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Manuel Morais Antropólogo, de esquerda, anti-racista e agente da PSP

Morais Antropólogo, de esquerda, anti-racista e agente da · As facetas de Manuel Morais No topo, à esquerda, Manuel Morais durante uma operação num bairro dos arredores de Lisboa;

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Page 1: Morais Antropólogo, de esquerda, anti-racista e agente da · As facetas de Manuel Morais No topo, à esquerda, Manuel Morais durante uma operação num bairro dos arredores de Lisboa;

ManuelMoraisAntropólogo,de esquerda,anti-racista eagente da PSP

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Perfil Manuel Morais Filho e neto de comunistas que lutaram contrao regime, enfrentou por estes dias um "exército" por causa da sua

investigação académica sobre racismo entre polícias. Visto comotraidor, teve de abandonar o cargo de dirigente sindical que exercia hámais de 20 anos. Quem é, afinal, este homem que pôs o país a falar deracismo?

Por Joana Gorjão Henriques texto e Nuno Ferreira Santos fotografia

Antropólogo,

de esquerda,agente do corpo de interven-

ção da PSP e anti-racista: são

quatro características quenão costumam estar asso-ciadas. Mas estão em ManuelMorais. Podia acrescentar-semais uma: é alguém que se

comove com frequência. As lágrimas vêm-lheaos olhos quando fala da família ou de um epi-sódio com que se confrontou durante o seutrabalho. Foi comando, está no Corpo de

Intervenção da PSP, conhecido por ser muscu-lado. Ingressou nas duas profissões com a mis-são de mudar a sociedade, para defender "osvalores do 25 de Abril e da democracia".

Hoje enfrenta o sistema e um batalhão decríticas por tocar num dos pontos mais sensí-veis da sua instituição e da sociedade portu-guesa: a existência de racismo, ou como elelhe prefere chamar, de "preconceitos étnicos" .

Tornou-se uma caixa de ressonância da ani-mosidade que se vem criando dentro de algunssectores da polícia em relação aos movimentosanti-racistas e um alvo das guerras entre as

duas dezenas de sindicatos.Muita gente apoiou-o, muita gente lhe escre-

veu a prestar solidariedade. Dos Comandos,uma "escola de camaradagem", recebeu imen-sas mensagens. "É uma irmandade impressio-nante."

O telefone toca frequentemente; multipli-cam-se os posts no mural do Facebook compalavras elogiosas. Há quase uma semana, aca-bou por renunciar ao cargo de vice-presidentedo maior sindicato de polícia, a AssociaçãoSindical de Profissionais de Polícia (ASPP).

Há o apoio, mas também houve as ameaças,e de morte. Ataques de colegas espalharam-senas redes sociais. Páginas anónimas de Face-

book, como Charlie Papa ou Carro de Patrulha,com teor intimidatório, fizeram dele o cordei-ro a sacrificar. "A minha cabeça está no sítioonde deve estar e sai reforçada", afirma tran-

quilamente ao P 2esta semana. "Tive momen-tos de desespero. O polícia já não aguentava,tive de ir buscar ao baú das emoções o coman-do que existe em mim para resistir. Mas nãodesesperei. Os inimigos são sem cara, não pas-sam de covardes."

Nascido a25 de AbrilManuelMoraisconta comorgulhoquenasceu nodia 25 deAbril, masde1965.Lembra-se,aliás, queuma dassuasmelhoresfestas deanos foi

justamenteno dia da

Revolução:"Tive atédireito a

champanhe"

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Na verdade, a sua tese nem sequer está ter-minada. Há um ano, quando partilhou com oDiário de Notícias o resultado do inquérito quefez a dezenas de colegas seus que mostra a

existência de preconceitos raciais houve umachuva de críticas na PSP. Na altura, ManuelMorais continuou a exercer o seu cargo, "se-

gurado" pelo então presidente Paulo Rodri-

gues. Não afirmou nada que organismos comoo Conselho da Europa não tenham antes con-cluído. Mas foi visto como traidor.

Na semana passada, dias depois de oito po-lícias da Esquadra de Alfragide terem sido con-denados a penas de prisão suspensas (um úni-co a efectiva) por falsificação de autos, agres-sões e sequestro de seis jovens da Cova daMoura a controvérsia estalou. Passou na SICuma reportagem em que voltava a partilhar a

sua investigação. Os seus colegas castigaram-no. Uma petição que tem duas centenas deassinaturas pedia o seu afastamento da direc-

ção da ASPP.Paulo Rodrigues concorda com a opção de-

pois de dirigentes dizerem que havia uma "in-

dignação muito grande que estava a levar à

saída de associados". Em causa está o facto deas suas posições terem ficado coladas ao sin-

dicato, que se demarca delas. Desta vez "o pes-soal não perdoou", afirma Rodrigues. "Ao par-ticipar num programa reforça o aspecto nega-tivo em relação à polícia e aquilo não reflecteem nada a realidade", diz. "A malta não sente

que haja racismo na polícia."Não é unânime. Entre alguns sindicatos das

forças de segurança contactados, nenhum quiscomentar. Mas há, dentro do sindicalismo,quem o defenda. Anterior presidente da ASPP,

Alberto Torres considera que "houve grandeincompreensão". "Parece-me que em momen-to algum o Morais procurou colocar pressãosobre os profissionais da PSP, quando se refe-ria à questão do racismo. É um colega solidário,

sempre pronto a ajudar e a dar tudo em prolda instituição e do sindicato. Achei estranhoas reacções que quase sacrificavam a vidadele", afirma, não poupando elogios. "É umser humano extraordinário, lutador, semprepreocupado com a sociedade e os colegas."

Quanto à problemática abordada por Manuel

Morais, certo é que também Alberto Torresnão a reconhece.

O tumulto não parece ter deixado mágoacom o sindicato. Porque é justamente na sededa ASPP em Lisboa que Manuel Morais marcaa entrevista. Percorre os vários escritórios a

cumprimentar quem lá está.

"Um bocado de esquerda"

Pega no telemóvel e começa a ler o post de umamigo de infância de Melgaço, onde nasceu ecresceu. Fala de um "ambiente" politizado naaltura: "Eram os anos 1974, 75 [e Manuel Mo-rais] era um bocadinho de esquerda", escreveo amigo, de direita. Acrescenta: "A verdade é

que nenhum de nós mudou muito." Recorda-o com "uma integridade absoluta" , con- ->

tinua.Comovido ao ler este depoimento, contex-

tualiza: "Sofri a pressão, porque a minha zona,Norte de Portugal, era muito ligada à Igreja. E

uma pessoa ser de esquerda, comunista, eraum estigma forte."

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As facetas de Manuel MoraisNo topo, à esquerda, ManuelMorais durante uma operaçãonum bairro dos arredores deLisboa; ao lado, a dar indicações a

uma turista, numa rua da capitar-em baixo, com outro agente daPSP durante uma manifestaçãodo ASPP, o maior sindicato da

polícia, de que era

vice-presidente há vários anos.Morais demitiu-se deste cargodepois de pressões de outrosassociados

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O avô, de quem herdou o nome, foi presopela PIDE por actividades clandestinas: per-tenceu à Marinha, mas ficou conhecido tam-bém por criar uma banda de música em Mel-

gaço e por ensinar música a pessoas analfabe-tas. Era alguém que o marcou muito, diz coma voz embargada. O pai, também comunista,foi delegado do sindicato dos Correios; geriuuma mercearia em Melgaço. A mãe era domés-tica e "tem uma força" que Manuel Morais não

consegue descrever. Os dois estão vivos.

Sorridente, com orgulho, conta que nasceuno dia 25 de Abril, mas de 1965. Lembra-se,aliás, que uma das suas melhores festas de anosfoi justamente no dia da Revolução. Costuma-va ir a um café ver uma série num canal detelevisão espanhola e nessa noite os clientes

festejavam. "Tive até direito a champanhe."É de esquerda, mas, quanto a ser comunista,

responde com uma história, como tantas vezesao longo da conversa. Já pertencia à ASPP e oseu chefe na altura ameaçou-o de que ia con-

trolar os seus passos. Proibiu-o de distribuirpanfletos entre os colegas. Perguntou-lhe tam-bém: "O senhor é comunista?" Ao que ManuelMorais respondeu. "Não sei. Mas se comunis-ta é defender os mais fragilizados, se comunis-ta é defender os que precisam, se comunistaé ter ideia de que a sociedade deve ser maisjusta e equilibrada, então sou. Se ser comunis-ta é ser do partido da foice e do martelo, nãosou."

Um dia apareceram panfletos e o coronelconfrontou-o. Respondeu: "Dei-lhe a minhapalavra. Esses panfletos podia ser toda a gente[a distribuir] menos eu. Mas acordo os meuscolegas à noite e digo o que tenho para dizer,

porque disso o senhor não me proibiu e eu nãolhe dei a minha palavra."

Então, como agora, a sua vida no sindicatoe na polícia misturam-se. Se o seu papel nãofosse tão importante, talvez as palavras nãotivessem tido o mesmo impacto. No espaçopúblico as intervenções dos sindicatos da po-

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lícia - quase duas dezenas - confundem-secom as da direcção nacional (DN). Abordamtemas que vão além de questões laborais. Eneste momento vivem um conflito, porque saiu

uma lei que limita o número de sindicatos deacordo com a sua representatividade e restrin-

ge o número de folgas que dirigentes podemgozar para a actividade sindical. A ASPP, queem tempos dominou como sindicato, tem hojeuma forte concorrência; a ameaça de perda deassociados foi um dos motivos evocados parao afastamento de Manuel Morais.

Ex-ministra da Administração Interna queavançou com uma proposta de lei de alteraçãodo regime sindical da PSP, Constança Urbanode Sousa não percebe esse argumento. Afirma

que a lei beneficia justamente sindicatos comoa ASPP por ser "sério" e "representar a corpo-ração". A ex-ministra conheceu-o por causadas várias horas de negociação que passarame lamenta a sua saída. "Um bom profissional,muito empenhado na defesa dos interesses da

corporação e da PSP." Nunca debateram as

questões do racismo nas forças de segurança.Considera, porém, que se, Manuel Moraisapontou a existência deste fenómeno, pedir asua expulsão foi exagerado. "Se o racismo exis-

te na sociedade portuguesa, não podia deixarde existir na PSP, a PSP é feita de pessoas", diz."Não tinha de ser um ponto sensível. Se há umproblema, há mecanismos internos para resol-ver esse problema", afirma a ex-professora, queleccionou no Instituto Superior de CiênciasPoliciais e Segurança Interna.

Com tantos anos de sindicalismo, ManuelMorais podia muito bem ter sido aliciado porum partido. E, de facto, foi-o. Mas não por umpartido de extrema-direita, como recentemen-te os seus colegas Peixoto Rodrigues e Pedro

Magrinho, dirigentes sindicais que se aliarama André Ventura, num gesto mal recebido porvários quadrantes.

Esta associação de agentes da PSP a um líderpopulista - que já se pronunciou contra os ci-

ganos ou a favor de pena de morte - não geroua contestação na classe.

Será pela habitual associação da polícia àdireita? Na PSP "há pessoas de todos os qua-drantes políticos, dos mais extremos aos maismoderados", responde. Cauteloso, não quercomentar a participação política daqueles co-

legas, como não quer comentar o caso da Es-

quadra de Alfragide, defendido por advogadosdo sindicato de Peixoto Rodrigues. "Se [o par-tido] foi aceite pelo Tribunal Constitucional,deixa-me agarrado", comenta. "Eu que defen-do a liberdade e a democracia tenho dificulda-de em fazer críticas."

Porém, não tem problemas em distanciar-sede André Ventura: "Se tivesse responsabilida-de no Tribunal Constitucional, claro que não

teria aceite [o Basta] como partido democrá-tico. A democracia não é nada disto. Mas se

assumo que defendo a democracia até à ultimagota de sangue, a democracia nao e so aquiloque penso."

O único negro na vila

Melgaço, uma das terras mais a norte de Por-

tugal, vem à conversa várias vezes. Com cincoirmãos, ele é o segundo mais velho. Um delestambém é polícia. Dá um enquadramento so-

bre a batalha que hoje trava ao explicar que nasua vila vivia um único negro: "Era o senhorPedro, muito acarinhado e uma figura caris-mática da vila porque era o único. Toda a gen-te se lembra dele. Tinha sido trazido de África

pelo patrão, um médico."Não foi por essa condição que o via como

alguém inferiorizado pela comunidade, e

justifica-o com o facto de se dizer que a he-

rança do médico tinha ido para o filho do

senhor Pedro. Manuel Morais acredita nateoria do lusotropicalismo, a de que Portugalteve um colonialismo diferente - mas quehoje é altamente contestada.

Até chegar à tropa conhecia, assim, "umuniverso muito branco", continua. "Chegueia Lisboa e havia milhentas pessoas [negras]e milhentas ideias de intolerância." Outrarelação que o marcou foi nos Comandos, comum homem a quem chama "irmão". Maisuma história, numa prova de choque, ondemorrem pessoas: o relato tem vários contor-nos, mas acaba com o colega de origem afri-cana a partilhar a parca água do seu cantil,porque Manuel Morais tinha ficado sem nada."Descobri um dos meus grandes amigos.Quando uma rolha de água é a vida, só pos-so comover-me", diz, novamente de voz emo-cionada. "Percebi que ele era muito melhordo que eu; se eu achava que era boa pessoa,por partilhar, ele arriscou tudo para mantervivo um indivíduo que podia ser seu rival.Acho que me ajudou a cimentar as ideias; foimais uma prova de que não há ninguém di-ferente, independentemente da cor."

Ao longo do seu percurso profissional tevevários confrontos por causa dos preconceitos.Mas nunca deixou de ser amigo de ninguémpor ter posições diferentes. "Quando alguémtem este tipo de discurso, costumo dizer: dei-xa um filho teu num bairro destes, sem perma-nência dos pais, que têm que trabalhar de ma-nhã à noite, a reproduzir vivências de margi-nalidade e vais ver que o filho da p... é o teu.[Se fizeres o contrário,] vais ver que a pessoaque criaste e a quem deste amor, independen-temente da cor que tenha, é excelente. Sei quehá excepção, mas a regra é esta."

Esta convicção vem do seu passado, mas

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também da experiência do polícia que andou

pelo país em "todos os bairros". "Quando es-

tivemos no realojamento da Quinta do Mocho

[em Loures], íamos para lá de cara tapada.Nessa altura vi uma menina que me fez estalaras lágrimas: estava a estudar por baixo de umcandeeiro, porque lhe tinham cortado a luz.Esta menina, se não tiver oportunidade, vaiser uma cidadã como aquelas a quem não dão

oportunidade. A sociedade não tem de serassim. São estas imagens que me dão forçapara tentar mudar."

Foi já depois de estar na PSP que decidiutirar a licenciatura em Antropologia, no Insti-tuto Superior de Ciências Sociais e Políticas.

Isto, porque "achava que podia ser muito me-lhor profissional de polícia". E acertou "emcheio", diz. O interesse pela temática surgiunaturalmente. "Para mim era fácil." Estavanuma posição privilegiada, que poucos conse-

guem combinar: tinha uma boa relação com a

polícia e com as pessoas dos bairros que esco-

lheu, perto de sua casa: Arrentela, Jamaica,Quinta da Princesa.

Chegados aqui, o que é que o inquérito mos-trou, e que ainda não está vertido em tese? "Os

colegas dizem que não são racistas, porquenão é aquilo que eles sentem e não sabem quesão preconceituosos. Não é um preconceitopolicial, é um preconceito nacional que é aforma como vemos o outro como diferente."Da sua amostra à pergunta "Acha que a etniatem ligação directa com o crime?", a maioriaresponde: "Então não sabes que eles são todos

pretos ou ciganos?" Afirma: "O erro é a asso-

ciação entre comportamentos criminais e a cordas pessoas. É uma associação inconsciente,por causa do preconceito. Esta ligação é queestraga tudo, estraga o trabalho da polícia. Masnão me preocupava nada se fosse só na políciaque existissem estes preconceitos." Por outrolado, à segunda pergunta, "E os pais?", os res-

pondentes dizem: "Os pais trabalham de ma-nhã à noite e merecem respeito." Manuel Mo-rais não chama a isto "racismo" mas "incons-ciência e estupidez".

E "qual a diferença de um preconceito étni-co num polícia e num talhante?", pergunta eleretoricamente. "Os polícias têm uma obrigaçãodiferente: têm de tratar os cidadãos por iguale o preconceito vai redimensionar a nossa ca-

pacidade humana, acaba por nos condicionar.Tenho obrigação de ter um comportamentolinear com todo o cidadão, o nosso juramentoé nesse sentido. Se explicar isto a um polícia,ele não entende. "

Manuel Morais não quer dar exemplos con-cretos de discriminação. Apenas diz que sem-

pre que viu acontecer interveio. Por outro lado,também não quer pôr os polícias de um ladoe os cidadãos do outro. Sublinha que, apesar

de nunca ter sido recebido à pedrada ou aotiro, essas são situações que acontecem a co-

legas seus. "O polícia devia ser um super-herói,mas tem as suas fragilidades. Não podemosesperar que vá fazer carinhos a quem lhe man-da pedradas. Eles levam a carga toda em cima,sabem que podem morrer. Os problemas dosbairros não são policiais, são sociais."

Preconceito e não racismo

Fala muito de preconceito, mas nada de racis-mo. Evita a palavra, quando pode estar prestesa dizê-la. Afinal, usá-la custou-lhe caro. "Nãoacredito em raças, por isso não pode haverracismo", explica. "Racismo é ódio sobre ooutro. E não é disso que estamos a falar: esta-

mos a falar de preconceito. A maioria dos po-lícias, de agentes aos directores, não tem este

tipo de ideia, que é o ódio em relação ao outro,para exterminar."

É certo que se cruzou com gente a adorarHitler e Salazar, só que esses "são uma mino-

ria", afirma. "A direcção nacional tem obriga-

ção de fazer o trabalho [de identificar e actuarnos casos em que há a divulgação deste tipode ideias]."

Mas já viu, ou ouviu, colegas a veicularemideias racistas, do modo como ele as define?"Um grupo da guarda prisional que é altamen-te racista apareceu vestido de preto com a mãoestendida quando subimos as escadas da As-sembleia da República [numa manifestação háuns anos] ." Na altura, Manuel Morais confron-

tou-os, denunciou-os. "Não quer dizer que não

haja na polícia, mas eu não vi nenhum."Nem a DN da PSP nem o MAI se quiseram

posicionar quanto à saída de Morais. E poucos,ou quase nenhuns políticos, se manifestaram,à excepção da ministra da Justiça, Franciscavan Dunem, que disse que Morais se expôs e"abriu janelas para o futuro", alertando paraa necessidade de conhecer o fenómeno.

Magistrado jubilado ligado ao movimentosindical da PSP sobre o qual escreveu um livro,António Bernardo Colaço considera, aliás, queManuel Morais acabou "a desempenhar a fun-

ção que a DN e o Governo" deveriam exercer.Escreveu a Paulo Rodrigues afirmando que"todos sabem que manifestações de xenofobiae de racismo são uma realidade" e que "se nasociedade é assim, é plausível que noutras ins-

tituições, incluindo a policial, também as

haja".Ao P 2diz que o sindicalista não quis "dene-

grir fosse quem fosse" . "Um sindicato não ser-

ve apenas para enaltecer os actos da polícia,mas para contribuir para a formação do agen-te. Manuel Morais está a contribuir para umamaior dignificação da instituição sindical e da

polícia" . De resto, recorda-o como alguém com

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"o coração nas mãos", uma pessoa "muitoemotiva", "franca", "sem papas na língua"."Vive a profissão dele como uma missão."

É de missão e de dedicação que ManuelMorais fala. Custa imaginá-lo a usar a força,até por essa característica visível de se emo-

cionar. Afinal, como é que o agente da PSPdo Corpo de Intervenção age no momento?Já usou excessivamente a força? "Claro quesim", responde. "Mas 90% das situações re-solvia-as com conversa." Independentemen-te de tudo, seja quem for, sejam até "margi-nais", o seu lema é tratar as pessoas comrespeito.

Neste momento o grande objectivo é acabara tese. A sua orientadora, a antropóloga Sônia

Frias, tem insistido. A investigação não é apenasinédita, mas também necessária, sustentadacom trabalho de terreno, diz. "Não está a falarde cor", as entrevistas que fez a polícias e a

negros obedecem a critérios "científicos". "São

entrevistas onde se notam impressões de ra-cismo na abordagem dos actos criminosos",diz. "Do que li, percebe-se que há abusos, [si-

tuação que] tem que ver com a falta de forma-

ção nesta área." Preocupa-a a reacção do sin-dicato. "Não há que questionar as pessoas quequerem trazer isso para o debate. Tenho mui-tíssimo orgulho no Manuel enquanto aluno,cidadão e polícia. É uma pessoa muito constru-tiva que foge àquilo que é normal, um homemde causas, um homem que não tolera injustiçae isso vê-se em pormenores.

"

Também a antropóloga Elsa Peralta, que foisua professora, recorda um homem activo e

participativo nas aulas. O seu perfil mostra a

importância do curso de humanidades e deciências sociais na formação de profissionaiscomo os polícias. "Tem a minha solidariedadee apoio. É preciso ter coragem para fazer o quefez. É muito importante ser apoiado por aque-les que defendem a causa, não ficar sozinho.Ele é um polícia branco, que tem reflexividade

e uma acção em concordância", completa.Mais reservada, a antropóloga Susana Durão,

autora de vários estudos sobre forças de segu-

rança e do livro Esquadra dePolíáa, refere que"a polícia não é habitada por santos" : "Temosde perceber se a expulsão de Manuel Moraisse deve ao facto de este ter manifestado publi-camente a posição de que na polícia existe ra-cismo ou se é algo mais complexo e antigo,como o pretexto para um ajuste de contas."

Isto, porque a vida sindical "representavárias orientações políticas" e a sua plurali-dade pode "gerar imagens contraditórias deuma polícia que luta por ideais de unidade,disciplina, hierarquia de comando e deci-são". Vai mais longe: "Seria importante ve-rificar se não está a usar essas declaraçõespúblicas para receber apoio da população,quando percebe que sua pertença institucio-nal está fragilizada. Quanto à matéria que le-vou Morais a demitir-se, reconhece o racismoestrutural e afirma que a impressiona as "acu-

sações circulares" de racismo policial feitas

pelos bairros pobres e negros e as manifesta-

ções em defesa da humanidade dos polícias,alegando as suas condições de trabalho, vidae salários - as queixas, da sua pesquisa em2004 e 2005, eram as mesmas dos dois lados.

Interroga-se, porém, sobre a responsabilidadedo Governo neste assunto.

De volta à sala da ASPP: está na hora de al-

moço. "Depois de 20 e muitos anos, não queriasair desta maneira", desabafa Manuel Morais."Mas se por causa deste motivo tenho de sair,sairia mil vezes. Sou um homem de convicções.Vim para o sindicato porque acreditei que eraa forma de os polícias terem uma vida digna.Não trabalharia à borla 30 anos se achasse queera para indivíduos que não merecem: a ASPPdeu-me uma dimensão humana extraordiná-ria", confessa. "Não perdi a dignidade. Nãoperdi nada."

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