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MORTE E VIDA EM GIL VICENTE E JOÃO CABRAL DE MELO NETO

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MORTE E VIDA

EM GIL VICENTE E JOÃO CABRAL DE MELO NETO

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EXAME DE DISSERTAÇÃO

PIMENTEL, Danúbia Tupinambá. Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: 1o Semestre de 2005. 81 p.

BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________________ Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval (Orientadora – UERJ)

____________________________________________________ Profa. Dra. Nadiá Paulo Ferreira (UERJ)

____________________________________________________ Profa. Dra. Maria Cristina de Sousa Brito (UNIRIO)

____________________________________________________ Profa. Dra. Suely Reis Pinheiro (UFF - Suplente)

____________________________________________________ Prof. Dr. Iremar Maciel de Brito (UERJ - Suplente)

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Programa de Pós-graduação em Letras

Morte e vida

em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Por

Danúbia Tupinambá Pimentel

Dissertação apresentada ao Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de Mestre em Literatura Portuguesa.

Orientadora: Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval

Rio de Janeiro

2005

Este trabalho é dedicado a todos que direta ou indiretamente

contribuíram na elaboração do mesmo.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a meus pais por tudo que fizeram e ainda fazem por mim: o investimento na minha educação, o apoio, às vezes em palavras duras, diante das frustrações e, principalmente, por acreditarem em mim mais do que eu mesma. Ao meu ex-namorado, mas para sempre amigo, Márcio Sousa Lima, que durante a Graduação e até este último instante esteve comigo, me apoiando em tudo, sempre com palavras amigas. À Professora Doutora Maria do Amparo Tavares Maleval, minha orientadora, que desde a Graduação, quando fui sua aluna e estagiária do Programa de Estudos Galegos, do qual é Coordenadora, demonstrou ter grande confiança em mim. Somente por causa do apoio dela e do muito que contribuiu para despertar em mim o gosto pela Idade Média, bem como pela sugestão do tema desenvolvido nesta dissertação, é que posso me ver hoje aqui, elaborando esta folha de agradecimentos. Aos professores doutores do curso de Mestrado, Iremar Maciel de Brito, Marcus Motta, Nadiá Paulo Ferreira e Victor Hugo Pereira Adler, que contribuíram no meu enriquecimento intelectual, orientando-me nas pesquisas empreendidas durante o curso. Ao CNPq, pela bolsa de estudos que me foi concedida para a realização deste trabalho. Agradeço, ainda, à minha grande amiga Caroline Reis, que, sempre solícita, lia meus trabalhos, resumos, textos em geral, para emitir opiniões e sugestões sempre proveitosas. Às minhas amigas Fabiana dos Anjos e Meichele Cândido, “colegas de trabalho” que conheci na faculdade, mas que se tornaram amigas como as de infância. Agradeço, também, à minha amiga e companheira nessa peregrinação, Maria Carolina Vieira, que muitas vezes precisou esquecer dos problemas dela para ouvir os meus e me aconselhar. Muito obrigada. Por fim, agradeço a meus amigos, Bárbara, Jussara, Rafael, Roberta, Thiago e Wagner, sempre com os ouvidos prontos e atentos para todas as lamentações e, também, com um bom papo para me distrair nos momentos mais conturbados.

SINOPSE

Análise comparativa entre os textos vicentinos, Auto da barca do Inferno e

Auto da Alma, e o de João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina: auto

de Natal pernambucano, enfocando os temas medievais morte e

peregrinação e uma estrutura medieval, o Auto, a fim de comprovar a

permanência (e variações) dos mesmos no texto brasileiro.

“Os homens e as mulheres que viviam há mil anos são nossos

ancestrais. Eles falavam mais ou menos a mesma linguagem que nós e

suas concepções de mundo não estavam tão distanciadas das nossas.

Há, portanto, analogias entre as duas épocas, mas existem, também

diferenças, e são elas que muito nos ensinam. Não são as semelhanças

que vão nos impressionar, são as variações que nos levam a fazer-nos

perguntas. Por que e em que mudamos? E em que o passado pode dar-

nos confiança”.

Georges Duby

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...............................................................................................................13 CAPÍTULO I: Morte e vida severina: um auto medieval brasileiro................................23 1.1 O teatro medieval ..............................................................................................23 1.2 O auto medieval no Brasil .................................................................................25

CAPÍTULO II: O conceito medieval de existência em Gil Vicente ................................31 2.1 A peregrinação existencial.................................................................................32 2.2 O Auto da Alma .................................................................................................35

CAPÍTULO III: O post-mortem em Gil Vicente .............................................................44 3.1 A morte na Idade Média ....................................................................................44 3.2 O Auto da barca do Inferno ..............................................................................52 CAPÍTULO IV: A vida severina e a morte na obra de João Cabral ................................58 4.1 Marx e a morte e vida severina do Capitalismo ................................................58 4.2 A vida severina no auto de Natal pernambucano ..............................................62 4.3 A morte no auto de Natal pernambucano ..........................................................70

CONCLUSÃO .................................................................................................................75

BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................78

PIMENTEL, Danúbia Tupinambá. Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ. Orientadora: Professora Doutora Maria do Amparo Tavares Maleval. Rio de Janeiro: 1o Semestre de 2005. 81p.

Palavras-chave: Idade Média; Teatro; Gil Vicente; João Cabral de Melo Neto; Ideologia; Comparativismo

Resumo

As atualizações da Idade Média em textos brasileiros, por

vezes, não são facilmente percebidas, pois não se tem muita

consciência da herança do passado do colonizador na nossa

formação. Buscando contribuir para o preenchimento dessa

lacuna, realizamos este estudo sobre a retomada de temas e

formas medievais em Morte e vida severina: auto de Natal

pernambucano, de João Cabral de Melo Neto. Focalizamos dois

temas muito caros à Idade Média, a morte e a peregrinação, e a

sua re(a)presentação nas obras de Gil Vicente ⎯ Auto da barca

do Inferno e Auto da Alma. Assim procedemos com o objetivo

de constatar semelhanças (e variações) na abordagem dos

mesmos, uma vez que no texto cabralino, assim como na Idade

Média, e em Gil Vicente, a morte e a necessidade de partir para

outros lugares fazem parte da preocupação do homem, embora a

ideologia e os contextos históricos sejam diferentes. Além disso,

estudamos a retomada, pelo escritor brasileiro, de uma

incontestável estrutura medieval, o Auto.

No primeiro capítulo, focalizamos a origem do teatro

medieval e sua influência na criação de um auto tipicamente

brasileiro; no segundo, a ideologia cristã concernente à prática da

peregrinação, seguida de uma análise do Auto da Alma

vicentino; no terceiro capítulo, tratamos do tema da morte,

relacionando-o ao Auto da barca do Inferno de Gil Vicente e ao

contexto histórico, artístico e ideológico da época. E, no final,

verificamos as semelhanças e diferenças entre os dois momentos

⎯ medieval e contemporâneo ⎯, tendo em vista o status de

documento/monumento dos textos cotejados.

PIMENTEL, Danúbia Tupinambá. Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ. Orientadora: Professora Doutora Maria do Amparo Tavares Maleval. Rio de Janeiro: 1o Semestre de 2005. 81p. Palabras claves: Edad Media, Teatro, Gil Vicente, João Cabral de Melo Neto, Ideología, comparativismo

Resumen

Las actualizaciones de la Edad Media en textos

brasileños, por veces, no se perciben fácilmente, pues no se tiene

consciencia de la herencia del pasado del colonizador en nuestra

formación. Procurando contribuir para que se llene ese hueco,

realizamos este estudio sobre la reanudación de temas y formas

medievales en Morte e vida severina: auto de Navidad

pernambucano, de João Cabral de Melo Neto. Enfocamos dos

temas muy caros a la Edad Media, la muerte y la peregrinación,

y su representación en las obras de Gil Vicente – Auto da barca

do inferno y Auto da Alma. Así procedemos con el objetivo de

constatar semejanzas (y variaciones) en el abordaje de los

mismos, una vez que en el texto cabralino, tanto como en la

Edad Media, y en Gil Vicente, la muerte y la necesidad de irse a

otros lugares forman parte de la preocupación del hombre,

aunque la ideología y los contextos históricos sean distintos.

Además, estudiamos la reanudación, por el escritor brasileño, de

una incontestable estructura medieval, el Auto.

En el primer capítulo, enfocamos el origen del teatro

medieval y su influencia en la creación de un auto típicamente

brasileño, la ideología cristiana concerniente a la práctica de la

peregrinación , seguida de un análisis del Auto da Alma

vicentino; en el tercer capítulo, tratamos del tema de la muerte,

relacionándolo al Auto da barca do inferno de Gil Vicente y al

contexto histórico, artístico e ideológico de la época. Y, al final,

verificamos las semejanzas y diferencias entre los dos momentos

– medieval y contemporáneo – teniedo en cuenta el status de

documento/monumento de textos cotejados.

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

INTRODUÇÃO

Quando as barcas do Inferno e da Glória chegam à ribeira do Purgatório, do auto da

barca vicentino de mesmo nome1, o primeiro homem a ser inquirido por causa de seus atos

na Terra é o lavrador. Mas, embora o mesmo tenha sido chamado de “Homem de bem”

(VICENTE, 1965, p.258) pelo Anjo, a sua permanência no terceiro lugar do Além, o

Purgatório, nos aponta possíveis máculas que tenham impedido sua passagem direta para a

barca da Glória.

A bem da verdade, num tempo em que a fé e a religião orientavam a vida do

homem, qualquer ato em desacordo com a doutrina que as representava era um pecado que

poderia condenar uma alma ao Purgatório ou, até mesmo, ao Inferno.

No caso do lavrador, sua fé mecânica foi o motivo de sua condenação ao Purgatório.

No entanto, ao ser questionado sobre sua história de vida, a qual amenizou sua condenação,

uma vez que as falhas que havia cometido decorreram das condições em que sempre viveu,

o mesmo nos aponta semelhanças entre a vida de um lavrador da Idade Média2 e um dos

séculos XX-XXI.

Em seus lamentos, a lembrança de uma vida de sacrifícios também gira em torno de

uma imagem presente em toda a Idade Média: a morte. Sua primeira fala, “Da morte venho

eu cansado, / E cheio de refregereo, / E não posso, mal pecado”(VICENTE, 1965, p.256),

através do duplo sentido em que é empregada a palavra ‘morte’, denuncia um idéia de

morte ainda em vida, antes da condenação da alma, a verdadeira morte, segundo a Igreja.

1 O nome desse texto vicentino é Auto da barca do Purgatório. No entanto, não há uma barca para o terceiro lugar do Além. O que se percebe pela leitura da obra é que o Purgatório está localizado onde estão atracadas as outras barcas. Ou seja, na ribeira. Na obra latina Eneida, no entanto, na qual Gil Vicente certamente inspirou-se para a composição de seu Auto, é preciso atravessar o rio Aqueronte, principal rio dos mortos, antes do julgamento. Com o auxílio do barqueiro Caronte, todas as almas são conduzidas, numa mesma barca, ao Hades, local onde estão situados os três lugares do Além da Antiguidade: Tártaro (correspondente ao Inferno) , Éboro (correspondente ao Purgatório) e Campos Elísios (semelhante aos Céus); em seguida, são julgadas e encaminhadas ao local estabelcido de acordo com os pecados de cada uma delas.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

A morte a que ele se refere é a condenação, ainda em vida, à miséria e maus-tratos,

que, no seu caso, o forçaram a cometer atos que também foram listados no seu “livro da

vida”.

Num relato seguinte, o lavrador, além de elucidar o motivo de suas lamentações,

apresenta, literalmente, o título, ou o mote, de uma obra brasileira do século XX, cujo

enredo traz um lavrador sertanejo como protagonista: “(...) Sempre é morto quem do arado

/ Ha de viver. / Nós somos vida das gentes, / E morte de nossas vidas” (VICENTE, 1965,

p. 258).

A obra brasileira referida é Morte e vida severina: auto de Natal pernambucano, que

foi escrita por João Cabral de Melo Neto3, em 1952, para ser encenada durante as

comemoração do Natal. O livro conta a história de um entre os muitos sertanejos que saem

de sua terra para tentar a sorte nas grandes capitais.

Na caminhada até Recife, Severino depara-se com muitas situações em que a morte

reina, mostrando sua força e poder. E o personagem, dividido entre a fé e a vontade de

mudar sua vida e a onipresença da morte no seu caminho, aos poucos sente esmorecer a

esperança em dias melhores, assim como percebe crescer a vontade de pôr fim a sua vida

miserável. Ou, como o próprio disse, à “morte em vida, vida em morte, severina” (MELO

NETO, 2000, p. 59).

Nos lamentos do lavrador da Idade Média, cujo pano de fundo é a morte, prefigura-

se um outro tema medieval: a peregrinatio. Ao dizer “da morte venho eu cansado”, sua fala

poderia ser substituída por muitas outras em que Severino, protagonista da obra cabralina,

reclama de sua sofrida busca.

A idéia de uma peregrinação acompanhada, de maneira constante, pela morte é

percebida nas respostas do lavrador ao diabo e ao anjo. E, coincidentemente (ou não),

2 O período a que nos referimos como Idade Média é aquele fixado pela tradição histórica, entre os séculos V e XVI (LE GOFF, 1994, p. 22). 3 João Cabral de Melo Neto nasceu no dia primeiro de janeiro de 1920 e faleceu no dia nove de outubro de 1999. Trabalhou em vários países europeus em missões diplomáticas e, paralelamente a essa carreira, dedicava-se a outra: à poesia. Numa dessas missões pela Espanha conheceu a literatura ibérica, que, segundo o próprio, passou a ser sua fonte de inspiração. Dessa paixão, foi criada, entre outras obras, Morte e vida severina, que o consagrou como um grande escritor. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1968.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

também no enredo de Morte e vida severina. No entanto, não será essa obra analisada

comparativamente à obra de Cabral4. Esta personagem foi utilizada estrategicamente para

mostrar, além da sensibilidade vicentina5 em relação aos homens do seu tempo,

semelhanças entre o lavrador medieval e o dos séculos XX-XXI.

Neste sentido, pretendemos refletir sobre a peregrinatio e a morte na Idade Média,

representadas, respectivamente, pelas obras vicentinas Auto da alma e Auto da barca do

inferno, bem como a atualização desses temas na obra de João Cabral. Mas, para isso, é

necessário esclarecer que, devido ao contexto histórico e ideológico dos textos medievais,

nosso objetivo não é determinar semelhanças indiscutíveis e sim, como diria um dos

expoentes da Nova História, Georges Duby, “apresentar variações que nos levam a fazer-

nos perguntas” (DUBY, 1998, p. 13).

Assim, retificamos, antecipadamente, qualquer intenção relacionada à permanência

da mesma mentalidade medieval em nossos tempos, que, porventura, durante a leitura do

nosso trabalho, possa ser sugerida ao leitor, tomando como nossas as palavras do

historiador Jean-Claude Schmitt, na introdução do seu livro Os vivos e os mortos na Idade

Média:

4 É preciso salientar que o estudo empreendido compara textos para teatro. Todavia, estes são analisados como produções literárias, sem nenhuma relação com o teatro enquanto representação, espetáculo.

5 Gil Vicente viveu, aproximadamente, entre os anos de 1495 e 1536. Foi responsável pela modernização e

estilização de todas as formas dramáticas anteriores, adaptando-as ao seu gênio (re)criador. Ao total foram

cerca de cinqüenta peças escritas – sendo que três delas estão desaparecidas –, em trinta e quatro anos de

completa dedicação às festas palacianas, às rainhas e ao gosto popular. Durante esse período, correspondente

a dois reinados, o de D. Manuel e o de D. João III, Gil Vicente foi protegido pelos reis e, sobretudo, pela

Rainha velha, D. Leonor, irmã de D. Manuel e viúva de D. João II, que como ele era adepta do

franciscanismo. Era, portanto, “livre” para comentar, criticar, qualquer fato ou acontecimento da época.Seus

autos são amostras dessa “liberdade artística”, onde encontramos diversas críticas à sociedade de então, desde

os clérigos e pequenos fidalgos até aos artesãos e outros representantes das camadas medianas, bem como aos

camponeses, só escapando delas (as críticas) a realeza. Para mais informações: MALEVAL, Maria do

Amparo Tavares. O teatro. In: MOISÉS, Massaud (Org.). A literatura portuguesa em perspectiva. Vol. 1. São

Paulo: Atlas, 1992.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

(...) pretendo antes mostrar como as crenças e o imaginário dependem antes de tudo das estruturas e do funcionamento da sociedade e da cultura em uma época dada. As “mentalidades” não consistem apenas nos estratos antigos e persistentes dos pensamentos e dos comportamentos, mas nas crenças e nas imagens, nas palavras e nos gestos que encontram plenamente seu sentido na atualidade presente e bem viva das relações sociais e da ideologia de uma época (SCHIMITT, 1999, p. 17-18).

Dessa maneira, a análise comparatista entre obras de épocas distantes ideológica e

temporalmente não deverá subentender a permanência das mentalidades6 de outrora, ainda

que nossa raízes estejam indiscutivelmente fixadas nesse momento da História, que é a

Idade Média. A questão a ser considerada, diante disso, é que o autor da obra brasileira em

foco, após ter tido contato com obras ibéricas, quando exerceu função diplomática na

Espanha, passou a incorporar, em suas obras, técnicas assimiladas nesse contato, como ele

próprio relatou em uma entrevista publicada no livro do grande estudioso de suas obras,

Antônio Carlos Secchin (SECCHIN, 1985, p. 204).

Logo, a mescla de temas, como morte e peregrinação, numa estrutura teatral de

origem medieval − uma prova evidente da herança medieval, apontada desde o título da

peça −, não foi, acreditamos, por acaso. Ademais, há outros gêneros ou espécies literárias

da Idade Média em Morte e vida severina que atestam essa hipótese.

Um desses gêneros medievais é a tenção ou debate poético, revitalizado na conversa

entre Severino e Mestre Carpina.

Discutindo sobre um tema filosófico, Vale a pena a vida ser vivida independente

das condições?, os personagens tomam posições divergentes: Severino contra a vida e

Mestre Carpina a favor, de forma semelhante aos debates ocorridos na Idade Média, na

época dos trovadores.

De acordo com o próprio João Cabral essa cena “obedece ao modelo de tenção

galega” (SECCHIN, 1985, p.304) e, dessa maneira, apresenta uma forma fixa poética, na

qual cada resposta apresenta versos e estrofes de metro e modelo estrófico iguais ao da

pergunta. Além, é claro, de cada desafiante sustentar uma tese diversa.

6 O conceito de mentalidade empregado neste trabalho é o de Jean-Claude Schmitt, como demonstra a citação anterior, retirada do livro do mesmo, Os vivos e os mortos na sociedade medieval.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Essa revitalização da tenção, no entanto, não se encerra no Auto, pois há uma

tradição no Nordeste, em relação a este gênero, alimentada por repentistas, que chamam de

“desafio” ou “peleja” a versão moderna da tenção.

No quarto episódio do Auto, quando Severino chega a uma casa onde moradores

velam um cadáver, é entoado um tipo de canção de origem medieval, outra mostra dessa

influência em Morte e vida severina: os moradores cantam excelências, um gênero muito

comum no Nordeste, cujas raízes estão na Idade Média. Ou mais especificamente, no

‘pranto’ arcaico.

Segundo Maurice Woensel, o pranto – que dá origem à excelência: canto entoado à

cabeça dos moribundos ou dos mortos, cerimonial de velório (...) sem acompanhamento

instrumental, em uníssono, em série de doze versos ritualmente (CASCUDO, 1962, p. 300)

– teria origem na Roma e na Grécia Antigas e teria sofrido algumas alterações na poesia

cristã medieval, por influência da Bíblia. Principalmente do Antigo Testamento, onde há

elogios fúnebres e lamentações.

Houve um tempo, no entanto, em que o pranto não se destinava somente aos mortos,

mas também ao ser amado. Os trovadores lastimavam o desprezo de suas amadas ou,

muitas vezes, semelhante a uma cantiga de amigo, “assumiam a persona da amante que

desabafava seu desespero pela longa demora ou infidelidade do amigo” ( WOENSEL,

1998, p.59).

Os trovadores também compunham prantos para o velório de mortos ilustres, os

quais eram encomendados pela família, ou mesmo, ocasionalmente, para o elogiar o seu

mecenas já morto. Segundo Maria do Amparo Maleval, os trovadores occitanos se

destacaram nessa espécie poética, a qual chamavam de planh ou planch, enquanto os

galego-portugueses, com uma pequena produção, só possuem cinco prantos documentados,

quatro de autoria de Pero da Ponte e um de Johan de Leon (MALEVAL, 2004, p. 10).

Já nos prantos modernos, os lamentos fúnebres e as queixas amorosas deram lugar

a poemas em que predominam os tons de tristeza e saudade de uma maneira geral.

No caso de Morte e vida severina, no entanto, nas duas passagens em que ocorre

esse lamento - um nomeado como excelência, e outro sem qualquer menção quanto ao

gênero-, permanece o lamento fúnebre.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Tais cantos fúnebres tornaram-se inesquecíveis após o arranjo musical de Chico

Buarque e, depois que a obra foi musicada, não conseguimos mais lê-la sem se lembrar do

ritmo empregado por esse grande músico.

Outro gênero medieval presente na obra cabralina é o ‘romance’. No entanto, a

influência desse gênero na composição de Morte e vida severina não é um segredo, pois

João Cabral afirmou que “monólogos do retirante têm em comum com o romanceiro

ibérico o uso do heptassílabos e a assonância” (SECCHIN, 1985, p. 304). Podemos

considerar ainda que o romance é uma constante em suas obras a partir de 1954, em relação

a características métricas, quando chegou a confessar que não mais abandonaria a rima

toante – uma das suas marcas assimiladas (SECCHIN, 1985, p. 304).

Os romances – poemas épico-líricos breves, cantados ao som de um instrumento

quer em danças quer em reuniões para simples recreio ou para trabalho em comum

(MENÉNDEZ-PIDAL, 1941, p.7. Traduzimos) – por vezes apresentam-se em heptassílabos

(não sendo isso uma regra), em estrofes de tamanho irregular (geralmente chamadas de

blocos) e, por vezes, sem refrão.

Os romances mais antigos apresentavam a rima assoante7, tipicamente medieval,

mas, posteriormente, o uso da consoante8 tornou-se mais comum. Conforme destaca

Maurice Woensel, a rima do romance dá-se sempre em versos alternados (ababab),

formando cada dupla de versos uma frase. Os blocos de versos ou estrofes, por sua vez, são

formados por duas duplas separadas por ponto ou ponto-e-vírgula. Contudo, pode-se

encontrar também blocos de dois ou seis versos (WOENSEL, 1998, p.124).

Quanto à temática, os romances mais antigos, até o final do século XV, de acordo

com Menéndez-Pidal (MENÉNDEZ-PIDAL,1941, p.7), tratavam de assuntos históricos,

exaltando personagens e momentos importantes de uma nação - temas ligados à literatura

épica, às gestas. A partir da metade do século XV, a forma e a temática do romance

sofreram inovações. Os temas, antes heróicos, passaram a ser qualquer acontecimento.

De fato, em Morte e vida severina, Cabral parece ter assimilado uma boa parte

dessas marcas do romanceiro ibérico. Nos monólogos do retirante são utilizadas a

7 A rima assoante é chamada também de toante ou vocálica, por somente rimar a vogal. É considerada incompleta ou imperfeita

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

redondilha maior, as rimas toantes alternadas e as estrofes de tamanho irregular – dentre

outras marcas, que estão espalhadas pelo Auto.

Mas é ainda importante salientar que, embora o Auto não trate de um feito heróico,

como era comum nos romances mais antigos, o gênero épico pode ser percebido nessa

viagem de Severino rumo à cidade do Recife: “nas entrelinhas das frases aparentemente

frias destaca-se a força de caráter do herói – ou melhor, do anti-herói” (WOENSEL, 1998,

p. 126).

Assim, o romanceiro ibérico não teria influenciado Cabral apenas na estrutura

formal, mas, quiçá, no tema, uma vez que o Auto, assim como os romances de outrora, trata

de uma questão de grande valor para a história do país, assunto que, no nosso caso, é de

fundamental importância no quadro de problemas sociais do Brasil desde o século XVIII: o

êxodo rural e a má distribuição de terras (ANDRADE, 1993, p. 10).

A obra vicentina que nos servirá de exemplo da peregrinatio medieval será o Auto

da Alma, texto escrito no ano de 1518. Um auto de cunho existencial, no qual vemos com

bastante clareza a difícil e sofrida trajetória de uma alma peregrina. A luta entre o bem

(Anjo) e o mal (Demônio) na disputa pela alma é o mote dessa alegoria da vida configurada

em uma peregrinação.

Segundo o dicionário etimológico, peregrinação significa “viajar ou andar por terras

distantes” (CUNHA, 1982, p. 595). E como não há mais nenhuma informação que indique

as circunstâncias em que uma pessoa possa ser denominada peregrinus (expatriado ou

exilado, em latim), se conclui que em qualquer situação em que alguém seja um

desconhecido ou esteja em locais desconhecidos, pode ser considerado peregrino.

Tal conceito permitiu que nossas pesquisas fossem iniciadas nos textos referidos,

cujos enredos apresentam uma viagem como tema. A partir dessa constatação inicial,

buscamos verificar em que momentos eles se assemelham, dado o tipo de estrutura do

enredo, o auto alegórico, para, então, compararmos as personagens.

A edição utilizada do auto vicentino é de 1973. Todavia, esse texto não compõe

apenas mais um livro entre vários que apresentam as obras de Gil Vicente. A edição

utilizada é o resultado do convênio entre a Fundação Casa de Rui Barbosa e a Universidade

8 A rima consoante é considerada perfeita. Apresenta identidade de sons a partir da vogal tônica.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Federal Fluminense para a realização do Programa Especial UFF-FCBR, que comemorou,

com quatros congressos, o IV centenário de Niterói e do cinqüentenário da morte de Rui

Barbosa. Trata-se de uma raridade em bibliotecas, composta de dois autos, o da Mofina

Mendes e o da Alma9, cujo estudo, análise e explicação são assinados, brilhantemente, por

Sousa da Silveira. Além disso, nessa mesma edição, há um “Estudo prévio” de ambos os

textos, elaborado pela estudiosa Cleonice Berardinelli.

Sobre a morte na Idade Média, utilizaremos o Auto da barca do Inferno, composto

em 1517, no qual Gil Vicente referenda ser a morte um destino comum para todos os

homens, independente da classe social, semelhante ao que acontece na “Dança macabra”

(SCHIMITT, 1999, p. 240). Dessa maneira, os homens representantes da sociedade

medieval e seus pecados, simbolizados em suas ferramentas de trabalho, são levados ao

lugar que merecem, à barca dos condenados.

O estudo desse outro texto vicentino foi realizado por meio de uma edição, de 1988,

prefaciada por Antônio José Saraiva, com o título de Teatro de Gil Vicente. Uma edição

bem cuidada, reunindo vários textos do mesmo autor, incluindo glossário, e cujas

informações no prefácio são de grande interesse para quem estuda, ou pretende estudar, as

obras do Mestre Gil.

A edição do auto cabralino, por sua vez, é de 2000. Tal edição apresenta, além do

texto em questão, “outros poemas para vozes” (MELO NETO, 2000). O Rio, Dois

parlamentos e Auto do frade são os demais textos reunidos por João Cabral, em virtude da

sugestão de Rubem Braga e Fernando Sabino (MELO NETO, 2000, p. 5). Sugestão, aliás,

genial, à altura de seus mentores, pois essa compilação, além de apresentar “poemas para

auditório”(MELO NETO, 1956, p. 2), com um potencial de encenação, aborda questões

regionais, como a seca, a miséria, o êxodo rural e a reforma agrária. Temas (e estrutura) que

permeiam as obras e suscitam um diálogo entre as mesmas, efeito que, certamente, fora

pensado pelos escritores.

Em relação à questão que motivou a escolha do auto cabralino para o nosso estudo,

destacamos a presença de dois temas medievais, de grande relevância para o (estudo do)

imaginário da época: a morte e a peregrinação.

9 O título do livro, aliás, é Dois autos de Gil Vicente (o da Mofina Mendes e o da Alma).

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

No auto cabralino, a morte se transluz nos momentos em que a seca e a luta por

terras provocam mortes, as quais intimidam Severino em sua peregrinação. O embate entre

a morte e a vida se concentra na preocupação do homem com o fim da sua vida e a

manutenção de uma vida miserável, sempre ameaçada pela morte.

Nesse sentido, morte e peregrinação são apresentadas no texto brasileiro de maneira

diferente do que percebemos num contexto medieval. Pois, enquanto na Europa medieval, a

peregrinação, de acordo com a orientação da Igreja, é a melhor forma de vida para o

homem, podendo lhe garantir uma boa morte e pós-morte, a peregrinação dos retirantes

nordestinos do século XX, representada no texto cabralino, é sinônimo de miséria,

degradação do homem, uma “morte em vida” (MELO NETO, 2000, p. 59).

Ou seja, para um bom homo viator, a morte era esperada ansiosamente, pois seria o

seu segundo advento, na medida em que expiou todas as suas falhas em vida, esquecendo-

se da carne, peregrinando como forma de alimentar a alma, o espírito. Por outro lado, o

homo viator contemporâneo viaja por terras estranhas, a fim de conseguir ainda em vida o

seu “segundo advento”, a outra oportunidade de uma vida melhor, requerendo bens

materiais que lhe proporcionem bem-estar e prolonguem a sua existência.

Dessa maneira, para a análise comparativa dessas concepções, suscitadas pelos

textos já comentados, apresentamos também, embora de maneira sintética, os contextos

histórico e ideológico do tempo em que as obras foram escritas.

Relacionadas aos temas medievais, utilizamos as obras Os vivos e os mortos na

sociedade medieval, de Jean-Claude Schmitt (1999); O homem diante da morte, de Philippe

Áries (1977); Dicionário temático do ocidente medieval, organizado por Jacques Le Goff e

Jean-Claude Schmitt (2002); O imaginário medieval, de Jacques Le Goff (1994); e Boosco

deleitoso, editado por Augusto Magne (1950), as quais contribuíram para a elaboração dos

textos introdutóricos de ambos os temas medievais.

A análise do texto brasileiro, por sua vez, é antecedida por uma contextualização

histórica feita com base nos textos de Manoel Correia de Andrade, O Nordeste e a questão

regional (1993) e Recife: Problemática de uma metrópole de região subdesenvolvida

(1979); Hélio Jaguaribe, Introdução ao desenvolvimento social (1979); e Cláudio

Vicentino, História Geral (1997).

21

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

É preciso esclarecer ainda que nossa proposta de estudo baseia-se na Nova História.

Consideramos, com Le Goff (1996), que qualquer texto que “resulta do esforço das

sociedades históricas para impor ao futuro –voluntária ou involuntariamente –determinada

imagem de si próprias” (LE GOFF, 1996, p. 548) é um documento/monumento. Assim, os

textos literários analisados e cotejados nesse trabalho são exemplos de

documentos/monumentos, uma vez que reúnem elementos da memória coletiva de uma

época.

São documentos literários, pois cada obra “pertencendo ao homem, depende do

homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e

as maneiras de ser do homem” (LE GOFF, 1996, p. 540) daquele tempo. Mas torna-se

também monumento, porque é “um produto da sociedade que [a] fabricou segundo as

relações de força que aí [no passado, na época determinada] detinham poder” (LE GOFF,

1996, p. 545).

Dessa maneira, essas amostras literárias da história do homem medieval e

contemporâneo são estudadas em quatro capítulos, coroados pela conclusão.

No primeiro, apresentamos um estudo sobre o Auto, uma vez que, como foi dito

antes, essa estrutura teatral de origem medieval foi a escolhida por João Cabral para a

composição de sua obra. No segundo capítulo, analisamos o conceito medieval de

existência em Gil Vicente, partindo da observação do contexto ideológico, para a análise do

Auto da Alma. E no terceiro capítulo, focalizamos o tema da morte, situando-o no contexto

histórico, artístico e ideológico (pré) vicentino e, em seguida, observando-o na análise do

Auto da barca do Inferno.

No último capítulo, é examinada a atualização dos referidos temas medievais em

Morte e vida severina. Antes disso, no entanto, também procedemos à contextualização

histórica da obra de João Cabral.

1. − MORTE E VIDA SEVERINA: UM AUTO MEDIEVAL BRASILEIRO

22

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Nesse capítulo inicial, veremos como uma estrutura teatral da Idade Média – o Auto

-tornou-se tipicamente brasileira, visto que, historicamente, o Brasil não viveu tal época.

Antes, porém, é necessário que apresentemos a origem dessa estrutura.

1.1 − O teatro medieval

Seguindo as conclusões de Henrique Harguindey Banet (BANET, 1999, p. 07), o

nascimento do teatro medieval está relacionado à religião por questões ideológica, política

e social, e ainda por fatores intrínsecos à Igreja, como a gestualidade do rito, a fusão de

música e palavra no culto e a intenção, com fins doutrinários, de comover e persuadir os

fiéis. Acrescenta o especialista que, pelo fato de, à época do nascimento das línguas

românicas, serem escassos os encontros de caráter profano, as festas religiosas,

principalmente as dos ciclos natalino e pascoalino, impulsionaram o teatro dessa índole.

É plausível essa origem do teatro se acordarmos sobre o importante papel

desempenhado pela Igreja até o fim da Idade Média. Não é difícil de se acreditar que

representações teatrais nasceriam dentro do espaço sagrado da Igreja, quando se reconhece

que, durante a Idade Média, o homem era subordinado à Igreja, “estalajadeira das almas”

(VICENTE, 1965, p. 76), intermediária entre os céus e a Terra.

Nessa época, a Igreja Católica, no Ocidente, era depositária de todo o saber e cultura

humanos, sendo a responsável pela educação do homem medieval10 e por responder às

questões alheias ao conhecimento humano, como certos fenômenos naturais11. Ao seu

poder ideológico de também ser responsável pelo encaminhamento do homem medieval

para uma boa morte ou post-mortem – assumindo o papel de intérprete da Verdade -, é

acrescido o monopólio da produção literária, ora de cunho predominante religioso, ora

relacionada a alguns temas de sua doutrina.

10 É preciso deixar claro que na Idade Média somente os nobres tinham acesso à educação. 11 O Sermão de Santarém, de Gil Vicente, é um exemplo desse poder da Igreja. Adotando a política do medo contra os judeus, os frades da época atribuíram a ocorrência do terremoto em Lisboa à presença de judeus em Portugal. Gil Vicente interveio nessa questão reclamando ao rei dos abusos dos homens da Igreja.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Gil Vicente, por exemplo, durante os reinados de D. Manuel e de D. João III, foi um

agente reduplicador da ideologia cristã em seus autos, embora neles percebamos certa

“liberdade artística”, resultado da proteção da Rainha Velha, que lhe permitiu realizar

diversas críticas à religiosidade de então, desde os clérigos licenciosos até aos pequenos

artesãos que praticavam uma religião sem fé, etc.

Porém, de fato, o nascimento do teatro medieval está relacionado à Igreja. Segundo

a documentação mais antiga, o drama litúrgico teria nascido no século XII na França, com

representações de cenas bíblicas tiradas do Antigo ou do Novo Testamento e de episódios

de vidas de santos (BANET, 1999, p. 08). Esses dramas franceses dividiam-se em dois

subgêneros: Mistérios e Milagres. Dessa forma, o Jeu d’Adam et d’Eve, de autoria

desconhecida, é considerado Mistério por ser um auto baseado em cenas bíblicas, e o Jeu

de Saint Nicola, de Jean Bodel Arras, escrito no final do século XII, é um Milagre, por

apresentar, episódios da vida de São Nicolau.

Reparemos que os dois primeiros textos dramáticos têm em seus títulos o nome Jeu,

que, segundo Banet, “debemos entender (...) como “representación”, sentido que conserva o

verbo jouer cando o referimos a unha actividade teatral ou cinematográfica ou outros tipos

de representación artística” (BANET, 1999, p.10). O termo Jeu, nesse sentido, teria como

palavra correspondente na língua portuguesa o termo Auto, que, embora tenha surgido em

títulos de dramas religiosos, durante a Idade Média esteve presente em várias outras

representações de conteúdos e enfoques variados. Um dos motivos desse uso recorrente

talvez se deva à polivalência dos artistas, que produziam indistintamente poemas épicos ou

líricos, vida de santos, contos satíricos, jogos dramáticos, obras morais etc, conforme a

exigência do cliente (igreja, nobre, etc), a ocasião (aniversários, festas religiosas,

casamentos, etc) ou a inspiração.

Mestre Gil também compartilhava dessa característica polivalente do artista

medieval. Compôs diversos textos em diversos gêneros, mas sempre fomentando a doutrina

cristã com seu franciscanismo humanista. É fato, no entanto, que Gil Vicente foi

influenciado por dramas anteriores à revitalização do teatro português que empreendeu.

Coincidências com a obra de Henrique da Motta (REBELLO, 1977, p. 67) e um início de

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

carreira com autos de temática semelhante à de Juan del Encina atestam a presença de um

teatro pré-vicentino ibérico, ainda que embrionário em Portugal.

O modelo de teatro medieval herdado pelo Brasil foi o de Gil Vicente, responsável

pela revitalização das representações incipientes anteriores. Como qualquer artista da

época, sua obra apresenta peças profanas e religiosas, nomeadas indistintamente de Autos,

mas ora de caráter moralizante com situações cômicas – característica de outro gênero

medieval, as moralidades – , ora dedicadas exclusivamente ao discurso cristão, ora

farsescas, etc.

1.2 − O auto medieval no Brasil

Dois anos antes de Gil Vicente iniciar sua carreira artística em solo português, dois

mundos começavam a se conhecer. O Brasil, a nova terra recém-conquistada, era uma

novidade para os portugueses, em virtude do seu clima, vegetação e, principalmente, de

seus habitantes – a maioria cordiais aborígines nus. E estes, até então donos naturais da

denominada Terra de Santa Cruz, viam-se maravilhados diante dos apetrechos e

vestimentas dos recém-chegados, deixando-se conquistar por insignificantes quinquilharias.

Mas, parafraseando Oswald de Andrade (ANDRADE, 1978, p. 125), não fosse essa

receptividade e fragilidade diante do novo, o índio teria despido o português. No entanto,

não despiu. E sob o disfarce de obrigação cristã, ordenada por Deus, os portugueses

evangelizaram os índios através dos jesuítas.

Por esses dois mundos falarem línguas diferentes, a conversão através de leituras e

orações era impossível. Não havia possibilidade de inicialmente celebrarem somente missas

para os índios, pois o objetivo central não seria alcançado tão cedo com esse método. A

realização de Autos tornava-se, assim, mais prática e ágil para a introdução dos dogmas

católicos. Tal ação, no entanto, não era pioneira no Brasil, pois também na Europa o teatro

religioso tinha um cunho didático e era a maneira mais objetiva para doutrinar o povo, uma

vez que a arraia-miúda da Idade Média era composta de completos analfabetos.

Embora Serafim Leite discorde de que os Jesuítas foram os introdutores do Auto no

Brasil – para ele “os portugueses já apresentavam autos no Brasil, quando os jesuítas

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

começaram os seus” (LAMAS, 1978, p. 29) –, o fato é que os autos medievais chegaram

em naus portuguesas e não se poderá negar a influência de Gil Vicente nessas

representações e em todo o legado do teatro medieval por nós herdado.

A palavra ‘auto’ deriva do termo latino actu(m), realização, execução, ação, ato.

Segundo Massaud Moisés (MOISÉS, 1978, p. 49) equivaleria a um ato que integrasse

espetáculo maior e completo, vinculado aos mistérios e moralidades e de grande circulação

pela Idade Média, tratando de um tema religioso ou profano. Na Idade Média o termo

‘auto’ estava relacionado a qualquer tipo de representação: mistérios, moralidades ou

milagres; bem como aos subgêneros do teatro profano: o monólogo dramático, o sermão

burlesco, as sotties, as farsas, os momos e os arremedilhos.

No Brasil, o verbete relativo a ‘auto’, do dicionário folclórico de Luís da Câmara

Cascudo, nos informa que o auto europeu, de origem erudita ou semi-erudita, tornou-se

uma “forma teatral de enredo popular, com bailados e cantos, tratando de assunto religioso

ou profano, representada no ciclo de festas do Natal (dezembro-janeiro) (CASCUDO, 1972,

p. 97).Tal se deve à religiosidade medieval, semeada pelos jesuítas e ainda muito presente

no Nordeste brasileiro, a qual se fixou no nosso calendário folclórico (MENDONÇA, 1979,

p. 4) e o constituiu, mostrando que “o Brasil não conheceu a Idade Média, mas descende

dela, tem-na dentro de si” (MOISÉS, 2003, p.60).

Massaud Moisés revalida essa afirmação ao notar que

com a colonização, veio-nos a Idade Média, em vez da Renascença, foram os padrões medievais que nos moldaram como povo e cultura (...) E não se tratava da Idade Média na sua ampla diversidade, senão uma certa Idade Média, cavaleiresca, fantástica, ou antes, que encontrava na Companhia de Jesus, cuja ação sobre o pensamento se estendeu até o século XVIII, a sua fisionomia mais acabada” (MOISÉS, 2003, p.60).

Diante dessa afirmação, podemos considerar ainda que seu autor estaria de acordo

com o antropólogo João Hélio Mendonça, quando este declara que, no Brasil, folclore e

religião caminham constantemente juntos, uma vez que

o catolicismo das festas cíclicas, das homenagens aos santos padroeiros nas principais praças das cidades, dos folguedos, das rezas e das rezadoras, das novenas coletivas, do pieguismo da piedade familiar, das romarias, das devoções e de muitas outras práticas

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

ou expressões religiosas identificam o nosso calendário folclórico com a própria religião ( MENDONÇA, 1979, p. 03).

No entanto, desde 1930 as representações populares vêm-se reduzindo drasticamente

(CARNEIRO, 1966, p. 283). A influência de culturas estrangeiras e a transformação de

festas religiosas em festas comerciais, principalmente o Natal e a Páscoa, estão desviando o

interesse de crianças e jovens por essas tradições para o presente do Papai Noel, para a

árvore de Natal ornada de neve, o ovo de Páscoa etc. Assim, representações tradicionais,

antes comuns nos centros e interiores das cidades, limitam-se a poucas cidades do interior

de algumas regiões do país, mormente o Norte e Nordeste.

Contudo, nas poucas representações pelo país, concentram-se ainda os mais variados

autos tradicionais. Folcloristas, como Edison Carneiro, tentam até mesmo sistematizar essas

representações populares, face à autonomia das variantes de cada auto (CARNEIRO, 1974,

p. 159). A nomenclatura dessas representações, também chamadas de folguedos populares,

é reduzida e repetitiva, causando confusão e rodeio por parte dos pesquisadores. E existe

um intenso intercâmbio de temas, de situações, de personagens, entre os vários autos e

entre cortejos, danças, romances e outras manifestações folclóricas.

No caso do auto cabralino, sua construção pauta-se, provavelmente, no ideal de

escritores como Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho, que com a fundação do Teatro do

Estudante de Pernambuco, em 1946, pretendiam escrever peças baseadas na cultura popular

(CURRAN, 1969, p. 114), a fim de “acostumar o povo com os dramas que vivem dentro do

seu sangue” (PONTES, 1966, p. 67).

Guiado por esse ideal, Suassuna criou sua peça de maior vulto, baseada na literatura

popular − o Auto da Compadecida, cuja origem remonta à Idade Média, não somente pelo

nome da espécie dramática (Auto), mas também pelo tema que se relaciona à tradição dos

Milagres de Nossa Senhora, dos quais a coletânea mais famosa seria a de Afonso X, de

Leão e Castela (século XIII). Todavia, o enredo do Auto da Compadecida é, além disso, a

reunião e adaptação de algumas histórias da literatura de cordel – O enterro do cachorro, O

cavalo que defecava dinheiro, O castigo da soberba –, no qual a vida do nordestino, nos

seus mais variados aspectos, é trazida à tona numa reflexão por meio da comicidade. De

maneira jocosa e, ao mesmo tempo, crítica, João Grilo e Chicó, e os outros personagens, se

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

revelam como um produto da sociedade confusa entre seus antigos valores éticos e morais e

a força dos novos tempos, com seus novos valores, trazidos pelo novo sistema econômico.

O auto cabralino, por sua vez, não diverge em grandes proporções da obra de

Suassuna, pelo menos no que tange ao aspecto de crítica social, pois, como foi dito antes, a

intenção desses novos dramaturgos, ou artistas interessados na cultura popular, é discutir

questões sociais.

Neste sentido, João Cabral de Melo Neto trará em seu Auto o problema da migração

nordestina para os grandes centros. E também, semelhante a Suassuna, assumirá a

influência da literatura ibérica em seus autos. Comparemos as declarações:

Numa conferência escrita [em 1948] e publicada por partes em 1949, no suplemento do Jornal do Comércio, eu salientava a semelhança existente entre a terra da Espanha e o sertão, o romanceiro ibérico e o nordestino. Como dramaturgo e poeta, sofria naquele tempo, aos vinte anos, a influência de poetas e dramaturgos ibéricos, e era nesse espírito que escrevia comentando um romance ibérico e comparando-os com os sertanejos (SUASSUNA, 1964, p. 13-14). Saí do Brasil em 1947. Meu primeiro posto foi o vice-consulado em Barcelona. Nos arredores da cidade, vi paisagens áridas como as do Nordeste, era uma espécie de volta a Pernambuco. (...) Com Morte e vida severina, quis prestar uma homenagem a todas as literaturas ibéricas. Os monólogos do retirante provêm do romance castelhano. A cena do enterro na rede é do folclore catalão. O encontro com os cantores de incelenças é típico do nordeste. Não me lembro se a mulher da janela é de origem galega ou se está em Pereira da Costa. A conversa com Severino antes de o menino nascer obedece ao modelo da tenção galega (MELO NETO Apud SECCHIN, 1985, p. 303-304).

Ambos confessam a presença das literaturas ibéricas em suas obras, a semelhança

entre as terras luso-hispânicas e o sertão nordestino; mas, sobretudo, a tentativa de conjugar

essa paixão com a literatura popular brasileira em seus autos. Como vimos em sua

declaração, Cabral reuniu em seu Auto de Natal o folclore brasileiro e alguns elementos da

literatura ibérica. Na verdade, se acordarmos sobre tudo que discutimos até o momento,

perceberemos que todas as criações folclóricas, conscientemente ou não por parte de seus

autores, enraízam-se, principalmente, na cultura ibérica. Assim, ao introduzir elementos

folclóricos brasileiros em seu auto, introduz, a bem da verdade, recriações da literatura

medieval.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

O “Auto de Natal pernambucano” relaciona-se com os autos medievais,

concernentes ao gênero religioso chamado Mistério. No Brasil, particularmente, é uma

versão originária dos tipos de auto chamados de ‘Pastorinhas’ e ‘Bailes pastoris’. E, ao

contrário do que se poderia imaginar, pouco se aproxima do pastoril nordestino (nome

genérico dado às representações natalinas de Alagoas e Pernambuco, segundo Edison

Carneiro) 12.

Tendo em vista que o auto cabralino pode ser considerado uma versão politizada

dessa tradição, é preciso alguma reserva ao compará-lo a autos tradicionais do Brasil, que,

apesar de trazerem críticas também em suas apresentações, não têm nelas o seu escopo

principal, como no caso de Morte e vida severina. No entanto, a pastora, do tipo de auto

chamado ‘Pastorinhas’, ao declinar sua identidade, exaltar os próprios méritos e anunciar

que vai a Belém visitar o Menino Jesus, conclamando aos presentes que a acompanhe nessa

romaria, tem em Severino sua nova versão.

A partir desse prólogo, comum nos autos medievais, como destaca Maurice Van

Woensel (WOENSEL, 1998, p. 130), Severino, assemelhando-se a um pastor, inicia sua

peregrinação ao “local santo”, num novo contexto sócio-econômico. Se antes era Cristo o

menino a ser louvado, agora é a vez do filho de um humilde habitante das margens do rio

Capibaribe.

No final dessa romaria por melhores condições de vida, quando nasce o filho do

Mestre Carpina, ocorre um baile pastoril, no qual a população ribeirinha e as ciganas

festejam o nascimento da criança. Segundo Benedito Nunes (NUNES, s.d., p.85), nesse

momento ocorre um “auto dentro do auto”, nome que nos sugere que a viagem

empreendida por Severino, antes do ‘baile’ - e que aparentemente não tem nenhuma relação

com o mesmo-, é uma nova concepção das peregrinações medievais. Agora sem

preocupações com a alma ou com o post-mortem. Ou, segundo Maria do Amparo Tavares

Maleval (MALEVAL, 2004, p.2), temos uma inversão dos ciclos religiosos, a Paixão do

retirante antecedendo ao Natal, que não será como o cristão, anunciador de uma nova era.

12 O pastoril nordestino caracteriza-se pela divisão das pastoras em dois cordões, o azul e o vermelho, e pelas presença da moderadora Diana, que se veste metade de uma cor, metade de outra. (CARNEIRO, 1974, p. 176)

29

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

2 − O CONCEITO MEDIEVAL DE EXISTÊNCIA EM GIL VICENTE

Na Idade Média, a relação homem-mundo era intermediada pelo discurso da Igreja

que, enquanto detentora de todo o saber, resguardado em bibliotecas de mosteiros,

orientava o homem medieval a lutar contra o pecado − função pela qual é responsável

desde sua fundação. Todavia, seu poder não advinha somente de encaminhar o cristão para

o Paraíso, mas por considerar seus doutores os conhecedores dos mistérios do Além.

Dessa maneira, a doutrina cristã da Idade Média era a do medo. Ressaltava-se com

tanto fervor os tormentos que passariam os que na terra não procurassem ser dignos dos

Céus, que a ideologia católica era seguida mais pelo receio de se ir para o Inferno do que

propriamente da morte. Um exemplo desse temor é o Fidalgo, do Auto da barca do Inferno,

de Gil Vicente, que se mostra arrependido de não ter tido uma vida pura, no momento de

entrar na barca:

Ao inferno todavia! Inferno há i pêra mi? Ó triste! Enquanto vivi Não cuidei que o i havia. Tive que era fantasia; Folgava ser adorado; Confiei em meu estado E não vi que me perdia (VICENTE, 1988, p. 96).

Acreditava-se em dois lugares opostos para os quais o homem estava destinado. O

Inferno era para os maus e o Paraíso para os bons. Além disso, a caracterização desses

ambientes reforçava o imaginário sobre o Além, uma vez que a apresentação era dual: o

Paraíso era sempre localizado no alto, nos Céus, tinha uma paisagem encantadora, um

clima aprazível, anjos por toda parte, cânticos, perfumes, e apresenta-se sempre com cores

claras. Era, enfim, um jardim edênico. Já o Inferno era o outro lado, localizado abaixo da

terra, onde se sofreria os piores tormentos. Não haveria aí dia; tudo seria escuro, com muito

fogo, demônios, gritos de horror e os piores odores.

30

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

A Igreja, dessa maneira, arrebanhava suas ovelhas para um destino “melhor”,

formando para si um grande poderio acerca dos mistérios do Além, cujo fruto foi a criação

do Purgatório (o terceiro lugar do Além)13. Posteriormente, as indulgências vendidas

tornaram-se um passaporte para o Céu, pois cria-se que iriam para este lugar os que

cometessem pecados veniais − pecados leves −, os quais poderiam ser remediados no

Purgatório, local semelhante ao Inferno, mas não definitivo como este. O terceiro local era

uma via de passagem direta para o Paraíso, ao contrário do Inferno, que mantinha

confinados para sempre todos os condenados.

Assim, a geografia do Além, na Idade Média, foi objeto de muito estudo. Procurava-

se precisar não somente os lugares por onde o homem passaria, mas o porquê daquele

destino. O pecado, nesse sentido, ocupava, numa escala do imaginário pós-morte, o

segundo lugar. Aliás, talvez ocupasse o primeiro lugar, dado que, por ser o motivo da má

sorte no Além, poderia ser combatido ainda em vida. Era o inimigo, a preocupação do dia-

a-dia do cristão, desejoso de uma “boa morte”.

Nesta perspectiva, o pecado, como o Além, fazia parte das dualidades da Idade

Média: corpo e alma, morte e vida, Paraíso e Inferno, vício e virtude, pecado original e

marca de Deus eram motivos de estudo nas teorias sobre o pecado.

2.1 − A peregrinação existencial

O corpo era o representante do pecado, enquanto a alma, “criação singular de Deus”,

era possuidora da marca divina. Essa oposição entre corpo perecível e alma não-perecível,

que dá margem a outras oposições, surge com o mito genesíaco da desobediência de Adão e

Eva a Deus.

13 Segundo Le Goff, “à multiplicidade dos receptacula animarum antes do Juízo e ao dualismo das moradas eternas – céu e inferno – sucedeu um sistema de cinco ou três moradas: o limbo das crianças e o limbo dos padres, o purgatório, o paraíso celeste e o inferno ou, no essencial, o Céu, o Inferno e o Purgatório.” (LE GOFF, 1994, p. 113-114). Nesse mesmo estudo, Le Goff apresenta questões sobre o lugar em que permaneceria a alma até o julgamento e, segundo ele, o Limbo seria o lugar a quem estavam destinadas as crianças sem batismo e os patriarcas do Velho Testamento, liberados estes por Jesus Cristo ao descer aos infernos após a sua morte na cruz.

31

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Nessa perspectiva, o Pecado Original, marca dessa desobediência, é uma

característica comum entre os homens. Uma tendência inata ao mal, que se tornou fonte de

outros pecados. Santo Agostinho (CASAGRANDE, VECCHIO, 2002, p.346) era um dos

defensores da divisão dos pecados entre veniais, já comentados anteriormente, e mortais. O

primeiro, conforme disse, não estremecia a relação entre o homem e Deus, e o segundo

condenava-o para sempre.

O combate a esse destino poderia ser encontrado, na época, em uma literatura

específica para este assunto, os tratados sobre os vícios e as virtudes e os manuais de

confissão. Ou mesmo na produção literária e artística do tempo.

Ainda hoje temos exemplos dessa literatura medieval cristã, como A divina comédia,

de Dante Alighieri, escrita no século XIV, na qual o poeta, em visita aos lugares do Além,

vê o sofrimento dos pecadores condenados ao Inferno e daqueles que esperam o julgamento

final, no Purgatório, para desfrutarem do Reino dos Justos; outro exemplo famoso é o livro

De vita solitaria, de Petrarca, do mesmo século que a obra de Dante, no qual se defende

uma vida religiosa na solidão e no silêncio, a fim de se ter tranqüilidade de espírito.

Um texto português que pode nos servir de exemplo dessa literatura cristã é o livro

Boosco deleitoso, de autoria anônima, impresso em 1515, que apresenta significativas

coincidências textuais com a obra de Petrarca. Apesar disso, é uma mostra de real valor, em

língua portuguesa, dessa literatura que pregava “exempros e falamentos muito proveitosos

pera mantimento espiritual dos corações” (MAGNE,1950, p.1).

Esses livros tinham, nesta perspectiva, a função de fazer o homem repensar sua

condição humana de pecador, ajudando-o a buscar através da marca divina o livre arbítrio,

a razão − que possibilita ao homem uma reversão do seu estado frágil diante do pecado −, a

salvação de sua alma.

Os meios de se redimirem os pecados, na Idade Média, eram diversos. Preces,

penitências, indulgências eram as maneiras mais comuns para o perdão dos pecados leves.

O Pecado Original era sanado com o batismo, mas não livrava nenhum cristão de sua

predisposição ao mal. Assim, em 1215, a confissão, como outro meio de combater as

vontades contrárias a Deus, foi tornada obrigatória pelo Concílio de Latrão, a fim de

enfatizar ainda mais o aspecto interior do arrependimento. Ou seja, a melhor forma de

32

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

mudança no comportamento em relação aos mandamentos divinos seria através de uma

conscientização individual, solitária, de suas falhas.

Por outro lado, havia as penitências físicas, em que o pecador castigava-se pelos atos

ou pensamentos que considerava anormais, segundo sua fé. Entre os muitos flagelos que os

homens medievais, principalmente monges, condenavam-se a praticar, estava a

peregrinação em busca da remissão dos pecados.

A idéia de peregrinação relacionada à remissão dos pecados está no nosso

imaginário cristão desde a Idade Média, quando Santa Helena foi visitar os lugares da

Paixão de Cristo, assim como o Santo Sepulcro, após o reconhecimento oficial do

Cristianismo no Império Romano, no século IV. Todavia, a ligação da peregrinação à

salvação só foi estabelecida entre os séculos XI e XII, pois antes era uma prática comum

entre nobres e anônimos interessados na vida de Jesus, na cidade onde nasceu e morreu, ou

mesmo, em busca de um contato místico, como já acontecia desde o século IX na Galícia,

onde milhares de pessoas peregrinavam em direção ao túmulo de Santiago de Compostela.

A peregrinatio passou a ser vista, portanto, com um caráter ascético, em que os peregrinos

obtinham benefícios tanto físicos (cura de doenças) como espirituais (perdão dos pecados).

O peregrino, na Idade Média, era conhecido como homo viator (homem errante) e

tinha como objetivo expiar os seus pecados através do martírio encontrado pelo caminho.

Isso porque era preciso imitar os monges, que, por sua vez, imitavam a Cristo nos

sofrimentos, para purificação espiritual. Assim, ao isolar-se em busca de um local santo,

morrendo para o mundo e suportando intempéries e mazelas humanas, provava-se a força

espiritual do caminhante. Os percalços vividos durante a viagem eram, nesse sentido, mais

relevantes para a remissão dos pecados do que propriamente o local santo.

Um dos lugares mais visitados, na Idade Média, foi Jerusalém, que teve inúmeros

peregrinos de alto poder aquisitivo. Dividindo a liderança de visitas, Santiago de

Compostela foi também espaço buscado por muitos peregrinos ilustres e ainda hoje é

referência para um encontro com o sobrenatural. Concernente à literatura da peregrinação,

podemos destacar os guias do peregrino, como o Guia medieval do peregrino de Santiago

(livro V do Códice calixtino) (LÓPEZ PEREIRA, 1993). Escrito no século XII, orientava

33

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

os caminhantes sobre os maus momentos que poderiam passar durante a viagem, sendo

vítimas de roubo, exploração e assassinatos.

A peregrinação teve seu período áureo durante a Idade Média, mas, devido aos abusos

da Igreja e à nova mentalidade que se formava, houve um declínio enorme de visitas a

lugares santos. O homem, já no final da Idade Média, não temia tanto o seu destino no pós-

morte, e a Igreja Católica, conseqüentemente, começava a perder espaço.

2.2 Auto da alma

O Auto da alma foi escrito e encenado em 1518 − e não em 1508, como indicado na

didascália inicial do auto −, na noite de quinta-feira da Paixão para celebrar a semana da

morte e ressurreição de Jesus Cristo. Esta obra, por tratar de um tema religioso, é

classificada como ‘auto de devoção’, segundo a organização metódica do filho de Gil

Vicente, editor da Copilançam de todalas obras. Todavia, sua caracterização é melhor

definida por Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, que incluem-na entre os ‘autos de

moralidade’, uma vez que apresenta uma das marcas dessa categoria, tal seja: encenação

que sob a forma de alegoria transmite uma moral ou ensinamento religioso.

Neste sentido, o Auto da alma, por meio de figuras representativas de concepções de

vida antagônicas, faz do tema universal do combate entre as forças divinas e malignas para

o resgate ou perdição das almas uma representação poética, amena, daquilo que a Igreja

medieval fazia uso para a manipulação do povo.

O prólogo da peça nos concede as primeiras indicações da providência divina para o

conforto das caminhantes almas na longa jornada a caminho dos Céus:

Assim foi cousa muito necessária haver nos caminhos estalagens, pera repouso e refeição dos cansados caminhantes: assi foi cousa conveniente que nesta caminhante vida houvesse ũa estalajadeira pêra refeição e descanso das almas que vão caminhantes pera a eterna morada de Deus. Esta estalajadeira das almas é a Madre Santa Igreja, a mesa é o altar, os manjares as insígnias da Paixão. E desta prefiguração trata a obra seguinte. Está posta ũa mesa com uma cadeira: vem a Madre Santa Igreja com seus quatro doutores, São Tomás, San Hierónimo, Santo Ambrósio, Santo Agostinho: (VICENTE, 1973, p. 107).

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Ainda nessa apresentação inicial, percebemos a presença de mais cinco personagens

que desempenharão papéis fundamentais para a remissão dos pecados da Alma. Um deles

será Santo Agostinho, que terá destaque, a começar pelo privilégio de iniciar o auto:

Necessário foi, amigos, Que nesta triste carreira desta vida, Pêra os muitos perigosos perigos Dos imigos, Houvesse algũa maneira De guarida. Porque a humana transitória natureza Vai cansada em muitas calmas, Nesta carreira da glória Meritória, Foi necessário pensada pera as almas (...) (VICENTE, 1973, p. 109).

Em sua fala, Santo Agostinho explica a função da Igreja de acolher e cuidar dos

contritos nessa peregrinação para a Glória, dando destaque ao sacrifício e compaixão de

Jesus por todos os homens, vulneráveis à concupiscência.

Após essa abertura, Anjo e Alma surgem, ao que parece no meio do caminho,

conversando sobre a intenção da viagem e a importância da Alma em manter-se vigilante

em sua empreitada:

Alma bem-aventurada, Dos anjos tanto querida, Não durmais; Um ponto não esteis parada, Que a jornada Muito em breve é fenecida, Se atentais (VICENTE, 1973, p. 112).

Nesse diálogo, destaca-se o valor da alma, em detrimento do corpo, e o livre arbítrio

que lhe é concedido por Deus. A criação desta a partir do sopro divino, adornada por Deus

e feita imortal, “Alma humana, formada / de nenhuma cousa feita, / mui preciosa, / de

corrupção separada, e esmaltada / naquela frágoa perfeita / gloriosa” (VICENTE, 1973, p.

111), torna-a um tesouro muito precioso que precisa ser preservado, pois deverá voltar para

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

o céu, diferente do corpo que foi criado do barro e voltará para o mesmo: “(...) é ser

herdeira / da glória que conseguis: andai prestes” (VICENTE, 1973, p. 112).

Todavia, o poder de decidir seu destino torna a Alma propensa ao pecado, visto que

traz no corpo uma tendência ao mal, herdada de Adão e Eva ao desobedecerem a Deus:

“Vosso livre alvidrio, / isento, forro, poderoso, / vos é dado / pólo divinal poderio / e

senhorio, / que possais fazer glorioso / vosso estado” (VICENTE, 1973, p. 114) .

Por outro lado, a compaixão divina concedeu ao homem um protetor para que nas

horas de aflição regenere-se e volte a trilhar os caminhos do Senhor: “E vendo Deus que o

metal / em que vos pôs a estilar, / pêra merecer, / que era muito fraca e mortal, / e por tal /

me manda a vos ajudar / e defender” (VICENTE, 1973, p. 114-115).

Nesta perspectiva, é o Anjo o representante simbólico do mundo espiritual que

caminha à frente da Alma para indicar-lhe a via da salvação. O Diabo, por sua vez, ocupa o

extremo oposto das orientações divinas em relação à terra. A sua figura encarna a realidade

humana no mundo, valendo-se de sofismas e dos prazeres da carne para arrebanhar mais

almas.

Na primeira aparição do Diabo, sua estratégia mais comum é identificada.

Apossando-se de trechos bíblicos, disfarça suas verdadeiras intenções, cuja essência está na

promessa de que há tempo para o arrependimento e conquista da salvação: “Ainda é cedo

pera morte; / tempo há de arrepender e ir ao céu” (VICENTE, 1973, p. 124). Além disso, é

responsável por despertar na Alma o desejo por coisas materiais, apelando para o livre

arbítrio a ela concedido:

Oh descansai neste mundo, Que todos fazem assi. Não são em balde os haveres, Não são em balde os deleites E fortunas, Não são em balde os prazeres E comeres, Tudo são puros enfeites Das criaturas. (...) Tornara-me se a vós fora, Is tão triste, Atribulada,

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Que é tormenta; Senhora, Vós sois senhora Emperadora, Não deveis a ninguém nada, Sede isenta (VICENTE, 1973, p. 117-118).

A Alma, a princípio, parece não ouvir as investidas do Diabo, que por vezes a alcança

na distração do Anjo ao adiantar-se no caminho: “Não me detenhais aqui, / deixai-me ir,

que em al me fundo” (VICENTE, 1973, p. 117). A orientação deste nessa recusa da Alma é

fundamental, pois é através dos incentivos e da promessa da glória divina no fim da jornada

que sua pupila continuará a segui-lo:

Já cansais, alma preciosa? Tão asinha desmaiais? Sede esforçada! Oh como viríeis trigosa E desejosa, Se vísseis quanto ganhais Nesta jornada! Caminhemos, caminhemos; Esforçai ora, alma santa Esclarecida! (VICENTE, 1973, p. 119).

A vaidade humana, no entanto, será a perdição dessa alegoria. Ao ser elogiada pelas

obras que realiza em nome de Deus e, em seguida, ser questionada pela sua aparência

abatida, pobre e infeliz, contrastando com a sua importância, a Alma cede às palavras

“amigas” do demônio: “Is mui desautorizada, / descalça, pobre, perdida, / de remate: / não

levais de vosso nada, / amargurada, / assi passais esta vida / em disparate” (VICENTE,

1973, p. 120).

Alegando que a Alma pode levar consigo bens mundanos, o Diabo a presenteia com

um brial, um par de chapins e, posteriormente, com um colar de ouro e dez anéis. Satisfeita

e orgulhosa por ter, a partir desse momento, a aparência de mulher − “agora estais vós

molher / de parecer” (VICENTE, 1973, p. 120) −, a Alma passa a desprezar os conselhos

do Anjo: “Que andais aqui fazendo? // Faço o que vejo fazer/ polo mundo” (VICENTE,

1973, p. 121).

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Sem desanimar, no entanto, o Anjo insiste em conduzi-la para o bem; mas ela, já

pesada pelos adornos que a enfeitam e seduzida pelos sofismas do Diabo, pede para o Anjo

seguir em frente: “Andai, dai-me cá essa mão. / andai vós, que eu irei / quanto poder”

(VICENTE, 1973, p. 123).

Ciente da indecisão da Alma, o Diabo faz uso, explicitamente, de uma passagem

bíblica em favor de seus objetivos:

Todas as cousa com rezão Têm sazão; Senhora, eu vos direi Meu parecer. Há i tempo de folgar, E idade de crescer, E outra idade De mandar, E triunfar, e apanhar, E adquirir prosperidade a que poder (VICENTE, 1973, p. 123-124).

Este trecho está no livro de Eclesiastes III, 1-8 (BÍBLIA, 1993, p. 460) e serviu para o

Diabo provar que seus conselhos são baseados nas escrituras sagradas. Tal ardil demonstra

que o inimigo conhece sempre as armas de seus adversários e que, por isso, a Alma deveria

ficar alerta.

Consciente de sua decisão frente à beleza que lhe foi concedida pelo demônio e

ratificada pelo espelho, “neste espelho vos verei / e sabereis / que não vos hei de enganar”

(VICENTE, 1973, p. 125), a Alma inflama sua fala, carregando-a de soberba: “Oh como

estou preciosa, / tão dina pêra servir / e santa pêra adorar!” (VICENTE, 1973, p. 125).

Diante de tais desatinos, o Anjo passa a tratá-la rispidamente: “Ó alma despiadosa, /

perfiosa! / quem vos devesse fugir mais que guardar!” (VICENTE, 1973, p. 125-126); e,

devido a esse tratamento, a Alma percebe a sua situação “tão sem graça”14: “(...) já não

posso dar passada de cansada: / tanta é minha fraqueza / e tão sem graça!” (VICENTE,

1973, p. 127).

14 A locução adjetiva “sem graça” não foi empregada com o sentido de “desinteressante” ou “aborrecido” (HOUAISS, 2003, p.265). A graça aí referida significa bênção divina (HOUAISS, 2003, p.264). Ou seja, a Alma apresentava-se sem a Graça divina, ou desgraçada.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Ao apresentar os primeiros sinais de arrependimento, a Alma é encaminhada por seu

guardião à Igreja, onde alimentos para a revitalização dos contritos são mantidos em “mesa

posta em clara luz, sempre esperando”. Enquanto isso, o Diabo faz mais uma tentativa, em

vão. Responde-lhe a Alma:

Cal-te por amor de Deus, Leixa-me, não me persigas; Bem abasta Estorvares os heréus Dos altos céus, Que a vida em tuas brigas Se me gasta. Leixa-me remediar O que tu, cruel, danaste Sem vergonha: Que não posso abalar Nem chegar Ao lugar onde gaste Esta peçonha (VICENTE, 1973, p. 130-131).

A partir desse momento, a Igreja e seus doutores preparam a mesa onde serão

servidos os manjares guisados por Deus Padre. Mas, antes, a Alma confessa seus pecados

como sinal de sincero arrependimento:

(...) Havei piedade de mi, Que não me vi; Perdi meu inocente ser E sou danada. (...) Consolai minha fraqueza Com sagrada iguaria, Que pereço, Por vossa santa nobreza, Que é franqueza; Porque o que eu merecia Bem conheço. Conheço-me por culpada E digo diante vós Minha culpa. Senhora, quero pousada,

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Daí passada; Pois que padeceu por nós Quem nos desculpa (VICENTE, 1973, p. 134-135).

Sentada à mesa destinada aos pecadores arrependidos, a Alma assiste à cerimônia

realizada pela Igreja, por Santo Agostinho, Santo Ambrósio e São Jerônimo, antes de serem

servidas as dores de Cristo crucificado. Entre as lembranças do sofrimento do filho de Deus

no seu martírio para a salvação dos homens, Santo Agostinho faz uma oração enaltecendo a

compaixão divina:

Alto Deus maravilhoso, que o mundo visitaste Em carne humana, Neste vale temeroso E lacrimoso Tua glória nos mostraste soberana; E teu filho delicado, Mimoso da divindade E natureza, Por todas partes chagado, E mui sangrado, Póla nossa infirmidade E vil fraqueza! (VICENTE, 1973, p. 140)

As duas primeiras iguarias, os açoites e a Coroa de espinhos, respectivamente, são

servidas após a lavagem, por meio de lágrimas, e secagem, com a mortalha que Verônica

usou para limpar a face de Jesus, dos pecados da Alma:

Vós havei-vos de lavar Em lágrimas da culpa vossa, e bem lavada, E havei-vos de chegar a limpar A ũa toalha fermosa, Bem lavrada, com sirgo das veas puras Da Virgem sem mágoa nacido E apurado, Torcido com amargura Às escuras, Com grande dor guarnecido E acabado (VICENTE, 1973, p. 145).

A terceira iguaria, os Cravos, é servida depois de a Alma se despir do material

humano que ainda a deixava “embaraçada”: “Leixai ora esse arreos, / que estoutra não

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

come assi / como cuidais. / Pêra as almas são mui feos, / e são meos / com que não andam

em si / os mortais” (VICENTE, 1973, p. 149)

A quarta e última iguaria, a Cruz, é oferecida para a Alma, despertando nela mais

arrependimento por relembrar todo o sofrimento de Jesus:

Com que forças, com que esprito Te darei, triste, louvores, Que sou nada, Vendo-te, Deus infinito, tão aflito, Padecendo tu as dores, E eu culpada! Como estás tão quebrantado, Filho de Deus imortal! Quem te matou? Senhor, per cujo mandado És justiçado, Sendo Deus universal, Que nos criou? (VICENTE, 1973, p. 151).

Após esse lamento, Santo Agostinho convida a todos a buscar a fruta da sobremesa no

pomar onde está sepultado o Salvador. Todos o seguem e encerra-se o Auto.

Santo Agostinho novamente é privilegiado ao ser o doutor, que, além de iniciar,

encerra a alegoria. Tal honra contrasta com o silêncio de São Tomás que, apesar de estar

listado entre os doutores, não participa do Auto − ao menos falando, no texto, já que não

sabemos se na encenação ele esteve presente.

Outro ponto interessante é a reunião anacrônica desses quatro doutores, uma vez que

não viveram na mesma época. Com exceção de São Tomás, que nasceu no século XIII, os

outros pilares da Igreja pertencem ao século IV.

A respeito de tal reunião, entendemos o procedimento de Gil Vicente em face da

liberdade de todo artista em apresentar, para um melhor efeito de sua obra, elementos livres

dos esteios do tempo e do espaço. Contudo, o mistério sobre o silêncio de São Tomás

permanece.

Segundo Cleonice Berardinelli, a mudez deste doutor católico foi resultante da

antipatia de Gil Vicente pela posição de São Tomás “contrária à paz e mansidão da perfeita

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

doutrina” (aspas dela). E ao privilégio concedido a Santo Agostinho, a mesma atribui à luta

do mesmo em defender o livre arbítrio em oposição ao determinismo dos maniqueístas

(Apud VICENTE, 1973, p. 22-23).

A questão sobre essa reunião realizada por Mestre Gil é interessante por suscitar o

mistério sobre o silêncio de um dos pilares da Igreja Católica. No entanto, como nosso

estudo não está relacionado a tal problema, nem tem como objetivo esclarecer possíveis

confrontos de conceitos teologais, representados por esses doutores, acreditamos que o

mais importante seja frisar que Gil Vicente em suas peças execrava os maus clérigos e os

abusos do Clero, reivindicando uma Igreja mais humana, assim como Erasmo de

Rotterdam, conhecido como o príncipe dos humanistas, com o qual apresenta muitas

afinidades.

Dessa maneira, o que podemos afirmar em relação ao privilégio concedido a Santo

Agostinho, ao enredo do auto e às características de Gil Vicente, ligadas a sua posição

crítica diante dos abusos da Igreja, é que Mestre Gil acredita que o homem tem o poder de

mudar o seu destino se desejar que isso aconteça. O que, talvez, explique as inúmeras

intervenções de Santo Agostinho no Auto.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

3 − O POST-MORTEM EM GIL VICENTE

Antes de analisarmos o Auto da barca do Inferno, discorreremos sobre a questão da

morte na Idade Média, a fim de que entendamos o pensamento do homem medieval numa

fase de transição, de questionamentos de um mundo teocêntrico, direcionado pela doutrina

católica.

3.1−A morte na Idade Média

Durante a Idade Média e, principalmente, entre os séculos XIV e XV, o tema da

morte foi obsessivo no imaginário do homem medieval. A preocupação com o post-

mortem, além de obrigá-lo a seguir os preceitos estabelecidos pela Igreja Católica, também

o forçava a configurar o momento do trespasse.

Obras literárias, pinturas e esculturas dão mostras desse momento histórico.

Todavia, o imaginário sobre a morte relativo ao fim da Idade Média − época sobre a qual

nos debruçamos − não é semelhante aos séculos anteriores, tanto do ponto de vista

econômico, quanto do social e religioso.

Até a Alta Idade Média, os vivos eram responsáveis pelo enterro de seus mortos, os

quais sofriam uma morte coletiva, comum a todos, “a morte domada” (ARIÉS, 1977, p. 6).

Tal morte, como nos explica Philippe Ariés (1977), não era um fim selvagem que teria sido

domesticado, mas uma morte que era aceitável. Compreendia-se a morte como um fim

irremediável pelo qual todos passariam e, por isso, não deveria ter alarde nesse momento.

Alguns moribundos, ao pressentirem seu fim − pois havia a crença de que a morte avisava a

sua chegada, concedia um tempo para o moribundo perceber a sua situação15 (ARIÉS,

1977, p. 11) − preparavam um ritual de passagem, no qual informavam a seus entes a

proximidade do trespasse e os seus desejos, além de uma orientação para os vivos de como

proceder após a morte.

15 Pressentimentos, visão de fantasmas, mesmo em sonhos, eram características dessa morte anunciada. “Os mortos estão sempre presentes entre os vivos, em certos lugares e a certos momentos. Mas, a sua presença só é sensível aos que vão morrer” (ARIÉS, 1977, p. 8).

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Nessa época, a Igreja não era totalmente responsável pelas práticas funerárias de

todos os homens. Este ainda era sepultado sob costumes familiares, ainda que a sociedade

de então vivesse à sombra da Igreja, pois, já havia um tratado “dos cuidados devidos aos

mortos” (De cura pro mortuis gerenda), composto por Santo Agostinho entre os anos de

421-422, o qual estabelecia os laços que os vivos deveriam manter com os mortos.

Todavia, isso não impedia as práticas consuetudinárias dos familiares, uma vez que,

nesse tempo, a igreja ainda tolerava tais manifestações folclóricas. Durante a Alta Idade

Média, essas duas práticas coexistiram, sem nenhuma retaliação da Igreja, pois

como não eram importantes na perspectiva da salvação, o funeral e o enterro dos fiéis continuaram por muito tempo sendo cerimônias familiares, que não implicava necessariamente a presença de um padre (LAWERS, 2002, p. 248).

No entanto, a partir dos séculos VIII e IX é que os homens da Igreja passaram a

coibir práticas supersticiosas (LAWERS, 2002, p. 248): “Primeiro, a igreja transformou o

tipo de relação entre os mortos e os vivos, dominante desde a Antigüidade, impondo suas

concepções e serviços à sociedade laica” (LAWERS, 2002, p. 245). Posteriormente, adotou

algumas lendas sobre mortos para a construção de seu discurso:

Paradoxalmente, a Igreja medieval, que nos primeiros séculos manifestara uma grande reticência com relação à crença nos fantasmas, tomando-a como característica do “paganismo” e das “superstições”, esteve, assim, na origem de um enquadramento e de uma exploração da crença nos fantasmas de que os relatos de milagres e os sermões dos pregadores são amplo testemunho (SCHMITT, 1999, p. 20-21).

A intenção era cristianizar histórias do contato do homem com o mundo dos mortos,

a fim de criar relatos de visões de fantasmas e viagens ao Além, de acordo com os seus

dogmas. No entanto, os costumes familiares não foram abandonados de imediato. O valor

da linhagem, dos ancestrais, que orientavam os vivos − e, por isso, a lembrança dos

mesmos deveria ser alimentada −, continuou sendo cultivado paralelamente à introdução

dos renovados preceitos religiosos.

Todavia, a partir do século XII − com “a renovação do direito, redescoberto pelos

canonistas entre os séculos XII e XIII, o estabelecimento de instituições organizadas e de

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

normas escritas” ( LAWERS, 2002, p. 255), além da formação dos estados-nações −, o

mundo das práticas familiares é substituído progressivamente pelo mundo do direito. Mas

não só os costumes perderam espaço. A igreja, que antes dominava todos os campos da

sociedade, é levada a agir somente no âmbito para o qual estava preparada. Aparentemente,

seu campo de ação passa a ser restrito; todavia, sua presença tornava-se cada vez mais forte

e imprescindível na relação entre os vivos e os mortos:

Esta história é também a da lenta mutação de um mundo de costumes, onde a referência aos ancestrais guiava a ação dos vivos, para uma sociedade de direito que as estratégias sociais da Igreja contribuíram a instituir ao fim de longos meandros (LAWERS, 1999, p. 245).

A Igreja, assim, ratifica a sua nova posição reforçando a distinção entre o sagrado e

o profano, o temporal e o espiritual, o laico e o eclesiástico, a fim de proibir as práticas

pagãs ainda existentes (LAWERS, 2002, p. 243). Além disso, com as mudanças no

pensamento do homem medieval, já consciente dos seus direitos e obrigações, é criado, por

volta do final do século XII, segundo Jacques Le Goff (LE GOFF, 1994, p. 109), o

Purgatório, o terceiro lugar do Além, por onde os homens que não tivessem agido segundo

as leis de Deus e da Igreja deveriam passar (LAWERS, 2002, p. 243).

Essa avaliação de conduta, promovida pelo Purgatório e sendo, mais ainda, um

reflexo dos novos tempos − que permitiu também a instituição da confissão − voltou o

pensamento do homem para si mesmo. A consciência de sua individualidade, no plano

espiritual, o fez temer o destino da sua alma e, no plano terrestre, a separação de seus bens.

A “morte domada” concede, então, espaço à “morte de si” − expressão também

cunhada por Ariés. A morte agora é a dolorosa separação da alma e do corpo, a fim de que

aquela seja julgada de acordo com a postura do homem quando vivo. E se antes a família

era a responsável pelas necessidades do defunto − tendo que prepará-lo para a cerimônia

fúnebre e atendê-lo quando não tivesse um rito de passagem satisfatório para a morte ou

mesmo quando tivesse dívidas a pagar em favor de sua alma (SCHMITT, 1999, p. 17) −, a

partir de então, a Igreja, apresentando práticas mescladas às pagãs, ocupava o lugar dos

parentes.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

No final do século XII e início do XIII, as práticas funerárias e comemorativas da

Igreja popularizam-se. Os eclesiásticos passam a realizar sufrágios pelos mortos e ritos

funerários (última confissão, extrema-unção, testamento) em maior número.

Nessa época, a Igreja controla os fiéis como nunca. As técnicas de oratória são

aperfeiçoadas e as Ordens mendicantes profissionalizam-se no novo mercado funerário de

encomenda das almas. Os sermões chegam a ser elaborados de acordo com o status social

do defunto, a fim de propor exemplos de comportamento, conforme a condição social. A

morte era, assim, segundo Lawers, explorada numa perspectiva espiritual, de ressurreição

para junto do Cristo, e numa perspectiva penitencial, que promovia o desprezo do mundo, a

conversão, através das descrições do Além (LAWERS, 2002, p. 246).

Face a essa preocupação exacerbada com a morte, a Igreja perde o controle dos

serviços que são oferecidos. Cresce o número de indulgências, missas e outras atividades

funerárias vendidas para burgueses e aristocratas − aqueles pertencentes a uma nova

estratificação social. Aliás, percebe-se na Baixa Idade Média uma preocupação com a

biografia em relação aos bens materiais que o homem construiu e conquistou. Nessa época,

esse sentimento pela vida descarta a imagem da morte como um descanso ou segundo

advento, mas como a separação dos bens, fim do corpo humano, morte, decomposição.

Das duas atitudes do homem diante da morte − a do apego às coisa materiais, e do

conseqüente medo da morte e do além, e a da conversão, que exigia o desprezo do homem

pelo mundo −, o mote, que introduz as artes sobre a morte, podendo ser precursor das artes

moriendi e temas macabros, é o da conversão, proposto principalmente pelas obras de

monges mendicantes. Todavia, esses livros não agrediam o seu leitor, expondo a corrupção

do corpo humano. A intenção didática era relembrar aos homens a efemeridade da vida,

cuja origem frágil não garantiria a eternidade. É importante salientar que, embora

enfatizasse o destino individual do ser, essas obras profetizavam um fim comum a todos.

Ou seja, apresentavam ainda a morte coletiva da Alta Idade Média, a morte tradicional.

No entanto, a outra atitude do homem medieval diante da morte rendeu inúmeras

representações da mesma16. Essa fase proveitosa durou aproximadamente quatro séculos,

16 Lembrando que, a princípio, essa nova arte também tinha a intenção de incitar a conversão.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

entre os séculos XII e XVI, e apresentava as novas inquietações do homem na descoberta

do seu destino.

As iconografias dessa época figuravam o Juízo Final, semelhante à arte funerária,

que nos jazigos iniciaram a criação de imagens do fim dos tempos, baseados no Evangelho

de São Mateus17 e no Apocalipse de São João18. Todavia, essas iconografias não

prenunciavam o Juízo Final como a vinda do Cristo, para a ressurreição e salvação de

todos, numa espécie de segundo advento. No século XII, esse tipo de arte apresentará o fim

dos tempos como o momento do julgamento de cada ser, sem excluir até mesmo os homens

vistos como santos pela Igreja. É um julgamento imparcial, no qual o Arcanjo São Miguel

é o responsável pela pesagem das almas:

Assim, no século XII, fixou-se uma iconografia que sobrepõe o Evangelho de São Mateus ao Apocalipse de São João, prende um ao outro e liga o segundo Advento de Cristo ao Juízo Final (ARIÉS, 1977, p. 109).

No século seguinte, a cena da pesagem das Almas toma maior vulto, deixando em

segundo plano a inspiração apocalíptica. O julgamento, dessa maneira, é o tema central das

iconografias, que apresentam, num tribunal, o juiz, Deus, que, segundo A . Tenenti, citado

por Ariés (ARIÉS, 1977, p.117), assemelha-se mais ao árbitro do que ao juiz na luta entre o

bem e o mal; o réu, no caso, é o defunto; os acusadores, os demônios; e os intercessores, a

Virgem Maria e São João Evangelista. Ou outros santos, pois, conforme divulga Maria do

Amparo Tavares Maleval (2004), também São Tiago, em milagre escrito no século XII, se

apresenta como intercessor em tribunal presidido pela Virgem, embora sem a presença

alegórica da balança.

17 “ Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então, assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda; então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparando desde a fundação do mundo. (...) Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. Livro de Mateus 25, 31-34 e 41 (BÍBLIA, 1993, p. 25-26) 18 “Olhei, e eis o Cordeiro de pé sobre o monte Sião, e com ele cento e quarenta e quatro mil, tendo na fronte escrito o seu nome e o nome de seu Pai. (...) São estes os que não se macularam com mulheres, porque são castos. São eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá. São os que foram redimidos dentre os

47

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Nessa audiência celestial, o livro da vida (liber vitae), já referido em Daniel19, é

consultado para ver os nomes dos eleitos. No século XIII, sofrendo alterações que já

ocorriam no pensamento do homem, no liber vitae, passa a constar o nome de todos os

homens, assim como suas boas e más ações. A balança de São Miguel20 é preterida em

favor do livro da vida dos homens, resultado do espírito contábil do novo homem da Idade

Média.

No final da Idade Média, passando o livro a listar somente os nomes dos

condenados21, o Diabo é responsável pelo livro, na certeza da condenação de algumas

Almas (ARIÉS, 1977, p. 113). Deus também será representado consultando esse livro no

século XV, reafirmando que na iconografia do julgamento as biografias dos homens são

individuais.

No século XIV, o tema do Juízo Final sofre algumas modificações. Além de perder,

paulatinamente, a popularidade, a idéia de julgamento separou-se da idéia de ressurreição.

O homem ainda sonha com o seu segundo advento, mas sofre com a possibilidade da

condenação. E, segundo Ariés, com essa separação o intervalo entre a morte física e o

julgamento é extinto. A condenação ou não é obtida no momento do trespasse, no leito, sem

o auxílio dos sufrágios dos vivos pelos mortos, que poderiam aliviar a pena destes.

Conseqüentemente, o Purgatório, antes conhecido somente por poetas, teólogos e sábios,

torna-se, aos poucos, popular.

No século XV, as artes moriendi substituem a iconografia do Juízo Final. Esses

tratados sobre a ‘arte de morrer bem’ eram também ilustrados por imagens, na tentativa de

conversão dos leigos, analfabetos em sua maioria.

homens, primícias para Deus e para o Cordeiro; e não se achou mentira na sua boca; não têm mácula”. Livro do Apocalipse 14, 4-5. (BÍBLIA, 1993, p. 208) 19 “Nesse tempo, se levantará Miguel, o grande príncipe, o defensor dos filhos do teu povo, e haverá tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas, naquele tempo, será salvo o teu povo, todo aquele que for achado inscrito no livro”. Livro de Daniel 12. (BÍBLIA, 1993, p. 598) 20 É mister salientar que as cenas da balança ainda é, por vezes, representada, sendo que quem passa a manipulá-la é São José ou o Anjo da Guarda. 21 Em 1736, segundo Ariés, em um tratado de preparação para a morte, o pecador possui dois livros. O das boas ações, que fica com o Anjo, e o da más ações, que fica com o diabo.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Nas ‘artes’, o quarto do moribundo é ainda o local do julgamento. A luta entre o

bem e o mal e o livre arbítrio do moribundo é travada na presença de todos, mas sem que os

presentes no quarto e o moribundo percebam a presença dos visitantes do plano espiritual22.

Nos Livro das horas, destinado aos leigos devotos, a imagem da morte também está

presente, assim como no Ofício dos mortos. Todavia, nas ‘artes’, as cenas ocorrem somente

no quarto e com o moribundo coberto, tendo somente os pés e a cabeça descobertos. Nos

Livros das horas, por outro lado, as cenas, na maioria das vezes, são em cemitérios e o

defunto aparece nu − sem estar em decomposição −, coberto por um leve véu.

Paralelamente às artes moriendi são criadas iconografias com temas macabros, em

que eram expostas formas humanas em decomposição.

Segundo Ariés (ARIÉS, 1977, p. 123-124), a origem do termo macabro relaciona-se

aos santos macabeus, considerados patronos dos mortos e autores de orações de intercessão

pelas almas. O próprio termo macabeu, posteriormente, passou a designar corpo morto,

uma vez que não era comum a palavra cadáver. Além disso, a data de comemoração desses

santos tornou-se o Dia dos Mortos, dois de novembro.

Por serem mais objetivos e claros na expressão das alegorias da morte, os temas

macabros, no início, constituíam obras consideradas de menor vulto. A arte funerária, após

algum tempo, incorporou com reservas esse estilo, mas nem as artes moriendi, nem as artes

funerárias, souberam explorar a podridão humana com tanta propriedade como as Danças.

Para alguns historiadores, as iconografias macabras foram diferentes de todas as

outras sobre a morte. Ariés, por outro lado, aposta que esse tema, apesar de ter sido

aproveitado exemplarmente na Idade Média, já havia sido explorado outrora. “Os artistas

romanos, [por exemplo], modelavam um esqueleto no bronze da taça de beber ou o

desenhavam no mosaico de uma casa” (ARIÉS, 1977, p. 118). Conforme observa, os

romanos já haviam captado a fragilidade da vida.

O primeiro cadáver semidecomposto da arte macabra surgiu por volta de 1320, nos

muros da basílica inferior de Assis, na obra de um discípulo de Gioto (ARIÉS, 1977, p.

120). O tema da Dança macabra, por sua vez, difundiu-se a partir de 1425 (SCHMITT,

22 Na Idade Média, morrer na presença de muitos era uma morte honrosa, ao passo que a não presenciada era considerada vil.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

1999, p. 237). Nela é representado “um séquito de pares formados cada um de um morto e

de um vivo encarnando um “estado” da sociedade” (SCHMITT, 1999, p. 237)23.

Segundo Ariés,

a dança macabra é uma ronda sem fim, onde se alternam um morto e um vivo. Os mortos conduzem o jogo e são os únicos a dançar. Cada par é formado por uma múmia nua, putrefada, assexuada e muito animada, e por um homem ou mulher, vestido segundo a própria condição, e estupefato. A morte estende a mão para o vivo que vai arrastar, mas que ainda não se submeteu. A arte reside no contraste entre o ritmo dos mortos e a paralisia dos vivos. O objetivo moral é ao mesmo tempo lembrar a incerteza da hora da morte e a igualdade dos homens diante dela. Todas as idades e todos os estados desfilam numa ordem que é a da hierarquia social, tal como dela se tinha consciência (ARIÉS, 1977, p.124).

Tal encontro entre o homem e o seu fim (a morte, o cadáver) foi utilizado por

pregadores na intenção de converter os vivos. Além disso, o grande sucesso desse tema da

morte justifica-se pelas crises econômicas, pelas guerras e pela peste, que dizimou, durante

a pior infestação, um terço da população européia no verão de 1348 (DUBY, 1998, p.78).

É importante frisar, no entanto, que, embora a tradição histórica aponte os

acontecimentos naturais e/ou políticos como motivos da popularidade da morte, há

historiadores que acreditam numa manipulação do número de mortos pela Igreja, para fins

doutrinários. O que ocorria era

(...) uma fé excessiva em certas testemunhas da época, homens da Igreja em geral pouco habituados a manipular números, naturalmente inclinados a aumentar perdas e dificuldades, a apresentar uma imagem deformada, romanceada, a lamentar as desgraças de uma humanidade que eles vêem atingida pela cólera de Deus, a dar crédito então a uma espécie de lenda negra do seu tempo (ARIÉS, 1977, p. 134-135).

Para Ariés, um “amor apaixonado pela vida” está mais próximo do motivo do

sucesso dos temas macabros. Isso deve-se ainda à questão da individualidade, em que o

homem, tornando-se consciente de seus atos, passava a ter consciência também de suas

riquezas, seus bens; não querendo, pois, abandonar tudo na Terra.

A Igreja novamente aproveitou-se desse conflito existencial do homem, que, mesmo

preso aos seus tesouros, temia o julgamento após a morte. O testamento tornava-se, então, o

23 Da Dança macabra distinguem-se as representações da dança dos mortos nos cemitérios: “os túmulos se

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

meio de um homem avaro e perverso se transformar em um “santo” após a morte, ao

reconhecer que tudo que possuía pertencia, na verdade, a Deus, como se percebe em

expressões testamentárias do tipo: “Queremos e desejamos distribuir e ordenar de mim e de

meus bens, que Monsenhor Jesus Cristo me emprestou, em proveito e salvação da minha alma”

(Testamento de 1399) (ARIÉS, 1977, p. 208).

O tema da morte, assim, alcançava o auge de sua representação no século XV,

estando relacionada à individualidade do ser e seu “amor apaixonado pela vida” (ARIÉS,

1977, p. 137). E, segundo Ariés, jamais alcançaria tal importância devido às circunstâncias

que envolviam as produções artísticas inspiradas nesse tema. Não se tratava somente da

iminência da morte por causa das guerras, intempéries e crises econômicas, mas também da

mudança das crenças e da mentalidade do homem.

3.2 − Auto da barca do Inferno

O Auto da barca do Inferno faz parte de uma trilogia composta de mais duas

moralidades: a do Purgatório (1518) e a da Glória (1519). Esse auto alegórico de cunho

moral, especificamente, foi representado para consolação da “mui católica e santa Rainha

D. Maria, estando enferma do mal [de] que faleceu” (VICENTE, 1988, p. 91). E,

obviamente, reflete a ideologia cristã da época, visto que era a Igreja a responsável pela

“boa morte” do homem medieval e considerada a porta-voz e intermediária entre o mundo

espiritual e o dos homens, para explicar todos os fenômenos e acontecimentos naturais24.

Na Barca do Inferno, a primeira moralidade da trilogia, chegam à margem de um

rio personagens representativas das várias classes sociais e categorias profissionais do seu

tempo. São elas: o fidalgo, a alcoviteira, o corregedor, o procurador, o enforcado, o frade, o

judeu, o parvo e os quatro cavaleiros.

abrem; os mortos como cadáveres vivos, levantam-se, agitam-se e dançam”(SCHMITT, 1999, p. 237). 24 Houve, inclusive, o caso do terremoto em Santarém, sobre o qual os bispos afirmavam ser um castigo por Portugal manter em suas terras muitos judeus. Gil Vicente, por outro lado, indignado, desfez todo o discurso dos clérigos, explicando que aquilo era somente um fenômeno natural e que a conversão de judeus deveria ser através da persuasão e não através de mentiras.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

De acordo com a rubrica inicial, há dois batéis ancorados, o do Inferno e o dos

Céus, cujos respectivos comandantes, o Diabo e o Anjo, são responsáveis por recepcionar

os recém-falecidos25:

(...) Primeiramente no presente auto se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso, e o outro pera o inferno; os quais batéis tem cada um seu arraiz na proa: o do paraíso um Anjo, e o do inferno um Arraiz infernal e um Companheiro (VICENTE, 1988, p. 91).

Diante deles há um desfile de personagens, de tipos humanos de procedência e

caráter diversos, que exibem seus pecados. Gil Vicente apresenta cada um com suas

respectivas falhas, todas de acordo com a situação social ou profissional que estes

representam.

Nesse sentido, as personagens vicentinas apresentam um mesmo caráter e vício para

cada “status social”, pois a intenção era retratar a sociedade daquele tempo com tipos

alegóricos. E cada uma delas leva alguns objetos que mostram seu estilo de vida,

apresentado de maneira exagerada, para melhor atender aos propósitos do Auto.

Assim, o Fidalgo, o primeiro a chegar à ribeira, traz consigo um pajem e uma

cadeira, além de um vestuário de cauda extravagante, simbolizando a riqueza, a altivez e o

parasitismo de toda a sua vida, responsáveis pela sua condenação.

Durante a conversa com o diabo − o Arraiz que primeiro o recebe e tenta convencê-

lo de que deve entrar na barca do Inferno -, é exposto o preceito da Igreja católica de que o

homem é julgado de acordo com o seu comportamento na Terra:

(...) E tu viveste a teu prazer, Cuidando cá guarecer Por que rezam lá por ti? Embarcai! Hou! Embarcai, Que haveis de ir à derradeira. Mandai meter a cadeira, Que assi passou vosso pai.

25 Gil Vicente atualiza a visão corrente sobre o Juízo do século XII, explicada por Ariés (ARIÉS, 1977, p. 109).

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

(...) Vai ou bem, embarcai prestes! Segundo lá escolhestes, Assi cá vos contentai (VICENTE, 1988, p. 94).

O Fidalgo é, portanto, condenado por não ter se redimido dos seus pecados ainda

em vida. Sua conduta desregrada, sem uma preocupação real com o post-mortem, o leva à

barca dos condenados, mesmo tendo encomendado orações e indulgências, provas também

de uma fé mecânica ou superficial.

O Onzeneiro é o segundo personagem a desfilar os seus pecados e a embarcar na

barca infernal. Seu pecado, representado por sua bolsa, foi se aproveitar da miséria alheia

em benefício próprio, emprestando dinheiro a juros exorbitantes. Ademais, tinha inteira

confiança no poder do dinheiro, acreditando poder comprar sua salvação ao praticar uma

religião artificial, assim como o Fidalgo, e subornar o Anjo para conseguir entrar na barca

celestial:

Houlá! Hou demo barqueiro! Sabes vós no que me fundo? Quero lá tornar ao mundo E trarei o meu dinheiro. Aqueloutro marinheiro, Por que me vê vir sem nada, Dá-me tanta borregada Como arraiz lá do Barreiro (VICENTE, 1988, p. 100).

O terceiro personagem que chega à ribeira é o sapateiro. Está carregado de formas,

simbolizando os, aproximadamente, trinta anos de roubo que cometeu contra seus clientes.

Além desse pecado, que o condena à nau infernal, o sapateiro também praticava uma falsa

religiosidade, assim como o Fidalgo. Seguia as orientações da Igreja, não por causa da fé,

mas apenas para conseguir a salvação de sua alma. O que é cobrado, logo depois, pelo

mesmo:

Quantas missas eu ouvi, Nom me hão elas de prestar? (...) E as ofertas, que darão?

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

E as horas dos finados (VICENTE, 1988, p. 104)

O frade, por sua vez, traz a amante, seu broquel e uma espada para mostrar, ainda

que ingenuamente, o não cumprimento dos votos celibatários, o gosto por práticas

mundanas, como a dança, e o uso de armamentos de guerra, proibidos oficialmente aos

clérigos. Acrescenta-se a estes pecados o abuso de poder, uma vez que o mesmo, por ter

sido homem da Igreja, exigiu que fosse aceito na barca celestial: “Juro a Deos que nom

t’entendo!/ E este hábito nõ me val?” (VICENTE, 1988, p. 107).

Em seguida, surge a alcoviteira com os seus “virgos postiços”, “arcas de feitiços”,

“armários de mentir”, “cofres de enleio” e jóias (VICENTE, 1988, p. 111), exigindo uma

passagem direta para a barca celestial, uma vez que sempre procurou fazer o bem para

todas as moças, encaminhando-as “pera os cônegos da Sé” (VICENTE, 1988, p. 112). Entre

seus vários argumentos, recorre até mesmo a Santa Úrsula, para, comparando-se à santa,

provar que converteu mais moças do que aquela.

Logo após a entrada da Alcoviteira, surge o Judeu, com um bode às costas. Este

personagem é recusado pelos dois batéis e, como não entra em nenhuma barca, só poderia

ficar na ribeira. Seu pecado seria, além da confiança no poder do dinheiro, como é exposto

no Auto, o fato de nenhum judeu ser batizado. Todavia, esse argumento justificaria somente

a recusa de sua entrada na barca do Anjo, mas não na do Diabo.

Além disso, é confuso o significado do bode, a materialização do seu pecado. De

acordo com a iconografia medieval, o bode estaria ligado ao demônio, às forças do mal. No

entanto, o Arraiz infernal não aceita a entrada do bode em seu barco. Assim, o bode teria

um outro significado e não o sentido demoníaco, geralmente relacionado a esse animal.

Talvez, o bode seja uma crítica de Gil Vicente à sociedade ao apontar o judeu como o

motivo da ira de Deus, manifestada, segundo a Igreja, também em fenômenos

metereológicos. O bode simbolizaria, dessa maneira, a condição em que viveu o judeu na

Idade Média, sendo o “bode expiatório” de todos os problemas de então.

O corregedor, carregado de “feitos”, e o procurador, de livros, são condenados por

estarem sempre ao lado da classe dos mais abastados. Ora são acusados pela burocracia

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

para se fazer justiça, materializada nos livros e processos que carregam, ora por julgar a

favor dos mais ricos em troca de dinheiro:

Eu mui bem confessei, Mais tudo quanto roubei, Encobri ao confessor... Porque, se o nom tornais, Não vos querem absolver, E é mui mão de volver Depois que o apanhais (VICENTE, 1988, p. 118-119).

Cada um traz, portanto, da Terra, a materialização, ou seja, os instrumentos da

própria culpa. São esses objetos os símbolos dos pecados cometidos pelas personagens, de

sua transgressão a um código de valores comportamentais e morais ditados pela religião

católica, e os responsáveis por sua condenação.

Apenas o parvo, que nada traz consigo, e os quatro cavaleiros (apesar de portarem

“suas espadas e escudos” além da Cruz de Cristo) são dignos de entrar na barca da Glória.

O primeiro, por já ter garantido um lugar nos Céus, devido a sua pobreza de espírito, que

lhe garante o Reino dos Justos, e os seguintes, por estarem seguros na confiança que lhes dá

a consciência de que realizaram o desejo de Deus durante a vida, combatendo pela fé.

Gil Vicente era, assim, um homem entre os valores medievais e os renascentistas.

Suas peças mostram bem este cruzamento de idéias, em que há o respeito à Igreja (pois tem

um compromisso com a ideologia dominante) e a denúncia da decadência dos valores

morais em seu tempo, inclusive dos maus clérigos.

Toda a obra vicentina apresenta criticamente tais aspectos, que marcam a sociedade

portuguesa sua coeva, mas especialmente o Auto da Barca do Inferno, que denuncia a

discriminação, os preconceitos comuns na época, marcando-se ainda por juízos e censuras

aos “abusos” da sociedade. E foi através do tema da morte que Gil Vicente encontrou a

melhor maneira de julgar toda a sociedade, uma vez que somente neste momento seria cada

homem julgado por igual pelo que fez em vida.

Gil Vicente, ao compor o auto examinado, aproveita-se, além desse tema, muito em

voga no final da Idade Média, de obras sobre as Danças Macabras, a fim de construir o

enredo. As semelhanças entre as características das Danças com o andamento do Auto são

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

incontestáveis. Enfim, a presença de todas as classes sociais num desfile de seus pecados e

o debater-se entre a aceitação do fim da vida e o apego às coisas materiais são a tônica do

Auto da barca do Inferno.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

4 − A VIDA SEVERINA E A MORTE NA OBRA DE JOÃO CABRAL

Nesse capítulo, apresentaremos um estudo sobre a atualização dos temas medievais

já abordados. Antes, porém, faz-se necessário uma contextualização histórica da obra Morte

e vida severina, a fim de que se confirme mais uma vez sua importância como um

documento/monumento, reflexo dos conflitos de seu tempo.

4.1 Marx e a morte e vida severina do Capitalismo

Na época em que foi escrita Morte e vida severina (1954-55), o mundo vivia uma

grande tensão por causa da corrida armamentista, iniciada após a Segunda Guerra Mundial,

que poderia ocasionar uma Terceira Grande Guerra. As bases rivais desse confronto não

declarado, que recebeu a alcunha de Guerra Fria, eram representadas pelos Estados Unidos

e pela extinta União Soviética, que reativaram, de maneira angustiante, visto a iminência de

batalhas nucleares, a disputa entre Capitalismo e Socialismo, respectivamente.

O confronto ideológico e político representado por essas potências, no entanto, não

surgiu no século XX. O mundo já vivia essa bipolarização, ainda que em grupos estanques

contra a política capitalista, desde o final do século XVIII e início do século XIX, quando

“surgiram doutrinas e teorias que buscavam, de um lado, justificar e regular a ordem

capitalista burguesa e, de outro, condená-la ou reformá-la” (VICENTINO, 1997, p. 290).

Entende-se, portanto, que o pensamento capitalista, que acarretou somente no século

XX prejuízos mundiais, já vinha sendo questionado há muito tempo, sendo que a força que

viria combatê-lo radicalmente e que reuniria famosos adeptos, como Lênin, surgiria

somente com o Socialismo científico, cujo teórico de maior expressão foi Karl Marx.

As concepções de Marx sobre (ou contra) o Capitalismo estão reunidas em suas obras

Manifesto comunista, de 1848, e O capital, de 1867, que consistem, fundamentalmente,

numa crítica ao sistema capitalista ocidental, bem como a sua evolução interna, e num militante engajamento internacional no sentido de orientar a ação revolucionária do proletariado para acelerar o colapso final desse sistema e iniciar a construção de uma

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

nova sociedade. Culminaria, dessa maneira, na abolição positiva da propriedade privada e da auto-alienação humana (JAGUARIBE, 1979, p.87).

A tese marxista, a que no presente estudo damos destaque, diz respeito a este último

item citado (a alienação humana), que permeia todo o pensamento de Marx. Nela, esclarece

que a alienação do homem, inerente ao sistema capitalista (mas não exclusiva deste), está

fundada na divisão social do trabalho, na propriedade privada e na decorrente divisão da

sociedade em classes, com a apropriação da mais-valia pela classe capitalista

(JAGUARIBE, 1979, p.89). E que, decorrente dessa alienação de aspecto geral, uma vez

que Marx explica que há vários tipos − alienação religiosa, filosófica, política e sócio-

econômica −, o homem estaria encerrado em um jogo, cujo conformismo e o

enriquecimento de uma minoria levaria o proletariado a níveis subumanos de vida.

Logo, dá-se destaque nas teorias de Marx, segundo Hélio Jaguaribe, aos aspectos econômicos da questão, em que ganham relevo quatro modalidades de alienação sócio-econômicas. São elas:

1) A separação entre o homem e seu trabalho, o indivíduo e sua atividade − privando o homem

de decidir o que faz e como faz; 2) A separação entre o homem e o produto de seu trabalho − privando-o do controle sobre o

que faz e o que se faz desse produto; 3) A separação entre o homem e seu semelhante − gerando relações de competição em lugar

de cooperação; 4) A separação entre o indivíduo e sua espécie − a vida da espécie se convertendo em meio de

vida do indivíduo (JAGUARIBE, 1979, p.91).

A primeira modalidade centra sua crítica no direito privado à propriedade difundido

pelo Capitalismo, que via como necessária a uma boa administração, com estímulo e

disciplina no trabalho, a concentração das terras e dos meios de produção nas mãos de uma

classe social, assim como o domínio dos mecanismos de mercado.

O monopólio dessas terras por uma minoria, além de privar o homem de decidir o que

se faz(ia) e como faz(ia), já que a organização do trabalho transforma(va)-o num

empregado submisso a abusos de poder por seus superiores, também o priva(va) do

controle sobre o que produz(ia) e o que é feito do produto final.

Essa segunda modalidade demonstra a obtenção, por parte dos detentores dos meios

de produção, da mais-valia, do lucro final obtido, que, seguramente, se destinava a

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

interesses particulares da classe social dominante, os quais não beneficiavam o

proletariado. A crítica de Marx acerca dessa relação de trabalho se justifica pela venda por

parte dos trabalhadores de sua força de trabalho, sem ter uma participação na venda daquilo

que se produz(ia). Aliás, a troca da força de trabalho por um salário também não era/é

digna, na medida em que se trabalha(va) várias horas por dia, sem as menores condições

básicas de vida, o que ocasiona(va) uma situação miserável e, por vezes, mortes.

A terceira modalidade diz respeito à racionalização dos custos de matéria-prima e de

mão-de-obra, principalmente, e à maximização de lucros, que gera(va)m relações de

competitividade entre os homens, ao invés da solidariedade tão sonhada por Marx.

A última modalidade reúne todas as outras três, a nosso ver, na medida em que o

homem depois de exposto a esse esquema de produção capitalista transforma o seu corpo

em um meio de sobrevivência. É a prostituição proletária em busca de uma vida digna.

Mas, apesar desses pensamentos humanitários, o Socialismo marxista não ganhou

espaço relativamente expressivo, com a exceção da União Soviética, quando governada por

Lênin, pois sua prática sempre se contrapôs a sua teoria.

O Capitalismo, ao contrário, por ter vários exemplos de empreendimentos realizados

com sucesso, apesar das duas (e constantes) falências previstas por Marx, sempre se

mostrou como a melhor via para se alcançar o Primeiro Mundo, principalmente para países

subdesenvolvidos como o Brasil, que, contraditoriamente, tentam, através de empréstimos,

acabar com suas crises econômicas.

Aliás, tal relação de interdependência que se observa no Brasil junto ao capital

estrangeiro também pode ser vista internamente no jogo político-econômico entre os

estados brasileiros.

A questão central, na qual nos baseamos, diz respeito à necessidade que se demonstra

no Capitalismo de sempre haver países subdesenvolvidos, ou uma maioria pobre, a fim de

sustentar o luxo e a riqueza dos que têm domínio dos meios de produção ou que se mostram

economicamente superiores. É o caso do Brasil que, aderindo a este sistema, pretende

tornar-se uma potência de Primeiro Mundo, mas, devido a sua evidente dependência, só

reafirma a oposição entre países centrais e periféricos. E, em virtude da espoliação

acarretada pelas grandes potências, distancia-se mais ainda do nível de vida pretendido.

59

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

A situação do Nordeste é parecida (se não igual) com a do Brasil no sistema

capitalista mundial. Sua posição desfavorável em relação aos outros estados justifica a

miséria de seu povo que, geralmente, é apontada como resultado do clima inóspito da

região. Mito, aliás, que vem sendo combatido com a explanação de que a condição

subumana em que vive o nordestino é conseqüência da transformação do Nordeste em fonte

de mão-de-obra barata desde o século XVIII (ANDRADE, 1993, p.10).

A bem da verdade, o que iniciou a indiferença aos nordestinos foi a vinda da Corte

Portuguesa para o Brasil, especificamente para o Rio de Janeiro, no século XIX,

concentrando toda riqueza e investimentos na porção sul do país em detrimento da do norte,

regiões únicas em que era dividido o Brasil de então.

Nesse período, o capitalismo era introduzido no país através da abertura dos portos

para o produto estrangeiro e, principalmente, pelo financiamento de nossa independência

em 1822. A partir dessa data, a participação do capital estrangeiro para modernização da

ex-colônia só foi aumentando, assim como sua dependência e a distância econômica entre

as classes sociais. O Nordeste, por seu turno, se firmava como uma das regiões mais

pobres, em decorrência da dominação, pelas áreas mais desenvolvidas, de sua matéria-

prima e da mão-de-obra barata.

Somente nos anos 50, com a política desenvolvimentista do Governo Kubitscheck, o

Nordeste foi integrado ao projeto de modernização do país, que já vinha sendo efetuado na

região Sudeste. Procurando atenuar as diferenças entre o Nordeste e o Sudeste, foi

elaborado um relatório sucinto sobre as reais causas do atraso dessa região, cujo resultado

possibilitou a criação da SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste),

em 1959, para “planejar e orientar a atuação dos órgãos federais” (ANDRADE, 1993, p. 8).

Contudo, na medida em que eram introduzidos mecanismos modernos de modos de

produção, a miséria ia aumentando drasticamente. Isso porque o projeto desenvolvimentista

do governo, baseado e financiado pelo sistema capitalista, tinha a racionalização dos custos

e a maximização dos lucros, bem como a apropriação de terras, como o ponto de partida

para o progresso.

Assim, a mecanização do trabalho rural exigia pouca mão-de-obra para a sua

manutenção, e os agricultores que até então viviam da cultura manual não eram

60

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

empregados no mesmo volume. Eles, dessa maneira, se juntavam aos agricultores

autônomos, que perdiam espaço para as modernas fazendas, as quais produziam em uma

escala maior que a sua, e migravam para as capitais da região ou iam para outros estados.

Além desses problemas na modernização da agricultura, havia também o da crescente

industrialização promovida na época, a qual não encontrava mão-de-obra qualificada na

região, e que, por isso, via-se obrigada a importar trabalhadores.

A incoerência percebida nessa acelerada modernização foi a falta de projetos sociais

que acompanhassem todas essa mudanças. O nordestino, que antes sofria com a seca sem

nenhuma ajuda governamental, já era obrigado a migrar para outros lugares à procura da

sobrevivência; no desenvolvimento econômico de sua região, encontrava-se desamparado,

sem terras para trabalhar e não-qualificado para as tarefas nas indústrias. Era, então,

expulso de sua região para contribuir no desenvolvimento de outras cidades.

Contudo, a vida que ele encontrava não era muito diferente da do Sertão. A miséria e

as condições subumanas das favelas, bairros de organização desordenada, sem saneamento

básico e condições mínimas necessárias para sobreviver, eram piores. No entanto, era onde

podiam morar, devido ao alto custo de vida nas grandes cidades, uma vez que, aumentando

o excedente de mão-de-obra nos grandes centros, ocorre o rebaixamento dos salários.

Nesse sentido, manter o Nordeste como trampolim para outras regiões se

desenvolverem, propiciando-lhes trabalhadores parcamente remunerados, é uma

necessidade atestada pelo sistema capitalista. Não obstante, devemos considerar o

crescimento econômico da região, que obteve melhoras com a implementação das medidas

instituídas pela extinta SUDENE, mesmo que às custas da ainda crescente espoliação do

nordestino.

4.2 A vida severina no auto de Natal pernambucano

Morte e vida Severina: auto de Natal pernambucano foi escrito entre 1954 e 1955, a

pedido de Maria Clara Machado, e, segundo o próprio autor, João Cabral de Melo Neto, foi

a obra mais relaxada que escreveu (SECCHIN, 1985, p. 304). Tal investida, visto que era a

primeira vez que escrevia para teatro, rendeu-lhe inúmeras pesquisas sobre o folclore

61

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

pernambucano, assim como das literaturas ibéricas, com as quais teve contato quando

morou na Espanha26 em funções diplomáticas. Toda essa dedicação, no entanto, não foi em

vão, apesar de o texto não ter sido utilizado por Maria Clara Machado, pois Morte e vida

Severina tornou-se sua obra mais conhecida.

E devido a essa popularidade e à facilidade de apreensão da história, na medida em

que é dotada de linguagem simples, sua peça foi incluída pelo próprio autor na segunda

‘água’ do livro Duas águas, cuja divisão entre as obras mais tensas e as de uma

comunicabilidade mais fácil é explicada por João Cabral:

Duas águas correspondem a duas intenções do autor e − decorrentemente − a duas maneiras de apreensão por parte do leitor ou ouvinte: de um lado, poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aproveitamento temático, quase sempre concentrado, exige mais do que leitura, releitura; de outro, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos (MELO NETO, 1956, p. 2; grifamos).

Neste sentido, Morte e vida severina procura atingir diretamente o seu público-alvo

sem artifícios poéticos que possam prejudicar a comunicação, sendo auxiliado pela tradição

ibérica do Auto Pastoril, em virtude de seu cunho didático, e pela preocupação social

demonstrada no texto.

Visto dessa maneira, a peça logo no início nos mostra uma de suas personae

dramatis, que, a exemplo dos autos que apresentam os tipos alegóricos, carrega em si

idiossincrasias daquilo que quer representar. Nesse caso, temos Severino como o

representante de uma coletividade miserável, expulsa de sua terra ora pela seca, ora pelos

grandes latifúndios.

Dando início à peça, Severino faz uma auto-apresentação no momento de sua partida

em busca de uma vida digna ou menos miserável, a qual pode ser ilustrada com esse trecho:

− Nunca esperei muita coisa, digo a Vossas Senhorias. O que me fez retirar não foi a grande cobiça; o que apenas busquei

26 João Cabral de Melo Neto morou em vários lugares da Espanha, a começar por Barcelona.

62

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

foi defender minha vida da tal velhice que chega antes de se inteirar trinta; se na serra vivi vinte, se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda (MELO NETO, 2000, p. 62-63).

Na apresentação, percebemos uma gradação reducionista, em que quanto mais se

tenta a individualização, mais se perde no anonimato da miséria, que iguala a todos na vida,

profissão e morte:

Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta ( MELO NETO, 2000, p. 46).

No episódio seguinte, em que dois homens carregam um defunto numa rede, nosso

protagonista encontra-se com outra persona dramatis, que, contrariando o objetivo do

Auto, encontrado em seu título, de proclamar a vida, será presença (ou companhia de

Severino) constante na peça: a morte. Essa outra personagem, que não se apresenta

fisicamente, dialogará com o enredo do texto, explicando para nós o sentido da vida

severina de nosso herói, condicionada e envolvida por ela. Além disso, será um meio de

tornar mais cáustica a crítica social inerente ao tema do Auto. Como exemplo, temos ainda

neste episódio de morte, exibida através da conversa entre os irmãos das almas27 − que

acompanham o enterro −, e Severino: a problemática da terra, em que a cerca de latifúndios

tende a expandir-se mais e mais, deixando muitos camponeses desempregados ou mortos,

quando tal empreitada é realizada à força:

27 Tal denominação está relacionada às Confrarias das Almas, que se tornou comum em paróquias da Igreja Católica, após a criação do Purgatório. O objetivo dessas irmandades é oferecer sufrágios a seus mortos, para que estes tenham as suas penas aliviadas. Os irmãos das Almas também é o título de uma comédia de Martins Pena.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

− Mas então por que o mataram, Irmão das almas, Mas então porque o mataram com espingarda?

− Queria mais espalhar-se, Irmão das almas, Queria voar mais livre Essa ave-bala (MELO NETO, 2000, p. 49).

A propósito de também se chamar Severino este camponês morto em uma emboscada,

destacamos outro falecido Severino, para o qual são cantadas excelências, cantos fúnebres,

em que a paródia do cantador que está do lado de fora realiza uma paródia em dois níveis,

como bem definiu Luís Costa Lima (LIMA, 1995, p. 321). A paródia à reza, dentro da

história, é percebida na leitura (ou escrita), mas a paródia à lírica, dentro da linguagem, só é

alcançada quando se relaciona a privação do nordestino à paródia da reza concentrada em

nãos: “- Dize que levas somente / coisas de não: / fome, sede, privação” (MELO NETO,

2000, p. 52).

Assim, a tônica do poema dramático novamente vem à luz mesclando morte e

sofrimento como condição de vida dos nordestinos e, mais ainda, de Severino, que

reencontra-se com a morte em seu caminho. Caminho, aliás, que é seguido por uma

ladainha formando um rosário cujas contas são as vilas por onde passa o retirante.

No entanto, esse não é somente o seu guia, sua peregrinação é também orientada pelo

rio, que é a linha do rosário, cujo curso das águas simboliza tanto a vida quanto a morte

(CHEVALIER, GHEERBRANT, 1988, p. 780). Esse significado é importante, pois, no

princípio, o rio representa para Severino a possibilidade de uma nova vida no final de seu

curso, onde se localiza Recife. Porém, o desaguar dele no mar significa a morte, sentido

que Severino perceberá somente na chegada ao seu destino. Mas antes, a morte novamente

envolverá e condicionará a vida desse representante da expoliação sofrida pelos emigrantes

e pelo seu povo que ainda resiste na Caatinga, lugar onde a morte tantas vezes alimenta a

vida.

Numa de suas paradas, Severino encontra a morte como uma forma de (sobre-)

vivência. Perguntando a uma mulher, que se encontrava à janela, por trabalho no local, a

mesma diz ter somente a morte como profissão: “Vou explicar rapidamente, / Logo

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

compreenderá: / Como aqui a morte é tanta, / Vivo de a morte ajudar” (MELO NETO,

2000, p. 56).

A partir desse momento, Severino começa a perceber a onipresença da morte e,

chegando à Zona da Mata, pensa novamente em desistir frente a outro enterro. Nesse último

episódio, antes do fim da jornada, Severino explica sua vida e, concomitantemente, o título

do auto, Morte e vida Severina: “Decerto a gente daqui / jamais envelhece aos trinta / nem

sabe da morte em vida, / vida em morte, severina” (MELO NETO, 2000, p. 59). Nesse

trecho, nosso herói, ao imaginar que a vida naquela paisagem próxima do litoral seria mais

fácil, explana a situação em que vive, tendo a morte como uma sina, uma vez que a morte o

cerca por todos os lados. Seja na morte em vida ou na vida em morte é sempre esta que se

envolve com sua vida, limitando-a e subjugando-a.

A bem da verdade, sua vida é qualificada exemplarmente por ele mesmo ao concluir

que, independente da situação em que se relacione à morte, sempre será severina. A

utilização de seu nome para designar um tipo de vida nos leva à conclusão de que muito

antes de conhecer sua situação miserável, o seu nome, como uma marca do sofrimento, já

predizia o seu destino.

Em sentido etimológico, Severino é uma derivação do adjetivo latino severus, que

significa rígido, rigoroso (CUNHA, 1982, p. 719 ). Esse adjetivo ‘severo’ dá origem ao

substantivo ‘Severino’, que, por sua vez, passando a adjetivo, caracteriza a vida do

personagem central. Assim, embora Severino seja um nome comum no Nordeste, a escolha

desse resulta em uma predestinação que marca Severino − e outros do texto − como o filho

de uma terra seca, dura, ou melhor, rígida, rigorosa, que castiga os que nela nascem.

O enterro ao qual nosso protagonista presencia é de mais um nordestino “igual em

tudo e na sina”, cujo episódio encerrará outra crítica mordaz de João Cabral aos latifúndios,

que expulsam o agricultor, condenando-o à miséria. Neste trecho os amigos do morto

enaltecem a morte, uma vez que esta concede a seu hóspede um pedaço de terra - aquilo

que a vida sempre lhe negou:

− Viverás, e para sempre Na terra que aqui aforas: E terás enfim tua roça.

65

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

(...)

− Agora trabalharás Só para ti, não a meias, Como antes em terra alheia.

− Trabalharás uma terra da qual, além de senhor, serás homem de eito e trator (MELO NETO, 2000, p. 60).

Em virtude deste contratempo que insiste em esmorecê-lo em sua jornada, Severino,

ainda confiante, decide apressar seu passo:

Sim, o melhor é apressar o fim desta ladainha, fim do rosário de nomes que a linha do rio enfia; é chegar logo ao Recife, derradeira ave-maria do rosário, derradeira invocação da ladainha, Recife onde o rio some e esta minha viagem se fina (MELO NETO, 2000, p.63).

Contudo, a esperança de uma nova vida se chocará com a realidade do “Severino

urbano”, que sai de sua terra miserável para viver em favelas da cidade grande. Uma troca

em que somente o que muda é a paisagem, pois a condição desumana à qual são

submetidos é a mesma.

Chegando ao Recife, Severino ouve uma conversa que o levará a considerar a morte

como solução irrefutável para seus problemas:

− A solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio, que vem também lá de cima que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão macio de lama, mortalha macia e líquida, coroas de baronesa junto com flores de aninga, e aquele acompanhamento

66

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

de água que sempre desfila (que o rio, aqui no Recife, não seca vai toda a vida) (MELO NETO, 2000, p. 69-70).

É a conversa fatídica entre os coveiros que o fará pensar em tal desatino. A morte

presente nesse diálogo mostrará que também nela se configuram classes sociais e que,

dependendo da pessoa e de seu nível social, haverá um lugar específico, à altura dela para

comportá-la. Além disso, destacará em suas falas que quem busca na cidade uma vida

melhor só encontra sofrimento e uma morte indigna, refletida também no lugar em que será

enterrado, cemitério de indigentes:

− Eu também antigamente, fui do subúrbio dos indigentes, e uma coisa notei que jamais entenderei: essa gente do Sertão que desce para o litoral, sem razão, fica vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha; pois bem: quando sua morte chega, temos de enterrá-los em terra seca (MELO NETO, 2000, p. 67 – 68).

Uma conversa, porém, contrária a essa, fará com que Severino repense a solução

suicida. Nesse diálogo, através de Seu José, mestre carpina, a terceira persona dramatis,

que completará a tríade alegórica em que Morte e Vida “lutam” pela conquista de nosso

herói, começará a apresentar-se. A esperança e a fé, os argumentos em seu favor, serão os

de Seu José, homônimo de São José, pai terreno de Jesus, que tentará refutar as intenções

de Severino:

− Severino, retirante, o mar de nossa conversa precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão alaga e devasta a terra inteira (MELO NETO, 2000, p. 71).

É importante notar que, a despeito do significado que tem a água para o nordestino,

nesse diálogo a água, e outras palavras do mesmo campo semântico, é usada ora como

67

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

metáfora a favor da vida ora a favor da morte, trazendo à tona o símbolo que o termo

carrega para Severino desde o início até o fim de sua jornada: vida, no começo, e morte, no

final.

Nesse sentido, a conversa entre amigos configura-se em um confronto entre o bem e o

mal, entre a morte e a vida, em que esta última, como estratégia derradeira, se não única,

por não ter se apresentado desde o início, tomará forma, a fim de convencer Severino de

sua força.

A vida, então, surge como o filho do mestre carpina, homônimo de São José, como

dito anteriormente; e, neste momento, a conversa é cessada para dar lugar ao que Benedito

Nunes chama de “auto dentro do Auto” (NUNES, s.d., p.85)28. A partir desse

acontecimento, cada cena corresponderá aos episódios do nascimento de Cristo. O anjo da

Anunciação será representado pela mulher que avisa sobre o nascimento da criança e os

vizinhos, quando, com presentes, representarão os três reis magos, e, quando elogiarem o

recém-nascido, representarão anjos. Por seu turno, o “mocambo modelar”, pelo qual João

Cabral faz novamente sua cortante crítica social, representará o presépio. Além disso, a

presença das ciganas pessimistas tomará o lugar de Simeão e da profetisa Ana, que

predisseram a Maria o destino de Jesus (VIANA, 1988, p. 130).

A presença dessas ciganas e o espaço onde acontece o “auto dentro do Auto”, na

favela construída sobre o manguezal, destituirão toda glória e esplendor comuns nas

encenações de Natal. Seja prevendo que o menino herdará a miséria dos mangues −

“aprenderá a engatinhar / por aí, com aratus, / aprenderá a caminhar / na lama, com

goiamuns, e a correr o ensinarão/ os anfíbios caranguejos, / pelo que será anfíbio / como a

gente daqui mesmo” (MELO NETO, 2000, p.76) −, ou que terá um futuro promissor, sendo

proletário − “Não o vejo dentro dos mangues, / vejo-o dentro de uma fábrica: / se está negro

não é de lama, / é graxa de sua máquina, / coisa que aqui, vestido / de lama da cara ao pé”

28 Para Maria do Amparo Maleval, o auto cabralino desconstrói mitos católicos, consagrados por autos tradicionais. Por se tratar de um auto com um evidente discurso socialista, os dogmas religiosos são preteridos. “Subverte o autor, dessa forma, a lição dos paradigmas bíblicos numa condenação da metafísica; e coloca a Paixão como Advento, para o aperfeiçoamento do reino deste mundo.”(MALEVAL, 2004, p. 7)

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

(MELO NETO, 2000, p. 77) −, a questão é que o destino dele sempre será impuro, assim

como o local onde nasceu.

Dessa maneira, a função ideológica dos autos religiosos de redenção do homem − que

podemos ver em outro texto brasileiro, o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna

(SUASSUNA, 1999), em que a Compadecida só aparece no final como a advogada de

todos, a fim de redimi-los de seus pecados −, é suprimida para dar espaço à preocupação

social do autor. Assim, os últimos vizinhos, que elogiam a criança, enfatizam comparações

entre a resistência da natureza e a força da vida que acaba de nascer: “− De sua formosura /

deixai-me que diga: / é belo como o coqueiro / que vence a areia marinha” ( MELO NETO,

2000, p.78).

A afirmação desta, ainda que severina, é destaque nesse Auto, principalmente em

relação ao desfecho, quando Mestre Carpina e Severino retomam a conversa. No fim,

percebemos que a força humana, independente da condição social, se mostra única e

sempre disposta a vencer todas as adversidades29. O cunho pedagógico desse Auto,

portanto, se transluz para nós, na medida em que podemos tirar algum ensinamento desse

texto que se encerra, deixando em nossa imaginação uma possibilidade de futuro para

tantos severinos do Brasil.

4.3 A morte no auto de Natal pernambucano

Ao lermos as primeiras páginas do auto Morte e vida severina, não é difícil

constatar que o enredo leva situações de morte ao encontro do protagonista Severino. Numa

primeira cena desses encontros, a morte por emboscada apresenta sua vítima: um Severino,

cujo nome e vida são semelhantes aos de nosso protagonista.

A morte, nesse momento, nos sinaliza os seus motivos. A questão da reforma

agrária suscita ambição e assassinato. Logo, aqueles que impedem o enriquecimento de

outros devem ser banidos violentamente à “ave-bala”.

29 De acordo com Décio de Almeida Prado, na primeira versão desse Auto não havia a retomada da conversa entre Severino e Mestre Carpina, a fim de que “a conclusão ficasse em suspenso” (PRADO, 2003, p. 86).

69

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Não possuir terras ou possui-las não impede o nordestino da terra seca do Nordeste

de pensar em sair de seu lugar. Por causa das condições impostas para a sobrevivência, a

única alternativa é fugir da fome, da morte. Sem terras, o mesmo não tem como plantar, não

há emprego em campo seco e, quando dono de terras, não há dinheiro para investir;

portanto, é forçado a vender tudo que possui. E, assim, sem escolha, seu destino é migrar

para outras cidades.

O mote principal desse Auto, trazido à tona por João Cabral, não foi o único nem o

primeiro em sua obra a abrir espaço para a discussão da miséria dos nordestinos. Sua cidade

natal, Recife, já o havia inspirado a escrever O cão sem plumas (1950), o primeiro poema

que trata das mazelas humanas de Recife, e outros cento e oitenta poemas escritos sobre

Pernambuco, mormente Recife e o rio Capibaribe.

Levar a morte, no entanto, para o campo da literatura como uma bandeira política,

segundo o próprio autor, não era a sua intenção, embora na época de publicação de Morte e

vida severina, devido às denúncias de que seria comunista, tenham sido divulgadas notícias

contrárias ao seu propósito.

Cabral, na verdade, mostra a miséria do Nordeste através de imagens criadas por seu

refinado gosto poético. Imagens, aliás, tão chocantes que não podiam ser apresentadas,

numa noite de Natal, como um auto de cunho puramente religioso.

As críticas sociais sem engajamento político, segundo o mesmo, eram resultantes do

clima de pobreza interminável que ele havia acompanhado desde menino e que ainda

persistia, ora com a ajuda do governo, sustentando a miséria com medidas assistencialistas,

para manter mais ricos e poderosos os fazendeiros e empresários, ora sem a ajuda

governamental, fechando os olhos para a comunidade carente pernambucana.

Nessa tentativa de “retratar (...) o que via e sentia”30, sua sensibilidade extrapolou os

limites do que seria um auto de Natal, composição pedida por Maria Clara Machado,

diretora, na época, do grupo O tablado. E o que deveria suscitar a renovação dos laços

familiares, fraternais, imbuídos pelo espírito natalino, trouxe a morte confundindo-se (ou

nos confundindo) com a vida severina dos nordestinos.

30 Trecho de um estudo sobre João Cabral de Melo Neto em um site. Ver: http://fredbar.sites.uol.com.br/mvsint.html.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

Morte e vida severina, nesse sentido, são companheiras de Severino em sua via-

crucis existencial, como vimos. Vivendo na fronteira entre a morte e a quase-morte, face à

pobreza da região, Severino nos remete aos homens da Idade Média, uns preocupados com

a morte espiritual, tentando anular os prazeres da vida, e outros, camponeses rústicos,

vítimas diretas do clima de morte da época, preocupados com as duas possíveis mortes,

física e espiritual, não só pela pressão ideológica da Igreja, mas por causa, principalmente,

das crises políticas e intempéries da época.

É esse clima de morte que envolve obras como a trilogia das barcas, de Gil Vicente,

mormente o Auto da barca do Inferno, e a peça cabralina, tendo em vista o seu formato e o

conhecimento do autor da literatura ibérica, que nos fundamenta para tecer considerações

acerca dessa semelhança.

No livro sobre a morte na Idade Média, de Philippe Ariés, O homem diante da

morte (1977), há um panorama da influência da morte (ou importância) na vida daqueles

homens, dando margem a comentários do autor, em poucos momentos, infelizmente, sobre

o comportamento do homem do século XX em relação à mesma. Nesse raio-x do homem

diante da morte, Ariés nos mostra exemplos de homens como Severino e os da barca

infernal de Mestre Gil.

Recorrendo à experiência de A . Tenenti, Ariés nos fala de uma iconografia das

artes moriendi que sugere um embate entre as forças do bem e do mal por causa da alma de

um enfermo:

A . Tenenti, na sua análise da iconografia das artes moriendi, pensa que o próprio moribundo assiste ao seu drama mais como testemunha do que como ator: “Um combate entre duas sociedades sobrenaturais em que o fiel tem fraca possibilidade de escolher, mas nenhum meio de se esquivar. Em torno do leito, uma luta sem piedade, uma tropa diabólica de um lado, legião celeste do outro” (ARIÉS, 1977, p. 117).

Em Morte e vida severina não temos propriamente uma alma em jogo, mas a vida

humana subjugada ao sofrimento, ora pendendo para a morte rápida, o suicídio, ora para a

lenta e progressiva morte do dia-a-dia, considerada a mais dura e cruel.

Essa disputa é a força motriz da crise existencial de Severino. Ora, se compararmos

as duas situações, verificaremos que há, no auto cabralino, um embate semelhante ao

71

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

medieval entre duas forças que dinamizam a peregrinação do migrante Severino. É esse

choque de Severino diante das “forças do mal” que o impulsionará a abreviar sua vida,

contrastando em algumas cenas com a sua esperança na cidade grande, a qual aos poucos

vai esmorecendo.

É ainda mais evidente essa semelhança quando Ariés percebe que nas ars, publicada

por A . Tenenti,

A liberdade do homem é ali respeitada e que se Deus parece ter abandonado os atributos da justiça (...) porque o próprio homem se tornou seu juiz. O Céu e o Inferno já não lutam (...) assistem à última prova proposta ao moribundo e cujo desfecho determinará o sentido de toda a sua vida. São eles os espectadores e as testemunhas. É o moribundo que nesse instante tem o poder de tudo ganhar ou tudo perder: “A salvação do homem é estabelecida no seu final”. (...) Cabe-lhe vencer com o auxílio do seu anjo e dos seus antecessores, e ele será salvo, ou ceder às seduções dos diabos e ele estará perdido (ARIÉS, 1977, p. 117).

A visão de Ariés sobre a iconografia publicada por A . Tenenti reflete parcialmente

a nossa leitura do conflito de Severino em Morte e vida severina.

Há momentos em que esse embate de forças contrárias depende somente do desejo

de Severino, do seu livre arbítrio. Suicidar-se ou não é uma decisão que só o próprio poderá

tomar, apesar de todas as adversidades que o forçam a concretizar o ato.

Em outro momento, Ariés lembra-nos de uma famosa imagem consagrada por

Ingmar Bergman, em O Sétimo Selo, na qual vida e morte disputam uma partida de xadrez,

revelando a impotência do homem diante das forças da natureza e do seu destino. Tal

(re)criação escatológica foi inspirada numa iconografia medieval em que o homem e o

diabo jogam na disputa pela alma deste:

Homem, o diabo joga xadrez contigo e se esforça por te apanhar e te dar xeque-mate neste ponto (a morte). Mantém-te, portanto, pronto, pensa bem nessa jogada porque, se ganhares neste ponto, terá ganho todo o resto, mas se perderes, o que tiveres feito de nada valerá (ARIÉS, 1977, p. 117).

Essa disputa enseja novamente a comparação entre o debater-se de Severino, entre o

fim do seu sofrimento e a permanência em uma vida miserável, e o conflito do homem

72

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

medieval temeroso em relação ao seu fim e a proximidade da morte, configurada na peste,

na fome e nas guerras que assolaram terras européias no final da Idade Média.

Na análise das Danças macabras, uma das criações artísticas suscitada pelo tema da

morte, que revela um mesmo fim para todos, surge um camponês, numa situação

econômica semelhante ao de nosso protagonista. A morte lhe diz: “Lavrador que em

cuidados e penas / Viveste todo teu tempo / Morrer é preciso, é coisa certa / com a morte

deves ficar contente / já que de grandes cuidados ela te libera (...)” (ARIÉS, 1977, p.125).

Nesse discurso, aparentemente, piedoso e transbordante de compaixão, entrecruza-

se o discurso de Severino ao pedir à morte um fim digno. Assemelha-se à mesma

necessidade em pôr fim à miséria, à pobreza que o fez sofrer por toda a sua vida:

Sabia que no rosário De cidades e de vilas, E mesmo aqui no Recife Ao acabar minha descida, Não seria diferente A vida de cada dia: (...) Esperei, devo dizer, Que ao menos aumentaria Na quartinha, a água pouca, Dentro da cuia, a farinha, (...) E chegando, aprendo que, Nessa viagem que eu fazia, Sem saber desde o Sertão, Meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado Adiantado de uns dias; O enterro espera na porta: O morto ainda está com vida (MELO NETO, 2000, p. 69).

Nesse sentido, a morte também faz Severino dançar com suas necessidades e

esperanças, fome e desespero. Mas, em Morte e vida severina, a dança da morte não se

apresenta como um fim comum a todos, sem distinguir nobres de miseráveis. Apesar de a

morte ser um fim natural para todos, um enterro digno será de direito somente para aqueles

que podem pagar, pois há, no mundo do capitalismo selvagem, cemitérios para cada classe

social.

73

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

CONCLUSÃO

Para se entender o presente, a busca do passado é sempre importante. No nosso caso,

a busca por um passado não se restringe a relatos históricos do início da colonização.

Nossas raízes, na verdade, estão concentradas no passado histórico de nosso colonizador,

que é responsável por uma considerável parte de nossa formação, de nossa identidade.

Nesse sentido, o efeito dessa colonização, arraigada de valores medievos, é

percebido até hoje, principalmente, quando grandes artistas retomam o passado, a fim de

criar novas formas para os novos tempos e necessidades. João Cabral de Melo Neto é um

exemplo desses escritores que buscam ou escrevem uma literatura neomedievalista.

A bem da verdade, no auto cabralino, folclore brasileiro e literatura ibérica medieval

se confundem. O caso estudado do auto brasileiro, uma representação considerada

tradicional do nosso folclore, é um exemplo da permanência de elementos medievais

assimilados e adaptados por nós, que ganharam espaço em nossa cultura.

A religiosidade medieval, nesse sentido, influenciou não somente nosso folclore.

Isto porque, ao tratar da origem do teatro medieval, acompanhando sua evolução, a fim de

verificar seus gêneros e subgêneros e, ainda, estudar sua influência no auto brasileiro,

percebemos que a religião, o teocentrismo medieval, que influenciou nosso calendário

folclórico, nossas festas e mentalidades, foi responsável por tornar o que antes designava

qualquer representação em uma tradição folclórica do Brasil de caráter religioso.

O termo ‘auto’, assim, nos traz a história de nossos antepassados, a qual serviu de

base à construção de nossa identidade e, ainda hoje, nos tempos modernos, é resgatada por

intelectuais, interessados nesse passado, e por artistas populares, que, inconscientemente ou

não, imortalizam nossas raízes ibéricas.

No entanto, não só gêneros medievais são provas da presença da literatura medieval

em nossa cultura e produções literárias. Revisitar a Idade Média como fonte de inspiração

para novas obras tornou-se comum entre escritores brasileiros, em busca, muitas vezes, de

uma identidade perdida. José de Alencar, por exemplo, no século XIX, já procurava

74

Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

constituir uma identidade para o brasileiro − proposta do Romantismo −, valendo-se de

paradigmas medievais.

Dos séculos XX e XXI, temos exemplos de autores renomados, além de João Cabral

de Melo Neto, como Ariano Suassuna, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira, entre outros31,

que também buscaram inspiração ou uma identidade nas mesmas fontes, atualizando temas

como o amor cortês, a cavalaria, etc.

No caso de João Cabral de Melo Neto ou, mais precisamente, de sua obra Morte e

vida severina, verificamos a retomada de temas concernentes ao imaginário medieval.

Morte e Peregrinação, como vimos, são motes que na obra cabralina retomam questões que

também foram motivos de composições artísticas na época.

Todavia, a análise comparativa desses temas/textos deve ser vista com certa reserva

em relação à ideologia que representam, pois, como vimos, há uma distância temporal

considerável que os separa, cuja explanação afastou a possibilidade de os julgarmos

semelhantes acerca de suas motivações.

Ao elaborar seus Autos, Gil Vicente explorou, de acordo com a doutrina religiosa da

época, o tema da peregrinação (Auto da Alma) e da morte (Auto da barca do

Inferno/Trilogia das barcas) como uma forma de expiar, recompensar ou punir as falhas

humanas. Através dessas moralidades, discutiu tanto a perdição das almas (ou dos homens

com suas mazelas) quanto a salvação após o arrependimento, ou por merecimento ou

ausência de culpa.

João Cabral, por sua vez, revela uma peregrinação condicionada pela temida morte,

constante no pensamento do sertanejo através da fome e da miséria, comuns entre seu povo.

Apresenta-nos, portanto, uma peregrinação em busca de uma vida melhor – diferente do

tratamento espiritual dado por Gil Vicente, explorando o tema da reforma agrária como

meio de garantir dignidade aos nordestinos expulsos de sua região em virtude do sistema

capitalista implantado sem nenhuma preocupação social.

No entanto, a estratégia utilizada por Gil Vicente também é compartilhada por Cabral.

A estruturação dos três textos se baseia na alegoria, que consiste em “toda concretização,

31 O livro Poesia medieval no Brasil, de Maria do Amparo Tavares Maleval, apresenta um excelente estudo, único na área, sobre poetas brasileiros que, através de suas obras, revisitam o imaginário medieval.

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Morte e vida em Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto

por meio de imagens, figuras e pessoas, de idéias, qualidades ou entidades abstratas”

(MOISÉS, 1978, p. 15).

João Cabral também fez uso dessa estrutura em sua obra, na medida em que Morte e

Vida severina podem ser entendidas como personagens − não fisicamente −, que, devido ao

plano sócio-econômico em que é desenvolvida a trama, agem sobre o destino do

protagonista. Este, por sua vez, é outro tipo alegórico que carrega em si o sofrimento e a

esperança do sertanejo.

O texto cabralino, nesse sentido, revela uma história sobre a peregrinação de um

homem perseguido pela imagem onipresente da morte. E de tal presença decorre o

sofrimento de Severino - semelhante ao da Alma, que, em sua jornada, ora é tentado pelo

mal, a Morte ou o Diabo, que investe na sua perdição, provocando sentimentos

contraditórios, ora é convencido por si mesmo ou por outros a continuar a sua busca.

Nesses momentos de desespero, em que a força da vida parece enfraquecer, é que o

tema da morte, semelhante à Dança Macabra, ganhará espaço, envolvendo Severino numa

teia de morte em que tudo parece levá-lo a esse fim, como também acontece aos pecadores

do Auto da barca do Inferno. A bem da verdade, a peregrinação é o fio-condutor da história

de Severino e a morte o elemento que dinamiza as ações do mesmo.

Assim, caminhando por um objetivo, como os peregrinos medievais, e cercado pelo

clima de morte, como os homens do final da Idade Média (mas não só), Severino fraqueja

diante de necessidades comuns tanto ao homem daquele tempo quanto ao de hoje. São

vítimas das mesmas condições de vida, pois ambos, representantes de épocas tão distantes e

diferentes, sofreram a desumanidade dos sistemas econômicos e a crueldade da natureza. E,

ademais, foram forçados a conviver com a morte, temendo-a ou aproveitando-se da mesma

para sobreviver, como aprendeu e aconselhou a mulher da janela em Morte e vida severina.

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