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MULHERES QUILOMBOLAS: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNERO, RAÇA E GERAÇÃO NO QUILOMBO DE SANTA RITA DA BARREIRA. QUILOMBOLAS WOMEN: BRIEF OBSERVATIONS ON GENDER, RACE AND GENERATION IN BARRIER RITA SANTA QUILOMBO. Ana Célia Barbosa Guedes Mestranda do programa de Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido/ Núcleo de Alto Estudo da Amazônia (NAEA), UFPA. [email protected] Mayany Soares Salgado Doutoranda do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido PDTU- Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA) UFPA [email protected] RESUMO O presente artigo visa estabelecer um apanhado de como se manifesta a relação de gênero, raça e geração, bem como a organização histórica, socioeconômica e cultural do quilombo de Santa Rita da Barreira, localizado no município de São Miguel do Guamá- Pará. Tendo como objetivo analisar a relação de gênero, raça e geração no cotidiano do grupo social em questão. A metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica, bem como de campo por meio de entrevista semiestruturada para coleta de dados, tendo como sujeitos da pesquisa quatro mulheres moradoras dessa localidade, das quais são consideradas como símbolo de resistência cultural, por meio da relevância de suas atividades desempenhadas no quilombo. No entanto, observa-se que no mesmo a mulher ainda não dispõe uma participação ativa nas decisões políticas e econômicas, embora seja de suma importância tanto para o desenvolvimento do processo produtivo quanto para organização social e cultural do grupo. Palavras- chaves: Quilombo; gênero; raça; geração. ABSTRACT This article aims to establish an overview of how is the gender relations, race and generation, as well as the historical, socioeconomic and cultural organization of the Santa Rita barrier quilombo located in São Miguel do Guamá- Pará. With the analyze the gender relations, race and generation in everyday

MULHERES QUILOMBOLAS: BREVES CONSIDERAÇÕES … · Embora, a participação daquelas mulheres fora do âmbito doméstico tenha sido, ... É importante ressaltar que o conceito de

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MULHERES QUILOMBOLAS: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNERO,

RAÇA E GERAÇÃO NO QUILOMBO DE SANTA RITA DA BARREIRA.

QUILOMBOLAS WOMEN: BRIEF OBSERVATIONS ON GENDER, RACE AND

GENERATION IN BARRIER RITA SANTA QUILOMBO.

Ana Célia Barbosa Guedes

Mestranda do programa de Desenvolvimento

Sustentável do Trópico Úmido/ Núcleo de Alto

Estudo da Amazônia (NAEA), UFPA.

[email protected]

Mayany Soares Salgado

Doutoranda do Programa de Desenvolvimento

Sustentável do Trópico Úmido – PDTU- Núcleo de

Altos Estudos da Amazônia (NAEA) – UFPA

[email protected]

RESUMO

O presente artigo visa estabelecer um apanhado de como se manifesta a relação de gênero, raça e

geração, bem como a organização histórica, socioeconômica e cultural do quilombo de Santa Rita da

Barreira, localizado no município de São Miguel do Guamá- Pará. Tendo como objetivo analisar a

relação de gênero, raça e geração no cotidiano do grupo social em questão. A metodologia utilizada foi

pesquisa bibliográfica, bem como de campo por meio de entrevista semiestruturada para coleta de dados,

tendo como sujeitos da pesquisa quatro mulheres moradoras dessa localidade, das quais são consideradas

como símbolo de resistência cultural, por meio da relevância de suas atividades desempenhadas no

quilombo. No entanto, observa-se que no mesmo a mulher ainda não dispõe uma participação ativa nas

decisões políticas e econômicas, embora seja de suma importância tanto para o desenvolvimento do

processo produtivo quanto para organização social e cultural do grupo.

Palavras- chaves: Quilombo; gênero; raça; geração.

ABSTRACT

This article aims to establish an overview of how is the gender relations, race and generation, as well as the historical, socioeconomic and cultural organization of the Santa Rita barrier quilombo located in São Miguel do Guamá- Pará. With the analyze the gender relations, race and generation in everyday

social group in question. The methodology used was research literature and field through semi-structured interview for data collection, The subjects were four women living in this locality. Of which are considered as a symbol of cultural resistance through the relevance of its activities performed in the quilombo. However, it is observed that the same woman does not have an active participation in political and economic decisions, although it is of paramount importance for the development of the production process and for social and cultural organization. Words- keys: Quilombo; genre; breed; generation

1. INTRODUÇÃO

Ao longo da história social no Brasil, tem-se observado resistência em reconhecer a luta

e a participação de mulheres negras, em diversos setores da sociedade, em especial quando se

trata de mulheres do campo, visto que nas sociedades camponesas o processo produtivo está

relacionado ao universo masculino. No entanto, a realidade campesina, a participação feminina

manifesta forte expressão no que tange o trabalho cooperativo, no protagonismo das lutas

cotidianas, nas atividades produtivas e nos trabalhos domésticos.

Embora, a participação daquelas mulheres fora do âmbito doméstico tenha sido, durante

muito tempo, esquecida e ignorada pela historiografia e pela sociedade, sua participação é

fundamental para a sobrevivência do grupo social em que vive, pois participam das mais

diversas atividades, desde a agricultura, artesanato, cultivo de plantas medicinais, enfatizando

o papel significativo na preservação das fontes de água potável para o consumo da população

local.

Essa situação é notada também em Santa Rita da Barreira, comunidade quilombola

localizado no Km 12 da PA-251 na zona rural do município de São Miguel do Guamá Pará,

distante 134 quilômetros da capital do Estado. Esse quilombo foi reconhecido, pelo Estado

brasileiro, no dia 22 de setembro de 2002. A titulação dessas terras foi de acordo com a Lei

6.165, de 02 de dezembro de 19981 que rege sobre a legitimação de terras dos remanescentes

das comunidades quilombolas e o Decreto Estadual 3.572/992 que define as atribuições do

Instituto de Terra do Pará (ITERPA), no processo de Legitimação de Terras dos Remanescentes

de Quilombo. O quilombo possui uma área total de 371 ha, perímetro de 18.379,51m,

distribuídos atualmente entre 65 famílias que se identificam como quilombolas.

1 http://www.cpisp.org.br/htm/leis/pa03.htm 2 http://www.cpisp.org.br/htm/leis/pa05.htm

Assim o presente artigo procura fundamentalmente examinar e compreender como é

caracterizada a relação de gênero e raça, além de como se dá a participação das mulheres no

cotidiano do grupo social em questão.

As discussões acerca de gênero em populações quilombolas são recentes, em especial,

quando se trata das experiências de pessoas negras rurais na região Amazônica. Mas no final

do século XX houve um significativo aumento no que diz respeito ao debate desta temática.

Assim trabalhos de pesquisadoras como Benedita Celeste de Moraes Pinto, Cristina Scheibe

Wolff, Delma Pessanha Neves, entre outras, têm contribuído com estudo da história das

relações de gênero dos povos camponeses e na Amazônia. No entanto, mesmo com aumento

significativo de trabalhos científicos, nas primeiras décadas do século XXI, acerca de quilombo

rural na Amazônia, em especial, no município de São Miguel do Guamá DINIZ (2011), ainda

são parcas as pesquisas e análises sobre a questão de gênero, raça e geração na comunidade

quilombola de Santa Rita da Barreira que evidencie a relação de gênero e gerações diferentes,

bem como a luta de mulheres quilombolas pela sobrevivência, reconhecimento e espaço, numa

sociedade predominada por valores masculinos, prisioneira da visão eurocêntrica e universalista

da mulher, incapaz de reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino

(CARNEIRO, 2003).

As mulheres do território quilombola de Santa Rita da Barreira têm pouca visibilidade,

em especial quando se trata de sua participação no processo produtivo e na política. Assim, o

estudo sobre a atuação das mulheres quilombolas pode denotar aspectos importantes referentes

às relações entre homens e mulheres, mulheres e mulheres na construção e reprodução de

conhecimento e poder, bem como a construção histórica, cultural e social do grupo.

Este trabalho pretende contribuir com a literatura existente ampliando o debate sobre a

questão de gênero, raça e geração sobre povos quilombolas e rurais na região amazônica, em

especial, do nordeste paraense.

A pesquisa é de caráter qualitativo e foi realizada em duas semanas com quatro mulheres

de diferente geração do quilombo Santa Rita da Barreira. Para tanto foi necessária uma revisão

bibliográfica e uma pesquisa de campo com entrevista semiestruturada para coleta de dados, as

quais possibilitaram uma melhor compreensão sobre o cotidiano do quilombo, a questão de

gênero, raça e geração do grupo em questão.

O artigo traz uma breve discussão sobre gênero e raça, Em seguida discorre sobre o

histórico de Santa Rita da Barreira. E logo após faz uma abordagem da organização política,

econômica e cultural. E por último discute-se a questão de gênero, raça e geração no quilombo

em questão.

2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNERO E RAÇA

No Brasil a desigualdade e discriminação de gênero e raça é um problema que tem

origem no período colonial e que persiste até os dias atuais, atingindo à maioria das pessoas,

em especial negras e indígenas. Essa desigualdade e discriminação pode ser observada em

diferentes setores da sociedade, a exemplo da educação, mercado de trabalho, moradia, saúde,

entre outros.

Nos últimos anos do século XX o movimento feminista no Brasil, em especial o

movimento feminista negro, tem se organizado e lutado pela equidade de gênero e direitos civis

e sociais. Esse movimento ganhou ainda mais legitimidade após implementação da

Constituição de 1988, pois a mesma contemplou cerca de 80% das suas propostas, o que mudou

radicalmente o status jurídico das mulheres no Brasil (CARNEIRO, 2003).

É importante destacar que estudo sobre a história social das mulheres apresenta-se em

diferentes perspectivas de interpretações e pode ser dividido em três momentos distintos. No

primeiro, visava dar visibilidade as mulheres na história, porém muitas vezes sem questionar a

forma. No segundo, enfatizava as diferenças e especificidades das mulheres. E no terceiro, que

é o atual, procura dar ênfase à categoria gênero (WOLFF, 1999). Este último, procura politizar

e historiar as desigualdades de gênero, transformando as mulheres em sujeitos políticos. Assim

essas mulheres passam a ser vista a partir do grupo social que estão inseridas, ou seja, como

mulheres indígenas e/ou negras e que necessitam de demandas específicas como legislação e

políticas públicas voltadas para atender suas necessidades (CARNEIRO, op. cit.).

O estudo das relações de gênero permite que deixe de lado as categorias “sexo” e “papel

sexual” que remete a uma conotação biológica e natural da qual a mulher é vista na maioria dos

grupos sociais. Assim, uma análise histórica a partir das relações de gênero permite

compreender às múltiplas e variadas formas pelas quais se constituem os gêneros em uma

sociedade (WOLFF, op. cit).

É importante ressaltar que o conceito de raça não é biológico, mas sim socialmente

construído para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raças, ou seja, biológica e

cientificamente, as raças não existem. Trata-se de um conceito carregado de ideologia e como

todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação

(MUNANGA, 1999). Nesse sentido o racismo reside na negação total ou parcial do negro ou

de pessoas não branca, servido para justificar a dominação do branco sobre os povos de cor

(GONZALEZ; HASENBALG, 1982).

Contudo, o conceito de raça utilizado nesse artigo foi pensado a partir das reivindicações

contemporâneas, no qual o mesmo vem adquirindo novo significado, ou seja, vem se

ressignificando no decorrer do tempo de acordo com a cultura e os interesses da sociedade ou

do grupo social. Assim no Brasil, a partir do final do século XX e início do século XXI, a

identidade negra significou para os negros atribuir à ideia de raça presente na população

brasileira que se autodefine como branca a responsabilidade pelas discriminações sofrida por

aqueles nos últimos séculos, e ao mesmo tempo reivindica reparação dos danos sofrido pelo

povo negro no Brasil. (GUIMARÃES, 2002 Apud HEILBORN, et al, 2011). Dessa forma o

termo raça é retomado, de forma positivada, pelos movimentos antirracistas no Brasil que lutam

por direitos sociais e equidade racial.

3. BREVE HISTÓRICO DE SANTA RITA DA BARREIRA

Nas últimas décadas do século XX várias pesquisas apontaram a existência de

comunidades quilombolas localizadas no Estado do Pará ALMEIDA, 2011; ACEVEDO e

CASTRO, 1993; AMARAL, 2010. No nordeste paraense encontram-se várias comunidades

quilombolas (Santa Rita da Barreira, Menino Jesus, Canta Galo, entre outras). Segundo seu

Francisco Nascimento (54 anos), presidente da associação da comunidade quilombola de Santa

Rita da Barreira, a maioria delas não possui visibilidade nem mesmo no município em que estão

localizadas, pois muitos dos habitantes do mesmo não sabem o que é uma comunidade

quilombola.

A formação do quilombo de Santa Rita da Barreira ocorreu por volta de 1967 e está

relacionada à construção de uma nova igreja e ao deslocamento da população do “arraial” da

“Barreira Antiga”, antes localizado à beira do rio Guamá, para uma área mais afastada do rio,

devido vários conflitos ocasionados pelo manejo de recursos naturais entre os moradores da

comunidade e alguns fazendeiros da região (DINIZ, 2011). O processo de deslocamento, a

diminuição da terra (parte das terras foi perdida durante o conflito com um fazendeiro da região)

e o distanciamento das margens do rio Guamá representaram uma nova organização espacial,

mudanças na composição familiar e no modo de vida da população, haja vista que os moradores

tiveram que se adaptar a um território menor e principalmente não tiveram mais acesso a alguns

recursos naturais, a exemplo peixes, camarão, entre outras.

O deslocamento das famílias exigiu algumas estratégias de organizações e de

representação social para garantir a permanência no território. Dessa forma, a própria formação

da “Associação de Moradores” funciona como uma espécie de resistência política e como

iniciativas de mobilização.

É comum os descendentes de quilombo preservarem suas histórias através da memória,

que na maioria do quilombo são passado de pai para filho, em alguns locais, a exemplo do

quilombo do Saramacas em Suriname, a memória também é preservada através de textos que

narram as façanhas dos heróis fundadores (CARVALHO, 1995.).

Os habitantes de Santa Rita da Barreira, diferentemente dos demais povos quilombolas,

não possuem uma memória histórica precisa de sua origem étnica, das fugas, perseguições, dos

deslocamentos territoriais e do processo que deu início a formação do quilombo. Porém, muitas

de suas histórias e de sua cultura, em especial de matriz africana, foi preservada na memória

das pessoas mais velhas, a exemplo, do gênero musical “samba de roda” que hoje é cantado e

dançado tanto pelos mais velhos quanto pelos jovens do quilombo.

Arriba ciragador

Oh! Cajueiro, cajuá

Arriba ciragador

Vamos ver nossa Iaiá

Cajueiro piquinino carregadinho de flor

Eu também sou piquinino, mas carregadinha de amor

Arriba ciragador

Oh! Cajueiro, cajuá

Arriba ciragador

Vamos ver nossa Iaiá

Eu vou embora, eu vou embora,

Eu vou embora pra Anapú,

Se eu não for na minha barca

Vou no meu rebocador.

Eu vou embora, eu vou embora,

Eu vou embora pra Anapú,

Vou beber água de cheiro

E cachaça de pachangú3.

3 Autor (a) anônimo(a), música cantada por dona Raimunda Rufino.

Essa letra de música é um samba que faz parte do repertório musical do quilombo. Ela

se caracteriza como uma das músicas ensinadas pelos mais velhos aos mais jovens que são

cantadas e dançadas pelos membros do quilombo. Sendo assim, mesmo após séculos existem

muitos elementos da cultura africana em Santa Rita da Barreira, a exemplo o samba de roda, o

carimbó e a capoeira que se tornaram símbolos de identidade do quilombo.

3. ORGANIZAÇÃO ECONÔMICA, POLÍTICA E CULTURAL DO QUILOMBO DE

SANTA RITA DA BARREIRA

Os diversos grupos existentes na Amazônia, entre eles, os quilombolas, diante da

necessidade e adversidade foram obrigados a inventar e reinventar formas de lidar com as

condições impostas pela sociedade em que vivem para conseguir sua sobrevivência. Assim, não

podemos buscar nesses grupos características homogêneas, visto que cada um se desenvolveu

de acordo com o contexto que lhe fora imposto mesmo porque não existe uma origem única da

qual se difundiu.

As pessoas da comunidade quilombola de Santa Rita da Barreira assim como as que

vivem em outras comunidades quilombolas na Amazônia praticam agricultura originadas das

roças. Nelas são cultivadas: mandioca, macaxeira, maxixe, milho, feijão, quiabo e melancia

para o cultivo doméstico. Já o excedente é vendido aos sábados na feira da cidade de São Miguel

do Guamá/Pa. Esses produtos são cultivados em períodos diferentes durante o ano. A mandioca

é a base da economia das famílias, sendo que é daquela que se retira a farinha de tapioca, farinha

d`água e a goma para o preparo de tapioca (beiju). O processo de preparação da terra, plantio,

colheita e da farinha d`água é dividido em diversas etapas e envolvem todos os membros da

família em trabalhos específicos individuais e coletivos.

A família tem o papel de definir todas tarefas, relacionadas às atividades agrícolas, pesca

e extrativismo, para cada membro do grupo e os períodos de cada atividade, logo é também a

guardiã dos valores culturais que muitas vezes auxiliam no modo de produção. Assim, o preparo

e cultivo das roças, os animais de carga, a seleção e corte da lenha continua a ser praticado

conforme o conhecimento tradicional, ou seja, a forma de cuidar das roças é a mesma de seus

ancestrais, o que inclui a broca, derrubada da mata, queima, coivara4, planta, capina e colheita.

4 Quantidade de ramagens a que se põe fogo nas roçadas para desembaraçar o terreno e adubá-lo com as cinzas,

facilitando a cultura; fogueira.

Haja vista que, o saber constituído da população remanescente de quilombo vai além do saber

adquirido na sala de aula, muitos conhecimentos são passados de geração a geração

principalmente aqueles relacionados ao uso e manejo dos recursos naturais e as tradições

(AMARAL, 2009).

As pessoas de Santa Rita das Barreiras desenvolve suas atividades econômicas em

diferentes ambientes como: na Terra Firme, na várzea e no rio Guamá. Cada um desses

ambientes exige dos sujeitos sociais que utilizam esses locais o conhecimento específico da

região e as técnicas apropriadas para garantir o manejo dos recursos naturais. Dessa forma, a

existência das famílias bem como as estratégias de domínio do território está diretamente

relacionada à disponibilidade de recursos naturais, ou seja, todos os espaços do território são de

fundamental importância para a sobrevivência da população (DINIZ, opt cit.).

Há muitos anos as famílias desse quilombo manipulam plantas, sementes de açaí, entre

outras para vários fins relacionados inclusive a reprodução social e práticas culturais. Desse

modo, a natureza sempre foi fundamental para a vida e as práticas culturais dessa comunidade.

Nas áreas de várzea existe também a criação de porcos além de, alguns pequenos

igarapés que deságuam no rio Guamá onde se pratica a pesca com linha e anzol. Estes espaços

são de uso comum para a pesca, à retirada de madeiras, colocação de armadilhas para capturar

animais, e ainda se utiliza a coleta de frutos, sementes, ouriços, palhas e demais vegetais. Cabe

ressaltar que, essas atividades são reguladas pelas famílias no que se refere ao período de

execução.

Durante o momento em que em que o povo de Santa Rita da Barreira lutava pela

legalização de suas terras e pelo reconhecimento, enquanto quilombo houve a necessidade de

se organizar em associação, tendo um dos moradores como presidente da localidade, ou seja,

este se tornou uma unidade política de mobilização. Ao passo que, foi e continua sendo uma

forma de organização política para conseguir os recursos necessários para sua sobrevivência

diante do Estado, bem como para a preservação do meio ambiente.

As músicas, em especial o samba de roda e o carimbó, as danças, defumações,

agricultura, pescas e o extrativismo de sementes ainda são frequentes na comunidade e,

demonstram a permanência de elementos de matriz africana, além de ser uma estratégias de

autonomia e resistência do grupo.

4. GÊNERO, RAÇA E GERAÇÃO

Ana, Raimunda, Antônia e Antônia nos contam do quilombo rural de Santa Rita da

Barreira. Por intermédio de algumas entrevistas feitas com essas mulheres, é possível perceber

diferenças significativas entre elas como a região onde vivem, a cor da pele, atividades

exercidas, práticas religiosas e culturais. No entanto, apesar dessas dessemelhanças, o termo

“mulheres quilombolas” sugere uma identidade de/para diferentes corpos e experiências.

O surgimento do termo remanescente de quilombo está diretamente relacionado a um

contexto de valorização da diferença etnicorracial a partir dos movimentos sociais contra a

ditadura militar. Que buscavam direitos civis e sociais e também abertura política e democracia

nas décadas de 1970 e 1980. Esse termo ganha legitimidade com a promulgação da

Constituição Federal de 1988 no Art. 68 do ADCT (Ato das Disposições constitucionais

Transitórias) que garante aos remanescentes de quilombo a propriedade de suas terras e os

artigos 215 e 216 asseguram a proteção de seus modos de criar, fazer e viver.

Esses movimentos distinguem-se dos anteriores por introduzir, em sua pauta de

reivindicações, a denúncia do mito da democracia racial, a busca de ações de valorização da

identidade negra positivando a figura do negro por meio de iniciativas de incentivo da

autoestima. Principalmente valorizando os traços físicos e manifestações culturais desses

grupos e a luta perante o poder público em prol de políticas públicas e programas de ações

afirmativas como forma de reparar os danos causados as populações afrodescendentes

(ALBERTINI; PEREIRA 2007).

Para esse trabalho foram entrevistadas quatro mulheres que vivem na comunidade

quilombola de Santa Rita da Barreira. Assim, Dona Ana Lucia (48 anos), Antônia de Oliveira

(58 anos), Antônia Almeida (68 anos) e Raimunda Rufino (87 anos) nos contaram suas

experiências, enquanto quilombolas.

A partir desses depoimentos foi possível destacar participação dessas mulheres na

política, no trabalho e na vida cultural do quilombo. Principalmente de dona Raimunda Rufino

e dona Ana Lucia que participam da vida cultural ensinando e incentivando as tradições de seus

antepassados como o samba de Cacete e a capoeira como se observa na letra de música abaixo.

Espiri, espiri, piri

Catita não apareceu

Espiri, espiri, piri

Catita não apareceu

Por cima da ribanceira

Catita já se perdeu

Catita teve uma filha

Que coisa mais delicada

Parece à estrela dávida

Sereno da madrugada5

Dona Raimunda Rufino é a responsável por ensinar aos mais jovens o samba do Cacete,

e hoje este gênero musical é a principal atração cultural e símbolo de identidade do grupo, sendo

que a mesma faz questão de cantar, tocar e contar história para as pessoas que a visitam. Deste

modo, no período em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo na sociedade e passa

a viver a velhice social, este assume outras funções: a de lembrar e a de ser a memória do grupo

social na sociedade em que vive (BOSI , 1994). A memória é uma reconstrução psíquica e

intelectual das representações do passado, um passado que não é apenas daquele indivíduo que

lembra, mas de um sujeito inserido num contexto familiar, cultural e social (ROUSSO, 2006).

Essas mulheres ao serem interrogadas sobre o que significa ser “mulher quilombola”

responderam que tinham honra de serem quilombola, suas respostas se confundem com a ideia

de força e resistência, relacionadas a luta pela sobrevivência, tanto sua quanto de seus

familiares. Percebe-se que entre as mulheres camponesas o cuidado praticado não se restringe

ao grupo familiar, mas também à comunidade e com as pessoas que ali vivem, sendo todas

percebidas por elas como companheiras das lutas cotidianas. Assim, nos povoados negros da

Amazônia as mulheres inventaram caminhos, criaram e recriaram atalhos na luta pela

sobrevivência, para isso teceram uma rede de solidariedade na vida cotidiana, onde as alegrias,

tristezas e doenças são compartilhadas pelo grupo (PINTO 2004).

Os atributos de força e resistência, geralmente atribuídos ao universo masculino, são

deslocados constantemente nos depoimentos para caracterizar a mulher quilombola. Sobre isso,

dona Raimunda Rufino (87 anos), matriarca desta localidade, exerce papel de grande relevância

principalmente com relação à preservação de elementos culturais, pois uma de suas atribuições

é repassar aos jovens os saberes relacionados a: composição de música, tocar instrumentos

musicais e ensinar a coreografia do samba de cacete. Importa ressaltar que esta senhora também

5 Autor(a) anônimo(a), música cantada por dona Raimunda Rufino.

é a principal guardiã das memórias deste grupo, por ser a membro mais velha e respeitada pelos

demais que compõem a comunidade.

“Tenho cinco filhos todos já estão adultos”. Mas, foi um sacrifício criar eles. Não é

tão fácil assim não. Eu tinha de levantar cedo prepara a comida para levar para roça,

levavam as crianças pequenas, principalmente as que ainda mamavam, chegando na

roça atava uma rede na beira do mato, na sombra e botava ela pra dormir, enquanto

ela dormia eu plantava, capinava. Quando a roça tava madura ia arrancar a carregar

no paneiro6 do centrão pra cá, é bastante longe.” (Raimunda Rufino).

Sobre o relato da Srª Raimunda e o contato com essa pessoas é possível destacar a sua

importância quanto à preservação dos costumes. Considerando que, em sociedades tradicionais

não letradas, os costumes são preservados na memória dos mais velhos. Nesse sentido, é através

desses guardiões que se manifestam os saberes tradicionais.

Observam-se a partir dos depoimentos que as mulheres quilombolas assumem múltiplas

funções. A esse respeito é ilustrativa a fala de Antônia Almeida (68 anos):

“Eu sou mãe, trabalho na roça, desde criança e até hoje raspo mandioca7 e coo

massa8. Fiz o parto da maioria das crianças daqui. Tem uns que peguei que já são

até mãe de outros filhos, faço remédios caseiros para quebranto9, AVC (acidente

vascular cerebral), inflamação da garganta com plantas que planto ou que tiro do

mato. A gente é de tudo um pouco”.

Percebe-se a partir do depoimento da Srª Antônia Almeida que esses saberes são

fundamentais para prevenção e combate de certas doenças. Haja vista que, a comunidade não

dispõe de uma Unidade Básica de Saúde. Por esse motivo mulheres como dona Antônia

Almeida se tornam de grande relevância para a comunidade. Pois, durante a noite em alguns

casos os partos são realizados em suas próprias residências.

Assim como a maioria das mulheres do quilombo, que exerce várias funções, dona Ana

Lucia (48 anos) não foge dessa realidade e assim relata:

“Tenho oito filhos, sete nasceram com ajuda de parteira e uma delas nasceu dentro

do ônibus a caminho de São Miguel. Porque a parteira dona Antônia puxou minha

6 Utensilio feito de cipó utilizado para carregar mandioca 7 Retirada da casca de mandioca. 8 Coar desempenha a mesma função de peneiração (a peneiração separa os fragmentos menores dos maiores,

homogeneizando a gramatura da farinha, assim proporcionando melhor qualidade. Os fragmentos retidos na

peneira são chamados de crueira). 9 Suposta influência maléfica de feitiço, por encantamento à distância, segundo a crendice popular, que a atitude,

o olhar etc. de algumas pessoas produzem em outras.

barriga10 e disse que a criança estava em pé11, e que era pra eu correr pro hospital.

Tive que pegar um ônibus e não deu tempo de chegar no hospital e acabei tendo meu

filho no ônibus. Faço também xaropes para garganta, puxo dismentiduras12 e

trabalho na roça até hoje.

Já no relato de dona Antônia de Oliveira: “Nasci e me criei aqui. E não tenho vontade

de sair daqui. Aqui a gente tem tudo. Nós cansemos de carregar paneiro na costa. Hoje mudou

muito, até a alimentação”. É possível identificar que, embora a ideia de ser mulher quilombola

seja representada por um sentimento de felicidade, existe uma certa diferença entre essas

gerações que nos permitem verificar as distintas funções exercidas por elas, bem como uma

maneira diferenciada do sentido de ser quilombola.

Essas mulheres são guardiãs dos saberes e dos interesses do grupo social em que estão

inseridas. Nesse caso se articularmos às condições históricas da busca por direito dos

remanescentes de quilombo, a diferença etnicorracial acaba se tornando também um elemento

político, principalmente nas reinvindicações por direito territorial, cuja norma é dada pela noção

de ancestralidade. Nesse sentido, práticas como: danças, músicas e artesanatos têm sido peças

chaves na luta por território e políticas públicas para a comunidade quilombola.

A partir dos depoimentos e das músicas cantadas por dona Raimunda Rufino, observa-

se que as mesmas reforçam a ideia de ancestralidade e resistência e ao mesmo tempo,

compartilham tristezas.

Na comunidade quilombola de Santa Rita da Barreira a renda familiar é construída tanto

por homens quanto por mulheres. Isto significa que a mulheres exercem uma dupla jornada de

trabalho, já que também são responsáveis pelo trabalho doméstico, estes muitas vezes não é

reconhecido, pois não é visto como uma atividade que gera renda e riqueza.

Dessa forma, as mulheres fazem parte do espaço de produção e de consumo, embora

seu trabalho esteja mais relacionado ao coletivo, do que a realização de um projeto individual,

isto é, as questões de gênero e raça estão presentes na maneira como a dinâmica do contexto

entre homens e mulheres se organizam na comunidade quilombola.

Assim, as mulheres vivenciam situações diferenciadas, de acordo com a posição que

ocupam, trabalham na agricultura, em casa, são parteiras, curandeiras e organizam atividades

culturais para a população do quilombo.

10 Ato de massagear a barriga com óleo (andiroba ou banha de galinha). 11 Criança não está posicionada corretamente para nascer. 12 Torção de nervo.

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da ideia de mulher quilombola destacada pela visão de quatro gerações distintas

que compõem a localidade da comunidade Santa Rita da Barreira é possível depreender que

existem modos de preservação das tradições vivenciadas de maneiras diferentes. Isto porque,

apesar da comunidade manter suas culturas em muitos aspectos do quilombo, suas vivências

são repassadas geracionalmente. Uma vez que, no modo de vida dessas populações observa-se

rupturas com relação às modificações quanto ao uso de tecnologias como forno elétrico para

torrar farinha, transporte coletivo, celular, etc. E também permanências quanto algumas

manifestações culturais como samba de cacete, carimbó e capoeira que se tornaram símbolo de

identidade desse grupo social.

O governo municipal local ainda não intervêm de maneira efetiva e significativa com

políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento da comunidade local. Além de

proporcionar ações que possibilite a visibilidade das questões de gênero, de forma que a

sociedade guamaense compreenda as diversas funções exercidas por homens e mulheres no

quilombo.

Nesse sentido, faz-se importante destacar que as questões de gênero desta comunidade

não implicam necessariamente na definição de funções e sim na divisão de tarefas que se

complementam entre si com um papel significativo das mulheres entrevistadas, das quais

destacam a função e o desempenho de seus ofícios que contribuem para a vida social das

famílias quilombolas.

6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ALBERTI, Verena. História dentro da História. In: Fontes Históricas. PINNSKY, Carla. B.

(Org.) 2ª Ed. São Paulo: contexto, 2010.

ALBERTINI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. Movimento Negro Contemporâneo. In:

FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (orgs). Revolução e Democracia. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2007.

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