MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo - De Onde Vem, Para Onde Vai

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    Neoliberalismo - de onde vem, para onde vai?,

    Reginaldo C. Moraes

    Texto integral do livro publicado pela editora Senac, S. Paulo, em 2001.

    Foram retiradas as ilustraes e alterada a diagramao, produzidas pela editora.

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    Sumrio

    Introduo

    O liberalismo clssico

    Neoliberalismo o que e de onde vem

    Modelos tericos e orientaes polticas

    Mtodos e pressupostos da public choice

    Neoliberalismo e bens pblicos

    Polticas sociais, polticas pblicas qual o lugar dessas coisas?

    Os neoliberais... por eles mesmos

    Os neoliberais... e seus crticos

    Reflexes crticas e algo trgicas a respeito de um futuro sempre possvel

    Cronologia

    Glossrio

    Sugestes de leitura

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    Introduo

    O que o neoliberalismo? De onde

    surge? O que pretende? Quem o defende?

    Quem o critica?

    Este livro procura oferecer algumas

    respostas para perguntas como essas. Desde

    logo porm preciso deixar claro que volta e

    meia o leitor encontrar aqui termos com

    significados prximos. Por exemplo: liberais,

    ultraliberais, neoliberais, neoconservadores,nova direita. Estes rtulos aproximam-se

    muito, porque os liberais contemporneos so

    herdeiros de duas tradies ideolgicas que se

    foram fundindo durante o sculo XIX: o

    pensamento liberal e o pensamento

    conservador. O neoliberalismo econmico de

    nossos dias adota pontos de vista polticos que

    em sua grande parte foram formados pelos

    conservadores do sculo XIX.Outro aviso, antes de comear a leitura.

    Quando se utiliza a expresso "liberal" no

    continente europeu, o que se tem em vista

    aquele pensador ou politico que defende as

    idias econmicas do livre mercado e critica a

    interveno estatal e o planejamento. So

    aqueles que se opem ao socialismo, social-

    democracia, ao Estado de bem-estar social.

    Mas a palavra "liberal" nos Estados Unidos

    quer dizer quase o contrrio: ela se aplica

    principalmente a polticos e intelectuais

    alinhados com o Partido Democrata e que

    apiam a interveno reguladora do Estado e

    a adoo de polticas de bem-estar social,

    programas que os neoliberais recusam.

    De qualquer modo, o termo

    neoliberalismo leva a vrios significados:

    1. uma corrente de pensamento e uma

    ideologia, isto , uma forma de ver e

    julgar o mundo social;

    2. um movimento intelectual organizado,

    que realiza reunies, conferncias e

    congressos, edita publicaes, cria think-

    tanks, isto , centros de gerao de idias

    e programas, de difuso e promoo de

    eventos;

    3. um conjunto de polticas adotadas pelos

    governos neoconservadores, sobretudo a

    partir da segunda metade dos anos 70, e

    propagadas pelo mundo a partir das

    organizaes multilaterais criadas pelo

    acordo de Bretton Woods (1945), isto ,

    o Banco Mundial e o Fundo MonetrioInternacional (FMI).

    Mas todos esses significados tm uma

    coisa em comum: sugerem o retorno a um

    modelo ideal. Em primeiro lugar, retomam,

    atualizam e propagam os valores do

    pensamento liberal e conservador dos sculos

    XVIII e XIX. Em segundo lugar, tambm

    pregam a volta a uma forma de organizaoeconmica que teria vigorado, por pouco

    tempo, no meio do sculo XIX (com o livre-

    cambismo imposto pela Inglaterra) e no perodo

    de 1870-1914, a fase mais "globalizada" da

    economia mundial, com a livre circulao de

    capitais e mercadorias, no regime monetrio do

    chamado padro ouro. Desse modo, o

    liberalismo clssico foi em certa medida a

    ideologia do capitalismo comercial e

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    manufatureiro em expanso - e um ataque s

    regulaes polticas produzidas pelas

    corporaes de ofcio e pelo Estado

    mercantilista. Pode-se dizer que o

    neoliberalismo, de modo semelhante, a

    ideologia do capitalismo na era de mxima

    financeirizao da riqueza, a era da riqueza

    mais lquida, a era do capital voltil - e um

    ataque s formas de regulao econmica do

    sculo XX, como o socialismo, o

    keynesianismo, o Estado de bem-estar, o

    terceiromundismo e o desenvolvimentismo

    latino-americano.

    Para entender o neoliberalismo

    preciso, inicialmente, registrar quais so as

    idias mestras do liberalismo clssico e contra

    quem elas se movem: as instituies

    reguladoras do feudalismo, das corporaes de

    ofcio e do Estado mercantilista. E o que

    faremos no captulo O liberalismo clssico.

    Depois, simetricamente, poderemos

    compreender melhor as idias centrais do

    neoliberalismo. Veremos tambm, nos captulos

    seguintes at o captulo Polticas sociais,

    polticas pblicas, os inimigos contra os quais o

    neoliberalismo se volta, as formas de regulao

    econmica do sculo XX: o Estado keynesiano,

    os sindicatos e as polticas de bem-estar social

    nos pases desenvolvidos, o Estado

    desenvolvimentista e a chamada democracia

    populista nos pases subdesenvolvidos.

    Depois de expor as idias e a histria do

    neoliberalismo, selecionamos para o leitor, nos

    captulos Os neoliberais... por eles mesmos e

    Os neoliberais... e seus crticos, algumas

    passagens exemplares de seus defensores e

    crticos. Finalmente, no captulo de concluso,

    delineamos um balano mais pessoal e

    posicionado dos valores e das polticas

    neoliberais.

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    O liberalismo clssico

    A pedra fundamental do liberalismo costuma

    ser identificada com Adam Smith, mais

    especialmente com a publicao de A riqueza

    das naes, em 1776 com certeza um dos

    livros mais reeditados e citados dos tempos

    modernos.

    Smith afirma que o mundo seria melhor

    mais justo, racional, eficiente e produtivo

    se houvesse a mais livre iniciativa, se as

    atitudes econmicas dos indivduos e suas

    relaes no fossem limitadas por regulamentos

    e monoplios garantidos pelo Estado ou pelas

    corporaes de ofcio. Prega a necessidade de

    desregulamentar e privatizar as atividades

    econmicas, reduzindo o Estado a funes

    definidas, que delimitassem apenas parmetros

    bastante gerais para as atividades livres dos

    agentes econmicos. So trs as funes dogoverno na argumentao de Smith: a

    manuteno da segurana interna e externa, a

    garantia da propriedade e dos contratos e a

    responsabilidade por servios essenciais de

    utilidade pblica.

    Segundo a doutrina liberal, a procura do

    lucro e a motivao do interesse prprio so

    inclinaes fundamentais da natureza do

    homem. Elas estimulam o empenho e oengenho dos agentes, recompensam a

    poupana, a abstinncia presente, e remuneram

    o investimento. Alm disso, premiam a

    iniciativa criadora, incitando ao trabalho e

    inovao. Como resultado, cria-se um sistema

    ordenador (e coordenador) das aes humanas,

    identificadas com ofertas e demandas mediadas

    por um mecanismo de preos. Esse sistema

    social revelaria de modo espontneo e

    incontestvel as necessidades de cada um e de

    todos os indivduos. O sistema tambm

    indicaria a eficcia da empresa e dos

    empreendedores, sancionando as escolhas

    individuais, atribuindo-lhes valores negativos

    ou positivos. Alis, em 1789, Bentham faria

    esta declarao lapidar: "A livre concorrncia

    equivale a uma recompensa que se concede

    queles que fornecem as melhores mercadorias

    pelos preos mais baixos. Ela oferece uma

    recompensa imediata e natural, que uma

    multido de rivais alimenta a esperana de

    conseguir, e atua com maior eficcia que um

    castigo distante, do qual cada um talvez espere

    escapar".

    As virtudes organizadoras e

    harmonizadoras do mercado so sintetizadas

    por Smith:

    Assim que os interesses e os

    sentimentos privados dos indivduos os

    induzem a converter seu capital para as

    aplicaes que, em casos ordinrios, so as

    mais vantajosas para a sociedade [...]. Sem

    qualquer interveno da lei, os interesses e

    os sentimentos privados das pessoas

    naturalmente as levam a dividir e distribuir ocapital de cada sociedade entre todas as

    diversas aplicaes nela efetuadas, na

    medida do possvel, na proporo mais

    condizente com o interesse de toda a

    sociedade.''1

    1Adam Smith,A riqueza das naes - investigaosobre sua natureza e suas causas, vol. 2 (So

    Paulo: Abril Cultural, 1983), p. 104.

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    Para batizar esse aparente milagre,

    Smith cunhou uma expresso que ficaria

    famosa: a sua "mo invisvel" do mercado

    tornou-se a frmula preferida dos economistas

    liberais. Segundo suas palavras, o novo sistema

    seria bvio e simples, ainda que, ao longo da

    histria, tivesse encontrado tantas dificuldades

    para se afirmar:

    [...] uma vez eliminados inteiramente

    todos os sistemas, sejam eles preferenciais

    ou de restries, impe-se por si mesmo o

    sistema bvio e simples da liberdade natural.

    Deixa-se a cada qual, enquanto no violar as

    leis da justia, perfeita liberdade de ir em

    busca de seu prprio interesse, a seu prprio

    modo, e fazer com que tanto seu trabalho

    como seu capital concorram com os de

    qualquer outra pessoa ou categoria de

    pessoas.

    2

    Em 1817, David Ricardo generalizaria o

    argumento de Smith, estendendo-o para o

    conjunto da sociedade pensada. em termos

    internacionais. As virtudes da diviso social do

    trabalho ganham a forma mais ampla da

    doutrina das "vantagens recprocas" resultantes

    de uma especializao natural dos pases nessa

    diviso do trabalho:

    Num sistema comercial perfeitamente

    livre, cada pas naturalmente dedica seu

    capital e seu trabalho David Ricardo

    atividade que lhe seja mais benfica. Essa

    busca de vantagem individual est

    admiravelmente associada ao bem universal

    2

    Ibid.,p.47.

    do conjunto dos pases. Estimulando a

    dedicao ao trabalho, recompensando a

    engenhosidade e propiciando o uso mais

    eficaz das potencialidades proporcionadas

    pela natureza, distribui-se o trabalho de

    modo mais eficiente e mais econmico,

    enquanto pelo aumento geral de volume de

    produtos difunde-se o benefcio de modo

    geral e une-se a sociedade universal de todas

    as naes do mundo civilizado por laos

    comuns de interesse e de intercmbio. Este

    o princpio que determina que o vinho seja

    produzido na Frana e em Portugal, que o

    trigo seja cultivado na Amrica e na Polnia,

    e que as ferramentas e outros bens sejam

    manufaturados na Inglaterra.3

    Mais uma vez afirma-se que o mercado

    o melhor caminho para gerar eficincia,

    justia e riqueza. Eficincia, porque propicia o

    uso mais eficaz das potencialidadesproporcionadas pela natureza, distribui o

    trabalho de modo mais econmico. Justia,

    porque estimula a dedicao ao trabalho e

    recompensa a engenhosidade. E riqueza, j que,

    pelo aumento de volume de produtos, difunde-

    se o beneficio. Os resultados da liberdade

    econmica so a paz e a harmonia

    internacional.

    Contra quem lutam os pais fundadoresdesse liberalismo? Quais so os obstculos que,

    na sua opinio, impedem a efetivao do

    "sistema de liberdade natural", que eles

    acreditavam ser to evidentemente vantajoso

    3 David Ricardo, Princpios de economia

    poltica e tributao (So Paulo: Abril,

    1982), p. 104.

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    para todos, mas to difcil de realizar-se na

    histria dos pases que examinavam? Quem

    teimava em regulamentar a livre iniciativa de

    modo to visivelmente irracional, impedindo a

    emergncia de indivduos criativos e

    empreendedores? Adam Smith descreve esse

    sistema de restries e ordenamentos e aponta

    os responsveis pela sua manuteno:

    E dessa forma que todo sistema que

    procura, por meio de estmulos

    extraordinrios, atrair para um tipo

    especfico de atividade uma parcela de

    capital da sociedade superior quela que

    naturalmente para ela seria canalizada, ou

    ento que, recorrendo a restries

    extraordinrias, procura desviar

    foradamente, de um determinado tipo de

    atividade, parte do capital que, caso

    contrrio, naturalmente seria para ela

    canalizada, na realidade age contra o grandeobjetivo que tenciona alcanar. Ao invs de

    acelerar, retarda o desenvolvimento da

    sociedade no sentido da riqueza e da

    grandeza reais e, ao invs de aumentar,

    diminui o valor real da produo anual de

    sua terra e de seu trabalho.4

    A argumentao de Smith clara. Para que o

    mundo seja mais livre, justo e rico, necessrioque a disciplina annima e invisvel da

    concorrncia substitua a disciplina visvel das

    hierarquias arcaicas. E onde esto essas

    hierarquias perniciosas? So as obrigaes

    tradicionais e personalizadas das instituies

    medievais, os regulamentos das corporaes de

    ofcio e as leis do Estado mercantilista. Smith

    4 [Adam Smith, cit., pp. 46-47.]

    elogia a virtuosa mo invisvel do mercado

    contra a viciosa mo visvel do poder poltico.

    Portanto, os inimigos do progresso, na

    viso liberal, so facilmente identificveis: os

    regulamentos estatais - mais especificamente, a

    poltica econmica dirigista do mercantilismo -

    e as corporaes. So exemplos desse tipo de

    entrave os regulamentos sobre materiais,

    tcnicas, preos e monoplios, mo-de-obra

    (como, na Inglaterra, a Lei dos Aprendizes, de

    1563; as Leis dos Pobres, unificadas em 1601

    pela rainha Elizabeth; e a Lei do Domiclio, de

    1662). Notemos portanto que o pensamento

    liberal nasce, fundamentalmente, como uma

    negao de outro mundo, como outro sistema

    de valores e idias. Pelo menos uma em cada

    quatro pginas deA riqueza das naes

    dedicada crtica do mercantilismo.

    Os entraves mercantilistas

    Frana e Inglaterra so os exemplos

    mais acabados dessa regulamentao e, por isso

    mesmo, os mais condenados pela crtica liberal

    nascente.

    Quem l o clssico livro de Mantoux

    sobre a Revoluo Industrial na Inglaterras

    encontra um bom retrato: a histria econmica

    dos sculos XVII e XVIII seria caracterizada

    pela tutela dos poderes pblicos sobre aindstria, "um regime estabelecido pelo

    costume e consagrado pela lei".5

    Alguns regulamentos e leis teriam

    sobrevivido, com ligeiras mudanas, desde a

    Idade Mdia, como o controle minucioso (e

    5Paul Mantoux, A Revoluo Industrial no sculoXVIII - estudo sobre os primrdios da grandeindstria moderna na Inglaterra, capitulo 1, trad.

    Sonia Rangel (So Paulo: Unesp/Hucitec, s/d.).

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    tortuoso) da vida econmica (fabricao,

    venda, comrcio) pelos poderes pblicos e

    pelas guildas. A idia de proteo comercial,

    lembra Mantoux, tambm j existia, mas teria

    ganho extraordinria fora com o

    desenvolvimento de grupos nacionais e do

    comrcio exterior, com a passagem da

    "economia das cidades" para as "economias

    nacionais". Na Inglaterra, isso teria ocorrido

    sobretudo entre os sculos XV e XVI. Na

    prtica, a prpria poltica mercantilista teria

    nascido nessa poca, ainda que seu sistema

    doutrinrio viesse a constituir-se mais tarde,

    com a adoo do protecionismo extremado, do

    apoio s indstrias nacionais, das reservas de

    mercado, etc.

    A indstria txtil na Inglaterra parece

    ter sido um exemplo cabal de super-

    regulamentao. O Parlamento baixava normas

    regulando tudo: fabricao, empacotamento,

    circulao, transporte e venda. Normasmeticulosas e verdadeiros exrcitos de

    vigilncia e fiscalizao procuravam proteger a

    indstria e evitar fraudes, mas tinham um

    efeito indesejado: com o tempo tambm

    impediam aperfeioamentos.

    No decorrer do sculo XVIII, lembra

    Mantoux, podia-se atestar a decadncia dessa

    legislao de perfil e origem medievais. Mas o

    sistema mercantilista, de origem mais recente,estava ainda em vigor. E era esse o alvo da

    crtica liberal de Smith.

    Por um lado, os regulamentos ficavam

    cada vez mais rgidos, complexos e difceis de

    manter contra as burlas, os artifcios, o

    contrabando. Por outro lado, proteo to

    grande inibia (e dispensava) a inovao, diria

    Smith. Os "funestos resultados" do monoplio

    e da proteo exagerada eram apontados pelos

    crticos liberais.

    E realmente era bastante vasto o corpo

    legislativo que enclausurava a nascente econo-

    mia manufatureira-industrial. Um denso

    sistema de monoplios e privilgios especiais,

    concedidos pelo poder real, protegia a indstria

    nativa da competio aberta. Um papel

    relevante cabia poltica econmica externa,

    com as leis de navegao, os regulamentos

    sobre as colnias, as taxas restringindo a

    importao de vrios artigos, as subvenes e

    incentivos a exportadores (reembolsos e

    isenes fiscais). Tambm as leis de domiclio,

    as leis dos pobres e dos aprendizes constituam

    entraves, cerceando a imprescindvel

    mobilidade e o livre uso da fora de trabalho.

    Na Frana, o modelo de dirigismo alvejado

    pela crtica liberal era encarnado em Colbert,

    cujos Rglements (1666-1730) sobre as

    manufaturas cobriam milhares de pginas,

    estabelecendo controle minucioso,uniformizando produtos e processos. E

    tambm aqui, aos meticulosos regulamentos

    sobre todas as esferas e momentos da vida

    econmica, somavam-se necessariamente

    sistemas complexos e pesados de vigilncia

    sobre fabricantes e comerciantes, tornando

    visvel a presena reguladora do soberano em

    cada tomo do reino.

    As corporaes

    A crtica liberal voltou-se tambm

    contra as corporaes de ofcio e contra o

    privilgio dos mestres, que constituam

    entraves liberdade do indivduo de passar de

    uma profisso a outra ou simplesmente de

    exercer um ofcio que fosse do seu interesse.

    Aos olhos de liberais como Smith, as guildas

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    eram outro meio de realizar a inconveniente

    poltica de entraves, ao criar canais

    obrigatrios de controle, plane-

    jamento e direo da produo

    artesanal, que determinavam quantidade e

    qualidade das mercadorias, preos, margem de

    lucro, regulamentando tambm a abertura de

    novas lojas e pontos-de-venda, estabelecendo

    regras bastante estritas sobre os artesos e a

    mo-de-obra em geral (normas de obrigatrio

    cumprimento quanto a aprendizagem,

    emprego, salrio e assistncia).

    Smith batia duro nas corporaes.

    Afirmava que as reunies de "pessoas da

    mesma profisso [...] terminam em uma

    conspirao contra o pblico, ou em algum

    incitamento para aumentar os preos". Se no

    se pode evit-las, "nada se deve fazer para

    facilit-las e muito menos para torn-las

    necessrias"6. Do que que Smith est

    falando, concretamente? As corporaeseramfacilitadas quando se baixavam regula-

    mentos obrigando a inscrio dos membros de

    uma profisso num registro pblico, o que

    abria caminho a contatos que viravam

    conluios. Eram induzidas necessidade

    quando os regulamentos autorizavam os

    membros de uma profisso a impor taxas

    (estendendo portanto o acordo feito entre

    alguns, agora, para o universo de todos, nofuturo). A mensagem de Smith era clara: a

    autoridade pblica, em vez de regulamentar a

    existncia de corporaes, deveria atuar

    desestimulando sua manuteno e desauto-

    rizando os regulamentos que elas pretendiam

    impor.

    6Adam Smith, op. cit., vol. 1, p. 139

    A ordem poltica liberal

    A partir dessa matriz, constituda

    basicamente j nas ltimas dcadas do sculo

    XVIII, a tradio liberal desdobrou-se em dois

    grandes princpios programticos:

    1) A procura do interesse prprio

    conduz ao ajustamento entre os indivduos e

    a uma determinada harmonizao dos

    diferentes esforos e vontades. Delineia-se a

    convico na existncia de "leis

    econmicas": as aes intencionais das

    pessoas produzem, de modo no intencional

    (e necessariamente de modo no

    intencional), regularidades semelhantes s

    leis de um sistema fisico.

    2) 0 poder poltico deve ser

    cuidadosamente limitado pela lei.

    Reparemos ainda uma vez nesta convicofundamental dos liberais: deve-se limitar a

    interveno do poder poltico (as aes do

    soberano, seja ele rei ou parlamento) para

    permitir que os indivduos vivam como bem

    entendam. A figuram a defesa das liberdades

    individuais, a crtica da interveno estatal, o

    elogio das virtudes reguladoras do mercado. A

    defesa da propriedade privada tambm tem

    esse sentido, sendo apresentada como umagarantia para a independncia do indivduo

    perante a tirania dos soberanos polticos.

    Montesquieu chegou a dizer que a inveno da

    letra de cmbio, uma riqueza mvel que

    atravessava fronteiras de reinos e principados,

    era uma espcie de antdoto contra a tirania, j

    que levava os aprendizes de ditador a pensar

    duas vezes antes de inventar novas taxas,

    impostos e confiscos.

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    E certo que ainda cabe um papel ao

    Estado, mas suas funes devem ser

    claramente limitadas. O soberano no deve

    tentar dirigir a vida dos indivduos,

    empurrando-os para atividades mais

    condizentes com o interesse da sociedade. No

    h sabedoria ou conhecimento humano que

    baste para isso. Toda tentativa nesse sentido

    ser intil e nociva, diz Smith:

    Segundo o sistema da liberdade natural, ao

    soberano cabem apenas trs deveres; trs

    deveres, por certo, de grande relevncia, mas

    simples e inteligveis ao entendimento

    comum: primeiro, o dever de proteger a

    sociedade contra a violncia e a invaso de

    outros pases independentes; segundo, o

    dever de proteger, na medida do possvel,

    cada membro da sociedade contra a injustia

    e a opresso de qualquer outro membro da

    mesma, ou seja, o dever de implantar umaadministrao judicial exata; e, terceiro, o

    dever de criar e manter certas obras e

    instituies pblicas que jamais algum

    indivduo ou um pequeno contingente de

    indivduos poderio ter interesse em criar e

    manter, j que o lucro jamais poderia

    compensar o gasto de um indivduo ou de

    um pequeno contingente de indivduos,

    embora muitas vezes ele possa atcompensar em maior grau o gasto de uma

    grande sociedade.' [Adam Smith, op. cit.,

    vol. 2, p. 147.]

    As duas primeiras funes, defesa

    externa e ordem interna, so mais ou menos

    bvias, atividades tpicas de governo. A

    terceira mais complicada, e daria margem a

    muita controvrsia entre os liberais nos dois

    ltimos sculos. Porque Smith no diz como

    delimitar o espao legtimo das obras e

    instituies pblicas que o soberano poderia

    criar e manter. E certo que diz claramente que

    elas s existiriam se no houvesse

    possibilidade de oferta pelos interesses

    privados. E um critrio bastante restritivo, mas

    cujos limites so difceis de definir de uma vez

    para sempre.

    Repare-se que Adam Smith no afirmaapenas que ilegtimo atribuir ao soberano opapel de gerenciar as atividades dosparticulares, ou de desenhar o mapa das ocupa-es e ofcios da sociedade. Ele diz tambmque essa pretenso irrealista, uma vez quetais decises dependeriam de informaes ecapacidade de processamento que superam aspossibilidades de qualquer crebro humano.

    No sculo XIX, o pensamento liberalaproxima-se cada vez mais de correntes con-servadoras e tenta afirmar e reforar essas

    restries. Por um lado, procura reduzir apresena do soberano poltico na sociedade,limitando e/ou dirigindo estritamente asintervenes do Estado na economia. Por outrolado, busca reduzir o crculo dos indivduosaos quais permitida a interveno sobre oEstado - da a luta dos liberais contra osufrgio universal e outras manifestaespolticas das massas populares. Por isso, desde

    seu nascimento o liberalismo distanciou-se delemas como "cada cabea, um voto" e oconflito entre liberalismo e democracia tornou-se cada vez mais agudo.

    Reviso liberal-conservadora no sculo XIX

    Para sermos exatos, j no final do

    sculo XVIII alguns autores liberais, como

    Edmund Burke (1729-1797), comearam a

    reforar o lado conservador dessa doutrina.

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    Um dos temas dessa reviso do liberalismo -

    acentuada durante o sculo XIX - ganhar

    relevo na viso neoliberal: os limites que

    podem ou devem ser impostos participao

    poltica. Entre os autores que produziram

    argumentos nessa direo destacam-se, alm

    de Burke, Benjamin Constant (1767-1830),

    Thomas Macaulay (1800-1859) e Henri

    Maine (1822-1888).

    A linha geral de sua argumentao era

    a seguinte: a liberdade individual e a

    capacidade de reflexo poltica esto

    intimamente associadas com a propriedade

    privada. Ora, os novos tempos foram

    marcados pela chegada das massas populares

    vida poltica - por meio da organizao

    sindical ou partidria ou da conquista do

    sufrgio universal. Como resultado, a

    mquina do Estado e as decises polticas

    ficaram sob o cerco das massas. A

    preocupao central desses autores, que serretomada no sculo XX pelos neoliberais, era

    portanto evitar a "politizao" da vida

    econmica. Para isso eles propunham:

    1. limitar o acesso ao sufrgio, concedendo-se o direito de voto somente aosproprietrios ou detentores de certamargem de renda, por exemplo;

    2. limitar o mbito do sufrgio,neutralizando seus poderes pelo firmeestabelecimento de questes e funespblicas que, definitivamente, deveriamestar imunes ao voto e ao poltica dopblico. Alguns cargos no seriamelegveis nem fiscalizados peloParlamento. Algumas decises seriamexcludas da alada do Parlamentomediante clusulas constitucionais ou leisfundamentais que s poderiam ser

    mudadas com muita dificuldade.

    Se essas limitaes no fossem

    estabelecidas, diziam os liberais, o mundo

    poltico se transformaria no reino da "rapina".

    O direito de voto se converteria numa arma de

    saque dos despossuidos contra os proprietrios,

    e aqueles que "no se dessem bem" no

    mercado poderiam pretender recuperar terreno

    mediante a ao poltica do Estado, a

    tributao progressiva e a imposio de leis

    sociais aos proprietrios. Seria uma espcie de

    "chantagem" poltica.

    Benjamin Constant dizia, de modo claro

    e alarmista, que se os no proprietrios fossem

    titulares de direitos polticos, seriam levados a

    perseguir "objetivos predatrios e anrquicos"

    e, assim, "demolir a sociedade", impondo taxas

    descabidas e irracionais aos proprietrios,

    engendrando um "sistema de confisco velado".

    Segundo Constant, para a "classe

    laboriosa" os direitos polticos "serviro

    infalivelmente para invadir a propriedade. Elasmarcharo por esse caminho irregular, em vez

    de seguirem a rota natural, o trabalho: seria

    para elas uma espcie de corrupo; e, para o

    Estado, uma desordem"! 7

    William Lecky (1838-1903) tambm se

    apavorava com essa perspectiva: "Nas mos de

    uma democracia, a taxao poderia produzir os

    meios de reparar desigualdades de fortuna,

    habilidade ou diligncia". Mas adverte paraaquilo que considera uma rapina: "a classe

    numericamente preponderante votando e

    gastando dinheiro que uma outra classe e

    obrigada a pagar".8

    7Benjamin Constant,De la libert chez lesmodernes (Paris: Pluricl, 1980), textos escolhidospor Marcel Gauchet, p. 112.8William Lecky, Democracy and Liberty, vol. 1

    (Indianpolis: Liberty Classics, 1981), p. 232.

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    No final do sculo XIX, essas idias

    seriam aprofundadas e radicalizadas por

    Herbert Spencer (1820-1903). Seu livro

    Indivduo contra o Estado defende o sistema

    da concorrncia como uma espcie de

    "seleo natural" dos mais aptos, um

    darwinismo social. Spencer ataca duramente a

    democracia, a interveno estatal na economia

    e a criao de polticas sociais. Algumas das

    idias de Spencer seriam depois retomadas

    quase literalmente pelos autores neoliberais

    contemporneos.

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    Neoliberalismo - o que e de onde vem

    Aquilo que se tem chamado de neoliberalismo,

    como dissemos, constitui em primeiro lugar

    uma ideologia, uma forma de ver o mundo

    social, uma corrente de pensamento. Desde o

    incio do sculo XX podemos ver tudo isso

    apresentado por um de seus profetas, o

    austraco Ludwig von Mises (1881-1973). Mas

    um discpulo dele, o tambm austraco

    Friedrich von Hayek, que ter o papel de lider e

    patrono da causa. Seu O caminho da servido,

    lanado em 1944, pode ser apontado como um

    manifesto inaugural e documento de referncia

    do movimento neoliberal. Nos anos seguintes,

    Hayek empenhar-se-ia na organizao de uma

    "internacional dos neoliberais", a Sociedade do

    Mont Plerin, fundada na cidade do mesmo

    nome (na Sua) numa conferncia realizada em

    1947. O caminho da servido um livro de

    combate, provocativamente endereado "aos

    socialistas de todos os partidos". No dirige seu

    fogo apenas contra os partidrios da revoluo

    e da economia globalmente planificada, mas a

    toda e qualquer medida poltica, econmica e

    social que indique a mais tmida simpatia ou

    concesso para com as veleidades reformistas

    ou pretenses de fundar uma "terceira via"entre capitalismo e comunismo. Lembremos, de

    passagem, que se aproximavam as eleies de

    1945 na Inglaterra e o Partido Trabalhista, alvo

    visvel de Hayek, preparava-se para ganh-las

    (como de fato ganhou). Sublinhemos ainda um

    trao que seria marcante no fundamentalismo

    hayequiano: a insistncia na necessidade de

    guardar intactos os princpios da "sociedade

    aberta". Da vem a sua crtica do Estado-

    providencia, tido como destruidor da liberdade

    dos cidados e da competio criadora, bases da

    prosperidade humana.

    O liberalismo clssico havia assestado

    suas baterias contra o Estado mercantilista e as

    corporaes. Os neoliberais procuraram desde

    logo construir um paralelo com aquela situao,

    para justificar seu combate e apresent-lo como

    a continuao de uma respeitvel campanha

    antiabsolutista. Segundo eles, os inimigos

    vestiam agora outros trajes, mas revelavam as

    mesmas taras e perverses. Um desses inimigos

    era o conjunto institucional composto pelo

    Estado de bem-estar social, pela planificao e

    pela interveno estatal na economia, tudo isso

    identificado com a doutrina keynesiana. O

    outro inimigo era localizado nas modernas

    corporaes - os sindicatos e centrais sindicais,que, nas democracias de massas do sculo XX,

    tambm foram paulatinamente integrados nesse

    conjunto institucional. Alm de sabotar as bases

    da acumulao privada por meio de

    reivindicaes salariais, os sindicatos teriam

    empurrado o Estado a um crescimento

    parasitrio, impondo despesas sociais e

    investimentos que no tinham perspectiva de

    retorno.Para os pases latino-americanos, os

    neoliberais fazem uma adaptao dessa cena:

    aqui o adversrio estaria no modelo de governo

    gerado pelas ideologias nacionalistas e

    desenvolvimentistas, pelo populismo... e pelos

    comunistas, evidentemente. A argumentao

    neoliberal tem uma estratgia similar do

    sermo. Primeiro, desenha um diagnstico

    apocalptico. Em seguida, prega uma receita

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    salvacionista: forte ao governamental contra

    os sindicatos e prioridade para uma poltica

    antiinflacionria monetarista (doa a quem doer)

    - reformas orientadas para e pelo mercado,

    "libertando" o capital dos controles

    civilizadores que lhe foram impostos por

    duzentos anos de lutas populares.

    Examinemos esse cenrio - o mundo

    que nossos neoliberais vem e rejeitam.

    A crise das regulaes

    No sculo XIX o livre mercado era um

    mundo imposto pela dominao inglesa. Muitos

    dos pases hoje desenvolvidos adotaram, para

    crescer, polticas opostas pregao liberal.

    Estados Unidos, Alemanha e Japo, por

    exemplo, utilizaram amplamente a interveno

    estatal, o protecionismo, o apoio do poder

    pblico para implantar e fortalecer a indstria, o

    comrcio, os transportes, o sistema bancrio.Perodo em que estadistas e pensadores

    louvavam a livre concorrncia como o caminho

    para a prosperidade, o sculo XIX foi tambm

    coroado por severas crises de superproduo,

    pnicos financeiros e pela disputa de grandes

    potncias na corrida para dominar imprios

    neocoloniais. Suas primeiras dcadas foram

    marcadas por guerras continentais e sucessivas

    revolues. Esse clima fortaleceria o tema da"rebelio das massas". Jornalistas, polticos,

    intelectuais, romancistas e cineastas alertavam

    para o perigo de um mundo que ficara

    permevel presena da plebe na poltica. Para

    completar a conturbada cena, a monumental

    crise de 1929 daria ainda mais autoridade s

    sadas reguladoras que vinham sendo

    formuladas por liberais reformistas, adeptos da

    interveno estatal, desde o incio do sculo.

    Desse modo, abriu-se o caminho para

    que brilhasse a estrela da filosofia social

    exposta por John Maynard Keynes no final de

    sua Teoria geral do emprego, do juro e da

    moeda. Esse livro foi publicado em 1936 mas,

    em vrias de suas passagens, retomava

    problemas que o autor vinha analisando desde

    os anos 20. Segundo a doutrina

    keynesiana, o Estado deveria manejar

    grandezas macroeconmicas sobre as quais era

    possvel acumular conhecimento e controle

    prtico. O poder pblico, desse modo,

    regularia as oscilaes de emprego e

    investimento, moderando as crises econmicas

    e sociais. O New Deal americano e o Estado de

    bem-estar europeu iriam testar (e aprovar

    durante bom tempo) a convivncia do

    capitalismo com um forte setor pblico,

    negociaes sindicais, polticas de renda e

    seguridade social, etc. Em suma, em pouco

    tempo, o Estado viu-se em condies e naobrigao de controlar o nvel da atividade

    econmica, inclusive o emprego, atravs de

    instrumentos como a poltica monetria a taxa

    de juros e os gastos pblicos.

    Esse era o chamado "consenso

    keynesiano", que se tornara avassalador no

    ps-guerra. Tudo parecia dar legitimidade a

    essas variadas formas de planificao, que

    visavam corrigir, por meio da ao polticadeliberada, os efeitos desastrosos das

    flutuaes de mercado. Pode-se dizer que esse

    gerenciamento macroeconmico era

    conservador, j que buscava conter os traos

    mais autodestrutivos do capitalismo, isto , sua

    tendncia a criar crises cclicas e

    progressivamente mais amplas, efeitos

    externos indesejados (falhas do mercado) e

    impasses polticos delicados. Disse Skidelski,

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    um bigrafo de Keynes, com tom desafiador:

    Keynes ofereceu uma chance de sobrevivncia

    democracia liberal - quem mais o fez?

    As polticas orientadas por essa doutrina

    reformadora pareciam firmemente estabele-

    cidas. Na Inglaterra, por exemplo, no atraam

    apenas os reformadores, trabalhistas, fabianos e

    "novos liberais" - o que seria compreensvel -,

    mas tambm os conservadores liderados por

    Harold MacMillan. Parecia disseminado e

    solidamente implantado um amplo acordo sobre

    o papel positivo do Estado: na criao de pleno

    emprego; na moderao de desequilbrios

    sociais excessivos e politicamente perigosos; no

    socorro a pases e reas economicamente

    deprimidos; na manuteno de uma estrutura de

    servios de bem-estar (habitao, sade,

    previdncia, transporte urbano, etc.); na gradual

    implantao de polticas sociais que atenuassem

    desigualdades materiais acentuadas pelo

    funcionamento no monitorado do mercado,etc.

    Uma outra face ou implicao desse

    fenmeno igualmente importante. Com essas

    medidas, desenhava-se como aceitvel e

    desejvel um novo modo de produzir decises

    polticas, novas formas de participao na

    poltica. Consolidava-se um novo mundo

    poltico, marcado pela negociao entre

    corporaes empresariais e proletrias,intermediadas e institucionalizadas pelo poder

    pblico. Processavam-se desse modo mudanas

    profundas na esfera pblica e na esfera privada,

    um novo modo de funcionamento para as

    democracias de massa do Ocidente.

    O historiador Ben Seligman disse certa

    vez que Keynes era "expresso do desespero e

    da esperana". Na Amrica Latina um papel

    similar coube Comisso Econmica para a

    Amrica Latina (Cepal) e a homens como Raul

    Prebisch e Celso Furtado. No lado de baixo do

    equador, os demnios dos neoliberais tinham

    estes nomes: Estado desenvolvimentista e

    nacional-populismo como forma de integrao

    poltica das massas operrias e populares da

    Amrica Latina.

    Em resumo, eram esses os fantasmas

    que os neoliberais pretendiam exorcizar. Duran-

    te dcadas os principais defensores das idias

    neoliberais foram vistos como pensadores

    excntricos, sobreviventes de um laissezfaire

    paleoltico e sem futuro. Dinossauros do livre-

    cambismo. Esse diagnstico foi alis

    repetidamente enunciado entre estadistas,

    cientistas sociais, homens de mdia. Hoje

    sabemos claramente o quanto essa avaliao era

    errnea, como ela subestimava perigosamente

    essa ideologia que estava apenas adormecida,

    espera do momento oportuno.

    Mesmo isolados e na defensiva, osneoliberais preservaram suas crenas ortodoxas.E voltaram cena, na ocasio propcia, no fimdos Trinta Gloriosos, os anos de reconstruo edesenvolvimento do capitalismo do ps-guerra,tempos que pareciam entronizar okeynesianismo e a economia capitalistaregulada como padres incontestveis depensamento e ao. No final desse perodo, ascompanhias multinacionais espalhavam pelomundo suas fbricas e investimentos emovimentavam gigantescos fundos financeirosenvolvidos nesses processos - lucros a seremremetidos, royalties, patentes, transferncias,emprstimos e aplicaes. No incio dos anos70, as autoridades monetrias americanasanunciavam que as coisas estavam muitomudadas: o dlar no teria mais conversoautomtica em ouro. Em 1974, registrou-se pela

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    primeira vez a estagflao - um misto deinflao alta e estagnao que afetavam oconjunto dos pases capitalistas desenvolvidos.

    Crescia o mercado financeiro paralelo quedesafiava as regulamentaes nacionais:comrcio de aes, de ttulos pblicos, dedivisas, as formas de riqueza intangvel elquida do capitalismo de papel. Mas aindaseriam necessrios alguns anos de crise e deinsistente pregao para que o novo iderioimpusesse sua hegemonia.

    Vale a pena lembrar um evento que iria

    antecipar algumas das bandeiras importantes dorenascer neoliberal. Em 1975, os documentosda chamada Comisso Trilateral alertavam paraum problema fundamentalmente poltico: asobrecarga do Estado levava ingovernabilidade das democracias. Para esseimpasse, autores como Samuel Huntington,Daniel Bell, Irving Kristol e ZbignewBrzezinski enunciavam um receiturio

    inflexvel: era preciso limitar a participaopoltica, distanciar a sociedade e o sistemapoltico, subtrair as decises administrativas aocontrole poltico.' 9

    Desse modo, a quarentena dosneoliberais comeou a romper-sedecididamente na metade dos anos 70. Logo emseguida, lderes partidrios alinhados comprogramas neoliberais conquistaram governos

    de importantes pases: em 1979, MargaretThatcher, na Inglaterra; em 1980, Reagan, nosEUA; em 1982, Helmut Kohl, na Alemanha10.

    9Ver M. Crozier et al., The Crisis of Democracy(Nova York: Nova York University Press, 1975).

    10Para uma exposio das polticas da nova direita,ver por exemplo: David G. Green, The New Right- The Counter-Revolution in Political, Economicand Social Thought (Nova York/Londres,Harvester/Wheatsheaf, 1987); Grahame Thompson,

    The Political Economy of the New Right (Londres:

    A rigor, porm, as primeiras grandesexperincias de "ajuste" neoliberal foramensaiadas na Amrica Latina: em 1973, no

    Chile, com Pinochet, e em 1976, na Argentina,com o general Videla e o ministrio deMartinez de Hoz11.. Nos anos 80, os programasneoliberais de ajuste econmico foram

    Pinter Publishers, 1990); Andrew Gamble, TheFree Economy and the Strong State - The Politics ofThatcherism (Londres: MacMillan, 1988); RalphMiliband et al., El Neoconservadurismo en GranBretanay Estados Unidos - retricay realidad

    (Valncia: Alfons el Magnnim, 1992).11Para um balano duro das polticas e crenas danova direita, especialmente no caso ingls, vale apena ler um autor antes entusiasta doneoliberalismo e agora crtico acerbo do"fundamentalismo de mercado": John Gray, Falsoamanhecer - os equvocos do capitalismo global, trad.Max Altman (Rio de Janeiro: Record, 1998); domesmo autor, Endgames -Questions in LateModern Political Thought (Cambridge: PolityPress, 1997). Para o caso chileno, ver Juan Gabriel

    Valdes, Pinochet's Economists - The Chicago Schoolin Chile (Cambridge: Cambridge University Press,1995). Sobre a Argentina, ver Javier Alberto Vadell,Neoliberalismo e consenso na Argentina (1976-1991), dissertao de mestrado em cinciapoltica (Campinas: IFCH/Unicamp, 1997). Nonos estenderemos sobre os detalhes da histriapoltica desse movimento de idias nos principaiscentros produtores de ideologia neoliberal. Paraquem se interesse por essa histria, h doisimportantes e minuciosos estudos. Richard

    Cockett analisa os centros de elaborao edifuso da doutrina neoliberal na Inglaterra emThinking the Unthinkable - Think-Tanks and theEconomic Counter-Revolution (1931-83) (Londres:Fontana Press/HarperCollins, 1995). Para o casonorte-americano, ver George Nash, TheConservative Intellectual Movement in America(since 1995) (Wilmington: Intercollegiate StudiesInstitute, 1996). Ainda nessa linha, ver JamesAllen Smith, The Idea Brokers - Think-Tanks andthe Rise of the New Policy Elite (Nova York: The

    Free Press, 1991).

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    impostos a pases latino-americanos comocondio para a renegociao de suas dvidasgalopantes. Da se passou vigilncia e ao

    efetivo gerenciamento das economias locaispelo Banco Mundial e pelo FMI: 1985, Bolvia;1988, Mxico, com Salinas de Gortari; 1989,novamente a Argentina, dessa vez com Menen;1989, Venezuela, com Carlos Andrs Perez;1990, Fujimori, no Peru. E, desde 1989, oBrasil, de Collor a Cardoso.

    Examinaremos a seguir as ideias-chave

    da doutrina neoliberal e suas principais

    vertentes e escolas.

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    Modelos tericos e orientaes polticas

    Diretrizes estratgicas da poltica

    neoliberal e suas formas de manifestao

    tpicas

    Tentemos agora uma primeira sntese

    das principais idias neoliberais. Elas acentuam

    duas grandes exigncias gerais e

    complementares: privatizar empresas estatais e

    servios pblicos, por um lado; por outro,

    "desregulamentar", ou antes, criar novas

    regulamentaes, um novo quadro legal que

    diminua a interferncia dos poderes pblicos

    sobre os empreendimentos privados. O Estado

    deveria transferir ao setor privado as atividades

    produtivas em que indevidamente se metera e

    deixar a cargo da disciplina do mercado as

    atividades regulatrias que em vo tentaraestabelecer.

    Esses lemas so contudo muito amplos

    e genricos. O leitor pode v-los

    particularizados em alguns tpicos bastante

    especficos, facilmente localizveis na luta

    politica e ideolgica que se trava

    cotidianamente na mdia ou nos confrontos

    eleitorais. A as bandeiras neoliberais aparecem

    mais concretamente:

    protestos de empresrios contra

    presses fiscais, apresentadas como

    insuportveis;

    denncias de polticos

    conservadores contra as polticas

    redistributivas, caracterizadas como

    paternalistas e desastrosas;

    campanhas de organizaes

    empresariais contra a extenso de

    atividades do setor pblico a domnios

    afirmados como "naturalmente"

    privados;

    resistncia contra a

    regulamentao supostamente

    hipertrofiada dos contratos entreparticulares (normas sobre aluguis,

    direito do trabalho e previdncia,

    mensalidades escolares, etc.).

    Registre-se ainda, com destaque, um

    argumento bastante freqente e forte, o tema do

    efeito perverso provocado pelo "Estado-

    providencia" ou "Estado de bem-estar":

    buscando proteger o cidado das desgraas da

    sorte, o Estado aparentemente benfeitor acabana verdade produzindo um inferno de ineficcia

    e clientelismo, pesadamente pago pelo mesmo

    cidado que primeira vista procurava

    socorrer12. importante destacar esse

    argumento em particular porque ele abre

    caminho para que os neoliberais ampliem e

    estendam a frente de batalha nas campanhas

    pela privatizao: pregam a transferncia, para

    a iniciativa privada, tambm das atividadessociais (educao, sade, previdncia, etc.)

    12 ' A esse respeito, a revista Dilogo publicou emseu nmero 2, vol. 23, 1990, artigos dosconservadores americanos Nathan Glazer eCharles Murray, com resposta crtica de AlbertHirschman. O artigo de Hirschman sintetizaargumentos que ele desenvolve mais longamenteemA retrica da intransigncia (So Paulo: Cia.

    das Letras, 1995).

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    tidas anteriormente como beneficirias do

    desmonte do Estado-empresrio (o estado

    produtor de bens industriais, sobretudo).

    Tudo isso nos apresentado no apenas

    como algo desejvel, mas tambm como algo

    finalmente acreditvel, pela fora dos prprios

    eventos econmicos, impondo-se mesmo com

    evidncia, com a fora de um "pensamento

    nico". E por qu? De onde vem essa segunda

    qualificao? Do fato, tido como irreversvel,

    de que o Estado nacional teria perdido hoje

    aquelas ferramentas de regulagem econmica

    que mencionamos.

    Com os novos produtos financeiros

    globalizados, emergiria um novo gerente das

    polticas nacionais, isto , uma nova soberania,

    que se sobrepe s soberanias nacionais outrora

    constitudas por processos eletivos. Lembremos

    que esses "antigos" processos so qualificados

    pelos neoliberais como corrompidos, viciados,

    demasiadamente submetidos aos impulsosimediatistas e ressentidos das massas votantes,

    chantagem do sufrgio universal enfim - o

    sufrgio contra o qual o liberalismo sempre

    lutou denodadamente em todos os cantos do

    mundo.

    A mundializao financeira, j

    absolutamente firmada no final dos anos 70,

    determinaria as chacoalhadas neoliberais dos

    anos 80. A generalizao dos mercadosfinanceiros, a nova "ordem espontnea", subtrai

    dos governos nacionais grande parte de seu

    poder, como a liberdade de cunhar moeda e

    criar dvida pblica. Decreta-se, com festa e

    regozijo, o "fim da iluso monetria" e dos

    projetos de desenvolvimento nacional. Os

    grandes credores e detentores de liquidez -

    aquilo que se reverencia misteriosamente como

    "o mercado" - tm agora instrumentos para

    castigar pases "abusados" e irresponsveis,

    aqueles cujos dirigentes "no fizeram a lio de

    casa". A nova integrao internacional das

    finanas, recosturada, revigora o poder de

    presso dos financistas sobre as polticas

    econmicas nacionais. Ficam cada vez mais

    difceis as polticas nacionais deliberadamente

    deficitrias, fundadas na capacidade de emitir

    "moedas polticas", moedas sem lastro, visando

    garantir metas sociais e polticas como pleno

    emprego e desenvolvimento nacional e

    reorientar as economias.

    Esse pensamento, que no imediato ps-

    guerra era dado como morto, curiosamente

    consegue agora pautar at as reunies de seus

    positores, como lembra a avassaladora

    dominao do pensamento nico sobre partidos

    socialistas e social-democratas (o Partido

    Socialista Operrio espanhol, o segundo

    governo Mitterrand na Frana, os trabalhistas

    da Nova Zelndia).

    O cenrio que se lamenta e aquele que se

    exalta

    O sculo XX visto pelos

    neoconservadores como um caminho de queda,

    penitncia e redeno. Como dissemos antes, a

    argumentao neoliberal tem uma estratgia

    similar do sermo. Inicialmente, aponta osgrandes males e pecados do Estado

    intervencionista:

    a regulao legislativa, a atuao

    do Estado-empresrio e a oferta de bens

    pblicos, e os servios de proteo

    social confundem os sinais emitidos

    pelos mercados, o que leva ao emprego

    irracional dos recursos materiais e, no

    menos importante, dos empenhos

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    subjetivos dos agentes (deseduca os

    indivduos);

    o Estado transforma-se em

    instrumento de grupos de presso que

    tentam firmar seus privilgios utilizando

    o discurso demaggico das polticas

    sociais;

    o crescimento das despesas

    pblicas leva ao aumento das

    necessidades financeiras dos governos

    (endividamento, emisso monetria,

    inflao);

    o crescimento da tributao pode

    provocar efeitos indesejveis que se

    propagam por todos os poros da

    sociedade: falta de estmulo ao trabalho,

    evaso e fraudes fiscais,

    desenvolvimento de economia

    subterrnea (informal).

    A redeno vem de forma um tanto

    miraculosa, embora implique dolorosaspenitncias. A globalizao financeira, a

    liberalizao da economia mundial, a

    internacionalizao das atividades econmicas

    limitam a possibilidade de ao do Estado, que

    tem seu poder erodido em duas direes:

    para baixo, transferindo-se

    competncias para as coletividades

    locais: construo escolar, formao

    profissional, servios urbanos, sade eassistncia social, etc.;

    para cima, os Estados nacionais

    cedem parte de suas competncias a

    outros tipos de organizaes: Grupo dos

    Sete (G-7), Acordo Geral de Tarifas e

    Comrcio (Gatt), Organizao Mundial

    do Comrcio (OMC), Comisso

    Europia, etc. O Estado nacional deixa

    de ser a fonte nica do direito e das

    regulamentaes. Prerrogativas

    reguladoras (deliberaes sobre poltica

    econmica, monetria, cambial,

    tributria, etc.) so transferidas para

    administraes supranacionais, que

    aparecem como as guardis de uma

    racionalidade superior, imunes s

    perverses, limites e tentaes

    alegadamente presentes nos sistemas

    polticos identificados com os Estados

    nacionais.

    Reparemos bem nisso: a ideologia

    neoliberal prega o desmantelamento das regula-

    es produzidas pelos Estados nacionais, mas

    acaba transferindo muitas dessas regulaes

    (produo de normas, regras e leis) para uma

    esfera maior: as organizaes multilaterais

    como o G-7, a OMC, o Banco Mundial, o FMI,

    dominadas pelos governos e banqueiros dos

    pases capitalistas centrais. Durante os sculosXIX e XX, os movimentos trabalhistas haviam

    lutado para conquistar o voto, o direito de

    organizao e, assim, influir sobre a elaborao

    de polticas, definio de leis e normas. Agora

    que conquistaram esse voto, o espao em que

    ele se exerce esvaziado em proveito de um

    espao maior, mundializado, onde eles no

    votam nem opinam.

    Essa situao mereceu um comentriointeressante de Andr Gorz:

    Jamais o capitalismo havia conseguido

    se emancipar to completamente do poder

    poltico. Mas preciso acrescentar que os

    estados que ele ataca so os Estados

    nacionais. E que ele s consegue domin-

    los colocando em cena um Estado

    supracional, onipresente, que possui suas

    prprias instituies, aparelhos e redes

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    [...]. Com o Estado supracional do capital

    aparece pela primeira vez um Estado

    emancipado de toda territorialidade e cujo

    poder, ainda que se imponha aos estados

    territorializados a partir de fora, no recria

    fora deles um outro lugar para a poltica.

    Pelo contrrio, ele independente e

    separado de toda sociedade, situado em

    um no-lugar, a partir do qual ele limita e

    regulamenta o poder das sociedades de

    dispor de seu lugar. Sem base social nem

    constituio poltica, ele um puro

    aparelho que expressa o direito do capital

    mundializado. Poder sem sociedade, ele

    tende a engendrar sociedades sem poder,

    coloca em crise os Estados, desacredita a

    poltica, submete-a s exigncias de

    mobilidade, de "flexibilidade", de

    privatizao, de desregulamentao, de

    reduo dos gastos pblicos, dos custos

    sociais e dos salrios, todas essas coisaspretensamente indispensveis ao livre jogo

    da lei do mercado.13

    Terremotos no mundo do trabalho

    Dentro de tal quadro, qual o perfil do

    novo mundo produtivo que se delineia? O que

    desaparece e o que emerge no mundo do

    emprego, por exemplo? Em seu livro JobsShift14, o consultor de administrao William

    Bridges aponta o caminho das penitncias, com

    o fim do assalariamento clssico, da lgica do

    132 Andr Gorz, Mislres du prsent - richesse dupossible, trad. do autor (Paris: Galile, 1997),pp. 30-31.

    14William Bridges,Jobs Shift. H traduobrasileira:Mudanas nas relaes de trabalho (So

    Paulo: Makron Books, 1995).

    emprego permanente, dos acordos e

    regulamentos protetores, dos salrios

    calculados automaticamente a partir de

    convenes coletivas detalhadas.

    A seu ver, novas formas de organizao

    do trabalho e da empresa fariam generalizar-se

    outras noes: autonomia; gesto e contratao

    flexveis; ajustes permanentes na durao e na

    qualidade do trabalho; vnculo estrito entre

    salrio e desempenho; individualizao das

    remuneraes; percursos profissionais no

    padronizados (os chamados ziguezagues na

    histria de vida profissional).

    Desapareceria a distino hoje muito

    ntida entre organizao (empregador) e indiv-

    duo (empregado), e o novo mundo seria

    povoado de novos agentes econmicos,

    "patres de si mesmos". Adeus ao proletariado,

    diriam eles. Grandes empresas produtivas

    transformar-se-iam em ncleos gestores mais

    ou menos enxutos, em torno dos quaisorbitariam "competncias externas" de

    indivduos e pequenos grupos "parceiros",

    terceirizados.

    Uma nova ideologia est associada a

    essas mudanas. Nessa nova moral, o socorro

    misria absoluta talvez ainda permanea como

    valor coletivo. Mas cada vez mais separada da

    noo de seguridade, que deve antes ser vista

    como um fenmeno privado, envolvendopoupana, investimento e capitalizao,

    previdncia enfim, no sentido estrito do termo.

    Nesse novo mundo moral, quem prev, ter -

    quem no prev... Multiplicar-se-iam as

    adeses a organizaes intermedirias no

    governamentais, cada vez mais empenhadas na

    soluo privada e setorizada de problemas

    relativos a educao, a polticas de amparo

    pobreza absoluta, habitao, sade, atividades

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    culturais, etc. - atividades e servios antes

    cobertos por organismos polticos submetidos a

    votaes (nacionais ou locais). A "comunidade

    solidria", a filantropia e a caridade aparecem

    como complemento das tais "reformas

    orientadas para e pelo mercado". Tudo isso est

    nos relatrios do Banco Mundial e de outros

    organismos de "monitorao externa". Sem

    muito mistrio.

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    As trs grandes escolas do pensamento neoliberal

    Podemos dizer que o pensamento

    neoliberal desdobrou-se, no ps-guerra, em

    algumas linhas ou variantes. Trs delas so

    mais claramente definidas, embora uma quarta,

    a dos "anarco-capitalistas" ou minimarquistas,

    como Robert Nozick, devesse ser lembrada.

    Mas as trs principais so, pela ordem das

    "datas de nascimento":

    1) escola austraca, liderada por

    Friedrich August von Hayek, o

    patrono de todo o pensamento

    neoliberal contemporneo;15

    2) escola de Chicago, personificada em

    T. W. Schultz e Gari Becker

    (ligados teoria do capital

    humano) e principalmente Milton

    Friedman (1912- ), o grande

    homem de mdia dessa escola;16

    3) escola de Virgnia ou public choice,

    capitaneada por James M. Buchanan

    (1919- ).

    Friedrich A. von Hayek

    O grande nome da corrente neoliberal

    15' Para um estudo mais especfico do pensamento deHayek, ver meuHayek e a teoria poltica doneoliberalis rro econmico 1,1, Coleo TextosDidticos (Campinas: IFCH/Unicamp, 1999).16Alguns dos mais importantes textos de "difuso"da doutrina foram publicados no Brasil, entre elesos trs livros de Milton Friedman: Liberdade deescolhei; trad. Ruy Jungman (Rio de Janeiro:Record, s/d.), Capitalismo e liberdade, trad.Luciana Carli (So Paulo: Nova Cultural, 1985) eAtirania do status quo, trad. Ruy Jungman (Rio de

    Janeiro: Record, s/d.).

    sem dvida Friedrich August von Hayek (1899-

    1992). Herdeiro da chamada escola austraca de

    economia, o pensamento de Hayek um

    descendente das reflexes de Carl Menger

    (1840-1921) e da posio ardorosamente

    antiestatista e anti-socialista de Ludwig von

    Mises.

    Uma data marcante na vida intelectual

    de Hayek 1937, quando seu ensaio-

    conferncia Economics and Knowledge assinala

    a sua mudana de campo das matrias mais

    tcnicas da cincia econmica para temas

    prximos da epistemologia, do direito, da

    cincia poltica. Hayek comea a elaborar

    aquilo que considera sua idia mais importante,

    a concepo de "ordem espontnea": o modelo

    das decises descentralizadas e do

    conhecimento disperso, que considera como umideal de otimizao no uso dos recursos, da

    gerao de relaes sociais livres, harmnicas e

    dinmicas. E tambm desse modelo que deriva

    a afirmao da impossibilidade do

    planejamento, utopia fundada, a seu ver, na

    quimera de um conhecimento centralizado que

    supostamente orientaria aes centralizadas.

    Esse modo de ver o mundo social

    compartilhado por praticamente todas ascorrentes neoliberais. Em que consiste?

    Vejamos isso com um pouco mais de detalhe.

    O mercado , nessa viso, um processo

    competitivo de descoberta. Nele, inumerveis

    indivduos movem-se orientados pelos seus

    interesses prprios. O mercado a combinao

    desses planos e atividades individuais de

    produtores e consumidores. Os elementos

    motores desse mundo so a funo

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    empreendedora do indivduo e a concorrncia,

    no interior de uma complexa diviso social do

    trabalho. A ordem do mercado produto das

    atividades dos indivduos, mas no do desgnio

    nem da deliberao de ningum em particular.

    No resultado de uma razo, em sentido

    estrito. Alis, todas as instituies econmicas,

    polticas e culturais positivas so resultados de

    uma evoluo espontnea. Haveria um processo

    seletivo, meio darwinista ou lamarquiano, em

    que formas de organizao social competiriam

    entre si. Elas seriam comparadas e adotadas

    pelos grupos humanos conforme sua opero-

    sidade e eficincia. Os participantes do

    mercado tomam decises olhando o sistema de

    preos do mercado livre - assim que ajustam a

    todo momento seus planos de produo e de

    consumo. Graas a esse ambiente se dissemina

    o conhecimento sobre quais bens esto

    disponveis, quais so escassos, quanto custam,

    quais podem ser combinados nesta ou naquelaocasio, etc. Sem essa liberdade de iniciativa

    descentralizada, esse mundo enorme de

    conhecimentos no estaria disponvel para os

    indivduos, os agentes econmicos, nem

    poderia ser utilizado plenamente. Uma

    sociedade livre, sem planejamento e sem

    coero estatal, utiliza mais conhecimento e,

    portanto, mais flexvel, eficiente, livre, plural

    e criativa. Essas idias so elaboradas porHayek j nos anos 30, como base de sua defesa

    do liberalismo e como instrumento de ataque

    planificao e ao intervencionismo estatal.

    Em 1944, Hayek edita seu mais

    conhecido manifesto poltico, 0 caminho da

    servido. Contudo, os tempos ainda eram

    favorveis a Keynes, com quem Hayek tivera

    um malsucedido entrevero nos anos 30. 0

    tratado em que expe mais extensa e

    detalhadamente as convices jurdicas e

    polticas de "velho liberal", The Constitution of

    Liberty (1960), ainda emerge nesse clima,

    amplamente simptico ao welfare state (Estado

    de bem-estar social). Apenas no final dos anos

    70 ele deixa de ser visto como um excntrico

    ou marginal. New Studies in Philosophy,

    Politics, Economics and the History of Ideas

    (1978) e Law, Legislation and Liberty (1982)

    j encontram ambiente menos hostil e

    assumem um tom claramente menos defensivo.

    Seu ltimo livro, The Fatal Conceit (1988) ,

    com toda a certeza, o mais agressivo e

    fundamentalista - quase religioso - na defesa

    da economia de mercado.

    A segunda parada em nosso roteiro a

    Universidade de Chicago. Nas primeiras

    dcadas do sculo, o Departamento de

    Economia dessa universidade ostentara entre

    seus quadros nomes do porte de Jacob Viner,

    Frank Knight, Henry Simons. Nos anos 40, aescola passa para a liderana de T. W. Schultz,

    celebrizado pelos seus estudos sobre

    agricultura e educao (a teoria do capital

    humano). E ainda nessa

    poca que ala vo a carreira acadmica

    de Milton Friedman. Depois dos anos 50, a

    viso de Friedman e George Stigler torna-se

    hegemnica. Contudo, no currculo de Chicago

    figura ainda um outro item, impossvel deesquecer. No final dos anos 50, seus

    economistas firmaram acordos de cooperao

    com a Universidade Catlica do Chile,

    iniciando uma metdica e bem-sucedida

    operao de transplante ideolgico. Atravs

    desse acordo foram treinados os economistas

    que mais tarde viriam a ser quadros dirigentes

    do governo Pinochet (1973-1989), no primeiro

    grande experimento neoliberal "a cu aberto".

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    Fora dos livros, na prtica poltica efetiva, os

    "Chicago Boys" de Pinochet anteciparam

    procedimentos que iriam ganhar relevncia

    mundial nos anos 80, sobretudo com os

    governos Reagan e Thatcher.

    O terceiro elemento de nossa histria -

    ltimo mas no menos importante - aparece

    com James M. Buchanan, principal nome da

    chamada escola de Virgnia. Em 1957,

    Buchanan lidera a fundao do Thomas

    Jefferson Center for Studies in Political

    Economy, na Universidade de Virgnia, que d

    lugar logo depois ao Center for Study of Public

    Choice, no Virginia Polytechnick Institute

    (1969-1982), transplantado em seguida para a

    George Mason University, em Fairfax. Desde

    ento, a public choice vem se tornando

    importante referncia intelectual para as

    reformas neoliberais. Em The Calculus of

    Consent (1962), Buchanan e Tullock definem

    seu tema: estender as premissas damicroeconomia ao comportamento poltico dos

    indivduos. Em outros termos, dizem que os

    fenmenos macropolticos teriam

    microfundamentos no comportamento

    individual. Deveramos portanto descobrir o

    modo pelo qual interesses diferentes e

    conflitantes so reconciliados, ou agregados,

    numa "escolha coletiva". Na sua anlise das

    instituies polticas, Buchanan faz umaimportante distino entre as escolhas coletivas

    feitas dentro de certas regras e a escolha das

    prprias regras nas quais as primeiras se

    efetivam. O estudo dos enquadramentos

    institucionais teria resultados aplicados:

    definiria quais as regras de deciso e

    ordenamento social e poltico que menos

    precisam de coero e de condicionamentos

    ticos (boa vontade, altrusmo, etc.), aplicando-

    se portanto aos homens "como eles realmente

    so".

    A linha explorada por essa escola, a

    "anlise econmica da poltica", tem alguns

    importantes ancestrais recentes: J. A.

    Schumpeter, com Capitalism, Socialism and

    Democracy (1942); Kenneth Arrow, com Social

    Choice and Individual Values (1951); Anthony

    Downs, comAn Economic Theory of

    Democracy (1957). Mas o livro que de certo

    modo "funda" a escola o citado The Calculus

    of Consent, de James Buchanan e Gordon

    Tullock. Cabe ainda mencionar um ensaio

    muito influente nessa direo, publicado alguns

    anos depois: The Logic of Collective Action

    (1965), de Mancur Olson.17

    Veremos no prximo captulo mais

    detalhes dessa viso de mundo que deu voz e

    forma a muitas imagens e idias do pensamento

    neoliberal de nossos dias.

    Mtodos e pressupostos dapublic choice

    Vejamos quais so as principais idias

    da escola de pensamento neoliberal conhecida

    comopublic choice. Seus argumentos, imagens

    e bandeiras polticas tm sido o centro de

    influentes confrontos ideolgicos recentes. Eles

    podem ser encontrados nas imagens e exemplos

    utilizados na mdia, em muitos editoriais eartigos polmicos a respeito de temas como a

    privatizao, a desregulamentao e as polticas

    pblicas. Esto presentes tambm nos relatrios

    e documentos que o Banco Mundial vem

    emitindo, desde os anos 80, sobre as politicas

    17 Os livros de Downs e Olson foramrecentemente traduzidos e publicados pela

    Edusp, 1999.

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    sociais na Amrica Latina, por exemplo.

    At o incio dos anos 80, o economista-

    chefe do Banco Mundial era Hollis Chenery,

    um "desenvolvimentista" doutorado em

    Harvard que sustentava um ponto de vista

    favorvel planificao do crescimento

    econmico e dirigia o departamento de pesquisa

    do banco. Chenery foi ento substitudo por

    Anne Krueger, liberal entusiasta vinda da

    Universidade de Minnesota e uma das criadoras

    da teoria da rent-seeking (que veremos mais

    adiante). O modelo da rent-seeking society

    tornou-se o instrumento predileto da public

    choice para caracterizar politicas pblicas,

    regulaes estatais e estratgias macroeco-

    nmicas. O departamento de pesquisa e

    os documentos analticos do Banco foram

    penetrados pelo jargo e pelos procedimentos

    da escola.18'

    O comportamento poltico a partir dosmodelos da microeconomia

    A public choice procura analisar a

    poltica, a histria, o comportamento social e as

    estruturas legais e constitucionais utilizando os

    mtodos e pressupostos da microeconomia

    neoclssica. Seus pontos de partida so aqueles

    estabelecidos por essa vertente terica desde o

    sculo XIX:18 A ttulo de exemplo, ver Nancy Birdsall &Richard H. Sabot (orgs.), Opportunity Foregone:Education in Brazil (Washington: BancoInteramericano de Desenvolvimento, 1996);Shahid Javed Burki & Gillermo E. Perry, Beyondthe Washington Consensus: Institutions Matter(Washington: Banco Mundial, 1998); NancyBirdsall & Estelle James, Efficiency and Equity inSocial Spending (Washington: Banco Mundial,

    1990).

    o homem econmico, dotado de uma

    racionalidade calculadora, que procura

    obter o mximo de resultados a partir dos

    recursos escassos de que dispe;19

    as escalas de preferncias e valores

    desse indivduo e a sua "lgica da escolha";

    as condies da chamada concorrncia

    perfeita: os indivduos so atomizados, a

    informao razoavelmente distribuda e os

    bens so relativamente homogneos, de

    modo que o sistema se aproxima de um

    modelo auto-ajustado.

    A partir desses pressupostos - os quais,

    repita-se, estendem as premissas da

    microeconomia explicao e previso do

    comportamento poltico dos indivduos -, torna-

    se possvel, por um procedimento basicamente

    dedutivo,

    compreender o modo pelo qual interesses

    diferentes e mesmo conflitantes so

    reconciliados, ou agregados, numa "escolhacoletiva";

    desenvolver o "estudo das propriedades

    operatrias de conjuntos alternativos de

    regras polticas", um estudo comparativo (e

    portanto, em ltima anlise, avaliativo) dos

    diferentes (e alternativos) sistemas de

    deciso poltica, dentro dos quais se do as

    escolhas e se revelam as preferncias;

    prever as conseqncias de cada umdesses sistemas ou aparatos (tipo de

    sociedade e economia que geram e

    problemas da resultantes);

    19 Segundo Dennis Mueller: "O pos tuladocomportamental bsico da public choice, talcomo na economia, que o homem egosta,racional e maximizados de utilidade". Dennis C.Mueller, Public Choice II (Cambridge: Cambridge

    University Press, 1989), pp. 1-2.

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    definir dispositivos constitucionais

    superiores (mais democrticos, ou mais

    "eqitativos", mais eficientes, etc.); e, por

    oposio,

    expor os defeitos da ordem atual

    (Estado de bem-estar, intervencionismo,

    demo-

    cracia ilimitada e baseada no voto

    majoritrio, nos grupos de interesse, etc.)

    O funcionamento da ordem de mercado

    visto como um paradigma, um modelo de

    funcionamento para as outras instituies

    sociais. Assim, a pretenso desses analistas

    descobrir quais as regras constitucionais que,

    no plano das decises coletivas (no-mercado),

    mais se aproximam da perfeio exibida por

    essa ordem (a do mercado). E o que chamam de

    "economia constitucional", uma nova teoria do

    contrato social, que propicie uma reconstruo

    da ordem social e poltica.

    Como dissemos, o estudo dosenquadramentos institucionais teria resultados

    aplicados: definiria quais as regras de deciso e

    ordenamento social e poltico que menos

    precisam de coero e de condicionamentos

    ticos (boa vontade, altrusmo), aplicando-se

    aos homens "como eles realmente so". Ou, se

    quisermos usar o clich que se apresenta na

    polmica mais imediata: mais mercado, menos

    Estado.

    Rent-seeking a sociedade de predadores

    em que todos perdem

    Vejamos um pouco mais dessa

    preocupao examinando a estrutura estilizada

    de um de seus temas prediletos, o da sociedade

    de rent-seeking (captura de rendas).

    Segundo essa "teoria", o

    intervencionismo estatal propicia "situaes de

    renda", ou seja, posies na sociedade que

    permitem a um agente (indivduo, empresa,

    grupo) capturar vantagens superiores quelas

    que obteria no mercado, no reino dos preos e

    "custos de oportunidade". So, em suma,

    vantagens de posio favorecidas por artifcios

    legais. Da decorrem dois males, ou

    perverses: esses agentes investem seus

    esforos e recursos mais na busca predatria de

    privilgios do que em aumentar o produto

    global; os "tomadores de deciso", na

    administrao pblica, so "ofertadores de

    rendas", isto , empregos ou legislao em

    troca de benefcios monetrios (corrupo) ou

    apoio poltico.

    Percebamos em detalhe o encadeamento

    lgico.

    Em primeiro lugar, afirma-se que os

    instrumentos regulatrios (interveno

    poltica na economia) quase fatalmente geramoportunidades para rent-seeking e outras

    deformaes. Da, evidencia-se a necessidade

    de evitar a criao de tais instituies

    interventoras-reguladoras (ou desmantel-las,

    quando existentes) e limitar a "democracia

    majoritria" em vigor, que vulnervel a tais

    lutas predatrias (podendo at mesmo

    estimul-las). Isto pode ser feito por diversos

    caminhos, como: reduzindo ou qualificando o acesso ao

    voto;

    impondo clusulas constitucionais ptreas

    que cerceiem drasticamente as

    deliberaes do legislativo e da

    administrao (executivo);

    dando ao judicirio (ou a algum agente que

    esteja acima das disputas partidrias,

    fracionais ou corporativas) poderes para

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    limitar ou revogar decises dos eleitores

    (ou dos legisladores-representantes)

    com base em uma "racionalidade" mais alta

    (que esse agente privilegiado teria

    autoridade para definir).

    Vejamos essa argumentao de outro

    ngulo. Nossos autores diriam:

    1) 0 paradigma dominante dos

    procedimentos de deciso poltica a

    votao pelo princpio majoritrio.

    2) Esses procedimentos levam a resultados

    ilgicos (circulares ou caticos), perversos

    (produzem o oposto do que se busca) e

    injustos (provocam confiscos e rapinas). E

    geram ineficincias: a legislao resultante

    torna artificialmente rentveis atividades

    "naturalmente" absurdas, distorcendo ou

    esterilizando os efeitos positivos da

    alocao de esforos e recursos atravs da

    competio no mercado.

    3) 0 resultado uma sociedade de "somanegativa", uma sociedade que anda para trs. O

    mundo poltico, nessa perspectiva, tem pelo

    menos cinco vcios bastante claros:

    refora o poder dos que j esto por

    cima;

    permite e/ou estimula a manipulao

    dos programas e das aes pblicas;

    supe, aumenta e explora a ignorncia

    dos eleitores; dominado por grupos de interesses

    organizados;

    favorece a "troca de favores" no

    legislativo, etc.

    Veja-se esta passagem de Buchanan, em

    que se casam elementos relativos ao mtodo, ao

    diagnstico/prognstico relativo situao de

    rent-seeking (aplicao do mtodo) e,

    finalmente, uma dimenso normativa (uma

    poltica para a situao):

    A noo bsica muito simples e, mais

    uma vez, representa a transferncia da teoria

    standard de preos para a poltica. Da teoria

    de preos aprendemos que os lucros tendem

    a se igualar, devido ao fluxo de

    investimentos entre diferentes

    oportunidades. A existncia ou aparecimento

    de uma oportunidade de obteno de lucros

    diferencialmente mais elevados atrair

    investimentos at que os retornos se

    equalizem em relao queles genera-

    lizadamente disponveis na economia.

    Portanto, o que deveramos prever quando a

    poltica cria oportunidades de lucros, ou

    rendas? O investimento ser atrado em

    direo a essas oportunidades [...] e

    engendrar tentativas de obter acesso s

    rendas. Quando o Estado licencia uma

    profisso, quando atribui cotas de

    importao e exportao, quando alotafaixas de TV, quando adota planejamentos

    quanto ao uso do solo, podemos esperar que

    haver desperdcio de recursos em

    investimentos destinados a assegurar a fatia

    favorecida. [...] Como a expanso moderna

    do governo oferece mais oportunidades para

    a criao de rendas, devemos esperar que o

    comportamento maximizador de utilidade

    dos indivduos leve-os a desperdiar maisrecursos na tentativa de assegurar "rendas"

    ou "lucros" prometidos pelo governo.20

    O oposto desse mundo "viciado" da

    poltica o mundo governado pelo mercado,

    que segundo esses autores minimizaria os

    20 [James Buchanan, "The Economic Theory ofPolitics Reborn", em Challenge, 31 (2), trad. do

    autor, 1988, p. 8.]

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    defeitos acima mencionados. Talvez aqui, como

    exerccio de pensamento, o leitor possa voltar

    aos itens mencionados (os cinco vcios da

    poltica) e imaginar, em contrapartida, as

    virtudes do mercado.

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    Neoliberalismo e bens pblicos

    As escolhas no mundo do no-mercado

    O que tm a dizer os neoliberais sobre o

    universo dos bens pblicos e servios

    coletivos?

    Registremos um ponto de vista

    dominante nos anos de reconstruo do ps-

    guerra. Durante vrias dcadas, Introduo ei

    anlise econmica, o celebrado livro de Paul

    Samuelson, foi (ou ainda ) o catecismo das

    classes escolares de economia. Nele, o autor

    apresenta a economia como uma doutrina mais

    ou menos acabada e um mtodo de resoluo de

    problemas. Ambos so construdos a partir de

    uma afirmao de base: toda sociedade precisa

    resolver um problema sintetizado em trs

    perguntas: o que produzir, como e para quem.

    Os procedimentos para a tomada de deciso

    deveriam conduzir portanto, em primeiro lugar,a uma determinada agregao de preferncias,

    uma transformao das mltiplas preferncias

    individuais em decises coletivas.

    Conseqentemente, levariam a uma correspon-

    dente alocao e distribuio dos recursos.

    A partir da, Samuelson descreve as

    sociedades atuais do Ocidente como economias

    mistas nas quais o problema equacionado e

    resolvido por dois grandes algoritmos,dispositivos de resoluo de diferenas: o

    mercado, ou sistema de preos, e o aparato de

    deciso poltica (cujo modelo puro o voto).

    Quanto ao mercado, a sua definio

    lapidar e entusiasta:

    Um sistema competitivo um esmerado

    mecanismo para a coordenao inconsciente

    atravs de um sistema de preos e mercados,

    um dispositivo visando combinao do

    conhecimento e das aes de milhes de

    indivduos diversos. Sem contar com uma

    inteligncia central, resolve um dos mais

    complexos problemas que se possa imaginar,

    envolvendo milhares de variveis e relaes

    desconhecidas.21

    Nesse modelo tambm usual a

    imagem do mercado como referendo

    permanente22. Ou seja, atravs da procura, os

    consumidores manifestam sua vontade e

    direcionam o sistema produtivo: definem quais

    bens e servios sero produzidos, quantos e

    quando. E uma espcie de plebiscito invisvel.

    Nele, os indivduos possuem um nmero

    desigual de votos, corporificados em cdulas de

    dinheiro. Atravs dessas notas, tomam decises.

    A apurao dos votos, ou seja, o escrutnio das

    necessidades e demandas sociais, feita pelomercado. Supe-se a que os indivduos devem

    pagar pelo bem que desejam. Ou seja: votar no

    mercado-plebiscito, com as cdulas de que

    dispem. Aplica-se nesse caso o chamado

    princpio de excluso: quem no paga... no

    pega.

    Com os bens pblicos, contudo, nem

    sempre o princpio de excluso pode ser

    aplicado eficientemente, ainda que em certoscasos pudesse s-lo. Pode-se cobrar do cidado

    o espao que ocupa no seu passeio pelos

    parques, ou o tempo em que permanece sentado

    nos bancos da praa, ou o benefcio da

    iluminao das ruas.

    21' Paul Samuelson,Introduo anliseeconmica, vol. 1 (So Paulo: Agir, 1973), p. 67.22Ibid.,p.91

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    Na tradio econmica representada

    por Samuelson, um lugar especial caberia aos

    bens pblicos, devido a alguns fenmenos:

    impossibilidade de aplicar o princpio

    de excluso;

    monoplios naturais (impossibilidade

    tcnica de contar com dois ofertadores do

    mesmo bem num mesmo espao);

    economias de escala e "conjuno" de

    oferta (oferta e custos so fixos ou pelo

    menos no linearmente proporcionais ao

    nmero de clientes);

    externalidades (efeitos, positivos ou

    negativos, no computveis e portanto no

    "cobrveis" de determinadas atividades).

    Como o consumo dos bens pblicos no

    depende clara e diretamente do pagamento -

    que o voto vlido no mercado -, as

    preferncias dos consumidores e usurios no

    so reveladas atravs de gastos efetivos,

    individualizveis e visveis a olho nu. Emoutras palavras, os economistas reconheciam a

    a existncia de atividades geradoras de

    beneficios que no podem ser comercializados

    (e registrados em escalas de preos) porque

    seria impraticvel confin-los a agentes

    individuais.

    No h, nesse caso, demanda no sentido

    estrito. H contudo uma pseudodemanda, um

    quase-mercado. Qual o procedimento vivelpara verificar essas preferncias, para fazer com

    que se revele essa curva de pseudodemanda?

    Ela se revelaria mediante um processo poltico -

    voto, presses, motins, barricadas - e no por

    mecanismos de mercado. Enquanto neste

    ltimo havia demanda em sentido estrito e voto

    em sentido lato, no caso dos bens pblicos h

    demanda em sentido lato e voto em sentido

    estrito. Nesse caso, as preferncias apareceriam

    sob a forma de programas em disputa numa

    determinada arena poltica.

    No primeiro caso, a escolha (eleio)

    era revelada por um simulacro do voto ou

    referendo - ou, na metfora neoliberal

    extremada de Von Mises, pelo verdadeiro e

    legtimo referendo, o das trocas, usurpado pelo

    falso, o da democracia poltica. Cada

    consumidor vota com um nmero incerto de

    cdulas e desse modo determina o que a

    sociedade vai ser, para onde vai se inclinar a

    configurao produtiva, isto , quantos e quais

    efetivamente viro a ser os sapateiros,

    aougueiros, padeiros, cervejeiros, etc. Compra

    literal, votao metafrica. No caso dos bens

    pblicos, analogamente, mas invertendo os

    termos, teramos um simulacro do mercado

    (uma quase demanda) e um real processo de

    votao.

    Rumo ao mercado e ao quase-mercado

    A public choice nasce justamente do

    estudo da diferena entre esses dois universos e

    da tentativa de conduzir um deles ao modo

    operativo do outro - tornar as "decises no-

    mercado" mais prximas das "decises do tipo

    mercado", como diz Buchanan. Por isso,

    peculiar a maneira como essa escola de

    pensamento interpreta e contesta a situaodescrita por Samuelson. Aceita, desde logo, a

    distino entre os dois mecanismos de

    manifestao e agregao das preferncias:

    1) Mercado - o mundo das escolhas

    individuais, das iniciativas descentralizadas.

    Nele, a preferncia revela-se pela adeso (ou

    abandono) do cliente a um fornecedor, pela

    substituio de um bem/servio por outro, etc.

    2) Poltica - o terreno das escolhas e

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    decises coletivas, das iniciativas

    centralizadas, dos espaos, bens e servios

    compartilhados ou consumidos em comum.

    Aqui, a preferncia revela-se pelo apoio ou

    veto a programas polticos.

    No mercado, temos um referendo

    permanente, silencioso, impessoal e de imediata

    apurao. Na poltica, um referendo que se

    realiza apenas de tempos em tempos,

    personalizado, ruidoso e de suspeita eficincia

    (circularidade, apurao mais vulnervel

    fraude, etc.). Equacionados desse modo os

    termos do problema, a pergunta que nossos

    neoconservadorers fazem tem uma resposta em

    grande medida j preparada: nesse terreno, o

    das escolhas sobre bens pblicos e aes

    coletivas, ser possvel criar instituies e

    mecanismos que emulem o mercado? Seria

    melhor que assim fosse - ento... como fazer

    para que assim seja?

    Para justificar suas propostas, comeampor observar o seguinte: alguns bens tidos

    usualmente como pblicos no so

    necessariamente pblicos, ou no precisam ser

    obrigatoriamente pblicos nem inteiramente

    pblicos. Os advrbios apontam a sada.

    1) Em muitas situaes pode-se

    individualizar o usurio (consumidor ou

    cliente) e cobrar pelo acesso ao bem - o caso

    dos servios educacionais. Aqui, trata-seclaramente de substituir um mecanismo de

    manifestao das preferncias - as decises

    polticas - por outro mais eficiente e confivel,

    o mercado. Em vez de uma poltica pblica de

    educao, deixa-se que os indivduos faam a

    sua poltica de educao no mercado de

    servios escolares. Um "subcaso" pode ser

    previsto nessa alternativa. Mesmo que se queira

    - por algum motivo tico ou poltico - garantir o

    acesso a esse bem para indivduos que no o

    podem comprar, no necessariamente a

    proviso do bem deve coincidir com a

    produo23.

    2) Com relao a casos menos claros,

    possvel optar por outra estratgia - tornar

    locais a produo e/ou distribuio de

    determinados bens e servios antes oferecidos

    num mbito regional ou nacional e, desse

    modo, segmentar ou "particionar" a cidadania

    para tornar mais "competitiva" a oferta dos

    bens e servios. Viabiliza-se para o cidado,

    aqui j convertido em usurio ou consumidor, a

    escolha entre fornecedores, criando situaes

    que permitam este tipo de comportamento, a

    resposta a este tipo de alternativa: "Se voc

    quiser essa cesta de bens, a esse preo, v para

    a cidade X; se quiser outra configurao v para

    a cidade Y". Enfim, viabiliza-se a existncia de

    estruturas, regras e p