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Movimentos sociais no campo do Ceará

(1950-1990)

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Presidente da RepúblicaDilma Vana Rousseff

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Universidade Federal do Ceará - UFC

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Prof. Antonio Cláudio Lima Guimarães

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Fortaleza2015

Movimentos sociais no campo do Ceará

(1950-1990)

Bernadete de L. Ramos Beserra

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Movimentos sociais no campo do Ceará (1950-1990)Copyright © 2015 by Bernadete de L. Ramos Beserra

Todos os direitos reservados

Impresso no BrasIl / prInted In BrazIl

Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC)Av. da Universidade, 2932, fundos – Benfica – Fortaleza – Ceará

Coordenação editorialIvanaldo Maciel de Lima

Revisão de textoAntídio Oliveira

Normalização bibliográficaLuciane Silva das Selvas

Programação visual Sandro Vasconcellos / Thiago Nogueira

DiagramaçãoSandro Vasconcellos

CapaHeron Cruz

Dados Internacionais de Catalogação na PublicaçãoBibliotecária Luciane Silva das Selvas CRB 3/1022

B554m Beserra, Bernadete de L. RamosMovimentos sociais no campo do Ceará (1950-1990) / Bernadete de L.

Ramos Beserra - Fortaleza: Imprensa Universitária, 2015. 148 p. ; 21 cm. (Estudos da Pós-Graduação).

ISBN: 978-85-7485-235-5

1. Movimentos sociais - Ceará. 2.Sindicalismo - Ceará. 3. Reforma agrária - Ceará. I. Beserra, Bernadete de L. Ramos. II. Título.

CDD 303.4840981

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Aos trabalhadores rurais do Ceará que ofereceram o seu tempo e em alguns casos mesmo a sua vida à luta contra as injustiças sociais.

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APRESENTAÇÃO

Há vários jeitos de contar uma história e várias formas de interpretá-la. Mas uma coisa é certa: nem sempre o que parece real é real. Daí a importância dos sujeitos dessas histórias e de seus tempos e memórias. Este livro nos traz esta revelação. Alguns de nós, que fa-zemos o Esplar, vivenciamos ou fomos escreventes das histórias da-queles tempos, cujas alegrias diante das inúmeras microvitórias de famí-lias de trabalhadores e trabalhadoras, são inesquecíveis e impagáveis.

Nos idos da década de 1970, sob o embalo do chamado “milagre brasileiro”, falava-se em “modernização” do campo; depois, em “de-senvolvimento”, “progresso”. Na verdade, seus efeitos, no que se refere a impactos na vida de trabalhadores e trabalhadoras rurais, remontam a muitas décadas. Todos os processos de sofisticação do capital no campo vieram sempre acompanhados, de modo mascarado ou não, de uma po-lítica de degradação da vida.

Os municípios, palcos dessa degradação, à época do estudo que este livro apresenta, em especial Quixadá e Canindé, ícones da resistência ao latifúndio, convivem nos dias atuais, com uma profunda contradição, que são os novos indicadores de modernidade: universidades particulares e Institutos de Tecnologia em meio a carros-pipa e paus de arara.

Diante do cenário atual, as histórias contadas aqui guardam uma lembrança de resistência ativa capaz de fazer “corar” grande parte dos atuais movimentos sociais e das assessorias que atuam no campo. Daí a sua importância. Daí a necessidade de relermos os resultados de uma pesquisa desenvolvida há quase três décadas: para refletir sobre que fatos e atitudes contribuíram para estarmos onde estamos. O que se encaixa à realidade atual, o que não se encaixa. É possível que assim encontremos pistas sobre onde vamos achar as sementes que outrora germinaram tantos frutos... e agora hibernam.

Se é verdade o que diz o músico Pablo Milanés, que “[...] as ideias de um revolucionário não se desviam pelos erros que os diri-

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gentes cometeram”, ainda é possível haver “revolução” no campo. Ou seja, os ideais defendidos por um setor do movimento sindical de traba-lhadoras e trabalhadores rurais junto com seus aliados e aliadas, ainda subsistem. Portanto, ainda é possível defender a “ideia original” de uma verdadeira Reforma Agrária no campo.

Magnólia Said Fortaleza, 24 de fevereiro de 2015

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PREFÁCIO

É com satisfação que escrevo o prefácio deste livro cuja publi-cação era há muito aguardada por pessoas que tiveram a oportunidade de ler a sua primeira versão, como relatório de pesquisa, escrito pela autora em junho de 1990 e recentemente revisado.

O livro é importante para os estudiosos da questão do campo e os envolvidos ou interessados nos movimentos sociais. Baseado em pes-quisa teórica e empírica realizada entre 1989 e 1990, apresenta uma his-tória dos movimentos sociais no campo no Ceará entre 1950 e 1990. Com qualidade que será reconhecida pelos leitores, preenche uma lacuna nos estudos sobre o tema no Ceará. A revisão recentemente realizada com o objetivo de publicação preservou as análises e referências bibliográficas originais. O estudo, apesar de apresentado e utilizado por mim e por mes-trandos e doutorandos como obra de referência sobre a temática, perma-nece praticamente inédito dentro e fora do meio acadêmico.

A pesquisa reconstitui a história dos movimentos sociais no estado no período de 1960 a 1990, em uma análise que contribui para conhe-cermos em suas origens processos hoje mais consolidados que repre-sentam formas de resistência à ampla dominação do capital. A autora lida com o conceito de movimento social de forma rigorosa e ao mesmo tempo desenvolta. Movimento social é um conceito abstrato, que só en-contra sentido quando examinado na dimensão empírica ou da experi-ência concreta. É isso que Bernadete faz. Ela empreende esse esforço analítico, o que nos permite afirmar, então, que a investigação de que re-sulta este livro se destaca pelo método – não somente a metodologia dele decorrente – que se orienta no sentido de conhecer movimentando teorias e se debruçando sobre situações específicas, concretizando a análise e abstraindo teoricamente, segundo a dinâmica proposta pela dialética.

Um dos efeitos do emprego desse método na pesquisa aqui rela-tada é, por exemplo, movimentar a concepção de classes sociais, não como mera formalidade epistemológica, mas como efetivo exercício de compreensão, pois a autora persegue questões e as responde com base

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em uma metodologia que leva em consideração dados e estudos biblio-gráficos, observação, entrevistas; responde perguntas, tais como: quem é o camponês cearense, como vive e trabalha, quais aspirações nutre? De posse desses elementos, a autora examina as ações políticas, contex-tualizando-as e identificando interesses, possibilidades, limites.

Esse exercício parece simples, mas não é. Não se trata de mera metodologia, pois, para alcançar a produção do conhecimento sobre a realidade em tela sem repetir velhos chavões, exige-se método, espírito aberto e capacidade intelectual, atributos que a formação sociológica e antropológica imprimiram ao ofício da pesquisadora. Assim, este livro permite, por exemplo, entender que ideias apressadas de militantes sobre o atraso político do camponês cearense, nos anos 1950, em com-paração ao pernambucano ou paraibano, não se sustentam, mas são pre-conceitos, desfeitos pela análise de elementos de ordem econômica (ou de relações de produção e trabalho), social, política, religiosa.

O livro tem o claro objetivo de “analisar a reação dos camponeses do estado do Ceará ao processo de modernização da agricultura ocorrido entre as décadas de 1960 e 1990”. Empreende uma análise histórica do processo de modernização iniciado com a desestruturação das relações de trabalho tradicionais, como a morada e a sujeição e identifica as formas de resistência individuais e coletivas criadas pelos trabalhadores rurais no Ceará. Assim, esses trabalhadores aparecem no texto de Bernadete como personagens de cenas importantes da vida no campo e da política; emergem como camponeses, conceito político já utilizado por outros es-tudiosos, como José de Sousa Martins, para congregar numa só categoria todos os trabalhadores que buscam dignidade e justiça no campo.

A reconstituição histórica passa ainda pelas diferenças existentes entre as regiões do estado do Ceará – sertão, litoral e serra – com rela-ções de propriedade, de trabalho e de organização. O sindicato, as asso-ciações, as manifestações, ocupações e conflitos são analisados com olhar atento, diligente, que problematiza e nos faz compreender quais foram e são as atribuições e limites de cada um. Este livro é recebido com muita alegria, pois possibilita aos estudiosos do campo e aos mo-vimentos sociais a compreensão de todo esse processo.

Sônia Pereira Fortaleza, 14 de julho de 2014

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AGRADECIMENTOS

Devo a publicação deste estudo ao Programa de Auxílio à Publicação de Livros, da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará e ao incentivo da professora Sônia Pereira. Utilizando-o como referência para investigações que desen-volveu sobre o campo cearense nas duas últimas décadas, ela várias vezes insistiu que o texto merecia aventurar-se por público mais amplo do que aquele diretamente ligado ao desenvolvimento da pesquisa que lhe serviu de matriz. Outros leitores do texto original, a quem me refe-rirei adiante, também incentivaram a sua publicação e ofereceram su-gestões que, em alguns casos, não pude acatar, conforme explicarei.

Agradeço ao ESPLAR, Centro de Pesquisa e Assessoria, para o qual o trabalho foi escrito, em junho de 1990, como parte de relatório mais amplo, concluído em 1991 (PAULA JOCA, 1991). Muitas são as pessoas a quem agradecer na instituição, mas espero contemplar a todos agradecendo a Pedro Jorge F. Lima, Magnólia Said, Marcus Vinicius de Oliveira, Elzira Saraiva e Malvinier Macedo. Sou grata também a Tereza Helena de Paula Joca, que coordenou a pesquisa e ofereceu importantes sugestões para aprimorar o trabalho, as quais, infelizmente, não pude acatar porque, logo após a escrita do relatório, submeti-me a concurso de professora e esta atividade, sobretudo nos seus primeiros anos, não deixa brecha para mais nada. Sônia Pereira, Alexandre Menezes, Paulo Victor e Isaurora Martins, também participantes da pesquisa, tornaram o tra-balho de coleta de dados mais leve e mais divertido.

César Barreira, Rejane Accioly de Carvalho, Mônica Dias Martins e Maria Nobre Damasceno, então estudiosos dos movimentos sociais no campo no Ceará, leram o texto original e ofereceram suges-tões. A todos a minha gratidão.

Aos líderes sindicais e outros militantes e ativistas ligados ao movimento social rural, agradeço na pessoa de Antônio Chiquinho.

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Sem a coragem e a disposição de vocês não haveria resistência campo-nesa a se estudar, e a injustiça presente nas relações sociais rurais per-maneceria naturalizada. É, portanto, a luta de vocês que a desmascara e propõe outras relações e outros patamares de justiça. Agradeço por tor-narem possível a luta e pela generosidade em compartilhar suas histó-rias conosco. As histórias de vocês são tão ricas que o ideal seria um livro para cada uma delas.

Não poderia deixar de agradecer a Sérgio Brito, então compa-nheiro, e Lucas e Raquel, meus filhos, que generosamente me ofere-ciam o seu amor apesar dos meus limites de retribuição. Caio, meu filho mais novo, nasceu durante a pesquisa, em 4 de novembro de 1989: me “acompanhou” na pesquisa de campo e durante a escrita do relatório. Se não fosse pelo amor de vocês, eu sequer teria chegado a Fortaleza...!

Dos colaboradores do presente, agradeço igualmente a Diego Vieira e Cristina Oliveira, que também leram o trabalho e me ajudaram com a busca de referências, e a Antídio Oliveira, pela revisão cuidadosa.

***

Por que publicar um trabalho escrito há 25 anos? Porque, como explica Sônia Pereira, no prefácio, ele sintetiza um importante período das lutas no campo do Ceará. Mas não apenas isso: perseguia-me também a dívida com os entrevistados e todas as outras pessoas envol-vidas no trabalho, de modo que eu sempre soube que, quando tivesse um tempinho, voltaria a ele para fazer as complementações sugeridas por Tereza Helena e outros leitores e publicá-lo sob a forma de livro. Dez anos depois, em 2000, após o final do doutorado, dediquei-me al-gumas semanas à revisão do texto e complementação de dados. Deparei-me, porém, com um problema bastante grave: os dados cole-tados diretamente na pesquisa haviam sido devorados pelos cupins. Entre os dados perdidos, lamentei particularmente as fichas preenchidas com informações sobre os conflitos no campo ainda tão frequentes na-queles anos.

Enquanto pensava em estratégias para coletar os dados que enri-queceriam o trabalho, fui obrigada a dar atenção a outras demandas:

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havia sido convidada pela editora LFB Scholarly Publishing (Nova Iorque) para publicar minha tese de doutorado. Com a preparação do livro e as suas consequências, fiquei envolvida até 2007.

Concluído o pós-doutorado, apesar de já envolvida com pes-quisa em outras áreas (migrações internacionais e educação superior), novamente voltei a pensar no projeto de publicação do que agora é este livro. Tentei, com bolsistas vinculados a outras pesquisas, coletar os dados que julgava importantes e necessários na Comissão Pastoral da Terra, Fetraece e outras organizações que mantêm importantes ar-quivos dessa história, mas logo desistimos da ideia, tamanha era a tarefa. Decidi, afinal, publicar o texto sem os dados que permitiriam construir quadros e estatísticas sobre a incidência dos conflitos em função das regiões, mediadores e relações de trabalho e propriedade. Assim, portanto, o estudo se apresenta com várias lacunas. A boa coisa disto é que deixa o convite a outras explorações e ao surgimento de novos exploradores.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – A modernização da agricultura e os movimentos sociais no campo do Ceará ........................................... 17

ORIGENS DA ORGANIZAÇÃO CAMPONESA NO CEARÁ ...... 25O PCB e as origens do movimento camponês no Ceará ................... 26Os motivos da luta dos posseiros ...................................................... 32A fundação da ULTAB: novo impulso ao movimento ...................... 37A Igreja entra em cena ...................................................................... 40

MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ: 1965-1990 ..... 49Anos 1970: a corrida para a sindicalização rural .............................. 50A dinâmica da sindicalização rural ................................................... 57A Igreja: a experiência de Aratuba .................................................... 61A Igreja: a experiência de Crateús .................................................... 65Os conflitos de terra e a reforma agrária ........................................... 68O assistencialismo ............................................................................. 74Modernização: financiamento de uma estrutura agrária caduca ....... 79A substituição do algodão arbóreo pelo herbáceo: extinção de um “bem de raiz” ......................................................................... 82A luta dos posseiros .......................................................................... 85

MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO CEARENSE HOJE(DÉCADA DE 1980) ........................................................................ 95Expressões de resistência dos trabalhadores rurais no Ceará ........... 96Os mediadores: o diferencial .......................................................... 100Sindicatos e associações de produtores: expressões de uma mesma luta? .................................................................................... 118Expressões da conquista do movimento camponês: os assentamentos da reforma agrária .............................................. 132

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CONCLUSÃO – O Movimento dos Sem Terra no Ceará e as novas perspectivas para o movimento camponês ........................... 137

BIBLIOGRAFIA ............................................................................. 141

A AUTORA ..................................................................................... 147

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INTRODUÇÃO

A modernização da agricultura e os movimentos sociais no campo do Ceará

Este estudo integra pesquisa mais ampla, intitulada “Quadro Recente da Agricultura e Trajetória dos Movimentos Sociais no Campo do Ceará – 1965-1985”, realizada pelo Esplar, Centro de Pesquisa e Assessoria, entre 1988 e 1990, sob a coordenação de Tereza Helena de Paula Joca e financiada com recursos da Fundação Ford. Este livro foi originalmente apresentado como relatório (BESERRA, 1990a) da refe-rida pesquisa (PAULA JOCA, 1991). O seu objetivo é analisar a reação dos camponeses do estado do Ceará ao processo de modernização da agricultura ocorrido entre as décadas de 1950 e 1980.

Apesar da exiguidade de registros, a história dos camponeses do Nordeste oferece exemplos significativos de que a exploração e a vio-lência sempre tiveram limites. Pelo fato de a resistência se expressar, em geral, em revoltas isoladas e casuais, acabava ratificando, mais do que questionando, as relações tradicionais de poder e dominação.1 De todo modo, a pretensa e inabalável passividade dos camponeses frente ao seu destino de submissão e miséria situa-se mais no nível dos estere-ótipos produzidos pelas ideologias dominantes do que nas respostas concretas daquelas camadas às agressões cotidianas da exploração.2 Todavia, é imprescindível não esquecer que o sistema de exploração

1 Ver Novaes (1987). 2 James Scott mostra que, ao contrário do que propõe a teoria leninista e outras teorias

revolucionárias que só enxergam a resistência quando ela faz alarde – seja por meio de grandes manifestações públicas ou revoluções – a resistência camponesa deve ser enxergada em suas variadas expressões efetivas no cotidiano. Ver também Moore (1983).

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secularmente imposto aos camponeses nordestinos tinha na força seu maior sustentáculo. Daí, provavelmente, as raízes da aquiescência: con-sentir para garantir a preservação da classe, que, no caso, se confunde com a própria preservação da vida? Digamos que a questão seja mais ou menos esta, principalmente porque, quando forças externas impõem mudanças que redundam massivamente em perda da condição de classe, os camponeses resistem. E, ao contrário do cenário anterior, não re-sistem mais isolados e casualmente, sugerindo que a sua reação seja antes de tudo a exceção que confirma a regra. Assim, a partir da década de 1950, passam a resistir mais organizadamente e de diversas formas. É nosso propósito identificar e explicar as expressões de resistência dos camponeses do Ceará entre as décadas de 1950 e 1990 à luz das trans-formações ocorridas na agricultura do estado.

A desestruturação das relações tradicionais de trabalho, estabele-cidas a partir da morada e da sujeição, é uma das primeiras consequên-cias da expansão capitalista no período considerado. Três fatores funda-mentalmente se conjugaram para precipitar essas mudanças no estado do Ceará: a valorização das terras, as repercussões do movimento na-cional dos trabalhadores rurais e as políticas estatais.

Precavidos e apreensivos com o crescimento do movimento cam-ponês no país, que, com a desapropriação do Engenho Galiléia, em Pernambuco, demonstra sinais evidentes de seu potencial, os grandes proprietários empreendem todo um processo de expulsão que não se restringe apenas aos moradores-parceiros, atinge também posseiros e pequenos proprietários, embora esses últimos sejam mais alvo da co-biça dos novos aventureiros do capital, os grileiros donos de imobiliá-rias e agroindústrias que, sob a tutela do Estado, também se interessam em usufruir da valorização das terras.

Mas dessas querelas não nascem apenas os habitantes das perife-rias nas grandes e pequenas cidades receptoras desse exército de re-serva. Em muitos casos, o tiro sai pela culatra, e os trabalhadores rurais se tornam os legítimos herdeiros da terra.

Algumas questões já se impõem: por que uns resistem e outros não? Que circunstâncias favorecem o sucesso da resistência e permitem a reconquista da terra sob novas relações de trabalho e de propriedade?

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Estamos diante de um conjunto de questões cujas respostas demandam todo um trabalho no sentido de reconstituir o processo de organização de um movimento cuja trajetória nem sempre é translú-cida. Um movimento cujas raízes perderam-se em séculos e séculos de violência, silêncio e esquecimento. Ou como bem diz Touraine (1977, p. 356):

Não é fácil para a História e para o sociólogo restituir a palavra dos que nunca a tiveram, dos que não gravaram inscrições, lembranças e manuscritos, daqueles cujos arautos foram enfor-cados, crucificados ou consumidos por privações sem que ne-nhum memorialista o relate. Daí o interesse dos mergulhos, hoje possíveis, na história dos colonizados, de suas recusas, de suas revoltas, de seus sonhos.

Se, por todas essas razões, as informações que temos não nos permitem delinear os contornos do passado mais longínquo, contenta-mo-nos com a possibilidade de resgatar o passado próximo e, embora tenhamos a clareza de que não podemos imputar-lhe todas as causas do tempo presente, podemos sem dúvida esclarecer algumas delas, o que é já de grande importância para a história dos movimentos sociais no campo do Ceará.

O que nos importa então trazer à tona neste livro?Em primeiro lugar, é de fundamental importância reduzirmos os

termos mais abrangentes como trabalhadores rurais e/ou camponeses às suas categorias mais concretas. Tal tarefa exige tanto a aproximação da realidade (o empírico), como das explicações existentes sobre ela (o teórico). Por exemplo, a relação com a terra por meio da sua proprie-dade jurídica produz os pequenos proprietários, que, por sua vez, não compõem um conjunto homogêneo. Dentro dessa categoria podemos encontrar uma diversidade extraordinária de possibilidades:

a) os que possuem mais ou menos terra;b) os que vivem em condições melhores ou piores;c) os que se utilizam ou não de empréstimos bancários;d) os que moram mais próximos ou mais distantes dos centros

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urbanos e complementam ou não as atividades agrícolas com atividades urbanas;

e) os cujos filhos migram para os grandes centros do país e da ajuda desses filhos depende a continuidade da sua condição de camponês pequeno proprietário;

f) os cujas terras são tão exíguas que os obrigam ao assalaria-mento em propriedades próximas e/ou ao arrendamento de mais parcelas de terra necessárias à subsistência de toda a fa-mília. etc.3

Se, internamente à categoria dos pequenos proprietários, temos esse subconjunto de categorias, também teremos, nas demais categorias de trabalhadores rurais, diferenciações internas que se tornam impor-tantes quando se trata de compreender as suas várias formas de organi-zação política (WOLF, 1984 p.11).

Há, portanto, uma grande diversidade de situações que, se não considerada, dificultará a compreensão das organizações e os motivos por que uns camponeses aderem às lutas e outros não, ou ainda por que uns aderem a determinadas lutas e não a outras, e passamos a nos con-tentar com explicações limitadas aos rótulos fáceis das análises polí-ticas ligeiras. Ou seja, o conhecimento mais profundo de cada situação previne a utilização de classificações apressadas, segundo as quais certos camponeses são “atrasados”, outros são “pelegos” e outros ainda são “progressistas” etc. Saber quem é quem evita atitudes preconcei-tuosas em relação a algumas categorias em favor de outras sem se dar ao trabalho de ouvi-las e conhecê-las; sem se dar ao trabalho de ampliar a compreensão e estabelecer outros patamares para a luta, o que, muitas vezes, mais revela as limitações do que o conhecimento dos que se pre-tendem vanguarda dos movimentos populares.

Tentaremos, pois, sempre que possível, esclarecer a que catego-rias de camponeses estamos nos referindo ao longo do trabalho e, quando necessário, delimitarmos as diferenciações internas a cada uma,

3 Utilizamo-nos neste livro dos mesmos critérios utilizados por Wolf (1984) no seu estudo sobre as sublevações camponesas no século XX.

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o que, provavelmente, nos permitirá compreender comportamentos e perspectivas diversas dentro do campesinato, ou mais precisamente, dentro da organização do movimento camponês no Ceará a partir das suas origens nos anos 1950.

Em segundo lugar, e na perspectiva de compreender as diferen-ciações existentes, observaremos o camponês também a partir das suas circunstâncias locais e regionais. Em função de diferenças de clima, solo e da própria história da agricultura em cada região, o pequeno pro-prietário da Serra de Ibiapaba, por exemplo, cultiva produtos e vivencia problemas e relações distintas das do pequeno proprietário do Sertão Central. Ou ainda: os posseiros das regiões litorâneas se defrontavam e resistiam, ou não, à especulação imobiliária enquanto que os da serra defrontam-se com proprietários de agroindústrias, e assim por diante.

Desse modo, a agricultura e a sua história na serra diferem da agricultura e a sua história no sertão. Essa diversidade de circunstâncias ecológicas, sociais e culturais produzem perspectivas históricas va-riadas. A história da expansão do capitalismo no campo brasileiro é, portanto, uma história de tempos e ritmos diversos e, mesmo quando reduzimos o escopo de nossa análise e, em vez de falarmos em ex-pansão no Brasil, falamos em expansão no Ceará, não teremos ainda uma composição à la Bolero, de Ravel, com apenas uma mudança de intensidade entre um movimento e outro. Assim, não podemos afirmar que a expansão do capitalismo no litoral cearense foi ou está sendo mais ou menos lenta do que a sua expansão na Serra de Ibiapaba, por exemplo. São experiências distintas que conjugam fatores diferen-ciados. Por isso, mesmo que a intenção seja sempre a subordinação do trabalho ao capital, essa subordinação nem sempre obedece a um plano prévio, um padrão. Afinal, os lugares e paisagens não são virgens e, dado esse fato, o que ocorre no mais das vezes é a transformação de estruturas e sistemas de poder e dominação, o que nem sempre produz os mesmos resultados.

Em terceiro lugar, estamos preocupados em observar a atuação dos vários grupos mediadores situados entre o camponês e a sociedade mais ampla da qual ele faz parte. Aqui, é imprescindível compreender as influências desses grupos nos processos de organização e lutas cam-

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ponesas. Sempre que possível, por exemplo, é preciso esclarecer quem teria as credenciais para se aproximar e/ou falar em nome dos campo-neses, já que, em geral, como outros grupos, eles guardam certa descon-fiança dos vindos de fora. O estudo do movimento camponês a partir desses questionamentos provavelmente nos esclarecerá, por exemplo, o fenômeno da expansão do movimento a partir dos fins dos anos 1960, com a entrada da Igreja na disputa, contra o PCB, pela sua represen-tação. Oferecerá, entre outras coisas, elementos que nos permitirão com-preender que a legitimidade que a Igreja confere à luta deve-se menos à comunhão das religiosidades clássica e popular e mais ao reconheci-mento e credibilidade de uma instituição secular.

Finalmente, é de fundamental importância compreender por que lutam e se organizam os camponeses. Isto é, quando instigados pelas transformações, pressuposto da expansão capitalista no campo, lutam eles pelo reestabelecimento das relações tradicionais de trabalho? Ou, longe de se contentarem com as condições tradicionais, sua luta é contra as condições presentes sem que isto signifique um desejo de volta ao passado? Desse modo, para que futuro suas lutas os projetam? Em suma, é preciso reconhecer ou observar que

[...] Tanto a persistência da tradição necessita de explicação quanto a mudança. É possível que as pessoas se apeguem aos há-bitos ancestrais por inércia; é mais provável, porém, que existam boas e suficientes razões por trás de tal apego tanto quanto boas e suficientes razões para a mudança. As pessoas podem ou não estar conscientes dessas razões; será então tarefa do antropólogo indagar quais poderão ser as causas da persistência ou da mu-dança (WOLF, 1984, p.14).

Essas foram, portanto, as explicações que nos orientaram no de-senvolvimento deste estudo cuja primeira parte é uma panorâmica das origens da organização camponesa no Ceará. Em seguida, e de forma mais aprofundada, estudaremos as características e principais expres-sões no período 1965-1985. Finalmente, na última parte, estudaremos as expressões e perspectivas do movimento nos inícios da década de 1990, com a chegada do movimento dos sem-terra ao estado do Ceará.

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A primeira parte foi desenvolvida a partir de pesquisa bibliográfica, e as duas últimas a partir de informações obtidas nos arquivos e relatórios de pesquisa da CPT (Comissão Pastoral da Terra), Cetra (Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador) e Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e de dados coletados em pesquisa de campo realizada entre maio e agosto de 1989 em três mi-crorregiões fisiográficas distintas do Estado: Serra de Ibiabapa, Sertões de Quixeramobim e Litoral de Pacajus.

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ORIGENS DA ORGANIZAÇÃO CAMPONESA NO CEARÁ

Em 1900, abandonam o Ceará 40.000 vítimas da seca. Ainda em 1915, de cerca de 40 mil emigrantes que saem pelo porto de Fortaleza, enquanto 8.500 tomam o destino do Sul, 30 mil se dirigem pelo caminho habitual, o do Norte... (FACÓ apud ÂNGELO, 1976, p. 18).

Não apenas vítimas da seca, sobretudo das péssimas condi-ções de vida e trabalho apenas agravadas pelo flagelo periódico da seca. Vítimas, pois, de toda sorte de iniquidade que os transforma, no limite das suas forças e da sua dignidade, em cangaceiros ou fanáticos quando não em migrantes à busca de um lugar em que possam se radicar neste enorme país que lhes parece, ao contrário, tão exíguo e hostil.

Flagelados, itinerantes, cangaceiros e fanáticos, eis alguns dos muitos termos depreciativos utilizados para designar os camponeses, particularmente os do Nordeste, quando eles não tinham ainda conquis-tado o seu reconhecimento político na sociedade nacional.4 São termos que ora evocam a sua condição miserável de existência, a requerer a atenção da assistência pública, ora o seu pretenso espírito inferior, expli-cação das ideologias dominantes para fenômenos sócio-políticos como o

4 Em Os camponeses e a política no Brasil, Martins (1981) traz uma extensa relação de outros termos regionais, também de cunho depreciativo utilizados para designar os camponeses.

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cangaço e o messianismo. Em todo caso, essas visões carregadas de pre-conceito revelavam muito mais do que a ignorância do Estado e da so-ciedade sobre essa classe social e, mais comumente, serviam de justifi-cativa para os altos níveis de exploração a que eram submetidas. Eram visões que procuravam encobrir questões cuja resolução passaria neces-sariamente por transformações nas estruturas sociais que poderiam al-terar os termos de negociação entre as classes sociais rurais.

Mas o fato é que as populações pobres do campo se transformam de flagelados, itinerantes, cangaceiros e fanáticos em camponeses ou trabalhadores rurais. Ou seja, assumem uma identidade política.5 E isso evidentemente não acontece por obra e graça da providência divina, embora tão fervorosamente clamada, ou pela força de decretos: a his-tória dessa transformação é a história da trajetória da organização de uma classe social em busca do seu reconhecimento político, da sua ci-dadania. São, pois, os elementos dessa história que buscaremos resgatar e compreender aqui.

O PCB e as origens do movimento camponês no Ceará

A despeito das formas clássicas de resistência à exploração do trabalho e condições de vida miseráveis, a itinerância, o cangaço e/ou o fanatismo,6 é na década de 1950 que se inicia, mais sistematicamente,

5 Palmeira (1985, p. 50) explica: “[...] A mobilização política do campesinato, num certo sentido, cria o campesinato. Ao tirá-los do isolamento político, tira-os do anonimato po-lítico. Uma das exigências para a sua eficácia política é que assuma uma identidade política. Não é por acaso que o vocabulário político “emprestou”" ao campesinato um termo novo – camponês – para formular uma identidade nova, prisioneiro que era dos termos de circulação restrita (matuto, caboclo, lavrador, etc.) no momento da sua entrada no cenário político [...] Uma das maiores proezas do MSTR, na cristalização da unidade da classe, terá sido provavelmente desneutralizar simultaneamente o mais neutro (porque genérico) e menos neutro (pela referência ao trabalho) dos termos em curso no arsenal ideológico dominante – trabalhador rural – e inculcá-lo como um termo “naturalmente” genérico para reunir todos os que vivem do trabalho na terra, posseiro ou pequeno pro-prietário, parceiro ou arrendatário, assalariado permanente ou assalariado temporário”.

6 Ao contrário do cangaço, o fanatismo, a despeito da existência dos novos canais de ex-pressão, ainda é uma forma de expressão de tensões sociais no campo. Para um estudo de expressões recentes de movimentos messiânicos no campo, vide, entre outros, Barroso (1986). Para um estudo sobre o cangaço e o fanatismo no período anterior ao da orga-

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por empreendimento do PCB (Partido Comunista Brasileiro),7 um mo-vimento de mobilização e organização dos camponeses no Brasil. No Ceará, como em outros estados da federação, a diretriz era fundar asso-ciações, ligas ou células rurais que reunissem e mobilizassem os cam-poneses na luta por melhores condições de vida e trabalho.

Nesse primeiro momento, os militantes comunistas organizam células rurais onde já havia alguma organização urbana do Partido, é o caso, por exemplo, de Camocim, onde foi fundada, logo no princípio da década, a Liga dos Trabalhadores Agrícolas de Camocim. A partir daí, e apesar da orientação do Manifesto de Agosto,8 buscaram organizar os camponeses a partir dos assalariados agrícolas por compreenderem que estes, a exemplo dos assalariados urbanos, constituíam a vanguarda dos trabalhadores do campo. É desse modo que José Leandro, um dos lí-deres desse movimento de organização no Ceará, explica:

Eu sustentava que devia predominar os assalariados na organi-zação dos camponeses, pelo que eu lia desde muito tempo sobre problema de vanguarda, essas coisas assim. Como o proleta-riado era vanguarda das forças democráticas, o operariado era vanguarda e os camponeses eram aliados, mas a vanguarda dos camponeses eram os assalariados (agrícolas). Isso levantou um problema ideológico: o assalariado não tem o que perder, luta por melhora de salário; o pequeno camponês, o pequeno proprie-tário não luta por melhora (de salário) e às vezes ele paga salário também e, quando paga, paga melhor que os ricos. O arrendatário, o meeiro do mesmo jeito, nenhum deles se interessa por luta, por aumento de salário. Só quem interessa isso é o assalariado, eu

nização do movimento dos trabalhadores rurais no campo nordestino, vide Facó (1976); Queiroz (1966); Queiroz (1977) e Monteiro (1974).

7 A militância do PCB no campo inicia-se pelos idos de 1945, quando, nesse período de redemocratização, recém-legalizado, procurará organizar os camponeses e trabalhadores rurais em associações civis, como permitia o Código Civil. Em 1947, com a cassação do seu registro, a maior parte das associações organizadas foi desarticulada, voltando depois a se rearticular mais generalizadamente a partir dos anos 1950 (cf. AZEVEDO, 1982, p. 55-57).

8 No Manifesto de agosto de 1950, os comunistas preconizavam uma reforma agrária ra-dical no país (cf. MARTINS 1986, p. 26).

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defendia que este é o homem de vanguarda para assumir a direção das lutas no campo, porque ele não tem o que perder. O pequeno proprietário fica com medo de uma perseguição, o meeiro, o pos-seiro também (PAULA JOCA, 1987, p. 172).

Mas o fato é que esse assalariado agrícola tão insistentemente buscado pelos comunistas não existia na agricultura cearense. Fundamentalmente baseada nas relações tradicionais de trabalho que relacionavam primordialmente morada e sujeição, a agricultura cea-rense, como na maior parte do sertão nordestino, produzia outras cate-gorias de trabalhadores rurais que não os assalariados: os moradores--parceiros e os meeiros e rendeiros. O trabalho assalariado era mais uma excepcionalidade9 de grandes e médios proprietários e, embora se fizesse necessário em determinados momentos do cultivo e da colheita de certas culturas, não constituía ainda a categoria social dos assala-riados agrícolas. Ou seja, os trabalhadores rurais que eventualmente se assalariavam eram, também e principalmente, meeiros, posseiros e pe-quenos proprietários pobres. E os moradores-parceiros quando traba-lhavam mediante pagamento em dinheiro o faziam exclusivamente para os seus patrões e para fazer jus à morada, ou seja, como contrapartida dela se submetiam à obrigação de oferecer dois ou três dias de trabalho semanais ao patrão sob remuneração ínfima e, embora isto pudesse pa-recer uma relação de assalariamento, muito distante estava de sê-lo.10

Não encontrando os assalariados procurados, os militantes comu-nistas adotam outra estratégia: organizar os trabalhadores ocupados na

9 É verdade que certas culturas, como a cana-de-açúcar na região serrana, exigiam mais permanentemente a existência do trabalho assalariado. Ainda assim podemos supor, a exemplo do que foi constatado por Heredia (1979) e Garcia Júnior (1983) na produção dessa cultura nos estados de PE, AL e PB, que os assalariados da cana-de-açúcar daqui, em períodos de menor demanda de trabalho, também trabalhavam a terra sob outras relações.

10 A sujeição, contrapartida do regime da morada, não se reduzia à obrigatoriedade da cessão de certo número de dias de trabalho semanais ao patrão. Além disso, implicava numa série de outras prestações e contraprestações de favores entre patrões e moradores que incluía, entre outros itens: a fidelidade política, a disponibilidade sua e de sua família ao patrão etc. Para um estudo mais exaustivo sobre a morada e a sujeição, vide Palmeira (1977); Garcia Jr. (1983); Beserra (1989).

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produção das grandes culturas no estado, conforme conta José Leandro: O Ceará sempre foi um grande produtor de algodão. A gente tinha que dar atenção aos trabalhadores do algodão, às regiões produtoras do algodão. Sempre foi também um grande produtor de arroz; nos concentramos também nessas regiões e nas plan-tações de cana-de-açúcar, que aqui no Ceará era usada na fabri-cação de rapadura. O Ceará foi também, na zona Jaguaribana, nas serras, o principal produtor de banana naquelas épocas. Nós começamos a atuar dando atenção às concentrações. [...] Havia, por exemplo, o litoral que começa no Aracati e vai até Chaval; a grande ocupação dos camponeses era a extração da cera de carnaúba, mas era um período muito pequeno. [...] Ocupava muita gente era na fabricação de chapéus. Sobral, por exemplo, era um grande produtor de chapéus de palha; as fa-mílias, as mulheres, todo mundo fabricando chapéus de palha e vendendo para Aracati, Acaraú, São Paulo. Mas era uma falta de emprego muito grande porque a produção não dava para ocupar todo mundo. [...] As zonas de algodão empregavam muito tra-balhador rural nas épocas de colheita. Era a época em que o tra balhador rural ganhava um salário melhor. Tirando daí, os trabalhadores rurais só tinham ocupação na época da plantação e da capina. Então não havia uma concentração assim de traba-lhadores permanentes. A grande massa de camponeses do Ceará era de trabalhadores independentes, de trabalhador autônomo – meeiros e parceiros que trabalhavam nas grandes fazendas, recebiam a terra para trabalhar de meia o algodão, e do milho e do feijão pagavam uma pequena renda, davam três dias de trabalho por semana ao patrão, era o que chamavam de sujeição. [...] Havia também nas zonas de arroz o sistema de plantação de meia, mas não tinha a sujeição. O dono da terra fazia um tipo de sociedade com seu morador, dava tantas tarefas de terra para ele plantar e dizia: “eu entro com certa importância em dinheiro para você tratar para mim toda aquela área de arroz”. Quer dizer, não era uma imposição, era um diálogo que tinham, e o morador ia trabalhar e recebia, trabalhando ele e toda a família. E, quando colhia, aí repartia por partes iguais para cada um. Como era uma terra muito especial isso era um negócio bom para os donos da terra, mas que os moradores se interessavam, e muito, e sempre

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faltava até terra para o número de moradores que queriam. [...] O Ceará sempre teve um grande número de pequenos proprietá-rios que trabalhavam nas roças, eles mesmos e a família. Havia pequenos proprietários que tinham um terrenozinho um pouco maior que plantavam, que durante o inverno, durante o trata-mento dessa lavoura, precisavam pagar alguns dias (PAULA JOCA, 1987, p. 173).

Vemos então que, apesar das orientações gerais do PCB para a questão agrária, os militantes comunistas precisaram considerar a di-versidade das questões camponesas aqui no Ceará. Inclusive, não apenas a diversidade resultado das várias formas de inserção na estru-tura produtiva, também a diversidade fruto da experiência histórica de cada região. A propósito, o mesmo José Leandro narra-nos que, concla-mando (a partir de orientação do Manifesto de Agosto) os camponeses à luta para a tomada de terras, foi indagado, por um deles, pelas armas. Respondeu ao camponês que as armas estavam com os soldados que eram filhos seus e que, por isto, eles as entregariam sem resistência. O camponês, porém, retrucou:

Companheiro, você pode me riscar. É porque o companheiro não sabe o que houve aqui no Caldeirão11 com o beato Zé Lourenço,

11 Na década de 1920, sentindo a necessidade de um espaço onde pudesse organizar uma sociedade fraterna que reeducasse, por meio do trabalho, aqueles romeiros mais desva-lidos e vítimas de perseguições, o Pe. Cícero escolheu, para organizar essa sociedade, o beato José Lourenço, que estabelecido, com os seus seguidores, no Sítio Baixa Danta, logo demonstrou uma capacidade especial de administração transformando a fazenda num exemplo de produtividade e convivência comunitária. Em 1927, o proprietário vende o sítio, e todos perdem as benfeitorias produzidas. O Pe. Cícero situa-os, então, numa grande fazenda da sua propriedade, na Serra do Araripe, a fazenda Caldeirão, que logo, também, transforma-se em rica propriedade com engenho de rapadura, grande plantação de cana, grande produção de gêneros alimentícios e algodão, além de produção de bo-vinos, caprinos, ovinos e suínos. Quando da morte do Pe. Cícero, em 1936, a propriedade da fazenda é reivindicada pelos Salesianos, a quem o Padre havia deixado a herança da propriedade. Inicia-se, a partir daí, toda uma campanha difamatória que culmina, em 1937, na fuga do beato com alguns seguidores para uma fazenda em Pernambuco após dura batalha contra a Polícia que foi designada para o ataque. Perdendo alguns soldados, a polícia desfecha novo ataque por terra e por ar, matando e prendendo muita gente na intenção de capturar José Lourenço, que já se evadira, mas ninguém delata o paradeiro

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aonde eu vivia. Estou vivo porque corri de lá e vim bater aqui na Serra e aqui fiquei [...] Lá os soldados não entregaram as armas não, os soldados fizeram o que foi mandado por sargento e por tenente (PAULA JOCA, 1987, p. 174).

No caso dos camponeses, como os do Caldeirão, que sofreram na pele as consequências da resistência, é compreensível o não inte-resse pelas propostas de organização comunistas. De um modo geral, porém, e independentemente de experiências coletivas de resis-tência, os camponeses até aos quais chegaram os comunistas não se empolgavam com as suas propostas quando elas envolviam ação mais ofensiva. Eis o que conta Leandro (PAULA JOCA, 1987, p. 189) acerca disso:

Como no nosso trabalho não aparecia lutas como na Baixada Fluminense, na Paraíba, Pernambuco, até lá pelo sul mesmo, a gente se sentia um pouco inferiorizado. Mas eu só queria, quer dizer, da minha cabeça, que era eu que dirigia o movimento, eu só queria que surgisse uma luta se fosse luta pelos próprios camponeses. Mas aqui não saía. Às vezes nas minhas discussões explicava que os camponeses daqui não queriam essas brigas não. Eu já tinha tirado a prova em muitas reuniões que fazia, eu fazia as propostas e eles não aceitavam.

Por que os camponeses do Ceará não aceitavam as propostas dos comunistas como o fizeram os camponeses de algumas regiões de Pernambuco e da Paraíba?

O processo de expropriação dos camponeses no Ceará, ao con-trário do que ocorreu na zona da mata dos estados referidos, não era ainda um fenômeno generalizado e massivo. Basta dizer que a cul-tura do algodão, onde mais classicamente se desenvolveram as rela-ções tradicionais de trabalho, não apresentava, ao longo do período 1949-1959, taxas significativas de queda ou expansão da produção.

do beato. De 1937 a 1940, o governo persegue sistematicamente os ex-habitantes do Caldeirão que se dispersam pelos mais diversos lugares. Ver Barros (1989).

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Em 1949, a produção do Estado atinge 43.167.000 quilos e man-tém-se na década seguinte em torno de 47.404.950 quilos (PAULA JOCA, 1987, p. 137). Essa relativa permanência dos padrões médios de produção e produtividade revela que, ao longo desse período, não há transformações significativas na produção dessa cultura.12 Ou seja, não encontramos indícios da existência de nenhum processo de expropriação. O que há são os velhos e corriqueiros casos de ex-pulsão de moradores por questões “pessoais” com os patrões, mas, em geral, as relações de trabalho baseadas na morada e parceria se reproduzem. E, se 90% do Ceará são sertão, esses dados são muito reveladores e significativos. Resta-nos saber o que ocorria além das fronteiras do algodão e além das relações tradicionais de trabalho. Vejamos, a seguir, exemplos do que ocorria nas áreas de posse onde se desenvolvia a pequena produção de subsistência.

Os motivos da luta dos posseiros

Entre agosto de 1951 e fevereiro de 1952, O Democrata e Voz Operária13 noticiam que, na Chapada do Araripe,14 nos municípios de Crato, Santanópolis, Barbalha, Juazeiro e outros, 10.000 famílias de pos-seiros, residentes na área há 30 anos, são ameaçadas de expulsão pelo Departamento de Terras e Colonização que aforou lotes e os vendeu, sem avisar aos antigos produtores.

Esse processo de expulsão de posseiros de terras devolutas do Estado não se inicia na década de 1950, é anterior (CASTELO BRANCO, 1987). Mas, nessa década, como nas duas anteriores, carac-

12 Por outro lado, também não há a introdução de novas culturas que justificasse mudanças nas relações de trabalho.

13 O Democrata e a Voz Operária eram órgãos de divulgação do PCB.14 Por ocasião dessa luta, é formado o “Comitê de Defesa dos Camponeses da Serra do

Araripe”, cujo programa de luta incluía: a) acesso a água das nascentes e construção de poços artesianos; b) resistir à expulsão; c) exigir o direito de plantar, tirar lenha e carvão; d) expulsão dos fiscais florestais e entrega da serra aos camponeses organizados em comitês e cooperativas; e expulsão dos latifundiários e distribuição das terras aos camponeses pobres.

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terizar-se-á pelo aforamento das terras aos grandes ou médios proprie-tários pelo Estado. O aforamento de terras devolutas pelo Estado terá, nesse momento, dois desdobramentos: a sujeição do trabalho dos pos-seiros aos aforadores ou a resistência ao trabalho sujeito por meio da expansão da fronteira agrícola. O que ocorrerá mais comumente nesse período é a segunda possibilidade, ou seja, os posseiros resistem ao trabalho sujeito por meio da ocupação de novas áreas devolutas. Somente no segundo momento da expansão da fronteira agrícola, aqui no Ceará a partir dos anos 1970, chega a vez de os grileiros, também sob o patrocínio do Estado, disputarem com os posseiros as terras devo-lutas.15 Esse processo mais recente da saga dos posseiros será estudado nos capítulos seguintes.

Semelhantes ao caso da Chapada do Araripe, embora envolvendo menos pessoas, ocorrem, ao longo da década 1950-1960, outros e iso-lados casos de expulsão de posseiros, provavelmente já consequência da valorização das terras em áreas atingidas por obras de infraestrutura como estradas de rodagem e açudes.

Portanto, se aqui não havia as mesmas disputas existentes em Pernambuco ou na Paraíba, era por razões objetivas da própria estrutura de produção, e não somente, como faz crer Leandro, porque os campo-neses daqui não gostavam de brigas como os de lá.

Por outro lado, ainda que esparsamente certas condições objetivas estivessem dadas, elas não eram suficientes para provocar reações ofen-sivas e radicais porque a conjuntura local era desfavorável. Ou seja, os camponeses avaliavam que a correlação de forças existente não permitia ações mais ofensivas da sua parte. Aliás, não é nada mais nada menos do que isso que o camponês anônimo mostra a Leandro quando se refere ao

15 Não estamos com isso querendo dizer que antes de 1970 não houvesse o fenômeno da grilagem, como já dissemos, havia, mas estamos tentando aqui demarcar o pe-ríodo onde esse fenômeno se generaliza a partir do processo da valorização de terras. Concomitantemente à generalização do processo de aforamento de terras pelo Estado, há casos de grilagens particulares por meio de alteração de títulos em cartório, etc., mas esse processo se generalizará depois, nos anos 1970, também sob o patrocínio ou com a conivência do Estado, sobretudo porque, em grande parte das terras griladas, se instalarão agroindústrias financiadas por este.

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episódio do Caldeirão. E nesse caso, ainda que os camponeses em outros estados estivessem conquistando mais espaços do que os daqui, essa era a realidade dos outros estados, a situação aqui era outra. Ou seja, não basta uma conjuntura nacional ou regional favorável, é necessário ava-liar as condições locais. E aqui, essas condições só serão dadas a partir dos meados da década de 1960 quando certa conjunção de fatores favo-recerá a infração das regras fundamentais das relações tradicionais de trabalho, e em decorrência surgirão as questões e os conflitos.16

A partir, portanto, do reconhecimento de especificidades regio-nais e dos limites da disposição dos camponeses, os militantes pc-bistas concentram sua intervenção nas regiões onde observam que havia maiores concentrações de assalariados17 e camponeses, selecio-nando, assim, prioritariamente quatro grandes regiões: o Cariri, as serras de Ibiapaba, de Baturité e de Uruburetama (PAULA JOCA, 1987, p. 174).

Embora o diálogo já referido, entre Leandro e o camponês anô-nimo, sugira que a ocupação de terras era uma diretriz prioritária no processo organizativo, é necessário esclarecermos que, após o reconhe-cimento da impossibilidade conjuntural de ações mais radicais, a luta por terra expressava-se apenas na reivindicação geral da “entrega gra-tuita das terras devolutas aos lavradores pobres” e não parece ser esta a questão em torno da qual os camponeses se mobilizaram. Desconhecemos ações mais concretas dos comunistas nesse sentido, tais como encami-nhamentos de processos judiciais reivindicando a posse legal dos pos-seiros quando do aforamento das terras a outrem pelo Estado. Tomemos o caso dos camponeses da Chapada do Araripe para exemplificar o método de atuação dos comunistas na incipiente organização dos cam-poneses no Ceará. Na edição de O Democrata de 20 de novembro de 1951 (PAULA JOCA, 1987, p. 176), é publicado um programa de luta dos camponeses da Chapada do Araripe, focado nas suas demandas es-

16 Trataremos desse assunto no capítulo seguinte.17 Esses “assalariados” concentravam-se na exploração das culturas de cana-de-açúcar e

café. Mas, como já dissemos, podiam ser também meeiros ou rendeiros em regiões pró-ximas, o que relativiza bastante a designação.

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pecíficas e regionais dos camponeses mobilizados. O teor desse pro-grama mostra que, então, as questões reivindicadas eram bastante ge-rais e diziam mais respeito a melhores condições para a permanência na terra, sugerindo que a permanência em si já era garantida quando, de fato, não era, haja vista que o resultado dessas questões era sempre a saída dos posseiros rumo à expansão da fronteira agrícola. Vejamos as reivindicações do documento:

1. Conseguir água para a serra (melhor distribuição);2. Conseguir a construção da estrada da serra;3. Conseguir escolas para crianças e adultos;4. Conseguir do governo sementes, ferramentas, inseticidas, es-

pecialmente máquinas de extinguir os formigueiros;5. Prestar solidariedade aos flagelados que trabalham na rodagem

central, no açude Latão, bem como aos que se acham desem-pregados e aos operários das fábricas das cidades e da capital;

6. Participar dos congressos, conferências e mesas redondas em defesa da paz e contra a carestia de vida.

Esse programa de luta mostra que, nesse primeiro momento da organização camponesa no Ceará, a mobilização se dá em função de reivindicações cujo objetivo era a ampliação do acesso aos serviços públicos e o reconhecimento dos direitos políticos dos camponeses. O que acontece, porém, de fato, é que, independentemente de reivindi-cações camponesas, e sem a preocupação de garantir o acesso demo-crático aos serviços públicos, ou às obras de infraestrutura, a partir da década de 1950, o Estado empreenderá a construção sistemática dessas obras, sobretudo, estradas de rodagem e açudes, o que provo-cará tanto a ampliação do mercado de trabalho, como de capitais, e, decorrente disto, precipitará o fenômeno da valorização das terras.

O resultado dessa luta pela democratização de serviços e infraes-trutura, no entanto, continuará favorecendo os grupos dominantes que continuarão, sem grandes mudanças, a usufruir dos privilégios do pro-gresso e da proximidade do Estado. O principal interlocutor/opositor do

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movimento era o Estado cuja ação permanentemente favoreceria as classes dominantes rurais e urbanas em prejuízo evidente das classes trabalhadoras. Apenas indiretamente um improvável resultado positivo das reivindicações de um programa como o acima poderia provocar alterações nas relações de trabalho tradicionalmente estabelecidas; mas isto na medida em que a democratização desses serviços daria mais opções aos camponeses tornando-os mais independentes dos grandes proprietários. Analisemos, por exemplo, os itens 1 e 3 acima.

Se o movimento conseguisse melhor distribuição da água e assim todos tivessem o livre acesso às fontes, isso provocaria mudanças nas relações de trabalho na medida em que muitos camponeses pequenos proprietários deixariam de ser meeiros ou rendeiros em terras de grandes proprietários apenas porque estas possuíam reservatórios perenes de água e tratariam de cultivar suas próprias terras.

Por outro lado, escolas para crianças e adultos também poderiam provocar mudanças na medida em que a possibilidade de acesso às in-formações favoreceria a compreensão da vida e das relações sob outra ótica e relativizaria o saber absoluto dos dominantes, além de que pos-sibilitaria, a médio e longos prazos, a libertação dos filhos do destino de camponês do pai.

Era em torno desse tipo de reivindicação que, em geral, os cam-poneses se mobilizavam: para serem reconhecidos como cidadãos e usufruir dos direitos da cidadania. Nesse momento de gestação, por-tanto, o movimento se estabelece em oposição ao Estado, o seu mais forte interlocutor. As questões relativas a querelas entre patrões e mora-dores ou ainda entre lavradores e/ou trabalhadores agrícolas e grandes proprietários não passavam ainda de “questões pessoais” cuja resolução se dava individualmente entre os envolvidos sem a mediação de ter-ceiros, ou seja, dentro dos limites da propriedade. Inclusive, os jornais O Democrata e Terra Livre, órgãos de comunicação do PCB e Ultab (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil), noticiam, ao longo da década de 1950, com certa constância, questões isoladas de expulsão de moradores, de grilagem de terras, mas nada com potencial para transformar-se em conflito de vulto que forçasse a intervenção do poder público.

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Temos, portanto, um movimento que imputa ao Estado oligarca a responsabilidade da condição de vida miserável dos camponeses e reivin-dica mudanças no sentido de democratizar o acesso a serviços antes privi-légio das classes dominantes. Nessa mesma perspectiva, aliás, colocava-se a luta pela criação de sindicatos que, no contexto, era prejudicada pela falta de regulamentação da legislação sindical vigente (Decreto 7.038 de 1944) e, principalmente, pelos mecanismos repressivos das classes domi-nantes que tinham na Igreja um dos seus principais aliados no combate à entrada dos comunistas no campo (PAULA JOCA, 1987, p. 180).

A fundação da ULTAB: novo impulso ao movimento

Diante da efetiva impossibilidade de ocorrência de conflitos ca-pazes de reunir os camponeses numa luta única, os comunistas limita-ram-se à organização de Associações. Em 1954, na 2ª Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas, realizada em São Paulo, é criada a Ultab, responsável por uma nova dinâmica no movimento. Entre 1955 (ano posterior à criação da Ultab) e 1960, são criadas, nas mais diversas regiões do estado, 26 associações que reuniam camponeses e assala-riados em torno de reivindicações semelhantes às dos camponeses da Chapada do Araripe. Convém lembrar que a década de 1950 foi parti-cularmente atingida por grandes secas,18 o que facilitou a mobilização camponesa em torno das consequências por elas produzidas. É certo, também, que esse tipo de mobilização é fugaz e desaparece aos pri-meiros sinais de chuva, mas sua importância não deve ser minimizada porque sempre produz alguma consequência na forma de viver e ob-servar o mundo. Isto é, os camponeses que tiveram a oportunidade de se organizarem nas frentes de emergência carregarão consigo, diferente-mente dos outros, essa experiência de organização. Mas, em geral, ao longo da década de 1950, os camponeses apenas acumulam essa expe-riência de mobilização em associações e outras organizações transitó-rias criadas para reivindicação de melhores condições de trabalho nas frentes de emergência.

18 Referimo-nos às secas de 1951-53 e de 1958. Cf. Souza e Medeiros Filho (1984).

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Mas a experiência de organização não é a mesma ao longo da década 1950-1960. Em 1954, a criação da Ultab dá forte impulso ao movimento: tanto incentivará a criação de novas associações como a aprovação da Carta de Direitos e Reivindicações provocará uma am-pliação do alcance do movimento e das lutas. Aprovada na II Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas, reivindica para os trabalhadores rurais os seguintes direitos: extensão do salário mínimo e assistência social aos trabalhadores agrícolas; rebaixamento dos preços de arrenda-mentos; congelamento de preços; liberdade sindical e de livre asso-ciação; garantia de preços compensadores; ajuda técnica e financeira aos pequenos proprietários; criação de cooperativas de consumo; insta-lação de escolas, postos médicos, hospitais, etc.; e reforma agrária. Ou seja, além das reivindicações específicas de cada categoria de trabalha-dores, a Carta de Direitos e Reivindicações dá toda ênfase à luta mais ampla pela conquista da cidadania.

Consequência da fundação da Ultab, é a fundação da Ultac (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Ceará) em ja-neiro de 1955. A Ultac já surge congregando 15 associações. Mas o desenvolvimento do seu trabalho de organização era difícil, pois aqueles que a elas se opunham (por exemplo, a Igreja Católica) fa-cilmente desestimulavam a participação dos camponeses, dissemi-nando boatos de que elas não tinham qualquer poder. Porém, José Leandro (PAULA JOCA, 1987, p. 151-152) conta que isso começa a mudar depois da fundação de uma associação de camponeses em Camocim:

[...] Aqui no Ceará começamos a formar associações com o Estatuto da ULTAB, como sendo uma Delegacia porque ela permitia isso. Então, nós formamos aqueles núcleos, aquelas delegacias, mas esse tipo de organização não foi bem aceito pelos camponeses. Facilmente as pessoas que se opunham à organização dos camponeses destruíram aqueles núcleos que nós chegamos a fundar, metiam dúvidas nas cabeças dos cam-poneses. Nós acabamos descobrindo que os padres facilmente destruíam aquelas associações, dizendo que aquilo não tinha Estatuto, não tinha coisa nenhuma.

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Porém, continua o relato, a partir da notícia da experiência de fundação de uma associação de camponeses em Camocim, que contava com “estatuto registrado, recebendo subvenções, tudo legal”, a organi-zação assume nova dinâmica. Um político da região aconselhou os camponeses a fundarem uma associação semelhante, e o resultado, se-gundo José Leandro, é que:

[...] Com essas associações, reunimos aqui numa confe-rência e fundamos a FALTAC (Federação das Associações de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Ceará). Enquanto foi com o Estatuto da ULTAB não deu certo. Depois, quando nós começamos a seguir o exemplo de Camocim, aí o negócio vingou. Criamos parece que 29 (associações) (PAULA JOCA, 1987, p. 154-155).

Os estudos de Tereza Helena de Paula Joca (1987) e Maria Glória Ochoa (1989), ambos sobre o sindicalismo rural no estado do Ceará no período de 1950 a 1954, permitem-nos concluir que, mesmo depois da fundação da Faltac, que propiciou a organização das associações em bases mais sólidas, o movimento camponês continuava ainda bastante restrito às localidades onde o PCB tinha alguma organização urbana que o respaldava.

Enquanto representação dessas associações, a Faltac organizava um trabalho de conquista de um espaço político para o campesinato cearense, sobretudo na medida em que procurava, por meio dos órgãos de divulgação do PCB e Ultab, levar à cidade as notícias sobre a preca-riedade das condições de vida no campo. Por meio de outras formas de luta, como as passeatas e o encaminhamento de memorandos e abaixo--assinados, passou a ter o reconhecimento de alguns políticos e do pró-prio Governo, tendo chegado a participar da Comissão de Reforma Agrária constituída no final do Governo de Parsifal Barroso, em 1962 (PAULA JOCA, 1987, p. 194).

Reconhecida como representação da organização camponesa no Ceará, a Faltac conquistou espaço junto a políticos e Governo no sen-tido de ampliar as suas bases por meio de ações assistenciais. O apoio à candidatura de Adail Bezerra à Câmara Federal lhe valeu, por exemplo,

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uma subvenção de 5 milhões de cruzeiros, que, ainda segundo José Leandro (PAULA JOCA, 1987, p. 193), “ajudou muito na compra de máquinas agrícolas e a manter o pessoal que trabalhava”. Além disso, acrescenta: “antes [...] a gente já vinha fazendo campanha, tinha o de-partamento de distribuição do leite que era sempre dirigido por pessoas amigas [...], quando não era por um companheiro nosso (do Partido). A Faltac [chegou] a distribuir 12 toneladas de leite por mês”.

O líder mostra que a Faltac tornava-se já um dos atores políticos daquela cena. Forte o bastante para ter direito à sua parcela, mas, ao mesmo tempo, não mais uma ameaça aos poderes constituídos.

A Igreja entra em cena...

Com as características apresentadas, o movimento camponês cea-rense chega à década de 1960, a qual traz consigo a novidade da me-diação da Igreja Católica, que, apesar de já demonstrar, desde os fins dos anos 1950, sinais de interesse pela questão do campo,19 somente a partir de 1960 inicia o trabalho de conscientização e organização das classes populares. Em 1961, a Igreja do Ceará, por meio de duas vertentes,20 passa a disputar com o PCB a hegemonia na organização camponesa. Com a intenção de deter ou reduzir a atuação dos comunistas, a Igreja empreende todo um trabalho no sentido de promover a sindicalização dos

19 Dez dias após a divulgação do Manifesto de Agosto do PCB, é lançada a Pastoral de D. Inocêncio Engelke: “Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural” (CARVALHO, 1985).

20 Uma dessas vertentes era a que se fazia representar pela Fundação Padre Ibiapina e pela Escola de Líderes Rurais (ELIRUR), que dominavam a região do Cariri, e que desenvolvia um trabalho mais identificado com o trabalho do SORPE (Serviço de Orientação Rural de Pernambuco), com orientação conservadora e apoio de setores de direita. A outra vertente era representada pelo Departamento de Orientação Sindical da Arquidiocese de Fortaleza cujo trabalho foi inicialmente desenvolvido na sede dos Círculos Operários e, mais tarde, em 1962, pela recém-criada Fundação João XXIII, cujo presidente era o Padre Alberto Viana. Esta vertente tinha ligações com a Coordenadoria Nordeste de Sindicalização Rural, sediada em Natal, RN; com o Pe. Crespo, um dos líderes do SORPE; e aqui, com o MEB (Movimento de Educação de Base) e JUC (Juventude Universitária Católica). Tendo sido a Fundação João XXIII simultaneamente um espaço de atuação de grupos conserva-dores como de grupos mais progressistas e mais intrinsecamente vinculados às massas camponesas e aos seus interesses (PAULA JOCA, 1987, p. 197).

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trabalhadores rurais: as campanhas radiofônicas de esclarecimento às po-pulações rurais sobre questões como a sindicalização e a reforma agrária são muito importantes na medida em que atingem mais eficazmente os camponeses como um todo. Inclusive e, de certo modo, facilitam a atu-ação dos comunistas, que acabam referendando suas ações no discurso da Igreja, legitimando uma ação que antes fundamentava sua legitimidade mais no conhecimento entre as pessoas, via relações de amizade e paren-tesco do que propriamente da convicção político-partidária dos organi-zados. Como explica Leandro (PAULA JOCA, 1987, p. 204):

[...] A gente sabia que a Igreja era mais ligada aos camponeses do que nós. Ligada assim, eles (camponeses) confiavam mais neles (padres) do que em nós. Camponês não queria saber de Partido Comunista, ele queria saber assim de Zé Leandro, de ouvir os outros dirigentes, eles queriam, eles aceitavam, mas porque não acreditavam que nós fosse comunista. [...] O que dizia agora, há pouco, da maneira como os padres foram mudando a linha deles junto ao trabalho sindical, reforma agrária e os campo-neses. Não quer dizer que eles tenham passado a nos ajudar a forma sindicatos em conjunto, mas, através daquelas emissoras de rádio, eles sustentavam a campanha pela defesa da Reforma Agrária, mandando os camponeses lutar pela reforma agrária e por uma sindicalização rural. De forma que várias vezes eu cheguei a constatar, nas feiras no interior e em regiões lá no campo mesmo, com os camponeses, velhinhos tirando o chapéu da cabeça, olhar para o céu e dizer: Graças a Deus, chegou! Eu perguntava o quê e eles diziam, a sindicalização rural que os padres estão falando, quer dizer que o senhor já deve ser um dos enviados que vem fundar, para nos ajudar a fundar o sindicato e lutar por essa reforma agrária...

Igreja e comunistas se encontram na realização de uma ação di-ferenciada, mas com propósito semelhante: promover a organização dos trabalhadores rurais por meio da sindicalização. É evidente que cada uma dessas forças, e por motivos específicos, pretendia o controle do movimento. A Igreja, com o propósito tácito de impedir a expansão de ideologias comunistas no campo ou, textualmente, “idéias arrojadas e revolucionárias” que viessem a alterar a “índole conformista e roti-

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neira dos trabalhadores rurais”21 distanciando-os da Igreja e de Cristo. À Igreja já havia sido demasiado o golpe da perda das massas operárias europeias, segundo a declaração do próprio Pio XI: “O maior escândalo do século XIX foi ter a Igreja perdido a massa operária”. Complementava essa frase a Igreja brasileira nos anos 1950 com a advertência-excla-mação: “Não cometamos a loucura de perder, também, o operariado rural” (CARVALHO, 1985, p. 79-80). De outro lado, os comunistas procuravam, com a organização dos camponeses, fortalecer suas bases revolucionárias pela consolidação da aliança operariado-campesinato.

Entre o período inicial do processo de sindicalização propria-mente dito22 até a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural (Lei nº 4.214 de 02/03/63), Igreja e comunistas acusam-se mutuamente de impedirem o curso normal do movimento de sindicalização rural. Tanto um quanto o outro, em momentos distintos, utilizam-se da influência de políticos simpatizantes de suas causas. Em 1962, a Igreja tinha a seu favor o apoio de políticos do Partido Democrata Cristão que, em pos-tos-chave no Ministério de Trabalho e Previdência Social, favoreciam a ação da Igreja, facilitando o encaminhamento e reconhecimento dos sindicatos. Não à toa os primeiros sindicatos criados no Estado23 são os da região Cariri, onde a Igreja (conservadora) monopolizava a orientação da sindicalização rural. Só a partir da nomeação de Olavo Sampaio para

21 Termos da Pastoral de D. Inocêncio Engelke: “Conosco, sem nós...”.22 Já nos primeiros meses de 1962 foi regulamentada a sindicalização rural: a portaria

209-A de 25.06.62 regulamentou as condições do enquadramento sindical; e as portarias 355-A de 20.11.62 e 356-A de 21.11.62, regulamentavam, respectivamente, os pré-re-quisitos para a fundação dos sindicatos e as condições para as eleições sindicais (PAULA JOCA, 1987, p. 86). Tornava-se possível, a partir da regulamentação, a criação de sindi-catos de trabalhadores na lavoura; trabalhadores na pecuária e similares; trabalhadores na produção extrativa rural e produtores autônomos (pequenos proprietários, arrendatários e trabalhadores autônomos que explorassem a atividade rural sem empregados, em regime de economia familiar ou coletiva) (MEDEIROS, 1989, p. 63).

23 Esses 5 sindicatos do Cariri foram reconhecidos por Franco Montoro, então Ministro do MTPS, juntamente com outros 17, cujos pedidos de reconhecimento foram encami-nhados pelo I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Rurais do Norte e Nordeste, rea-lizado em Itabuna-BA, em maio de 1962. O reconhecimento desses sindicatos baseou-se na Portaria 209-A de 25.06.62, que regulamentava as condições do enquadramento sin-dical, assinada pelo ministro referido (PAULA JOCA, 1987, p. 86).

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a Delegacia Regional do Trabalho-DRT-Ceará (quando Almino Afonso substitui João Pinheiro Neto no Ministério do Trabalho e da Previdência Social – MTPS) é que os comunistas retomam a direção do movimento, expandindo a criação de sindicatos a todas as regiões do Estado. Vejamos, acerca desse momento, depoimentos de líderes do movimento de sindi-calização rural do PCB e da Igreja:

Nós só chegamos a fundar sindicatos quando entrou no Ministério do Trabalho o Ministro Almino Afonso (janeiro de 1963), foi ele quem publicou uma portaria24 facilitando... com todas as facili-dades para a fundação dos sindicatos, federações e confederações [...] O Amadeu Arrais era nosso amigo, era um democrata que era um líder católico [...] mas não soltava uma vírgula a respeito da fundação dos sindicatos [...] ele não dava as instruções (PAULA JOCA, 1987, p. 206).

Mas a dificuldade maior que a gente sentiu não foi com eles (tra-balhadores), foi com a DRT. Nesse tempo era o Olavo Sampaio e ele brecou praticamente todos os processos que a gente tinha en-caminhado [...] o Olavo Sampaio brecou 17 solicitações nossas de sindicatos. Quando veio o novo Delegado do Trabalho no-meado (abril de 1964) e ele abriu a gaveta, perguntou: O que é isso?? Era a documentação todinha que a gente tinha enca-minhado para a Delegacia e ele tinha brecado tudinho... (Prof. Alberto Viana, Coordenador do Departamento de Sindicalização da Arquidiocese (PAULA JOCA, 1987, p. 207).

Os depoimentos acima apresentam alguns termos da disputa entre PCB e Igreja pela direção da organização. Mas era razoável que fosse assim, afinal a legislação sindical aprovada só permitia a existência de um sindicato para cada categoria por município. Urgia, pois, ao PCB e à Igreja conse-guirem a carta sindical do maior número possível de sindicatos pois, com

24 De fato, essas portarias haviam sido publicadas antes, em novembro de 1962, mas só chegaram ao conhecimento do PCB daqui quando Almino Afonso assumiu o MTPS. Antes, o Delegado Regional do Trabalho, integrante do PDC (Partido Democrata Cristão), colaborava claramente com a campanha da Igreja sonegando informações aos comu-nistas (PAULA JOCA, 1987, p. 82-86).

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isso, estariam conseguindo, também, o controle das federações estaduais e, consequentemente, o controle da Confederação, em âmbito nacional.

Mas o fato é que, a partir da divulgação das portarias que regula-mentam a sindicalização rural, com todos as suas limitações, e apesar da disputa PCB-Igreja, o movimento não apenas avança no sentido de que organizará mais facilmente sindicatos e federações como, na medida em que sindicaliza os trabalhadores rurais por categorias distintas, apro-funda o conhecimento das lutas específicas e promove a organização de lutas a partir dos problemas e reivindicações concretas de cada cate-goria. Nesse momento ocorre, senão um deslocamento de interlocutores do movimento, uma ampliação dos alvos. Ou seja, se antes tudo se di-rigia ao Estado e este era, por excelência, o interlocutor do movimento, outros interlocutores surgem no período. É certo que àquelas alturas uma reação contra-movimento por parte dos proprietários já se esboçava, mas uma determinada categoria de proprietários se sentirá particular e diretamente atingida por esse avanço do movimento aqui no Ceará. Tomemos, mais uma vez, o depoimento de Leandro:

Nós falávamos muito nos assalariados, mas nunca conseguimos al-cançar os assalariados. [...] Fomos atingir assalariados já na era de 1960, quando, já depois da legislação sindical, [...] nós começamos a atingir as fazendas. Nas fazendas foi que nós descobrimos que existia um grande assalariado agrícola no Ceará.Porque, quando a gente ia entrevistar para saber qual a categoria profissional dele, então ele dizia: eu sou meeiro, planto algodão de meia, agora tem uma sujeição, eu sou da sujeição. Como é a sujeição? Sujeição é que eu planto a terra de meia, mas tem uma sujeição, eu trabalho três dias por semana por salário, ele nunca paga do preço que os outros. Aí nós começamos a pesquisar, havia camponeses com mais de 40 anos de emprego assalariado nesse sistema de sujeição. Daí foi que a gente começou a fundar sindicatos de trabalhadores na lavoura que eram os assalariados. [...] Depois que descobrimos essa grande camada de assalariados [...] criou-se um foco de lutas. Em Quixadá surgiram várias lutas. Surgiu uma luta lá que se agravou tanto que rendeu até quando chegou a “revolução”:25 nós descobrimos que grande parte dos

25 No depoimento original, Leandro diz equivocadamente “...rendeu até quando chegou a

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meeiros e parceiros eram também assalariados porque trabalhavam sob o regime de sujeição, eram 48 trabalhadores e o proprietário correu com todos eles, com os 48 de uma vez. Eles moravam na terra do proprietário. Eles correram e tomaram a meia, procuraram a Federação que forneceu advogado [...]. Feitos os cálculos, tinha um deles que tinha um tempo de casa de 40 anos, outro, 30 e tantos anos, todos eles com mais de 20 anos de casa. Quando foram feitos os cálculos de indenização, só na parte trabalhista o que o pro-prietário tinha que pagar equilibrava com o valor da fazenda. O dono da fazenda chegou a chorar na DRT quando viu o resultado, e pediu uma clemência ao Delegado do Trabalho e o Delegado disse que não podia dar clemência porque estava ali para defender os direitos dos trabalhadores (PAULA JOCA, 1987, p. 212).

A interpretação da relação da morada como um assalariamento disfarçado levou o movimento a reivindicar o cumprimento, por parte dos proprietários, dos direitos trabalhistas, isto provocou, da década se-guinte em diante, um forte movimento de expulsão de moradores-par-ceiros, além de que impôs, até por precaução e em favor dos proprietá-rios, a necessidade da regulamentação de todas as relações de trabalho existentes no campo, o que começará a ocorrer logo após o golpe, na Lei que aprova o Estatuto da Terra.

Em 1963, com o objetivo de facilitar e expandir o processo de sindicalização rural, instituiu-se a Consir (Comissão Nacional de Sindicalização Rural) e quase simultaneamente o Congresso Nacional também aprovou o Estatuto do Trabalhador Rural (Lei nº 4.214, de 02/03/63), garantindo aos assalariados do campo o direito a reivindica-ções como salário mínimo, repouso semanal remunerado, férias remu-neradas, licença maternidade, indenização em caso de dispensa, estabi-lidade após dez anos de serviço, obrigatoriedade de registro em carteira profissional, etc. (MEDEIROS, 1989, p. 63).

Relativamente à reforma agrária, ainda em finais de 1962, foi criada a Superintendência de Política e Reforma Agrária (Supra). Mas,

sindicalização rural...” quando, de fato, quis dizer: “...rendeu até quando chegou a ‘revo-lução’ ou o golpe de 64”.

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como analisa Medeiros (1989, p. 45), apesar de a Supra já surgir do reconhecimento da necessidade de intervenção na estrutura fundiária, “medidas concretas de desapropriação, dependentes de alterações cons-titucionais de forma a permitir o pagamento das indenizações em títulos da dívida agrária, continuaram sendo o ponto de estrangulamento dessas tentativas de enfrentar a questão agrária (pois) o Congresso Nacional permanecia impermeável a elas”.

Mas, desde o surgimento da legislação sindical e trabalhista, torna-ra-se evidente a importância do Estado e o seu interesse em se fazer pre-sente na mediação dos conflitos existentes no campo. É nessa perspectiva de ampliar os seus espaços de representação entre os camponeses e obter respaldo popular ao seu programa mais amplo de reformas de base que, com repercussões mais fortes do que todas as ações anteriormente diri-gidas à resolução dos conflitos no campo, foi assinado, pelo Presidente João Goulart, em 13 março de 1964, o Decreto da Supra, declarando

de interesse social, nos termos e para os fins previstos no Artigo 147 da Constituição Federal e na Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, as áreas rurais compreendidas em um raio de 10 (dez) quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais, e as terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclu-sivos da União em obras de irrigação, drenagem e açudagem (BRASIL, 1964, p. 5).

Menos de um mês depois, talvez mesmo acelerado pelas reper-cussões desse decreto, ocorreu o golpe de 1964. Mais alguns dias e provavelmente teríamos os primeiros momentos de uma reforma agrária sob a direção do campesinato?

É impossível garantir qualquer coisa a partir do que não acon-teceu, mas o certo é que, a partir de 1962, os camponeses cearenses saem das páginas dos jornais de circulação restrita do PCB e Ultab, para frequentarem, cotidianamente, as páginas dos jornais de ampla circu-lação. As notícias veiculadas não apenas evidenciam o reconhecimento social da nova classe que chega à cena política, como demonstram que é forte, e certamente perigosa para as classes dominantes rurais, a mo-bilização camponesa.

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Mas os camponeses, ao menos os do Ceará, não estavam organi-zados ainda o suficiente para impor condições ao processo de reforma agrária que provavelmente se iniciaria. Toda a movimentação em prol da fundação de sindicatos não se revertia ainda em organização das bases. As bases ainda estavam por se organizar. Somente isso, aliás, explica a vulnerabilidade do movimento às pressões promovidas pelo golpe de 1964. No entanto, é necessário acrescentar que será justamente do sertão, da região onde os comunistas começaram a organizar os tra-balhadores sujeitos sob o argumento de que constituíam os “assala-riados disfarçados”, que surgirão as lideranças do movimento que se rearticulará, 15 anos depois.

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MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ: 1965-1990

Seguiu-se ao golpe de 1964, um grande silêncio das organiza-ções camponesas do Ceará, o que mostra quão forte foi o seu impacto sobre uma organização ainda incipiente: “Quando a gente pensava que estava enraizado, estava que nem planta plantada em jarro e, quando viu, se acabou, sem raiz [...]” (PAULA JOCA, 1987, p. 222).

Um movimento que se estruturara basicamente a partir do tra-balho de lideranças dificilmente sobreviveria sem a sua direção. É o que ocorre aqui. Com a prisão e perseguição sistemática de lideranças, o movimento entra numa longa fase de recesso da qual só sairá mais de uma década depois, nos fins da década de 1970.

A repressão desencadeada pelo Estado sobre o movimento, sobre-tudo àquelas organizações lideradas pelos comunistas, impede-o de acu-mular forças a partir da organização de lutas de massas. O que ocorrerá mais comumente serão os conflitos isolados. No entanto, e por força da aliança Igreja-Estado26 contra os comunistas, a Igreja prossegue incenti-

26 Acerca da participação da Igreja no golpe de 64, Martins (1989b, p. 27) coloca: “foi em nome [...] da necessidade de resolver a questão agrária, que os bispos apoiaram o golpe militar [...] Para todos, inclusive para as oligarquias políticas, era claro que só havia dois caminhos para as grandes transformações sociais que o campo reclamava - a revolução de baixo para cima ou a reforma de cima para baixo. O golpe fora dado, com o apoio das oligarquias, aliás, para evitar a revolução, que se acreditava estar sendo gestada entre os trabalhadores rurais pela ação do PC e pela ação das Ligas Camponesas. [A Igreja podia

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vando a fundação de sindicatos de trabalhadores rurais (STRs). E, logo após o golpe, apoiará a Federação, oferecendo-lhe um espaço no prédio onde funcionava a Fundação João XXIII, já que a sede anterior da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará – Fetraece havia sido destruída pelos militares. O ano de 1964 foi atípico, contando com a fundação de apenas um STR no Ceará;27 enquanto, em 1965, sete foram criados, e, em 1966, mais treze. Ainda em 1966, após dois anos de intervenção do Ministério do Trabalho, a Fetraece volta à normalidade administrativa, tendo realizado eleições em 26.06.1966 para o triênio 1966/1969 (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHA DORES NA AGRICULTURA, 1975, p. 20). Sobre esse período, afirmou Felismino, Presidente da Fetraece, entre 1977-1980:

[...] O movimento sindical prosseguiu lentamente se reorgani-zando, a própria Federação se reorganizou em 1966, aí ela teve que eleger uma nova diretoria que aquela acabou, desapareceu. E a partir de 1967 com novas fundações de sindicatos em 66 e outras em 67, então começou a propaganda do movimento sin-dical mas já aí com outros fins diferente daquela luta que tava sendo encampada pelos dirigentes sindicais antes do golpe mi-litar (OCHOA, 1989, p. 122).

Anos 1970: a corrida para a sindicalização rural

Apesar do caráter com que os sindicatos são fundados a partir de 1964, a repressão dos latifundiários se mantém, tornando-se comum a

acreditar no golpe haja vista que] a tradição centralizadora do Estado autoritário não é avessa às reformas sociais. Os governos autoritários neste país, têm sido desenvolvimen-tistas e modernizadores, ainda que repressivos. Mas, ao mesmo tempo, têm imposto às oligarquias políticas reformas sociais importantes que, no mínimo, ampliam os direitos sociais e o espaço da reivindicação popular. Foi assim com Getúlio Vargas, cujo governo reconheceu os direitos trabalhistas e a organização sindical da classe operária, criou o Ministério do Trabalho e promulgou uma Consolidação das Leis do Trabalho”.

27 Entre janeiro de 1962 e abril de 1964, foram criados 79 sindicatos de trabalhadores rurais no Ceará. Sendo 5 de Trabalhadores na Pecuária e Trabalhadores na Extrativa; 10 de pe-quenos proprietários e posseiros; 22 de Trabalhadores da Lavoura; e 42 de Trabalhadores Autônomos Rurais e Pequenos Produtores Autônomos (PAULA JOCA, 1987, p. 262-266).

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expulsão de moradores-parceiros sob o argumento da sua organização em sindicatos. Praticamente até os fins da década de 1970, as expulsões vão acontecer indiscriminadamente sob o signo da impunidade, havendo nesse interregno um ou outro conflito de maior repercussão que foge à regra, tendo desfecho diferente, como é o caso da fazenda Japuara, em Canindé, do qual trataremos adiante. Quando não é a expulsão sumária sob o argumento da organização em sindicatos, é a mudança da relação de trabalho que culmina no desenraizamento do morador e na perda de maiores direitos sobre a terra. Antes de passarmos à avaliação desse período, convém abrirmos um parêntese para considerações acerca das relações tradicionais de trabalho no campo cearense.

A exploração do algodão e a concentração de terras forjaram, no Ceará, a categoria dos moradores-parceiros.28 Nessa relação de tra-balho, os proprietários ofereciam suas terras para os trabalhadores mo-rarem e cultivarem pequenos roçados em troca da disponibilidade per-manente da sua força de trabalho. Essa disponibilidade da força de trabalho, conhecida como sujeição, consistia em o trabalhador dar ao proprietário alguns dias de serviço, em geral dois ou três, sob remune-ração inferior à do mercado, além de repartir ao meio, ou como fosse tratado entre as partes, a produção do algodão. Além dos termos da troca de terra por trabalho, a morada constituía um complexo sistema de prestações e contraprestações de favores, serviços e obrigações. Em troca da morada, o trabalhador deixava de ser um anônimo para se transformar em morador de certo patrão, aceitando com isso subme-ter-se às suas regras particulares, que incluíam, entre outras coisas, a fidelidade política e pessoal do morador. A infração dessas regras, por uma das partes, redundava na saída do morador daquela propriedade para outra(s) na mesma região ou em outras regiões, no estado ou fora dele.29 Em geral, por se tratar de um acordo particular entre partes, os

28 Para um maior aprofundamento da relação da morada, vide Palmeira (1977), Garcia Júnior (1983) e, especificamente sobre os moradores-parceiros no Ceará, vide Barreira (1977).

29 Além de moradas melhores, os camponeses expulsos buscavam terras devolutas em re-giões de fronteira para se apossarem e, a partir da constituição de um mercado nacional de trabalho, passam a migrar para as cidades ou regiões receptoras de mão de obra; assim é que nos fins do século passado o caminho habitual para onde se dirigem levas e levas de

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motivos da saída são também particulares e se revestem desse caráter pessoal próprio da relação. Exemplo: a não disposição dos filhos de um morador em dar, como o pai, os dias de trabalho esperados pode consti-tuir-se na razão de expulsão de uma família. Do mesmo modo, se o patrão requisitar o trabalho do morador além dos dias acordados, e isso comprometer a produção do roçado, o trabalhador pode sair à procura de outra morada. Os exemplos são muitos, e não nos interessa explorá--los aqui, apenas insistir no fato de que é esse conjunto de regras que constitui e dá uma feição particular à relação da morada.

Na medida que a organização dos trabalhadores prevê a regula-mentação das relações de trabalho no campo, os proprietários, na tenta-tiva de salvaguardar as suas leis dentro dos seus territórios, ameaçam de expulsão os trabalhadores que demonstrem simpatia pelos sindicatos ou outras formas de organização política. Afinal, o sistema da morada, um sistema tradicional, não convive bem com a intromissão de terceiros, particularmente o Estado, no sentido de uma lei geral. Esta, aliás, é uma das suas regras fundamentais. Daí porque os sindicatos continuam, em geral, sendo mal recebidos pelos patrões, afinal, combativos ou não, representam sempre a relativização do seu poder, na pior das hipóteses, é um mediador a mais entre os trabalhadores rurais e a sociedade mais ampla (PALMEIRA, 1985, p. 48).

O processo mais generalizado de expulsão de moradores, como o processo de mudança nas relações de trabalho anteriormente existen-tes,30 deve-se, portanto, à organização dos trabalhadores rurais e, decor-rente desta, à conquista do direito da regulamentação do trabalho rural, que, tanto quanto os outros fatores modernizantes, promoverá a valori-zação das terras.

migrantes é o Norte, para a exploração da borracha na Amazônia. A partir das primeiras décadas deste século o caminho preferido será o do Sul: Rio e São Paulo.

30 É necessário esclarecer que a expulsão dos moradores não foi a única saída encontrada pelos patrões para evitar problemas futuros com os moradores; é verdade que, no primeiro mo-mento, o da conquista de uma legislação trabalhista (Estatuto do Trabalhador Rural) e de uma legislação que possibilitava a permanência na terra pela desapropriação por interesse social (Estatuto da Terra), a expulsão foi o movimento dominante. No momento seguinte, e até si-multaneamente, ocorreu o movimento de transformação das relações tradicionais de trabalho em relações mais flexíveis. Sobre esse assunto, voltaremos a discutir ainda neste capítulo.

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Vejamos: a partir do momento em que os grandes proprietários são obrigados a modificar os cálculos da sua produção computando o trabalho em seus custos; os lucros, que até então eram resultado da exploração do trabalho sujeito, diminuem vertiginosamente caso os níveis de produção e produtividade se mantenham inalterados. Se, ao contrário, os custos da força de trabalho não são logo computados ao custo da produção, os proprietários, a partir das leis trabalhistas para o trabalhador rural, o Estatuto do Trabalhador Rural – ETR – e, posterior-mente, das disposições do Estatuto da Terra correm o risco, a médio ou curto prazos, de perderem, para os trabalhadores, o seu patrimônio. De modo que a maioria dos proprietários, à medida que se veem forçados a renunciar ao trabalho sujeito, renuncia também à produção agrícola sem, contudo, renunciar à terra. Esta se valorizará sempre e mais à me-dida que seu acesso realizar-se-á preponderantemente via mercantil contra as outras formas anteriormente existentes e dominantes: a par-ceria e/ou a morada (GARCIA JÚNIOR, 1983).

Além da repressão violenta ao movimento camponês, o Governo Militar procura absorver as tensões sociais existentes no campo por meio da criação do Estatuto da Terra.31 Promulgado no imediato pós--golpe, ele é a expressão do reconhecimento governamental das tensões no campo e da necessidade da regulamentação das relações de trabalho a partir da definição de uma política de desenvolvimento agrícola. Tomemos o seguinte trecho da mensagem, que o fundamenta:

Não se contenta o projeto em ser uma lei de reforma agrária. Visa também à modernização da política agrícola do País tendo por isso mesmo objetivo mais amplo e ambicioso; é uma lei de Desenvolvimento Rural. Além da execução da reforma agrária, tem por objetivo promover o desenvolvimento rural através de medidas de política agrícola regulando e disciplinando as rela-ções jurídicas, sociais e econômicas concernentes à propriedade rural, seu domínio e uso. Busca dar organicidade a todo o sistema

31 Três anos depois, em 1967, o Governo procurará controlar o movimento sindical por meio da extensão dos serviços previdenciários ao campo. Sobre esta questão, discuti-remos adiante.

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rural do País, valorizando o trabalho e favorecendo ao traba-lhador o acesso à terra que cultiva. Daí a denominação do projeto que por constituir um verdadeiro Estatuto da Terra visa regular os diversos aspectos da relação do homem com a terra tratando-os de forma orgânica e global. (BRASIL, 1964, não paginado).

Os trabalhadores lutam por uma reforma agrária sob o controle dos camponeses e conseguem, em resposta à sua luta, uma reforma agrária burguesa, ou melhor, os trabalhadores lutam pela reforma agrária32 e re-cebem como prêmio de consolação uma lei de desenvolvimento agrícola cuja aplicação prevê sim mudanças na estrutura agrária vigente, mas mu-danças que só excepcionalmente favorecerão os camponeses. Ou seja, o Estatuto da Terra, do ponto de vista de que se lutava por uma reforma agrária ampla e massiva, uma reforma agrária camponesa, foi a expressão de uma derrota dos trabalhadores rurais, embora, como diz Palmeira (apud MINC, 1985, p. 21), “uma derrota que supôs uma muito signifi-cativa luta anterior”.33 Nessa mesma perspectiva, reflete Martins (1985, p. 113):

O Estatuto da Terra, no meu modo de ver, é basicamente uma proposta de munir o Estado de instrumentos que lhe permitam administrar os conflitos sociais no campo. O Estatuto assumiu essa função. Isso não quer dizer, evidentemente, que o Estatuto tenha uma eficácia unilateral, que ele só funcione do lado das intenções do governo. É evidente que nos casos de conflitos mais graves – e logo em 1965 já foi aplicado o Estatuto para

32 Uma reforma agrária sempre pressupõe uma alteração radical na estrutura de classes no campo, isto é: “o que está em jogo na reforma agrária é a passagem da propriedade da terra de uma classe social (latifundiária) para outra (camponesa)” (MINC, 1985, p. 17).

33 E acrescentamos: uma derrota que contraditoriamente dá ao desenvolvimento agrícola o rumo que ele tomará a partir de então. Isto é, o movimento dos trabalhadores rurais não conquistará a reforma agrária sonhada, mas funcionará como um dos mais fortes determinantes do processo de desenvolvimento agrícola que se tem a partir daí. O pró-prio fato de os latifundiários tornarem-se patrimonialistas é uma das consequências desse movimento. Ou seja, ante a possibilidade de terem de ceder aos trabalhadores os frutos da sua conquista, é muito grande a parcela de proprietários que preferirá desistir da pro-dução contentando-se com a renda da terra que passará a ser mais alta com a redução da oferta de terras.

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resolver um caso desse tipo – a pressão dos trabalhadores acaba levando o governo a aplicar os dispositivos ali contidos para promover desapropriações por interesse social, mas basica-mente, a finalidade do Estatuto é a de permitir o controle e a administração das lutas pela terra. [...] O problema não é pro-mover quando for o caso, a redistribuição de terra, mas evitar que o problema da terra constitua mediações políticas que en-volvam necessariamente uma redefinição do pacto político que sustenta o Estado.34

Embora menos do que se sonhava, o Estatuto da Terra representa, por parte do Estado e das classes dominantes, o reconhecimento do mo-vimento dos trabalhadores rurais. Esse reconhecimento significa, sobre-tudo, que, a partir de então, não dá mais para fazer de conta que as ten-sões sociais no campo são somente produto do desejo de agitadores: são a manifestação de uma classe que não concorda mais com determinadas formas de exploração e, mais do que isto, uma classe social com uma agenda que ameaça o projeto de sociedade hegemônico, uma vez que a sua realização passa, necessariamente, pela execução de uma reforma agrária camponesa.

Se, do ponto de vista político, o Estatuto da Terra representa o reconhecimento do campesinato, do ponto de vista legal, constitui um conjunto de leis de regulamentação da propriedade da terra e das rela-ções de trabalho no campo. Porém, não é suficiente a existência de uma lei que regulamente as relações sociais no campo, é necessário que os camponeses tenham força para exigir o seu cumprimento. E o que resta do golpe militar é, de certo modo, o quase aniquilamento das organiza-ções camponesas. Não é, porém, um paradoxo. De fato, o que o Governo concede de um lado, retira do outro. Ou popularmente: dá com uma mão e tira com a outra. E isso, evidentemente, sem falarmos do decla-

34 Ainda segundo Martins (1981, p. 92-102), na medida em que o Estatuto da Terra dá ênfase à criação de empresas rurais, condenando tanto o minifúndio quanto o latifúndio, adota a “modernização” como princípio definidor da Reforma Agrária. Viabilizando a empresa capitalista, o Estatuto penaliza mais o pequeno agricultor do que o latifundiário e tem, de quebra, a vantagem de controlar os conflitos com base no dispositivo da desa-propriação em áreas de tensão social.

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rado favorecimento às classes dominantes rurais por meio dos pro-gramas governamentais pró modernização do campo implantados, so-bretudo, a partir de 1970.35 É verdade que, nos estados da federação onde a organização camponesa estava mais enraizada, como no caso da zona da mata pernambucana (SIGAUD, 1979), o movimento é logo retomado e ressurge sob a bandeira do cumprimento da legislação tra-balhista. Mas, em geral, e particularmente no caso do Ceará, um movi-mento mais generalizado pelo cumprimento dos dispositivos do Estatuto só terá espaço a partir dos fins da década de 1970 quando, então, a luta pelo seu cumprimento quase sempre provocará o surgimento de litígios entre moradores e proprietários.

Chegamos, pois, outra vez, à questão das relações tradicionais de trabalho. A cultura do algodão, a concentração de terras, o sistema da morada e o clientelismo são as bases fundamentais do poder dos coro-néis ou da dominação tradicional no Ceará.36 A exclusão de qualquer um desses elementos do sistema redunda na sua transformação. Se nem sempre capazes de fundamentar cientificamente sua dominação, os co-ronéis pressentem que uma alteração nos termos do sistema pode retirá--los do poder (GARCIA JÚNIOR, 1983). Nesse sentido, embora o Estatuto da Terra não represente a “grande” vitória dos trabalhadores, no seu propósito de dispositivo de modernização da produção agrícola, representa, de certo modo, a derrota de um setor da classe dominante rural, além de representar a falência de uma forma de fazer política e exercer o poder e a dominação. Ou seja, proposta de modernização da produção rural via regulamentação das relações de trabalho, o Estatuto atinge profundamente as bases do poder tradicional. Não atinge frontal-mente, é certo, mas, no seu convite à modernização, deixa abertos os flancos de um sistema de dominação ainda em diálogo próximo com o escravismo colonial. Eis, portanto, talvez a principal razão da resis-

35 Dentre esses programas, convém destacar, o PIN (Programa de Integração Nacional), Finor (Fundo de Investimentos do Nordeste), Fiset (Fundo de Investimentos Setoriais) e PoloNordeste.

36 Para um estudo sobre o coronelismo ou a privatização do poder público, vide Leal (1978), Dantas (1986) e Barreira (1987).

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tência dos representantes do latifúndio ao cumprimento dos disposi-tivos do Estatuto da Terra.

A dinâmica da sindicalização rural

Apesar da resistência dos proprietários, o processo de sindicali-zação prossegue, tendo sido fundados, entre 1964 e 1973, em todo o estado, 103 sindicatos, distribuídos por ano do seguinte modo (PARENTE, 1985, p. 48):

1964 – 11965 – 71966 – 131967 – 61968 – 131969 – 91970 – 111971 – 191972 – 191973 – 5

O que poderia significar a intensificação do processo de sindica-lização num momento de evidente refluxo dos movimentos populares?

A primeira explicação é que esses sindicatos estariam organizan-do-se absorvidos pelos esquemas tradicionais de dominação, e, desse modo, o aspecto da organização e representação de classe estaria sendo sobrepujado pelo aspecto assistencial. Nessa situação até os ônus da do-minação tradicional, no que respeita à sua responsabilidade com a assis-tência aos seus trabalhadores, seriam transferidos ao sindicato. De tal forma que, em vez de representar uma ruptura nas formas de exercício da dominação tradicional, o sindicato até ajudaria na sua reprodução.

O raciocínio acima parece evidente, mas o problema que o sus-cita não é simples, inclusive, caso ele se sustentasse, não se justificaria a apreensão dos fazendeiros. De fato, o sindicato não tem espaço nas relações tradicionais de poder, pressupõe sempre a sua transformação:

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é um mediador entre os trabalhadores rurais e a sociedade mais ampla, o Estado ocupando desse modo um espaço que antes era exclusivo dos patrões (PALMEIRA, 1985, p. 48).

É certo, de outro lado, que em muitos casos a apreensão dá lugar à barganha, ou seja, se a introdução de novos mediadores nas relações de trabalho no campo é um pressuposto do processo de modernização, resta aos proprietários (que compreendem isto) promover uma acomo-dação que se reverta em seu proveito, senão econômico, ao menos po-lítico. É desse modo que se explica o interesse de muitos patrões em facilitar a fundação de STRs.37 Participar do processo de sindicalização dos trabalhadores rurais, inclusive, muitas vezes, tomando a iniciativa da criação de sindicatos, é a forma que muitos encontram para perma-necer com poder sobre os trabalhadores e usufruir eleitoralmente dos frutos dessa mediação.38 Mas é importante lembrar que essa compre-ensão dos patrões é enormemente facilitada a partir da entrada em cena do Funrural e do Prorural, quando o Estado, também na perspectiva de controlar o movimento camponês, transfere ao sindicato as possibili-dades de prestação de serviços médicos e dentários.

Esse, pois, é um dos movimentos do processo de sindicalização rural pós-1964. Mas não pensemos que, se em alguns municípios a visão dos proprietários tinha esse alcance, tal perspectiva era generalizada. Uma coisa é reconhecer que, em alguns casos, os patrões se “aliam” aos trabalhadores, e outra é imputar aos patrões, à Igreja ou à Fetraece, a responsabilidade da fundação de 103 STRs no Ceará no período 1964-1973. Ao contrário, enquanto alguns proprietários procuravam usufruir do movimento da sindicalização, outros permaneciam firmes no seu pro-pósito de não aceitar a organização dos trabalhadores rurais e não apenas não aceitar, como fazer o possível para evitá-la ou retardá-la. No final das contas, o grande número de sindicatos fundados no período é pro-

37 É necessário esclarecer que os patrões participarão do processo de sindicalização princi-palmente após a instituição do Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural, Funrural, e do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural, Prorural.

38 O STR de Ubajara, Serra de Ibiapaba, é um dos tantos exemplos de sindicatos fundados por patrões.

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duto do empenho de todas essas forças: Igreja, Fetraece e políticos locais ligados às classes dominantes rurais. Muitas vezes esses grupos, com interesses bastante diferenciados, uniram-se no processo de fundação de certos sindicatos, como é o caso do STR de Tauá, onde a Igreja aceitou a colaboração de políticos locais na fundação, embora logo em seguida o STR tenha acionado na Justiça o parente de um desses políticos.

Estamos, então, diante de um processo de rearticulação do movi-mento sindical que, ao contrário do processo existente antes de 1964, reúne diversas forças sociais. Não podemos simplificar a compreensão do período afirmando que o movimento de rearticulação se dava em duas ou três perspectivas, sendo, por exemplo, uma a da Igreja, outra a da Fetraece e, a terceira, a dos políticos locais interessados em usufruir eleitoralmente do processo. A situação, de fato, é mais complicada. A Igreja, saída quase impunemente do golpe de 1964, organizará, em geral, o processo de sindicalização, mas não o fará com exclusividade até o movimento mais amplo se rearticular nos fins dos anos 1970. Dividirá o seu espaço com lideranças remanescentes do golpe de 1964, muitas delas ligadas à Fetraece e, a partir da promulgação do Funrural, em 1967, disputará também com políticos locais, representantes das classes dominantes, a representação do movimento. Essa conjunção e fragmentação de forças e direções vai dar num processo multifacetado de sindicalização rural. Processo este que se encaminhará sob a me-diação de alguma dessas forças particularmente ou terá a conjugação circunstancial de todas elas.

Apesar desse conjunto de formas distintas de encaminhamento do processo de sindicalização, uma coisa é certa: depois dos sindicatos, as formas de dominação não serão mais as mesmas. Fundados pela Igreja, pela Fetraece, pelos patrões, ou por todas essas forças unidas, os sindicatos terão a função de regular as relações de trabalho. E, para além do caráter da sua atuação conjuntural, representam sempre a rela-tivização do poder antes absoluto dos patrões. É por isso que Palmeira (1985, p. 48) chama a atenção:

O sindicato, por menos atuante que seja, é um corpo estranho que se introduz numa relação, cuja exclusividade é parte de sua

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própria natureza. [...] A possibilidade de um grande fazendeiro ser chamado a uma Junta de Conciliação ou à Justiça Civil para pagar “direitos” devidos a algum trabalhador ilegitima (ou tra-balha no sentido de ilegitimação) o poder daquele fazendeiro e, por extensão, de todos os grandes proprietários que exercem seu poder dentro dos mesmos moldes.

Além da continuação do processo de criação de sindicatos e do fim da intervenção do Ministério do Trabalho na Fetraece, com as elei-ções em 1966, não houve mais nenhum fato que tenha alterado os rumos e o ritmo da retomada do movimento.

A partir de 1967 e 1968, elementos mais dinâmicos passam a compor esse processo de reconstrução. Em abril de 1967, já nos prepa-rativos da comemoração do Dia do Trabalho, a Fetraece encaminha ofício ao Delegado Regional do Trabalho com o seguinte teor:

A Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Ceará vem à presença de V. Sa. comunicar que, em virtude da situação ora reinante nos meios campesinos em relação a injustiças e perse-guições aos trabalhadores rurais, não mais participará dos fes-tejos do grande dia do Trabalho – 1º de Maio. [...] Não vemos de maneira nenhuma justificativa para a participação desta Federação nos festejos desta data magna se só existe no meio rural fome, miséria e esquecimento das autoridades. [...] Não podemos participar de festas, se o trabalhador rural vive enga-nado com palavras e muitas frases. Não podemos participar dos festejos do dia do Trabalho, porque nossa intenção não é conti-nuar a enganar o trabalhador campesino. Agora, quando chegar a época da justiça, liberdade e fartura, festejaremos esse dia com grande júbilo, com grande satisfação (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA, 1985, p. 21).

Poucos dias depois, a Fetraece enviou ofício à Contag falando sobre a resposta do Delegado do Trabalho ao seu ofício-denúncia:

De posse do ofício em pauta, o Delegado do Trabalho man-dou-me chamar para esclarecer o porquê daquele ofício.

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Esclareci para o mesmo que aquilo que estava escrito era so-mente a verdade, dizendo-me ele que sabia ser verdade, mas que não podia ser escrito e sim, somente dito, inclusive ameaçou cassar o mandato de toda a Diretoria (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA, 1975, p. 22).

Esse episódio indica como era limitado o espaço aberto à reorga-nização do movimento camponês e nos dá uma ideia do tipo de re-pressão exercida sobre o movimento no imediato pós-golpe. Mas, em geral, é sob o signo dessa repressão do Governo de um lado, e dos proprietários, de outro, que o movimento vai-se rearticulando para, no fim da década de 1970, retomar as grandes mobilizações.

A Igreja: a experiência de Aratuba

A Igreja prossegue dirigindo o processo de sindicalização no Ceará.39 Mas, a partir de 1967, já é possível perceber algumas mudanças na sua orientação expressas nas práticas de alguns setores. Eviden-temente, os setores da Igreja que apoiaram o golpe militar, acreditando que este faria a revolução antes que o povo a fizesse, continuava ainda a crer no seu sucesso no que diz respeito à promoção das transforma-ções que as relações sociais no campo reclamavam. De fato, somente com a pressão dos setores mais progressistas é que a Igreja, como insti-tuição, questionará sua identificação com o Estado. Enquanto, para os militares, a reforma agrária (tal como eles a encaminharam) era uma questão de segurança nacional, para os bispos, estava em jogo a viabi-lização de um programa de promoção humana cuja execução, no final

39 Em virtude da sua participação no movimento golpista de 1964, a Igreja não sofrerá a repressão que atingirá frontalmente o PCB, e isso garantirá a continuidade do processo de sindicalização rural. Vejamos o que João Felismino, líder sindical, nos diz sobre esse processo no Ceará: “Não, os sindicatos da região do Cariri não sofreram intervenção [...] por terem sido fundados na orientação da Fundação Padre Ibiapina. Vejam bem: até determinado tempo, o pessoal chamava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Crato, o Sindicato do Bispo que funcionava numa dependência da Fundação Padre Ibiapina” (OCHOA, 1989, p. 118-119).

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das contas, também favoreceria a estabilidade social e política. Se a Igreja só se divorciará do Estado formalmente na Assembleia da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB de 1980, já nos primeiros anos da década anterior, “começa a se definir, na orientação de diversos bispos, uma pastoral de convivência com os movimentos sociais” e, mesmo antes, no final dos anos 1960, “os bispos das áreas mais tensas procuram canalizar as tensões e conflitos dos trabalhadores rurais de suas dioceses para a exigência de aplicação da lei, o Estatuto da Terra dos militares” (MARTINS, 1989b, p. 28). Como, para os mili-tares, o Estatuto só deveria ser utilizado como medida cautelar em casos de conflitos graves, começa a se gerar um desentendimento com a Igreja, que considera “que o Estatuto deveria ser a regra geral e uni-versal, que condenasse o latifúndio em seu conjunto e viabilizasse a reforma social no campo” (idem, ibidem).

Alguns padres e bispos, no desenvolvimento das suas práticas eclesiais em suas paróquias ou dioceses, tomam a iniciativa de desen-volver um trabalho de organização das populações pobres do campo em comunidades.40 É produto dessas iniciativas isoladas, aqui no Ceará, o caso da paróquia de Aratuba e da Diocese de Crateús.

Em Aratuba, desde os fins de 1967, o vigário nomeado da Paróquia, José Maria Cavalcante Costa, inicia um trabalho de organi-zação das populações pobres do município. No intuito de compre-ender as condições de vida e trabalho desses grupos, o Pe. José Maria e, posteriormente o Pe. Moacir e a Irmã Maria Amélia, passam a con-viver mais estreitamente com os trabalhadores rurais.41 Tornam-se comuns, a partir de então, as peregrinações de sítio em sítio. Vendo, ouvindo e discutindo com os trabalhadores os seus problemas, à luz dos ensinamentos bíblicos, esses religiosos passam a incentivar a reu-

40 Esse trabalho que alguns religiosos, isoladamente, passam a desenvolver são, de certa forma, a continuação ou a retomada do trabalho de educação e organização de bases iniciado pela Igreja e outros grupos políticos, a partir de 1961 (PAIVA, 1973).

41 O município de Aratuba fica situado na microrregião da Serra de Baturité. As infor-mações, trazidas aqui sobre o movimento de organização dos trabalhadores rurais de Aratuba em comunidades eclesiais de base, foram obtidas por meio de entrevista com Pedro Jorge F. Lima, agrônomo, presidente do Esplar, em março de 1990.

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nião dos trabalhadores em comunidades, e, fruto desse trabalho, surgem as comunidades eclesiais do Sítio Fernandes e do Sítio Paraíso. A essa altura, a dedicação aos pobres, antes inusitada, começa a ser percebida pelas classes dominantes locais, que passam a reclamar a ausência dos padres da sede da Paróquia e, embora estes argumen-tassem que os limites da paróquia transcendiam os limites da cidade, os grupos dominantes passam a desconfiar do teor do trabalho desen-volvido pelos religiosos.

Num primeiro momento, as reuniões são realizadas, sob a coor-denação dos padres, nas próprias comunidades, mas à medida que o número delas vai crescendo, nos primeiros anos da década de 1970, as reuniões passam a ser dominicais e na própria sede da Paróquia. Nessas reuniões, eram discutidos os mais diversos problemas das comuni-dades, mas era fundamentalmente em torno de questões relativas à produção e à divisão do produto do trabalho que as discussões giravam. Até então, não havia sido fundado ainda o STR de Aratuba, pois a ten-tativa da Fetraece,42 em 1969, com a campanha da criação de sindi-catos em todos os municípios onde eles não existiam, fora frustrada. Se as classes dominantes locais não tinham ainda, publicamente, se pro-nunciado contra o trabalho de organização de comunidades desenvol-vido pelos padres, contra a organização do sindicato a reação será ime-diata. Ameaçados de expulsão, os trabalhadores rurais adiam o movimento pró-sindicalização, mas aí ocorre um fato curioso, as mu-lheres, considerando que contra elas os patrões nada podiam fazer, tomam a frente do processo e organizam a fundação do STR, que ocor-rerá no ano seguinte, 1970, tendo na sua diretoria trabalhadores que participavam das comunidades eclesiais organizadas pelos padres.

É importante lembrar que, desde 1967, com a criação do Funrural,43 muitos sindicatos são fundados para servirem de rede ins-

42 Após a conquista da Contag pelas oposições, lideradas por José Francisco, nas eleições de 1967, foi reatualizada a diretriz de fundar STRs onde estes ainda não existiam com o intuito de ampliar os espaços de organização por meio dos quais se encaminharia a luta, dentro dos parâmetros legais - ETR e ET - pelos “direitos” (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA, 1985).

43 “Em 28 de fevereiro de 1967 surge o Decreto-Lei 276, regulamentado em outubro do

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Estudos da Pós-Graduação64

trumental para funcionamento dos centros de serviços, neles instalan-do-se ambulatórios, gabinetes médicos e mesmo transformando-os em pequenos hospitais (BESERRA 1989, p. 104). Esse caso da fundação do STR de Aratuba, como de muitos outros municípios, revela-nos que, a despeito do assistencialismo dominante, alguns sindicatos ainda es-tavam sendo fundados, salvaguardando o seu papel fundamental de órgão representativo de classe.44

O trabalho da Igreja de Aratuba junto às comunidades pros-segue. Agora, além dos religiosos que o iniciaram, técnicos da Associação Nordestina de Crédito e Assistência (Ancar), que desen-volviam trabalhos na região, juntam-se à organização. Do aprendizado das discussões, os trabalhadores concluem que a estratégia para garantir um preço razoável da produção é o controle da comercialização do pro-duto. A partir daí, e com a colaboração estreita da Paróquia e dos téc-nicos da Ancar, em 1969, é formada uma chapa para concorrer à dire-toria da Cooperativa de Guaramiranga.45

Vitoriosa, a nova diretoria, basicamente composta de médios e pequenos proprietários, desloca o trabalho de assistência dos grandes para os pequenos. Assistida financeiramente por convênios (firmados pela Paróquia de Aratuba) com instituições internacionais (como a Oxford Committee for Famine Relief, Oxfam, etc.), em 1971, a coope-rativa adquire um caminhão Mercedes Benz que, a partir daí, recolherá, de comunidade em comunidade, as frutas e verduras para comercializar diretamente em Fortaleza. À medida que passa a ferir diretamente os interesses dos intermediários, que, numa boa parte dos casos, são os

mesmo ano pelo Decreto 61.554. Este decreto deu vida ao FUNRURAL, que centrou sua atenção em celebrar convênios com hospitais visando a oferecer internação e assistência médica, principalmente permitindo cirurgia geral e obstétrica, em condições de total gra-tuidade; alcançou assalariados permanentes e safristas, arrendatários, parceiros e pro-prietários, inclusive proprietários com até quatro empregados” (BESERRA, 1989, p. 104).

44 É necessário lembrar que, após a retomada da Contag pela oposição, em 1968, é estru-turado um programa de expansão do movimento sindical, então, muitos sindicatos rurais, sobretudo naquelas cidades onde não existiam, são fundados a partir dessa iniciativa da Confederação e das Federações estaduais de trabalhadores rurais.

45 A Cooperativa de Guaramiranga, cidade vizinha a Aratuba, organizava o comércio das culturas produzidas na região.

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grandes proprietários da região, denúncias sobre o trabalho da coopera-tiva chegam ao presidente da Ancar, que promove a substituição dos técnicos envolvidos. Por outro lado, a própria diretoria eleita une-se a representantes do poder local na eleição de 1972, e, com essa aliança estabelecida, ao contrário do que esperavam, os pequenos e médios pro-prietários perdem outra vez seu espaço na cooperativa, e tudo volta ao que existia anteriormente. Mas, mesmo sem a cooperativa, sob a asses-soria do Pe. Moacir, as comunidades continuam se organizando com recursos de instituições internacionais.

A partir dos primeiros anos de 1970, Pe. Moacir passa a organizar comunidades também na região vizinha do Sertão Central, de modo que os conflitos desencadeados nessa região, a partir dos fins de 1979, têm também a sua participação assim como a colaboração de outros reli-giosos da Diocese de Quixadá. Pedro Jorge F. Lima, agrônomo, presi-dente do Esplar, conheceu de perto e também participou do movimento desenvolvido pela Paróquia de Aratuba:

[...] Até 1978, o trabalho gravitava todo em torno dos grupos tocados pela Igreja. Mas a Paróquia de Aratuba compre-endia parte do município de Quixadá, Itapiúna, Canindé, Capistrano... Era uma ampla área! Aratuba passou a polarizar e chegou a ter cento e tantos grupos comunitários, que vinham, às vezes, de quase 100 quilômetros de distância para se reunir lá...46 (BESERRA, 1990b).

A Igreja: a experiência de Crateús

Na Diocese de Crateús, também ocorreu algo semelhante ao que aconteceu em Aratuba, mas sob a orientação do bispo D. Fragoso. Recontaremos, nos parágrafos seguintes, a partir do depoimento de Manuel Marques da Costa, ex-presidente do STR de Tauá, a história do movimento de sindicalização orientado pela Igreja naquela Diocese.

46 Trecho de entrevista concedida à autora em 12 de março de 1990 para projeto de pes-quisa Esplar.

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Ele conta que, em 1964, depois da “revolução”, foi quando se começou a falar em sindicato. Havia controvérsias sobre o seu signifi-cado na vida dos trabalhadores, uns diziam “que era bom e outros di-ziam que era ruim. E o grande, o proprietário latifundiário, dizia ao morador que não se associasse, que aquilo era o comunismo; que a po-lícia ia vir meter o chicote em todo mundo” (COSTA, 1984a, p. 12). Apesar disto, conta ele, “a gente foi se animando pra criar sindicato na região e conseguiu” (COSTA, 1984a, p. 12).

O trabalho de sindicalização rural na região foi iniciado por D. Fragoso, primeiro bispo de Crateús. Manuel Marques da Costa conta que com o bispo veio a sua equipe, que trabalhava no sentido da “cons-cientização nas bases: nas casas, nas fábricas de farinha, sempre onde tinha gente. Principalmente depois dos sindicatos fundados eles deram muita contribuição nessa conscientização do homem do campo” (COSTA, 1984a, p. 12).

Sob o comando de D. Fragoso, foram criadas várias Comunidades Eclesiais de Base na região e era por meio delas que as comunidades mais isoladas tinham, pela primeira vez, um contato direto com pregadores da Igreja católica. Diz ele “o animador pregava o Evangelho, a gente criou isto praqueles lugar que não tinha missa, todos os domingos havia uma celebração da Palavra. Aonde se rezava, se cantava e pregava o Evangelho, um evangelho bem empregado à vida do povo” (COSTA, 1984a, p. 18).

Assim, por meio do Evangelho, os participantes das Comunidades Eclesiais de Base iam aprendendo sobre a história da dominação no sertão nordestino. Comparavam as opressões das passagens da Bíblia com as das suas vidas cotidianas. Comparavam “o sofrimento daquele povo com o sofrimento do povo de hoje e a maneira de como se libertarem. A gente via como o caminho mais certo e mostrava a eles e dizia a eles com muito entusiasmo e coragem: o caminho mais certo pra vocês se libertarem desta escravidão é se organizarem nos seus sindicatos” (COSTA, 1984a, p. 18).

Prossegue o ex-presidente do sindicato de Tauá sua narrativa:

E isto a gente fazia em todos os lugares do município e na re-gião da Diocese de Crateús. Todos os dias a gente fazia este tra-balho, quer dizer, em todo canto tinha alguém fazendo o trabalho todo dia. [...] A equipe paroquial se reunia uma vez por mês pra

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avaliar o trabalho e arrumar outros métodos de trabalho para o próximo mês. E, de 3 em 3 meses, a gente reunia o Conselho da região, em Crateús, pra avaliar, também, o que tinha sido feito ou o que a gente tinha errado naquele trabalho e o que se devia melhorar a partir dali. E aquele Conselho, que eu fiz parte dele, levava até as Comunidades Eclesiais de Base a mesma infor-mação, e mostrava e avaliava junto com eles, e mostrava que erros todo mundo tem; e a gente via os pontos fracos da gente e procurava assim melhorar. E isto foi enriquecendo, foi aumen-tando o grupo, tanto de animadores como o crédito da gente pra conversar lá nas bodegas, nos bar, nas festinha. Aonde tinha um de nós conversando todo mundo interessava a ouvir. Um criti-cava, um achava que tava errado, mas outro achava que tava certo e a gente nunca tememos as críticas e nem temíamos dizer a verdade em qualquer canto. E foi assim que foi feito o trabalho da Igreja, em todos esses anos. [...] Esse trabalho contribuiu muito para o povo se associar. Mas eu acho que o que mais au-mentou mesmo, foi a tal de assistência médica, que nem existe, mas o povo ainda tem a ilusão que ela existe nos sindicatos. Eu acho que de qualquer forma teria se associado muita gente. Mas a dificuldade era maior de se lutar como o povo hoje se não fosse essa conscientização do pessoal nas bases. E só a Igreja, como eu já disse, tinha condição de fazer naquela época. Porque hoje não: tem os delegados sindicais, os sindicatos têm mais recursos pra fazer o trabalho... mas naquela época só quem tinha recurso e condições mesmo era a Igreja (COSTA, 1984a, p. 18-19). [...] Depois da mobilização que nós fizemos, o Deputado Júlio Rego, em Tauá, aproveitou pra levar uma pessoa da confiança dele, eu acho que nem só com o objetivo de politicar lá dentro, mas com o interesse de levar um gabinete médico e um gabinete dentário e entregar a um cunhado dele, que é dentista. E criar um hospital, que ele só (conseguia) se houvesse um sindicato pra fazer um convênio com o Funrural. [...] Foi daí o grande interesse de Júlio Rego de fundar o sindicato. Não por que ele tivesse no lado do trabalhador querendo a reforma agrária, acei-tando que o trabalhador fosse viver muito mais livre, não, o con-trário, ele pensou que o hospital seria um instrumento político pra ele, e o sindicato, também, iria ser, além de tudo, gerar em-prego pra eles que tavam formados sem condições de trabalhar, porque não tinha aonde... (COSTA, 1984a, p. 13).

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[...] Embora tenha sido uma boa, porque talvez sem a influência de um político desse ninguém quisesse presidir o sindicato. Quer dizer, aí a gente ia ter muita dificuldade pra arranjar uma dire-toria. Do outro lado, de reconhecer no Ministério do Trabalho, se até ele, como deputado, fosse contra a gente naquela época. Só que depois de fundado o sindicato, a primeira questão que houve foi com o pai do mesmo Júlio Rego, e ele começou a ficar contra o presidente. Só que o sindicato já era reconhecido e não teve problema, além do trabalhador ganhar a questão, a gente continua com o sindicato, e sem querer mais a influência política lá dentro. Embora ele sempre penetre, sempre apareça, mas a gente tá sempre tentando tirar (COSTA, 1984a, p. 14).

No depoimento acima, podemos observar a dinâmica do reconhe-cimento do trabalhador rural; de como, com a ampliação dos seus hori-zontes por meio da participação nas Comunidades Eclesiais de Base, vai-se apropriando de uma cidadania que antes se apresentava de forma apenas abstrata ou não se apresentava de modo algum. As tentativas de apropriação dos sindicatos pelas forças políticas locais também mos-tram que os grupos dominantes tinham grande dificuldade em aceitar o reconhecimento político desse grupo social, acreditando sempre na pos-sibilidade de voltar, de algum modo, a manipulá-los, tentando conven-cê-los de que permaneciam dependentes deles quando, de fato, no caso narrado acima, era o oposto que ocorria.

Os conflitos de terra e a reforma agrária

Ainda nos fins da década de 1960, no ano de 1968, na Fazenda Japuara, município de Canindé, inicia o primeiro grande conflito de terras no Ceará. O móvel do conflito é a venda da fazenda, além do descontentamento e a não-aceitação dos moradores das regras impostas pelo novo dono. Tomemos de Barreira (1987, p. 91-106) um resumo da história do conflito:

A origem do conflito de Canindé está na venda da propriedade, em 1968, por um dos herdeiros, a um comerciante proprietá-rios de outras duas fazendas no município. O primeiro dono,

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contudo, ainda em vida, entregara as terras para serem explo-radas por um parente, que ali realizou várias benfeitorias. Posta a propriedade à venda, o herdeiro assumiu o compromisso de dar prioridade ao antigo ocupante, porém, diante de proposta financeira melhor, não o cumpriu e efetivou a transação com o outro pretendente. O ocupante deu entrada, na Justiça, a uma ação preferencial de compra e outra, cominatória, exigindo in-denização pelas benfeitorias. O novo proprietário, por sua vez, solicitou imissão de posse, ganhando a questão. Em 1969 foi expedido o respectivo mandato não só contra o antigo ocupante como, também, contra os moradores- parceiros.

A ação, portanto, deixa de restringir-se ao âmbito de proprietários e passa a atingir 59 trabalhadores rurais e suas famílias. Os mora-dores receberam, no despacho judicial, 24 horas para deixarem a fazenda. Nesse momento, decidem “procurar seus direitos”.

Em contato com o Instituto de Reforma Agrária (IBRA) e com a Federação dos Trabalhadores Rurais do Ceará (FETRAECE), conseguem desta a designação de um advogado para acompanhar a causa. A primeira medida judicial tomada foi um pedido de em-bargo de terceiro prejudicado, com base no parágrafo 5. do art. 92 do Estatuto da Terra, que diz: “Os contratos de arrendatários e par-ceiros serão respeitados pelo comprador, ficando este subjugado aos direitos e obrigações que foram assumidos pelo alienante.”

O Tribunal de Justiça julgou favoravelmente aos moradores-par-ceiros, sustando a ação específica de despejo. [...] No relato dos trabalhadores, os desentendimentos com o novo proprietário acon-teceram desde o primeiro contato, que foi hostil e provocador. De imediato, a contenda girou em torno da proibição de criar e da repartição do algodão produzido. Pagava-se, ao antigo dono, 30% da produção. O novo exigia 50%. Os moradores consideraram in-viável essa “divisão ao meio” O proprietário, a partir da recusa dos moradores, começou a falar em expulsá-los.

Tentou pela via legal. Não conseguiu. Apelou, então, para a força. Esse processo de explicitar a incompatibilidade em todos os planos foi assim descrito por um morador: “à medida que tentava nos ex-pulsar e não conseguia aumentava o seu ódio” (O POVO, 4.2.71).

O ano de 1970 correu, contudo, em relativa tranqüilidade. Por dois motivos basicamente. Foi um ano de seca - portanto, ine-

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xistiu a renda - e foi, um ano eleitoral. O advogado do proprie-tário candidatou-se a Deputado Estadual, recebendo no muni-cípio a maior parcela de seus votos.

Passadas as eleições e com o prenúncio de “bom inverno” para 1971, acirrou-se novamente a questão [...] Interessado no des-pejo dos moradores, o proprietário contratou pessoas para ar-rombarem o açude e destelharem as casas. Houve reação, con-fronto e a morte de um dos agressores, um carreteiro, abatido com um tiro de espingarda quando se encontrava em cima de uma das casas, alheio aos pedidos para suspender o serviço. [...] O proprietário, em depoimento posterior, admitiu ter contratado 30 pessoas, “mas somente para arrombar o açude”. Justificou-se afirmando que as constantes pescarias “baldeavam a água e tra-ziam vários aborrecimentos (O POVO, 2.2.71). [...] No segundo momento, o conflito explodiu entre moradores e a polícia local. Morreram um trabalhador rural, um pistoleiro, um soldado da polícia e um agente da Delegacia de Ordem Política e Social – DOPS [...] A Federação dos Trabalhadores Rurais do Ceará, logo depois do conflito, encaminhou pedido de desapropriação ao presidente do INCRA. O pedido fundamentava-se na exis-tência do próprio conflito, na irregularidade da venda da fazenda e, principalmente, no fato de 80% das benfeitorias ali existentes pertenciam aos moradores-parceiros. Um mês e dois dias após o término dos confrontos explícitos, o Presidente da República assinou decreto desapropriando 3.645 hectares em benefício de 39 famílias, com lotes que variam de 26 a 42 hectares. O de-creto, um efeito obtido, até certo ponto, com inusitada rapidez, foi considerado “medida acauteladora”. Isso, na essência, traduz o temor de que o problema de Canindé se estendesse a outras propriedades também em vias de conflito.

Eis, então, em linhas gerais, os desdobramentos do conflito de Japuara. Ante a expropriação iminente, os moradores reagem acionando as leis (no caso o Estatuto da Terra) que os possibilita permanecerem na terra. Mas é necessário trazer aqui mais alguns dados relativos ao con-flito (BARREIRA, idem).

Os trabalhadores conseguem evitar a expropriação iminente porque um dos moradores, depois líder do conflito, Pio Nogueira, par-

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ticipante do movimento sindical desde os idos de 1962, toma a inicia-tiva e convence os demais a procurar “os direitos”. Desse modo, o con-flito chega à Fetraece, e por seu intermédio, à Contag, e daí à cena política. Essa repercussão e o acirramento das diferenças promoverá a rápida resolução do conflito. Além disso, a presença cotidiana nos jor-nais de circulação estadual, também ajudará os trabalhadores porque formará a opinião pública no sentido de requisitar a adoção das leis existentes para o termo de questões relativas à terra, contra as leis par-ticulares dos patrões, que só promovem o acirramento dos ânimos e podem ter, como consequência, desfechos sangrentos.

A despeito da sua grande repercussão, o caso de Japuara é a velha exceção que confirma a regra: o tempo era de repressão. Isso evidente-mente não significa que os conflitos deixam de existir, mesmo porque, a partir de 1970, com a concessão de incentivos fiscais para estimular o aumento do número de empresas agropecuárias, o Estado somente ins-tigará um processo já em curso de expropriação de pequenos produ-tores. Consequentemente estimulará, com isso, o recrudescimento dos conflitos, mas, ao contrário de Japuara, raros serão os casos onde os trabalhadores sairão vitoriosos do confronto.

Em estudo sobre o período, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (1975, p. 25) demonstra, a partir dos exem-plos que tomaremos a seguir, como os anos 1970-1972 são marcados pelo recrudescimento dos conflitos de terra:

Agosto de 1970 – prisão de João Sales Pinheiro, presidente do STR de Assaré e de Nabor Bitu, assessor da Fundação Pe. Ibiapina, quando realizavam trabalho de assistência e orien-tação sindical.47 Outubro de 1970 – Em Itapajé (Fazenda Quixadá), 16 trabalha-dores foram impedidos de plantar por terem se tornado sócios do sindicato.

47 Chamamos a atenção para essa prisão do assessor da Fundação Pe. Ibiapina para escla-recer que, se a Igreja é poupada num primeiro momento, a repressão do Estado também irá atingi-la quando do recrudescimento das tensões e conflitos e do seu posicionamento em favor das causas populares.

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Outubro de 1970 – Proprietário da Fazenda Barreiro, município de Canindé, destrói, junto com dois capangas, lavoura de trabalhadores.Dezembro de 1970 – Trabalhadores, na terra há mais de 20 anos, são ameaçados de despejo nos municípios de Bomsucesso e Estiva.Novembro de 1971 – Trabalhador rural é assassinado em Jucás.Dezembro de 1971 – Conflito entre trabalhadores e jagunços no Sítio São Felipe, município de Sobral.Abril de 1972 – Presos dirigentes sindicais de Quixadá, Quixeramobim e Senador Pompeu. Julho de 1972 – Espancamento de trabalhadores em Trairi e perse-guições em Boa Viagem.Outubro de 1972 – Proprietário é assassinado por trabalhador em Ipueiras.

No geral, são denunciadas, no período, ações de: 1) despejos vio-lentos; 2) destruição de lavouras de posseiros e parceiros; 3) interfe-rência de autoridade policial nas relações jurídicas entre trabalhadores proprietários e 4) prisões de dirigentes e do assessor jurídico da Fetraece, Dr. Lindolfo Cordeiro.

Nesse período, a repressão ao movimento é coroada pela Intervenção do Ministério do Trabalho na Fetraece. Decretada em ja-neiro de 1973, a intervenção dura até novembro de 1974, quando é eleita nova diretoria. Os conflitos continuam surgindo, e o mesmo do-cumento (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA, 1985) traz a seguinte relação de ocorrências re-gistradas até 1974, um ano antes da sua elaboração:

Junho de 1973 – A filha de um dos moradores do Sítio São Felipe informa que os conflitos entre jagunços e trabalhadores resultaram na morte daqueles e na prisão de 3 moradores que foram condenados a 18, 12 e 7 anos de prisão.Janeiro de 1974 – 8 famílias são expulsas da localidade de Água Preta, município de Sta. Quitéria. Ameaças e perseguições a tra-balhadores no município de Independência.Maio de 1974 – Conflitos entre proprietários e trabalhadores em Mombaça. Açude Público beneficiando apenas grandes proprie-tários em Campos Sales.

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Maio de 1974 – Trabalhador rural preso há 2 anos denuncia maus tratos na prisão, no município de Aiuaba.Outubro de 1974 – 107 famílias de posseiros atingidas por atos de grilagem na Serra do Araripe, município de Jardim.

Observamos, pois, ao longo dos quinze primeiros anos do Governo Militar, que as iniciativas de reorganização do movimento camponês terão sempre como limite a forte repressão do Estado, acio-nada, via intervenção do Ministério do Trabalho, sempre que a organi-zação chega a certo nível ou que as lutas ameaçam estender-se (PALMEIRA, 1983, p. 1).48 De outro lado, e cotidianamente, a repressão dos proprietários que, aproveitando-se do momento de impunidade, aceleram o processo de expropriação de trabalhadores rurais.

O assistencialismo

Não sendo suficientemente eficaz o controle do movimento sin-dical e camponês por meio de intervenções em sindicatos e federações, o governo federal passa a controlar os sindicatos também pela transfe-rência de serviços assistenciais. Se, em 1967, com a criação do Funrural, muitos sindicatos já passam a atuar como fornecedores de serviços mé-dicos e odontológicos, a partir de 1971, com a edição da Lei Complementar nº 11, que institui o Prorural (regulamentado em janeiro de 1972, pelo Decreto nº 69.919), os sindicatos terão mais acentuado ainda esse cunho assistencialista de órgãos fornecedores de serviços. De tal modo que até hoje é comum entre os trabalhadores (BESERRA, 1989) a referência ao

48 É necessário chamar a atenção para um fato que, só após o golpe de 64, torna-se evi-dente para o movimento sindical rural: as amarras impostas pela legislação sindical rural. Vejamos como Medeiros (1989, p. 63) analisa a questão: “[...] feita nos moldes da legis-lação sindical vigente, ao mesmo tempo em que os trabalhadores viam reconhecidas suas entidades de representação pelo Estado, também passavam a tê-las tuteladas. O poder de intervenção do Ministério do Trabalho, a imposição de um sindicato único por município, o funcionamento com base nos recursos provenientes do imposto sindical, uma estrutura verticalizada extremamente rígida eram o reverso do reconhecimento do direito à sindi-calização. Mas, nesse momento de euforia e crescimento, a legislação sindical não era questionada pelas forças hegemônicas no interior dos movimentos. O seu peso só seria percebido posteriormente, quando se verificou uma mudança radical de conjuntura”.

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Funrural e ao Sindicato como se fossem uma mesma coisa. Não é para menos, vejamos, por exemplo, dois artigos da Lei Complementar nº 11:

Art. 2. O Programa de Assistência ao Trabalhador Rural consis-tirá na prestação dos seguintes benefícios:

I - aposentadoria por velhice; II - aposentadoria por invalidez; III - pensão;IV - auxílio-funeral; V - serviço de saúde; VI - serviço social.

Art. 28. As entidades sindicais de trabalhadores e empregadores rurais poderão ser utilizadas na fiscalização e identificação dos grupos rurais beneficiados com a presente Lei Complementar e mediante convênio com o PRORURAL, auxiliá-lo na implan-tação, divulgação e execução do PRORURAL.

Será na identificação dos beneficiários do Programa que os STRs serão particularmente utilizados. No Art. 5º, que trata da identificação dos beneficiários, o Regulamento dá preferência à Carteira do Trabalho e da Previdência Social, embora esclareça que

na impossibilidade de obtenção da Carteira do Trabalho e da Previdência Social, ou nos casos em que não caiba a emissão desta, será admitida a apresentação de documento que possa suprir a sua falta, fornecido por sindicato de classe de trabalha-dores ou de empregadores rurais, desde que contenha os ele-mentos indispensáveis à identificação e qualificação do traba-lhador rural e seus dependentes, conforme instruções que forem expedidas pelo FUNRURAL.

Essas disposições da Lei Complementar serão responsáveis pela corrida à sindicalização no período, sobretudo, por parte dos trabalha-dores em idade de aposentadoria. Ou seja, para que o STR pudesse con-firmar que o futuro beneficiário era trabalhador rural, era necessário que este, ao menos, fosse sindicalizado. O fato é que, a partir de então, a função assistencial do sindicato torna-se mais evidente para o trabalhador

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do que a sua função de representação e organização de classe. Em pes-quisa realizada pela Cepa sobre Associativismo Rural no Ceará, em 1982, foi investigada, entre outras questões, a “Motivação para participar dos Sindicatos”. Do relatório final, achamos importante trazer os trechos abaixo (CENTRO DE SOCIOECONOMIA E PLANEJAMENTO AGRÍCOLA, 1982, p. 187):

É importante acrescentar que, na maioria das vezes, tanto os tra-balhadores que se associaram ao sindicato pela assistência mé-dica (57,9%) quanto os que se associaram pela assistência jurídica (9,6%) percebem essa associação como um órgão res-ponsável pelos serviços médicos e jurídicos, respectivamente, para atender suas necessidades pessoais.Os trabalhadores se sentem iludidos porque procuram assis-tência médica e não são atendidos.Sou sócio do sindicato mas não preciso dele porque não tenho questão com ninguém (sócios de sindicatos).Essa expectativa dos trabalhadores de que a ação sindical se rea-lize em seu benefício pessoal leva à suposição de que os mesmos não percebem que os problemas referentes à questão de saúde e trabalhista, atingem (toda) a categoria de trabalhadores e, por-tanto, a solução dos mesmos deve ser buscada coletivamente.

Como podemos ver, nos dados e comentários apresentados acima, para os trabalhadores, o sindicato se distingue de outros órgãos pelo seu caráter assistencial. É uma espécie de “departamento” do Estado criado para oferecer assistência médica e jurídica aos trabalhadores rurais. Isto significa que, até 1982, a compreensão dos sindicatos como órgãos de defesa de classe não era generalizada, e os trabalhadores se sindicali-zavam preponderantemente pelo direito à assistência médica e, em pro-porção menor, pelo amparo legal que o sindicato lhes proporciona.49

A transferência dos serviços assistenciais e previdenciários do Estado para os sindicatos de trabalhadores rurais marcará profunda-

49 É verdade que, quando o sindicato é procurado para resolver uma questão jurídica, o relacionamento do sócio com o sindicato é diferente de quando o procura no sentido de obter assistência médica. Voltaremos a essa questão no capítulo III.

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mente o caráter da sua atuação e, de certo modo, facilitará a sua utili-zação pelos políticos locais. Nesse período, 1968-1972, observar-se-á uma evidente mudança de tratamento das classes dominantes com os sindicatos e o seu súbito interesse não apenas em se aproximar dos já existentes, como o interesse de, nos municípios onde eles ainda não existiam, providenciar a sua fundação.

Nesse sentido é possível compreender os tantos casos onde o STR serve às práticas clientelistas locais, colocando-se, desse modo, mais a serviço dos grupos dominantes do que dos próprios trabalha-dores rurais. A propósito, vejamos o depoimento de Antônio Chiquinho, líder sindical de Tianguá, acerca da gestão do presidente anterior:

É o seguinte: ele era desses que se um trabalhador chegasse aqui com um problema ele encaminhava pro prefeito. E pronto! Ele mandava lá pro prefeito, justamente o chefe político. Aí o que era que ele fazia? Chamava o trabalhador e dizia que aquilo não valia nada [...] Dava conselho ao trabalhador que deixasse aquilo [...] Chegavam os casos aqui, e ele mandava pra o pre-feito resolver. Agora eu conheci uns casos de acordos que fa-ziam e às vezes o trabalhador nem assinava, e eles assinavam aqui e resolvia tudo sem a presença do trabalhador... Tem até o caso de Antônio Virgínio, que eles resolveram tudo aqui, dentro do sindicato, só com o patrão, pra dar 100 contos, e ele não quis receber. E essa questão a gente encaminhou pro juiz...50 (BESERRA, 1990b).

O importante, no entanto, é que, a despeito de utilizações even-tuais pelos grupos dominantes locais,51 há sempre a possibilidade de o STR, pelas suas ligações com o movimento sindical mais amplo, res-gatar a sua função de órgão representativo dos trabalhadores rurais (PALMEIRA, 1985). Inclusive, no caso citado, ocorreu isto: em certo

50 Trecho de entrevista concedida à autora em 2 de setembro de 1989 para projeto de pes-quisa Esplar.

51 Discordamos, pois, de Palmeira (1985, p. 3) quando afirma que o STR é “dificilmente capturável” pelas classes dominantes locais, achamos, ao contrário, que é até fácil essa capturação, mas sempre há a possibilidade de não ser eterna.

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momento, as oposições sindicais venceram as eleições, e houve toda uma mudança de práticas e diretrizes no STR de Tianguá, começando pelo divórcio com os grupos dominantes e políticos locais. Por outro lado, há dezenas de casos em que os STRs continuam sob o controle dos grupos dominantes locais, inclusive, sem qualquer perspectiva de que um dia tal situação mude, mesmo porque foi assim que conheceram o sindicato e é assim, bem ou mal, que ele lhes serve, sem que lhes ocorra que as coisas possam ser de outro modo. Embora, como dissemos acima parafraseando Palmeira, “sempre há a possibilidade de mudar o sentido do sindicato”, desde que apareçam lideranças que se oponham ao status quo ou surjam conflitos nos quais elas possam se desenvolver.

A partir dos fatos e elementos que trouxemos aqui, observamos que, apesar do recesso imposto pela repressão, o movimento dos traba-lhadores rurais seguirá “num trabalho de formiguinha”, acumulando forças, para, no final da década de 1970, ressurgir na cena política, com força insuspeitada. Sem dúvidas, o longo período repressivo será res-ponsável pelos termos da reforma agrária implementada pelos militares. Isto é, sem a participação dos trabalhadores rurais e sob o signo da im-punidade, o projeto de desenvolvimento rural e reforma agrária do Governo Militar provocará o maior dos êxodos rurais da história e, apesar de toda a sorte de incentivos fiscais e financeiros às classes do-minantes rurais, não conseguirá resolver o problema da demanda de alimentos e matérias primas e criará enormes problemas aos centros urbanos. O fato é que, quando o movimento ressurge, milhares e mi-lhares de trabalhadores rurais já terão sido expulsos da terra e já estarão disputando espaço e mercado de trabalho exíguos nos centros urbanos.

No Ceará, esse processo de modernização, que se intensifica na década de 1970, salvo suas características gerais, tem alcance e conse-quências diversas nas várias regiões. Além da transformação generali-zada nas relações de trabalho em todas as regiões, expressas sobretudo na desestruturação das relações tradicionais de trabalho, há todo um conjunto de mudanças de cunho modernizante que atingirá o campo cearense. Essas transformações terão no seu centro, como promotor e agente dinâmico, o Estado, cujas ações não disfarçam o seu papel de representante das classes dominantes. Podemos mesmo dizer que, en-

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quanto o movimento dos trabalhadores rurais esteve silenciado pela re-pressão, a “reforma agrária” dos militares foi sendo posta em prática. “As terras sem homens da Amazônia para os homens sem terra do Nordeste”, jamais passou de um lampejo poético de Médici: os traba-lhadores rurais expulsos do Nordeste para a Amazônia continuaram, ainda mais violentamente, sendo expulsos das terras, que poderiam ser suas, mas foram oferecidas, com subsídios e incentivos fiscais, aos em-presários das áreas mais desenvolvidas do país. Enquanto isso, aqui, no Nordeste, um conjunto de programas especiais de desenvolvimento agropecuário era implementado para continuar favorecendo aos secu-larmente já favorecidos, a sua entrada na modernidade. Assim é que, antes de serem punidos pela incapacidade produtiva e pela promoção de um extenso processo migratório, provocado pela expulsão massiva de mora-dores, os grandes proprietários são agraciados pelo poder público. A pecua-rização, alternativa à produção de algodão, por exemplo, é incrementada entre 1960 e 1980, sendo 70% subsidiada pelo crédito.52

Modernização: financiamento de uma estrutura agrária caduca

O PIN, Proterra, Polonordeste, Projeto Sertanejo, Prodecor, todos esses programas, de formas mais ou menos evidentes, favoreceram as classes dominantes rurais. Senão por meio do crédito subsidiado (como no caso da pecuária e agroindústrias), pela valorização particular de terras com obras de infraestrutura como açudes, estradas e eletrificação rural. A propósito disso, uma avaliação de desempenho do Polonordeste feita pela Cepa-CE, em 1984, mostra que, entre tantos objetivos moder-nizadores, o Polonordeste se limitou a acionar as linhas que favoreciam diretamente a empreiteiras ou a grandes proprietários:

Os resultados desses programas (Proterra, Sertanejo e Polo-nordeste) não têm confirmado os seus objetivos explícitos. No

52 Segundo o IBGE - Censos Agropecuários (apud BARREIRA, 1987, p. 260), entre 1960 e 1980, o rebanho bovino no Ceará quase duplicou, passando de 1.354.338 para 2.353.890 cabeças.

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caso do POLONORDESTE, o mais abrangente e “moderni-zador” dos programas especiais, o desempenho das metas para o período 82/83 mostra que há ineficiência das ações e serviços li-gados diretamente à produção e comercialização, com destaque para a inexpressividade do desempenho das ações fundiárias. Os serviços diretamente vinculados às necessidades sociais da população como: Educação, Saúde e Saneamento também não têm apresentado desenvolvimento satisfatório. São os grupos de serviços básicos de infra-estrutura, sobretudo estradas e eletri-ficação rural, os que têm apresentado os melhores resultados. Disto decorre que os maiores beneficiários do programa não são os pequenos produtores. Os reais beneficiários são os grandes produtores que têm acesso fácil ao crédito e auferem as vanta-gens dos investimentos públicos de infra-estrutura física que, ao valorizarem as suas terras, dificultam cada vez mais o acesso ao pequeno produtor (PARENTE, 1985, p. 221-222).

Tudo nos faz crer, pois, que, quando o movimento dos trabalha-dores ressurge, a partir de 1978, o processo de modernização do campo cearense estava com seus contornos praticamente delineados:

Grandes percentuais de trabalhadores expulsos do campo, inau-gurando a favelização das cidades-centros regionais.

• Predominância do trabalho temporário sobre as outras formas de trabalho.

• Subordinação da pequena produção à agroindústria.• Evidente processo de concentração de terras, etc.

Evidentemente, o movimento dos trabalhadores rurais tentará, a partir de 1978, senão dar outro rumo ao processo já em curso de moder-nização, pelo menos diminuir os seus efeitos sobre os trabalhadores rurais, isto é, tentará, sempre que possível, a garantia da permanência dos trabalhadores na terra, principalmente por meio do dispositivo da desapropriação por interesse social do Estatuto da Terra.

Revejamos sucintamente a conjuntura da retomada do movi-mento no final da década de 1970.

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O processo de modernização da produção agrícola cearense se inicia nos idos dos anos 1950 com a construção de uma infraestrutura básica para o escoamento de produtos e a expansão da fronteira agrí-cola. Nos anos 1960 esse processo é incrementado com a expulsão massiva de moradores, sobretudo a partir da promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural e do Estatuto da Terra. A partir da década de 1970, quando então o Estado assume o planejamento e execução do desenvolvimento regional, esse processo de modernização se intensi-fica: os moradores e posseiros continuam sendo expulsos da terra; li-nhas especiais de crédito à produção agropecuária e agroindustrial são abertas e consolidadas; a produção agrícola torna-se cada vez mais dependente das demandas da agroindústria; as empresas agrícolas, produtivas ou não, proliferam; enfim, são dadas as bases da direção do desenvolvimento da agricultura cearense.

A principal característica desse processo no Ceará, como de resto em todo o Nordeste, é o seu financiamento pelo Estado. Ou seja, o Estado retirará dos cofres da nação os subsídios para financiar um processo de modernização que evidentemente favorecerá os grandes proprietários. Um processo de modernização que, aliás, paradoxal-mente favorecerá “tradicionais” e “modernos”, embora no seu curso promova diferenciações no interior das classes dominantes e muitas vezes elimine do páreo proprietários cuja ineficiência traduz-se também politicamente.

A partir de 1978, e aproveitando os primeiros espaços da aber-tura política, o movimento dos trabalhadores rurais vai-se rearticu-lando e se tornando visível.53 No Ceará, esse movimento retirará muito da sua força das questões entre patrões e moradores-parceiros. A grande bandeira é o pagamento de uma renda justa e de acordo

53 Parente (1987, p. 110-111) observa que, no Ceará pós Golpe Militar, é somente a partir de 1976 que “os trabalhadores rurais dão os primeiros passos na tentativa de se articu-larem para defender os seus interesses com relação ao Programa de Emergência adotado por ocasião da seca parcial que atingiu o Estado naquele ano. Convém observar que é neste momento que surge o primeiro documento oficial dos trabalhadores organizados em seus sindicatos, sob a coordenação da Fetraece, avaliando as "bolsas de trabalho" e também as "frentes de serviços", estratégias governamentais vigentes à época”.

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com o que dispõe o Estatuto da Terra. Esse movimento, embora pre-sente em todo o Estado, é sobretudo expressivo no Sertão onde, a partir desse momento, os conflitos explodirão um após o outro.54 Referindo-se a esse período, Irmã Tereza, assessora da CPT na dio-cese de Quixadá, lembrou: “Parecia assim, quando chove que nasce a babugem: era papocando conflito pra todo lado, naquela época...” (BESERRA, 1990b).

Os moradores-parceiros lutavam para pagar uma renda de 10%, como rezava o Estatuto da Terra, contra uma renda de 30 ou 50% tradi-cionalmente estabelecida. Esse movimento contra o pagamento da meia ou da terça foi claramente resultante dos trabalhos de base da Igreja por intermédio das Comunidades Eclesiais de Base. O primeiro momento da questão, portanto, era este: os moradores-parceiros procuravam seus patrões para lhes comunicar que a renda deveria ser paga de acordo com o Estatuto da Terra. Não aceitando o contrato de parceria nesses termos, os patrões procuravam expulsar os moradores. A partir desse momento, o conflito se configurava: os trabalhadores, não acei-tando a expulsão, procuravam a Justiça, e esta, em boa parte dos casos, promovia o processo desapropriatório. Desse modo, a luta pelo paga-mento da renda como previsto pelo Estatuto da Terra constituiu-se na forma legal da luta pela conquista da terra.

Em 1979, consequência das diretrizes do III Congresso dos Trabalhadores Rurais promovido pela Contag, em Brasília, ocorre no Ceará uma manifestação comemorativa dos 15 anos do Estatuto da Terra, realizada pelo STR de Quixeramobim, com o apoio da Igreja. Esse evento tornar-se-á uma espécie de marco na história do movimento dos trabalhadores rurais no Estado. Na manifestação, os trabalhadores tanto denunciam a existência de um Estatuto que não é cumprido, como afirmam a sua disposição de lutar pelo seu cumprimento a partir da-quele momento.

54 Segundo Lima e Carbogin apud Parente (1987, p. 109), em 1980, chegou a cerca de 350 o número de parceiros que, nos municípios de Aratuba, Canindé, Quixadá e Quixeramobim, já não pagavam a meia do algodão.

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A substituição do algodão arbóreo pelo herbáceo: extinção de um “bem de raiz” 55

As lutas, sobretudo aquelas relativas ao cumprimento da “Lei da Renda”, generalizam-se. Por outro lado, intensifica-se o processo de expulsão de moradores ou, quando isto não se dá, observam-se mudanças significativas nas relações de trabalho. A propósito dessas mudanças, convém trazermos aqui o exemplo da substituição do al-godão arbóreo ou mocó pelo algodão herbáceo e as suas consequên-cias sobre as relações de trabalho.

O algodão mocó caracteriza-se como uma cultura permanente que, a exemplo de outras, como as árvores frutíferas, constitui-se num “bem de raiz” para os moradores-parceiros. De acordo com o Estatuto da Terra, as culturas permanentes constituem benfeitorias cujo valor, maior do que o das culturas temporárias, deve ser reivindicado a título de indenização quando da saída do morador. Quando do surgimento dos direitos dos trabalhadores rurais, uma das primeiras providências dos grandes proprietários do sertão foi a erradicação do algodão mocó e a sua substituição pelo algodão herbáceo, sob o argumento de que a sua produtividade é muito baixa e, por isso, incapaz de atender à demanda.

Segundo esse argumento, cujo porta-voz por excelência era o próprio Estado, enquanto a média de produtividade do mocó é de 255 quilos por hectare, o herbáceo atinge mil quilos, ou seja, quase cinco vezes mais. Em contrapartida, eles não esclareciam, o herbáceo requer o uso de herbicidas e inseticidas que o outro dispensa, além de terras especiais, os baixios. Antes de um problema de produtividade, era um problema também político. Quer dizer, a substituição do algodão mocó pelo herbáceo não se constituía em algo tão simples como o Estado advogava. Muito mais do que uma produtividade 5 vezes maior, a subs-tituição significava a adoção de um pacote tecnológico que impunha

55 Essa interpretação sobre o algodão mocó e a sua importância na reprodução da pequena produção do semiárido me foi apresentada em conversas com Tereza Helena de Paula Joca, Eduardo Martins Barbosa, Pedro Jorge F. Lima e Elzira Saraiva, a quem agradeço a generosidade de compartilhá-la comigo. Ver também Paula Joca (1991).

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mudanças tanto na forma de produzir quanto nas relações de trabalho. A primeira decorrência da substituição era a perda, por parte dos mora-dores-parceiros, do “bem de raiz” e, consequentemente, a transfor-mação da relação tradicional de trabalho baseada na morada em outra relação cuja base, em geral, é o assalariamento.

Em segundo lugar, como não são somente os grandes proprietá-rios, por meio de seus moradores, que produzem algodão, os pequenos proprietários teriam que incorporar aos seus custos o preço de herbi-cidas e inseticidas, uma vez que a “alta produtividade” do herbáceo está vinculada à dependência desses insumos, mas também à dependência das melhores terras. Em resumo, o algodão herbáceo jamais foi uma cultura adaptada ao semiárido, como é o caso do mocó.

Embora a substituição de tipos de algodão promova mudanças nas relações de trabalho, continua a requerer índices razoáveis de mão de obra, ao contrário do processo de pecuarização, que, dado a de-mandas mínimas de trabalho, promove predominantemente o êxodo rural. Mas a história do algodão em sua versão moderna não termina nessa substituição de tipos. A partir da década de 1980, é a vez de a praga do bicudo acometer algodoais sejam de mocó ou herbáceo, com um agravante, para detonar o tiro de misericórdia sobre o mocó: o argu-mento “científico” de que ele era o hospedeiro do bicudo. Aí sim, se a produtividade menor do mocó ainda contrabalançava com sua capaci-dade de adaptação ao semiárido e às suas características particulares de um algodão de fibra longa, especialmente adequado para a fabricação de tecidos finos, com esse humilhante destino de hospedeiro do bicudo, não sobrava mais nenhum argumento para defender a continuidade do seu cultivo. Mesmo porque, de outro lado, e isso é fundamental, os pro-gressos da indústria têxtil já permitem prescindir de tipos especiais de algodão para o fabrico de determinados tecidos.

Todas as evidências, pois, demonstram que não se tratou de uma questão de racionalidade econômica, mas política, que envolve, em de-trimento dos interesses dos pequenos produtores, os interesses dos grandes proprietários de se livrar de problemas com os moradores-par-ceiros, receber financiamentos do Estado e, finalmente, interesses das indústrias produtoras de herbicidas e inseticidas.

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A introdução do cultivo do herbáceo no sertão, portanto, não apenas provocará mudanças nas relações tradicionais de trabalho como inviabilizará o cultivo do algodão nas pequenas propriedades. Sem uma cultura comercial que supra as necessidades da família dos bens de mercado, observa-se um evidente processo de empobreci-mento dos pequenos proprietários, processo cujo limite é a venda da terra e o êxodo, de um lado; e, de outro lado, a concentração cada vez maior de terras.

Ao contrário do que os românticos urbanos supõem, também o sertão é atingido em cheio pelo processo de modernização da agricul-tura brasileira. Se, num primeiro momento, a expulsão será uma conse-quência das repercussões da regulamentação do trabalho no campo e a principal característica de uma modernização cujo preço será principal-mente pago pelos trabalhadores; num segundo momento, e também por força dessa mesma dinâmica, os senhores de terras do sertão encon-trarão suas formas de adaptar as relações de trabalho às suas necessi-dades. Sem dúvida, a substituição do algodão mocó pelo herbáceo é uma delas e favorecerá tanto os senhores de terras quanto as indústrias de insumos agrícolas, além disso, relativamente ao trabalho, promoverá a transformação da mão de obra permanente (representada por mora-dores, parceiros, rendeiros etc.) em mão de obra temporária, embora ainda sem os ônus do cumprimento das leis trabalhistas, haja vista que, a despeito do Estatuto do Trabalhador Rural e do Estatuto da Terra, os trabalhadores rurais ainda estão por conquistar o direito da fiscalização pelo Ministério do Trabalho dos contratos vigentes no campo.

A luta dos posseiros

Mas nem só da luta dos moradores-parceiros se alimentou o movimento dos trabalhadores rurais no período. A luta dos posseiros pela sua permanência na terra também aglutinará contingentes signi-ficativos de trabalhadores em torno do movimento mais amplo pela reforma agrária. No Ceará, o movimento tem na luta dos posseiros de Parambu um dos seus mais fortes marcos. As lutas destes e a dos par-ceiros de Japuara tornaram-se clássicos exemplos da resistência cam-

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ponesa no Ceará, por isso, traremos a seguir uma síntese dessas lutas a partir de Castelo Branco (1987, p. 49-74):

* * *

No século XVII, as terras da serra faziam parte de uma sesmaria doada pelo rei de Portugal ao Padre Ascenço Gago, missionário da Companhia de Jesus, para a construção de [...] uma residência, a fim de que os religiosos tivessem melhores condições de administrar a Missão Indígena da Ibiapaba. [...] Foram alocados, então, alguns índios na Chapada. Entretanto, em 1780, esses nativos foram transferidos para a povoação do Baturité. [...] A chapada ficou desabitada. Era área rica de caça, onde se encontrava mel em abundância. Os moradores da Região passaram a caçar no local, após a retirada dos indígenas.

Foi construída, por esses caçadores, uma estrada carroçável, li-gando o Ceará ao Piauí, o que facilitou o acesso à área. Depois disso, algumas famílias começaram a plantar na “cabeça da serra”. [...] No entanto, a ocupação efetiva da Serra [...] só aconteceu nos anos 30, de-corrente principalmente do processo de expropriação/expulsão que ocorria nos Sertões dos Inhamuns. [...] Em consequência da política (de industrialização) adotada no país, houve o desenvolvimento do co-mércio na região (dos Inhamuns) e a intensificação da concentração da propriedade fundiária, que ocasionou a expropriação dos pequenos pro-dutores. [...] Nesse contexto chegaram na Serra da Ibiapaba. [...] Com alguns instrumentos de trabalho e com a coragem de recomeçar [...] abriram a mata cerrada, enfrentaram animais selvagens, construíram estradas carroçáveis, cultivaram suas roças e construíram suas casas--de-farinha. Porém, à medida que os lavradores foram se adentrando na Serra – desmatando, abrindo estradas, plantando – trouxeram atrás de si os latifundiários.

[...] Os latifundiários chegaram para expulsar os posseiros da área, em 1932. Os lavradores eram “visitados por capangas armados” que exigiam pagamento pelo uso da terra, em favor dos latifundiários. Um pouco antes, os grandes proprietários dos Inhamuns faziam uma campanha junto ao Governo, chamando a atenção das autoridades pú-

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blicas para o fato das terras da Chapada estarem “abandonadas”. Em 1931, a administração daquelas terras passou para a Prefeitura de Tauá, à qual pertenciam as áreas hoje compreendidas pelos municípios de Arneiroz, Cococi e Parambu. Aquela Prefeitura providenciou, então, em 1939, o aforamento das terras da primeira légua, para os grandes proprietários da região.56 Munidos desse “direito legal”, o fôro, aqueles senhores passaram a contestar mais violentamente o direito de viver e de trabalhar dos camponeses. [...] Aos posseiros as alternativas que res-tavam eram: a) ficar na terra pagando renda; b) sair da terra, perdendo o direito sobre todas as benfeitorias feitas; e c) recusar pagar renda e con-tinuar na terra. [...] Entretanto, optar por esta última alternativa, signifi-cava enfrentar uma forte represália dos latifundiários e da polícia.

A resistência dos posseiros, na Primeira Légua, expressava-se através de débeis atitudes individuais de famílias isoladas. [...] De modo que, no início dos anos 40, a Primeira Légua já se encontrava totalmente sob o controle dos latifundiários. Muitos lavradores permaneceram, acei-tando as imposições dos novos senhores da área. Outros recusaram-se a ficar submetidos a patrões, pagando renda pela utilização das terras. Estes, adentraram-se mais ainda em direção ao Piauí, perdendo todas as benfeitorias feitas na terra que deixaram. A ocupação da Segunda Légua (que ocorrerá entre 1940 e 1949) é, portanto, continuidade do processo de expropriação dos lavradores, que empreendiam nova caminhada rumo ao interior, em busca de condições favoráveis à sua reprodução como pe-quenos produtores. Aos que vinham “tangidos” da Primeira Légua, soma-vam-se outros que continuavam chegando do sertão dos Inhamuns.

As dificuldades encontradas pelos lavradores na Segunda Légua eram maiores do que as que já haviam enfrentado antes, na Primeira Légua. Além da mata cerrada, dos animais selvagens e da falta de es-tradas, tinham outros problemas adicionais: a) maior distância das fontes d’água, localizadas no “pé da serra”; e b) maior distância dos centros de comercialização de seus produtos. (Mas como na Primeira Légua), logo

56 Essa designação de 1ª, 2 ª e 3ª léguas é dos posseiros para se referirem às terras que foram ocupando na Chapada, à medida que eram expulsos pelos latifundiários (CASTELO BRANCO, 1987).

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que aqueles lavradores se estabeleceram com as suas plantações e casas--de-farinha, os latifundiários chegaram para expropriá-los. [...] O Estado apareceu uma vez mais como instrumento da classe dominante, assu-mindo através da Prefeitura de Tauá, a distribuição de foros na Segunda Légua. A polícia acompanhava os jagunços dos coronéis nas visitas de ameaça aos posseiros. Diziam que os lavradores “saíam por bem ou à força.” Na época, esboçou-se uma tentativa de articulação entre algumas famílias, para enfrentar a pressão dos latifundiários e da polícia. Uma das propostas surgidas naquele pequeno grupo foi a ida a Pimenteiras (PI) pedir uma orientação do prefeito daquele município. Pois, um dos posseiros conhecia aquele prefeito e as autoridades do Ceará estavam identificadas com os grandes proprietários com quem os lavradores se defrontavam. Segundo um dos posseiros que participou da comissão, o prefeito aconselhou-os a fazer o registro das terras. Alguns registraram, outros não. Talvez por ser caro e/ou por não acreditarem que era o que devia ser feito. [...] A tentativa de articulação entre as famílias não passou dessa iniciativa de procurar o prefeito de Pimenteiras. Porém, tinham sido dados os primeiros passos, que possibilitariam mais adiante, na Terceira Légua, um processo de resistência de toda a comunidade. A partir de 1946, não eram apenas os latifundiários cearenses, com seus fôros, que exigiam pagamento da utilização das terras pelos posseiros. Na época apareceram, também, latifundiários de Pio IX (PI), dizendo-se “proprietários” de todas as terras da Chapada.

No final de 1949, várias famílias, cedendo às pressões dos lati-fundiários e da polícia, passaram a pagar renda pelo uso da terra. Novamente, parte daqueles posseiros recusou-se a “ter patrão” – per-dendo benfeitorias feitas nas terras – “embrenhando-se” nas matas ainda virgens da Chapada, na área que eles denominam de Terceira Légua. [...] Durante os primeiros sete anos de ocupação da Terceira Légua, não apa-receram os latifundiários do Ceará, tampouco os do Piauí. Provavelmente, isto se deveu ao fato daquela ser área de litígio entre os dois Estados vi-zinhos o que, certamente, complicava a distribuição de foros aos grandes proprietários do Ceará e do Piauí. [...] Entretanto, a partir de 1958, quando é iniciado o desmatamento para o assentamento da BR-020 (Brasília-Fortaleza), nas proximidades da área ocupada pelos lavra-

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dores, novamente se superpõem os interesses dos latifundiários e dos posseiros. Com a perspectiva da estrada, que valorizaria as terras, uma vez que seria um dos elementos incentivadores da especulação imobili-ária, acelerou-se a deflagração de contenda entre latifundiários do Ceará e do Piauí. Os piauienses entraram na área, providenciando a demar-cação da fronteira estadual, a fim de comprovar que as terras da Chapada eram suas. Esta atitude fez reacender a antiga briga por limites territo-riais, existentes entre os dois Estados. [...] Aos latifundiários do Ceará interessava, naquele momento, reconhecer os posseiros como cearenses e habitantes antigos da Chapada, uma vez que isso era um forte argu-mento do ponto de vista legal e social, porque tratavam o assunto, a nível de opinião pública, como uma questão de invasão do Piauí ao Ceará, onde o primeiro desrespeitava a legislação e os direitos de cida-dãos cearenses. A disputa pela terra, que era o móvel central do embate, era mistificada, aparecendo somente como a luta entre dois Estados para garantir a posse do seu território. No decorrer dessa disputa, os posseiros, inicialmente, foram bastante importunados para pagarem renda pelo uso da terra, por latifundiários cearenses e piauienses. Entretanto, quando a contenda entre as duas partes tornou-se mais acir-rada, os lavradores foram deixados em paz por alguns anos. Novamente, em 1967, os latifundiários de Pio IX (PI) e os cearenses reapareceram cobrando renda da terra aos posseiros. [...] Depois das ameaças de prisão e de morte, ocorridas em 67, mais de dez anos decorreram sem que latifundiários de um e outro Estado aparecessem na Chapada. Certamente, durante esse período, estavam acontecendo acordos entre os grandes proprietários dos dois Estados.

[...] Se houve ou não acordo, entre latifundiários do Ceará e do Piauí, não se pode afirmar. Porém, em 1975, os piauienses estavam de posse de documentação afirmando sua propriedade sobre aquelas terras (300.000 ha., abrangendo também terras da 1ª e 2ª Léguas), que tinham sido compradas a herdeiros. Na ocasião, venderam parte das terras para sócios de uma imobiliária do Ceará, abrangendo a área onde os posseiros estavam localizados. Em 1977, a imobiliária chegou na área buscando convencer os posseiros dos benefícios que teriam com sua presença na Região. Cobrariam aos lavradores renda pela

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utilização das terras, mas, em contrapartida, construiriam estradas, abririam poços e ofereceriam empregos.

Era a chegada do “progresso”, do “desenvolvimento” à Serra! Os lavradores, após os sucessivos processos de expropriação/expulsão, ha-viam avançado no sentido da sua identificação não mais como indiví-duos ou famílias isoladas, mas como um grupamento social, com inte-resses e problemas comuns. Fizeram, portanto, uma reunião para avaliar a proposta da firma. Nessa reunião, havia um clima de muita descon-fiança em relação aos empresários. Mas, a “tentação da água”, a pers-pectiva de melhorar suas condições de vida e trabalho, eram senti-mentos muito fortes, que levaram os posseiros a concordar com a proposta de pagar renda para a imobiliária.

Após a abertura das estradas, a primeira ação da firma foi cercar a área, impedindo a “livre circulação” dos lavradores no local. Chegaram, inclusive, a montar um posto, onde existia um portão vi-giado por “jagunços” da imobiliária, por onde estabeleceram que os agricultores deveriam passar. Em seguida, os representantes da em-presa, falaram que a “renda não precisaria mais ser paga e que os lavra-dores deveriam desocupar as terras logo depois da colheita”. Os poços prometidos nunca foram abertos. O discurso agora não era mais de con-vencimento, mas sim de imposição, de força.

Evidentemente, o acordo da imobiliária com os posseiros foi uma farsa montada pelos empresários, para que pudessem, tranquilamente, cortar a Serra com estradas, que valorizariam as terras e facilitariam o escoamento da produção na Chapada. Os lavradores, diante da ameaça concreta de uma nova expulsão, decidiram realizar uma reunião para avaliar a situação em que se encontravam e o que deveriam fazer pe-rante tal realidade. A constatação de que haviam sido enganados era unânime. Um dos presentes naquela reunião – que se diferenciava dos demais pela sua participação anterior em conflitos no Estado de Goiás e por ser sócio do STR de Parambu, o que lhe conferia maior experiência e um outro nível de consciência – propôs que levassem a questão para ser discutida nas reuniões do sindicato, em Parambu. Uma outra pro-posta que aquele posseiro fez e que foi aceita por todos os outros agri-cultores, relacionava-se ao fato da necessidade de conhecerem as leis

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existentes, para poderem se apoiar naquelas que lhes garantissem os direitos sobre a terra. Esse agricultor, tornou-se a partir daí, o líder dos posseiros da área, em quem depositavam confiança e que os estimulava a brigar por seus direitos.

Em 1978, foi realizada uma reunião na sede do STR – Parambu, tendo participado da mesma, cerca de sessenta posseiros, a diretoria do STR e representantes da imobiliária. O objetivo da reunião era a expo-sição dos argumentos de cada parte envolvida no conflito, buscando-se uma solução para o impasse. Os empresários alegaram ter comprado as terras, sendo seus legítimos proprietários. Os posseiros afirmavam que as terras eram “da Nação”, “sem donos” e que plantavam na Chapada há muitos anos, portanto, dali não sairiam. A reunião acabou sem que qualquer acordo fosse proposto. Os lavradores continuaram recebendo visitas de “jagunços” que os ameaçavam, falando da continuidade da construção de cercas e que “deveriam sair logo, senão seriam bem pior para todos”. A cerca já construída (3.500 m.) apareceu, então, derru-bada. Os posseiros, entretanto, jamais assumiram esse ato. Seria, então, a sua primeira ação ofensiva, pois até aquele momento mantinham-se apenas na defensiva, buscando agir dentro dos limites estabelecidos pela legislação. Em represália à destruição da cerca, os empresários, em 1979, moveram uma Ação de Reintegração de Posse, no Município de Pio IX, envolvendo a posse de doze famílias. Os lavradores, na época, não compareceram à audiência, perdendo a Ação.

Os empresários começaram a centrar seus esforços no sentido de enfraquecer a resistência dos posseiros, buscando retirar do palco do conflito, a figura do líder. Primeiro, tentaram cooptá-lo, oferecendo-lhe dinheiro. Depois, como isso não tivesse dado resultados, iniciaram uma campanha de difamação, em cima de fatos da vida privada daquele agri-cultor. Isto fez com que ele acabasse por vender suas terras, aos pró-prios empresários, e fosse embora para o Pará. Observa-se, a partir desse fato, um crescimento qualitativo no processo de organização dos agricultores. A constatação da fragilidade do movimento quando de-pendente da iniciativa [...] de um líder, bem como a decisão de eleger uma comissão para dirigir o conjunto dos posseiros, evitando com isso a dispersão, foram medidas práticas de grande importância daqueles

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lavradores. Em 1979, a imobiliária negociou parte das terras com em-presários de indústria de óleo de castanha-de-caju, de Fortaleza, in-cluindo na venda a área de terra em que os posseiros se encontravam. Os industriais chegaram à Chapada com a clara disposição de expulsar os posseiros o mais rápido possível. As ações nesse sentido deram-se de forma bem mais agressiva do que anteriormente. Uma das providências iniciais foi a construção de 5.000m. de cerca e dos poços profundos. Os poços foram furados entre as casas dos lavradores envolvidos no pro-cesso de Reintegração de Posse citado.

A partir daí, a situação [...] agravou-se consideravelmente. Em 1980, o conflito tomava proporções maiores. O STR decidiu contratar uma assessoria jurídica e sindical. [...] Na ocasião, os 5.000m de cerca dos industriais apareceram derrubados e os poços entupidos. A polícia de Pio IX, trazida nos veículos dos próprios industriais, chegou à área espancando os posseiros. Naquele momento, foram presos dois e dada ordem de prisão preventiva para sete lavradores. As prisões eram total-mente ilegais, pois não existiam provas ou testemunhas de que eles ti-vessem sido responsáveis pela derrubada das cercas e pelo entupimento dos poços. O advogado dos posseiros foi a Pio IX soltar os presos, e o juiz daquele município recusou-se a liberar a ordem de soltura dos agri-cultores. Foi impetrada, então, uma ordem de habeas corpus em favor dos lavradores. Finalmente, foram libertados os presos e revogada a ordem de prisão preventiva. Incluídos entre os sete que receberam ordem de prisão preventiva estavam o Presidente e o Secretário do STR-Parambu, acusados de terem incentivado e orientado os posseiros a investirem contra a “propriedade” dos industriais.

[...] No ano de 1981, os empresários, através de seus capangas, invadiam e estragavam as roças dos posseiros, promoviam espanca-mentos e queima da casa de agricultores. Diante disso, aqueles lavra-dores enviaram um documento de denúncia e solicitação de apoio a diversas entidades de trabalhadores do Ceará, Piauí e outros estados. Simultaneamente foi enviado um documento dirigido aos órgãos go-vernamentais (INCRA, ITERCE, INTERPI e Presidência da Repú-blica), denunciando o que estava acontecendo na Chapada e solici-tando providências imediatas. [...] A solidariedade e o apoio externos

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foram de fundamental importância para reforçar a luta daqueles agri-cultores. Grande parte dessa articulação estadual e nacional deveu-se à ação da Igreja Católica, que localmente vinha acompanhando o con-flito há um certo tempo.

O INCRA, oficialmente, declarou ser a Chapada área de tensão social. O Estado, através do INCRA e do ITERCE assumiu o papel de mediador das partes em conflito. Representantes de entidades governa-mentais, do Ceará e do Piauí, começaram a participar de reuniões com o objetivo de possibilitar um acordo entre os opositores. Entretanto, embora houvesse um esforço no sentido de aparentar neutralidade, muitas vezes essas entidades deixaram claro para que lado pendiam. Por exemplo, o INCRA, apesar de ter emitido um documento onde afir-mava que as terras eram devolutas, não questionou em qualquer mo-mento a propriedade dos empresários sobre as terras, tampouco os do-cumentos por eles apresentados como comprobatórios da legitimidade da propriedade. Em 1982, as pressões sobre os posseiros continuavam. Era constante a presença de “capangas” dos empresários, transitando armados, em tratores e camionetes, nas posses dos lavradores. Além disso, envenenavam os cachorros de caça dos posseiros, o que se cons-tituíam em grave afronta, pois, a caça era de grande importância na complementação alimentar da família.

O temor de serem atacados era preocupação permanente dos lavra-dores. Devido a isto, passaram a utilizar mutirões por localidade para trabalhar nas roças. Era uma forma de manter os homens reunidos, facili-tando a proteção dos roçados e deles próprios, do ataque dos empresários. [...] Em outubro de 1982, houve uma proposta de acordo, que teve origem em reunião com a presença do STR – Parambu, representantes dos pos-seiros, representante dos industriais e entidades governamentais. A pro-posta consistia dos seguintes itens: 1) o empresário reconhecia os lavra-dores na condição de posseiros antigos no lugar; 2) o empresário concordava em “abrir mão” de 16.000 dos 45.000 ha. em conflito. O INTERPI ficaria responsável em levantar uma linha divisória entre a área do projeto do empresário e os 16.000 ha. onde ficariam os posseiros; 3) os posseiros que estavam fora dos 16.000 ha., deveriam ser retirados para aquela área, chamada “livre” na proposta do acordo, no final da safra

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agrícola (31.07.83), sem prejuízo dos direitos indenizatórios, podendo retirar os bens móveis de sua posse; 4) os posseiros se eximiriam de rea-lizar benfeitorias de caráter permanente, nas respectivas posses. Quando tal proposta foi trazida para discussão com o conjunto dos posseiros, a grande maioria não a aceitou. [...] Ao terminar a reunião haviam duas posições claramente colocadas: 1) resistir na posse; 2) sair das posses com as seguintes condições: irem para terras boas de cultivar, com acesso a água e com título definitivo. No final de 1983, o acordo foi realizado. Os posseiros conseguiram impor algumas de suas reivindicações cen-trais, como a construção de poços profundos na nova área e a promessa de titulação pelas instituições governamentais competentes.

* * *

Ao longo de toda a década de 1980, os conflitos se multiplicaram, e o movimento camponês conseguiu demonstrar que a organização dos trabalhadores era a forma concreta de relativizar a proletarização do trabalho como via obrigatória da modernização da agricultura brasi-leira, como alguns economistas e políticos anunciavam.57 O movimento demonstrou que a outra via possível, embora estatisticamente inferior, era a da reforma agrária. Entre 1979 e 1989, cerca de 70 assentamentos da reforma agrária (INCRA, 1989) foram implementados no Ceará. Isso sem falar nos incontáveis casos de trabalhadores que, em litígio com os patrões, conseguem, por meio de acordo, indenização suficiente para se estabelecerem em outras terras. Evidentemente, do ponto de vista estatístico, isso é muito pouco e colocava o país ainda muito dis-tante da reforma agrária reivindicada pelo movimento, mas, sem ne-nhuma dúvida, expressava já um importante saldo da luta dos campo-neses no estado. Mais adiante, voltaremos a tratar dos assentamentos da reforma agrária e dos acordos, como vias de resolução das questões entre trabalhadores rurais e patrões.

57 Esse grupo de economistas, que acredita na proletarização como única via da moderni-zação da agricultura no país, tem em José Grazziano da Silva (1982) um dos seus mais fortes representantes.

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Ali, em 1989, dez anos distantes da comemoração dos 15 anos de Estatuto da Terra em Quixeramobim, quais eram as características do movimento sindical rural no Ceará? Ou, mais amplamente: como so-breviviam ou de que se alimentavam os movimentos sociais no campo cearense? Quais as perspectivas para as próximas décadas?

São essas as questões que orientarão o capítulo seguinte.

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MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO CEARENSE HOJE

(Década de 1980)

Os movimentos sociais no campo não se restringem, como temos acompanhado aqui, apenas ao movimento sindical, este é apenas uma de suas expressões. Convencidos, portanto, de que possuem ritmos e dinâmicas locais ou regionais próprias, estudamos empiricamente os movimentos sociais rurais do Ceará por meio de três expressões regio-nais: Serra de Ibiapaba, Litoral e Sertão. É óbvio que, embora essa amostra seja razoável, ela não dá conta de toda a diversidade existente no Estado. Entre as regiões de serra, escolhemos para estudo a microrregião da Serra de Ibiapaba, que é bastante diferente, por exemplo, do Maciço de Baturité, tanto do ponto de vista da dinâmica do processo de moderni-zação agrícola quanto dos processos de resistência dos trabalhadores ru-rais. O mesmo se pode dizer sobre a escolha do litoral: de uma vastíssima área, tomamos para estudo a região de Pacajus, onde, por exemplo, ao contrário do litoral de Uruburetama, a incidência de conflitos de trabalha-dores é praticamente inexistente. Já a microrregião do sertão que esco-lhemos para estudo, os sertões de Quixeramobim, é mais passível de ge-neralizações quanto ao processo de modernização e resistência relativamente às outras microrregiões também encravadas no sertão.

Deixamos de estudar microrregiões importantes do ponto de vista da produção agrícola cearense: os Vales do Jaguaribe e do Cariri são exemplos da nossa impossibilidade de abranger todo o Ceará. Este

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é, portanto, um estudo parcial: estudamos os movimentos sociais no campo cearense a partir de três casos que representam três dinâmicas possíveis, mas não todas as possibilidades existentes. Ou seja, a dinâ-mica mais global do estado não é redutível a esses casos. Por exemplo, quando se falava, nos inícios da década de 1990, em vanguarda do mo-vimento sindical no Ceará, era a experiência de Tauá que logo ocorria à memória de todos porque lá, além de inaugurarem experiências inéditas de gestão e sensibilização das bases, os sindicalistas produziam, eles próprios – embora devidamente assessorados –, o conhecimento técni-co-científico das suas demandas. Apesar de tais características, o muni-cípio de Tauá não foi aqui estudado. Estamos afirmando, portanto, que a nossa amostra é restrita porque as experiências são demasiadamente variadas. As problemáticas ora identificadas e analisadas podem muito bem se assemelhar a problemáticas existentes alhures, mas convém não reduzimos umas às outras. No máximo podemos utilizar o mesmo ins-trumental analítico para compreendê-las, jamais fazer uma transposição mecânica das questões e dos resultados. Entremos, pois, nas questões que orientaram a pesquisa em busca da compreensão da experiência de resistência dos trabalhadores rurais do Ceará face à expansão do capita-lismo no Nordeste por meio da modernização da agricultura. A pergunta que orienta este capítulo é a seguinte: como andava o movimento social no campo cearense no início da década de 1990? Quais eram os seus impasses e apostas?

Expressões de resistência dos trabalhadores rurais no Ceará

A comemoração dos 15 anos do estatuto da terra em Quixera-mobim, em 1979, marcou a retomada das lutas de massas no campo cearense. Dez anos depois, em 1989, o Movimento dos Sem Terra inau-gura a sua entrada no estado do Ceará com a ocupação das Fazendas Reunidas S. Joaquim, nos sertões de Quixeramobim. De acordo com levantamentos realizados pela CPT, Incra e Cepa (Centro de Socioeco-nomia e Planejamento Agrícola), a maior incidência de conflitos ocorreu nas regiões norte e centro-oeste do estado. Nessa área, dominam as ca-racterísticas fisiográficas do sertão, havendo, entretanto, faixas de serra

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MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990) 97

e litoral. Buscaremos, a partir daqui, nas causas dos conflitos, as expli-cações do desenvolvimento dessas regiões.

Vimos, nos capítulos anteriores, que, nos últimos dez anos, o que favoreceu preponderantemente a existência de conflitos de terra no vasto sertão cearense foram as transformações ocorridas nas relações tradicionais de trabalho. A maioria deles envolve os moradores-par-ceiros, o que significa que a maior parte desses conflitos foi e ainda é originada de problemas relativos à expropriação de moradores. Dois motivos predominantes se repetem nas diversas situações de conflito, um de iniciativa dos patrões e o outro de iniciativa dos trabalhadores. O primeiro é decorrente da venda da propriedade e da não disposição dos moradores em aceitar as regras do novo proprietário. Exemplos clás-sicos dessa situação são os casos de Japuara, município de Canindé, e da Fazenda Califórnia, município de Quixadá. O outro motivo é o da luta pelo pagamento de uma renda de acordo com o Estatuto da Terra, ou seja, a luta pelo cumprimento da “lei da renda”, que se constituiu num importante motivo de conflitos entre moradores-parceiros e pa-trões proprietários. Evidentemente, arrolamos esses como os dois grandes móveis das disputas entre patrões e moradores pela terra porque raramente envolvem um ou outro morador individualmente, mas todo o conjunto de moradores de determinada propriedade, o que favorece o encaminhamento e a resolução da questão. Então, longe de serem os únicos motivos, são os mais comuns. Há, entretanto, exemplos raros e extremos de propriedades que, sem razão convincente, ao menos para os moradores, decidem repentinamente pela expulsão de todos os seus moradores, como foi o caso do Sítio Buriti, em Ubajara, região da Serra de Ibiapaba.

Outro tipo de conflito também comum na década, embora já ocorresse com certa constância em décadas anteriores, é o que envolve a disputa entre grileiros e posseiros pela posse da terra. Mesmo ocor-rendo em todas as microrregiões onde há conflitos, são mais comuns em regiões de fronteira agrícola, caso da região da Serra de Ibiapaba e re-giões circunvizinhas, e, ainda que esparsamente, também ocorrem no litoral, tanto a leste como a oeste de Fortaleza. No litoral, as razões são de outro tipo: nem todo o litoral é alvo da cobiça dos grileiros, mas

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principalmente a faixa litorânea reivindicada pelas indústrias imobiliá-rias para o estabelecimento de polos de turismo e lazer.

Finalmente, há os conflitos que relacionam diretamente trabalha-dores rurais e Estado: os dos arrendatários e pequenos irrigantes dos açudes públicos. Estes, no entanto, por não se generalizarem não esti-veram no alvo da nossa atenção.

A generalização dos conflitos de moradores e de posseiros evi-dencia maior pressão sobre a terra na década 1980-1990. É verdade que já havia pressão nas décadas de 1960 e 1980, porém a repressão às or-ganizações políticas rurais não permitia que a disputa por terra entre patrões e trabalhadores chegasse aos termos a que chegou a partir dos fins da década de 1970.

A grande seca, que se prolongou de 1979 até 1983, funcionou como um catalisador do processo de expulsão dos trabalhadores rurais, que saíam para o trabalho em frentes de emergência ou outros tipos de trabalho nas cidades e não mais voltavam ao campo. Nesse período, o processo de expulsão, em curso desde o início da década de 1960, pra-ticamente se completou.58

Após os longos cinco anos de seca, os trabalhadores rurais que voltaram não encontraram mais condições de permanecer em suas an-tigas moradas: em geral, os proprietários já tinham promovido a substi-tuição das culturas de subsistência pela pecuária e, portanto, os espaços de roçados já haviam sido ocupados pelo capim ou outras forrageiras.

A seca facilitou, para os patrões, o processo de expulsão. A resis-tência na terra seca é um contrassenso com cujo preço os trabalhadores não têm condições de arcar. E a volta é o que dissemos acima: ninguém pode voltar ao que não existe mais.

Se, no entanto, a seca é tão nefasta assim para os pequenos pro-dutores (incluindo nessa categoria também os pequenos proprietários, que muitas vezes são obrigados a vender por preços irrisórios as suas terras durante o flagelo), com toda certeza, não é de tudo malfazeja aos grandes proprietários. Ao contrário, além da possibilidade de resolver

58 Para um estudo sobre a mobilização dos trabalhadores rurais do Ceará na seca de 1979-1983, vide Parente (1985).

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rapidamente questões trabalhistas com antigos moradores, permite-lhes aumentar o tamanho das suas propriedades por meio da compra de terras dos pequenos. Além disso, tornam-se os maiores beneficiários das políticas de emergência que valorizam suas propriedades com obras de infraestrutura produzidas com o trabalho das frentes de emergência. É necessário, porém, acrescentar que, a partir da seca de 1979-1983, o movimento camponês, nas regiões onde se encontrava mais organizado, conseguiu que o trabalho nas frentes de emergência fosse realizado em benefício da melhoria de suas condições de vida e trabalho. Citamos aqui, entre outras coisas, a construção de cisternas, estradas e habita-ções em comunidades organizadas.59

Como moradores-parceiros ou posseiros, os trabalhadores re-sistem ao processo expropriatório. Resistem também às condições da exploração existentes quando requerem a aplicação da “lei da renda”. Embora todos os conflitos de algum modo evidenciem a forte pressão e disputa pela terra, cada um tem razões e encaminhamentos específicos. Inclusive, a pressão sobre posseiros tornou-se mais forte à medida que a expulsão dos moradores-parceiros se generalizou: eram mais traba-lhadores expropriados em busca de terras livres. Os preços da terra evi-dentemente subiram, e a corrida de grileiros e trabalhadores por terras devolutas tornou-se maior. Por causa do esgotamento das fronteiras agrícolas, o movimento dos posseiros tendeu a se organizar melhor e tornou-se mais forte nos últimos anos da década de 1980. Mas tanto o movimento dos moradores-parceiros de resistência na terra quanto o movimento dos posseiros começam já a se tornar escassos no início da década de 1990: as questões pendentes tendem a se resolver a curto ou médio prazos, e a configuração da questão agrária mudou: posseiros e moradores-parceiros, em litígio com patrões, têm como perspectiva o trabalho assalariado nas cidades ou a possibilidade de se tornarem pe-

59 Muitas vezes, essas benfeitorias são reivindicadas pelos proprietários como suas, haja vista que, embora sejam construídas para o beneficiamento da comunidade, são cons-truídas em terras privadas. A exemplo disso, citamos o caso de São João dos Carneiros, município de Quixadá, onde o proprietário em litígio com os moradores-parceiros impe-diu-os de ter acesso à cisterna. Esse conflito foi resolvido em favor dos moradores com as terras desapropriadas pelo Incra, em 1989.

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quenos produtores em assentamento da reforma agrária, de modo que a questão agrária tende a se polarizar em torno de assalariados às voltas com questões trabalhistas ou de pequenos proprietários na luta por po-líticas agrícolas favoráveis à sua reprodução nessa condição. Este era, portanto, o quadro do movimento social no campo cearense antes da entrada do Movimento dos Sem Terra, em maio de 1989.

De um modo geral, os conflitos no campo do Ceará na década de 1980 tiveram espaço nas regiões do sertão onde a economia tradicional-mente se desenvolveu baseada no trabalho sujeito de moradores-par-ceiros, ou no trabalho não-sujeito de parceiros. Nesse caso, podemos afirmar que as culturas do algodão, café e cana-de-açúcar foram desen-volvidas predominantemente sob essas formas de trabalho, sendo que a cultura do algodão ficou circunscrita ao sertão e determinadas faixas secas de litoral, e a da cana-de-açúcar e do café, às regiões serranas. Vejamos o exemplo do litoral de Uruburetama.

Parte dessa região litorânea, aliás como todo o litoral cearense, é um prolongamento do sertão, o que explica que também aí tenha sido cultivado o algodão sob as relações de trabalho já explicadas anterior-mente. Com o desenvolvimento da agricultura entre as décadas de 1970 e 1980, as terras antes cedidas a parceiros e moradores-parceiros para o cultivo de roçados e a produção de algodão foram tomadas para o cultivo agroindustrial do coco e do caju. A produção dessas culturas provocou, em curto prazo, a expulsão dos moradores do seguinte modo: nos dois primeiros anos, era possível ao morador plantar, entre as fileiras do coco e caju ainda pequenos, sua roça de subsistência. Mas, a partir de então, isso se tornava inviável. O que ocorria? Os trabalhadores abdicavam do seu direito ao roçado tornando-se somente assalariados. Mas, sendo sua renda como assalariado insuficiente para a reprodução do grupo domés-tico, o trabalhador via-se obrigado a emigrar. É nessa circunstância que eles se organizavam e lutavam pela permanência na terra.

Os mediadores: o diferencial

As relações de trabalho não determinavam tudo em termos de possibilidades de organização para a resistência. Isto é, há regiões no

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Ceará onde as relações de trabalho são semelhantes às do sertão central e onde os mesmos conflitos não se desenvolveram. Como explicar, por-tanto, que no sertão os conflitos tenham-se expandido e em outras re-giões não haja sequer notícias deles?

É nesses casos, em que as evidências estatísticas não são capazes de explicar os processos sociais, que a pesquisa empírica se torna indis-pensável. No caso da questão colocada acima, o que diferencia, em termos de organização dos movimentos sociais, regiões de estruturas agrárias semelhantes é a ação dos mediadores. No Ceará, entre outros, podemos enumerar os seguintes: sindicatos, Fetraece, Igreja – por meio de CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), MEB e CPT; entidades de assessoria e apoio ao movimento, tais como Cetra, Esplar, Atuar, etc.; Estado – por meio da Ematerce, Secretaria de Promoção Social, Secre-taria da Agricultura e Reforma Agrária, Incra, Cepa, etc., e mesmo os partidos políticos de situação e de oposição.

Observamos, então, que geralmente a organização das lutas tem uma relação direta e muitas vezes obrigatória com a ação dos media-dores. Um exemplo: a maior parte dos conflitos aqui apresentados en-volveu famílias já minimamente organizadas em comunidades eclesiais de base. Quando não estão de algum modo ligados à Igreja, os trabalha-dores rurais envolvidos em conflitos estão ligados, organicamente ou não, a outros mediadores, tais como sindicalistas ou outros assessores do movimento. Muitas vezes não é sequer necessário que sejam asses-sores no sentido formal do termo, basta ser alguém mais esclarecido do que o grupo: encontramos diversos casos de lutas desenvolvidas a partir do incentivo de pessoas da mesma comunidade que haviam retornado de décadas de emigração e, conhecendo as leis melhor do que os pa-rentes e vizinhos que permaneceram na terra, indicaram-lhes os cami-nhos da luta e se tornaram também, em alguns casos, as suas próprias lideranças. Tomemos os trechos seguintes de entrevista com o presi-dente da associação dos moradores do Balbino, uma comunidade de pescadores e agricultores situada ao norte da Praia da Caponga, muni-cípio de Cascavel, litoral leste, descendentes de Balbinos, tribo indí-gena que habitou aquele litoral. Esses trabalhadores foram sistematica-mente ameaçados de expulsão de suas terras, secularmente habitadas

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por antepassados seus, por grileiros ligados à indústria imobiliária. A sua resistência para permanecer na terra culminou com a conquista da sua posse legal em 1986, após 4 anos de luta.

[...] Esse lugar aqui era um lugar encoberto, era descoberto só por nós mesmo, não tinha quem soubesse se Balbino existia... E o que acontece é que quando foi em 1982 chegou a imobiliária aqui. Começou querendo iludir a gente, querendo comprar essa área, e ninguém nunca vendeu . [...] Aí ele disse que era melhor a gente vender porque ele já tinha um terreno lá atrás, né? Então ele precisava comprar aqui pra ficar melhor pra ele. [...] Nós se recusamos a vender: não, ninguém vende não, isso aqui é a moradia da gente. Ele disse: rapaz, então se vocês não querem vender, vocês são meus confinantes. Aí eu disse: Eu, pela minha parte, não assino não. Era uma folha de papel assim em branco, aí ele: Não rapaz, assine!... a gente já sentia o drama dum colega da gente lá no Pratiús, lá o pessoal assinaram essa folha de papel em branco, em 1979, e perderam tudo. Aí nós ficamos já alerto, né? E ninguém assinou! [...] Ele não se conformou, arranjou uns colegas que era conhecido da gente e mandou a mesma folha de papel pedindo pra que a gente assinasse, que era pra nos dar uma ajuda, mas ninguém assinou! Ele mandou perguntar quanto a gente queria pra assinar aquele documento. A gente disse que não assinava e pronto. Aí ele chegou em Cascavel, arranjou um documento falso. E a gente entrou com uma ação no cartório, aí chamou ele pra assinar, que era confinante, nera? Ele já tava in-juriado e disse que não assinava, que tudo era dele e ele ia tomar! Aí botou a gente no maior sufoco, aí queria a expulsão da gente daqui, trouxe a polícia [...] Quem ajudou a gente aqui foi uma grande união que tinha, for-mamos uma associação de moradores... Quem falou da gente criar essa associação foi o Erivan, é um amigo nosso aqui, muito gentil, e ele é um rapaz muito sabido, aí ele falou pra gente se unir e formar a associação... Ele não é de sindicato, nem de CEB, é parente da gente aqui, desde ele criança que ele anda por aqui e ele vendo gente chegar aqui e dizer que os terrenos são dele, aí ele ajudou a gente. [...] Trouxe um estatuto e emprestou a gente. A gente leu, aí foi refletir, a gente reuniu-se todo mundo e elegeu uma diretoria, e quando elegeu a diretoria, aí a gente foi fazer como mandava tudinho: Levamos pra registrar no cartório e pu-

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blicar no diário oficial, tudo aquilo que precisava. Aí foi quando a gente foi criando um trabalho assim mais forte e procurando os órgãos [...]60 (BESERRA, 1990b).

Regra geral, a resistência dos trabalhadores rurais é inteiramente dependente de um reconhecimento, ainda que mínimo, da sua inserção na sociedade como cidadãos. Isto é, resistir significa se reconhecer como tendo direitos constituídos. Seria, pois, o caso de se questionar como a novidade dos direitos trabalhistas, sindicais e previdenciário – conquis-tados em consequência de lutas restritas a determinadas regiões do país – chegou ao conhecimento dos trabalhadores rurais que não estiveram diretamente envolvidos com ela. Dissemos, há pouco, que a divulgação desses direitos, assim como a organização dos trabalhadores para o seu cumprimento, esteve diretamente relacionada aos mediadores que, no processo de desestruturação das relações tradicionais de trabalho, coloca-ram-se entre trabalhadores rurais e seus patrões ou o Estado. Mostramos também como, no Ceará, a organização dos trabalhadores rurais de-pendeu, em suas origens, do trabalho desenvolvido pelo PCB. Testemu-nhamos a enorme dificuldade dos comunistas relativamente à definição de suas estratégias de atuação. E também testemunhamos que determi-nadas regiões, a partir de uma análise conjuntural, eram escolhidas como tendo o potencial de comportar uma ação mais eficiente dos mediadores, ou seja, em certo momento, por exemplo, o PCB considerou como mais eficaz, e possível de gerar frutos, a organização dos trabalhadores assala-riados das plantações de cana-de-açúcar nas regiões de serras. A história das organizações camponesas no Ceará nas últimas décadas mostrou-nos que não foram exatamente esses trabalhadores que conseguiram uma or-ganização capaz de fazer pressão e mudar a correlação de forças no campo. Ao contrário, a força dessa organização camponesa veio, prepon-derantemente, da organização dos moradores-parceiros.

Agora a pergunta: esses moradores-parceiros, que se tornaram a vanguarda do movimento camponês no Ceará, teriam conquistado essa

60 Trecho de entrevista concedida à autora em 25 de maio de 1989, para projeto de pes-quisa Esplar. Entrevistado não identificado.

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posição mesmo sem a ação sistemática desenvolvida pelo conjunto de mediadores? A hipótese que aqui defendemos é de que, sem tal apoio, os moradores-parceiros sequer se teriam mobilizado em torno da ban-deira do cumprimento da “lei da renda”. Mas outra indagação surge: não teriam surgido outras vanguardas se a ação dos mediadores não ti-vesse se concentrado nos moradores-parceiros? É possível que sim. No entanto, dificilmente essa ação teria produzido as mesmas consequên-cias que tiveram se os processos econômicos existentes não reivindi-cassem, por assim dizer, o seu surgimento.

Houve, portanto, uma conjugação favorável de fatores que per-mitiram que os moradores-parceiros, e não qualquer outra categoria de trabalhadores rurais, tenham-se tornado a vanguarda do movimento na-quele período histórico. Desse modo, torna-se evidente que, embora crucial, apenas a ação dos intermediários não é capaz de organizar com consequências políticas e sociais qualquer categoria de trabalhadores. No caso dos moradores-parceiros, aliou-se à presença deles, um pro-cesso de expropriação em curso e a existência da lei da renda. Mas, em que daria um processo de expropriação iminente sem os outros fatores? Dificilmente daria numa expropriação de fato, mesmo porque, na con-dição de “não-cidadãos”, os trabalhadores rurais só chegaram a ter co-nhecimento dos seus direitos por meio de terceiros, dispostos ou não a se tornarem intermediários da sua causa. Vejamos alguns exemplos:

Desde 78 que vem esse conflito de Barriguda. A Barriguda não tinha documento, aí César e Antônio Arruda compraram uma terra perto, quiseram tirar um travessão dentro da frente da terra dos posseiros. Aí se juntou mais de 56 famílias e não deixaram... E depois foi o Zé Costa, que é proprietário de terras aqui de Ubajara. Sabia que essa terra não tinha documento, ele mesmo não tinha, mas ele tentou fazer um usucapião dentro dessa área que era a posse de terra nossa... Mas, se fosse pela gente, nós tinha deixado, nós não sabia, nós não entendia da lei também, né? Nós, agricul-tores, se metia só com roça, né?!61 (BESERRA, 1990b).

61 Depoimento de Manuel Inácio, posseiro de Barriguda, Ubajara, Serra de Ibiapaba. Trecho de entrevista concedida à autora em 24 de maio de 1989, para projeto de pesquisa Esplar.

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Nós começamos a trabalhar para a viúva, Mariinha Gomes. Três dias pra ela e três dias pra trabalhar dentro pra pagar a renda, renda de três, uma. E o trabalho era só aqui mesmo, porque, se fosse trabalhar pra fora pra ganhar mais, ela mandava logo se arretirar [...] Aí continuamos nessa vida, trabalhando de três, uma, naquela sujeição, trabalhando naquelas diárias e ganhando pelo menor preço, e fomos vivendo, vivendo... Aí quando foi de 63 pra 64 ela morreu, e os herdeiros tomaram de conta... Dando os maiores acochos aqui na gente, acochando por tudo... Queria todos os direitos, de todo pedacinho, levando, levando... Foi indo, aí ficou por derradeiro, o velho Arimáteia, aí ele conti-nuou na mesma sujeição. Um dia entendeu de botar nós fora, tudo! Tomar as terras que nós já vinha trabalhando de muitos tempo, pagando, pagando essas rendas assim, sem um pequeno direito... Aí, era pra nós não plantar mais! Ficar morando só nas casinhas, sem direito de tirar madeira... Se a casa tivesse caindo, sem direito de reformar mais ela, quando caísse fosse s’embora! [...] E tudo isso sem motivo nenhum. Ele só sabia dizer que era ordem do juiz, que era pra todas as propriedades ficar desocu-padas... Aí rolou, rolou, nós entramos pra justiça. [...] A gente pensava muito em desistir por que a perseguição era grande de-mais! Mas aqui, junto com nós, nos momentos mais quentes, a gente teve essas força! O MEB, o sindicato. O advogado era o Dr. João Alfredo, um doutor que trabalhou fortemente. Certo que tava dentro do trabalho dele, mas ele reforçou mais, viu? Ele reforçava tudo! Por que, naquele momento, as pessoas aqui, tudo fracassadinho, velho, não podia ir procurar os direitos deles lá em cima, na Fortaleza. Aí ele ajudava a gente, dava assistência à gente, e passagem, e tudo! Porque ali foi o homem que só ele ajudou a gente em tudo!62 (BESERRA, 1990b).

Esses dois depoimentos explicitam a importância e necessidade dos mediadores. Em geral, desestruturada a relação da morada e em vias de serem expulsos, os trabalhadores rurais veem-se sós e desampa-rados. Os intermediários surgem justamente com a função de interce-derem em sua defesa nas instâncias apropriadas. Nesse caso, não é su-

62 Depoimento de Seu Raimundo, assentado do Buriti. Trecho de entrevista concedida à autora em 26 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.

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ficiente que estejam informados dos seus direitos, é necessário alguém que trilhe com eles as veredas que podem levá-los à sua conquista. De-tenhamo-nos um pouco mais nessa questão. Com o advento dos meios de comunicação de massa, sobretudo o rádio e a televisão, tornou-se possível a informação ao alcance de todos, ou quase todos. Desde o surgimento dos direitos dos trabalhadores rurais e com o objetivo de esclarecê-los sobre eles, tornou-se comum, sobretudo nas cidades do interior, o aparecimento de programas de rádio, da Igreja ou dos sindi-catos de trabalhadores rurais. Saber que têm direitos já é meio caminho andado, mas não é tudo. Há, portanto, uma distância considerável entre o conhecimento e o usufruto dos direitos sindicais, trabalhistas e previ-denciários. Ou seja, uma coisa é saber que existem direitos, e outra é ter força para fazer cumpri-los.

É na distância que há entre a existência da lei e o seu cumpri-mento que entram os mediadores. Vejamos o caso do Sítio Buriti. Certo dia de 1984, o proprietário comunicou aos seus moradores-parceiros que, a partir dali, só permaneceriam em suas terras aqueles moradores que assinassem um documento onde declaravam ter entrado na terra naquela data. Mesmo não fazendo qualquer sentido a declaração, al-guns moradores assinaram o documento. Outros foram ao STR (Sindi-cato dos Trabalhadores Rurais) para pedir esclarecimento sobre a situ-ação. O STR, então, designou um advogado para o encaminhamento da questão, que, afinal, foi resolvida em favor dos moradores, com a desa-propriação das terras e imissão de posse do Incra na área desapropriada.

Segundo o presidente da Associação de Produtores do assenta-mento de Buriti, quando o patrão decidiu que eles deveriam sair da terra, eles já sabiam da existência dos “direitos”, já tinham conheci-mento de situações semelhantes à sua por meio de programas de rádio destinados ao trabalhador rural. Embora alguns moradores já fossem associados ao sindicato e nele reconhecessem um órgão de assistência médica, sabiam também da sua função de defesa dos seus “direitos”. Por isso, eles o procuraram. Nesse caso, não foi por meio de um tra-balho sistematicamente desenvolvido, como o das CEBs, que tomaram conhecimento dos seus direitos de trabalhadores rurais, mas por inter-médio de informações veiculadas no rádio. Provavelmente também

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desse modo aprenderam que o STR poderia encaminhar sua questão às instâncias apropriadas.

Além de informá-los dos seus direitos, os mediadores devem ter condições de guiá-los rumo à sua conquista. Muitas vezes, interme-deiam no sentido de resolver a questão antes que ela se transforme em conflito. Noutros casos, apenas identificam as situações e não têm como encaminhá-las, como explica Lúcia, assessora do Cetra na região da Serra de Ibiapaba:

Ninguém pode negar que os pequenos avanços, as organiza-ções, o crescimento que houve na classe trabalhadora rural nessa região vieram desse trabalho de base: começou do tra-balho da Igreja, das pastorais, depois veio o MEB e conti-nuou o trabalho e deu nova dimensão depois. [...] priorizou algumas questões que ele considerava mais importantes, como a própria formação de lideranças. [...] Aí veio o acom-panhamento de outros apoios, de outras entidades. Em 79, 80, já chegava aqui um grupo de advogados para trabalhar e já entrava com a assessoria jurídica. [...] E começou, a partir daí, uma nova fase do trabalho com os trabalhadores rurais, porque até então a questão jurídica não tinha aflorado. Era mais a questão da conscientização dos diretos dos trabalha-dores. O pessoal discutia, mas, na hora de viabilizar, não tinha como porque você não tinha com quem contar: o sin-dicato não tinha advogado, a pastoral também não... O sin-dicato era mesmo só para assistência médico-odontológica. Além de que ele era vinculado ao sindicato dos patrões. O presidente do sindicato era pequeno proprietário, mas aí ele se relacionava e defendia o direito dos patrões, por isso o sin-dicato nunca teve a preocupação de ter um advogado. Nem aqui (Tianguá), nem em Viçosa e nem em Ubajara. Quando João Alfredo e Magnólia chegaram aqui, a gente começou a furar alguns espaços, veio a oposição sindical [...] Antes o pessoal desencadeava toda uma luta e, quando precisava de um advogado, não tinha um advogado63 (BESERRA, 1990b).

63 Trecho de entrevista concedida à autora em 26 de maio de 1989 para projeto de pes-quisa Esplar.

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Em geral, os trabalhadores atingidos por alguma ação do patrão procuram o seu sindicato. Dependendo do interesse deste em encami-nhar a questão às autoridades competentes, eles procuram ou não ou-tros mediadores.

Tomemos o caso do STR de Quixadá para explicar outra situação também bastante comum no processo de encaminhamento de questões entre trabalhadores rurais e patrões. Em Quixadá, há então uma evi-dente disputa de mediadores pela direção do movimento camponês local. De um lado, os sindicalistas ligados ao PT por intermédio do de-putado estadual Ilário Marques, que se mantêm na direção do STR desde meados da década de 1970. De outro lado, uma oposição sindical cujas lideranças foram formadas no trabalho de base desenvolvido pela Igreja, por meio de CEBs e CPT. Os trabalhadores rurais que, de algum modo, estão envolvidos com as CEBs e CPT encaminham suas ques-tões diretamente aos órgãos competentes pela assessoria jurídica da CPT, sem a intermediação do STR. A maioria, porém, continua recor-rendo ao STR.

Em Tianguá, Serra de Ibiapaba, os sindicalistas à frente do STR surgiram do trabalho de base das CEBs, não havendo, como no caso de Quixadá, a disputa entre mediadores pela direção do movimento. Assim, todos encaminham suas questões por meio do STR, que, ao contrário de Quixadá, é assessorado pelos dirigentes do MEB, CEBs e Cetra.

De toda sorte e apesar da existência de outras situações seme-lhantes à de Quixadá, ela não é a regra. O mediador por excelência das questões entre trabalhadores e patrões é o STR, seja este combativo ou não. Vejamos alguns exemplos do que pode ocorrer quando o pre-sidente do sindicato é procurado para encaminhar a resolução de algum problema:

Bom, quando chega uma questão aqui, a gente vai ouvir o tra-balhador primeiramente. Qualquer um de nós, da diretoria, vai ouvir o trabalhador e quando a gente vê que é um caso que dá pra gente resolver, que não precisa do advogado, da Justiça, aí a gente marca um dia com o trabalhador e o patrão pra juntar os dois e a gente conversar pra ver se nasce logo dali um acordo [...] “Antes, quando a gente não conhecia muita coisa, a gente tinha

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que tá com o advogado do lado, hoje não, hoje a gente já sabe os casos que precisam de advogado e os que não precisam...”64 (BESERRA, 1990b).

Nem sempre, porém, os presidentes dos STRs procedem assim. É necessário acrescentar que o depoimento acima é de um sindicalista “combativo”. Neste caso, o STR busca promover, se conveniente, um acordo entre as partes que tenha por objetivo garantir minimamente os direitos do trabalhador. E, se possível, como discutiremos adiante, salva-guardar a possibilidade de o trabalhador continuar se reproduzindo de forma semelhante àquela a que estava acostumado. Quando o STR, ao contrário, está mais atrelado aos grupos dominantes locais, quase sempre o encaminhamento é outro. A obrigação do STR de promover acordos entre trabalhadores rurais e patrões é comum, mudam, porém, os termos do acordo. Vejamos o mesmo exemplo do STR de Tianguá sob a gestão do presidente anterior a Antônio Chiquinho: “Ele (o presidente anterior) era desses que se um trabalhador chegasse aqui com um problema ele encaminhava pro prefeito. E pronto! Aí o que era que o prefeito fazia? Chamava o trabalhador, dizia que aquilo não valia nada, [...] dava um conselho e ficava por isso mesmo... (ANTÔNIO CHIQUINHO, idem).

Quando, porém, o trabalhador não aceitava os “conselhos” do prefeito e insistia na questão, era nos seguintes termos que o presidente citado acima propunha resolvê-la:

[...] O que aconteceu com o papai lá em Remissão foi justamente porque ele se pegou com um trabalhador mais esclarecido, né? Em 74, 75, mais ou menos nessa época, ele propôs ao papai que fosse falar com o prefeito, pensando que ele era como outros trabalhadores que ia se levar pelos políticos, pela corriola de po-líticos... E quando ele não encontrou isso em papai, aí propôs a quantidade de indenização da propriedade, e o papai não con-cordou, porque era tão pouco que não pagava nem o desaforo,

64 Depoimento de Antônio Chiquinho, presidente do STR de Tianguá. Trecho de entrevista concedida à autora em 25 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.

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não é? E ele queria levar o papai como levava os outros...65 (BESERRA, 1990b).

Não necessariamente, no entanto, a reação do presidente do STR tem uma relação direta com o seu envolvimento com grupos domi-nantes locais. Muitas vezes, a sua posição é mais expressão do medo de confrontar esses grupos do que evidência de articulação com eles. Em tal situação, é comum que encaminhe o problema a instâncias de atu-ação mais ampla, que, pelo seu raio de ação, tornam-se menos vulnerá-veis às ameaças dos poderes locais ou regionais. Assim, em vez de assu-mirem como sua a luta de determinado grupo de trabalhadores em conflito, o STR transfere essa responsabilidade a órgãos como Federação, Contag, CPT, etc. Em outros casos, e a despeito de todo o medo e dú-vidas, é praticamente obrigado a também entrar na briga, e entra!

Há casos, no entanto, em que o presidente do STR, além de não aceitar se envolver em questões entre trabalhadores e patrões, difi-culta a ação de outros mediadores. Vejamos, por exemplo, o caso do STR de Viçosa do Ceará, Serra de Ibiapaba, nos primeiros anos da década de 1980, quando começaram a explodir os conflitos entre mo-radores-parceiros e patrões:

[...] Lá em Viçosa, a gente (assessoria sindical ligada ao PT) teve problemas com a Federação, que estava sempre interferindo nos processos de eleições do sindicato, e com o presidente do sin-dicato, que era um pelego, e impedia que a gente trabalhasse no sindicato. Teve época que eu (e Porcira) fazíamos o atendimento ao trabalhador debaixo de uma árvore ou na casa de algum tra-balhador porque o presidente fechou as portas pra gente... Mas aí, os trabalhadores pressionavam muito e, de repente, (nas elei-ções) faziam uns acordos e sempre ficava alguém que prestava na diretoria, e os trabalhadores forçavam a barra. Então, faziam com que a diretoria do sindicato não tivesse coragem de botar o advogado pra fora... (Mas) uma vez eles fecharam as portas pra gente. A coisa se acirrou mesmo e o presidente disse que não

65 Depoimento de Vicente, filho de Tarcísio Vieira, sindicalista de Tianguá. Trecho de en-trevista concedida à autora em 25 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.

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queria advogado e ia botar pra fora! Isso era porque ele era pe-lego! E como a gente começou a mexer nos interesses de patrões que eram ligados a ele, e esses patrões iam lá pressioná-lo, aí ele teve que fazer alguma coisa...66 (BESERRA, 1990b).

Não é geral, portanto, e nem natural que a maioria dos sindicatos promova ou tente promover, salvaguardando minimamente os direitos do trabalhador, acordo entre as partes.

Assim, conforme visto, a possibilidade de encaminhamento de acordos favoráveis, ainda que minimamente, aos trabalhadores está re-lacionada a determinado tipo de atuação sindical e não necessariamente ao movimento sindical como um todo. Torna-se, portanto, importante nomear facções e práticas do movimento sindical rural cearense nesta última década:

Em primeiro lugar, não há o “movimento sindical rural cea-rense”, mas o movimento sindical rural sob a hegemonia da Fetraece e, de outro lado, uma oposição sindical ligada ao PT e à CUT. Além dessas duas grandes facções, ainda há aqueles sindicatos que não estão vincu-lados diretamente nem à Fetraece, nem ao PT ou à CUT. Estes, porém, não formam o grupo dos “independentes” no sentido de se orientarem todos por uma mesma prática ou política, na verdade, sequer formam um bloco, a exemplo dos que compõem as facções citadas.

Essas duas grandes facções do movimento sindical rural no Ceará caracterizam-se, cada uma do seu lado, por práticas “relativamente” homogêneas. “Relativamente” porque, se nos aproximarmos um pouco da corrente representada pela Fetraece, observaremos, de um a outro STR, práticas bastante diferenciadas. Assim, não podemos dizer, por exemplo, que o conjunto dos STR liderados pela Fetraece tem a prática de escamotear questões de trabalhadores para beneficiamento dos pa-trões. Ao contrário, nesta facção, encontraremos STRs cujas práticas são bastante semelhantes às dos “combativos”. Isto é, não há homoge-neidade que permita nomear indiscriminadamente um lado ou outro de

66 Depoimento de Magnólia Said, assessora sindical. Trecho de entrevista concedida à autora em 10 de março de 1990 para projeto de pesquisa Esplar.

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“pelegos” ou “agitadores do PT” respectivamente. É evidente, por outro lado, que as nomeações têm algum respaldo nas práticas do conjunto de cada facção. Do lado do “novo sindicalismo”, também não se observa nem homogeneidade de práticas, nem de perspectivas políticas. Sempre há os “combativos” que classificam outros “combativos” de “pelegos” e assim por diante.67

Em segundo lugar, já observamos, há diferentes tipos de acordos. A maior parte dos STRs ligados à CUT procura promover acordos no sentido de oferecer garantias de cumprimento dos direitos adquiridos pelo trabalhador. Essa disposição, porém, não é exclusividade deles, embora seja uma prática mais frequente entre eles.

Os acordos, em geral, são promovidos entre as partes pelo STR do seguinte modo: o trabalhador rural procura o presidente do STR. Após a exposição do seu problema, este convida o patrão para uma conversa a três: patrão, trabalhador e ele. Em cerca de 90% dos casos, o problema é resolvido nesse encontro: diante do presidente do STR, e orientados por ele, patrão e trabalhador entram em acordo. Embora haja uma infinidade de razões para o trabalhador se queixar do patrão, tomemos o exemplo da renda, um tipo de acordo bastante comum na década.

Aconteceu muito aqui acordo por questão de renda [...] porque o caba queria pagar uma renda menor, passar de três/uma pra quatro, pra cinco e até pra dez/ uma, aí começava a briga... e eles vinham aqui [...] Aí a gente chamava o patrão e o trabalhador e eles, depois da conversa deles dois, podem passar de três/uma pra cinco/uma, né? Por exemplo, ele tem três rapaduras, e no lugar de dar uma pro patrão e ficar com duas, ele pega cinco e dá uma e fica com quatro. Tem acontecido muito isso... E aí continua. Mas já tem acontecido também de o patrão querer voltar de novo pro que era né? Aí eles vêm de novo pra outra conversa68 (BESERRA, 1990b).

67 O termo “novo sindicalismo” foi forjado, em São Paulo, para diferenciar as práticas e posições políticas dos sindicalistas ligados ao PT. Utilizaremos aqui generalizadamente os termos “novo sindicalismo” para nos referirmos à CUT; e sindicalistas da Fetraece para nos referirmos ao conjunto restante.

68 Depoimento de Antônio Chiquinho, presidente do STR Tianguá. Trecho de entrevista concedida à autora em 25 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.

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O Estatuto da Terra determina que o parceiro deve pagar uma renda de 10% quando só recebe do patrão a terra nua. O costume, nesses casos, é pagar uma renda que varia de 30 a 50%. Geralmente, os acordos são feitos no sentido de reduzir a porcentagem, porém, apenas excep-cionalmente conseguem reduzi-la à forma da lei. Segundo o presidente do STR de Tianguá, desde que tem participado da diretoria, entre cen-tenas de acordos para redução da renda, somente uma comunidade con-seguiu baixar para 10%. Mesmo assim, em seguida, o patrão encami-nhou um processo de despejo contra esses parceiros. Isto significa que os acordos, em geral, não conseguem baixar o percentual da renda até o proposto pelo Estatuto, o que revela os limites da força do movimento sindical rural. Os trabalhadores conseguem levar os proprietários a ne-gociar, intermediados pelo STR, o que é já uma grande conquista em relação ao que existia vinte anos antes. Daí até conseguirem que a lei seja aplicada em sua integralidade há ainda uma distância razoável. Mas vejamos o que costuma ocorrer quando o patrão sequer tenta uma negociação com os trabalhadores. O caso abaixo relatado aconteceu com o próprio Antônio Chiquinho e outros pequenos proprietários que botavam roçado em terra de terceiro e pagavam renda de 30%:

Lá foi assim: nós pagava a renda de três/uma. Aí nós resol-vemos pagar de 10. O que foi que aconteceu? Ele ficou doido! Mandou um genro lá e chamou todo mundo. Aí foi todo mundo pra casa da fazenda, era vinte e tantos homens. Partimos pra ficar de dez/uma e, nesse dia, ficou de 5. Passou de 3 pra 5 logo! Aí quando o genro chegou e contou pra ele, ele ficou brabo e disse que não queria mais nem saber de gente lá na terra dele, que ia botar pra fora... E nós, eu não sei se vocês conhecem aquele capim elefante, um capinzão! Agora, era puro o dele, e nós arranquemos o capim, tiremos tudo e tinha que tirar pelo menos duas safras pra tirar o prejuízo. Aí quando foi no outro ano, nós dizia que, agora, pelo menos a mandioca nós vamos pagar de dez/uma. Nós fizemos um negócio com o feijão e o milho, aí houve a mesma coisa... Ele encaminhou uma ordem de despejo contra eu e mais dois que tinha lá [...] E logo a gente se reuniu pra ver o que era que ia fazer, e o grupo decidiu: se ele der 12 milhão na roça lá, tá bom demais! Dá até pra nós com-

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prar um pedacinho de chão. Aí nós viemos pra Justiça, trou-xemos a proposta, né? E ele bateu em seis milhão... E eu sei que a gente veio pra Justiça e foi feito o acordo e ele aceitou o que a gente pediu69 (BESERRA, 1990b).

Os exemplos acima representam apenas duas de uma infinidade de possibilidades de acordos entre trabalhadores rurais e patrões, inter-mediados ou não pela Justiça. A nossa reflexão, no entanto, é sobre os acordos não intermediados pela Justiça. O exemplo acima, de acordo intermediado por ela, não é comum. Ou seja, ouvimos de todos os sin-dicalistas que esses acordos, em geral, eram complicados e morosos, e o exemplo acima não expressa isto.

Diante do acordo como uma importante via de solução de con-flitos, ocorre-nos questionar, por que o acordo? Não seria mais provei-toso o acirramento da questão e a transferência da sua resolução para outras instâncias? Os tribunais, o Incra?

A experiência do movimento sindical cearense, de acordo com o presidente do STR de Tauá, diz que não:

Se puder, é melhor fazer logo o acordo porque, quando passa pra justiça, aí complica mais... Complica muito pro trabalhador que não pode ficar sem plantar enquanto a justiça resolve... O traba-lhador não tem condições de esperar muito, né? Ele vive da terra! [...] É assim, quando pode lutar pela terra, quando tem muitas fa-mílias, tá certo, mas, se são poucas famílias e não tem condições de lutar pela terra, é melhor o acordo...70 (BESERRA, 1990b).

[...] A razão de se fazer o acordo e não levar as questões para a justiça são muitas razões: Primeiro, a gente tem que mostrar ao trabalhador que ele é o dono do que é dele, que, no momento de vender, não é juiz que vai dizer é tanto, e nem o advogado, e nem o presidente do sindicato que vai dizer é tanto. Do outro lado a

69 Depoimento de Antônio Chiquinho, presidente do STR Tianguá. Trecho de entrevista concedida à autora em 25 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.

70 Depoimento de Elizeu, presidente do STR Quixadá. Trecho de entrevista concedida à autora em 12 de junho de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.

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gente sabe da morosidade da justiça também. É muito mais fácil se fazer um acordo. Se o trabalhador e o patrão querem, a gente não vai brigar, vamos dizer, pedir um milhão de cruzeiro, mas o patrão tá disposto a dar 800, é melhor naquela hora o trabalhador fazer o acordo nos 800. Isto porque se a questão for pra justiça não vai ter juros e nem correção. O valor continua no mesmo e ás vezes passa quatro, cinco anos e o juiz com a pedra em cima dele, ou seja, de seis em seis meses uma audiência, como é o caso dos colonos. E um advogado apela e o outro advogado apela e fica nessa briga, e o trabalhador sem receber. E o trabalhador, nessas horas, desanima, nós temos muita experiência disto, talvez uns 40 a 50 casos, em Tauá, que foram para a justiça. E o trabalhador desanimou, e depois recebeu qualquer besteira e saiu da terra e deixou até de pagar o sindicato. Quer dizer, achando que era a diretoria que não estava fazendo ação, pensando que era o ad-vogado que não está interessado, quando a gente sabe que é o juiz e a lei também. Porque um apela e o outro também, o patrão tem advogado e o trabalhador tem advogado. [...] No acordo às vezes é preciso pedir mais (por que o patrão vai querer baixar). (Quando) o patrão (diz): eu não quero ir pra justiça, e eu pago, se vale 3 milhões, o trabalhador já tá preparado para pedir 6. Porque enquanto eles vão se batendo, se ele ficar com os três, é exata-mente o que valia. E o patrão que tem medo da justiça é de fato aquele que não tem advogado certo e tem que constituir advo-gado, não é? E gasta muito dinheiro, ele naquela hora se aperreia [...] e até paga o que não vale mesmo pra se sair da questão. Então, um acordo pra nós é a coisa principal, nós só deixamos uma causa ir pra justiça quando o patrão não quer pagar. Nesses três anos e meio que já passamos, nós temos escrito num livro de ata cento e oitenta e tantos acordos. Tudo isto o trabalhador saiu satisfeito com o dinheiro, e tem mais de 60 casos na justiça, aonde o trabalhador não se entendeu bem com o patrão e ter-minou se levando para a justiça e esses casos não funcionam... E aqui e acolá, a gente ainda recebe piadinha daquele trabalhador dizendo que a gente fez acordo com o patrão, e é o maior trabalho tirar da cabeça dele que a gente não se vendeu ao patrão, que a morosidade é da Justiça...” (COSTA, 1984b, p. 8-9).

O depoimento acima mostra que, não se resolvendo no âmbito do sindicato, o processo passa a se arrastar nas veredas morosas da

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burocracia da Justiça brasileira. Somente quando o caso envolve muitas famílias e há pressão dos apoiadores é que há chance de ele ser resolvido mais rapidamente. Ou quando os ânimos ameaçam se acirrar e há possibilidade de culminar em algum tipo violência física entre as partes envolvidas. Ou, ainda, quando uma das partes resolve ceder em função da outra, logo na primeira audiência. Não sendo pressionado de nenhuma dessas formas, nos casos comuns, o poder judiciário acaba funcionando contra os trabalhadores porque a sua morosidade é incompatível com a urgência das necessidades destes, por vezes provocando a sua desistência dos processos, conforme ex-plicaram, acima, os sindicalistas.

O acordo, pois, não deve ser interpretado como uma concessão dos trabalhadores aos patrões e, por isto, de antemão descartável. Se é con-cessão, observamos, é de ambas as partes.71 E, se ainda assim, pode ser visto como concessão, é preciso vê-la como produto de uma correlação de forças conjuntural, e não como expressão da fraqueza do movimento camponês. Muito pelo contrário, numa cultura política onde apenas os patrões tinham direitos, o acordo, em si, já expressa uma vitória do traba-lhador. Além desse significado político, se nem sempre favorece o traba-lhador, pelo menos o introduz no exercício da cidadania, embora, eviden-temente, uma cidadania ainda nascente. Abaixo, em síntese, os aspectos que permitem julgar o acordo favorável ao trabalhador rural:

1) evita a longa espera de uma solução pelos morosos meios ju-diciais;

2) evita as consequências violentas de um litígio em que os ânimos dos envolvidos se acirram;

3) quando é o caso, permite aos trabalhadores, que viveram muitos anos na propriedade, saírem com condições de adqui-rirem sua própria terra. Isto é, quando se trata de moradores antigos, o acordo é encaminhado no sentido de reivindicar do

71 Estamos desenvolvendo esse raciocínio aqui porque, ao longo da pesquisa, ouvimos alguns assessores designarem ironicamente de “pelegos” aqueles sindicalistas que prio-rizam os acordos.

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proprietário uma indenização capaz de possibilitar ao morador a compra de uma gleba de tamanho suficiente para a repro-dução do seu grupo doméstico, na mesma região ou em re-giões próximas;

4) finalmente, o resultado do acordo, informalmente decidido entre as partes, nunca é muito diferente do que seria arbitrado judicialmente.

É necessário ainda esclarecer que os acordos com consequências como as explicitadas no item 3 já fazem parte de uma visão mais avan-çada das facções sindicais vinculadas à CUT. Esses acordos, que pro-põem uma indenização num valor suficiente para a compra de terra para a família continuar se reproduzindo por meio do trabalho rural, são já frutos da compreensão de que os trabalhadores rurais não devem apenas lutar por uma indenização justa, mas pela possibilidade de continuarem se reproduzindo como pequenos produtores, acumulando a vantagem de ser, também, ao contrário de antes, pequenos proprietários.

Nesse caso, a luta é pela garantia de permanência na terra e de manutenção da condição de pequeno produtor, não importando se em terras desapropriadas pelo Estado ou compradas com a indenização a que têm direito. Nessa ótica não interessa muito se esse valor mínimo suficiente para a compra de novas terras é justo para o patrão ou o tra-balhador em questão. Justo ou não, esse valor, suficiente para a compra de outras terras, é a condição da negociação. O que mostra que, nas re-giões onde tais práticas se disseminaram, muitos sindicatos acumu-laram forte poder de barganha e, mais amplamente, o movimento social como um todo.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que os trabalhadores desco-brem novas possibilidades de luta pela terra, como a colocada acima, os patrões sofisticam as suas estratégias de defesa. É novamente Antônio Chiquinho que explica que, nos últimos anos, os patrões já não vão com a mesma frequência homologar acordos no sindicato porque percebem que é mais vantajoso deixar a questão chegar à Justiça: “[...] justamente é essa a questão que a gente tá vendo aqui: eles tão vendo o cansaço da gente com questões na Justiça. Eles notam que a gente não tem tanta

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força com a Justiça, eles têm mais. E aí eles perceberam que a Justiça tava a favor deles. Aí agora eles preferem ir para a Justiça...”.

Apesar de, em alguns casos, os sindicalistas observarem que os patrões estão descobrindo que a Justiça pode ser mais favorável a eles na resolução das questões, o acordo ainda é a via usual de solução de litígios entre trabalhadores e patrões. Dessa forma, é sempre preferível à via judicial porque evita o desgaste de ambas as partes, embora so-mente seja proposto quando não implica em maiores sacrifícios para o trabalhador. Algo assim: pela sua vivência com questões de terra e tra-balho, os presidentes de sindicatos, principalmente os ligados à opo-sição sindical, têm condições de avaliar e mostrar ao trabalhador o caminho conjunturalmente mais viável para a solução do seu caso. Mas, se a questão envolve muitas famílias e isso possibilita um pro-cesso desapropriatório, eles não perdem tempo com tentativas de acordo e já a encaminham diretamente ao Incra.

Não temos condições de avaliar percentualmente a quantidade de questões que se resolvem via acordo em relação às que são encami-nhadas judicialmente porque os acordos não são registrados. O que apresentamos aqui foi conseguido por meio de entrevistas onde os sin-dicalistas lembram um ou outro acordo, mas insistem que é a forma mais corriqueira de solução de litígios no campo do Ceará.

Nesta seção apresentamos algumas razões que favorecem a exis-tência e o desenvolvimento de conflitos entre trabalhadores rurais e pa-trões ao longo da década de 1980. Mostramos também o que levou os moradores-parceiros a se tornarem a categoria mais dinâmica do movi-mento camponês no campo cearense no período. E, finalmente, a im-portância e necessidade dos mediadores no processo de organização dos camponeses. A seguir, estudaremos o sindicalismo e outras expres-sões do movimento camponês.

Sindicatos e associações de produtores: expressões de uma mesma luta?

Em decorrência do surgimento de outras formas de organização no campo, o movimento sindical rural do Ceará, como do Brasil, ini-

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ciava, na década de 1980, o debate sobre a possibilidade de assumir o encaminhamento das crescentes reivindicações econômicas e políticas de suas bases. Será que todas as reivindicações poderiam ser encami-nhadas pelos sindicatos? Será que não exigiam entidades específicas?

As chamadas associações de produtores entraram em cena na história da organização camponesa no processo da complexificação das relações sociais que colocou, num mesmo campo de disputa, as diversas categorias de trabalhadores rurais, de um lado, e representantes das classes dominantes, de outro, além de envolver outros grupos da socie-dade civil e o próprio Estado. É, pois, sobre o relacionamento entre sindicatos e associações de produtores que trataremos aqui.

Por influência do trabalho da Igreja por meio de CEBs, MEB e CPT, desenvolveu-se, em algumas regiões do Ceará, o que estamos cha-mando aqui de “novo sindicalismo”.72 Formadas nos trabalhos de base desenvolvidos pela Igreja, surgiram lideranças fortemente comprome-tidas com as questões da terra e do trabalho rural no estado. Tais lide-ranças conseguiram, em geral, destituir dos sindicatos diretorias antigas cujos compromissos com as classes dominantes locais impediam-nas de lutar em favor da causa dos trabalhadores. Esse sindicalismo de oposição, ligado ao PT e à CUT, começou a se esboçar como uma tendência do movimento sindical cearense a partir da retomada das lutas em 1978 e 1979 coincidindo com a entrada da CPT no campo dos mediadores. Não é, no entanto, um sindicalismo homogêneo cujas lideranças se organizam e se orientam pelos mesmos princípios e práticas. Por outro lado, também não conseguiu se alastrar por todas as regiões do estado de modo a ter condições de disputar e ganhar, por exemplo, a diretoria da Fetraece.73

72 É oportuno esclarecer que havia forte identificação entre a orientação política desses órgãos da Igreja e a do PT. Geralmente, coincidia de as mesmas pessoas serem militantes e dirigentes do PT e estarem ou terem estado vinculadas aos trabalhos de base desenvol-vidos pela Igreja. Além disso, além dos órgãos de assessoria ao trabalhador diretamente ligados à Igreja, como os já citados, havia outras entidades assessoras fundadas a partir de dissidências nesses órgãos da Igreja. A exemplo disso, temos aqui no Ceará: O Cetra (Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador), Atuar, Esplar, entre ou-tros que já não existem mais.

73 Embora a conquista da Fetraece pela oposição se revista da maior importância para a expansão do “novo sindicalismo”, esta não se constitui no seu único espaço de organi-

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De modo geral, porém, o movimento sindical rural cearense passou a vivenciar, a partir da Nova República, sérios problemas de representação das bases. Esses problemas, já discutidos anteriormente, são decorrentes do conjunto de transformações nas relações sociais no campo que, complexi-ficando-as, impôs a discussão urgente de novas formas de mobilização dos trabalhadores rurais, as quais se baseariam na compreensão mais profunda da questão camponesa. Muitos esforços foram envidados nesse sentido. Em 1988, por exemplo, ocorreu em Canindé, sertões de Quixeramobim, um encontro de oposições sindicais cujo foco central foi o problema da compreensão da diferenciação social entre os trabalhadores rurais. A ideia do Encontro era repensar as formas de mobilização dos camponeses à luz das demandas econômicas e políticas das várias categorias e subcategorias incluídas na categoria mais geral “trabalhadores rurais”.

Esse encontro e os outros que lhe seguiram foram já resultados da compreensão de que o sindicalismo rural cearense vivia essa crise de representação das suas bases. Há várias categorias de trabalhadores que o movimento sindical não tem conseguido representar, e isso está rela-cionado com a migração de certas categorias, como os pequenos pro-prietários, para as associações de produtores, em grande parte dos casos e, em proporção menor, depois, para a União Democrática Ruralista (UDR). A categoria dos trabalhadores assalariados, os “alugados”, também não encontra espaços de representação junto aos STRs. Enfim, tudo evidencia que, por uma série de razões já discutidas aqui, o movi-mento sindical só tinha conseguido representar com eficiência a cate-goria dos moradores-parceiros e posseiros. Terá, portanto, a partir de agora, que formular novas estratégias de mobilização, repensando ban-deiras e eixos de luta. A preocupação de repensar essas estratégias de ação do movimento não é, porém, uma preocupação do movimento sin-dical como um todo, mas principalmente dos partidários do “novo sin-dicalismo” que viram, com a emergência dessas formas organizativas, um considerável esvaziamento das suas bases de representação.

zação e representação do sindicalismo, a existência de órgãos paralelos e com função semelhante, tais como a CUT-Rural, por exemplo, permitiu que esse sindicalismo se de-senvolvesse apesar de não hegemônico no âmbito da Fetraece.

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Assim, ao longo da década de 1980, o que havia no campo do Ceará era um sindicalismo heterogêneo onde o “novo sindicalismo” detinha a menor parcela dos sindicatos. Percentualmente, as forças combativas não detinham mais do que 30% dos sindicatos do estado, e a flagrante desvantagem em relação ao sindicalismo, que chama-remos aqui de tradicional, orientado pela Contag, impossibilitava a conquista da Fetraece, órgão que lhe permitiria ampliar razoavelmente seu raio de ação. Com o objetivo de aprofundar o nosso entendimento sobre o sindicalismo no Ceará no período, procuraremos responder às questões seguintes:

a) Por que o “novo sindicalismo” não conseguia se estender além das fronteiras onde estava localizado?

b) O que oferecia aos trabalhadores rurais o sindicalismo tradi-cional, de modo a continuar atrativo para as bases?

Para a resposta a essas questões, é necessário compreendermos melhor a conjuntura política que se configura a partir do início do Go-verno Tasso Jereissati. A sua primeira providência, ao contrário dos go-vernos anteriores, foi a de dialogar diretamente com os trabalhadores rurais, deixando de lado os órgãos de representação já constituídos, in-cluindo sindicatos. Para isto, estabeleceu como prioritária a meta de promover a organização de trabalhadores rurais por meio da formação de associações de produtores: elas se tornariam o canal pelo qual traba-lhadores rurais e Governo se comunicariam.74 Essas associações, bas-tante expandidas pelos incentivos do Programa de Apoio à Organização das Pequenas Comunidades Rurais (Projeto São Vicente), organizar-se--iam sob a assessoria da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará – Ematerce –75 que, a partir daí e da sua opção em tra-

74 Essas associações de produtores vêm sendo criadas desde os fins dos anos 1970, mas o “Governo das Mudanças” incentivará prioritariamente a sua ampliação, na perspectiva de ampliar suas bases populares de representação.

75 A opção da Ematerce pelo pequeno produtor faz parte de uma diretriz da Embrater,

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balhar com o pequeno produtor, teve que redirecionar todo o seu tra-balho de extensão antes praticamente dirigido aos médios e grandes produtores. Ela incentiva os pequenos produtores, proprietários ou não, a se organizar em associações porque esta é a condição para terem acesso aos financiamentos dos programas governamentais, tais como o Polonordeste, PAPP, etc. Desse modo, as associações de produtores foram criadas indiscriminadamente em todo o estado. E, não há dúvida, têm ajudado bastante a controlar o crescimento das oposições sindicais em todo o Ceará porque se têm transformado no canal por excelência de veiculação dos problemas dos pequenos produtores. Curiosamente, por outro lado, não conseguiram melhorar os índices de produção e produ-tividades agrícolas anteriormente verificados. Vejamos o que diz sobre isto Eudoro Santana, Secretário de Agricultura e Reforma Agrária do Ceará, em artigo assinado no O Povo de 15 de dezembro de 1988:

O trabalho da extensão rural passou a se desenvolver mais no campo da organização de grupos de produtores de baixa renda. O objetivo era organizá-los para receber os “frutos” dos programas governamentais (Projeto Ceará, Polonordeste, PAPP, etc.). Os grupos eram formados, não com vistas a tomarem consciência de sua situação, mas com o objetivo de ter acesso aos ‘’serviços’’ do projeto. Dessa forma, não se levou em conta, especialmente no início, o valor das organizações camponesas já existentes com sua experiência produtiva, nem a pesquisa e a difusão de novas tecnologias caminharam conjuntamente. Entretanto, se temos hoje, no Ceará, uma das maiores empresas de extensão rural no país, uma das mais bem equipadas e possuidoras de significa-tivo quadro técnico, as condições de vida do pequeno produtor, mesmo os com terra, pouco mudaram, a produção do estado caiu e a produtividade baixou.

Não tendo sido suficientemente bem-sucedido no aspecto econô-mico como foi no político, o Governo do Estado resolveu promover a

imposta pelos financiadores internacionais por intermédio do Banco Mundial, também a partir dos fins dos anos 1970.

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criação de outro mediador entre ele e os trabalhadores rurais, o “agente rural”. Sobre ele, afirma Eudoro Santana:

Escolhido e avaliado pela própria comunidade (grupo de produ-tores), o Agente Rural deve ser um líder, gostar do campo, ser criativo e se possível (não é fundamental) letrado. Ele funcio-nará como agente de difusão das novas tecnologias adaptadas à realidade daquela região ao mesmo tempo em que será o traço de união entre o saber tecnológico científico (do extensionista) e o saber popular (do camponês). A síntese dessa aparente contra-dição deverá resultar numa tecnologia apropriada às condições e necessidades da comunidade.O Agente Rural não será um novo funcionário do governo. Ele será capacitado pelo governo, mas indicado, contratado e pago pela comunidade que por meio de sua organização formal re-ceberá do ‘’Projeto Agente Rural’’ os recursos necessários para tal despesa, durante um período a ser fixado, a partir do qual a comunidade assumirá o ônus. O agente rural também não poderá dar tempo integral à ação de amplificador da extensão. Ele tem que continuar ocupando a maior parte do seu tempo com sua própria atividade agropecuária (SANTANA, 1988).

Mas não teriam sido apenas as razões acima que fizeram o go-verno Tasso Jereissati criar o agente rural. Em entrevista ao jornal O Povo, Antônio Amorim, presidente do STR de Tauá, uma das lide-ranças da oposição sindical no Ceará, denunciou que havia outros mo-tivos para se criar a função, além dos declarados pelo secretário.

À semelhança dos “agentes de mudanças’’, contratados pelo governo do estado para atuar junto às entidades de represen-tação popular, como as associações de moradores, o Cambeba vem trabalhando também com a figura do ‘’agente rural’’, que busca dar aos sindicatos de trabalhadores do campo uma orien-tação política condizente com os interesses governamentais. [...] Pelo menos 150 agentes rurais já foram formados pela secretaria de agricultura e reforma agrária, embora em Tauá ainda não haja nenhum. Dentro do mesmo espírito, de inter-ferência direta nos sindicatos e demais entidades populares, é que o ex-prefeito de Tauá, Castro Castelo (PFL) fundou, em

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outubro e novembro passados, 27 associações comunitárias no município. “E a determinação do Cambeba era de criar 50 associações’’. [...] Amorim conta que ainda hoje as supostas lideranças das entidades forjadas pelo ex-prefeito aguardam a publicação no diário oficial, da nota de criação das entidades, “como o governo prometeu a eles fazer’’. Segundo lembra Amorim, havia também a determinação governamental de engajar a própria Ematerce nesse trabalho. “Eles chegaram a usar a Ematerce para isso, o que é um absurdo, porque, como órgão do governo, ela tem obrigação de dar assistência técnica rural, e não servir aos interesses políticos do governo do es-tado’’ – critica. [...] Ao lembrar que a própria Federação dos Trabalhadores Rurais – FETRAECE – está atualmente contra o STR de Tauá, Amorim destila: “É uma federação que depende totalmente do estado. Sem dúvida, este foi um dos governos mais perigosos que já tivemos, pois é um governo de coop-tação’’. Para demostrar que a oposição da Fetraece tem se con-vertido em atos de perseguição – que trazem grandes prejuízos para os camponeses – o sindicalista conta que as verbas para o apoio educacional do PAPP foram entregues pelo governo à Fetraece e todos os 52 projetos da área enviados pelo STR de Tauá, solicitando custeio, foram rejeitados.– O Cambeba transfere poderes para eles, e eles só fazem o que o governo quer – observa Amorim. Ele acentua ainda que a CEPA e a SUDENE foram oficializadas do desvio de verbas do APCR (verbas do PAPP), mas não tomaram providências. “Ao contrário, os 631 mil cruzados velhos referentes a 87/88 que faltaram nas notas da federação, foram cobertos não se sabe como...’’ (AMORIM, 1989).

Tudo parece evidenciar, portanto, a intenção do governo de es-vaziar o movimento de oposição sindical, porque, conforme expli-cado no depoimento de Amorim, havia uma identificação muito forte do governo e dos seus planos com o sindicalismo da Fetraece, o que demostra que, de certo modo, essa facção do movimento sindical acu-mulou bastante força dessa comunhão com o Governo, força que po-deria levá-la a reanimar o assistencialismo e o clientelismo no movi-mento sindical, abrangendo, também, o âmbito da organização produtiva dos trabalhadores rurais.

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Ainda na perspectiva de minar as bases do movimento de opo-sição sindical, a segunda providência do “governo das mudanças” foi desestruturar a ação de mediadores ligados a órgãos estatais cuja ação, em certas regiões, é claramente responsável pela pressão do movimento contra o Governo do Estado. Assim, por exemplo, logo da sua entrada, Tasso Jereissati transferiu funcionários (da Ematerce, CEPA, Secretaria de Agricultura, etc.) aliados à oposição sindical com o objetivo de im-pedi-los de prosseguir organizando forças políticas opostas ao seu Go-verno. Por meio da Fetraece, capturou o movimento, complementando, em parceria com esta, um conjunto de programas e projetos de atendi-mento ao homem do campo.

Estabeleceu-se, a partir de então, uma convivência orgânica do movimento sindical com o Estado, e uma das mais evidentes consequên-cias disso é a perseguição e desmantelamento das oposições, sobretudo pela via da contrapropaganda sistematicamente veiculada pelos meios de comunicação de massa. Um dos exemplos é a seca verde, que vi-vemos neste ano de 1990. Temos presenciado, em diversas cidades do Ceará, saques de trabalhadores rurais e passeatas onde se reivindica o estabelecimento do programa de emergência. Nos municípios onde o STR é controlado pelas oposições, alguns noticiários atribuíram os acon-tecimentos à ação “irresponsável” dos sindicalistas “agitadores” ligados ao PT, o que é um exagero, uma vez que as mobilizações contra as con-sequências da seca são anteriores mesmo à existência do PT.

É importante, porém, chamar a atenção para o fato de que, em 1988 e 1989, os sindicalistas de oposição e os seus assessores fundaram algumas dessas associações às quais imprimiram caráter diverso do do-minante. Tal decisão foi fruto da reflexão sobre a crise que estavam vi-vendo e que passava, entre outras coisas, por uma discussão profunda das atribuições do movimento sindical rural. Essa discussão, que se in-tensificou com a entrada do Movimento dos Sem Terra na cena esta-dual, tem produzido reflexões que possibilitam rever os limites da re-lação sindicato-Estado e, além disso, o significado, para o movimento sindical, da existência de outras entidades (como as associações de pro-dutores) atuando no mesmo campo de representação de classe (SILI-PRANDI, 1988).

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As diversas correntes que compõem a oposição sindical no Ceará se posicionaram diferentemente em relação à questão. Houve receios de alguns de que o sindicato, envolvendo-se em questões ligadas ao Governo, fosse por ele cooptado e, assim, voltasse a servir mais aos interesses dos grupos dominantes do que dos pró-prios trabalhadores.

Por outro lado, receia-se que, se o STR não participar da disputa, acabará por perder significativas parcelas das suas bases. Além disso, embora as questões relacionadas à organização da produção não fossem atribuição por excelência dos sindicatos, são problemas do trabalhador rural. Se o sindicato se recusa a enfrentá-los, estará deixando o campo livre para a proliferação de entidades que respondam a esse tipo especí-fico de demanda. Estará, portanto, admitindo dividir o seu espaço com essas entidades e, consequentemente, admitindo também perder espaço. Hoje se discute bastante sobre a necessidade e importância de os sindi-catos assumirem demandas relativas à organização da produção, senão diretamente, em comunhão com as associações de produtores. À me-dida que essa questão se resolve, buscam-se formas de relacionamento, as quais têm produzido resultados variados: 1) os sindicatos estão criando, na sua estrutura, espaços de convivência e discussão com as associações; 2) tomam a iniciativa de fundá-las e 3) procuram ganhar para a sua causa as associações já existentes.

Na base dessas experiências, está a ideia de que, em vez de es-tarem dividindo o seu espaço com essas associações, os sindicatos estão a elas somando sua força, de modo que ao final o movimento camponês como um todo sairá ganhando com o trabalho conjunto das duas entidades rumo à ampliação dos espaços de luta para a conquista da cidadania do trabalhador rural.

O que são as associações de produtores?As associações foram criadas com duas intenções fundamental-

mente: 1) atender aos requisitos dos programas de apoio ao pequeno produtor que passam a financiá-lo apenas mediante a apresentação de projetos os quais somente podem ser submetidos se assinados por pessoa jurídica; 2) reivindicar serviços do Estado, tais como energia elétrica, estradas, educação, lazer, etc.

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Potencialmente, sindicatos e associações são integrantes de um mesmo campo de defesa de classe (SILIPRANDI, 1988), mas têm atri-buições específicas. De modo geral, os sindicatos se especializaram em intermediar questões entre trabalhadores rurais e patrões, isto é, têm ocupado o espaço referente à representação de classe, e sua atuação sempre se deu mais nesse campo, como um regulador dos níveis de exploração do trabalho. Desse modo, lutam pela reforma agrária, pelo cumprimento da legislação trabalhista, por políticas agrícolas favorá-veis aos pequenos produtores etc. Mas, na luta pela conquista da cida-dania para o trabalhador rural, o sindicato raramente se dedicou à luta pela extensão dos serviços públicos ao meio rural, por exemplo. As as-sociações de produtores, ao contrário, já surgiram com a função de am-pliar o acesso dos trabalhadores rurais aos serviços cuja existência per-mite uma evidente melhoria das suas condições de vida. Seu alcance, ao contrário do que pode sugerir a sua denominação, é abrangente e se estendia indistintamente aos pequenos produtores sejam estes “meeiros, arrendatários, assalariados ou até mesmo àqueles que não possuem terra”. Apesar dessa abrangência, essas associações aglutinam princi-palmente os trabalhadores que possuem terra, uma vez que a mobili-dade espacial das outras categorias de pequenos produtores dificulta que delas participem.

Sinteticamente, as associações de produtores preocupam-se em reivindicar do Estado a democratização dos serviços públicos, tais como os mencionados anteriormente, mas, além disso, podem barga-nhar financiamentos para o custeio e melhoria da produção. Nesse sen-tido, a sua política é a política cotidiana, sua função, por assim dizer, é a de levar para os pequenos produtores os frutos do reconhecimento político conquistado pelo movimento camponês ao longo das últimas décadas. Reconhecidos politicamente como cidadãos, queriam ser cida-dãos de fato. Querem, como os outros cidadãos, o acesso às conquistas da modernidade que tornam sua existência mais confortável. É verdade que não foi com esse intuito apenas que o Governo incentivou a sua criação, mas foi com esse propósito e com o objetivo de acumular forças para o movimento camponês, que se desenvolveu a campanha dos sindicalistas no sentido de lhes impingir esse caráter. Reivindicando

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cotidianamente a extensão dos serviços públicos ao campo, as associa-ções de produtores, formam, com os sindicatos, canais de expressão de uma mesma luta: a da conquista da cidadania do trabalhador rural.

A gente mesmo, aqui do sindicato, organizou muitas asso-ciações de produtores, com elas é mais fácil conseguir tudo: é um crédito de custeio, é energia, é água, é uma estrada...76 (BESERRA, 1990b).

Eu acho que a associação ela não deva tomar o lugar do sindi-cato, que o sindicato seja toda vida um órgão dos trabalhadores, mesmo que ele não apoie todos os trabalhadores, mas a gente luta até ver se é possível melhorar mais o sindicato. Agora, a as-sociação serve pra dar mais uma força à organização e também pra ver se com ela a gente podia arranjar alguma coisa, organi-zado sempre é mais fácil... É uma energia, um projeto, é irriga-ção...77 (BESERRA, 1990b).

Além das diferenças relacionadas entre as duas entidades, há ou-tras: a base territorial, a forma legal de existência, etc. Por exemplo, num mesmo município, é possível existirem tantas associações quanto as diversas comunidades de trabalhadores rurais achem necessário. Já a legislação sindical vigente só admite a existência de um sindicato por município. Além disso, as associações são livres, ou seja, não nascem como os sindicatos, já atrelados ao Estado, embora possam ter com este uma convivência até mais próxima. Pelo fato de poderem ser fundadas onde os trabalhadores rurais consideram necessário, as associações têm, ou podem ter, um raio de abrangência maior do que os sindicatos. E surgiram, como já dissemos, com o objetivo de encaminhamento de demandas específicas de categorias de trabalhadores.

Porém, o que há de “específico” nos encaminhamentos pelas associações pode também ser encaminhado pelo sindicato: não há ne-

76 Depoimento de Seu Manuel, tesoureiro do STR Tianguá. Trecho de entrevista concedida à autora em 25 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.

77 Depoimento de João Sabino, arrendatário do Choró, Quixadá. Trecho de entrevista con-cedida à autora em 10 de agosto de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.

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nhuma disposição de princípio que impeça o sindicato de lutar pelas reivindicações encaminhadas pelas associações. Mas há, e isto é fun-damental, um conjunto de atribuições que foram historicamente com-pondo um campo de defesa e atuação próprio do sindicato. E isso não apenas permite que as associações sejam criadas como, de certo modo, até reivindica a sua criação. Nessa perspectiva, de fato, as associações ocupam amplo espaço de atuação negligenciado pelo sindicato, ou simplesmente fora do seu conjunto de atribuições. Vejamos a análise de Siliprandi (1988, p. 18):

As supostas contradições entre as atribuições de um sindicato e de uma associação, parecem estar, dessa forma, situadas pratica-mente no âmbito da política específica levada em cada situação. Ainda que seja evidente que existem diferenças entre os dois tipos de entidades – pela abrangência, base territorial forma legal, etc. – torna-se claro que há campos comuns de atuação e mesmo papéis sociais e políticos que podem ser assumidos por quais-quer delas. Nesse sentido, pode-se pensar que o papel político que cada tipo de entidade pode desempenhar está condicionado por suas concepções e práticas, e pela direção implementada às suas ações (no sentido de uma maior autonomia, combatividade, democracia interna, articulação com outras instâncias, etc.). Não está dado, a princípio, um caminho único – de cooptação, ou perda de autonomia frente ao Estado, por exemplo – seja para os sindicatos, ou para as associações. Da mesma forma, não está dado que a relação entre as diferentes entidades deva ser necessariamente de competição, ou de complementaridade. Cada processo poderá conter seus desvios, retrocessos, etc., em função do jogo das forças políticas envolvidas, e da capacidade, dessas mesmas forças, de identificarem em cada momento seus inimigos comuns, assim como seus aliados.

Passemos agora às questões que a existência dessas associações tem suscitado entre as oposições sindicais no Ceará nos últimos anos da década de 1980.

As situações e as interpretações são as mais variadas, mas toma-remos alguns casos que nos ajudarão a compreender por que elas nem sempre têm o apoio ou trabalham conjuntamente com o sindicato. Em

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geral, como vimos, elas surgiram da exigência dos programas especiais de assistência ao pequeno produtor, ou seja, foram criadas com a intenção clara de permitir aos pequenos produtores o acesso aos financiamentos do Estado. No Ceará, a Ematerce, órgão de extensão e assistência técnica do governo, orientou a fundação de grande parte dessas associações, com ou sem vinculação com os sindicatos – a não ser pelo fato de que elas ti-nham de ter o seu aval. Esse aval, é importante esclarecer, é concedido pelos sindicatos sem maiores dificuldades, o que não cria necessaria-mente uma dependência deles. Livres para se organizarem à revelia dos sindicatos, muitas vezes, tais associações conseguem, mais do que os próprios sindicatos, imprimir maior dinamismo ao movimento cam-ponês em certas regiões e, em outras, organizam-se explicitamente com o objetivo de se oporem aos sindicatos, como é o caso, por exemplo, de Canindé, onde um conjunto dessas associações se organizou numa Fede-ração na perspectiva de esvaziar politicamente o sindicato. O maior ar-gumento, no entanto, para a desconfiança que existe em relação a elas é o fato de a sua criação estar tão organicamente vinculada ao Governo. Nesse sentido, elas são criticadas porque pretensamente inauguram novas formas de assistencialismo e clientelismo. Isto é, antes de estarem preocupadas em organizar os pequenos produtores no sentido de cons-trução da sua cidadania, funcionam como redutos do assistencialismo e clientelismo dos governos estaduais da região Nordeste. Para se de-fender de tal “ataque”, o movimento sindical de oposição tem ampliado o seu raio de ação por meio de um trabalho com elas.

Essa mudança de perspectiva dos sindicatos em relação às associa-ções não se traduz evidentemente, do dia para a noite, em uma mudança de relação entre as duas entidades. Há ações deliberadas do Governo, e dos técnicos da Ematerce, no sentido de dificultarem a ação das associa-ções identificadas com os sindicatos de oposição: “Eles (técnicos da Ematerce) não dão assistência... Nunca têm tempo... parece que já sabem as associações da oposição. E quando a gente leva os projetos pra eles, eles não encaminham. É assim.”78 (BESERRA, 1990b).

78 Depoimento de Seu Antônio, Quixadá. Trecho de entrevista concedida à autora em 12 de junho de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.

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Assim, as dificuldades do movimento sindical de oposição no Ceará não são somente consequência do surgimento de novas formas de organização e representação, como as associações de produtores, mas re-sultado, também, de uma incapacidade mais geral de articular e repre-sentar toda a diversidade de categorias que hoje compõe a classe traba-lhadora rural no período. Deixa, desse modo, espaços abertos para o surgimento de outras entidades de representação. Essa incapacidade tanto pode ser estrutural, do sindicato, como relacionada conjunturalmente à formação de lideranças nas várias categorias existentes de trabalhadores rurais. De toda sorte, o movimento sindical tem-se empenhado na busca de respostas a essas demandas, seja se associando às novas entidades que surgem, seja criando, dentro da estrutura do sindicato, departamentos que atendam às demandas específicas de cada categoria. Mas, antes de tudo, são questões bastante recentes e impossíveis de se compreender em toda a sua extensão e profundidade, inclusive porque as associações aglutinam apenas algumas categorias de trabalhadores rurais. Os trabalhadores assa-lariados, os “alugados”, ainda sem organização, representam ainda um dos grandes desafios do movimento sindical no estado.

Para concluir esta seção, voltemos às questões propostas ante-riormente: o que alimenta o sindicalismo da Fetraece e impede a ex-pansão do “novo sindicalismo”?

As respostas, ou pistas, à questão já foram desenvolvidas ao longo do texto, mas acrescentaremos o seguinte:

1) O sindicalismo ligado à Fetraece beneficiou-se bastante da aliança com o “Governo das mudanças”, e isso possibilitou sua expansão.2) Já o sindicalismo ligado à CUT, além da política de exclusão desenvolvida pelo Governo do Estado em parceria com a Fe-traece, tinha problemas ligados à formação de lideranças. E ainda, ou sobretudo, problemas decorrentes da disputa entre as diversas facções que o compunham.

As diversas tendências do sindicalismo de oposição preocu-pam-se mais em disputar entre si espaços já conquistados do que em

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ampliá-lo rumo à conquista do seu principal opositor, a Fetraece. Mas essa é outra questão, e, apesar da sua importância, está fora do nosso interesse explorá-la.

Expressões da conquista do movimento camponês: os assentamentos da reforma agrária

Da forma como visto pelos movimentos sociais rurais, os assen-tamentos da reforma agrária representam, em geral, uma importante conquista do movimento camponês, mas, ao mesmo tempo, expõem os seus limites e fraqueza. Expressam a impossibilidade da reforma agrária nos termos pelos quais o movimento tem-se mobilizado: ampla, mas-siva e imediatamente.

De todo modo, com todos esses significados, os assentamentos da reforma agrária tornam-se alvos fáceis dos que não acreditam numa reforma agrária sob a direção do campesinato. Critica-se, principal-mente, a capacidade de gestão ou autogestão dos camponeses nos as-sentamentos. Segundo tal crítica,79 os camponeses não estão preparados para responder positivamente aos desafios que a realidade dos assenta-mentos da reforma agrária lhes impõe.

Embora haja muito a se refletir sobre as experiências de assen-tamentos existentes até agora, limitar-nos-emos a refletir sobre a proposta da organização e administração coletivas da produção nessas unidades.

É necessário que se compreenda, primeiro, que a conquista da terra, ao contrário do que podem supor os incautos, não é a conquista do paraíso, mas o início do enfrentamento, sem tréguas, de um conjunto de problemas antes desconhecidos dos trabalhadores (BESERRA, 1990a). Ou, como já dizia o Movimento dos Sem Terra, “a conquista da terra livre não é ponto de chegada, mas ponto de partida” (FRANCO, 1988, p. 23).

Em segundo lugar, é preciso levar em consideração que nem sempre todos os premiados com a terra livre participaram igualmente

79 Essa crítica sobretudo feita pelos grandes proprietários rurais não se restringe, no entanto, a eles. Hoje chega a ser uma crítica do próprio movimento sindical de oposição.

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da luta pela sua conquista, isto é, além de os assentamentos terem de enfrentar problemas da sua própria existência como tal, como a gestão coletiva da produção, por exemplo, ainda têm de lidar com as dife-renças internas dos trabalhadores que os compõem.

Os passos até o assentamento são: os trabalhadores rurais em li-tígio com o proprietário ganham a causa na Justiça, as terras são desa-propriadas, e o Incra faz a imissão de posse.

Geralmente, todos os trabalhadores moradores da propriedade, independentemente de terem ou não lutado pela causa, passam a compor o que, a partir de então, chamar-se-á de assentamento da reforma agrária. Todo o processo de implementação da nova forma de adminis-tração e organização da produção se dará sob a assessoria dos técnicos do Incra. Então, o primeiro desafio é o da substituição de mediadores: os camponeses passam a se relacionar mais diretamente com o Estado, por intermédio do Incra e instituições de crédito e assistência técnica, muitas vezes afrouxando os laços com o sindicato e as outras entidades que os apoiaram anteriormente.80

O outro desafio é o da gerência e organização coletivas da pro-dução. Acostumados a viver sob a tutela de patrões e tendo apenas a experiência da organização de pequenas unidades familiares, ve-em-se, repentinamente, diante da tarefa de gerenciarem coletivamente uma grande produção que é de cada um e de todos. Quer dizer, como se não bastasse o desafio da organização coletiva, ainda há a novidade da administração de uma grande produção, em que a relação com o mercado é bem mais estreita e que, por isso, requer todo um conjunto de conhecimentos que eles não tinham e que também não se pode exigir que adquiram da noite para o dia, num passe de mágica.

Mas o tipo de aprendizado que a nova realidade demanda vai além do que se refere aos aspectos da vida prática: é necessária a cons-trução de uma nova forma de compreensão da existência.

80 Essa substituição de mediadores também relaciona-se com o fato de que o movimento camponês não tem nenhuma experiência com o tipo de problema com que se deparam os assentados, ficando, portanto, até que tal experiência seja construída, impedidos de atender às demandas suscitadas pela nova realidade.

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Em primeiro lugar, esses trabalhadores precisam se convencer de que a terra é sua e não do Governo. A ideia de que estão ocupando uma propriedade pública, do Governo, pode levá-los a se utilizar da terra e das benfeitorias, adquiridas por financiamentos para projetos especiais com esse fim, numa perspectiva não sustentável. Não sendo ou sen-tindo-se donos da terra, apenas se utilizam dos seus frutos sem o em-penho de reproduzi-los. Algo do tipo: “vamos aproveitar enquanto o Governo não vem...”.

Considerando, portanto, que a terra, de fato, não lhes pertence, é difícil se convencerem de que podem ficar à vontade para criar, agir, ousar, trabalhar. Ações que, se investidas na própria terra, reverter-se--iam, a curto ou médio prazos, em melhoria das condições de vida das suas famílias e de toda a comunidade. Não podemos, pelo alcance da nossa pesquisa, afirmar se a compreensão que os assentados têm dos assentamentos já é resultado da ação dos técnicos, ou se está relacio-nada à cultura mais geral de que o que é público não pertence a nin-guém, ou pertence aos que dele primeiro se apropriam.

Apesar de esta ser uma concepção bastante representativa entre os assentados, não é, no entanto, geral. Muitos assentados veem o as-sentamento como a possibilidade de conquistarem melhores condições de vida: trabalho, saúde, educação, lazer. Enfim, veem no assentamento a possibilidade de conquistarem uma existência mais digna, mais con-fortável. São estes que dão tudo de si e das suas famílias, confiantes no projeto de uma vida melhor. Mas essa atitude entra em choque com a atitude de outros que não a respeitam, nem se empenham na construção do mesmo projeto.

O resultado mais tangível desse conflito de perspectivas se expressa na dificuldade de organização e administração da produção.

Aqueles que acreditam na execução do projeto e se empenham nesse sentido sentem-se desestimulados pelos que, mesmo não tendo feito o menor esforço na primeira fase de implantação do assentamento, usufruem igualmente de seus frutos.

Por outro lado, mesmo aqueles que se empenham em construir melhores condições de vida para si e para a comunidade não se desven-cilharam ainda da visão de mundo anterior. Observamos, por parte de

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alguns, uma grande dificuldade em encarar o assentamento como uma empresa coletiva da qual se podem esperar certos níveis de produção e produtividade. Os assentados continuam raciocinando que o mínimo necessário – ao qual estão acostumados – já é suficiente. Não incorpo-raram ainda as demandas de uma vida mais confortável do ponto de vista do consumo de bens e serviços.

Por último, há muitos problemas com as lideranças resultantes de uma espécie de confusão com o poder. Muitos dirigentes confundem-se ou são confundidos com os antigos patrões, abusando da confiança dos outros assentados que, em geral, são também analfabetos.

Além dos problemas aqui relacionados, há muitos outros refe-rentes à organização em assentamentos. Apresentamos apenas aqueles aos quais os assentados mais se referiram.

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CONCLUSÃO

O Movimento dos Sem Terra no Ceará e as novas perspectivas para o movimento camponês

Fazendas Reunidas São Joaquim, 17 de junho de 1989. Manhã de sábado. O primeiro acampamento dos Sem Terra no Ceará está montado aqui desde os fins de maio último, quando se deu a ocu-pação da área. São trezentas famílias acomodadas em pouco mais de cem barracas cobertas de lona e plástico preto. O calor é insu-portável. Seu Alonso leva-nos a conhecer 3 crianças nascidas em meio à profusão de vozes, fumaça e medo. Ansiosos, e ainda per-plexos com a si tua ção, os trabalhadores reúnem-se em torno de nós e dos gravadores e relatam as suas histórias. São famílias vindas das mais diversas cidades do Sertão Central, preponderantemente de Quixeramobim e Quixadá, de onde vieram respectivamente 100 e 96 famílias. Na sua maior parte, são ex-moradores-parceiros que, esperançosos ante a possibilidade de conseguirem terras e condições para produzi-las, deixaram suas moradas anteriores e, por incentivo do MST, estão agora radicados aqui. Entre tensos e esperançosos, aguardam a aprovação, pelas autoridades competentes, de um pro-jeto de reforma agrária para as terras ocupadas. Seus olhares, gestos e palavras dizem que seguem os líderes do movimento dos Sem Terra como seus ancestrais seguiram Antônio Conselheiro ou o beato José Lourenço: não é a consciência, é a fé e a esperança de se reprodu-zirem como camponeses que os traz aqui...81 (BESERRA, 1990b).

81 Diário de campo da autora em 17 de junho de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.

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Os últimos anos têm sido de grande riqueza para o movimento camponês no Ceará, sobretudo riqueza de reflexão. Os assessores do movimento buscam, com preocupação, explicar as razões da calmaria reinante entre 1985 e 1990. Uma das perguntas mais constantes é: por que as lutas se escassearam? Nem sempre quem pergunta tem clara a trajetória do movimento desde o seu princípio, na década de 1950. Porém, a compreensão desenvolvida ao longo deste estudo permite-nos afirmar que a “escassez” se refere apenas às lutas que envolvem mora-dores-parceiros e patrões. As lutas de posseiros contra grileiros, por exemplo, tornaram-se mesmo mais sistemáticas. Mas isto não parece suficiente para injetar ânimo nos que fazem o movimento social campo hoje porque, como o movimento dos moradores-parceiros, o dos pos-seiros também tem limites próximos: mais dia menos dia, terão ou não suas posses legalizadas e não mais constituirão uma categoria social em luta pela terra. O que se aprende, em conversa com sindicalistas e asses-sorias do movimento, é que não há nenhuma bandeira que mobilize todos os trabalhadores rurais, e isto pode sugerir que eles desistiram da luta, ou, ao menos, do alarde, da visibilidade. Provavelmente porque se criaram mecanismos para a solução dos problemas que antes chegavam às ruas – o que não significa de nenhum modo que os trabalhadores rurais cearenses conquistaram todas as suas reivindicações e não têm mais razão para continuarem na luta. De fato, os salários do trabalho alugado continuam miseráveis; a produtividade das terras permanece caindo; é ainda grande o número de latifúndios improdutivos, ou seja, a estrutura agrária continua produzindo concentração de terras de um lado, e o êxodo rural continua aumentando a miséria das cidades centro--regionais, de outro.

Se todos esses problemas, além de outros, continuam e até se agravam com o passar dos anos, isso não significa, entretanto, que outros problemas não tenham sido resolvidos: o trabalho sujeito foi erradicado e, de certa forma, consequência da desestruturação das relações tradicio-nais de trabalho, o trabalhador rural, o camponês começa a ter outro es-tatuto, torna-se, cada vez mais, um cidadão como qualquer outro, com seus direitos reconhecidos constitucionalmente. Mas, para que esse re-conhecimento se aproxime das promessas constitucionais, ainda há

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muito chão para se caminhar, e essa caminhada rumo à cidadania também requer mudanças nas orientações e práticas dos mediadores. Afinal, muito há ainda a se conquistar ou, se pensarmos melhor, agora é que a luta se inicia: há ainda uma reforma agrária por se realizar. Há milhares e milhares de trabalhadores assalariados (os “alugados”), que, embora tenham seus direitos constituídos há quase cinco décadas, não usufruem ainda, de fato, desses direitos. Enfim, ainda há muito a se fazer.

Foi nesse contexto de certo marasmo, por um lado, e de tantas coisas ainda por que se lutar, por outro lado, que o Movimento dos Sem Terra chegou há um ano, em 1989, ao Ceará. Organizando, inclusive à revelia do movimento sindical de oposição, os trabalhadores rurais para as ocupações, os Sem Terra, em questão de dias, deram novo ânimo ao movimento camponês cearense.

A luta pela terra que, ao longo da década de 1980, esteve condi-cionada à resistência dos moradores-parceiros e dos posseiros, torna-se ampla o suficiente para abranger não apenas algumas categorias de tra-balhadores rurais, mas todos aqueles que se identifiquem como “sem terra”. Nessa nova perspectiva, a reforma agrária deixa de ser privilégio dos trabalhadores em litígio com proprietários para se tornar um projeto mais amplo que, a princípio, abrange todos os trabalhadores rurais sem terra, sejam estes “alugados”, que habitam as periferias das pequenas ou grandes cidades, ou remanescentes dos moradores-parceiros ou pos-seiros. Enfim, todo e qualquer trabalhador rural “sem terra” torna-se um potencial beneficiário da reforma agrária, o que amplia consideravel-mente o raio de ação do movimento.

Além dessas novas perspectivas trazidas pelo MST para o con-junto dos trabalhadores rurais cearenses, é inegável a sua importância também para as lideranças existentes. A sua entrada no Ceará impõe não apenas uma reflexão crítica da ação do movimento camponês nos últimos anos, mas obriga, por assim dizer, certa reciclagem das lide-ranças que viram, perplexas, em questão de dias, os “Sem Terra” or-ganizarem para as ocupações trabalhadores rurais dos quais eles (as lideranças) sequer conseguiam se aproximar.

Esses, pois, têm sido os reflexos mais imediatos da entrada dos “Sem Terra” na cena do movimento camponês cearense. Entre 1989 e

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este ano de 1990, eles organizaram várias ocupações e conseguiram, com uma rapidez desconhecida anteriormente, a imissão de posse do Incra e a aprovação de projetos de assentamento de reforma agrária.

Esses são os reflexos positivos da entrada do MST. Por outro lado, e com uma história tão incipiente, já começam a acumular críticas, inclusive de trabalhadores desistentes de ocupações. Critica-se, sobre-tudo, a sua ação intempestiva, que, com a mesma rapidez com que reúne centenas de trabalhadores, também dispersa-os. Ou seja, da mesma forma que os trabalhadores rurais acompanham com muita faci-lidade os dirigentes do MST, por acreditarem que eles, tão rápido quanto organizam as ocupações proporcionam mudanças positivas nas suas condições de vida; com a mesma rapidez, esses trabalhadores desistem e saem denunciando que o vivido nas ocupações não é bem o prometido durante a mobilização.

De toda sorte, é muito recente ainda a entrada do MST no movi-mento camponês cearense para que seja possível avaliar algo além dos reflexos imediatos que trouxe ao movimento. Nesse sentido, a sua en-trada, apesar do tumulto que causou, está sendo bastante benfazeja.

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A AUTORA

Bernadete de L. Ramos Beserra é bacharel em Ciências Sociais (1983) e mestra em Sociologia Rural (1989) pela Universidade Fede-ral da Paraíba, Campina Grande. PhD em Antropologia (2000) pela University of California, Riverside, desenvolveu estudos pós-douto-rais no Latin American and Latino Studies Program da University of Illinois, Chicago (2006/2007) e no Latina e Latino Studies Program, da Northwestern University (2012). Professora da Faculdade de Edu-cação da Universidade Federal do Ceará, desde 1991, tem ministrado disciplinas e desenvolvido pesquisa na área de Educação e Movimen-tos Sociais e Sociologia e Antropologia da Educação, além de colabo-rado com o Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira nas áreas de cultura brasileira e antropologia da educação. Autora de Bra-sileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos (Hucitec/Edunisc/UFC 2005), tem desenvolvido pesquisa e publicado livros e artigos sobre imigração brasileira, latinidade e racismo nos Estados Unidos e, parte da mesma preocupação com a produção de conheci-mento sobre processos de discriminação, exploração e dominação, tem estudado, desde 2006, a discriminação racial e social nas práticas acadêmicas na Universidade Federal do Ceará. Mais recentemente, em parceria com Rémi Lavergne e alunos de graduação e pós-gradua-ção, tem pesquisado e publicado sobre o impacto dos discursos iden-titários e de outras mudanças pós-LDB/1996 no ensino superior.

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