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86 v5 DE MARÇO DE 2009 sentia uma insatisfação sem nome. «Faltava alguma coisa e a ideia de ser padre era incompatível com a inten- ção de constituir família e ter filhos.» Nada melhor que um retiro, pensou, para pôr as ideias em ordem. Rumou, então, sozinho, a Angola. «Quis dis- tanciar-me e perceber o que Deus exigia de mim.» Não demorou muito. Durante um passeio a pé, encontrou um homem que lhe perguntou o que andava ali a fazer. Durante mais de três horas, Miguel contou-lhe a vida toda, as dúvidas, a razão da viagem. No final, o desconhecido levantou- se, pôs-lhe a mão no ombro e disse: «No dia em que o Miguel perguntar a Deus o que Ele quer de si, em vez de pedir o que o Miguel quer Dele, tudo ficará mais claro.» O ex-financeiro descobriu mais tarde que tinha falado com um padre. Hoje, prestes a terminar o terceiro ano de teologia no semi- nário internacional Giovanni Paolo II, em Roma, garante que, apesar das dúvidas e in- certezas, se sente mais feliz e livre, graças a uma fé inabalável: «Deus tem-me dado cem vezes mais que o necessário.» Vistos de fora, desvios de trajectória como este parecem insólitos e até incoerentes. Mas nunca é bem assim. Para o psicólogo so- cial José Palma-Oliveira, 50 anos, «em 90% dos casos, a mudança já tinha sido pensada, cimentada com pequenos passos e, por isso, o desfecho surge como natural e consisten- te». E o professor universitário evoca os es- tudos de psicologia do testemunho, os quais sugerem que as pessoas tendem a reescrever a sua história à luz da vivência actual, pelo que raramente a mudança se lhes afigura re- pentina ou revolucionária. IR A JOGO «Isto não é maneira de viver.» Aos 24 anos, Gonçalo Pereira já estava ciente de que ia entrar numa corrida inglória, feita de «mais do mesmo». Aos 42, a única coisa que man- tém desse tempo é o surf, apesar de ter dei- xado de competir. Hoje, dedica-se a organi- zar retiros e cursos de meditação e adeptos não faltam. Além disso, está a dar os primei- ros passos numa empresa criada por si para fazer face às solicitações de empresas. A inflexão na promissora carreira de desig- ner gráfico deu-se num momento que, para muitos, seria o melhor: antes dos 35 anos, sem problemas financeiros, rodeado de arte e de amigos bem posicionados. «Isto não é maneira de viver.» A estrutura de valores sem sentido, a incessante inquietação. Um dia, encontrou o que tanto procurava... a me- Gonçalo Pereira | 42 anos OCUPAÇÃO: Antes Designer gráfico e surfista Depois Professor de meditação/ /retiros e surfista MOTIVO DA MUDANÇA: satisfação e contentamento interior Miguel Sottomayor | 35 anos OCUPAÇÃO: Antes Gestor de conta num banco Depois Seminarista MOTIVO DA MUDANÇA chamamento divino ditar. «Reinventei a minha vida e não tive medo de arriscar, de fazer downs- calling, porque este contentamento vale a pena.» Retirou-se praticamente do design, desfez-se dos seus perten- ces e entregou-se à vida monástica do budismo; primeiro no Reino Unido, depois no Nepal, Brimânia, Sri Lanka e Índia. Chegou a traduzir para o Dalai Lama, aquando da sua vinda a Portu- gal. E quando a filha fez 2 anos [hoje tem 7], ele e a mulher – que trocou o ensino do design pelo do ioga – volta- ram a terras lusas, à prática meditati- va, aos amigos, ao mar. Gonçalo admite que a tendência para funcionar em «piloto automático» é grande e que a insatisfação e a dor, sobretudo nos relacionamentos, são os grandes propul- sores da mudança de atitude. «A forma como reagimos a tudo é da nossa responsabilida- de.» Quando se resiste ao processo ou não se tem dele consciência para ir fazendo ajustes, «cria-se um tal caos que a mudança, aparen- temente vinda de fora, acaba por acontecer na mesma.» Até porque, remata, «onde quer que se vá, levamo-nos sempre a nós mesmos». Mais cedo ou mais tarde, fugir da encruzi- lhada deixa de ser possível. O investigador social britânico Andrew Oswald estudou os factores de bem-estar ao longo da vida, em 80 países, e concluiu que, na chamada «crise da meia-idade», se atinge o ponto mais baixo da curva da felicidade (em forma de U). O pe- ríodo mais difícil surge por volta dos 44 anos (as mulheres sentem-no logo aos 40, a eles «bate» mais tarde, à entrada nos cinquenta). O sociólogo Moisés Espírito Santo, 70 anos, defende que o facto de cada um poder, individual e voluntariamente, mudar a sua vida, a sua personalidade, zelar pela saúde e tentar o êxito é um produto da modernidade. Até à década de 80 do século passado, lembra o especialista em etnologia das religiões, as pessoas eram vistas em função da sua origem e do meio e determinadas por ele. Hoje, valo- riza-se a transformação pessoal, assente «na fé em que se consegue mudar». Porém, tal implica que, desde a infância, sejam estimula- das «a aprendizagem da disciplina, do esforço pessoal e a liberdade de pensamento». Re- quisitos que, sublinha, os nossos modelos de educação familiar e escolar não fomentam. Tendo isto em mente, tranquilizam as pala- vras de Paul McKenna: «Não tem que assumir a responsabilidade pelas cartas que lhe foram distribuídas, mas está nas suas mãos a forma de as jogar.» * COM LUÍS RIBEIRO, PEDRO MIGUEL SANTOS, SARA SÁ E TERESA CAMPOS COMPORTAMENTO SOCIEDADE FOTOS: D.R.

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Designer gráfico e surfista Miguel Sottomayor | 35 anos Gonçalo Pereira | 42 anos 86 v 5 DE MARÇO DE 2009 Depois Depois Antes Antes * COM LUÍS RIBEIRO, PEDRO MIGUEL SANTOS, SARA SÁ E TERESA CAMPOS MOTIVO DA MUDANÇA MOTIVO DA MUDANÇA: OCUPAÇÃO: OCUPAÇÃO: FOTOS: D.R.

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86 v 5 DE MARÇO DE 2009

sentia uma insatisfação sem nome. «Faltava alguma coisa e a ideia de ser padre era incompatível com a inten-ção de constituir família e ter filhos.» Nada melhor que um retiro, pensou, para pôr as ideias em ordem. Rumou, então, sozinho, a Angola. «Quis dis-tanciar-me e perceber o que Deus exigia de mim.» Não demorou muito. Durante um passeio a pé, encontrou um homem que lhe perguntou o que andava ali a fazer. Durante mais de três horas, Miguel contou-lhe a vida toda, as dúvidas, a razão da viagem. No final, o desconhecido levantou-se, pôs-lhe a mão no ombro e disse: «No dia em que o Miguel perguntar a Deus o que Ele quer de si, em vez de pedir o que o Miguel quer Dele, tudo ficará mais claro.» O ex-financeiro descobriu mais tarde que tinha falado com um padre. Hoje, prestes a terminar o terceiro ano de teologia no semi-nário internacional Giovanni Paolo II, em Roma, garante que, apesar das dúvidas e in-certezas, se sente mais feliz e livre, graças a uma fé inabalável: «Deus tem-me dado cem vezes mais que o necessário.»

Vistos de fora, desvios de trajectória como este parecem insólitos e até incoerentes. Mas nunca é bem assim. Para o psicólogo so-cial José Palma-Oliveira, 50 anos, «em 90% dos casos, a mudança já tinha sido pensada, cimentada com pequenos passos e, por isso, o desfecho surge como natural e consisten-te». E o professor universitário evoca os es-tudos de psicologia do testemunho, os quais sugerem que as pessoas tendem a reescrever a sua história à luz da vivência actual, pelo que raramente a mudança se lhes afigura re-pentina ou revolucionária.

IR A JOGO«Isto não é maneira de viver.» Aos 24 anos, Gonçalo Pereira já estava ciente de que ia entrar numa corrida inglória, feita de «mais do mesmo». Aos 42, a única coisa que man-tém desse tempo é o surf, apesar de ter dei-xado de competir. Hoje, dedica-se a organi-zar retiros e cursos de meditação e adeptos não faltam. Além disso, está a dar os primei-ros passos numa empresa criada por si para fazer face às solicitações de empresas.

A inflexão na promissora carreira de desig-ner gráfico deu-se num momento que, para muitos, seria o melhor: antes dos 35 anos, sem problemas financeiros, rodeado de arte e de amigos bem posicionados. «Isto não é maneira de viver.» A estrutura de valores sem sentido, a incessante inquietação. Um dia, encontrou o que tanto procurava... a me-

Gonçalo Pereira | 42 anos

OCUPAÇÃO: Antes

Designer gráfico e surfistaDepois

Professor de meditação/ /retiros e surfista

MOTIVO DA MUDANÇA:

satisfação e contentamento

interior

Miguel Sottomayor | 35 anosOCUPAÇÃO:

Antes

Gestor de conta num bancoDepois

SeminaristaMOTIVO DA MUDANÇA

chamamento divino

ditar. «Reinventei a minha vida e não tive medo de arriscar, de fazer downs-calling, porque este contentamento vale a pena.» Retirou-se praticamente do design, desfez-se dos seus perten-ces e entregou-se à vida monástica do budismo; primeiro no Reino Unido, depois no Nepal, Brimânia, Sri Lanka e Índia. Chegou a traduzir para o Dalai Lama, aquando da sua vinda a Portu-gal. E quando a filha fez 2 anos [hoje tem 7], ele e a mulher – que trocou o ensino do design pelo do ioga – volta-ram a terras lusas, à prática meditati-va, aos amigos, ao mar.

Gonçalo admite que a tendência para funcionar em «piloto automático» é grande e que a insatisfação e a dor, sobretudo nos relacionamentos, são os grandes propul-sores da mudança de atitude. «A forma como reagimos a tudo é da nossa responsabilida-de.» Quando se resiste ao processo ou não se tem dele consciência para ir fazendo ajustes, «cria-se um tal caos que a mudança, aparen-temente vinda de fora, acaba por acontecer na mesma.» Até porque, remata, «onde quer que se vá, levamo-nos sempre a nós mesmos».

Mais cedo ou mais tarde, fugir da encruzi-lhada deixa de ser possível. O investigador social britânico Andrew Oswald estudou os factores de bem-estar ao longo da vida, em 80 países, e concluiu que, na chamada «crise da meia-idade», se atinge o ponto mais baixo da curva da felicidade (em forma de U). O pe-ríodo mais difícil surge por volta dos 44 anos (as mulheres sentem-no logo aos 40, a eles «bate» mais tarde, à entrada nos cinquenta).

O sociólogo Moisés Espírito Santo, 70 anos, defende que o facto de cada um poder, individual e voluntariamente, mudar a sua vida, a sua personalidade, zelar pela saúde e tentar o êxito é um produto da modernidade. Até à década de 80 do século passado, lembra o especialista em etnologia das religiões, as pessoas eram vistas em função da sua origem e do meio e determinadas por ele. Hoje, valo-riza-se a transformação pessoal, assente «na fé em que se consegue mudar». Porém, tal implica que, desde a infância, sejam estimula-das «a aprendizagem da disciplina, do esforço pessoal e a liberdade de pensamento». Re-quisitos que, sublinha, os nossos modelos de educação familiar e escolar não fomentam.

Tendo isto em mente, tranquilizam as pala-vras de Paul McKenna: «Não tem que assumir a responsabilidade pelas cartas que lhe foram distribuídas, mas está nas suas mãos a forma de as jogar.»

* COM LUÍS RIBEIRO, PEDRO MIGUEL SANTOS,

SARA SÁ E TERESA CAMPOS

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