a :aça hum ana se ja d em a­siado propensa a usá-lo ma', (nota d e D urkhcim ).

ü C o n tra to Social c o e stab e lec im en to do co rp o político 10.9

que não no outro? A razão c que as condições morais sob as quais eia ocorre não são sempre as mesmas. Xo primeiro caso. c injusto porque põe o homem sob a dependência de um único indivíduo, o que é a própria fonte de toda im oralidade. No segundo, cia o coloca sob a autoridade dc uma força gera! e impessoal que o governa e. sem reduzir sua liberdade, o transform a cm um ser moral. A natureza dos limiles aos quais ele é sujeito apenas passou de física a m oral. A objeção surge apenas porque os críticos de Rousseau não consegui­ram perceber a vasta diferença, do ponto de vista moral, entre a von­tade geral e a individual.

Da soberania em geral

O corpo político instituído pelo Contrato Social, enquanto for­ça de todos os direitos, deveres e poderes, é chamado soberano. Quais os atributos da soberania e com o cia se afirma?

A soberania c “o exercício da vontade geral” . É o poder coleti­vo dirigido pela vontade coletiva. M as cm que consiste exatam ente a vontade coletiva?

A vontade geral é com posta de todas as vontades individuais. “Ela deve partir de todos” (II, 4). M as essa primeira condiçào nào basta. A vontade de todos nào é, ou ao menos nào necessariamente, a vontade geral. A prim eira “nào é mais que uma soma de vontades particulares” (11, 3). O objeto ao qual se aplicam todas as vontades individuais também deve scr geral. “A vontade geral, para realmente sê-lo, deve ser geral cm seu objeto assim como em sua essência... deve vir de todos para se aplicar a todos” (TI. 4). Em outras palavras, ela é o produto da deliberação das vontades individuais sobre uma questão que interessa ao corpo da naçào, sobre um assunto de inte­resse comum. M as a palavra "interesse” também deve ser propria­mente compreendida.

Concebemos, às vezes, o interesse coletivo como o interesse próprio ao corpo social, que é visto então como um novo tipo de personalidade com necessidades especiais diferentes das sentidas pelos indivíduos. M esmo nesse sentido, na verdade, tudo o que é útil ou necessário à sociedade interessa aos indivíduos porque eles sen­tem os efeitos das condições sociais. Mas esse interesse é apenas

- m -

112 M o n tcsq iiieu e R ousseau

indireto. A utilidade coletiva tem um certo caráter próprio. Nào é definida em função do indivíduo visto sob um ou outro aspecto, mas em função do ser social considerado em sua unidade orgânica. Essa não é a concepção dc Rousseau. Segundo seu ponto de vista, tudo o que é útil a todos é útil a cada um . O interesse comum c o interesse do indivíduo médio. O interesse geral é o de todos os indivíduos que desejam o que é mais apropriado, nào a esta ou aquela pessoa em particular, mas. dados o estado civil e as condições determ inadas da sociedade, a cada cidadão. Ele passa a existir quando “ todos querem a felicidade de cada um deles'* {ibid.). E o indivíduo é de tal forma seu objeto que existe um certo egoísmo, pois “nào há uma pessoa que nào se aproprie da expressão “cada um" pensando em si mesmo ao votar por todos. O que prova que a igualdade de direitos e a idéia de justiça que essa igualdade produz se origina na preferência que cada um dá a si mesmo e, conseqüentemente, na natureza do homem" (ibid.).

Assim, para que a vontade geral se manifeste, não é necessário, ou m esm o desejável, que todas as vontades individuais se unam em uma deliberação efetiva, como seria indispensável se a vontade ge­ral fosse algo diferente dos elem entos de que resulta, pois entào es­ses elem entos teriam de ser postos em contato entre si e combinados antes que seu resultante pudesse emergir. Pelo contrário, o ideal se­ria que cada indivíduo exercesse seu quinhào de soberania separa­dam ente dos outros. “Se, quando o povo inform ado delibera, os cidadãos nào tivessem qualquer com unicação entre si... a decisão continuaria a ser boa” (II, 3). Q ualquer agrupamento intermediário cnlrc os cidadãos e o Estado não poderia deixar de ser danoso sob esse aspecto. “E portanto essencial, para que a vontade geral seja capaz de expressar-se, que nào haja sociedade parcial no Estado c que cada cidadào tivesse apenas seus próprios pensam entos" (ibid.). Assim, se cada indivíduo votar independentem ente de seu vizinho, haverá tantos votos quanto indivíduos e. conseqüentem ente, um nú­mero maior de pequenas diferenças, que por sua fraqueza desapare­cerão em m eio ao todo. Apenas aquilo que nào pertence a uma dis­

D a so b e ran ia cm geral : 13

posição individual sobreviverá. Dai a vontade coletiva tenderá natu­ralm ente ao objeto que lhe é próprio. M as se se formar em grupos individuais, cada um terá sua vontade coletiva, geral cm relação a seus membros, mas individual, em relação ao F.stado. e dessas von­tades coletivas surgirá o soberano. M as precisamente por serem es­sas vontades elementares em pequeno número é mais difícil que seus caracteres diferenciais se fundam. Quanto m enos elem entos forma­rem um tipo. m enos geral será esse tipo. A vontade pública correrá mais risco de desviar-se para fins particulares. Se um desses grupos chegar a se tornar predominante, restará apenas uma única diferença “ c a o p in iã o q u e p re v a le c e nào p a s sa rá de um a o p in ião particu la r” (rô/V/.). N essa teoria , reconhecem os o horror a todo partieularismo. a concepção unitária da sociedade, que foi um a das características da Revolução Francesa.

Em sum a, a vontade gerai é a média aritmética de iodas as von­tades individuais na m edida em que seu objetivo político é urn tipo de egoísm o abstrato. Seria difícil a Rousseau transcender esse ideal, pois se a sociedade é fundada por indivíduos, se eles a considerarem apenas um instrumento com o qual podem se proteger sob circuns­tâncias particulares, cia só pode ter um objetivo individual. M as, por outro lado. como a sociedade nào é natural ao indivíduo, concebido como em inentem ente dotado dc uma tendência centrífuga, o objeti­vo social deve ser despido de todo caráter individual. Ele só pode ser. então, algo muito abstrato e impessoal. M esmo assim , para atin­gi-lo. só se pode voltar-se ao indivíduo. Ele é o único órgào da socie­dade. já que é seu único criador. Todavia, é necessário submergi-lo na m assa para m odificar sua natureza tanto quanto possível e evitar que aja como indivíduo. Tudo o que tenha um a natureza capaz de facilitar a ação individual deve ser considerado perigoso. Assim, encontram os em toda parte as duas tendências antitéticas da doutrina de Rousseau. Por um lado, a sociedade com o um mero instrumento para uso do indivíduo: por outro, o indivíduo dependente da socie­dade. que transcende em muito a m ultidão de indivíduos.

M o iile sq u ie u e R ousseau

Uma última observação advém do que se disse. Como a vonta­de geral é definida principalm ente por seu objeto, ela nào reside ape­nas ou mesmo essencialm ente no ato especifico do querer coletivo. Hia nào é ela m esm a sim plesm ente porque todos participam dela. Os cidadãos reunidos podem chegar a uma decisào que não expresse a vontade geral. “Tsso pressupõe", diz Rousseau, lique todas as carac­terísticas da vontade geral ainda residem na pluralidade; quando dei­xarem de assim ser. nào im porta o lado que se tome. a liberdade nào será m ais possível" (ÍV. 2). Por isso a pluralidade não c condição suficiente. O s indivíduos que colaboram na formação da vontade geral devem se esforçar pelo fim sem o qual ela nào existe, ou seja, o interesse geral. O princípio de Rousseau difere daquele que às vezes é invocado para justificar o despotism o das m aiorias. Se a com uni­dade deve ser obedecida, nào é porque ela comanda, mas porque com anda o bem comum. O interesse com um nào é decretado: ele nào existe por lei; ele c exterior à lei e ela só será o que deve ser se expressar o interesse comum. Por isso, o núm ero de votos é coisa secundária. “O que toma a vontade geral é menos o número de vo­tantes que o interesse comum que os une” (II. 4). Longos debates e deliberações inflamadas, longe de serem o meio natural cm que a vontade geral é elaborada, “proclam am a ascendência dos interesses individuais e o declínio do Estado” (IV, 2). Q uando a sociedade está em perfeita saúde, toda essa com plicada maquinaria c desnecessária para a confecção das leis. “O prim eiro a propô-las apenas diz o que todos já sentiram ” (IV. I). Em outras palavras, a vontade geral não é formada pelo estado da mente coletiva no momento em que a resolu­ção é tomada; esse é apenas o aspecto mais superficial do fenômeno. Para com preendê-lo corretam ente, devemos olhar mais embaixo, nas esferas menos conscientes, e exam inar os hábitos, tendências e cos­tumes das pessoas. Os costum es sào “a verdadeira constituição do Estado" (11, 2). A vontade geral, assim, é uma orientação de mentes fixas c constantes e atividades em uma direção determ inada, a do interesse geral. É uma disposição persistente nos indivíduos. E como

D a so b e ra nia em gerai 115

a própria direção depende de condições objetivas (a saber, o interes­se gera!), disso advém que há algo objetivo a respeito do interesse geral cm si. t por isso que Rousseau freqüentemente fala dele como uma foiça que age com a mesma inevitabilidade que a força física. Chega mesmo a dizer que é 'indestru tíve l'' (IV. 1).

A soberania e sim plesmente a força coletiva - tal como estabe­lecida pelo pacto fundamental - a serviço da vontade geral (11, 4, início). A gora que conhecem os os dois elem entos cios quais ela re­sulta. nào teremos dificuldade em determ inar sua natureza:

1. A soberania é inalienável, isso significa que não pode nem m esmo ser exercida por representação. “Sempre que se trata de um verdadeiro ato de soberania, o povo nào pode ter representantes" {Obras inéditas, ed. Dreyfus, Streckeisen-M oultou, p. 47, n. 2). A soberania poderia ser alienada apenas se a vontade geral pudesse ser exercida por intermédio de um a ou mais vontades individuais. Mas isso nào é possível, já que esses dois tipos de vontade têm naturezas dem asiado diferentes e se movem em sentidos divergentes. Uma se m ove em direçào ao geral, portanto à igualdade; a outra ao particu­lar, e portanto às preferências. As duas podem estar acidentalmente em hamonia por um curto tempo, mas como essa harmonia nào re­sulta de sua natureza ela nào é garantia de permanência. O soberano, por acaso, pode querer o que um determ inado indivíduo quer hoje. mas que garantia pode haver de que essa harmonia ainda existirá amanha?

Em suma, como o ser coletivo é sui generis. por ser o único de sua espécie, não pode ser representado por outro ser além de si m es­mo sem deixar de ser ele próprio (II. 4).

2. A soberania é indivisível. Ela só pode ser dividida se uma paite da sociedade decidir pelo restante. M as a vontade desse grupo privilegiado nào é geral; conseqüentem ente, o poder de que ela pen­sa dispor nào é soberania. O soberano é com posto de partes, mas o poder soberano resultante dessa com posição é um só. Em cada uma de suas manifestações, ele nào pode deixar de ser inteiro, pois existe apenas se todas as vontades individuais entrarem nele como elementos.

l lc M o n te sq cneit e R o usso.m

M as em bora seja indivisível em principio, cia nào poderia ser dividida em seu objetivo? Na base dessa idéia, já se disse algum as vezes que o poder legislativo é um a parle da soberania e o executivo é outra, e que esses dois poderes parciais estào no m esm o nível. Mas isso é como dizer que um hom em é feito de vários homens, um dos quais tem olhos mas não tem br aços, o outro tem braços mas nào tem olhos e assim por diante. Se cada um desses poderes é soberano, ambos têm iodos os atributos da soberania. São manifestações dife­rentes de soberania; não podem ser partes diferentes dela.

Esse argumento prova que a unidade atribuída por Rousseau ao poder soberano nào é orgânica. Esse poder não c constituído por um sistem a de forças diversas e interdependentes, mas por uma força homogênea, e sua unidade resulta de sua homogeneidade. Ela vem do fato de que todos os cidadãos devem contribuir para a formação da vontade geral e devem se un ir para que todos os caracteres dife­renciais sejam eliminados. N ão há ato soberano que não venha do povo inteiro, pois. de outra forma, ele seria o ato de urna associação particular. Assim podemos entender melhor o que Rousseau quis di­zer eom sua freqüente com paração da sociedade com um corpo vivo. Ele nào a concebia com o um todo formado por paites distintas, que funcionam juntas exatamente p o r serem diferentes. M ais que isso. sua visão é de que ela c ou deve ser anim ada por uma alma única e indivisível que move todas as partes na mesma direção, privando-as, na mesma medida, de todo m ovimento independente. Essa compara­ção baseia-se em uma concepção vitalista e substanciaüsta da vida e da sociedade. O corpo animal e o corpo social são movidos cada um por um a força vital, cuja ação si nérgica produz a cooperação entre as partes. Rousseau certam ente conhecia a im portância da divisão de funções: e, mesmo a esse respeito, sua analogia se sustenta. Todavia, essa divisão de trabalhos é para ele um fenômeno secundário e der; vativo que nào cria a unidade do indivíduo ou o organismo coletivo, mas antes o pressupõe. Assim, uma vez que a autoridade soberana tenha sido constituída cm sua unidade indivisível, ela pode gerar

D-t so b e ran ia cm geral 117

diversos órgãos (corpos executivos) que encarrega, sob seu contro­le, da tarefa de implementá-la. As partes que assim passam a existir nào sào partes, mas em anações cio poder soberano, ao qual perm a­necem sempre subordinadas, encontrando nele e por ele sua unida­de. A solidariedade social, em sum a, resulta das leis que ligam os indivíduos ao grupo e nào uns aos outros. Eles sào ligados uns aos outros apenas porque estào ligados ã comunidade, ou seja, alienados dentro dela. O individualismo igualitário de Rousseau nào lhe perm i­tia adotar um oulro pomo de vista.

3. N ão há controle da soberania. Ü soberano nào tem de res­ponder a seus súditos (1. 7). Isso é evidente em si mesmo, já que nào há força superior à força coletiva que constitui o poder soberano. Além disso, qualquer controle seria inútil, pois '‘a vontade geral está sem pre certa e tende à utilidade pública" (II. 3). De fato. a condição necessária e suficiente da vontade geral é que cada indivíduo deseje o que pareça scr útil a iodos em geral. Ela caminha para seu fim, ou seja. “para a preservaçào e o bem -estar do todo" {Economia política) com tanta segurança quanto a vontade pessoal do homem natural cam inha para sua felicidade e preservação pessoal. Ela pode, ê claro, enganar-se às vezes. O que ihe parece mais útil a todos pode nào se­lo dc fato. Nesse caso, a culpa não é da vontade, mas do julgam ento. “Nossa vontade é sempre para nosso bem. mas nem sem pre vemos qual é; o povo nunca c corrom pido, mas muitas vezes e enganado" (II, 3). “A vontade geral está sem pre certa, mas o julgam ento que a guia nem sempre é esclarecido” (II. 6). Os erros ocorrem particular­mente quando grupos especiais se formam dentro do Estado. Se eles obtêm o controle, seus m em bros buscam o que c vantajoso para um determ inado partido, associação ou indivíduo, e nào o que é vantajo­so para todos. Os interesses particulares tornam -se dom inantes. To­davia. a vontade geral não é por isso destruída ou corrom pida: cia é sim plesmente “vinculada'’, ou seja, subordinada a vontades indivi­duais. Ela permanece inalterável e continua a cam inhar para seu fim natural, mas è impedida de agir por forças contrárias (IV. 1).

Da lei em geral

Os capítulos I a 6 do Livro II tratam do poder soberano em repouso: os capítulos 6 a 12 o consideram em movimento. Rousseau passa do estático ao dinâm ico. O corpo político foi formado; agora ele o descreverá em ação.

O ato pelo qual a vontade soberana se manifesta é a lei. Ela tem como objeto fixar os direitos dc cada indivíduo de modo a assegurar um equilíbrio entre as panes que com põem a sociedade. Assim, elas são o verdadeiro objeto e a razão dc ser da organização social. Por isso, Rousseau nào hesita em chamá-las “a fonte do justo e do injus­to em relaçào aos membros do Estado" {Economia polírica). Nào que a justiça possa ser criada arbitrariamente, por um ato de vontade, como Hobbcs, por exem plo, pensava. “O que é bom e conforme ã ordem o é pela natureza das coisas e independentemente das conven­ções humanas. Toda justiça vem dc Deus" (II. 6). M as essa justiça, que c imanente nas coisas, é apenas virtual; é preciso traduzi-la em ato. A lei divina c inoperante enquanto não se toma um a lei humana.

Essa é a função da lei. que se confunde com a do soberano; é o supremo árbitro dos interesses individuais. Mas o que exatamente é a lei? Ela se define naturalm ente em term os da vontade geral, pois resulta da aplicação de todas as vontades ao corpo da naçào como um todo. “Quando todo o povo decide por lodo o povo. forma-se, entào. uma relaçào do objeto inteiro sob um ponto de vista com o objeto inteiro sob outro ponto de vista. A esse ato chamo um a lei'' {ibid.). Essa é uma nova prova de que. fundamentalmente, apesar

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122 M o n tcsgu ieii e R ousseau

dos esforços dc Rousseau para sobrepor um ao outro, há apenas urna diferença de ponto de vista entre o árbitro e as partes, entre o corpo da sociedade c a massa dc indivíduos.

Disso resultam diversas conseqüências:!) a lei. como a vontade geral que expressa, não pode ter objeto individual. Ela pode criar privilégios, m as nào conferi-los a alguém em particular. Isso é o con­trário do que sustentava Hobhes: “As leis sào feitas para Tiro e Caio, e nào para o corpo do Estado" (De Cive. XII). A razão dessa diferen­ça é que I lobbes admitia uma clara linha de demarcação entre a auto­ridade soberana e a multidão dos súditos. Os primeiros, afirmava, eram externos aos últimos e impunham sua vontade a cada indivíduo. A atividade do soberano, assim, dirigia-se necessariam ente a um a pes­soa ou pessoas situadas fora dessa atividade. Para Rousseau, embora em um sentido a autoridade soberana transcenda infinitamente todos os indivíduos, nào é mais que um aspecto deles. Quando ela legisla sobre eles. está legislando para si mesma e o poder legislativo que exerce “ reside” neles. 2) Pela mesma razào. a lei deve em anar de todos. Ela reúne “a universalidade da vontade com a universalidade do objeto” . O que é ordenado por um homem não é uma lei, mas um decreto, um ato executivo e não um ato dc soberania. 3) Como é o corpo da naçào que legisla por si mesmo, a lei nào pode ser injusta, pois “ninguém c injusto consigo m esm o" (11. 6). O geral é o critério do justo. Por sua natureza, o geral vai ao encontro do geral. Sào os m agistrados que pervertem a lei porque sào seus interm ediários indi­viduais (ver a 9a Carta da Montanha).

Mas o povo sozinho nào c com petente para fazer a lei. Embora ele sempre deseje o bem , nem sempre sabe o que eie é. Precisa de alguém para esclarecê-lo. Essa é a função do legislador.

Ê surpreendente ver que Rousseau dá tanta im portância ao le­gislador, que é necessariam ente um indivíduo. Parece haver uma contradição entre fazer de um indivíduo a fonte da lei quando o indi­víduo foi apresentado como a fonte da imoralidade. Rousseau ter: consciência disso. Reconhece que a natureza hum ana em si não é

D a le i c m g e r a l 12?,

adequada a essa função, que exige um homem com um a com preen­são profunda do coração hum ano e que. ao m esm o tempo, seja sufi­cientemente impessoal para elevar-se acim a das paixòes humanas e interesses individuais. Uma pessoa desse tipo só pode ser um ;‘ser extraordinário” , uma espécie de deus. que Rousseau postula, por as­sim dizer, como a condição necessária para a boa legislação, embora não esteja seguro dc que essa condição sem pre esteja presente. “Se­ria preciso deuses para dar leis aos l.om ens/’

A dificuldade se deve não apenas ao fato de que essa missão exige um gênio extraordinário, mas também ã antinomia cm que implica. Pois para fazer leis c preciso desnaturar a natureza humana, transform ar o todo em parle, o indivíduo em cidadào (II, 7). Que poderes tem o legislador para realizar uma tarefa tão laboriosa? Ne­nhum. Ele nào pode ter uma força efetiva para realizar suas idéias, pois, se tivesse, ficaria no lugar da autoridade soberana. Os homens seriam governados por um indivíduo. Por mais sábia que uma vontade individual possa ser. ela nào pode substituir a vontade geral. “Aquele que comanda as leis não deve com andar os homens." Eie só pode pro­por. Apenas o povo decide. "Assim, na obra da legislação, encontra­m os duas coisas que parecem incompatíveis: uma empreitada acima da força humana e. para executá-la, urna autoridade que nào é autori­dade’' (ibid). Nesse caso. como ele pode se fazer obedecer? É preciso lembrar que quando ele empreende a tarefa ainda nào há costumes sociais estabelecidos para facilitá-la. Muito provavelmente ele nào será compreendido. 'T ara que um povo jovem possa provar os sadios prin­cípios da política, o efeito teria de se tom ar a causa e os homens teriam de ser ames da lei o que devem tomar-se graças a ela” (ibid.).

Historicamente, os legisladores só ultrapassaram essas dificul­dades ao revestir um caráter religioso. Aos olhos da naçào, as leis do Estado adquiriam assim a mesma autoridade das leis da natureza, já que ambas tinham a mesma origem. Os homens se inclinavam a elas, “reconhecendo o mesmo poder na formação do homem e na da cida­de1' (II. 7). Assim, quando as nações se formam, a religião deve ser­vir como “ instrumento” da política (ibid.. últimas linhas). Todavia,

M o n tcsq tiieu c. R ousse.nt

Rousseau nào quer dizer com isso que, para fundar uma sociedade, basta que se façam os oráculos falarem a coisa certa. Um respeito religioso deve ser imposto, am es dc tudo. pela própria pessoa do legislador, pelo gênio pessoal que nele fala. "A grande alma do le­gislador é o único milagre que pode provar sua m issão." Talvez isso nos ajude a entender por que Rousseau não considera essas apoteo­ses totalm ente impossíveis, m esm o no futuro.

M as há outros pré-requisitos para a boa legislação. Nào basta que um legislador guie a atividade coletiva aplicada ao corpo da na­ção. Determ inadas condições também devem existir no povo:

. Uma vez que a natureza humana se fixa. ela nào pode mais scr m odificada. A transform ação profunda que o legislador deve ope­rar pressupõe que o homem ainda esteja m aleável. Portanto, só é possível no caso de povos ainda jovens e livres de preeonceilos. Mas também seria um erro tentar essa transform ação prematuramente. Um povo dem asiado jovem nào está pronto para a disciplina e ape­nas uma ordem externa poderia ser imposta a cie. Assim , há um mo­mento crítico que deve ser aproveitado antes que passe. Na verdade, as revoluções podem, às vezes, devolver a plasticidade à substância social ao destruir com pletam ente os antigos moldes. M as essas cri­ses salutares sào raras e. além disso, para serem efetivas não podem ocorrer demasiado tarde na história da nação, pois uma vez que as forças sociais tenham perdido sua tensão, uma vez que “a mola civil esteja gasta”, as revoltas podem destruir o que existia sem substituí-lo.

2. A nação deve ter um tam anho normal. Nào pode ser dema­siado grande, pois careceria da hom ogeneidade sem a qual nào pode haver vontade geral. Também não deve ser tào pequena a ponto dc nào poder se manter. M as o tam anho excessivo é o perigo maior, pois antes de ludo o mais importante é uma boa estrutura interna, que nào pode existir se o Estado for excessivam ente extenso. Nada há de surpreendente nessa observação. Todo o Contraio Social favo­rece o estabelecim ento de um a pequena sociedade segundo o m ode­lo da antiga ciaade-estado da República de Genebra.

O.t :ci cm gcr.il

3. A nação deve "gozar de paz c abundância'' no momento em que é instituída. pois esse é um momento de crise em que o corpo político "c menos capaz de oferecer resistência e mais fácil de destruir" (II. 10).

Assim , segundo Rousseau. a instituição da legislação c uma obra delicada, com plicada, árdua e de sucesso incerto. H preciso que, por um acidente feliz e imprevisível, surja um legislador para guiar o povo. Como vimos, esses indivíduos são poucos e esparsos; apare­cem quase que por milagre. A nação deve ter atingido o grau ex<:to de m aturidade e nào deve ser m uito grande: em outras palavras, p re­cisa ter chegado ã condição interna conveniente. Se alguns desses requisitos nào for cum prido, o resultado é o fracasso. F.ssa concep­ção c uma conseqüência lógica das prem issas de Rousseau e ao m es­mo tem po explica seu pessim ism o histórico . F.mbora nào seja necessariam ente contrária à natureza, a sociedade nào surge dela naturalmente. O desenvolvim ento de sementes que. embora presen­tes. são infinitamente afastadas do ato e a descoberta de um a forma de desenvolvim ento apropriada a elas. mas que nào entr e em conflito com as tendências mais básicas do hom em natural, nào pode deixai- de ser um a operação muito difícil. Estabelecer um equilíbrio estável en­tre forças que nào foram constituídas naturalmente de modo a formar um todo sistemático, fazê-lo sem violência, m udar o homem e ao mesmo tempo respeitar sua natureza, e. de fato. uma tarefa que pode exceder em muito as forças humanas. Rousseau nào tem por que se surpreender com o pequeno número de casos em que (a seu ver) a humanidade se aproxim ou desse ideal.

Das leis políticas em particular

O objeto das leis pode ser expressar a relaçào entre o iodo c o todo, ou seja. entre o conjunto de cidadãos considerados soberanos c o conjunto de cidadàos considerados súditos. Estamos falando das leis políticas, que indicam o modo como a sociedade c constituída. As leis civis sào as que determ inam as relações entre o soberano e os súditos ou os súditos entre si. As leis penais são as que decretam sanções para violações às outras leis (de forma que a sancào civil se torna sançào penal). A esses ires lipos de lei Rousseau acrescenta um quarto, os costumes, modos e acim a de tudo a opiniào pública, que para ele é a pedra fundamental do sistema social (II. 12. infine). Ele se refere aos modos coletivos de pensar e agir que. sem assum ir uma forma explícita c estabelecida, determinam a mentalidade e com ­portam ento dos seres hum anos exatam ente como fariam as leis for­mais. F. bastante interessante que cie aproxim e de tal forma o costu­me difuso e a lei escrita.

Rousseau se ocupa apenas das leis relevantes ao estabeleci­m ento da ordem social, ou seja. as leis políticas.

Assim corno a vontade individual só pode ser m anifestada com a ajuda de uma energia física, a vontade geral também só pode ser im plementada por interm édio de uma força coletiva. Essa força c o

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l M o n iesq u ieu c R ousseau

poder executivo ou verno. Assim , o governo é um mediador flexível entre a vontade soberana e a m assa de súditos ao qual ele deve ser aplicado, um intermediário entre o corpo politico como soberano e o corpo politico com o Estado. Sua função nào é fazer leis. mas zelar por sua execução. O príncipe é o conjunto de indivíduos encarrega­dos dessas funções.

A força governam ental pode. portanto, ser considerada um a m édia proporcional entre o soberano e o Estado. Em outras palavras, o soberano está para o governo assim com o o governo está para a naçào. 0 primeiro dá ordens ao segundo, que as transm ite ao tercei­ro. A conexão entre esses três term os é tão estreita que um implica nos outros e nào pode variar sem provocar urna variação nos outros. Se, por exemplo, a população de uma nação for d e / vezes m aior que a de outra, o quinhào de cada cidadão na autoridade soberana será dez vezes m enor na prim eira naçào do que na segunda. Quanto maior essa distância entre a vontade individual e a vontade geral, de mais força o governo precisará para conter as divergências individuais. Mas quanto mais força o governo tiver, mais o soberano deve ter. Assim, dada a série S (soberano). G (governo) e P (povo), se P - 1 e se observarm os que S (razão duplicada) se tomou mais forte, pode­mos ter certeza de que o m esm o vale para Ci. De onde se segue que a constituição do governo é relativa ao tam anho do P.stado e que não há forma única e absoluta de organização de governo (III. 1).

A questão essencial sugerida pelas fés políticas reduz-se à se­guinte: quais são as diversas form as dc governo e a quais diferentes condições elas correspondem ?

Os governos sempre foram classificados dc acordo com o nú­mero de pessoas que participam deles; eis corno se distingue a dem o­cracia. a aristocracia e a monarquia. Rousseau não se contenta em repetir essa classificação tradicional. Ele tenta basear sua classifica­ção na natureza das sociedades e mostrar que essas diferenças nào

D a^ leis po líticas cm p a rticu la r 129

são superficiais, mas enraizadas no que há de mais essencial na ordem social.

Em prim eiro lugar, o núm ero de governantes é importante por­que a intensidade da força governamental depende diretamente dele. por duas razões: 1) O únieo poder que o governo tem é o que vem do soberano. Conseqüentem ente, seu poder não aumenta se a socieda­de perm anecer no m esm o nível. M as quanto m ais m em bros o gover­no tiver e quanto mais for obrigado a usar seu poder sobre seus próprios membros, m enos poder lhe restará para agir sobre o povo. Assim, quanto mais m agistrados houver, mais fraco será o governo. 2) De acordo com a ordem natural, as vontades individuais são as m ais ativas; a vontade geral tem sempre algo de mais frouxo e inde­ciso. justam ente por scr artificial. As outras vontades coletivas po­dem ser classificadas entre esses dois extrem os conform e seu grau de generalidade. Por outro lado. a ordem social pressupõe uma in­versão dessa relação, na qual a vontade geral tem prioridade sobre as outras. Assim, se o governo estiver nas màos de um único indiví­duo. a vontade geral do corpo governam ental, que se funde à vonta­de individual de uma pessoa, participa da intensidade desta e atinge uni nível máximo de energia. E com o do grau dc vontade depende não a magnitude, mas o uso do poder, a atividade do governo estará em seu máximo. O oposto é verdadeiro se houver tantos governan­tes quantos súditos, ou seja. se o poder executivo estiver unido com o poder legislativo (democracia), pois só restará, então, a vontade ge­ral com sua fraqueza natural (III. 2).

Vimos também que a força do governo deve aum entar com o tamanho do Estado. Disso advem que o número dc governantes de­pende do tamanho da sociedade e por isso, de forma mais gerai, que o núm ero de magistrados “deve ser em razão inversa ao dos cida­dãos” (111,3). Assim, a força do governo, determ inada pelo tamanho do órgào governamental, depende do tamanho do Estado.

M o n te sq u ieu c R ousseau

Definidos esses princípios, parcce haver nada mais a deduzir deles, exceto que l'o governo dem ocrático convém aos pequenos Estados, o governo aristocrático aos de tamanho médio e a monar­quia aos grandes”. É o que diz Rousseau (ibid.), mas ele nào se limita a essas conclusões. Em vez d isso, propõe-se a com parar os diversos governos para determ inar qual o melhor. Aliás, nào há contradição no problema que apresenta. C ada tipo de governo pode ser o melhor para um modo dc existência em particular. Rousseau está longe de adm itir que uma única forma pode ser apropriada a todos os países. No Livro IÍI. cap. 8, ele prova expressam ente o contrário (que nem toda forma de governo é apropriada para todos os países). M as por oulro lado, esses diferentes tipos de governo nào satisfazem igual­mente as condições ideais da ordem social. Quanto mais perfeita­mente o reino coletivo reflete (embora em forma totalm ente nova) as características essenciais do reino natural, mais perfeita será a ordem social. Os diversos tipos dc governo atendem a esse requisito básico dc diferentes maneiras. D adas as leis que relacionam a natu­reza de um governo à natureza da sociedade, podem os colocar a questão da seguinte maneira: Quais sào os limites normais da socie­dade para que ela seja a imagem mais fiel possível - em bora trans­formada - do estado de natureza?

Os princípios de Rousseau parecem perm itir apenas uma res­posta: é na dem ocracia que a vontade gerai dom ina as vontades indi­viduais do modo mais satisfatório. A democracia, portanto, é a forma ideal de governo. Hssc também c o ponto de vista de Rousseau, em bora o ideal lhe pareça hum anam ente inatingível. “Se houvesse um povo dc deuses, seu governo seria democrático. Um governo tào perfeito nào convém aos hom ens” (III. 4). I) N ào é aconselhável que a vontade geral seja aplicada regularm ente a casos individuais: essa prática poderia levar a confusões anormais e perigosas. 2) O exercicio do poder executivo é contínuo e nào é possível reunir

D as leis po líticas cm p a rticu la r 131

continuam ente o povo para tratar de negócios públicos. 3) Além disso, a dem ocracia pressupõe condiçòcs quase im possíveis, um Estado pequeno cm que todos se conhecem , cm que haja igualdade quase absoluta c cm que a m oralidade seja elevada, porque a baixa atividade da vontade geral facilita o aparecim ento de distúrbios. Rousseau diz, como M ontesquieu, que seu princípio é a virtude, mas em sua opinião isso é justam ente o que a toma impraticável (ibid.). Por razões opostas, a m onarquia lhe parece o pior regim e, já que em nenhum outro o indivíduo tem mais poder. () governo m onárquico é to n e porque tem as menores dim ensões possíveis. Pode facilmente frustrar a vontade geral. Entre esses extremos está a aristocracia, que tende ao ideal dem ocrático, mas é mais fácil de realizar. Por aristocracia ele se refere a uma sociedade em que o governo é for­m ado por um a minoria escolhida nela idade e pela experiência, ou por eleição. Ele ainda distingue, é verdade, um terceiro tipo de aristo­cracia, em que as funções de governo sào hereditárias, mas a consi­dera um a forma anormal e ainda inferior à monarquia.

Embora a com paração de Rousseau não deixe de se inspirar em M ontesquieu, suas conclusões sào bem diferentes das tiradas por seu predecessor, que preferia aquiío a que chamava monarquia. A razão para essa diferença reside em um a concepção diversa de sociedade. M ontesquieu concebia a sociedade cuja unidade não ape­nas nào excluía o particularismo dos interesses individuais, como já o supunha e resultava dele. Para ele, a harmonia social resultava da divisão de funções e do serviço mútuo. Havia elos diretos entre os indivíduos e a coesão do todo era apenas uma resultante de todas as afinidades individuais. M ontesquieu achava que essa comunidade cra bem representada pela sociedade m edieval francesa, com plem enta­da pelas instituições inglesas. Rousseau. por outro lado, acreditava que a vontade individual é hostil à vontade comum. “Em uni perfeito ato de legislação, a vontade individual ou particular deve ser nula” (111.

132 M o n te sq u ieu c R ousseau

2). 0$ cios entre indivíduos devem ser reduzidos a um mínimo. "A relaçào social (de que traiam as leis) c a dos m em bros entre si ou com o corpo inteiro; e essa relaçào deve ser, no prim eiro caso. tào pequena, e no segundo tào grande quanto possível. Cada cidadão seria então perfeitam ente independente de todos os outros e ao mes­mo tempo muito dependente da cidade" (II, 12). Pois é dessa m anei­ra que a sociedade im itará m elhor o estado dc natureza em que o indivíduo nào tem laços com outros e depende apenas dc uma força geral, a natureza. Essa cocsào é possível apenas em uma nação que se estenda por um a área nào m uito grande, em que a sociedade esteja presente por toda parte e em que as condições de existência sejam muito sem elhantes para todos. Em uma grande nação, por outro lado, a diversidade dc grupos multiplica as tendências individu­alistas. Cada pessoa tende a perseguir seus interesses particulares c. conseqüentemente, a unidade política só pode ser mantida com um go­verno tào fone que substitua a vontade geral e degenere em um despo­tismo (II. 9). 0 mesmo vale para a exclusão de grupos secundários.

Toda essa teoria dc governo se baseia em um a contradição. Dado seu princípio fundamental. Rousseau pode aceitar apenas uma sociedade em que a vontade geral seja a senhora absoluta. Toda­via. em bora a vontade governam ental seja individual, ela representa um papel essencial no Estado. Na verdade, "o governo (existe) ape­nas por meio do soberano" (111, 10): “sua força é apenas a força pública concentrada em suas m ãos" {ibid.). Em principio, ele deve apenas obedecer. Nào obstante, uma vez estabelecido, é capaz de uma ação própria. Precisa de “um eu particular, uma sensibilidade co­mum a seus membros, uma força, uma vontade própria que lenda à conservação” {ibid.). £ uma am eaça constante, mas é indispensável. Assim, há uma tendência a reduzi-lo ao mínimo e ao mesmo tempo o sentimento de sua necessidade. Isso explica a solução média adotada

D as leis p o líticas cm p a rticu la r

por Rousseau ao pôr a aristocracia acima de todos os outros tipos de governo.

O governo c um elem ento tào adventício na ordem social que as sociedades só morrem por serem governadas. O governo é seu elem ento corruptível e corruptor. Em virtude dc sua natureza, ele “ faz um esforço continuo contra a soberania" (III. 10). Corno nào hà outra vontade individual forte o bastante para contrabalançar a do príncipe e como a vontade geral sofre de um a fraqueza constitucio­nal. o poder governam ental, cedo ou tarde, ficará por cima. Essa é a ruína do estado social. “Eis a falha inerente e inevitável que. desde o nascim ento do corpo politico. tende incessantem ente a destruí-lo" (III, 10), a causa única da deterioração gradual que necessariamente eausa sua morte. Esse estado m órbido pode se realizar de duas ma­neiras. Ou. sem qualquer m udança nas condições gerais do Estado, o governo fica mais concentrado e adquire assim um a força que nào tem relaçào com as dim ensões da sociedade, ou entào o governo, como um corpo, usurpa o poder soberano, ou os m agistrados, como indivíduos, usurpam o poder que deveriam exercer apenas como cor­po. No primeiro caso. o vínculo orgânico entre o governo e o povo é rompido: a associação se desintegra e nada resta além de um núcleo composto dos membros do governo. Eles constituem, entào. por si mesmos, um tipo de Estado, mas um Estado cuja única relaçào com a massa dc indivíduos é a de mestre e escravo. Pois uma vez que o acordo c quebrado, a obediência dos súditos só pode ser mantida pela força. No segundo caso, o Estado se desintegra porque tem muitos líderes como governantes e porque a divisão do governo ne­cessariam ente se com unica ao Estado. Esse segundo tipo de desin­tegração nasce da substituição da vontade geral do corpo executivo pela vontade pessoal de cada magistrado, assim como o primeiro tipo resulta da substituição da vontade geral do corpo político pela vonta­de geral do corpo governam ental (ibid.).

134 M o n ie sq u icu e R ousseau

A existência dc um govem o está cm contradição tão aguda com os princípios gerais de filosofia social dc Rousseau que mesmo sua gênese é difícil de explicar. A vontade geral, que c a fonte de toda autoridade, pode tratar apenas dc assuntos gerais; scnào. deixa de ser cia mesma. Ela pode decidir então a forma geral de governo. M as quem deve designar os líderes? Essa operação é um ato parti­cular e, portanto, da alçada do govem o, o qual, justam ente, deve ser constituído. Rousseau reconhece esse problema; kiA dificuldade é entender com o é possível haver um aro de govem o antes que o go­verno exista” (111, 17). Ele não o resolve, m as o contorna. O corpo poiítico, diz. é transform ado “p o r uma conversão súbita”, de sobera­no que era em govem o. Conseqüentem ente, realiza atos particulares em vez de atos gerais. Esse aspecto duplo do corpo de cidadãos, que ora é poder legislativo, ora poder executivo, é característico da de­mocracia. Em outras palavras, a democracia, logicamente falando, foi um fator necessário na gênese de todos os governos. A pesar dc alguns exemplos tirados da história do parlam ento inglês, nos quais Rousseau pensa encontrar transm utações desse tipo. é difícil não considerar seu procedimento artificial. E essa objeção pode ser gene­ralizada. Dissemos que todos os governos, tendo caráter individual, sào contraditórios à ordem social, e que. conseqüentem ente, a única forma política livre de contradição c a dem ocracia, já que a vontade governamental em uma dem ocracia é reduzida a nada e a vontade geral ê onipotente. Mas. por outro lado, também se pode dizer que. no sistem a de Rousseau. a dem ocracia também c autocontraditória, pois a vontade geral pode se m anifestar apenas ao aplicar-sc a casos particulares. Pressupõe-se. assim, que ela nào é o governo. Nào fica claro por que a incom petência em todas as questões particulares, atribuídas a ela por princípio, desaparece apenas porque o corpo po­lítico passa a ser chamado de “govem o” e nào m ais de "sobcrano '\ Essa antinom ia vem da concepção geral de soberano como outro

D ss leis po líticas em p a rticu la r 135

aspecto do povo. Fica claro que nào há lugar para um interm ediário entre dois aspectos da m esm a realidade. Por outro lado, porém, a vontade geral, por falta de um intermediário, perm anece confinada cm si mesma, ou seja. pode m over-se apenas em um a esfera de universais sem se expressar concretam enle. Essa m esm a concepção c conseqüência do fato de que Rousseau vê apenas dois pólos da realidade humana: o indivíduo abstrato e geral, que c o agente e o objetivo da vida social, e o indivíduo concreto e em pírico, que é o antagonista de toda existência coletiva. F.le nào percebe que. em bo­ra em um sentido os dois pólos sejam irreconciliáveis, o primeiro, sem o segundo, nào passa de uma entidade lógica.

Seja como for. uma vez que o único perigo vital para a socieda­de reside nas possíveis usurpaçoes por parte do govem o. o principal objeto da legislação deve scr evitá-las. Assem bléias do povo devem, portanto, ser reunidas com a m aior freqüência possível e com regu­laridade. sem que o governo precise convocá-las (caps. 12- i 5 e i 8). Essas assembléias devem ser com postas pelo próprio povo e não por representantes. A autoridade legislativa nào pode ser delegada, as­sim como nào pode ser alienada. Leis são leis apenas se forem ex­pressam ente desejadas pela sociedade reunida (TTI. 15). M as essas medidas nào sào as únicas que Rousseau ju lga necessárias. Ele indi­ca outras a respeito das maneiras de inferir a vontade geral a partir do sufrágio (IV, 3) e a contagem de votos nas assembléias do povo (IV. 4). Ele também defende certas instituições, com o o tribunal, cuja funçào é proteger a soberania contra o abuso da autoridade gover­namental (IV, 5), a censura, cujo dever é defender as morais e os costum es essenciais à estabilidade social (IV, 7) e a ditadura, que é invocada nas situações imprevistas (IV, 6). Nào é preciso entrar nes­ses deialr.es de organização, em prestados na m aior parte de Roma, um a circunstância que prova novam ente que o regime da eidade- estado é de fato aqueie ao qual Rousseau se propõe a construir uma base teórica.

136 M ontesq u i v u c R o u ç s e a u

Mas um hábil mecanismo constitucional nào basta para assegu­rar a coesão social. Como esta resulta principal mente de um acordo espontâneo de vontades, ela nào e possível sem uma certa comunhão intelectual. No passado, essa comunhão resultava naturalmente do fato de que cada sociedade tinha sua religião, que era a base da ordem social. As idéias c os sentimentos necessários ao funcionamento da sociedade eram postos sob a proteção dos deuses. O sistem a politico tam bém era teológico. F. por isso que cada Estado linha sua religião c nào era possível ser m em bro d c um Estado sem praticar sua reli­gião.

O Cristianismo introduziu um a dualidade em que só havia e só deveria haver unidade. Ele separou o temporal e o espiritual, o teoló­gico e o politico. O resultado foi um desm em bram ento da autoridade soberana. Entre os dois poderes opostos, assim estabelecidos, surgi­ram conflitos perpétuos que impossibilitavam uma boa administração do Estado. Rousseau rejeitava a doutrina dc Bayle, segundo a qual a religião c inútil ao Estado (Pensamentos diversos escritos a um doutor da Sorbonne, escritos por ocasião do aparecim ento de um cometa cm dezem bro de 1680). “A força" que ;ias leis têm em si m esm as" nào lhe parece suficiente (IV, 8). “Cada cidadào deve ter uma religião que o faça am ar seus deveres" (ibid.). Mas ele tam ­bém nào admite a teoria proposta por Warburton cm A Aliança en­tra Igreja e Estado (Londres. 1742), de acordo com a qual o Cristia­nismo é o mais forte apoio do corpo politico. A religião crisià, “ longe de iigar o coração dos cidadãos ao Estado, separa-o dele assim como de todas as coisas da Terra" (Pensamentos diversos). É, portanto, necessário estabelecer um sistem a de crenças coletivas sob a d ire ­ção do Estado, e apenas dele. Esse sistema nào deve tentar reprodu­zir o que havia na base das antigas cidades-estado, pois nào se trata de voltar àquele ponto, uma vez que ele era falso. Um retom o ao passado nào apenas é impossível com o desnecessário. Necessário é

D as lci> políticas em p a rticu la r 137

que o cidadão tenha um a razào religiosa para cum prir o seu dever. Conseqüentemente, os únicos dogm as que devem scr impostos em nome do Estado sào os que se relacionam à ética. Tirando isso. todos devem ser livres para professar as opiniões que desejarem. O corpo político nào precisa se preocupar com essas opiniões porque nào é afetado por elas. As próprias razões pelas quais ele deve intervir na esfera espiritual m arcam os limites dessa intervenção. Em outras palavras, embora uma religião civil seja necessária para afirm ar inte­resses civis, sua autoridade nào deve se estender senão na medida exigida por esses interesses.

Rousseau conclui que a separação ilógica e anti-social entre poder espiritual e tem poral deve ser eliminada, e que a religião do Estado deve ser reduzida aos poucos princípios necessários para re­forçar a autoridade da m oral. Esses princípios sào os seguintes: a existência de Deus, a vida futura, a santidade do contrato social e das leis. a absoluta proibição de qualquer intolerância cm assuntos nào incluídos no credo social. O Estado nào deve tolerar qualquer religião que não tolere outras religiões. Apenas o Estado pode excluir de seu corpo m em bros que julga indignos. Nenhuma religião deve dizer que não há salvação fora dela.

Conclusão

Estamos agora em posição de ju lgar da perfeita continuidade do pensamento de Rousseau desde o Segundo Disc uno ate o Con­traio Social. O estado de natureza. tal como c descrito no prim ei­ro. é um tipo de anarquia pacífica cm que os indivíduos, independen­tes uns dos outros c sem vínculos que os unam. dependem apenas da força abstrata da natureza. No estado civil, como visto por Rousseau. a situação é a mesma, embora sob uma form a diferente. Os indiví­duos não estão conectados uns aos outros; há um m ínim o de relação pessoal entre eles. mas dependem de um a nova forca, que e sobre­posta às forças naturais mas tem a mesma generalidade e necessi­dade; a vontade geral. No estado de natureza, o homem se submete voluntariamente ãs forças naturais e espontaneam ente toma a dire­ção que elas impõem porque sente instintivam ente que não há nada melhor a fazer e que aquilo é de seu interesse. Sua ação coincide com sua vontade. N o estado civil, ele se subm ete à vontade geral não m enos livremente porque essa vontade geral é sua obra c porque ao obedecê-la ele obedece a si mesmo.

Aqui podemos ver as sem elhanças e diferenças entre Rousseau e seus dois predecessores, Hobbes e M ontesquieu. Para os três pen­sadores. a sociedade c algo acrescentado à natureza. Na opinião de M ontesquieu. as leis do estado de natureza sào distintas das do esta­do social, que são sobrepostas àquelas por um ato deliberado do le­gislador. .Vias embora haja acordo sobre esse ponto fundamental, há

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M o n tesq u icu e R oussoau

profundas diferenças no modo como os três filósofos concebcm o reino que o homem acrescenta ao restante do Universo.

Segundo o ponto de vista de Ilobbes, a ordem social é gerada por um aro de vontade e sustentada por um ato de vontade que deve ser constantemente renovado. A s sociedades se formam porque os homens se subm etem voluntariam ente a um soberano absoluto para evitar os horrores do estado de guerra e sào m antidas porque o sobe­rano evita que se dissolvam. F. e le quem faz 2 lei. e a subm issão dos homens à vontade de seu soberano é 0 que constitui 0 vínculo social. F.le deve ser obedecido porque comanda. Se aceitam sua dependên­cia. sem dúvida, é porque ju lgam proveitoso fazê-lo, mas isso nào explica todos os detalhes da organização social. U m a vez que o Esta­do tenha sido estabelecido, é 0 chefe de Estado quem faz a lei, sem aceitar controle sobre seu poder. A visão de M ònlesquicu era bem diferente. Em bora apenas um legislador possa estabelecer a lei. ele não pode prom ulgar qualquer lei que lhe agrade. Uma lei apropriada deve estar de acordo com a natureza das coisas. Tanto quanto possí­vel. a boa lei nào resulta de ação arbitrária, mas é determ inada pelas condições dom inantes na sociedade. Esse pode nào ser 0 caso. mas então a lei será anormal. Rousseau talvez seja ainda m ais categórico sobre esse ponto. O sistema social baseia-se em uma harmonia obje­tiva rie interesses, no estado da opinião pública, nos modos e nos costumes. As leis necessariam ente expressam esse estado de coisas. A vontade geral não pode ser representada por um indivíduo, pois ela transcende a vontade individual. As duas sào incompatíveis e uma nào pode substituir a outra. O substrato natural da opinião pú­blica está no todo e nào em uma parte. A intenção de Rousseau nào é tanto armar o soberano de um poder coercivo suficiente para superar a resistência, quanto m oldar o espirito dos hom ens de tal modo que a resistência não ocorra.

Em bora os três pensadores concordem que 0 social e 0 indivi­dual sào heterogêneos, observam os um esforço crescente para enrai­zar o ser social na natureza. M as é aí que reside o ponto fraco do

C onclusão

sistem a. Ao passo que. com o m ostram os, a v ida social para Rousseau não é contrária à ordem natural, ela tem ião pouco em com um com a natureza que podem os nos perguntar com o ela c possível. Rousseau diz. cm algum lugar, que o respeito pela autori­dade do legislador pressupõe um certo espirito social. Mas sua obser­vação sc aplica ainda m ais ao estabelecim ento de um a sociedade. Se. todavia, um a sociedade for formada por indivíduos isolados, no eslado aíôm icc. nào se percebe de onde ela pode vir. Talvez, se Rousseau admitisse um estado de guerra como o de Uobbes. pu­déssemos entender por que. com o fito de acabar com ele. os ho­mens se organizaram em um corpo e chegaram mesmo ao ponto de rem odelar sua natureza original. M as ele nào pode levar adiante essa explicação porque, a seu ver, o estado de guerra c um resulta­do da vida em comum. E assim com o ele nào consegue explicar por que a vida social, mesmo em suas formas históricas imperfeitas, pôde surgir, tem grande dificuldade para m ostrar como ela poderia livrar-se de suas im perfeições e se estabelecer sobre uma base lógica. Seus alicerces na natureza das coisas sào tào instáveis que ela aparece como uma estrutura cambaleante, cujo delicado equilí­brio pode ser estabelecido e mantido apenas por um a conjunção quase m iraculosa de circunstâncias.

L e it u r a R ecomendada

0 C ó D IC O D E

H a m m u r a b i

Escrito em cerca ds 1 7 8 0 a. C.Lccr.crd Willtam Kiiig

O CvríigO tlc Hrtinmuritbi e u i i5 « ~ o :'e lc ;s c s ta w « id 2s por H am niirabi c l j j iU í o ssru

Ti::r-ndo n a 3al)ilnnia. m :rc . ?ÍS r ' 750 a.C . Ksic Cí>:ii>;n. que regulava em linhas eíarv-s e definida.-» a sociedade r.n A ntiguidade, ê a tu a l'- iitro . pois rc-5' sui 2S2 artigos rcconhcec.-nlo Institutos D ireito atunis. deniic csies o õ : P iopnedade. ?cnlx:m , S u ­cessões. Família. S rrr com o norm as de protcçãii ;io consum idor. 3 i quais. n - e r í s rcceriitrrncntc. fora™ inseridas r<> Si:-:cnia Juríd ico do Brasil.

R o m a e o Drnr.noMithZlc Ducos

0 objetivo ceste :i \ :i> c ir r - tarcom piLvix!?ro sistem a Ud Hircito Roív.arm as tblUCS ü'.ic o deíinem . a au lw » fcusca disiinvia.- as difcier.ics eate-

p.jc r ia i . e n rro resso as , hens. •contratos. nsas n s is te . ainda, sobre a tViojofia dc Direito, j x j í s Roma nâo nos •?- g ç i r r e r a s conceitos. mas tamljcm um a impo.-tativj reftuvfto sobre c- D ireilo. cuja infiu£ne:a s? fezsciü.i poi muito tzmp-y.

Dos Df.u ms e

d a s P e n a s

Coar-: Hitcaritr

T ransco rridos apiy.xim ada- u is r i? do is sécu lo s ç m e io . D o s D efilt/.i r d a s Pe-:;t • co m inua u n a ciIjri v ig o ro ­

sa C d ire ta no m e lh o r sen tid o do te rm o . Tem va ;o r liis ió rico . lóg ico s va le com o ad v e rtên c ia con tra <is in ju stiça s e os ju lg a m e n to s ap ressa dos ç superfic ia is .

M e d i t a ç õ e s

( ' a r t e s i a n a s

I ntrodução a FeftomenoLo^ia

Edmuiul Huissrl

listo c um a obra c n que o lei­to r lrr,i un ia O p»rli:n:dadc im par i‘.<! observar a ap!ic.iv.io sistcmaiiea <!" un* nic:ot!:uU- liioso íarc a honestida­de intelectual <!<r um dos maiores filósofos do século pa<«i00c.sc;ri:!:iv:ca.umdr>'irrarv0sd£rcvi.-.:%<,>lt3 niosóiica eu e ainda -rossegue irmtivsTido o nosso pensar

m e d i i a c õ e >CaRTí-SIaNAít£3£&c .i <l>if.LVí.ví\

EíV-imií Hiãsai * •

N i e t z s c h e , o P r o e e t a d o N a z i s m o

0 Culto do Sufirr-H om em - Revelando a Doutrina

Abir Taka

Este iivm analisa profundam ente a influência de N iet/sche sobre a iikologia naásta. concentrando-ss em com o os rw is tú ; se am ip ra ran i da maiorin doseonevitos e ideais nictsscKí-nianos ::a.-u adequá-los à s;ia própria doutrina. A autora traçn uma clara<lisi:r. • ç so entie a doutrina esotérica nazista - i;;ie e elitista, supranacional c c ^ ir ia ia ’. - c a d-.yjirinaexocít ica p t^ j la r nae ioaatista. Com üm i. d a pr«cnde«stabe]cccr tuna retaçào

ciitre a doajinaM xre».- nazista c = l i iw o fa d c N tetrsche. « v d a n d o Mnto o caráter oculto do N ansm o Esotêieo c o n » o Annnism o pavãn de N ietüC lit.

NIETZSCHE,fl Fmfw M NJ2MK o wuo »

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Oavid É m i lc D u r k h e i mnasceu na França em 1858.K considerado o principal fundador da Sociologia mod

Em sua adolescência, Durkheim pôde testemunhar inúmeros acontecimentos marcantes na História, além de conviver com intelectuais brilhantes.

Filho de rabino-çhefe, preparou-sc para o bacharelado no Lycée Louis-le-Grand, o que lhe permitiu entrar para a Ecole Normale Supérieure, em 1879.

Em 1872, tornou-se professor adjunto de Filosofia, ministrando essa disciplina em vários liceus da província, quando se interessou pela Sociologia. Foi para a Alemanha a fim de aperfeiçoar seus estudos, onde se deparou com o trabalho de sociólogos como Max Weber.

division d u t rav a i l social1'p u b lic a d a cm 1893,alcançou g ran d e_________

z , , repercussão, chegando a ser. . .reeditada.

Em Paris, foi nomeado a assistente na cadeira de Ciências da Educação da Sorbonne, em 1902, e, em 1906, com a morte do titular, assumiu como catedrático. Em 1910, conseguiu transformá-la em cátedra dc Sociologia, consolidando o status acadêmico dessa nova disciplina na maior instituição universitária francesa. Suas aulas eram acompanhadas por muitos ouvintes, tornando-se um evento de grande importância.

No fim dc 1916, muito doente, não teve condiçdcs de prosseguir em suas pesquisas, vindo a falecer em 15 de novembro de 1917, na cidade de Paris.

F ilo so fia

FIE - fl}3C0IC2CÍÇJ 00

En/LEftONTESOUl n l E H<

fldermit. m t o n b

Assim que nascemos. somos inseridos em uma sociedade com regras preestabelccidas, em que a conduta e. muitas vezes, as idéias e os pensamentos são preconcebidos na mentalidade coletiva. A maneira pela qual estamos habituados a agir foi esboçada por Montesquieu. Segundo ele, faz-se necessária uma organização; as sociedades não estão organizadas a esmo, e essa esfera do universo é governada por leis.

No entanto, essa mesma sociedade, que determina a posição do indivíduo como cidadão no seu meio social, pode, na visão de Kousseau, alterá-lo, pois “o homem nasce bom e a sociedade o corrompe*.

Poderíamos dizer, baseando-se no legado de ambos, que ao mesmo tempo que essas normas facilitam a convivência entre os indivíduos, fere-os em sua liberdade individual c em sua pureza inata.

A fim de estreitar essa dicotomia, Durkhcim discorre sobre o pensamento de Montesquieu e Rousseau, abordando os assuntos concernentes à Ciência Social, tais como moralidade, religião, vida econômica, família, etc., que são inerentes a essa sociedade e que fazem parte, ainda que não Jàmxhaiuos, de nossa relação com o mundo.