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1 A atuação do Ministério Público no processo civil 1 HUGO NIGRO MAZZILLI Professor Emérito da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo Segundo o art. 127, caput, da Constituição, “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponí- veis”. Interessa-nos agora perquirir o alcance das expressões que o conside- ram essencial à função jurisdicional do Estado” e o incumbem da “defesa da ordem jurídi- ca”. A uma primeira e talvez desavisada leitura do dispositivo, poderia parecer que o Ministério Público estaria legitimado a agir ou intervir em todo e qualquer processo, sempre que se verificasse qualquer violação à lei. Bem, na área penal, essa inter- pretação não causaria maior dificuldade, pois que ele é o titular privativo da ação penal pública. Contudo, e na área cível? A defesa da ordem jurídica seria, por si só, fundamento bastante para o Ministério Público atuar ou recorrer no processo civil? É verdade que a Constituição comete ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, bem como assegura ser ele essencial à função jurisdicional do Estado. Mas não podemos tomar essas expressões no sentido absoluto e isolado do contexto; temos, sim, de entendê-las dentro das finalidades que a própria Constituição destinou à instituição. Embora a Lei Maior diga com todas as letras que o Ministério Público é essencial à função jurisdicional e tem o papel de defender a ordem jurídica, a constatação é a de que efetiva- mente ele não atua em todos os casos em que haja violação da ordem jurídica, nem funcio- na em todos os casos submetidos à apreciação do Poder Judiciário. O intérprete não está autorizado a crer que não possa haver prestação jurisdicional sem Ministério Público, ou que toda a violação à ordem jurídica seja questão afeta ao Ministério Público. Isso nem seria verdade: existe prestação jurisdicional sem intervenção do Ministério Público; existe violação da ordem jurídica sem que, necessariamente, a ela deva corresponder uma reação do Ministério Público. Podemos até dizer que o que ocorre é exatamente o contrário: a re- 1. Artigo publicado na Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil, v. 73-Set-Ou/2011, São Paulo, e disponível em www.mazzilli.com.br.

MP No Processo Civil

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    A atuao do Ministrio Pblico no processo civil1

    HUGO NIGRO MAZZILLI

    Professor Emrito da Escola Superior

    do Ministrio Pblico de So Paulo

    Segundo o art. 127, caput, da Constituio, o Ministrio Pblico

    instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa

    da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indispon-

    veis.

    Interessa-nos agora perquirir o alcance das expresses que o conside-

    ram essencial funo jurisdicional do Estado e o incumbem da defesa da ordem jurdi-

    ca.

    A uma primeira e talvez desavisada leitura do dispositivo, poderia

    parecer que o Ministrio Pblico estaria legitimado a agir ou intervir em todo e qualquer

    processo, sempre que se verificasse qualquer violao lei. Bem, na rea penal, essa inter-

    pretao no causaria maior dificuldade, pois que ele o titular privativo da ao penal

    pblica. Contudo, e na rea cvel? A defesa da ordem jurdica seria, por si s, fundamento

    bastante para o Ministrio Pblico atuar ou recorrer no processo civil?

    verdade que a Constituio comete ao Ministrio Pblico a defesa

    da ordem jurdica, bem como assegura ser ele essencial funo jurisdicional do Estado.

    Mas no podemos tomar essas expresses no sentido absoluto e isolado do contexto; temos,

    sim, de entend-las dentro das finalidades que a prpria Constituio destinou instituio.

    Embora a Lei Maior diga com todas as letras que o Ministrio Pblico essencial funo

    jurisdicional e tem o papel de defender a ordem jurdica, a constatao a de que efetiva-

    mente ele no atua em todos os casos em que haja violao da ordem jurdica, nem funcio-

    na em todos os casos submetidos apreciao do Poder Judicirio. O intrprete no est

    autorizado a crer que no possa haver prestao jurisdicional sem Ministrio Pblico, ou

    que toda a violao ordem jurdica seja questo afeta ao Ministrio Pblico. Isso nem

    seria verdade: existe prestao jurisdicional sem interveno do Ministrio Pblico; existe

    violao da ordem jurdica sem que, necessariamente, a ela deva corresponder uma reao

    do Ministrio Pblico. Podemos at dizer que o que ocorre exatamente o contrrio: a re-

    1. Artigo publicado na Revista Sntese Direito Civil e Processual Civil, v. 73-Set-Ou/2011, So Paulo, e

    disponvel em www.mazzilli.com.br.

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    gra a de que o Ministrio Pblico no oficia em todos os processos, nem zela pela obser-

    vncia de todas as normas jurdicas.

    Assim, por exemplo, se Caio entra com uma ao de perdas e danos

    contra Tcio, e se ambos so maiores e capazes, o Ministrio Pblico no estar presente

    nos autos. Poder-se-ia dizer: ento, que essencialidade a sua, para a funo jurisdicional?

    E mais. certo que o Ministrio Pblico recebeu a atribuio de defender a ordem jurdica.

    Contudo, em todos os processos h, teoricamente, uma violao da ordem jurdica, ao me-

    nos se nos basearmos naquilo que alega o autor da ao. Mas nem por isso o Ministrio

    Pblico intervm em todos os processos

    No fundo, a explicao do paradoxo simples: no podem ser toma-

    das em seu valor absoluto as expresses defesa da ordem jurdica e essencialidade fun-

    o jurisdicional, no tocante atuao do Ministrio Pblico.

    Ento, em que consistem, exatamente, suas tarefas constitucionais de

    defender a ordem jurdica e de ser essencial funo jurisdicional do Estado?

    A Constituio erigiu o Ministrio Pblico condio de instituio;

    por isso, conferiu-lhe organizao e finalidades sociais voltadas ao bem comum. Ele en-

    carregado, sim, de defender a ordem jurdica, e , sim, essencial funo jurisdicional

    mas quando? A prpria Constituio o responde, no mesmo art. 127: quando esteja em jogo

    a defesa do regime democrtico, ou de um interesse social, ou de um interesse individual

    indisponvel. Estando em jogo um interesse assim qualificado, o Ministrio Pblico estar

    legitimado a defend-lo; em alguns casos, ele o far como rgo agente, em outros, como

    rgo interveniente. Sob esse enfoque, possvel identificar a essencialidade de sua atuao

    para o advento de uma prestao jurisdicional do Estado: no pode haver funo jurisdicio-

    nal em matria social ou indisponvel, sem a presena do Ministrio Pblico. Havendo vio-

    lao da ordem jurdica que envolva um interesse social ou individual indisponvel, no

    pode haver prestao jurisdicional sem a presena do Ministrio Pblico.

    No se pode, pois, tomar qualquer texto de lei, seja a Lei Maior ou

    no, e tentar interpret-lo isoladamente. Perdendo-se do contexto, aquelas passagens pode-

    riam fazer crer que, se o Ministrio Pblico essencial funo jurisdicional, no have-

    ria prestao jurisdicional sem ele, o que no verdade, pois a maioria das aes judiciais

    desenvolve-se sem sua interveno (como as aes patrimoniais entre partes maiores e ca-

    pazes). Ento, a Lei Maior quis dizer nesse dispositivo, simplesmente, que, sua ao ou

    interveno em defesa da ordem jurdica ser essencial prestao da funo jurisdicional

    naquelas aes em que o Ministrio Pblico esteja constitucionalmente destinado a agir

    como instituio na defesa do regime democrtico, de interesses sociais ou individuais in-

    disponveis (como na ao penal pblica, na tutela do meio ambiente, no zelo do patrim-

    nio pblico e social etc.).

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    Est, pois, perfeitamente claro que, quando a Constituio diz que

    ele defende a ordem jurdica, no quer significar que o Ministrio Pblico seja o guardio

    de todas as leis da Repblica, mas sim apenas daquelas que tenham compatibilidade com

    sua finalidade institucional. Desta forma, se a lei violada disser respeito com a defesa do

    regime democrtico, se disser respeito com a defesa de interesses sociais, se disser respeito

    com a defesa de interesses individuais indisponveis do indivduo ou da sociedade esses

    os objetos finalsticos da atuao institucional estar a aberto o campo da atuao do

    Ministrio Pblico. Entretanto, se a lei violada disser respeito a um direito disponvel, ou a

    um interesse que no tenha suficiente abrangncia ou expresso social, no haver causa

    bastante nem para a ao nem para a interveno do Ministrio Pblico. No fosse assim, o

    Ministrio Pblico cobraria em juzo cheques e multas de trnsito, interviria nas aes em

    que se discutissem acidentes de trnsito sem vtimas, nas aes de perdas e danos e em

    quaisquer outros feitos que envolvessem apenas pessoas maiores e capazes, pois, em todos

    esses exemplos, sempre estaria havendo, pelo menos em tese, uma violao lei. Mas no

    qualquer violao da lei que legitima a atuao ou a interveno do Ministrio Pblico.

    Embora a Constituio diga que ele defensor da ordem jurdica, devemos entender que

    isso s ocorre quando essa defesa esteja conforme com sua destinao institucional.

    Tomemos uma violao lei porque algum no tenha quitado uma

    multa administrativa por violar o silncio noturno ou por no ter recolhido o lixo domsti-

    co. Se o Ministrio Pblico identificar que aquela violao tem expresso social (p. ex.,

    trata-se de poluio sonora em todo o bairro, ou de um problema de sade pblica), estar

    legitimado a tomar as providncias institucionais pertinentes. Contudo, se, nos exemplos

    dados, se tratar de um caso isolado, pode no se identificar em concreto a expresso social

    autorizadora de sua interveno. o que ocorreria se uma viatura municipal colidisse com

    um veculo particular, amassando-lhe o para-lama; na correspondente ao de perdas e da-

    nos que o indivduo movesse contra a municipalidade, o Ministrio Pblico no iria identi-

    ficar expresso social no dano nem reconhecer a presena de interesse indisponvel da soci-

    edade como um todo, ou do indivduo, pessoalmente considerado. Nesse caso, o Ministrio

    Pblico deixaria que a Fazenda, por seus procuradores, promovesse a defesa disponvel de

    seus prprios interesses. Caso diverso ocorreria, porm, se estivesse em questo o destino

    de todo o lixo urbano, ou uma questo referente aos consumidores coletivamente conside-

    rados, ou ainda uma questo criminal, hipteses em que a atuao do Ministrio Pblico

    seria devida.

    O que tem ensejado controvrsia o papel do Ministrio Pblico no

    processo civil, quando estejam em jogo interesses de incapaz. Trata-se de questo que man-

    tm atualidade e causa bastante polmica no Ministrio Pblico moderno, pois existem po-

    sies conflitantes dos tribunais e da doutrina a esse respeito. E, na prtica, a atuao con-

    creta dos membros do Ministrio Pblico no seu dia a dia forense bem reflete essa falta de

    harmonia.

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    Procuraremos externar aqui uma posio que nos parece coerente,

    porque apta a responder s objees que poderiam ser lanadas.

    Antes de mais nada, preciso fazer uma distino: uma coisa a li-

    berdade de opinio, outra, a liberdade de iniciativa. Liberdade de opinio, o membro do

    Ministrio Pblico detm, por fora da liberdade e da independncia funcionais; mas seu

    poder de iniciativa est subordinado ao princpio do interesse processual.

    Dentro do processo seja o civil, seja o processo penal , o mem-

    bro do Ministrio Pblico tem total liberdade de exprimir seu entendimento, como decor-

    rncia de sua independncia funcional. Tomemos um processo criminal: o membro do Mi-

    nistrio Pblico entende que o ru inocente; ele pode diz-lo; deve diz-lo. A liberdade

    para expor seu entendimento nada tem a ver com o seu poder de iniciativa (titularidade da

    promoo da ao penal pblica); tem a ver, sim, com sua liberdade de opinio, que lhe

    conferida pela lei. Diversamente de um advogado que defende um interesse privado, o Mi-

    nistrio Pblico uma parte pblica, e o interesse pelo qual zela o interesse pblico. Ora,

    de maneira alguma interessaria sociedade que se pusesse um inocente na cadeia. Isso em

    nada ajudaria a sociedade; muito pelo contrrio: alm de ser uma injustia individual, ainda

    seria uma injustia coletiva, que at reverteria em responsabilidade para o Estado, seno

    para os prprios membros do Ministrio Pblico e do Poder Judicirio que tivessem agido

    com dolo ou fraude. Assim, quando o membro do Ministrio Pblico diz ao juiz que um ru

    no cometeu o crime, no o autor do fato, ou seu autor, mas agiu coberto por uma ex-

    cludente, sua instituio estar defendendo a sociedade ao pedir a consequente absolvio,

    e ele ter toda a liberdade para faz-lo.

    No diferente, sob esse aspecto, o que ocorre no processo civil:

    tambm aqui o membro do Ministrio Pblico opina livremente, mesmo quando tenha pro-

    posto a ao; opina com liberdade, at quando haja interesses de incapazes no feito. Supo-

    nhamos que um incapaz ajuze uma ao de usucapio, pretendendo adquirir o domnio de

    todo o territrio nacional. O membro do Ministrio Pblico seria obrigado a endossar o

    pedido? E se o pedido for absurdo, sem qualquer fundamento jurdico? Nesse caso, qual

    deveria ser o papel do Ministrio Pblico?

    Para responder a essas indagaes, a doutrina se divide.

    Uma parte dos doutrinadores entende que o Ministrio Pblico est

    vinculado defesa do incapaz; assim, deve sempre defender o incapaz, tendo ou no razo.

    O mais notvel doutrinador que sustenta esse entendimento Cndido Rangel Dinamarco;2

    diz ele que, se o papel do Ministrio Pblico protetivo ao incapaz, ento o Ministrio P-

    blico obrigado a defender o incapaz. Essa posio leva to longe as premissas, que exige a

    defesa do incapaz at mesmo quando ele no tenha razo. Se objetarmos a Dinamarco que o

    incapaz est pedindo um absurdo totalmente divorciado da realidade dos autos ou em viola-

    2. Fundamentos do processo civil moderno, p. 332, Rev. dos Tribunais, 1986, So Paulo.

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    o prpria Constituio, Dinamarco, imperturbvel, responder: o Ministrio Pblico

    est naqueles autos para defender o incapaz; assim, no tem opo de no o fazer; no m-

    ximo, dir que no tem nada a acrescentar defesa dos interesses do incapaz, mas no po-

    der dizer uma s palavra contra ele. Verdade convir que, at certo ponto, este entendi-

    mento tem coerncia intrnseca: se o Ministrio Pblico est no processo para proteger o

    incapaz, e se essa a nica causa que o trouxe ao processo, no poderia tornar-se linha au-

    xiliar da parte adversa.

    Existe, porm, o posicionamento oposto. Aqui tomarei como para-

    digma Nelson Nery Jnior.3 Esse outro grande jurista, assim como Dinamarco, tambm foi

    Promotor Cvel, trabalharam ambos na mesma Promotoria de defesa de incapazes, ainda

    que em pocas distintas. Nelson Nery sustenta que o Ministrio Pblico fiscal da lei e

    defensor da ordem jurdica; assim, se o incapaz tiver razo, ele o defender e, se preciso,

    recorrer a seu favor; mas, se o incapaz no tiver razo, o membro do Ministrio Pblico

    deve diz-lo com todas as letras, e at mesmo recorrer em seu desfavor, para fazer prevale-

    cer a ordem jurdica. Este entendimento tem bastante receptividade entre os membros do

    Ministrio Pblico, pois enaltece sua liberdade funcional e seu papel de defensor da ordem

    jurdica.

    Com todo o respeito, porm, as duas posies, de Dinamarco e Nel-

    son Nery, tm um qu de verdade e um qu de equvoco. Em que Dinamarco est certo?

    Est certo ao perceber que a causa que trouxe o Ministrio Pblico ao processo a defesa

    do incapaz; ele compreendeu, melhor do que ningum, que a funo do Ministrio Pblico

    no defender em si mesma uma ordem jurdica abstrata, mas sim a de proteger o incapaz,

    porque, na defesa do incapaz, est a defesa concreta da ordem jurdica, pois no convm

    ordem jurdica que o incapaz perca uma ao, posto tenha razo. Assim, no se trata de

    uma defesa abstrata da ordem jurdica, nem da defesa de qualquer lei: o que est em jogo

    a indisponibilidade de um direito que pode estar sendo violado. Ento, o Ministrio Pblico

    est l para defender o incapaz, e nisso Dinamarco est coberto de razo. Mas em que Di-

    namarco, data venia, no tem razo, e Nelson a tem? que, se o incapaz estiver pedindo

    um absurdo, o membro do Ministrio Pblico pode e deve dizer por que no concorda com

    o pedido; e ao faz-lo, o membro do Ministrio Pblico no estar violando a ordem jurdi-

    ca, nem a causa que o trouxe ao processo. Seno vejamos. Qual a causa que trouxe o Mi-

    nistrio Pblico ao processo? evitar que um direito do incapaz seja objeto de disposio

    indevida. Ora, se o incapaz no dono do bem cuja propriedade ele reivindica, e se o mem-

    bro Ministrio Pblico diz isso e fundamenta o porqu de ter concludo assim, em nada

    estar violando a causa que o trouxe ao processo. Nesse ponto, tem razo Nelson Nery,

    pois, assim como ele, ns tambm diramos que o incapaz no tem razo, como o fizemos

    quando tambm fomos Promotor Cvel. S que Nelson vai alm e nisso est nossa dis-

    3. A interveno do Ministrio Pblico nos procedimentos especiais de jurisdio voluntria, Justitia,

    135/39, So Paulo.

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    cordncia. Se, mesmo no tendo razo, o incapaz ganhasse a ao, Nelson recorreria contra

    o incapaz, a pretexto de defender a ordem jurdica. Segundo cremos, at possvel ao rgo

    do Ministrio Pblico dizer que o incapaz no tem razo, desde que fundamente seu racio-

    cnio; mas no lhe possvel recorrer contra ele. Aqui, o problema no mais consiste na

    mera liberdade de opinio, mas sim a questo saber se o recorrente tem interesse proces-

    sual na reforma do julgado. Que interesse teria o Ministrio Pblico na reforma do julgado

    que deu razo ao incapaz que no tinha razo?

    Essa a verdadeira questo. E a resposta depende. Se o incapaz ga-

    nhar a ao, em prejuzo de um interesse disponvel da outra parte maior e capaz, quem tem

    de recorrer, querendo, apenas essa parte, e mais ningum estar legitimado a recorrer,

    pois aquele interesse disponvel. Entretanto, se o incapaz est querendo usucapir todo o

    territrio nacional, ento haveria interesse social em cassar a sentena que abusivamente

    aceitou aquele absurdo, e o Ministrio Pblico poderia recorrer. Tratando-se, porm, de

    interesses tipicamente disponveis, o Ministrio Pblico no poder recorrer contra o inca-

    paz, no porque lhe falte liberdade de opinio, mas porque lhe faltar interesse processual.

    Retomemos agora a ao de Caio contra Tcio, por danos materiais

    decorrentes de uma coliso de automveis. Ambas as partes so maiores e capazes. O Mi-

    nistrio Pblico nem intervm naquela ao. Sob o aspecto puramente processual, nem

    mesmo importa ao Ministrio Pblico qual dos dois contendores ganhar a ao. No lhe

    importar nem mesmo que quem ganhe a ao tenha ou no razo. Isso s importar a Caio

    e a Tcio, pois se trata de direitos disponveis. Assim, suponhamos que o ru Tcio no te-

    nha culpa alguma pelo acidente, mas tenha deixado correr em branco o prazo para contesta-

    o: Tcio ser condenado, mesmo tendo razo. Isso injusto? Pode ser, mas ser problema

    do Tcio: ele que conteste, se quiser; ele que recorra, se quiser. A disponibilidade a to

    evidente, que, mesmo se o juiz erradamente desse razo a Tcio, nada impediria que este,

    contrariando a sentena, pagasse o que Caio est pedindo, ou pagasse at mesmo mais do

    que o prprio Caio pediu. O prprio Poder Judicirio no pode impedir que Tcio pague

    aquilo que o Estado-juiz disse que ele no devia. Afinal, Caio e Tcio podem transigir como

    bem entenderem, at em contrariedade com a prestao jurisdicional; o juiz no pode impe-

    dir que os dois transijam at mesmo fora dos autos. Assim, o que o Ministrio Pblico faria

    naqueles autos, ainda que a pretexto de defender a ordem jurdica? Nada.

    Digamos, entretanto, que Tcio seja incapaz. Tudo muda de figura.

    Se o Tcio incapaz, e no foi oferecida contestao em seu favor, o Ministrio Pblico

    dever faz-lo, ainda que por negao geral (art. 302, pargrafo nico do CPC), obrigando,

    assim, o autor a provar os fatos constitutivos de seu direito o que o Ministrio Pblico

    no poderia fazer, se Tcio no fosse incapaz. Assim, o Ministrio Pblico vai exigir que o

    autor prove que houve a coliso e que o responsvel foi o incapaz ou seu antecessor. E, se o

    incapaz perder a ao, posto tivesse razo, o Ministrio Pblico ser obrigado a recorrer em

    seu benefcio. seu dever funcional; ele no poder invocar a liberdade funcional para no

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    recorrer, pois sua liberdade incide no momento de dizer quem que, a seu ver, tem razo.

    Todavia, se o membro do Ministrio Pblico j reconheceu fundamentadamente que o in-

    capaz tem razo, a derrota deste gerar um dever funcional para o membro do parquet, que

    a obrigao de recorrer. Assim, a funo do parquet protetiva; ele s no ser obrigado

    a dizer que o incapaz tem razo quando, a seu ver fundamentado, no a tenha. Todavia, se o

    incapaz Tcio, mesmo no tendo razo, ganhar a ao, somente Caio poder recorrer, pois o

    Ministrio Pblico no ter interesse recursal em modificar o julgado para defender interes-

    se disponvel de Caio, que maior e capaz, e pode decidir livremente se aceita ou no o

    comando da sentena. Esta uma questo que s a ele diz respeito, e no ao Ministrio

    Pblico.

    Em suma, at que ponto o Ministrio Pblico defende a ordem jur-

    dica? Ele o faz no para defender qualquer lei, regulamento, portaria, decreto, aviso, instru-

    o normativa: todos esses textos fazem parte de nossa ordem jurdica, mas no para de-

    fender todo e qualquer diploma legislativo que o Ministrio Pblico existe. Ele no funcio-

    na em todos os processos, nem cobra o cumprimento de todas as leis em vigor no Pas.

    Como temos insistido, para que oficie num processo e cobra o cumprimento de uma lei,

    necessrio que haja alguma nota de carter social ou de indisponibilidade na leso: a, ele

    defender aquele interesse. Assim sendo, a defesa que far do incapaz, uma defesa neces-

    sria, mas tambm finalstica. Acolhendo esse posicionamento, assim transcreveu nosso

    entendimento o Supremo Tribunal Federal: J temos defendido que a tnica da interven-

    o do Ministrio Pblico consiste na indisponibilidade do interesse. Hoje vamos mais

    alm. A par dos casos em que haja indisponibilidade parcial ou absoluta de um interesse,

    ser tambm exigvel a atuao do Ministrio Pblico se a defesa de qualquer interesse,

    disponvel ou no, convier coletividade como um todo. () Num sentido lato, portanto,

    at o interesse individual, se indisponvel, interesse pblico, cujo zelo cometido ao Mi-

    nistrio Pblico.4

    indispensvel buscar o porqu de o Ministrio Pblico estar ofici-

    ando nos autos e o qu ele ali faz. Est l para defender um interesse social ou individual

    indisponvel; no havendo tal interesse, a instituio no estar presente nos autos; haven-

    do, justifica-se sua ao ou interveno, mas o que o rgo ministerial vai dizer nos autos

    estar coberto pela ampla liberdade de sua atuao funcional. Coisa diversa, porm, o seu

    poder de iniciativa, que depender do interesse processual: tanto para propor uma ao,

    contest-la ou, at mesmo, para recorrer do decisum, preciso haver interesse processual. E

    o Ministrio Pblico s pode agir, intervir ou recorrer em defesa de um interesse social ou

    um interesse indisponvel.

    4. RE n. 248.869-SP, rel. Min. Maurcio Correa, STF, Informativo STF, 319. A passagem, agora atuali-

    zada, corresponde ao que escrevemos em nosso A defesa dos interesses difusos em juzo, 24 ed., p. 88-9,

    Saraiva, So Paulo, 2011.