Morte Encefálica, Uma Certeza- O Conceito de “Morte Cerebral” Como Critério de Morte 2013

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    Revista - Centro Universitrio So Camilo - 2013;7(3):271-281

    ARTIGO DE REVISO / REVIEW ARTICLE

    * Mdico. Mestre em tica e Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS, Brasil. Especialista em Neurocirurgia Peditrica pelo Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). Professor de Neurologia, Neurocirurgia e Biotica da Faculdade de Medicina da Universidade Comunitria da Regio de Chapec. E-mail: [email protected]** Graduando em Medicina pela Universidade Comunitria da Regio de Chapec (Unochapec), Chapec-SC, Brasil.*** Graduando em Medicina pela Universidade Comunitria da Regio de Chapec (Unochapec), Chapec-SC, Brasil.**** Graduando em Medicina pela Universidade Comunitria da Regio de Chapec (Unochapec), Chapec-SC, Brasil.Os autores declaram no haver conflitos de interesse.a. Ver o caso da circular Jeannenay na Frana.

    Morte enceflica, uma certeza? O conceito de morte cerebral como critrio de morte

    Is there a right way to recognize brain death? The concept of brain death as a death criteriaCarlos Frederico Almeida Rodrigues*

    Adriano Seikiti Stychnicki**Bernardo Boccalon***

    Guilherme da Silva Cezar****

    ResuMO: Foram analisados criticamente os critrios utilizados para diagnstico de morte enceflica no Brasil; abordamos aspectos histricos sobre o diagnstico de Morte Enceflica (ME), no nosso e em outros pases e analisamos alguns critrios adotados para o diagnstico, com base na pers-pectiva biotica e tecnocientfica, citando tambm os interesses e o despreparo dos profissionais frente morte e o seu diagnstico. Para isso, foram realizadas uma reviso da literatura aleatria de artigos que tratavam dos critrios de morte enceflica em diversos pases e uma reviso das crticas aos critrios de morte enceflica. Por mais que prezem valores e tcnicas no emprego do diagnstico de morte enceflica, sobretudo em uma medicina blica e focada na subservincia aos critrios cientficos, falta muito para alcanarmos um protocolo capaz de exatido incontestvel (se que existe algum). Ficam claros os interesses por trs da morte enceflica e o despreparo por parte de profissionais em diagnostic-la e aceitar os seus critrios. O diagnstico de morte enceflica est totalmente atrelado s doaes de rgos, ficando at em segundo plano os critrios de morte. Testes incor-porados ao protocolo, mesmo que gerando controvrsias quanto aos resultados, continuam sendo adotados, no sabendo se ao certo beneficiam ou prejudicam os pacientes. A confuso terica entre prognstico (o paciente est morrendo) e diagnstico (o paciente est morto) dificulta ainda mais o j complexo campo da ME.

    PalavRas-chave: Morte Enceflica. Biotica. Medicina.

    abstRact: The criteria used to diagnose brain death in Brazil were critically analyzed. Historical aspects on the diagnosis of brain death (BD) in Brazil and other countries were discussed. Some criteria used for this diagnosis from a bioethical and technoscientific perspective were analyzed, also mentioning the concern and lack of prepare of professionals towards death and its diagnosis. Therefore we conducted a random review of arti-cles concerning brain death criteria in several countries and a random review of articles criticizing it. Even though there are values and techniques regarding brain death diagnosis especially in war medicine, focused on subservience to scientific criteria a protocol capable of indisputable accu-racy (if any) is far from being obtained. It is clear that there are interests behind brain death. The failure of professionals in diagnosing brain death and accepting its criteria is also easily noticed. Brain death diagnosis is totally tied to organ donations, the criteria for death are pushed aside. Tests incorporated into the protocol even if generating controversies regarding its results continue to be adopted, with no concern to whether they are benefiting or harming to patients. Uncertainty concerning theoretical prognostic the patient is dying- and diagnosis the patient is dead further complicates the yet complex field of BD.

    KeywORds: Brain Death. Bioethics. Medicine.

    IntROduO

    O critrio de morte enceflica (ME) surgiu con-comitantemente s mudanas tecnolgicas, sobretu-do, na dcada de 50 do sculo XX. Essas mudanas ocorreram, principalmente, no que diz respeito ao suporte de vida, como as tcnicas de ressuscitao cardaca e respirao com ventiladores mecnicos e

    est intimamente relacionada com a doao de r-gos1.

    No intuito de esclarecer e definir a ME, um comit composto por 10 clnicos, um historiador, um telogo, um advogado e presidido pelo professor de Harvard, Henry Beecher, foi criado em 1967 e produziu o relat-rio que considerado a origem dos critrios para o diag-nstico de ME. Se no o primeiro, o mais conhecidoa. O

    PaniaguaHighlight

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    relatrio tambm permitiu o aumento da frequncia dos transplantes, que puderam, a partir dessas resolues, se-rem implementados em todos os pases desenvolvidos1.

    No Brasil, a ME definida como a constatao irre-versvel da leso nervosa central e significa morte, seja cl-nica, legal e/ou social2. Atualmente, o Programa Nacional de Transplantes (SNT), criado pelo Ministrio da Sade por meio do Decreto Lei n. 2.268, um dos maiores do mundo e estabelece a forma de distribuio dos rgos e tecidos nas listas de espera. Alm disso, o Brasil pos-sui a Lei n. 10.211, sancionada em 2001, que trata da obrigatoriedade de consulta famlia para a autorizao da doao e retirada de rgos, e a lei n. 9.4343, de 4 de fevereiro de 1997, que regulamenta as doaes: Art. 1 - A disposio gratuita de tecidos, rgos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, permitida na forma desta Lei e Art. 3:

    A retirada post mortem de tecidos, rgos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamen-to dever ser precedida de diagnstico de morte en-ceflica, constatada e registrada por dois mdicos no participantes das equipes de remoo e transplante, mediante a utilizao de critrios clnicos e tecnol-gicos definidos por resoluo do Conselho Federal de Medicina.

    Contudo, o diagnstico de morte enceflica apresen-ta distores, gerando debates em todo o mundo, mesmo aps 40 anos do incio de suas discusses. Com alguns pontos duvidosos, critrios e regras que diferem ao redor do mundo, o diagnstico de ME vem se tornando uma cincia, sendo objeto de estudo de profissionais de vrias reas, como direito, filosofia, religio e, claro, da sade.

    Por terem sido propostos h mais de 30 anos, os critrios de Morte Enceflica surgiram em uma poca em que muitos dos conhecimentos sobre a fisiologia do sistema nervoso central, hoje disponveis, eram desco-nhecidos ou no estavam totalmente esclarecidos, como por exemplo, questes relacionadas reduo do fluxo sanguneo enceflico, efeitos da hipotermia e limites dos exames complementares para a confirmao do diagns-tico. Sendo assim, uma reviso crtica dos conceitos de Morte Enceflica, luz da Biotica, torna-se necessria, mesmo que provoque feridas profundas no meio m-dico.

    sItuaO dO cOnceItO de MORte eM dIfeRentes Pases legIslaes sObRe MORte enceflIca

    As mudanas da medicina, principalmente em tcni-cas de ressuscitao cardaca e respirao, com os ventila-dores mecnicos, proporcionaram aos pacientes vtimas de TCE (Traumatismo Crnio-Enceflico), AVE (Aci-dente Vascular Enceflico), principais causas do coma que evolui para ME, que no passado eram considerados sem prognstico com relao sobrevida, permanecerem com suas funes vitais normais, com exceo da neuro-lgica. Tecnologias reforam a construo de uma mor-te moderna, medicalizada, ligada a aparelhos, produtora de cadveres funcionais4. Mantidas as funes cardacas e respiratrias por auxlios tecnolgicos, esses pacientes continuam hemodinamicamente estveis. Com isso surge a questo: esto esses pacientes vivos ou mortos?

    Os pases divergem em seus conceitos, definio e diag-nstico de morte enceflica. Mesmo que pesem sobre a ne-cessidade de um conceito nico todas as crticas filosficas que os pensamentos unnimes possuem, se houvesse alguma uniformidade nas definies, poderamos ter um conceito mais confivel e fidedigno. Entretanto, isso poderia determi-nar piora na operacionalidade do diagnstico, considerando os diferentes nveis de investimentos na sade e educao da populao; diferentes religies; e disponibilidade de m-dicos2, pois fato que a humanidade no una. Coimbra declara que Redefinir a morte no foi somente um exerc-cio tcnico, mas um ato esttico destinado a acomodar no mesmo quadro clnico o paciente comatoso desenganado, o morto e o doador de rgos5. Vejamos alguns exemplos.

    brasilO critrio de morte enceflica foi introduzido, em

    1968, por conta do primeiro transplante realizado a partir de rgo cadavrico e foi baseado apenas em critrios ele-troencefalogrficos6. O Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina de So Paulo (HCFMUSP) foi o pioneiro a realizar o transplante cardaco na Amrica Latina, poucos meses aps o primeiro transplante ter ocorrido na Cidade do Cabo (frica do Sul)7, onde, no dia 3 de dezembro de 1967, o corao de uma jovem doadora de 25 anos vti-ma de acidente foi transplantado pelo cirurgio Christiaan Barnard para o receptor Louis Waskansky8, de 53 anos, an-tes mesmo de haver uma definio sobre morte enceflica4.

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    No Brasil, no dia 26 de maio de 19689, Joo Ferreira da Cunha recebeu pelas mos do cirurgio Euryclides Jesus Zerbini, o corao retirado de Lus Ferreira Bastos, que fora vtima de acidente de trn-sito4. Waskanky fora a bito aps 18 dias10 de seu transplante e Cunha, quase um ms depois4, fale-cendo aps 28 dias9. Ambos no tiveram sucesso no transplante, em decorrncia de vrios fatores, mas destaca-se: a falta de critrios para a correta seleo dos doadores, cuidados precrios no ps-operat-rio e, ainda, a dificuldade em administrar a rejei-o do organismo em relao ao rgo estranho. Evidenciam-se, tambm, os problemas ticos que o transplante realizado por Barnard possuiu, j que a redefinio dos critrios de morte enceflica e, por conseguinte, os de morte, ainda no havia sido reali-zada e, pior ainda, foi realizado no perodo em que a frica do Sul vivia a poltica do Apartheid.

    Alm disso, na dcada de 60, havia um desrespeito pela vida humana na frica do Sul, portanto a remo-o do corao no despertaria tantos sentimentos de repulsa, e haveria menos chances de crticas de que o procedimento tiraria a vida do doador, tanto que o go-verno tratou o caso quase como um milagre, pois o fato reduziria as duras crticas por conta de sua poltica de Apartheid. Independentemente que a medicina na Ci-dade do Cabo fosse avanada e sofisticada e composta por um largo grupo de mdicos, no houve menes sobre questes ticas, ou mesmo jurdicas sobre a re-moo do corao, e no h sugesto de que a doadora poderia ter sido considerada viva antes da remoo de seu corao11.

    O HCFMUSP estabeleceu, em 1983, seu prprio critrio de ME, baseando-se, em resumo, na constatao clnica de um coma aperceptivo, ausncia de reflexos su-praespinhais, excluindo situaes como de hipotermia e depresso medicamentosa, com tempo de observao m-nimo de seis horas e sendo ainda necessrio um exame, no qual demonstrava-se ausncia de perfuso sangunea ou atividade eltrica no crebro6.

    Em 1987, aprovado o primeiro protocolo estadual de ME pelo Conselho Regional de Medicina do esta-do do Rio Grande do Sul12. Aps essa resoluo, no dia 8 de agosto de 1991, o Conselho Federal de Medicina protocolou, por meio da Resoluo 1346/9113, alguns princpios a serem adotados para o diagnstico da ME

    em todos os hospitais brasileiros. Em 1997, por meio da Resoluo do CFM n. 1.480/97, revogada em 08 de agosto do mesmo ano, o diagnstico de ME foi definido com base em critrios clnicos e tecnolgicos obrigat-rios a serem seguidos em territrio nacional.

    Para o CFM, o critrio para o diagnstico da mor-te cerebral a cessao irreversvel de todas as funes do encfalo, incluindo o tronco enceflico, onde se situ-am estruturas responsveis pela manuteno dos proces-sos vitais autnomos, como a presso arterial e a funo respiratria14. O protocolo utilizado para o diagnstico da ME, institudo pela Resoluo do CFM n. 1.480, de 199715, dispe o seguinte:

    Art. 1. A morte enceflica ser caracterizada atravs da realizao de exames clnicos e complementares durante intervalos de tempo variveis, prprios para determinadas faixas etrias.

    Art. 2. Os dados clnicos e complementares obser-vados quando da caracterizao da morte enceflica devero ser registrados no termo de declarao de morte enceflica, anexo a esta Resoluo.

    Pargrafo nico. As instituies hospitalares podero fazer acrscimos ao presente termo, que devero ser aprovados pelos Conselhos Regionais de Medicina da sua jurisdio, sendo vedada a supresso de qualquer de seus itens.

    Art. 3. A morte enceflica dever ser consequncia de processo irreversvel e de causa conhecida.

    Art. 4. Os parmetros clnicos a serem observados para constatao de morte enceflica so: coma aper-ceptivo com ausncia de atividade motora supraespi-nal e apneia.

    Art. 5. Os intervalos mnimos entre as duas avalia-es clnicas necessrias para a caracterizao da mor-te enceflica sero definidos por faixa etria, confor-me abaixo especificado:

    a) de 7 dias a 2 meses incompletos - 48 horas

    b) de 2 meses a 1 ano incompleto - 24 horas

    c) de 1 ano a 2 anos incompletos - 12 horas

    d) acima de 2 anos - 6 horas

    Art. 6. Os exames complementares a serem obser-vados para constatao de morte enceflica devero demonstrar de forma inequvoca:

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    a) ausncia de atividade eltrica cerebral ou,

    b) ausncia de atividade metablica cerebral ou,

    c) ausncia de perfuso sangunea cerebral.

    Art. 7. Os exames complementares sero utilizados por faixa etria, conforme abaixo especificado:

    a) acima de 2 anos - um dos exames citados no Art. 6, alneas a, b e c;

    b) de 1 a 2 anos incompletos: um dos exames citados no Art. 6, alneas a, b e c. Quando optar-se por eletroencefalograma, sero necessrios 2 exames com intervalo de 12 horas entre um e outro;

    c) de 2 meses a 1 ano incompleto - 2 eletroencefalo-gramas com intervalo de 24 horas entre um e outro;

    d) de 7 dias a 2 meses incompletos - 2 eletroencefalo-gramas com intervalo de 48 horas entre um e outro.

    Art. 8. O Termo de Declarao de Morte Encefli-ca, devidamente preenchido e assinado, e os exames complementares utilizados para diagnstico da morte enceflica devero ser arquivados no prprio prontu-rio do paciente.

    Art. 9. Constatada e documentada a morte encef-lica, dever o Diretor Clnico da instituio hospi-talar, ou quem for delegado, comunicar tal fato aos responsveis legais do paciente, se houver, e Central de Notificao, Captao e Distribuio de rgos a que estiver vinculada a unidade hospitalar onde o mesmo se encontrava internado.

    estados unidos da amricaHenry Beecher, anestesiologista que comandava gru-

    pos de pesquisa, publicou, em 1968, com seus colabora-dores, um relatrio da Ad Hoc Committee of The Harvard Medical School, intitulado A definition of a irreversible coma4.

    O documento Uniform Anatomical Gift Act foi pu-blicado em 1968, cuja cpia foi publicada no Jama (The Journal of the American Medical Association), poucos me-ses aps. A definio de morte cerebral tinha a inteno de criar parmetros para a livre doao de rgos. No do-cumento, j estavam includas as necessidades de decla-rao de morte cerebral e a administrao dos rgos por equipes mdicas distintas4.

    No intuito de convergir os mltiplos critrios e normatizar um conceito definitivo de morte cerebral,

    aps debates extensos, reuniram-se os gestores que for-mavam a President Commission, que, em 1980, aprova-ram o UDDA (Uniform Determination of Death Act). Imediatamente, o UDDA foi apoiado pela American Medical Association e pela American Bar Association e, em 1981, passou a vigorar na maioria dos estados ame-ricanos. Subsequentemente, o Canad, por meio de reformas legislativas, publicou critrios nele baseados, vinculando-o a estatutos federais4.

    A associao norte-americana de neurologia organi-zou um comit para estabelecer e uniformizar os critrios de ME. Em 1995, esse comit publicou reviso de 200 artigos sobre ME, que possibilitaram a definio dos cri-trios utilizados atualmente nos EUA2.

    JapoSegundo Coelho, et al16, no Japo, cerca de 99% dos

    transplantes so intervivos. E tanto aspectos culturais e religiosos, como falta de confiana no sistema mdico japons de transplantes contribuem para a escassez de transplantes com rgos obtidos de doadores cadveres. Os japoneses possuem uma viso mais holista da morte, no incorporam tanto o dualismo entre mente e corpo e no aceitam como natural a violao do corpo do possvel doador17.

    Kind4 observa que a primeira definio de morte ce-rebral aconteceu em 1974, anunciada pela Japan Electro-encephaly Association, e no tinha correlao com o fim da vida. A expresso possua a finalidade de preparar os familiares para a morte iminente do parente. Em 1988, a Associao Mdica Japonesa aceitou a morte enceflica como a extino de uma vida humana4.

    O critrio japons tambm recomenda a obteno de um eletroencefalograma isoeltrico antes da realiza-o da prova de apneia7, sustentando, principalmente, o diagnstico nas evidncias em detrimento do julgamen-to clnico de morte17. Contudo, o Japo o nico pas do mundo onde a legislao tolera uma forma de plu-ralismo quanto determinao da morte humana. Com efeito, os pacientes em estado de morte enceflica no so considerados como mortos, a no ser que expressa-ram a vontade e somente se a famlia no se opuser1.

    Reino unidoO critrio usado para a confirmao de ME pelo Rei-

    no Unido constitui uma exceo em relao aos critrios

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    de outros pases, j que a perda das funes do tronco cerebral considerada suficiente, ao contrrio da maio-ria da comunidade internacional, em que a funo de todo o encfalo dever estar comprometida. Essa forma de diagnstico foi introduzida pelo Department of Health and Medical Royal Colleges, em 19761. Os testes realizados so clnicos, como a incapacidade de respirar espontanea-mente (teste de apneia) e a ausncia de conscincia.

    A principal crtica que o Brain-stemdeath recebe, como chamado o mtodo britnico, que nem sempre o tronco cerebral est completamente comprometido, e isso implicar que indivduos com percepes conscientes sejam considerados mortos, justamente por isso alguns indivduos sugeriram que potenciais doadores, nesses ca-sos, recebessem anestesia1. J os defensores desse mtodo afirmam que a perda da funo do tronco cerebral im-pede o funcionamento do restante do corpo, e os testes requisitados no Reino Unido excluem parcialmente esse risco, j que deve ser constatada clinicamente a perda de conscincia.

    espanhaA legislao espanhola sobre transplante de rgos

    data de 1979. No h, nessa primeira legislao, um cri-trio de morte, apenas afirma que a doao de rgos e de outras peas anatmicas de pessoas comatosas s pode ser realizada aps a constatao da morte, sem referncia aos critrios neurolgicos da morte1.

    Em 1980, ocorreu a publicao do decreto real 426/1980, de 22 de fevereiro, que aprofundou a lei 30/1979, de 27 de outubro, sobre doao e transplante de rgos, em que j havia meno para que os casos de doao e transplante se restringissem aos casos de morte enceflica. Para tanto, os critrios eram: 1. Ausncia de resposta cerebral, com perda total de conscincia; 2. Au-sncia de respirao espontnea; 3. Ausncia de reflexos ceflicos, com hipotonia muscular e midrase; 4. Eletro-encefalograma em plat.

    Essa lei e decreto excluram a morte cardiorrespira-tria do critrio de morte. O critrio cardiorrespiratrio s seria introduzido na legislao mais tardiamente. Em 1986, a Sociedade Espanhola de Neurofisiologia clnica definia a morte da seguinte maneira:

    Um sujeito em estado de morte cerebral aquele no qual se produz uma interrupo irreversvel de todas as funes dos hemisfrios cerebrais e do tronco en-

    ceflico, mas onde o funcionamento do sistema car-diovascular e respiratrio est mantido com ajuda de meios artificiais (...). A morte do encfalo equiva-lente morte do indivduo como um todo1.

    frana O primeiro texto legal francs a se pronunciar so-

    bre a declarao de morte data de 19471. um decreto severamente criticado, pois permite efetuar autpsias e extraes de rgos para fins cientficos ou teraputicos sem o consentimento da famlia. O texto no mencio-na nenhum critrio de determinao da morte, apenas afirma que dois mdicos assinem o certificado de bito colocando a hora e data. O texto seguinte que versa so-bre o tema a circular Jeannenay (nome do ministro da sade poca), que data de 24 de abril de1968. Nesse texto, podemos ler que o critrio implcito no decreto de 1947 era cardiorrespiratrio. Trata-se de um texto crucial para a introduo da morte cerebral na Frana, posto que critica o carter errneo do critrio cardiorrespiratrio e o complementa por um critrio neurolgico. um texto fundamental para a histria da morte cerebral, pois an-terior ao relatrio do Comit Ad-Hoc de Harvard, o qual geralmente considerado como o organismo que pela pri-meira vez introduziu a ideia de morte enceflica.

    Em 1976, sob o ministrio de Simone Veil, entrou em vigor a lei 77-1181, conhecida como Lei Caillavet1, que introduziu a modalidade de consentimento presumi-do para a doao de rgos. Um ano mais tarde, uma cir-cular definiu os procedimentos que permitiriam a recusa doao de rgos e que criou um registro de pessoas que se recusam a doar e que deve ser consultado pelas equipes mdicas. Os critrios permaneceram inalterados at que, em 1996, apareceu a chamada Lei de Biotica, que traz uma novidade importante: especifica os testes necessrios para o diagnstico de morte enceflica.

    cRtIca adOO dO cRItRIO de MORte enceflIca

    Com o fim de resolver os conflitos que acompanham o meio mdico, direcionar a conduta profissional e fomen-tar as relaes (no apenas a com seres humanos, mas com todos os seres vivos) surge a biotica. A palavra biotica foi usada em 1927, no peridico alemo denominado Kosmos,

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    por Fritz Jahr18. O termo ganhou notoriedade quando foi cunhado por V. R. Potter, que, em uma das ltimas defini-es, em 1988, define-a como a combinao da biologia com conhecimentos humansticos diversos constituindo uma cincia que estabelece um sistema de prioridades m-dicas e ambientais para a sobrevivncia aceitvel19. Outra definio de biotica, dada por Reich, um pouco antes, em 1978, diz que a biotica o estudo sistemtico da conduta humana na rea das cincias da vida e a ateno sade, enquanto que essa conduta examinada luz dos princ-pios e valores morais20.

    visto que a biotica vem a ser um instrumento norteador de aes mdicas, ditando princpios, valores e prioridades, alm de visar a uma melhor forma de agir em situaes de conflito. Tom L. Beauchamp e James F. Childress, na obra Principles of Biomedical Ethics21, ela-boraram uma abordagem principialista da biotica, que possui quatro princpios bsicos (sem hierarquia defini-da): Beneficncia, No Maleficncia, Justia e Autono-mia. Esses quatro princpios devem ser respeitados em todo momento, embora, como percebemos, em algumas situaes eles no so respeitados, e outros interesses so colocados em primeiro plano. Isso acarreta atendimentos desumanizados e acabam diminuindo a qualidade da as-sistncia prestada.

    Analisaremos, em primeiro momento, os critrios utilizados para o diagnstico de morte enceflica, se-gundo os quatro princpios bsicos da biotica, se-guindo com interesses e despreparo profissional e, por fim, faremos uma crtica maneira como realizado o diagnstico de ME.

    No maleficnciaHipocrtes dizia primum non nocere. Esse princ-

    pio, em poucas palavras, significa que, primeiramente, devemos no causar malefcio ao paciente. Devido ao protocolo utilizado para diagnosticar a morte encefli-ca ainda gerar desconfiana e causar preocupaes tanto aos mdicos quanto aos familiares, corremos o risco de acarretar prejuzo ao paciente que recebe um diagnsti-co precipitado; aos familiares que recebem o diagnstico obscuro e podem ficar em dvida sobre o real estado do paciente; e, at mesmo, ao mdico, que no saber se agiu corretamente, e se questionar sobre a possibilidade de fazer algo a mais.

    O estudo denominado American Collaborative Study on Coma and Apnea5 procurou avaliar a correlao de coma e apneia e concluiu que nenhuma manifestao ou conjunto de manifestaes neurolgicas pode ser invariavelmente correlacionada com um encfalo difu-samente destrudo. Em vista disso, estamos realmente sendo no maleficentes com nossos pacientes em casos de diagnstico de ME?

    BeneficnciaAt que ponto salvamos vidas e/ou prolongamos a

    morte? O que promover o bem ao nosso paciente? Ten-tar desesperadamente mant-lo em sobrevida, mecanica-mente vivo, o melhor a ser feito, ou estamos retirando o direito do paciente morte?

    O propsito do diagnstico da ME a doao de r-gos. Foi justamente a intensificao dos procedimentos de doao de rgos que fez percutir a necessidade da legitimao da definio morte cerebral17. Contudo, ser que os reais benefcios so para o paciente em coma, ou para os que esperam doaes? A resposta que os bene-fcios dos receptores de rgos se sobrepem aos dos do-adores, visto que o paciente, com a confirmao adequa-da de ME, no tem perspectiva de melhoras, sabendo-se que, em poucos dias, h grandes chances de uma parada cardiorrespiratria acontecer, comprometendo os outros rgos que estavam em funcionamento e que poderiam salvar outras vidas. Entretanto, se os critrios aceitos para ME so questionveis, o benefcio de um paciente (receptor) se sobrepe ao de outro (doador)? Alm disso, Gaetano Molinari, citado em Coimbra5, participante do American Collaborative Study, acrescenta que, em 503 casos de pacientes em coma profundo e apneia, ape-nas 36 foram identificados por meio da histria clnica como havendo ingerido drogas depressoras do sistema nervoso central. Uma investigao mais profunda, com anlise laboratorial, elevou esse nmero para 87. Sendo assim, estaramos beneficiando nossos pacientes com o tratamento correto?

    autonomiaO princpio da autonomia implica a liberdade do

    paciente em escolher seu tratamento. Sobre si e seu cor-po o paciente soberano. Porm, o paciente em coma fica incapaz de decidir. Nessas situaes, cabe famlia a deciso do que vem a ser feito com o paciente. Se a

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    deciso for doar ou no doar rgos, ao menos que o doador tenha deixado claro e registrado oficialmente sua vontade, caber famlia decidir. Devemos sempre res-peitar esse princpio, e no persuadir a famlia doao, mesmo que isso venha beneficiar os pacientes que esto na fila, esperando por transplantes. Entretanto, diaria-mente, estamos expostos a opinies que nos influenciam a tomar decises. Um exemplo recorrente o da mdia que acaba por difundir a ideia de que a doao de r-gos a ao correta em todos os casos. Como podemos analisar, nem sempre essa a melhor opo, porquan-to, para que hajam rgos para serem transplantados, anteriormente havia vidas que no puderam ser salvas e, entre essas, muitas de pacientes diagnosticados com ME. Se esse diagnstico for feito de forma incorreta, lesa-se um paciente irreversivelmente em benefcio de outro. Como dito anteriormente, em pacientes diagnos-ticados com ME, cabe famlia decidir sobre a doao de rgos, contudo a mdia pode influenciar essa delibe-rao, transformando a doao em um dogma, que deve sempre ser seguido. Assim, devemos nos perguntar at que ponto realmente existe a autonomia.

    JustiaO princpio da justia diz tanto sobre a igualdade dos

    pacientes, como igualdade na distribuio de benefcios. Ou seja, tratar iguais igualmente. Por exemplo, a distri-buio igualitria de servios tecnolgicos e humanos.

    O princpio da justia parece ficar distante do iderio. A forma de morrer e de definir a morte esto limitadas s possibilidades de cada poca, e a morte evidencia mudan-as em suas configuraes17. O diagnstico, por mais que, via de regra, devesse ser como manda o protocolo, no passvel de ser seguido em todos os pacientes, devido a deficincias e m distribuio de servios.

    InteressesInfelizmente, o diagnstico de ME pode ser facilitado

    por interesses, a exemplo do econmico e da captao de rgos para transplantes.

    Um paciente com graves leses enceflicas e que, na opinio do mdico responsvel, ou do gestor da institui-o, no ter condies de reagir e sobreviver, pode in-fluenciar os testes de confirmao da ME, j que os recur-sos, tanto humanos quanto financeiros que um paciente internado em uma unidade de terapia intensiva (UTI)

    demanda so considerveis, variando devido gravidade das leses.

    A falta de leitos de UTI, alm da m distribuio dos existentes, outro motivo de diagnsticos equi-vocados. No Brasil, junta-se a isso a judicializao da medicina, em que ordens judiciais obrigam a instalao de pacientes nas UTIs, mesmo no havendo leitos. Em virtude disso, pacientes com prognstico desfavorvel podem receber atendimento em detrimento de outros de melhor prognstico, criando um novo problema ti-co de quem merece ou no atendimento, o que infeliz-mente a realidade de nossos hospitais e no pode ser mascarada.

    Rodrguez1, ao afirmar que Os recursos necessrios para manuteno dessas vidas so colossais, e que a recu-perao desses pacientes impossvel. Ocorrendo ainda a ocupao de leitos necessrios para pacientes graves, porm, com prognstico melhor, demonstra que a es-colha de quem ocupa um leito est de acordo com seu prognstico. Ns j consideramos essa escolha como um dilema moral, no qual nenhuma escolha vem a ser total-mente satisfatria. Pois, como poderamos escolher qual paciente tem direito a um leito? Seramos todos capazes de desligar os aparelhos de um paciente sem progns-tico positivo, para darmos lugar a outro paciente com prognstico melhor? Ou, ento, aumentando o dilema, quais seriam nossas escolhas no caso de ser um paciente sem prognstico positivo, porm, com grandes chances de ser um potencial doador e salvar outras vidas, ainda daramos lugar para um paciente com prognstico me-lhor? Por quem ns optaramos? Por algum que tem maiores chances de vida, ou por algum que no tem chances, mas pode d-las a outras pessoas? Qual pacien-te merece nossa ateno e, sobretudo, por quais motivos ele a merece?

    A busca por doadores de rgos o ltimo interesse aqui discutido. Como citado anteriormente, isso pode antecipar o diagnstico. Outra situao j prevista pelo protocolo de confirmao de ME do CFM15 o conflito de interesses, no qual mdicos que compem equipes de transplantes no podem assinar o termo de confirmao de ME, mas isso pode ser burlado facilmente, principalmente pela falta de profissionais que muitos hospitais enfrentam, no qual um profissional realiza os testes e outro assina a confirmao.

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    Morte enceflica, uma certeza? O conceito de morte cerebral como critrio de morte

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    Profissionais despreparados O diagnstico de ME, segundo critrios do CFM,

    pode ser efetuado apenas por mdicos, baseados em exa-mes clnicos e complementares. O diagnstico de ME, geralmente, efetuado por intensivistas, neurologistas ou neurocirurgies, profissionais que tiverem que se aperfei-oar por mais alguns anos alm da graduao. Ser, toda-via, que todo esse tempo e aperfeioamento o suficiente para a correta anlise da situao do indivduo?

    Os resultados de uma pesquisa realizada em oito hospitais de Porto Alegre, com duzentos e quarenta e seis intensivistas22, apontam que no, j que 17% deles desconheciam o conceito de ME e 25% desconheciam a necessidade legal de exames complementares. No en-tanto, como podem esses profissionais que estudaram, especializaram-se e convivem com a situao constante-mente no saberem, ao menos, o conceito de ME? Como pessoas despreparadas para o diagnstico podem explicar esse quadro de morte para a famlia? Isso pode ser um dos motivos pelo qual, mesmo aps o diagnstico correto ser dado famlia, os familiares terem esperanas que o indivduo possa reagir, no aceitando a morte e, com isso, no permitindo a retirada dos rgos que poderiam ser doados, ou a desligada dos aparelhos antes que o paciente realmente venha a sucumbir.

    Quando o paciente encontra-se com ME e o diagns-tico de confirmao no ocorre por falta de profissionais capacitados, ou, recursos, quais so as consequncias? Pri-meiro, despende-se recursos humanos, materiais e finan-ceiros desnecessrios para manter o paciente no leito, au-menta a esperana e prolonga-se o sofrimento da famlia; segundo e menos importante, voltamos repetitiva situa-o em que a doao de rgos e tecidos torna-se invivel.

    A soluo para esses problemas? Aperfeioamento, ainda mais. Como cita Rodrguez1:

    Cabe ao mdico, primeiramente, a reflexo e o ama-durecimento dos seus prprios conceitos pessoais a respeito da morte, para um adequado posicionamen-to individual e posteriormente coletivo a respeito do assunto morte enceflica. tambm imprescindvel o estudo e a atualizao constantes dos conceitos e critrios relacionados com o seu diagnstico.

    Presentes de vidaA doao de rgos tratada como presente de vida,

    porm, no caso de morte enceflica, o paciente j no est

    mais vivo. O paciente considerado um cadver. Ento, como a vida pode ser doada a partir de um morto? Uma forma melhor de pensar sobre isso que a Morte Enceflica um presente para a vida17. uma simples alterao de ter-mos que pode ajudar na hora de uma conversa, uma expli-cao, com pessoas leigas que sofreriam em entender como uma pessoa que est morta pode dar um presente de vida.

    Em que pese sobre a questo a declarao do cirurgio Marcus Barnard, irmo de Christina Barnard e membro da equipe de transplante, que disse revista Newsweek, quando perguntado se haviam esperado a parada cardaca do doador para retirar o rgo: nossa obrigao encon-trava-se estabelecida para com o receptor, no para com a garota (doadora). Conclui o reprter: voc est morto quando seu mdico assim afirma...5.

    testes Ou exaMes

    teste de apneiaO teste de apneia consiste em um procedimento que

    submete o paciente a um perodo sem oxigenao para observar se aparecem movimentos respiratrios por 10 minutos ou at quando o PaCO

    2 atingir 55mmHg. O

    objetivo estimular os centros respiratrios bulbares atra-vs de aumento de PaCO

    2 a nveis iguais ou maiores que

    55 mmHg (o limiar de resposta ventilatria varivel, entre 45 e 72 mmHg)23 . O resultado positivo ap-neia absoluta se o valor final de PaCO

    2 for igual ou

    superior a 55 mmHg, suficiente para estimular os centros respiratrios. Afirma-se que esses nveis especficos repre-sentariam um estmulo capaz de fazer com que o centro respiratrio volte a movimentar o diafragma, ainda que transitria, parcial, ou, fragmentariamente5. O resultado negativo se houver movimento respiratrio durante e no forem atingidos os nveis de PaCO

    224.

    Somente alguns pases possuem legislao especfica sobre os critrios a serem seguidos para o diagnstico de morte enceflica e poucos possuem normas quanto realizao do teste de apneia. No Brasil, a Resoluo n. 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina (CFM)15 determina essas normas (citadas em tpico anterior). Entretanto, o que seria um fator facilitador para o diag-nstico de ME acabou se tornando um tpico polmico.

    Andrade7 considera o teste de apneia fundamental para o diagnstico de ME: O teste de apneia um passo

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    Morte enceflica, uma certeza? O conceito de morte cerebral como critrio de morte

    Revista - Centro Universitrio So Camilo - 2013;7(3):271-281

    mandatrio na determinao de morte enceflica, fazendo parte do exame dos reflexos de tronco cerebral e que no pode ser dissociado do exame neurolgico no diagnstico de morte enceflica, a despeito dos questionamentos acer-ca do grau de segurana para a sua realizao23.

    A Assembleia Nacional Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, em 20 de maio de 2003, realizou o pri-meiro debate aberto ao pblico no Brasil sobre morte en-ceflica e transplantes de rgos com a presena do Con-selho Federal de Medicina (CFM), representado pelo Dr. Solimar Pereira da Silva. Estavam presentes tambm os representantes do Poder Judicirio, do Ministrio Pblico do Estado, do Conselho Regional de Medicina do estado do Rio Grande do Sul (CREMERS) e do Executivo.

    Nesse debate, o representante do CFM afirmou tex-tualmente que o teste da apneia indispensvel para de-clarar a morte enceflica e um procedimento dogmti-co. Se dogmtico, fica evidente que est afastado de seu uso qualquer base cientfica vlida25.

    Tambm presente no evento, o doutor em Neurolo-gia e professor da Universidade Federal Paulista (Unifesp) Ccero Galli Coimbra, citado em Coimbra25, explicou que a realizao do teste da apneia pode levar pacientes que se encontram em um nvel de coma reversvel, situados na chamada zona de penumbra isqumica, a um quadro de impossibilidade de recuperao. O advogado Celso Galli Coimbra, especialista na rea de sade, e defensor ferrenho da extino deste tipo de teste, afirma que sua utilizao provoca a morte do paciente, e no a sua comprovao25.

    O teste da apneia pode causar efeitos nocivos ao pa-ciente, tais como: hipxia, hipercapnia, acidose respirat-ria abrupta, hipotenso severa e parada cardaca, podendo ser fatal. Esses aspectos podem causar problemas quando da realizao do teste de apneia. No h dvidas que no-vas rotinas possam ser incorporadas ao teste. O exame neurolgico com teste de apneia e os exames complemen-tares para determinao de morte enceflica podem ser feitos somente aps condies clnicas favorveis dos pa-cientes potenciais doadores de rgos7.

    Na teoria, o teste da apneia causa o aumento da mor-bimortalidade em pacientes sem condies graves7.

    hipotermiaA induo moderada da hipotermia, em torno de

    33C, o melhor fator de neuroproteo existente, evitando maiores danos ao sistema nervoso central e a

    progresso do edema. A hipotermia moderada, induzi-da em pacientes portadores de edema cerebral grave e hipertenso intracraniana, evidencia-se como o nico fator capaz de promover a imediata normalizao da presso de perfuso cerebral e constitui-se, ainda hoje, na nica medida teraputica capaz de fazer involuir o edema5.

    A regulao da temperatura perdida na ME24. Con-forme o protocolo, a hipotermia deve ser descartada para a realizao do diagnstico de ME, sendo necessrio elevar a temperatura do paciente at pelo menos 35C, retirando do paciente a principal medida teraputica de proteo neuronal.

    O contrrio tambm verdadeiro. Pacientes que no esto hipotrmicos espontaneamente, teoricamente no esto em ME, j que o encfalo o centro termorregula-dor do corpo, ou seja, uma parte do encfalo ainda fun-ciona.

    circulao cerebralA parada de circulao cerebral angiografia cerebral

    (ACG) um dos mais fortes critrios para a sustentabili-dade da ME como critrio de morte. No entanto, diver-sos estudos criticam e questionam se esse realmente um critrio fidedigno. Um desses estudos o de Schader, et al5, que versa sobre a manuteno da funo hormonal hipotalmica e hipofisria por vrias horas em pacientes com diagnstico clnico de ME e parada de circulao ce-rebral AGC. A manuteno dessa funo hipotalmica indicaria que: 1. O limite de resoluo da AGC insufi-ciente para detectar nveis circulatrios ainda suficientes para a sustentao da funo especializada hipofisria; 2. Insuficiente tambm para a deteco de nveis de fluxo sanguneo enceflico capazes de prevenir a despolarizao terminal de todas as clulas enceflicas.

    A concluso dos autores5 : consequentemente, as-sumimos que uma circulao suficiente para impedir a necrose, mas insuficiente para ser demonstrada atravs da AGC (angiografia cerebral), encontra-se mantida.

    cOnclusO

    Por mais que se prezem valores e tcnicas no emprego do diagnstico de morte enceflica, ainda falta muito para alcanarmos um protocolo capaz de exatido incontestvel. Ficam claros os interesses por

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    Morte enceflica, uma certeza? O conceito de morte cerebral como critrio de morte

    Revista - Centro Universitrio So Camilo - 2013;7(3):271-281

    trs do diagnstico de morte enceflica e o desprepa-ro por parte de profissionais. O diagnstico de mor-te enceflica est totalmente atrelado s doaes de rgos, ficando, ela mesma, at em segundo plano. Testes incorporados ao protocolo, mesmo que ge-rando controversas quanto ao resultado, continuam sendo adotados, no sabendo se ao certo beneficiam ou prejudicam os pacientes. A confuso terica entre prognstico (o paciente est morrendo) e diagnstico (o paciente est morto) dificulta ainda mais o j com-plexo campo da ME.

    Nesse artigo, objetivamos instigar o leitor a aprofun-dar seu conhecimento sobre ME e os critrios utilizados para o seu diagnstico. Diante da importncia do assunto para a vida de pacientes e para o conforto de famlias que possuem entes em tal situao, obrigao dos profissio-nais de sade se informar e se valer de meios legais / atuais para um diagnstico correto. Entretanto, os critrios que norteiam a ME so variveis, tanto para diferentes pa-ses, quanto para a prpria cincia, que ainda no chegou a uma concluso sobre o assunto, fazendo da constante atualizao uma ferramenta fundamental para o mdico.

    RefeRncIas

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    Recebido em: 10 de junho de 2013Verso atualizada em: 30 de julho de 2013

    Aprovado em: 14 de agosto de 2013