Moralismo Capenga - Revista de História

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A corrupção durante a ditadura militar no Brasil

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  • 28/02/2015 MoralismocapengaRevistadeHistria

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    Moralismo capengaO combate corrupo foi palavra de ordem durante a ditadura. Nos pores doregime, porm, a ilegalidade prevaleceu.

    Heloisa Maria Murgel Starling23/3/2009

    Combater a corrupo e derrotar o comunismo: esses eram os principais objetivos que fermentavamos discursos nos quartis, s vsperas do golpe que derrubou o governo Joo Goulart, em maro de1964. A noo de corrupo dos militares sempre esteve identificada com uma desonestidadeespecfica: o mau trato do dinheiro pblico. Reduziase a furto. Na perspectiva da caserna,corrupo era resultado dos vcios produzidos por uma vida poltica de baixa qualidade moral e vinhaassociada, s vsperas do golpe, ao comportamento viciado dos polticos diretamente vinculados aoregime nacionaldesenvolvimentista.

    Animado por essa lgica, to logo iniciou seu governo, o marechal Castello Branco (19641967)prometeu dar ampla divulgao s provas de corrupo do regime anterior por meio de um livrobranco da corrupo promessa nunca cumprida, certamente porque seria preciso admitir oenvolvimento de militares nos episdios relatados. Desde o incio o regime militar fracassou nocombate corrupo, o que se deve em grande parte a uma viso estritamente moral da corrupo.

    Essa reduo do poltico ao que ele no a moral individual, a alternativa salvacionista definiu odesastre da estratgia de combate corrupo do regime militar brasileiro, ao mesmo tempo emque determinou o comportamento pblico de boa parte de seus principais lderes, preocupados emvalorizar ao extremo algo chamado de decncia pessoal.

    Os resultados da moralidade privada dos generais foram insignificantes para a vida pblica do pas.O regime militar conviveu tanto com os corruptos, e com sua disposio de fazer parte do governo,quanto com a face mais exibida da corrupo, que comps a lista dos grandes escndalos deladroagem da ditadura. Entre muitos outros esto a operao Capemi (Caixa de Peclio dosMilitares), que ganhou concorrncia suspeita para a explorao de madeira no Par, e os desvios deverba na construo da ponte RioNiteri e da Rodovia Transamaznica. Castello Branco descobriudepressa que esconjurar a corrupo era fcil; prender corrupto era outra conversa: o problemamais grave do Brasil no a subverso. a corrupo, muito mais difcil de caracterizar, punir eerradicar.

    A declarao de Castello foi feita meses depois de iniciados os trabalhos da Comisso Geral deInvestigaes. Projetada logo aps o golpe, a CGI conduzia os Inquritos PoliciaisMilitares quedeveriam identificar o envolvimento dos acusados em atividades de subverso da ordem ou decorrupo. Com jurisdio em todo o territrio nacional, seus processos obedeciam a rito sumrio eseus membros eram recrutados entre os oficiais radicais da Marinha e da Aeronutica que buscavamutilizar a CGI para construir uma base de poder prpria e paralela Presidncia da Repblica.

    O Ato Institucional n. 5, editado em 13 de dezembro de 1968, deu incio ao perodo mais violento erepressivo do regime ditatorial brasileiro e, de quebra, ampliou o alcance dos mecanismosinstitudos pelos militares para defender a moralidade pblica. Uma nova CGI foi gerada no mbitodo Ministrio da Justia com a tarefa de realizar investigaes e abrir inquritos para fazer cumpriro estabelecido pelo Artigo 8. do AI5, em que o presidente da Repblica passava a poder confiscarbens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exerccio de cargo ou funo pblica.

    Para agir contra a corrupo e dar conta da moralidade pblica, os militares trabalharam tanto coma natureza ditatorial do regime como com a vantagem fornecida pela legislao punitiva. Deu emnada. Desde 1968 at 1978, quando foi extinta pelo general Geisel, a CGI mancou das duas pernas.Seus integrantes alimentaram a arrogante certeza de que podiam impedir qualquer forma derapinagem do dinheiro pblico, atravs da mera intimidao, convocando os cidados tidos comolarpios potenciais para esclarecimentos.

    A CGI atribuiuse ainda a megalomanaca tarefa de transformar o combate corrupo numa redenacional, atuando ao mesmo tempo como um tribunal administrativo especial e como uma agnciade investigao e informao. Acabou submergindo na prpria mediocridade, enredada em umarea de atuao muito ampla que inclua investigar, por exemplo, o atraso dos salrios dasprofessoras municipais de So Jos do Mipibu, no Rio Grande do Norte; a compra de adubo

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    superfaturado pela Secretaria de Agricultura de Minas Gerais e as acusaes de irregularidades naFederao Baiana de Futebol. Entre 1968 e 1973 os integrantes da comisso produziram cerca de1.153 processos. Desse conjunto, mil foram arquivados; 58 transformados em propostas de confiscode bens por enriquecimento ilcito, e 41 foram alvo de decreto presidencial.

    Mas o fracasso do combate corrupo no deve ser creditado exclusivamente aos desacertos daComisso Geral de Investigaes ou recusa de membros da nova ordem poltica em pagar o preoda moralidade pblica. A corrupo no poupou a ditadura militar brasileira porque estavarepresentada na prpria natureza desse regime. Estava inscrita em sua estrutura de poder e noprincpio de funcionamento de seu governo. Numa ditadura onde a lei degradou em arbtrio e ocorpo poltico foi esvaziado de seu significado pblico, no cabia regra capaz de impedir adesmedida: havia privilgios, apropriao privada do que seria o bem pblico, impunidade eexcessos.

    A corrupo se inscreve na natureza do regime militar tambm na sua associao com a tortura omximo de corrupo de nossa natureza humana. A prtica da tortura poltica no foi fruto dasaes incidentais de personalidades desequilibradas, e nessa constatao reside o escndalo e a dor.A existncia da tortura no surgiu na histria desse regime nem como algo que escapou ao controle,nem como efeito no controlado de uma guerra que se desenrolou apenas nos pores da ditadura,em momentos restritos.

    Ao se materializar sob a forma de poltica de Estado durante a ditadura, em especial entre 1969 e1977, a tortura se tornou inseparvel da corrupo. Uma se sustentava na outra. O regime militarelevou o torturador condio de intocvel: promoes convencionais, gratificaes salariais e atrecompensa pblica foram garantidas aos integrantes do aparelho de represso poltica. Casoexemplar: a concesso da Medalha do Pacificador ao delegado Srgio Paranhos Fleury (19331979).

    A corrupo garantiu a passagem da tortura quando esta precisou transbordar para outras reas daatividade pblica, de modo a obter cumplicidade e legitimar seus resultados. Para a torturafuncionar preciso que na mquina judiciria existam aqueles que reconheam como legais everossmeis processos absurdos, confisses renegadas, laudos periciais mentirosos. Tambm necessrio encontrar gente disposta a fraudar autpsias, autos de corpo de delito e a receberpresos marcados pela violncia fsica. preciso, ainda, descobrir empresrios dispostos a fornecerdotaes extraoramentrias para que a mquina de represso poltica funcione com maiorpreciso e eficcia.

    A corrupo quebra o princpio da confiana, o elo que permite ao cidado se associar parainterferir na vida de seu pas, e ainda degrada o sentido do pblico. Por conta disso, nas ditaduras,a corrupo tem funcionalidade: serve para garantir a dissipao da vida pblica. Nas democracias e diante da Repblica seu efeito outro: serve para dissolver os princpios polticos que sustentamas condies para o exerccio da virtude do cidado. O regime militar brasileiro fracassou nocombate corrupo por uma razo simples s h um remdio contra a corrupo: maisdemocracia.

    Heloisa Maria Murgel Starling professora de Histria da Universidade Federal de Minas Gerais ecoautora de Corrupo: ensaios e crticas (Editora da UFMG, 2008).

    Saiba Mais Bibliografia:

    FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrneos da ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2001.

    GASPARI, Elio. Coleo As Iluses Armadas. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.

    RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social: o alto custo da vida pblica no Brasil. SoPaulo: Companhia das Letras, 2000.