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Mulherzinhas

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Mulherzinhas

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clássicos zahar em edição comentada e ilustrada

Persuasão*Jane Austen

O Mágico de Oz*L. Frank Baum

O morro dos ventos uivantes*Emily Brontë

Alice*Lewis Carroll

O melhor do teatro gregoÉsquilo, Sófocles, Aristófanes, Eurípides

O corcunda de Notre Dame*Victor Hugo

O Fantasma da ÓperaGaston Leroux

Carmen e outras históriasProsper Mérimée

Os Maias*Eça de Queirós

FrankensteinMary Shelley

Contos de fadas*Maria Tatar (org.)

Mary Poppins*P.L. Travers

A besta humanaÉmile Zola

* Disponível também em edição bolso de luxoVeja a lista completa da coleção no site zahar.com.br/classicoszahar

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Louisa May Alcott

Mulherzinhasedição comentada e ilustrada

Apresentação, tradução e notas:Bruno Gambarotto

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Copyright desta edição © 2019:Jorge Zahar Editor Ltda. rua Marquês de S. Vicente 99 – 1o | 22451-041 Rio de Janeiro, rj tel (21) 2529-4750 | fax (21) [email protected] | www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Gra�a atualizada respeitando o novo Acordo Ortográ�co da Língua Portuguesa

Ilustrações de Frank T. Merrill (1848-1923), gravadas por George T. Andrew, para a edição de 1880 de Little Women (Boston, Roberts Brothers).

Preparação: Juliana RomeiroRevisão: Jorge Moutinho, Carolina SampaioProjeto grá�co: Carolina Falcão Capa: Rafael NobreIlustração da quarta capa: © GoodStudio/Shutterstock

cip-Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

Alcott, Louisa May, 1832-1888A332m Mulherzinhas/Louisa May Alcott; apresentação, tradução e notas Bruno Gam-

barotto. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2019. il. (Clássicos Zahar)

Tradução de: Little womenisbn 978-85-378-1847-3

1. Romance americano. i. Gambarotto, Bruno. ii. Título. iii. Série.

cdd: 81319-57854 cdu: 82-31(73)

Vanessa Mafra Xavier Salgado – Bibliotecária – crb-7/6644

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sumário

Apresentação, por Bruno Gambarotto 7

Prefácio 17

parte i1. Brincando de peregrinas 212. Um Natal feliz 353. O menino Laurence 484. Fardos 615. Como bons vizinhos 766. Beth encontra o Palácio da Beleza 887. Amy e o Vale da Humilhação 978. O encontro de Jo com Apolião 1069. Meg vai à Feira das Vaidades 11910. C.P. e A.P. 13811. Experimentos 14812. O Acampamento Laurence 16113. Castelos de vento 18414. Segredos 19515. Um telegrama 20616. Cartas 21617. A pequena leal 22518. Dias sombrios 234

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19. O testamento de Amy 24320. Con�dencial 25321. Laurie faz bobagem, e Jo conserta tudo 26022. Campos aprazíveis 27523. Tia March resolve a questão 283

parte ii24. Fofoquinhas 29725. O primeiro casamento 31026. Experiências artísticas 31827. Lições literárias 33128. Experiências domésticas 34129. Visitas 35730. Consequências 37131. Nossa correspondente estrangeira 38332. Doces preocupações 39833. Diário de Jo 41134. Um amigo 42635. Dor de cotovelo 44436. O segredo de Beth 45637. Novas impressões 46238. De canto 47639. Laurence, o Preguiçoso 48940. O vale da sombra 50441. Aprendendo a esquecer 51142. Sozinha 52643. Surpresas 53544. Milorde e milady 55245. Daisy e Demi 55846. Debaixo do guarda-chuva 56647. Tempo de colheita 581

Cronologia: vida e obra de Louisa May Alcott 593

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apresentação

Foi com reticência que Louisa May Alcott aceitou o convite do editor Thomas

Niles para escrever um “livro para garotas”. Em maio de 1868, a autora registra

a encomenda em seu diário e hesita: “Vou tentar.” A literatura para crianças e

adolescentes não fazia, a princípio, parte dos planos da jovem autora, que ambi-

cionava voos mais altos. Nascida em 1832, no seio de uma esclarecida família da

Nova Inglaterra, Louisa viu-se desde a infância cercada da vanguarda do pensa-

mento norte-americano de seu tempo. Che�ada pelo teólogo e educador Amos

Bronson Alcott e por Abigail “Abba” Alcott – o primeiro, um proeminente inte-

lectual do grupo transcendentalista, que reunia literatos progressistas ligados

a Harvard e promovia fortes questionamentos no campo das artes, da �loso�a,

da educação e da sociedade; a segunda, abolicionista, militante defensora do

sufrágio feminino, e ativista do movimento da temperança (que almejava ba-

nir o consumo de bebida alcoólica do país) –, a casa dos Alcott recebia �guras do

porte dos �lósofos Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau (que foi seu

tutor) e do romancista Nathaniel Hawthorne. Os primeiros passos intelectuais

de Louisa ocorreram em um mundo em profunda transformação: viveu o expe-

rimentalismo comunitário e reformista promovido pelo círculo transcenden-

talista em resposta à corrupção das instituições e dos costumes urbanos; assis-

tiu ao encrudescimento das tensões políticas entre estados de economia livre e

estados de economia escravagista, que culminaram em uma das maiores tragé-

dias da história de seu país, a Guerra de Secessão (1861-65), na qual serviu como

enfermeira de soldados de ambos os lados do conflito; e engajou-se nos impor-

tantes debates de seu tempo sobre o sufrágio feminino e os direitos da mulher.

O peso dessa formação está bastante presente em sua carreira de escri tora:

aparece no poema “A flauta de Thoreau” (1863), em homenagem ao falecido ami -

go, e na prosa doméstica de Hospital Sketches (1863), coletânea das cartas que

enviou à família relatando sua rápida experiência da Guerra de Secessão (abre-

viada por uma febre tifoide que quase lhe custou a vida), tanto quanto em sua

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decisão de assumir um pseudônimo, A.M. Barnard, para assinar a literatura

de mistério, de forte apelo popular, com que se fez pro�ssionalmente escritora

durante o difícil período econômico do conflito nacional. Escrever para jovens,

então, lhe pareceu mais um desvio de seu objetivo de ser uma escritora séria

– o que a literatura sensacionalista de crime e mistério tampouco lhe propor-

cionava. Posteriormente, Louisa confessaria seu incômodo durante o processo

de escrita; porém, o gênero provou-se um ótimo ponto de equilíbrio entre as

premências econômicas e uma literatura condizente com sua formação (vide o

peso autobiográ�co da prosa do romance)1 e pretensões intelectuais.

Louisa produziu rapidamente os 23 capítulos que compõem a primeira parte

de Mulherzinhas, publicados naquele mesmo ano de 1868. O inesperado e estron-

doso sucesso animou o editor e a escritora a produzirem, com igual celeridade,

uma sequência (Mulherzinhas II, ou Boas esposas, como viria a ser conhecido na

Inglaterra), que sairia no ano seguinte. A reunião dos dois romances em um só

volume ocorreria apenas em 1880, tornando-se um marco da literatura infanto-

juvenil norte-americana e mundial, com renovadas adaptações teatrais, musi-

cais e fílmicas voltadas ao grande público2 e fazendo-se desde então presente na

formação e na escrita de uma miríade de pensadoras e escritoras nas duas costas

do Atlântico – como a prosadora e �lósofa francesa Simone de Beauvoir, a poetisa

norte-americana Adrienne Rich e a romancista italiana Elena Ferrante.

voz própria

Sob a simplicidade do que se pode descrever como os (aproximadamente)

quinze anos decisivos da história das irmãs Meg, Jo, Beth e Amy March (que

1. O enredo de Mulherzinhas recupera elementos da estrutura familiar, dos debates intelectu-ais e das circunstâncias vividas pelos Alcott. As irmãs Meg, Jo, Beth e Amy March, por exemplo, com suas brincadeiras e características individuais, encontram inspiração, respectivamente, em Anna, Louisa, Elizabeth e Abigail Alcott, assim como a caracterização de Robin March como clérigo e educador é decalcada de Amos Bronson Alcott. Também existem referências a brincadeiras privadas compartilhadas pelas irmãs (caso do Clube Pickwick, de que Louisa se ocupa no capítulo 5), a episódios de suas vidas juntas e a pessoas que cruzam seus caminhos. 2. Além de duas versões para o cinema mudo, o romance conheceu outras quatro com som (1933, 1949, 1978 e 1994) – e há mais uma a caminho, com estreia prevista para dezembro de 2019 –, seis séries de televisão (quatro delas da BBC britânica: 1950, 1958, 1970 e 2017) e uma conversão em musical da Broadway, em 2005.

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iniciam a história com 16, 15, 13 e 12 anos, respectivamente), escondem-se im-

portantes reflexões e enfrentamentos acerca da infância e do destino reser-

vado às mulheres em uma sociedade de base patriarcal. Sob moldes morais

por vezes antiquados, como veremos, revela-se um forte pensamento eman-

cipador: o destino das little women (estamos falando de “mulherzinhas” no

sentido de meninas que, em seu percurso de amadurecimento, devem mos-

trar-se “pequenas mulheres”)3 não é meramente o casamento, no qual exer-

ceriam um papel doméstico e procriativo, e tampouco está desprovido de aci-

dentes e decisões autônomas.

No sentido dessas reflexões, dois pontos do enredo ganham destaque. O pri-

meiro deles diz respeito à individualidade dos percursos das irmãs. Os termos

em que cada uma delas realizará sua vida particular estabelecem-se sob as pa-

lavras do pai, Robin March, clérigo a serviço na Guerra de Secessão que, em

carta do front, pede a suas �lhas que cumpram com seus deveres, enfrentem

corajosamente seus medos e dominem suas ansiedades, para que, quando ele

retorne, tenha ainda mais orgulho de suas “mulherzinhas”. À força da régua

moral do sr. March, Meg, Jo, Beth e Amy contrapõem as condições particulares

de realização de cada um de seus percursos de retidão, uma vez que o livre-ar-

bítrio é a qualidade essencial para que, entre erros e acertos, construam suas

vidas individuais. Preservando o livre-arbítrio de cada uma das irmãs, Alcott as

eleva à condição de protagonistas de suas próprias vidas, em um movimento

que remonta à tradição da prosa de romance de autoras como Jane Austen (Or-

gulho e preconceito) e Charlotte Brontë (Jane Eyre), entre outras igualmente res-

ponsáveis por tematizar a difícil a�rmação da mulher em uma sociedade pa-

triarcal regida por um código moral que determina e restringe seu espaço de

atuação. As irmãs March, por sua vez, questionam-se sobre um futuro aberto e

constroem expectativas (seus “castelos de vento”) que as sinuosidades da vida,

seus acidentes e a reflexão que os acompanha, colocam em prova. É a capaci-

3. A tradução do título em outros idiomas apresenta por vezes a liberdade adaptativa própria ao gênero da literatura juvenil. Consagrado como Mujercitas, em espanhol, e Piccole donne (“Pequenas mulheres”), em italiano, o romance apresenta títulos em francês e alemão que não correspondem às ênfases do romance original: Les quatre filles du docteur March (“As qua-tro �lhas do doutor March”) e Betty und ihre Schwestern (“Betty e suas irmãs”). No Brasil, é interessante observar que o romance foi tradicionalmente publicado seguindo a divisão inicial em dois volumes. A presente tradução respeita a uni�cação de 1880.

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dade de autocrítica das protagonistas que leva o crítico John Matteson a identi-

�car, ao �m de cada jornada, “uma noção madura de felicidade”.4

A ênfase na individualidade das irmãs, do caráter aberto de seu futuro, se

desdobra em considerações sobre gênero e papel social, bem como em ques-

tionamentos sobre a instituição do casamento. Ao tomarem para si suas res-

ponsabilidades e desejos, as garotas March expõem as restrições e exigências

que a vida e a sociedade lançam sobre a �gura da mulher em seu projeto de

autorrealização. Nos percursos domésticos de Meg e Amy e, em especial, nas

escolhas, di�culdades e ambições pro�ssionais de Jo, vemos de forma crista-

lina o pensamento da autora acerca do casamento – no qual homem e mulher,

se não dividem a totalidade das tarefas, devem, para o bem do convívio, com-

partilhar um com o outro suas opiniões e interesses pelas responsabilidades

de cada um – e a defesa da igualdade entre gêneros no que se refere às possi-

bilidades pro�ssionais. Não se trata somente de colocar a espontaneidade do

amor como condição para o matrimônio (um lugar-comum das narrativas

sentimentais), mas também de flexibilizar a instituição a partir do equilíbrio

consciente de responsabilidades entre homem e mulher. A propósito, o lei-

tor atento muitas vezes veri�cará signi�cativas inversões de postura entre

as personagens masculinas e femininas da trama: as meninas assumindo pa-

péis e autonomia tradicionalmente masculinos, enquanto os rapazes serão

flagrados em situações de fragilidade ou inde�nição atribuíveis à “susceptibi-

lidade” do caráter feminino. Essa quebra de expectativas, todo o tempo pre-

sente, reflete as próprias escolhas críticas da autora, convicta de sua condição

de mulher solteira e pro�ssional literária atuante, para quem a tipi�cação de

gênero restringia o livre desenvolvimento das capacidades individuais (em

particular das mulheres, reclusas e, portanto, afastadas do mundo público

fundamentalmente masculino), e que procurou expor em ensaios o respeito

à recusa feminina do casamento e a defesa da criação de associações femini-

nas de artistas e pro�ssionais.

4. John Matteson, em introdução a The Annotated Little Women (Nova York, W.W. Norton & Company, 2016, p.xv).

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referências

Não é apenas no tocante à caracterização de suas personagens e suas implica-

ções no enredo que Alcott quebra expectativas. Realista em seus temas, Mu-

lherzinhas integra de forma bastante original o universo fantástico que já se

consagrava na literatura juvenil. O mundo da fantasia e da aventura, que per-

faz o horizonte de algumas das mais importantes obras do século – das fábulas

dos irmãos Grimm a Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, publicado

apenas três anos antes do romance de Alcott –, surge, sobretudo no primeiro

volume de Mulherzinhas, mediante brincadeiras às quais concorrem inúmeras

referências literárias.

A primeira dessas referências, que funciona como um esqueleto intertex-

tual para toda a narrativa e, em particular, para o primeiro volume, é The Pil-

grim’s Progress, do pastor puritano inglês John Bunyan. Publicado em 1678, O

Peregrino (como é conhecido em português) apresenta em duas partes, sob a

forma de um sonho, o percurso de uma família que deixa a Cidade da Destrui-

ção em busca da Cidade Celestial, no topo do monte Sião. O percurso do Cristão

(na primeira parte), carregado de um imenso fardo, e de sua mulher e prole (na

segunda parte) se faz de duras provações, em que estados de espírito e pecados

são materializados na paisagem (o Pântano da Desesperança, a Colina da Di�-

culdade, o Vale da Humilhação, o Castelo da Dúvida, o Palácio da Beleza, a Feira

das Vaidades) e nos encontros travados (por exemplo, com o Fiel e o Esperan-

çoso, que acompanharão o Cristão até o �m da jornada).

O peso da alegoria cristã converte-se em divertimento didático para as ga-

rotas em busca de aprimoramento espiritual e confere à narrativa da primeira

parte de Mulherzinhas uma nota fantástica: as paixões furiosas de Jo ganham

as formas de um Apolião, gigante enfrentado pelo Cristão; Amy, em sua expe-

riência escolar, encara o Vale da Humilhação; Beth, com sua timidez excessiva,

encontra o Palácio da Beleza; enquanto um simples baile torna-se para Meg a

própria Feira das Vaidades.

Outra referência literária transformada em porta de entrada à fantasia é

o escritor inglês Charles Dickens, ao qual Louisa dedica um capítulo inteiro

de diversões. O grupo de estudiosos da vida inglesa imortalizado em Os do-

cumentos póstumos do clube Pickwick é aqui ressuscitado para dar notícia dos

avanços e pecadilhos cotidianos de cada uma das irmãs. Reunidas no sótão da

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casa e presididas pela irmã mais velha, a delicada Meg, encarnando o roliço e

aristocrático senhor que dá nome ao clube, as novas “Pickwickers” empenham-

se na produção de um jornal de variedades domésticas, em que veremos Jo

exercendo seus talentos literários como um sr. Snodgrass, Beth vazando seu

acanhamento sob o pseudônimo do mal-amado sr. Tupman e a sociável Amy

assumindo os ares esportistas, porém desastrados, de Nathaniel Winkle. Todos,

claro, personagens do romance de Dickens. Não faltará ao grupo um Sam Wel-

ler: a personagem cômica, tardiamente introduzida no romance – e que alavan-

cou as vendas dos fascículos com seu carisma, tornando-se fundamental para

que o romance seja o primeiro estrondoso sucesso do autor inglês – será, aqui,

interpretada por Laurie, o vizinho órfão e amigo inseparável de Jo. Compete à

dupla ainda temperar as relações entre as famílias March e Laurence com no-

tas tomadas de empréstimo ao romance de aventura, presença constante nas

brincadeiras de ambos.

emancipação e responsabilidade

No equilíbrio humanizador entre fantasia e realidade, capacidade criativa e

dever moral reside a força com que as personagens enfrentarão as situações

e decisões de suas vidas em seu pertencimento a uma comunidade. A educa-

ção no seio da família March nunca perde de vista a inserção responsável das

garotas na sociedade: emancipar-se é também servir, cada qual segundo seus

meios e aptidões, cada qual procurando dar leveza ao fardo de vícios e egoís-

mos com que começam suas vidas. Meg será capaz de sazonar seus sonhos de

glamour e estar à altura das responsabilidades de uma dona de casa? Jo vencerá

a ambição de fama e riqueza às custas da integridade intelectual? Beth supe-

rará o acanhamento infantil? Amy verá além do véu de vaidades, conforto e

modos frívolos? A resposta para essas perguntas sempre toca o compromisso

com o outro, a nota de responsabilidade que vibra em harmonia com a ação e

a peripécia de cada personagem. A combinação de esforço didático e literatura

de entretenimento foi fundamental para a conversão de Mulherzinhas em um

clássico instantâneo. Se o que transforma uma obra em referência canônica de

uma literatura é a capacidade que ela tem de responder, geração após geração,

às preocupações e questionamentos de uma sociedade, a obra-prima de Louisa

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May Alcott encarna perfeitamente tais condições. Ao longo de 150 anos, os di-

lemas, dramas e conquistas das irmãs March nortearam jovens leitoras (e, é

claro, leitores) de diferentes momentos em um mesmo embate entre a cons-

trução da subjetividade e do indivíduo e os padrões e convenções sociais her-

dados, em sua ambivalente função de orientar e restringir. A urgência do pro-

blema do gênero como construção livre e convenção pertence tanto às jovens

que, mais próximas de Jo, buscaram sua autonomia sob a forma do trabalho,

quanto àquelas que vivem os dilemas da liberdade de gênero atuais. Rom-

pendo as barreiras do tempo e das circunstâncias, Mulherzinhas representa seu

momento, com sua linguagem e dilemas especí�cos, para transcendê-lo sob a

forma da a�rmação da igualdade de gênero como condição para a produção de

uma sociedade melhor.

5 bruno gambarotto

Bruno Gambarotto é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH – USP) e tradutor de autores consagrados das literaturas norte-americana e inglesa, como Walt Whit-man, Herman Melville, Nathaniel Hawthorne, Harriet Beecher Stowe, Edith Wharton, Aldous Huxley e Mary Shelley.

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prefácio

Ide então, meu livrinho, e mostrai a todos

Que as portas vos abram e gentis vos recebam

O que encerrado em vosso peito guardais;

E desejai que bendito e para sempre seja

O que lhes revelais, para que possam escolher

Ser peregrinos melhores do que vós e eu.

Falai da Misericórdia, peregrina

Que no raiar do dia a jornada inicia.

Sim, que as jovens aprendam com ela a prezar

A prudência, e com esta um mundo porvir;

E pelos caminhos que os santos pés trilharam

Que as trôpegas moças possam a Deus seguir.

adaptado de john bunyan1

1. Escritor e pastor puritano, John Bunyan (1628-88) é o autor de O peregrino, uma das obras lapidares da literatura religiosa inglesa, da qual Alcott extraiu (e adaptou) este texto de prefá-cio. O peregrino servirá de “roteiro” para as garotas da família March ao longo da narrativa de Mulherzinhas. Ver a Apresentação a este volume.

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parte i

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1. brincando de peregrinas

– O Natal não vai ser Natal sem presentes – resmungou Jo, estirada no tapete.

– Como é horrível ser pobre! – suspirou Meg, olhando para o vestido velho.

– Não é justo que algumas garotas tenham um monte de coisas bonitas e ou-

tras, absolutamente nada – acrescentou a pequena Amy, fungando magoada.

– Mas temos o papai e a mamãe, e temos umas às outras, de qualquer forma

– disse Beth, satisfeita, do seu canto.

Os quatro jovens rostos sobre os quais reluzia o fogo iluminaram-se com as

palavras alegres, mas logo voltaram a �car soturnos quando Jo emendou, com

tristeza:

– O papai não está com a gente, e vai ser assim por muito tempo.

Ela não disse “talvez para sempre”, mas foi o que cada uma delas silenciosa-

mente acrescentou, pensando no pai tão distante, na guerra.2

2. A Guerra Civil Norte-Americana, ou Guerra de Secessão (1861-65), eclodiu a partir de ten-sões históricas derivadas das divergências quanto ao instituto da escravidão no território nacional. O embate tem início na elaboração da Constituição norte-americana, quando os representantes das treze colônias fundadoras acordam que a legalidade da escravidão seria decidida pelas assembleias e constituições de cada estado conforme seus interesses econô-micos, o que opunha estados cujas economias se baseavam na força de trabalho livre, na pe-quena propriedade rural e no comércio e aqueles que dependiam da força de trabalho cativa para a produção de monocultura em grandes propriedades agrícolas. Socialmente, fez-se in-tensa a campanha contra a escravidão, sobretudo com o �m do conflito contra o México, em 1848, quando o movimento abolicionista do norte dos Estados Unidos passou a denunciar com maior veemência a desumanidade da escravidão e sua incompatibilidade em relação aos princípios fundadores do país. Passada uma década de tentativas frustradas de acordo, os es-tados pró-escravidão declararam em 1861 seu desligamento da União e a formação de uma nova república independente. À secessão anunciada, contrapôs-se a declaração de guerra do governo em Washington, presidido então pelo recém-eleito Abraham Lincoln. Os quatro anos de guerra entre nortistas (ou unionistas, aos quais Robin March, o chefe da família March, se alista) e confederados resultam na vitória dos primeiros e na abolição da escravidão em todo o território norte-americano, com um saldo de meio milhão de mortos. A Guerra Civil Norte- Americana, cujas batalhas ocorreram no sul e no meio-oeste do país, é considerada a primeira grande guerra moderna da história (com o uso em massa de armas automáticas, como a me-tralhadora) e inaugura um novo momento do Estado norte-Americano, com a consolidação da união do território, de um Exército nacional e da indústria armamentista.

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Por um instante, ninguém disse uma palavra; Meg, então, quebrou o silên-

cio, em tom alterado:

– Vocês sabem por que a mamãe propôs não termos presentes neste Natal:

foi porque vai ser um inverno duro para todo mundo, e ela acha que não deve-

mos gastar dinheiro com caprichos, quando nossos homens estão sofrendo no

Exército. Não podemos fazer muito, mas podemos fazer nossos pequenos sacri-

fícios, e é importante que os façamos com boa vontade. Mas acho que não vou

conseguir – e Meg balançou a cabeça, ao pensar com tristeza em todas as coisas

bonitas que queria.

– Mas não acho que o pouco que íamos gastar faria diferença. Cada uma de nós

tem um dólar, e isso não seria de muita ajuda para o Exército. Tudo bem que não

espero ganhar nada da mamãe ou de vocês, mas quero comprar para mim Undine

e Sintram.3 Faz tanto tempo que quero – lamentou Jo, que era uma leitora voraz.

– Minha ideia era gastar o meu dólar em novas partituras – revelou Beth,

com um ligeiro suspiro que ninguém ouviu, exceto a escova da lareira e o apoio

da chaleira.

– Vou comprar uma boa caixa de lápis de cor Faber;4 preciso muito deles –

disse Amy, com �rmeza.

– Mamãe não disse nada sobre o nosso dinheiro, e ela não vai querer que a

gente abra mão de tudo. Vamos comprar o que quisermos e nos divertir um

pouco; tenho certeza de que a gente se esfalfou um bocado para ganhá-lo – bra-

dou Jo, examinando os saltos de suas botas à maneira de um cavalheiro.

3. Obras do escritor romântico alemão de ascendência francesa Friedrich de la Motte Fou-qué. Undine (1811), a mais popular de suas novelas e um clássico da literatura para crianças, tem por protagonista a personagem homônima, um espírito elementar das águas, pelo qual um cavaleiro de nome Huldbrand se apaixona, a despeito de sua relação com uma mulher mortal; para Undine, a realização do amor com Huldbrand lhe permite ganhar uma alma. Sintram e seus companheiros (1814) traz a história de um garoto de doze anos que deseja ser cavaleiro e vive o embate entre duas ordens, a pagã – mais especi�camente tributária da mitologia nórdica – e a cristã. As obras foram publicadas juntas numa edição popular nos Estados Unidos, de 1845.4. Fundada em 1761 por Kasper Faber em Stein, nas imediações de Nuremberg, Alemanha, a fábrica de lápis de cor Faber se tornaria no séc.XIX a principal referência em instrumentos de escrita no Velho e no Novo Mundo. A fábrica, que a partir de 1898 contará também com o nome da família alemã Castell, será responsável pela consolidação da estrutura do lápis de cor, feito a partir de madeira e gra�te. À época, o gra�te, ao qual se misturava argila e pigmento de cor, era importado de minas localizadas na Sibéria, o que encarecia consideravelmente o produto.

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– Sei bem o quanto trabalho, ensinando àquelas crianças terríveis quase o

dia inteiro, quando queria mesmo me divertir em casa – começou Meg, nova-

mente em tom queixoso.

– Você não tem nem metade do trabalho que eu tenho – rebateu Jo. – O que

você ia achar de ter que passar horas a �o de bico calado com uma velhinha ner-

vosa e exigente, que faz você ir de um lado para outro, nunca está satisfeita com

nada e �ca no seu pé até você querer dar um sopapo nela ou pular pela janela?

– Não acho certo reclamar, mas não existe trabalho pior no mundo do que

lavar pratos e deixar tudo limpo e arrumado. Fico mal-humorada, e minhas

mãos �cam tão duras que não consigo estudar direito um mínimo que seja – e

Beth olhou para as mãos ásperas com um suspiro que, dessa vez, todas ouviram.

– Não acredito que alguma de vocês sofra como eu – exclamou Amy. – Vo-

cês não têm que ir à escola com garotas impertinentes, que atormentam você

quando não sabe a lição, e riem das suas roupas e defumam seu pai se ele não é

rico, e insultam você se o seu nariz não é bonito.

– Se você tivesse dito difamam, eu concordaria, mas defumam... como se o

papai fosse uma peça de carne – comentou Jo, rindo.

– Sei o que quero dizer, não precisa ser sartástica comigo. É correto usar boas

palavras e melhorar o vocabulhário – retrucou Amy, com dignidade.

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– Não impliquem uma com a outra, meninas. Você não gostaria que tivésse-

mos o dinheiro que papai perdeu quando éramos pequenas, Jo? Nossa, como

seríamos felizes se não tivéssemos preocupações! – desejou Meg, que se lem-

brava de tempos melhores.

– Você disse outro dia que achava que éramos mais felizes do que os �lhos

do sr. King, porque eles �cam brigando e reclamando o tempo todo, apesar de

todo o dinheiro que têm.

– Disse, sim, Beth. Bom, acho que somos, porque, embora precisemos tra-

balhar, nos divertimos por conta própria, e somos uma turma bem formidável,

como a Jo diria.

– Jo usa mesmo essas palavras! – observou Amy, com um olhar de reprova-

ção para a longa �gura esticada no tapete. Jo sentou-se imediatamente, pôs as

mãos nos bolsos do avental e começou a assoviar.

– Pare com isso, Jo. É coisa de menino!

– Mas é por isso que eu assovio.

– Detesto meninas sem educação, que não se comportam como senhoritas!

– E eu odeio borboletinhas bobas e afetadinhas!

– “Passarinhos que vivem no mesmo ninho não brigam”5 – cantarolou Beth,

a paci�cadora, com uma cara tão engraçada que a estridência das vozes das

duas se transformou em suaves risadas, e as “bicadas” cessaram por algum

tempo.

– Vamos, meninas: as duas têm culpa – disse Meg, começando a dar seu

sermão de irmã mais velha. – Josephine, você está mais do que na idade de

abandonar esses modos de menino e se comportar melhor. Quando você era

garotinha, não tinha muita importância; mas agora que está grande, usando

penteados, precisa se lembrar de que é uma jovem dama.

– Não sou! E se prender o cabelo faz de mim uma dama, vou usar duas ma-

rias-chiquinhas até fazer vinte anos! – exclamou Jo, arrancando a rede e sacu-

dindo a juba castanha. – Odeio pensar que preciso crescer e ser a srta. March e

usar vestidos longos e parecer delicada feito uma florzinha! É muito ruim ser

menina quando se gosta mesmo é das brincadeiras de menino, dos trabalhos,

5. O verso cantado por Beth advém do álbum Divine Songs for Children (Canções de fé para crianças, 1715), do poeta, pregador e pedagogo inglês Isaac Watts. Lê-se na Canção 17: “Passa-rinhos que vivem no mesmo ninho não brigam/ E é triste de ver/ Quando as crianças de uma família/ Discutem e ralham e lutam.”

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do jeito como eles se comportam. Não consigo não me sentir frustrada por não ser menino, e agora isso é ainda pior, porque morro de vontade de ir para a guerra lutar com o papai, mas só posso �car em casa e tricotar, feito uma velha estúpida! – e Jo sacudiu a meia azul do Exército6 até as agulhas soarem como castanholas, e o novelo sair rolando pela sala.

– Pobre Jo, isso é muito ruim! Mas não dá para evitar, então você tem que ten-tar se contentar em usar um apelido que parece nome de menino e brincar de ser nosso irmão – disse Beth, acariciando os cabelos maltratados da irmã com dedos de cujo toque nem mesmo toda a louça e o pó do mundo tirariam a delicadeza.

– Quanto a você, Amy… – prosseguiu Meg – você é ao mesmo tempo exage-rada e certinha demais. Hoje seu jeito é engraçado, mas vai acabar uma pateta boba e afetadinha, se não prestar atenção. Gosto de suas boas maneiras, do seu jeito re�nado de falar, quando você não tenta ser elegante; mas as palavras ab-surdas que diz são tão horríveis quanto as gírias de Jo.

– Se a Jo é um moleque e Amy uma pateta, o que eu sou, por favor? – pergun-tou Beth, disposta a participar do sermão.

– Você é um amor, só isso – respondeu Meg calorosamente, e ninguém a con-tradisse, pois a “Ratinha” era a queridinha da família.

Como as jovens leitoras gostam de “conhecer a aparência das pessoas”, apro-veitaremos o momento para lhes oferecer um rápido panorama das quatro ir-mãs, que tricotavam na penumbra enquanto a neve de dezembro caía silencio-samente do lado de fora e o fogo crepitava alegremente do lado de dentro. Era uma sala antiga e confortável, embora o tapete estivesse desbotado e os móveis fossem bem simples, pois havia um ou dois bons quadros, livros ocupando os nichos das paredes e crisântemos e rosas natalinas florindo as janelas. Havia por toda parte uma atmosfera agradável de paz doméstica.

Margaret, a mais velha das quatro, tinha dezesseis anos e era muito bonita, gordinha e de feições leves, com olhos grandes, cabelos castanhos macios, boca delicada e mãos brancas, das quais era bastante vaidosa. Jo, de quinze anos, era muito alta, magra e morena, e lembrava um potro, pois nunca parecia saber o que fazer de seus braços e pernas compridos, que sempre a atrapalhavam. Ti-nha uma boca decidida, um nariz cômico e olhos penetrantes e cinzentos que

6. Faz-se referência à cor do uniforme dos exércitos da União. Robin March alista-se como clérigo, e as garotas e a sra. March costuram para vestir os soldados no front: a exemplo de outras famílias cujos membros se alistaram nos exércitos do Norte e do Sul em defesa de suas convicções, a família March integra o esforço de guerra.

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pareciam ver tudo, e se mostravam ora ferozes, ora engraçados ou pensativos. O cabelo comprido e grosso era seu único encanto, mas geralmente estava preso sob uma rede, para não a atrapalhar. Seus ombros eram curvados, as mãos e pés, grandes, tinha preferência por roupas largas, e a aparência desajeitada de uma garota que se transformava rapidamente em mulher e não gostava disso. Elizabeth – ou Beth, como todos a chamavam – era uma garota rosada de treze anos, de cabelos lisos e olhos brilhantes, com modos envergonhados, voz tímida e uma expressão pací�ca que raramente era perturbada. Seu pai a chamava de

“Pequena Paz”, e a alcunha lhe caía bem, pois parecia viver em um mundo de fe-licidade só seu, apenas se aventurando a sair dele para encontrar os poucos em quem con�ava e que amava. Amy, apesar de ser a mais nova, era uma pessoa muito importante – na sua própria opinião, ao menos. Uma donzela de pele al-víssima, olhos azuis e cabelo loiro que caía em cachos sobre os ombros; pálida e delgada, sempre se portando como uma jovem ciosa de seus modos. Quanto à personalidade das quatro irmãs, que se revele ao longo da narrativa.

O relógio bateu seis horas e, depois de ter limpado a lareira, Beth colocou ali um par de chinelos para aquecer. De alguma forma, ver os calçados gastos teve um bom efeito sobre as meninas, pois mamãe estava chegando, e todas se ani-maram para recebê-la. Meg parou de dar sermão e acendeu o lampião, Amy saiu da poltrona sem que lhe pedissem e Jo esqueceu-se do quanto estava cansada e se aprumou para segurar os chinelos mais perto do fogo.

– Estão bem gastos. Mami precisa de um par novo.– Pensei em comprar um para ela com o meu dólar –

disse Beth.– Não, eu compro! – exclamou Amy.– Eu sou a mais velha – começou Meg, mas Jo interrom-

peu com um decidido:– Eu sou o homem da família agora que papai está

longe, e eu vou dar os chinelos, porque ele me pe-diu que tomasse cuidado especial com a mãe

enquanto ele estivesse fora.– Vamos fazer assim: compramos pre-

sentes de Natal para ela, e nada para nós mesmas – disse Beth.

– É a sua cara, carinho! O que vamos com-

prar? – perguntou Jo.