61
Flavio García (org.) Murilo Rubião e a narrativa do insólito 2007 FICHA CATALOGRÁFICA F801b Murilo Rubião e a narrativa do insólito. / Flavio García (org.) – Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007. Publicações Dialogarts Bibliografia ISBN 978-85-86837-31-9 1. Insólito. 2. Gêneros Literários. 3. Narrativa Fic- cional. 4. Literaturas. I. García, Flavio. II. Univer- sidade do Estado do Rio de Janeiro. III. Departa- mento de Extensão. IV. Título CDD 801.95 809 Correspondências para: UERJ/IL/LIPO – a/c Darcilia Simões ou Flavio García Rua São Francisco Xavier, 524 sala 11.023 – B Maracanã – Rio de Janeiro – CEP 20 569-900 [email protected] [email protected] [email protected]

Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Flavio García (org.)

Murilo Rubião e

a narrativa do insólito

2007

FICHA CATALOGRÁFICA

F801b Murilo Rubião e a narrativa do insólito. / Flavio García (org.) – Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007. Publicações Dialogarts Bibliografia ISBN 978-85-86837-31-9 1. Insólito. 2. Gêneros Literários. 3. Narrativa Fic-cional. 4. Literaturas. I. García, Flavio. II. Univer-sidade do Estado do Rio de Janeiro. III. Departa-mento de Extensão. IV. Título

CDD 801.95 809

Correspondências para: UERJ/IL/LIPO – a/c Darcilia Simões ou Flavio García

Rua São Francisco Xavier, 524 sala 11.023 – B Maracanã – Rio de Janeiro – CEP 20 569-900

[email protected] [email protected] [email protected]

Page 2: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Copyrigth @ 2007 Flavio García

Publicações Dialogarts (http://www.dialogarts.uerj.br)

Coordenador do volume: Flavio García – [email protected]

Coordenadora do projeto: Darcilia Simões – [email protected]

Co-coordenador do projeto: Flavio García – [email protected]

Coordenador de divulgação: Cláudio Cezar Henriques – [email protected]

Projeto de capa e Diagramação: Flavio García, Darcilia Simões e Carlos Henrique de Souza Pereira

Logotipo Dialogarts Rogério Coutinho

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades Instituto de Letras

Departamento de Língua Portuguesa, Literatura Portuguesa e Filologia Românica

UERJ – SR3 – DEPEXT – Publicações Dialogarts 2007

ÍNDICE APRESENTAÇÃO ..................................................................................... 6

FLAVIO GARCÍA - UERJ O INSÓLITO NA CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM: UM PROCESSO DE DESUMANIZAÇÃO ................................................... 14

ADILSON SOARES DA SILVA JÚNIOR - UERJ AS PERSONAGENS RUBIANAS: “O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA” E “O PIROTÉCNICO ZACARIAS” SOB A PERSPECTIVA DO EXISTENCIALISMO SARTREANO ................ 27

ALINE DE ALMEIDA MOURA - UERJ TEMAS, TÍTULOS E EPÍGRAFES EM MURILO RUBIÃO: REFLEXÕES E LEITURAS A PARTIR DE “ALFREDO” E “OS DRAGÕES” .............................................................................................. 37

EVELINE COELHO CARDOSO - UERJ MUITO PRAZER, RUBIÃO: UMA BREVE VISITA À OBRA DE MURILO ................................................................................................... 46

JORDÃO PABLO RODRIGUES DE PÃO - UERJ “O PIROTÉCNICO ZACARIAS” SE ENQUADRA NO FANTÁSTICO OU NO INSÓLITO BANALIZADO?.......................... 54

LUANA CASTRO DOS SANTOS BRAZ - UERJ

Page 3: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

O INSÓLITO EM “MARIAZINHA”, DE MURILO RUBIÃO........... 62 LUCIANA MORAIS DA SILVA - UERJ

A MANIFESTAÇÃO DO INSÓLITO NAS NARRATIVAS FICCIONAIS DE MURILO RUBIÃO: “BÁRBARA” E “BRUMA” (“A ESTRELA VERMELHA”)............................................................... 73

LUCIANA POLICARPO DOS SANTOS - UERJ A PÓS-UTOPIA INSÓLITA: UM OLHAR SOBRE A NARRATIVA DE MURILO RUBIÃO............................................................................ 79

MARCO MEDEIROS - UERJ A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS NAS NARRATIVAS RUBIANAS: A RELAÇÃO DAS PERSONAGENS COM O INSÓLITO EM “O PIROTÉCNICO ZACARIAS” E “OS DRAGÕES”.................................................................................................................... 89

MARINA POZES PEREIRA SANTOS - UERJ O INSÓLITO COMO UMACATEGORIA CONSTITUTIVA DE GÊNERO: UM PERCURSO DO MARAVILHOSO AO INSÓLITO BANALIZADO ......................................................................................... 98

MICHELLE DE OLIVEIRA - UERJ O INSÓLITO EM MURILO RUBIÃO: BREVE ANÁLISE DE NARRATIVAS RUBIANAS, APRESENTANDO O ELEMENTO TEMPORAL COMO INSTRUMENTO DE CONSTRUÇÃO DO INSÓLITO. ............................................................................................. 107

MONIQUE PAULENAK DA SILVA - UERJ CRISE DE IDENTIDADE E PERDA DE VALORES SOCIAIS COMO RESULTADO DA PÓS-MODERNIDADE: CARACTERÍSTICAS RECORRENTES NA OBRA RUBIANA, QUE TEM EVENTOS INSÓLITOS COMO SUA MARCA PRINCIPAL .............................. 116

THALITA MARTINS NOGUEIRA - UERJ

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 6

APRESENTAÇÃO

Flavio García - UERJ De 16 de abril a 30 de julho de 2007, sempre às segun-

das-feiras, das 12 horas e 30 minutos às 15 horas, entre o almo-ço e o lanche da tarde, reuníamos eu, aproximadamente dez a-lunos-bolsistas pesquisadores e mais treze alunos ouvintes, num total de, mais ou menos, vinte e cinco pessoas, na Facul-dade de Formação de Professores da UERJ, campus São Gon-çalo, para ler e discutir os Contos reunidos de Murilo Rubião (São Paulo: Ática).

Tratava-se do curso livre de extensão O insólito na nar-rativa rubiana: leitura e discussão das narrativas de Murilo Rubião, oferecido pelo SePEL.UERJ – Seminário Permanente de Estudos Literários, projeto de extensão que promove cursos, publicações e eventos acadêmico-científicos, como veículo de realizações do Grupo de Pesquisa, Diretório CNPq, Estudos Li-terários: Literatura; outras linguagens; outros discursos.

Esse não era o primeiro curso oferecido que versava so-bre a questão do insólito na narrativa ficcional. De 2 de outubro a 18 de dezembro de 2006, também na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, já havia sido realizado um outro cur-so, A banalização do insólito: Questões de Gênero Literário em Literaturas da Lusofonia – Mecanismos de Construção Narrativa, que dera impulso a meu projeto individual de pes-quisa – naquela época era individual, hoje não mais – e garanti-ra o crescimento do número de alunos-bolsistas, bem como proporcionara a realização, ainda na mesma Faculdade, de um

Page 4: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 7

primeiro evento, realizado em 15 de janeiro de 2007: I Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional.

Os trabalhos apresentados naquele I Painel encontram-se publicados, em parceria com o Publicações Dialogarts, ou-tro projeto de extensão universitária da UERJ, em http://www.dialogarts.uerj.br/titulos_avulsos.htm, sob o título A banalização do Insólito: Questões de Gênero Literário – Me-canismos de construção narrativa.

Ao final do segundo curso, aquele que tivera por objeto central a narrativa rubiana, realizamos um II Painel: Reflexões sobre o insólito na narrativa ficcional: O insólito na narrativa rubiana. O evento também ocorreu na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, de onde eram todos os alunos-bolsistas pesquisadores e de onde são meu pares mais diretos tanto no Grupo de Pesquisa quanto no SePEL.UERJ. O II Pai-nel ocorreu de 7 a 9 de agosto de 2007.

Os textos que aqui se publicam são parte das comunica-ções apresentadas nesse último evento, reunidos neste volume por se terem atido à narrativa rubiana. Haverá mais duas publi-cações resultantes dos trabalhos apresentados nesse II Painel. Narrativas do Insólito: passagens e paragens, com textos vari-ados – merecendo destaque dois deles que tratam da obra do escritor português Mário de Carvalho e outros três que se dedi-cam à Literatura Infanto-Juvenil –, e O Insólito Em Questão na narrativa ficcional, reunindo a conferência de abertura, profe-rida pelo Prof. Dr. Manuel Antonio de Castro, Titular de Poéti-ca da UFRJ, e os três textos apresentados na mesa-redonda por mim mesmo, pelo Prof. Dr. Marcello de Oliveira Pinto e pela Prof.ª Dr.ª Regina Michelli.

A organização seqüencial dos artigos que compõem es-te livro respeitou a ordenação alfabética do primeiro nome dos autores, evitando inferências de quaisquer outros critérios de valor.

“O insólito na construção da personagem: um processo

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 8

de desumanização”, de Adilson Soares da Silva Júnior, aborda o insólito como agente de perda de identidade e causa principal de desumanização, realçando as críticas do homem na socieda-de pós-moderna e privilegiando a construção por elementos lingüísticos e a recepção. Adilson é graduando em Letras na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, assistiu ao curso e tem-se juntado ao grupo da pesquisa sobre o Insólito.

“As personagens rubianas: ‘O ex-mágico da taberna minhota’ e ‘O pirotécnico Zacarias’ sob a perspectiva do exis-tencialismo sartreano”, de Aline de Almeida Moura, problema-tiza as relações vida e morte, o desejo de morte e a questão da realização humana, sob as visões de Sartre e Heidegger, recor-rendo à instrumentalização teórica que encontrou em Antonio Cândido, Beth Brait, Cândida Vilares Gancho, Carlos Reis e Foster. Aline é graduanda em Letras na Faculdade de Forma-ção de Professores da UERJ, bolsista de Iniciação Científica do CNPq e participou do curso como dinamizadora das discus-sões, apresentando leituras.

“Temas, títulos e epígrafes em Murilo Rubião: reflexões e leituras a partir de ‘Alfredo’ e ‘Os dragões’”, de Eveline Coe-lho Cardoso, lê a obra rubiana a partir da semiologia, pensando a capa do volume publicada pela Editora Ática e as imagens que a capa suscita. Em suas leituras, Eveline reflete sobre as relações entre o Insólito, a Verdade e a Pós-Modernidade. Seu artigo percorre os títulos das narrativas rubianas em diálogo com as histórias e as referências ao insólito, sem perder de vis-ta as epígrafes. Eveline considera que “o leitor atento pode en-contrar já na capa uma espécie de resumo simbólico do traba-lho do escritor mineiro”, já que o “texto literário, entendido como um ‘recipiente’ que ao mesmo tempo limita e revela as convergências e divergências entre essas duas realidades”, é ri-co em “noções como ‘realidade’, ‘possibilidade’ ou ‘verdade’.” Eveline é graduada em Letras pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ e, na época do curso, ao qual assistiu, e

Page 5: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 9

do II Painel, cursava a Especialização em Língua Portuguesa da UERJ São Gonçalo.

“Muito prazer, Rubião: uma breve visita à obra de Mu-rilo”, de Jordão Pablo Rodrigues de Pão, é um passeio panorâ-mico por temas, tipos de personagens, cenários, problemáticas, estruturas narrativas, insistências, persistências, renovações, inovações que ele encontrou na leitura dos Contos reunidos. Jordão é graduando em Letras na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, assistiu ao curso e tem-se juntado ao grupo de pesquisa sobre o Insólito.

“‘O pirotécnico Zacarias’ se enquadra no fantástico ou no Insólito Banalizado?”, de Luana Castro dos Santos Braz, toma “O pirotécnico Zacarias” como foi condutor de uma dis-cussão de gênero, perpassa teorias do Fantástico, do Estranho, do Maravilhoso bem como do Terror, do Horror e da Ficção Científica, propondo que a narrativa se inscreva num novo gê-nero, o Insólito Banalizado, considerando o efeito da banaliza-ção, por parte das personagens, dos eventos insólitos manifes-tos no texto. Luana é graduanda em Letras na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, bolsista de Incentivo à Graduação da FAPERJ e participou do curso como dinamiza-dora das discussões, apresentando leituras.

“O Insólito em ‘Mariazinha’, de Murilo Rubião”, de Luciana Morais da Silva, inicia-se destacando o fato de um de-funto contar que seu próprio nome está sendo chamado por uma voz dita “lúgubre”. Ele “aparece morto em 1943, para em seguida mostrar certo conforto, em 1923, por reaver seus cabe-los e conhecer Mariazinha”. Luciana compara a narrativa rubi-ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se de “um conto norteado pela volubilidade do tempo, em que as a-ções das personagens se passam em períodos desconexos, uma vez que são o fomento para as ocorrências incomuns”. E,k con-forme adverte, “é importante ressaltar a ausência de cronologia

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 10

do tempo”. Luciana Morais é graduanda em Letras na Faculda-de de Formação de Professores da UERJ, bolsista de Iniciação Científica da FAPERJ e participou do curso como dinamizado-ra das discussões, apresentando leituras.

“A manifestação do Insólito nas narrativas ficcionais de Murilo Rubião: ‘Bárbara’ e ‘Bruma’ (‘A Estrela Vermelha’)”, de Luciana Policarpo dos Santos, compara a manifestação do insólito a partir do ponto de vista do narrador homodiegético, em “Bárbara”, e autodigético, em “Bruma”. Luciana Policarpo é graduanda em Letras na Faculdade de Formação de Professo-res da UERJ e participou do curso como dinamizadora das dis-cussões, apresentando leituras.

“A pós-utopia insólita: um olhar sobre a narrativa”, de Marco Medeiros, é uma reflexão bastante maduro acerca das relações Moderno / Pós-Moderno / Pós-Utópico. Para ele, as narrativas rubianas são como panorama diversificado, aproxi-mação do momento pós-utópico. Em suas palavras, “a fala do autor assinala dois pontos fulcrais das pós-utopias: a ambigüi-dade e a fragmentação”. De passagem, Marco ainda discute a questão do gênero textual, pergunta se a narrativa rubiana seria crônica ou conto. Marco Medeiros é Mestre em Literatura Bra-sileira pela UERJ e foi graduado em Letras na Faculdade de Formação de Professores da UERJ. A participação dele, falan-do surpreendentemente de Murilo Rubião, foi uma grata e feliz surpresa para todos, correspondendo a um dos mais elevados momentos de discussão do II Painel.

“A construção das personagens nas narrativas rubianas: a relação das personagens com o insólito em ‘O pirotécnico Zacarias’ e ‘Os dragões’”, de Marina Pozes Pereira Santos, re-flete sobre a Pós-Modernidade, a crise de identidade e de valo-res, as rupturas contemporâneas, percorrendo as estratégias de construção narrativa utilizadas por Rubião – conflito, ordem e desordem – no desenvolvimento da trama. Marina é graduanda em Letras na Faculdade de Formação de Professores da UERJ,

Page 6: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 11

bolsista de Iniciação Científica do FAPERJ e participou do curso como dinamizadora das discussões, apresentando leitu-ras.

“O insólito como uma categoria constitutiva de gênero: um percurso do Maravilhoso ao Insólito Banalizado”, de Mi-chelle de Oliveira, é uma panorâmica dos gêneros tradicionais em se verifica a manifestação do insólito como marca distinti-va, refletindo sobre a questão do insólito em cada época histó-rico-cultural, até chegar à Pós-Modernidade. Michelle fala das crises da Contemporaneidade, na tentativa de comprovar a e-xistência do novo gênero proposto. Michelle é graduanda em Letras na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, bolsista de Estágio Interno Complementar da UERJ e partici-pou do curso como dinamizadora das discussões, apresentando leituras.

“O Insólito em Murilo Rubião: breve análise de narrati-vas rubianas, apresentando o elemento temporal como instru-mento de construção do insólito”, de Monique Paulenak da Sil-va, discute, com base em “A noiva da casa azul” e “Elisa”, em que medida o elemento tempo pode funcionar como estrutura-dor da manifestação do insólito na narrativa, comprometendo a lógica e interferindo em outros elementos essenciais da estrutu-ração, como o espaço e as ações, por exemplo. Monique é gra-duanda em Letras na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, bolsista de Incentivo à Graduação da FAPERJ e partici-pou do curso como dinamizadora das discussões, apresentando leituras.

“Crise de identidade e perda de valores sociais como re-sultado da Pós-Modernidade: características recorrentes na o-bra rubiana, que tem eventos insólitos como sua marca princi-pal”, de Thalita Martins Nogueira, problematiza as relações en-tre a Morte a Identidade na Pós-Modernidade, na perspectiva de demonstrar que a obra de Murilo Rubião reflete essa tensão. Thalita é graduanda em Letras na Faculdade de Formação de

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 12

Professores da UERJ, bolsista de Iniciação Científica da UERJ e participou do curso como dinamizadora das discussões, apre-sentando leituras.

Falar de Pós-Modernidade, de crise de identidade e de valores, de morte, de estratégias de construção narrativa e de gêneros foi uma constante natural, uma vez que a maioria dos que aqui escreveram assistiu a dois cursos que trataram desses aspectos. Insistir na existência de um novo gênero literário, no bojo das experienciações pós-modernas, o Insólito Banalizado, também foi outra constante, que se explica pelo projeto de pes-quisa a que quase todos estão vinculados. Mas, a constante mais óbvia e mais agradável, foi todos insistirem em falar de Murilo Rubião.

Conforme asseverou Antonio Cândido: Com o livro de contos O ex-mágico (1947), Murilo Rubião instaurou no Brasil a ficção do insólito absurdo. (...) Com segurança meticulosa e absoluta parcialidade pelo gêne-ro (pois nada escreve fora dele), Murilo Rubião elaborou os seus contos absurdos nem momento de predominância do rea-lismo social, propondo um caminho que poucos identificaram e só mais tarde outros seguiram. Na meia penumbra ficou ele até a reedição modificada e aumentada daquele livro em 1966 (Os dragões e outros contos). Já então a voga de Borges e o começo da de Cortazar, logo seguida pela divulgação no Bra-sil de livros como Cien años de soledad, de García Márquez, fizeram a crítica e os leitores atentarem para este discreto pre-cursor local, que todavia precisou esperar os anos 70 para a-tingir plenamente o público e ver reconhecida a sua importân-cia. Entrementes a ficção tinha-se transformado e, de exceção, ele passava quase a uma alta regra. (CÂNDIDO, 1987: 208)

E nós reavivamos aqui a atenção na obra de Murilo Rubião, com leituras percucientes e interesse renovado, propondo ver, em suas narrativas, vários indícios do pensamento pós-moderno e apresentando-o como paradigma, no Brasil, de um possível e provável novo gênero literário. Agora é lerem e ve-rem no que concordam e no que discordam. Fica o convite.

Page 7: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 13

Referências Bibliográficas: CÂNDIDO, Antonio. “A nova narrativa”. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. p. 199-215.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 14

O INSÓLITO NA CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM: UM PROCESSO DE DESUMANIZAÇÃO

Adilson Soares da Silva Júnior - UERJ

Neste artigo, procura-se abordar o insólito caracterizado

por algumas personagens rubianas como agente de perda de i-dentidade e causa principal de sua desumanização, tornando-as ainda mais inverossímeis, fortalecendo o conceito de insólito e funcionando como mecanismo para o entendimento das críticas do homem na sociedade pós-moderna.

Pretende-se, também, analisar fatores lingüísticos que contribuem para a instauração do insólito e do processo de de-sumanização nas narrativas selecionadas e propor uma reflexão acerca da recepção dos elementos insólitos nas narrativas.

Entende-se por insólito tudo aquilo que quebra as ex-pectativas do leitor tendo por referência sua realidade experi-enciada, aquilo que foge à ordem e à lógica do senso comum vigente. O insólito é marcado por ser algo não habitual e extra-ordinário, podendo ter sua origem em acontecimentos sobrena-turais ou eventos aparentemente inverossímeis. Numa defini-ção específica, é tudo aquilo contrário aos costumes, às regras, o inabitual e incomum (AURELIO, 1997). O insólito é um marcante traço da literatura, embasando os gêneros Fantástico, Maravilhoso, Realismo-Maravilhoso, Estranho, Absurdo e ou-tros derivados dessa linha de “fuga da realidade referencial” que transmitem a totalidade ou a parcialidade dos acontecimen-tos.

Entende-se por desumanização o processo da perda da

Page 8: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 15

identidade especificamente humana, implicando a perda da i-dentidade ou a identidade metamorfoseada da personagem, com a fragmentação total ou parcial da caracterização única, unipolar, do ser humano. No sujeito pós-moderno, há uma fragmentação do indivíduo, isto é, ele assume várias identida-des, de várias formas, em diversas situações. Um mesmo indi-víduo adquire identidades múltiplas, não tendo uma única iden-tidade solidificada, consolidada:

A modernidade, caracterizada como uma ordem pós-tradicional, ao romper com as práticas e preceitos preestabe-lecidos, enfatiza o cultivo das potencialidades individuais, o-ferecendo ao indivíduo uma identidade "móvel", mutável. É, nesse sentido, que, na modernidade, o "eu" torna-se, cada vez mais, um projeto reflexivo, pois aonde não existe mais a refe-rência da tradição, descortina-se, para o indivíduo, um mundo de diversidade, de possibilidades abertas, de escolhas. (GIDDENS, 2002: 25)

Essa perda de identidade pode propiciar um processo de desumanização, em que a identidade essencial da personagem é posta à prova. Em outras palavras, a condição de indivíduo se perde, ao passo que essas identidades se confundem e não se configuram mais como uma uniformidade humana, seja pelas ações, pelos sentimentos, pelos avanços tecnológicos, etc.:

Agora pouco resta no homem: solidão, vazio e a própria exis-tência comprometida. Seu nome, que lhe conferia uma exis-tência junto ao meio e a si mesmo, dando-lhe a certeza de e-xistir pelo menos a cada vez que fosse pronunciado, já não significa nada. (LAUBE, s/d: 7)

As personagens de algumas narrativas de Murilo Rubi-ão sofrem essa desumanização – perda da condição humana e perda da essência do personagem, que, acima de tudo é perme-ada e ambientada num contexto insólito – ou pelo seu caráter físico –acontecendo uma metamorfose – ou pelo seu caráter ordinário e lógico –acontecendo uma banalização.

Em se tratando de construção da personagem, as carac-terísticas físicas, sociais e psicológicas são fundamentais para a estruturação da narrativa, pois as personagens podem funcionar

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 16

como alvo do narrador, que começa a tecer seus comentários a partir da observação das mesmas e de suas ações, relatando os eventos acontecidos. Além disso, as personagens podem fun-cionar também como narradores, seja contando suas próprias experiências como personagem principal ou descrevendo uma história advinda de sua própria experiência, vivenciada como personagem secundário ou coadjuvante.

Quando o insólito se configura especificamente na per-sonagem, afetando as características físicas ou psicológicas, transformando-a num ser distante da ordinariedade ou da natu-ralidade, pode ocorrer um processo de desumanização, pode-se dar a perda da identidade humana das personagens: “É porém a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção e atra-vés dela, a camada imaginária se adensa e se cristaliza.” (CANDIDO, 1972: 21)

O insólito intrinsecamente ligado às personagens pode ser dividido em dois grupos. O primeiro grupo é o insólito co-mo desumanização física, denunciado pelas características físi-cas da personagem e que pode ainda ser subdividido em dois aspectos: a desumanização provocada pelo insólito inerente a essa personagem ou adquirido por ela no decurso da narrativa.

Essa manifestação física do insólito, mudança de forma a fim de causar estranhamento, chamamos de metamorfose – elemento característico do gênero Absurdo. A identidade hu-mana metamorfoseada se transforma, se camufla e faz com que a personagem não se enquadre no aspecto humano. Esse tipo de metamorfose, que desencadeia um processo de desumaniza-ção, é diferente da metamorfose tradicional, porque, nesses ca-sos, a transformação se dá no âmbito da troca, geralmente num processo de zoomorfismo (um ser humano vira um animal – um inseto como na Metamorfose de Kafka). No caso do pro-cesso de desumanização, a transformação física não se dá atra-vés de um processo metamórfico em que a personagem migra do estado humano para o animal, mas sim através da migração

Page 9: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 17

do estado humano para um vazio, um fim, desautorizando qualquer tipo de inserção no contexto humano.

É relevante ressaltar que, em muitas narrativas, essa metamorfose não é percebida nem pela própria personagem principal nem mesmo pelas personagens secundárias – que com ela estabelecem uma interação – como sendo algo sobrenatural. Sendo assim, algumas narrativas reforçam o conceito de insóli-to como matéria-prima dos gêneros em que se inscrevam.

Como corpus e exemplificação da desumanização cau-sada pelo insólito inerente e adquirido pela personagem, apre-sentamos uma leitura de “O homem do boné cinzento” e “Os Comensais”. No primeiro, a história é contada por um narrador homodiegético, que testemunha a metamorfose tanto de Anató-lio – seu vizinho – quanto de Artur – seu irmão –observando obsessivamente o novo vizinho. A narrativa é estruturada a par-tir da obsessão e observação constante que Artur dedica ao e-nigmático homem do boné cinzento e, logo, verifica-se que o principal evento insólito se instala na personagem que dá título ao conto, surgindo como elemento de desequilíbrio. Anatólio (o homem do boné cinzento) possui atitudes estranhas e roti-neiras, e, assim que chega à cidade, faz quadradinhos cinzentos aparecerem no céu. Conforme a narrativa vai se desenvolven-do, ele vai emagrecendo até desaparecer e, por fim, lança um jato de fogo que varre a rua da cidade:

Nada mais tendo para emagrecer, seu crânio havia diminuído e o boné, folgado na cabeça, escorregara até os olhos. O vento fazia com que o corpo dobrasse sobre si mesmo. Teve um es-pasmo e lançou um jato de fogo, que varreu a rua (...) No fim, já ansiado, deixou escorrer uma baba incandescente pelo tó-rax abaixo e incendiou-se. (RUBIÃO, 2005: 75)

Desde o início da narrativa, o Anatólio é tratado como um ser humano comum, porém suas características físicas já denunciam o insólito: na transparência, na cor do boné, nos dentes escuros e no corpo esquelético e pequeno. Essa meta-morfose, que é interna a Anatólio, transforma-o num ser sem

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 18

características humanas, ou seja, sem papel na sociedade, sem posição, e sua transformação física, em algo que não condiz com o mundo real, corrobora para a instalação do insólito na narrativa, transformando-o em um ser sem identidade e identi-ficação:

– Ele está ficando transparente. Assustei-me. Através do cor-po do homenzinho viam-se objetos que estavam no interior da casa: jarra de flores, livros, misturados com intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da porta, cerrada somente de um dos lados. (RUBIÃO, 2005: 74)

O mesmo fenômeno da metamorfose acontece também com Artur, que no fim do texto se transforma em uma bolinha negra, perdendo também a identificação, desumanizando-se:

A sua voz foi ficando fina e longínqua. Olhando para o lugar onde ele se encontrava, vi que seu corpo diminuíra espanto-samente. Ficara reduzido a alguns centímetros (...) Peguei-o com as pontas dos dedos antes que desaparecesse completa-mente. Retive-o por instantes. Logo se transformou numa bo-linha negra, a rolar na minha mão. (RUBIÃO, 2005: 75)

Há nessa narrativa uma precariedade das relações inter-pessoais, fator característico da sociedade pós-moderna, onde os seres humanos se tornam rotineiros, mecânicos, despreocu-pados com a própria vida e sem afetividade nas relações mais próximas. Verifica-se tal atributo na obsessão de Artur, que ro-tineiramente dedicava seu tempo a vigiar a vida de Anatólio, enquanto sua vida tornava-se sem sentido, sem humanidade. Ele perdia, assim, a característica humana de zelar pelo que é seu, não se importando com a saúde e com a própria vida:

Por mais que me desdobrasse, procurando afastá-lo da obses-são, Artur arranjava outros motivos para inquietar-se. Agora era a moça que se ocultava, não dava sinal da sua permanên-cia na casa (...) Por outro lado, a confiança que antes eu depo-sitava nos meus nervos decrescia, cedendo lugar a uma per-manente ansiedade por causa do mano, cujas preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos. Para lhe provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a vigiar o nos-so enigmático vizinho. (RUBIÃO, 2005: 73-74)

Uma análise lingüística da narrativa se faz necessária

Page 10: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 19

porque, compreendendo os mecanismos de construção da lin-guagem textual, garante-se que o estranhamento inicial, ou, a-inda, o insólito se transforme, enriqueça, se metamorfoseie até garantir a verossimilhança narrativa interna:

Se as coisas impossíveis podem ter mais efeito de veracidade que o material bruto da observação ou do testemunho, é por-que a personagem é, basicamente, uma composição verbal, uma síntese de palavras, sugerindo certo tipo de realidade. (CANDIDO, 1972: 78)

O insólito e o processo de desumanização provocado por ele são perceptíveis não apenas no âmbito da interpretação do texto como um todo, mas num estudo lingüístico reside grande parte do sentido e da denúncia de que o insólito (a me-tamorfose) está contribuindo para um vazio gradativo, ou seja, para a desumanização da personagem. Palavras como “emagre-cer”, “tornar-se transparente”, “desaparecer”, referentes a Ana-tólio, já permitem ao leitor deduzir o fim que a personagem te-rá, pois tais vocábulos, aparecendo em ordem gradativa, assu-mem significados peculiares, expressivos. “Emagrecer” é uma palavra que não denuncia nada insólito, mas no contexto, cor-robora para o já esperado clímax do evento insólito, que se ve-rifica na desumanização em “O Homem do boné cinzento”: “O diabo do magrela não tem mais como emagrecer (...) Ele está ficando transparente! (...) Amanhã desaparecerá.” (RUBIÃO, 2005: 73-75)

Uma leitura de “Os Comensais” também ilumina a de-sumanização provocada pela manifestação do insólito na per-sonagem. Desde o início da narrativa, o insólito se instala nos companheiros de refeitório de Jadon, personagem principal, que não se comportavam como seres humanos, não comiam e não conversavam: “Era-lhe penoso, entretanto, encontrá-los sempre na mesma posição, a aparentar indiferença pela comida que lhes serviam e por tudo que se passava ao redor.” (RUBI-ÃO, 2005: 253)

A natureza física dos comensais mostra seres humanos

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 20

esquisitos, fora dos padrões da naturalidade humana, legiti-mando o insólito como elemento desumanizador:

– Vamos, Hebe, vamos – gritava, puxando-a pelos braços que não ofereciam resistência, transformados em uma coisa gela-tinosa. No momento em que mais se empenhava em arrastá-la, um gesto brusco seu lançou pra trás a cabeça de Hebe e as suas pálpebras, movendo-se como se pertencessem a uma bo-neca de massa, descerraram-se. (RUBIÃO,2005: 261-262)

No desfecho da narrativa, Jadon se torna um comensal, manifestando-se nele o mesmo insólito inerente aos demais comensais, o que o faz perder a identidade, desumanizando-se ao passo que se enquadra no grupo dos comensais:

Ao lembrar-se que poderia estar atrasado para o almoço, a-pressou-se. Já na sala de jantar, caminhou até a grande mesa de refeições, assentando-se descuidadamente numa das cadei-ras. Os braços descaíram e os olhos, embaçados, perderam-se no vazio. Estava só na sala imensa. (RUBIÃO, 2005: 263)

Este fragmento confirma a idéia de transformação da personagem, que, ao se metamorfosear num comensal, muda a maneira de se relacionar com o mundo, ou seja, o seu espaço na sociedade passa a ser questionado, e, conseqüentemente, a sua própria existência, encontrando-se numa sala vazia, alijado de sua relação com o outro.

Em “Os Comensais”, as relações interpessoais são tam-bém questionáveis, e a rotina a que Jadon é submetido, contri-buindo gradativamente para o processo de ele se tornar um co-mensal, desumanizar-se, condizem com algumas características do sistema pós-moderno: “As rotinas que são estruturadas por sistemas abstratos têm um caráter vazio, amoralizado – isto va-le também para a idéia de que o impessoal submerge cada vez mais o pessoal.” (GIDDENS, 1991: 122)

Os elementos insólitos que fazem alusão aos temas co-tidianos e rotineiros têm sua importância nas narrativas que se situam num cenário pós-moderno. A sociedade pós-moderna refletida nessas narrativas, principalmente naquelas que carre-gam o insólito como elemento estruturador, encara o cotidiano

Page 11: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 21

como árduo, desesperador, entediante, enfim, como transcen-dente àquilo que se propõe representar, acarretando em si uma carga negativa: “O próprio cotidiano, quando se torna tema de ficção, adquire outra relevância e condensa-se na situação-limite do tédio, da angústia e da náusea.” (CANDIDO, 1972: 46)

Outro retrato do way of life pós-moderno, vigente nas narrativas aqui comentadas e que tange as relações interpesso-ais é a falta de reciprocidade das personagens. Tanto em “O homem do boné cinzento”, em que a obsessão de Artur é igno-rada pelo seu vizinho, quanto em “Os Comensais”, em que Ja-don tenta incessantemente atrair a atenção de seus companhei-ros de refeitório, as relações e os esforços não são correspondi-dos. Ainda em “Os Comensais”, a personagem protagonista re-trata não apenas modelos de comportamento social do homem na pós-modernidade, mas também o aspecto psicológico desse homem. Em outras palavras, o egocentrismo de Jadon é retra-tado de forma significativa, pois até mesmo a inexpressividade dos comensais é considerada afronta contra ele próprio:

(...) Essa observação seria o suficiente para convencê-lo de que os comensais evitavam comer somente durante sua per-manência no recinto. Por certo aguardavam a sua saída para se atirarem avidamente às especialidades da casa. Nesse mo-mento talvez se estendessem em alegres diálogos, aos quais não faltariam desprimorosas alusões à sua pessoa, cuja pre-sença deveria ser bastante desagradável para todos. (RUBI-ÃO, 2005: 254)

As expressões “por certo” e “talvez”, que indicam cir-cunstância de dúvida, contribuem para mostrar a imaginação de Jadon. Assim como o advérbio de negação “jamais” em alguns trechos, categorizando os comensais, possui uma forte carga semântica de inexpressividade, de vazio, desconhecida pelo protagonista que, mesmo depois de destacar tais fatos, continua em sua incessante busca por fazer parte daquela sociedade:

Logo verificou a inutilidade de seu propósito: jamais desvia-vam os olhos da toalha e prosseguiam com os lábios cerrados

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 22

(...) Havia ainda um detalhe perturbador: jamais ocupavam o seu lugar, mesmo que chegasse com grande atraso. (RUBI-ÃO, 2005: 254-255)

O trecho acima mostra essa peculiaridade do advérbio “jamais”. Num primeiro momento, a palavra não possui uma carga semântica forte, porém após o desfecho da narrativa as-sume uma relação de denúncia do insólito, de individualizar o caráter desumano dos comensais.

O segundo aspecto do insólito na construção da perso-nagem refere-se ao insólito como desumanização do caráter or-dinário e lógico. Em outras palavras, neste grupo, o insólito não afeta as características físicas da personagem, mas funcio-na como desumanizador do caráter ordinário e lógico da perso-nagem, isto é, a personagem carrega o traço insólito como índi-ce de fuga da ordem, da lógica do ser humano. Desta forma, o evento insólito não caracteriza uma metamorfose, uma mudan-ça física que desumaniza, mas sim uma banalização do ser hu-mano, dos desejos humanos e verossímeis.

Como se pode ver em “Bárbara”, a protagonista engor-da a cada pedido que faz ao seu marido (narrador homodiegéti-co). Num primeiro plano de leitura, seus pedidos fogem à or-dem do verossímil, à ordem lógica, visto que, num percurso ló-gico, é inaceitável um ser humano ignorar a impossibilidade de se obter o oceano, um baobá e uma estrela. Os desejos de Bár-bara frustram as expectativas do leitor, mas não do seu marido: “Mas ao cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porém uma minúscula estrela, quase invisível ao seu lado. Fui buscá-la.” (RUBIÃO, 2005: 39)

Hegel diz que o homem é motivado pelos seus desejos, e que o ser humano se distingue dos outros animais pelo desejo de ser reconhecido como ser humano. Ao perder a identidade, Bárbara perde a autenticidade humana, sofrendo um processo de desumanização. Mas não por meio da metamorfose, por en-gordar a cada pedido, e sim pelo despropósito dos seus pedi-dos, ultrapassando o limite esperado do verossímil:

Page 12: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 23

Segundo Hegel, os seres humanos, como os animais, têm ne-cessidades naturais e desejos de objetos externos, como co-mida, bebida, abrigo e, acima de tudo, a preservação do pró-prio corpo.Entretanto, o homem difere fundamentalmente dos animais, porque, além disso, deseja o desejo dos outros ho-mens, ou seja, quer ser “reconhecido”. Especialmente, quer ser reconhecido como ser humano, isto é, como ser com um certo valor ou dignidade. (FUKUYAMA, 1992: 17)

Então, percebe-se que os desejos humanos foram bana-lizados e a ordem lógica foi alterada, transformando a protago-nista numa personagem sem identificação humana, sem identi-dade. Existe uma manifestação do insólito na composição físi-ca dela, pois Bárbara engordava mais e mais a cada pedido rea-lizado. No entanto, o fato de engordar é conseqüência dos pe-didos. É a conseqüência e não a causa. “Bárbara gostava so-mente de pedir. Pedia e engordava” (RUBIÃO, 2005: 33). A-lém do mais, engordar é um processo natural do ser humano, e não há ligação entre fazer pedidos e engordar. O peso de Bár-bara só configura o insólito à medida que ela pede, à medida que existam razões que quebrem as expectativas e fujam à or-dem do senso comum. Razões estas que a desumanizam, tor-nam-na distante da condição humana.

Numa leitura crítico-interpretativa, essa desumanização, inserida num contexto de banalização dos seres humanos e dos seus desejos, também reflete a sociedade pós-moderna, afetan-do novamente as relações interpessoais:

Para meu desapontamento, nasceu um ser raquítico e feio pe-sando um quilo. Desde os primeiros instantes, Bárbara o repe-liu. Não por ser miúdo e disforme, mas apenas por não o ter encomendado. (RUBIÃO, 2005: 35) – Seria tão feliz se possuísse um navio! – Mas ficaremos po-bres, querida! Não teremos com que comprar alimentos e o garoto morrerá de fome. – Não importa o garoto, teremos um navio que é a coisa mais bonita do mundo. (RUBIÃO, 2005: 37)

Mais uma vez, nota-se que a falta de reciprocidade é uma característica da sociedade pós-moderna, onde as múlti-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 24

plas identidades se fragmentam e as relações humanas tornam-se efêmeras e volúveis:

Se ao menos ela desviasse para mim parte do carinho dispen-sado às coisas que eu lhe dava. (...) fomos companheiros in-separáveis na meninice, namorados, noivos e, um dia, nos ca-samos. Ou melhor, agora posso confessar que não passamos de simples companheiros. (RUBIÃO, 2005: 33)

As personagens em que o insólito se manifesta são li-vres para descumprir regras e para transgredir espaços e tempo. No entanto, nas narrativas aqui comentadas, verifica-se sempre um sentimento de insatisfação, de não realização. Em “Bárba-ra”, o marido despreza o caráter insólito dos pedidos de sua es-posa, realizando seus desejos na esperança de receber mais afe-to. Em “Os Comensais”, Jadon despreza o aspecto insólito dos comensais, esperando ser aceito no grupo. Já em “O Homem do boné cinzento”, Roderico se apropria do insólito na tentativa de salvar seu irmão da obsessão que tem pelo vizinho. Verifi-ca-se, assim, um sentimento de incompletude, como se a felici-dade, nessas narrativas, nunca fosse possível, nunca fosse al-cançada pelas personagens.

A obra literária possui a liberdade que a vida real não concede ao ser humano e, no caso das narrativas aqui aborda-das, essa liberdade está intimamente relacionada à manifesta-ção de eventos insólitos. A oscilação entre afastamento da rea-lidade referencial e elevação ao caráter simbólico da narrativa faz com que o leitor exercite sua imaginação e seu senso críti-co:

A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, através de personagens vari-adas, a plenitude da sua condição, e em que, transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacan-do-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdo-brar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria situação. (CANDIDO, 1972: 48)

O leitor das narrativas que se estruturam a partir da ir-rupção de eventos insólitos, sobrenaturais, de caráter ilógico

Page 13: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 25

não pode aceitar pacificamente tais eventos. Ele faz, então, uma leitura crítica, vinculada ao contexto de sua realidade ex-perienciada. O insólito funciona como artifício de reflexão, re-metendo a conflitos da realidade referencial.

Em suma, o insólito, visto em algumas narrativas de Murilo Rubião sob o ponto de vista da desumanização das per-sonagens, permite construir críticas interpretativas a respeito da sociedade pós-moderna, sob a abrangência do caráter efêmero, espantoso ou banalizador dos seres humanos.

Ao entrar em contato com o sobrenatural ou com a me-tamorfose, a personagem deixa de existir como ser natural e ordinário e passa a um grau imprevisível, sem limites para os acontecimentos ilógicos, inesperados e insólitos. No plano da ficção, o ser humano pode se configurar da forma que quiser, construindo um espaço crítico e mais amplo para o leitor. Tão amplo quanto a multiplicidade de identidades assumidas ou quanto a concretização da literatura como retrato desta era pós-moderna. Referências Bibliográficas: CANDIDO, Antônio, ROSENFELD, Anatol, PRADO, Decio de Almeida & GOMES, Paulo Emílio Sales. As personagens de ficção. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1972.

FUKUYAMA, Francis.O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1991.

_________ Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

LAUBE, Leandro. “A morte e a desumanização do homem”. In: http://www.contradicoes.pro.br/desumano.pdf Arquivo con-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 26

sultado em 20 de julho de 2007

RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. 2 ed. São Paulo: Ática, 2005.

Page 14: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 27

AS PERSONAGENS RUBIANAS: “O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA” E

“O PIROTÉCNICO ZACARIAS” SOB A PERSPECTIVA DO

EXISTENCIALISMO SARTREANO

Aline de Almeida Moura - UERJ Reflete-se sobre a definição de personagem desde a An-

tigüidade Clássica, e geralmente é atribuído um caráter antro-pomórfico – personagem semelhante ao ser humano – a este ser de papel existente somente como um dos signos que compõe a narrativa literária. A personagem nem sempre foi vista como um “componente diegético” (REIS, 2000: 215), havendo uma confusão “entre a relação pessoa – ser vivo – e personagem – ser ficcional.” (BRAIT, 2000: 10), embora os “atores” de uma estória normalmente sejam seres humanos ou são inspirados em suas características (Cf. FORSTER, 1974: 69).

Aristóteles, refletindo sobre esta questão, aponta dois aspectos essenciais: “as personagens como reflexo da pessoa humana e a personagem como construção, cuja existência obe-dece às leis particulares que regem o texto” (Apud BRAIT, 2000: 29), isto é, a personagem se caracteriza principalmente através de seu conceito mimético.

Para Forster, as personagens são massas verbais que di-ferem do ser humano por serem inteiramente conhecidas – o lado externo, representado por suas ações, e o lado interno, on-de se situam paixões, alegrias, tristezas, angústias. As pessoas ocultam o seu interior – os sentimentos são conhecidos por in-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 28

termédio das atitudes que nem sempre espelham a realidade. “Uma das principais funções do romance é expressar esse lado [interior] da natureza humana.” (Cf. FORSTER, 1974: 70-72).

Beth Brait diz que a personagem é um elemento lingüís-tico, é um ser de papel, isto é, “a personagem não existe fora das palavras” (BRAIT, 2000: 11). Elas “representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção” (BRAIT, 2000: 11). Além disso, a personagem “não encontra espaço na dicotomia ser reproduzido/ser inventado. Ela percorre as dobras e o viés dessa relação e aí situa a sua existência” (BRAIT, 2000: 12). A personagem não é puramente reprodução do ser humano, nem só invenção artística, mas situa-se entre estas duas perspecti-vas.

Para Cândida Gancho, a “personagem é um ser fictício que é responsável pelo desempenho do enredo; em outras pala-vras, é quem faz a ação” (GANCHO, 1993: 14). A autora ainda afirma que as personagens “se definem no enredo pelo que fa-zem e dizem, e pelo julgamento que fazem dela o narrador e as outras personagens” (GANCHO, 1993: 14). As personagens têm suas atitudes condicionadas por estruturas literárias, como, por exemplo, a verossimilhança interna – “entidade condicio-nada no seu agir pela teia de relações que a ligam às restantes personagens do relato” (REIS, 2000: 216) –, acepção apropria-da na análise das personagens rubianas.

Segundo Antônio Cândido, “a ficção é um lugar onto-lógico privilegiado” (CÂNDIDO, 1972: 48), pois permite a plenitude da condição humana (...) e, portanto, melhor reflexão sobre esta. A Arte ajuda na meditação do cotidiano, pois as personagens:

muitas vezes debatem-se com a necessidade de decidir-se em face de colisão de valores, passam por terríveis conflitos e en-frentam situações-limite em que se revelam aspectos essenci-ais da vida humana (...) Estes aspectos profundos, muitas ve-zes de ordem metafísica, incomunicáveis através do conceito, revelam-se (...) São momentos supremos, à sua maneira per-feitos, que a vida empírica, no seu fluir cinzento e cotidiano,

Page 15: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 29

geralmente não apresenta de um modo nítido e coerente (...) O próprio cotidiano, quando se torna tema da ficção, adquire outra relevância e condensa-se na situação-limite do tédio e da náusea. (CÂNDIDO, 1972: 45-46)

Desta forma, a Arte é muito usada na ilustração de um ponto de vista acerca da realidade empírica, devido à relevância que a ficção dá a determinadas situações que poderiam passar des-percebidas.

Sartre, por exemplo, para esclarecer os conceitos do e-xistencialismo, utiliza-se de textos ficcionais e povoa suas nar-rativas de eventos insólitos. Ele é um dos representantes do Absurdo. Através do efeito de distanciamento alcançado por meio do inverossímil, chega-se a uma conclusão lógica, uma reflexão sobre o cotidiano, impedindo-se também o efeito ca-tártico da literatura, visto como purificação do leitor perante a obra.

Tem-se por insólito, no senso comum, o que não é habi-tual, o que é desusado, estranho, inusitado, raro, surpreende ou frustra a expectativa, rompe com a ordem vigente, contrapõe-se ao senso comum. Na narrativa ficcional, os eventos insólitos são aqueles que a crítica tem apontado ora como extraordiná-rios – para além da ordem – ora como sobrenaturais – para a-lém do natural.

Tanto as personagens sartreanas quanto as rubianas se constroem pelas suas atitudes em relação ao insólito e por suas relações com as demais personagens. Essas correlações podem ser também representadas pelo existencialismo, tomando “O ex-mágico da taberna minhota” e “O pirotécnico Zacarias”, ambos os textos contados por narradores autodiegéticos – aque-le que narra a sua própria experiência –, como narrativas para-digmáticas.

Em “O ex-mágico da taberna minhota”, relata-se a his-tória de um homem que, geralmente em situações cotidianas e descontroladamente, retira objetos, animais e outros homens de seus bolsos, do chapéu, do paletó, das calças, das mãos e do

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 30

ouvido: “Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das mi-nhas calças deslizavam cobras” (RUBIÃO, 2005: 9).

Havia, ainda, animais que falavam e objetos que se me-tamorfoseavam. Todavia, o primeiro fato insólito do texto é a falta de passado do protagonista: “um dia, me dei com os meus cabelos grisalhos, no espelho da Taberna Minhota” (RUBIÃO, 2005: 7). El começa a identificar sua existência a partir de um espelho no qual se vê refletido, sendo que o dono do restauran-te em que ele irá trabalhar representa, num primeiro momento, o “Outro”, pois é o primeiro ser humano com que o ex-mágico mantém contato.

Já em “O pirotécnico Zacarias”, o evento insólito acon-tece quando, mesmo após a morte, Zacarias continua agindo como se nada tivesse ocorrido, embora os seus companheiros tenham se afastado dele: “De fato morri (...). Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que fazia antes e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente.” (RUBI-ÃO, 2005: 26)

O ex-mágico e Zacarias encarnam a fundamental hipó-tese do existencialismo sartreano, “a existência precede a es-sência” (SARTRE, 1973: 11), demonstrando o absurdo que é a vida humana:

O homem não tem uma essência determinada, mas ele se faz em sua existência. Entretanto, o homem é também marcado pela morte e pela finitude e, por isso, ao buscar essa identida-de absoluta, está condenado ao fracasso. (MARCONDES, 2001: 259)

Desta forma, o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o e-xistencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para concebê-la. (SARTRE, 1973: 12)

Enquanto o ex-mágico, por se ver no mundo de forma

Page 16: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 31

inusitada, não tem domínio sobre suas atitudes e mágicas e, quando questionado acerca de seu dom, diz:

O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação para sua presen-ça no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e entediado (RUBIÃO, 2005: 7)

Mas, somente ao longo da narrativa quer morrer e, basicamente ao final, deseja ter de volta seu dom para criar todo um mundo mágico, uma vez que já fundamentou, de certa forma, sua es-sência; Zacarias vivia melhor após morrer e, portanto, não se marca pela finitude e pelo fracasso inerente a todo ser humano: “Por outro lado também não estou morto, pois faço tudo o que fazia antes e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormen-te” (RUBIÃO, 2005: 26); “Nessa hora os homens compreende-rão que mesmo a margem da vida, ainda vivo, porque minha existência se transmudou em cores” (RUBIÃO, 2005: 32). A morte aparece como liberação, realização em plenitude, como complementação e essência da própria vida.

É importante ressaltar que, por essência, trata-se “aquilo que há de comum e em que concorda todo verdadeiro. A essên-cia se dá no conceito genérico e universal, que representa o uno que vale igualmente para muitos” (CASTRO, 2006). Assim, a “construção da identidade a partir da negação da essência ou essencialismo apenas reforça a posição sartriana” (CASTRO, 2006). Essência, quando grafada com letra maiúscula “está li-gada à essência do agir. (...) Agir com sentido é a essência” (CASTRO, 2006), pois não é possível agir e criar a sua essên-cia antes de ter nascido. E existir nessa perspectiva é “relacio-nar-se com o mundo, ou seja, com as coisas e com os outros homens” (ABBAGNAMO, 1998: 402).

O ser humano não tem essência a priori, ele a vai cons-truindo através de seus atos, mesmo “o sentimento constitui-se pelos atos que se praticam.” (SARTRE, 1973: 17). Assim,m em “O pirotécnico Zacarias”, tem-se um narrador autodiegético decidido a não ser jogado num precipício, mostrando a impor-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 32

tância da ação na conquista de seu objetivo: “Meus senhores: na luta vence o mais forte e o momento é de decisões supre-mas. Os que desejam sobreviver ao tempo tirem os seus cha-péus” (RUBIÃO, 2005: 26). Ele afirma que em vida se definiu como um ser arguto, confirmando esta afirmação a partir do ato de tentar convencer seus assassinos a não atirá-lo no precipício: “Sempre tive confiança na minha faculdade de convencer os adversários, em meio às discussões (...) A morte não extinguira esta faculdade. E a ela meus matadores fizeram justiça” (RU-BIÃO, 2005: 30).

Enquanto o narrador autodiegético de “O ex-mágico da taberna minhota” se construiu como um indivíduo que se dis-tanciava dos seres com características puramente humanas, embora quisesse ser um deles – a náusea expressa é uma forma de esconder este desejo, pois mesmo nomeando-os semelhan-tes, era perceptível que ele era diferente, pois fazia mágica des-controladamente:

quando era mágico, pouco lidava com os homens – o palco me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam. (RUBIÃO, 2005: 12)

Zacarias morto é igualmente impedido de existir como quando era vivo, já que é repelido por seus companheiros após morrer, e eles não buscam conhecer a história de sua morte:

A única pessoa que poderia dar informações certas sobre o as-sunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela frente. (RUBIÃO, 2005: 25-26)

A aceitação dos companheiros é importante, pois o homem “ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens” (SARTRE, 1973: 12), ele necessita do outro:

o homem que se atinge diretamente pelo cogito descobre também os outros, e descobre-o como a condição de sua exis-tência. Dá-se conta que não é nada, salvo se os outros o reco-nhecem como tal. (SARTRE, 1973: 22)

Sartre afirma que, embora o “Outro” seja necessário,

Page 17: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 33

seu olhar pode categorizar o ser, impedindo sua completa li-berdade, e sendo “inimigo do alcance da autenticidade” – o re-conhecimento pleno cuja antítese é a má-fé – (OUTHWAITE, 1996: 293), isto é, “o inferno são os outros não porque sejam mal, mas porque podem privar-me do sentido da minha liber-dade” (OUTHWAITE, 1996: 293).

O protagonista de “O ex-mágico da taberna minhota” é marcado pela angústia, pois se sente culpado por “não ter cria-do todo um mundo mágico” (RUBIÃO, 2005: 13), por não ter utilizado melhor seus dons, favorecendo a humanidade inteira. Zacarias também se angustia por não poder existir completa-mente após sua morte, já que seus companheiros se afastavam dele:

Havia ainda o medo que sentia, desde aquela madrugada, quando constatei que a morte penetrara no meu corpo. Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de construir uma nova existência. (RUBIÃO, 2005: 31)

Essa angústia é caracterizada por Sartre como aquela que não permite escapar do sentimento de total responsabilida-de:

o homem ligado ao compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo em que a si próprio, a humanidade inteira. (SARTRE, 1973: 13)

Ela é paralela ao sentimento de desamparo e quando se fala de desamparo, expressão querida por Hei-degger, queremos dizer somente que Deus não existe e que é preciso tirar disso as mais extremas conseqüências (...) não há esperança senão na ação, e que a única coisa que permite ao homem viver é o ato. (SARTRE, 1973: 15-21)

Desta forma, o ex-mágico se desespera por não encon-trar apoio em lugar algum, pois é o único ser a fazer mágica imensuravelmente: “Nada fazia. Olhava para os lados e implo-rava com os olhos por um socorro que não poderia vir de parte alguma.” (RUBIÃO, 2005: 9); “Urgia encontrar solução para o meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 34

poria termo ao meu desconsolo”. (RUBIÃO, 2005: 10); “Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas.” (RUBI-ÃO, 2005: 12). Zacarias também se sente assim, pois teme o seu futuro já que nem a certeza da morte, ele possui:

Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agoni-zante? E a minha angústia cresce ao sentir, na sua plenitude, que a minha capacidade de amar, discernir as coisas, é bem superior à dos seres que por mim passam assustados. (RUBI-ÃO, 2005: 32)

O ex-mágico tenta suicídio se tornando um funcionário púbico e Zacarias, tenta viver após sua morte, entretanto ambos se encontram em circunstâncias que independem deles. No ca-so do ex-mágico, ele não morre, mas perde seus poderes, e Za-carias não consegue viver normalmente, pois seus companhei-ros não o aceitam. Não é preciso somente desejar algo, pois se depende das circunstâncias. Assim, encontra-se o desespero, já que os desejos não se concretizaram:

quanto ao desespero, esta expressão tem um sentido muito simples. Quer ela dizer que nós nos limitamos a contar com o que depende da nossa vontade, ou com o conjunto das proba-bilidades, que tornam a nossa ação possível. (SARTRE, 1973: 18)

A existência, por vezes, é vista pelos protagonistas de “O ex-mágico da taberna minhota” e de “O pirotécnico Zacari-as”como uma prisão: “Eu, que podia criar outros seres, não en-contrava meios de libertar-me da existência.” (RUBIÃO, 2005: 11); “Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar bem os múscu-los, andando pelas ruas cheias de gente e ausentes de homens” (RUBIÃO, 2005: 28) Isto ocorre porque, segundo o existencia-lismo, “o homem está condenado a ser livre. Condenado por-que não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer” (SARTRE, 1973: 15). Embora não teve escolha, é responsável pelos seus atos, pois mesmo ao pedir conselhos, por exemplo, o indivíduo escolhe quem será seu orientador e que tipo de su-

Page 18: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 35

gestão irá receber. Portanto, a partir desta leitura das narrativas rubianas,

percebe-se que as personagens aqui apresentadas – o ex-mágico e Zacarias –, agentes da narrativa e representantes do ser humano empírico –, abarcam, em suas atitudes, diversos conceitos do existencialismo sartreano, como angústia, deses-pero e desamparo, fazendo com que essas narrativas reflitam esta perspectiva filosófica. Referências Bibliográficas: ABBAGNAMO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo. Ática, 2000.

CÂNDIDO, Antônio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1972.

CASTRO, Manuel Antônio de. “Heidegger e a questão da es-sência”. In: www.travessiapoetica.com. Arquivo consultado em 25 de julho de 2007.

FORSTER, E. M. Aspectos do Romance. Porto Alegre: Editora Globo, 1974.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1993.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001.

OUTHWAITE, Willian et al. Dicionário do pensamento do sé-culo XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

REIS, Carlos. Dicionário de narratologia. Lisboa: Almedina, 2000.

RUBIÃO, Murilo. “O ex-mágico da taberna minhota”. In: Con-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 36

tos reunidos. 2 ed. São Paulo: Ática, 2005, p. 25-32.

RUBIÃO, Murilo, “O pirotécnico Zacarias”. In: Contos reuni-dos. 2 ed. São Paulo: Ática, 2005, p. 25-32.

SARTRE, Jean-Paul. “O existencialismo é um humanismo” In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

Page 19: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 37

TEMAS, TÍTULOS E EPÍGRAFES EM MURILO RUBIÃO:

REFLEXÕES E LEITURAS A PARTIR DE “ALFREDO” E “OS DRAGÕES”

Eveline Coelho Cardoso - UERJ

Pediu o oceano. Não fiz nenhuma objeção e embarquei no mesmo dia, iniciando longa viagem ao litoral. Mas, frente ao mar, atemorizei-me com o seu tamanho. (...) e lhe trouxe somente uma pequena garrafa contendo água do oceano. (RUBIÃO, 2005: 35)

Um pequeno frasco contendo uma paisagem oceânica

sobre um fundo acinzentado – eis a porta de entrada de uma versão dos Contos Reunidos de Murilo Rubião, publicados pela editora Ática (2005). A julgar pela imagem criada por Silvia Ribeiro, antes mesmo de ler uma linha do livro, o leitor atento pode encontrar já na capa uma espécie de resumo simbólico do trabalho do escritor mineiro: sobreposição de uma realidade a outra que lhe parece estranha por meio do texto literário, en-tendido como um “recipiente” que ao mesmo tempo limita e revela as convergências e divergências entre essas duas reali-dades.

Tal imagem dialoga com a fala do personagem-narrador do conto “Bárbara”, reproduzida na epígrafe desse ensaio. No conto, buscando atender ao inusitado pedido da mulher, que,

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 38

aliás, era um hábito dessa personagem, o narrador empreende uma longa viagem. Entretanto, “atemorizado” diante da imen-sidão do pedido – todo um oceano – conforma-se com levar uma pequena amostra dele numa garrafa para Bárbara. Mais uma vez uma leitura da própria obra de Rubião: recortes de uma realidade que causa espanto, estranhamento, trazidos à re-alidade cotidiana do leitor por meio da literatura.

Eventos como os pedidos da personagem citada repre-sentam o norte para a análise dos contos rubianos, tendo em vista sua presença em quase todo o seu conjunto. Ora, não é comum que uma mulher peça a seu marido que lhe traga o oce-ano, ou uma estrela, exceto no discurso hiperbólico e metafóri-co dos apaixonados. Menos comum ainda é que esse marido encare naturalmente tais pedidos e se prontifique a realizá-los sem nenhum questionamento. Numa leitura do tipo, é impossí-vel que o leitor não se remeta a noções como “realidade”, “pos-sibilidade” ou “verdade”.

A criação dessa convivência de fatos de uma realidade estranha, que vem sendo chamada insólita, com a realidade ló-gica, natural, do cotidiano, Murilo compartilha com os autores da tradição fantástica, e por esse motivo a crítica o aproxima desse gênero. Já se observou, porém, que essa aproximação não se dá de forma completa, tendo em vista que os vários gêneros ligados ao que se conhece por “fantástico” – o Maravilhoso, o Fantástico, o Estranho e o Realismo Maravilhoso – apresentam traços peculiares no que diz respeito ao insólito, que por sua vez condizem com o momento histórico em que tais gêneros se configuram e com um conceito de “verdade” vigente nesses pe-ríodos.

Dessa forma, a questão dos gêneros perpassa a análise de Murilo Rubião e envolve uma reflexão sobre o conceito de verdade na Pós-modernidade, momento histórico-cultural que, no dizer de Bauman (1998), por sua capacidade de “ocultamen-to”, poderia apagar inteiramente a distinção entre verdade e fal-

Page 20: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 39

sidade. Assim, se no Maravilhoso a verdade é divinizada, acei-ta e única; no Fantástico é questionada diante de uma explica-ção lógica e outra sobrenatural; e no Realismo-Maravilhoso convivem muitas verdades como possíveis; na Pós-Modernidade, época esfacelada e esfaceladora (Cf. GARCÍA, 2006), a verdade não existiria.

Relacionando-se, então, fortemente ao “fantástico”, mas recriando à moda de seu tempo os mecanismos que o estrutu-ram, Rubião, entre outros, poderia fazer parte de um novo gê-nero: o Insólito Banalizado. Um dos traços característicos deste novo gênero proposto que está presente em na obra de Murilo Rubião é a reação de aceitação das personagens em face dos eventos insólitos, tornando corriqueiro, e nesse sentido banal. O fato, por exemplo, de um homem ir tornando-se transparente ou de uma mulher dar a luz com intervalos de até vinte dias a “ninhadas” de quatro a cinco bebês.

De posse da informação de que Murilo Rubião reescre-via incessantemente seus contos, alterando partes das histórias, seus finais e títulos, pode-se dizer que o “insólito” de sua obra começa já em seu processo de gestação. Essa constante reela-boração poderia ser associada ao desejo que o autor mesmo ex-plicita de não terminar a história, recorrendo assim a uma cir-cularidade para que ela continue de forma diferente a partir de quem lê.

De fato, Rubião aposta no leitor ao construir sua narra-tiva, desafiando-o a todo o momento não só pela inserção de eventos extraordinários, também pela organização discursiva dos acontecimentos, geralmente iniciando in media res e com final em aberto, sem um desfecho. Semelhantemente, algumas construções do tempo desrespeitam uma ordem física lógica, projetando a ação do presente para o passado ou para o futuro, e até fazendo esses tempos coexistirem. Mas é já na abertura dos contos que encontramos pistas sólidas daquilo que se con-figurará como insólito.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 40

Dos 33 contos que totalizam a obra rubiana, 16 deles contêm em seu título nomes de personagens. Metade desses não apresenta nenhum determinante, como “Elisa”, “Aglaia” e “Bárbara”. Alguns trazem apostos ou outras expressões adjeti-vas próprias dos personagens, como “Teleco, o coelhinho” ou “O bom amigo Batista”. Há os que se referem indiretamente aos nomes que apresentam, focalizando, na verdade, temas li-gados a eles, como “Memórias do contabilista Pedro Inácio” ou “Os três nomes de Godofredo”. Outros trazem epítetos para personagens, cujos nomes não são expressos, como “O ex-mágico da taberna minhota” ou “A noiva da casa azul”.

Os demais, como é de se esperar de um título, indicam elementos dos contos, contendo ou não expressões explicati-vas: “A fila”, “A cidade”, “A casa do girassol vermelho”, “A flor de vidro”. Observe-se que as especificações presentes nes-tes títulos vão de encontro ao senso comum ao levantarem a hipótese da existência de um girassol de cor vermelha ou de uma flor feita de vidro.

Assim, a construção dos títulos em Rubião pode ser considerada o primeiro elemento indicador do insólito, consi-derando que sempre sinaliza, se não para o próprio evento, para algo ou alguém relacionado a ele. Em “Alfredo”, inferindo, a partir do título, que o conto trará a história de um homem, o leitor descobre que sua hipótese só será em parte confirmada: Alfredo é um homem que se transformou em porco, em nuvem, no verbo “resolver” e, por fim, em dromedário, migrando para a serra a fim de isolar-se da sua antiga espécie.

Em “Os Dragões”, a julgar somente pelo título, poderí-amos admitir a possibilidade de um conto maravilhoso, em cu-jo cenário é comum encontrarmos seres como fadas, bruxas, duendes, monstros etc. Ocorre que os dragões rubianos apare-cem em uma cidade urbana, mais especificamente na vida de um professor – o narrador do conto – que chega a adotar um deles mediante o abandono social dessa raça na cidade onde

Page 21: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 41

chegara. Como em “Alfredo”, o título aponta, portanto, direta-mente para o evento insólito.

Depois dos títulos, outro elemento formal, que também é peculiar em Murilo Rubião, são as epígrafes. Em todos os contos encontramo-nas contendo versículos bíblicos, na maio-ria do Velho Testamento. Jorge Schwartz define a função des-ses textos como a de “apontar de maneira sintética e simbólica, para os grandes temas a serem discutidos” (SCHWARTZ, 1982).

Embora não se possa atribuir aos contos um conteúdo necessariamente cristão, percebe-se em várias passagens um diálogo com esse ideário, não só no tocante aos temas refleti-dos nas epígrafes; também nomes de personagens e outras refe-rências diretas a passagens bíblicas estão presentes na narrativa rubiana. Vale ressaltar que, não raro, encontramos passagens proféticas na fala dos narradores. Isto mostra que não é fortuita a retirada da maioria das epígrafes de livros de autoria dos chamados Profetas Maiores (Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel) e Menores (Habacuque, Zacarias, Miquéias), bem como do Apocalipse, para citar uma referência do Novo Testamento.

Um olhar atento às epígrafes pode, assim, encontrar um resumo intertextual do próprio conto. Em “Alfredo”, a epígrafe retirada do livro de Salmos diz: “Esta é a geração dos que o buscam, dos que buscam a face do Deus de Jacó”. Numa ver-são bíblica de João Ferreira de Almeida, o capítulo que contém o fragmento se entitula O Rei da Glória entrando em Sião, e contém uma pergunta acerca de quem subirá o monte do Se-nhor, identificando na resposta a geração a que se refere a epí-grafe citada.

Na história narrada, Joaquim, o narrador-protagonista, ouvia constantemente, do vale onde morava, gemidos que des-pertaram, a princípio, a suspeita de um lobisomem. Numa tar-de, ao partir em busca do emissor desses “estranhos rumores”, Joaquim reconhece Alfredo, seu irmão, no alto da serra, sob o

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 42

corpo de um dromedário. Alfredo fugira para lá “convencido da impossibilidade de conviver com seus semelhantes a se en-tredevorarem de ódio”. Após o reencontro, Joaquim leva Al-fredo para o vale:

Depois de beijar a sua face crespa, de ter abraçado o seu pes-coço magro, enlacei-o com uma corda. Fomos descendo a passos lentos, em direção à aldeia. Atravessamos a rua princi-pal, sem que ninguém assomasse à janela, como se a chegada de meu irmão fosse um acontecimento banal. (RUBIÃO, 2005: 67)

A descrição da chegada de Alfredo metamorfoseado à aldeia, além de denunciar explicitamente a necessidade de uma redefinição de gênero para Murilo Rubião, dialoga com a epí-grafe, permitindo opor a chegada gloriosa do Rei de Sião à en-trada banalizada de Alfredo na cidade. Também é possível comparar a busca dessa personagem com a da geração citada no salmo: o desejo de tranqüilidade o leva – e posteriormente a Joaquim – ao alto da serra, da mesma forma que os que buscam a face do Deus de Jacó subirão o seu santo monte.

Em “Os dragões”, a epígrafe é um fragmento do livro de Jó, que, aliás, é fonte das epígrafes de vários contos de Ru-bião. Segundo a narrativa bíblica, Jó fora um homem muito ri-co que, mesmo tendo perdido todos os bens, a família e a saúde de repente, mantivera-se fiel a Deus, aguardando a salvação. A epígrafe do conto rubiano está inserida num capítulo em que Jó lamenta o estado miserável em que caiu, descrevendo, por meio de várias metáforas, o seu sofrimento: “Fui irmão de dra-gões e companheiro de avestruzes” (RUBIÃO, 2005: 137).

Como em “Alfredo”, a epígrafe tem uma função resu-mitiva no conto, sabendo que trará a experiência de um narra-dor que, mais do que ser irmão de dragões, terá um deles como filho. Numa relação de comparação, o estado negativo a que se reduziu Jó pode ser associado à degradação moral dos dragões após o contato com os costumes humanos, de modo que muitos haviam adoecido e morrido, outros fugiam ou eram presos

Page 22: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 43

sempre pelos mesmos motivos: “roubo, embriaguez, desor-dem” (RUBIÃO, 2005: 139).

Curiosamente, num momento histórico-cultural esface-lado e esfacelador, um autor lança mão de fragmentos de um discurso que se pretende único e inquestionável enquanto ver-dade para abrir a narrativa de fatos em que nenhuma verdade predomina. E esse movimento se dá não só na introdução das epígrafes, mas também no próprio texto, quando esses discur-sos – bíblico e ficcional – se misturam na narração, tornando ainda mais insólitos os eventos narrados:

Imaginou, então, que fundir-se numa nuvem é que resolvia. Resolvia o quê? Tinha que resolver algo. Foi nesse instante que lhe ocorreu transmudar-se no verbo resolver. E o porco se fez verbo. Um pequenino verbo, inconjugável. (RUBIÃO, 2005: 69)

A temática da metamorfose está presente em vários contos rubianos. Em “Alfredo” e “Os dragões” surge numa mão-dupla: enquanto neste os dragões adquirem hábitos huma-nos, naquele é o homem quem sofre a transformação em vários elementos, até se tornar um animal. Mas essa metamorfose, em ambos os casos, não é gratuita. A aquisição de outra forma com que se apresentar socialmente tenta atender a uma profunda busca pessoal por tranqüilidade ou felicidade, por realizar algo que não se consegue na realidade. Uma busca que, por sinal, é sempre frustrada.

As personagens rubianas, como Alfredo e os dragões, em geral são forasteiras, peregrinas em terra estranha, e nesse sentido, os cenários sempre opõem o lugar de origem e o lugar estranho, a cidade e o interior, o vale e a serra. Na verdade, em “Os dragões” há também uma oposição de tempo, sabendo que tais animais, seres fabulosos próprios do imaginário medieval, teriam sofrido com o atraso dos costumes humanos de hoje. É possível entrever nessas linhas uma crítica à degradação do próprio homem, e nesse sentido as noções de tempo e evolução se tornam inversamente proporcionais.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 44

Os narradores também denunciam suas angústias. A de-claração inicial do conto “Alfredo” é uma fala de Joaquim, que diz: “Cansado eu vim, cansado eu volto” (RUBIÃO, 2005: 65), e não por acaso se repete como encerramento do texto, acresci-da ainda de um reforço afirmativo: “Sim, cansado eu vim, can-sado eu volto” (RUBIÃO, 2005: 70). Percebemos a circulari-dade, ou tendência para o infinito a que se referiu Schwartz, no sentido de que há um deslocamento, uma passagem, mas o es-tado inicial do personagem é o mesmo: cansaço, melancolia (Cf. SCHWARTZ, 1982).

De fato, Joaquim, antes de Alfredo, já empreendera uma fuga em busca de tranqüilidade, e depois de trazer o irmão à aldeia e retornar com ele à serra novamente, chega à conclu-são de que tudo foi em vão:

Perdera mais uma jornada ao procurar nas montanhas refúgio contra as náuseas do passado. De novo, teria que peregrinar por terras estranhas. (...) Alcançaria vales e planícies, ouvindo rolar as pedras, sentindo o frio das manhãs sem sol. E agora sem a esperança de um paradeiro. (RUBIÃO, 2005: 69)

Observamos que esse destino desesperançoso e sem rumo é o mesmo reservado aos dragões por Rubião. Associa-dos de início a demônios, monstros antediluvianos, ou seres folclóricos no conto, os dragões acabam tendo, por fim, escra-vidão, doenças, vícios, abandono e extinção, finais tão reais e humanos quanto o de muitos povos registrados na História U-niversal. Após terem experimentado, na cidade, a crise da vida humana moderna, seria natural que os forasteiros não quises-sem mais viver entre nós:

(...) depois disso muitos dragões têm passado pelas nossas es-tradas. E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas, encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos. (RUBI-ÃO, 2005: 142)

Conclui-se que, apesar da “irrealidade” dos fatos narra-dos, Murilo Rubião aborda a angústia da própria existência

Page 23: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 45

humana frente ao inexplicável do mundo contemporâneo. Um mundo em que bilhões de pessoas se entrecruzam diariamente, habitando e trabalhando em arranha-céus; não obstante tantos meios de comunicação, as relações se dissipam; com o cresci-mento do progresso, cresce também a corrupção, a pobreza e a violência; não estranhamos mais a notícia diária do desapare-cimento ou da morte de dezenas de pessoas.

Em outras palavras, na obra rubiana, contemplamos na-da menos que o insólito do próprio cotidiano, o caráter sobre-natural do natural, o incomum do comum. E, à semelhança da reação da personagem Bárbara diante do frasco que o marido lhe traz, ficamos sofregamente maravilhados, mais uma vez, com a literatura. Portanto, apresenta-nos de forma sempre sur-preendente e prazerosa a grandeza atemorizante desse oceano que é a vida humana. Referências Bibliográficas: BAUMAN, Zygmunt. “Sobre a verdade, a ficção e a incerte-za”. In: O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

GARCÍA, Flavio. “Tendências da narrativa curta de Murilo Rubião e Méndez Ferrín: percursos estéticos aproximativos”. In: MALEVAL, Maria do Amparo Tavares; PORTUGAL, Francisco Salinas. (Org.). Estudos galego-brasileiros n. 2. A Coruña: Universidade da Coruña/ Servizo de Publicacións, 2006, p. 209-223.

SCHWARTZ, Jorge. “Um mestre do Fantástico”. In: RUBI-ÃO, Murilo. Murilo Rubião: Literatura Comentada. São Paulo: Abril, 1982.

RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. São Paulo: Ática, 2005.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 46

MUITO PRAZER, RUBIÃO: UMA BREVE VISITA À OBRA DE MURILO

Jordão Pablo Rodrigues de Pão - UERJ

Como outrora fizeram Umberto Eco (1994) e Flávio

Carneiro (2001), propõe-se aqui um passeio que, embora mais curto, proporcione ao leitor uma visão completa do tema abor-dado. Neste, que está diante de seus olhos, construir-se-á um painel da obra do cuidadoso Murilo Rubião.

Para tanto, foram fundamentais as reflexões feitas du-rante o primeiro semestre letivo de 2007 nas reuniões do grupo do Seminário Permanente de Estudos Literários – Se-PEL.UERJ, realizadas na Faculdade de Formação de Professo-res, campus da UERJ São Gonçalo.

O corpus deste trabalho são as narrativas de Contos Re-unidos, de Murilo Rubião, publicadas pela Editora Ática em 2005. A elas agrupam-se as colaborações teóricas do grupo já mencionado, especialmente as do professor Flavio García, ori-entador do mesmo, e a audiência de aulas ministradas pelo mestre Marco Aurélio Pinheiro de Medeiros, que revelou-me o mundo literário não-clássico. Nada mais a acrescentar, sigamos em frente.

O mestre de cerimônia são os eventos insólitos, enten-didos como “aqueles que não são freqüentes de acontecer, são raros, pouco costumeiros, inabituais, inusuais, incomuns (...) enfim, surpreendem ou decepcionam o senso comum” (GAR-CÍA, 2007: 19). Eles estão em quase todas as produções do au-tor e podem desempenhar duas funções no enredo: a) podem

Page 24: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 47

ser essenciais, fazendo-se centro das ações textuais e, conse-qüentemente, insubtraíveis; b) podem ser ocasionais, sendo a-penas elementos que dialogam com a estrutura e sua retirada não se reverte em desconstrução da narrativa.

Falando de Rubião, nota-se uma clara preferência pelo primeiro caso. Em “O homem do boné cinzento” são muitas as mudanças que Anatólio, homem que vai desaparecendo até se transformar numa bolinha negra a rolar por entre os dedos do narrador, causa em si mesmo e em sua família. Toda a constru-ção do enredo aponta para a insolidez dessa personagem. Rubi-ão escreve: “Antes de sua vinda, a nossa rua era o trecho mais sossegado da cidade” (RUBIÃO, 2005: 71). E ainda: “Não fo-ram poucos os que se impressionaram com o procedimento do solteirão” (RUBIÃO, 2005: 72). Caso queira-se retirar essa personagem (Anatólio) da narrativa, o texto desmorona.

É necessário estar atento para a singularidade dos con-tos rubianos. Raramente há universalidades. Enquanto o texto acima citado utiliza muitos elementos insólitos na sua constru-ção, em “Ofélia, meu cachimbo e o mar” não há insólito, por exemplo. Eis o grande problema: é impossível fazer uma “fôr-ma” para a escritura desse autor.

Os títulos de Rubião, cheios de significado e em pleno exercício, geralmente focam o evento insólito. O leitor é enca-minhado para a identificação das particularidades do ser reme-tido, o que beneficia a percepção de ruptura da ordem. “Os dragões” é um desses: além de já apontar para uma esfera irreal (real no sentido de experiência cotidiana), aquele que se propõe a ler fica em estado de alerta para essas figuras. Na primeira li-nha, uma menção: “Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes” (RUBIÃO, 2005: 137). O autor não trai o leitor: dragões são a base do texto. “Os dragões receberiam nome na pia batismal e seriam alfabetizados” (RUBIÃO, 2005: 138); “Odorico, o mais velho dos dragões, trouxe-me as maiores contrariedades” (RU-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 48

BIÃO, 2005: 139). Aliado a esse fator, a forte presença de eventos insólitos

solicita uma leitura atenta e, conseqüentemente, a narrativa mantém certo distanciamento, que dificulta a fusão entre emo-ção e análise científica. Não os dissocia – é bom deixar claro -, o que implicaria a perda da experiência estética, mas totaliza a atividade literária.

Os contos de Murilo Rubião são precedidos de epígra-fes. Esse fato se revela instigante quando se observa a biografia do autor: era ateu. No entanto, os trechos escolhidos são bíbli-cos, e sua participação é decisiva ao se entender o contexto no qual é inserido, revelando um conhecimento significativo do livro sagrado dos cristãos. Em geral, prenunciam a temática do conto e auxiliam na construção de uma expectativa, que só po-de obter uma resposta através da leitura.

“Eu vi um céu novo e uma terra nova; porque o primei-ro céu e a primeira terra se foram e o mar já não é” (Apocalip-se, XXI, 1, citado por RUBIÃO, 2005: 169) é a epígrafe de “E-pidólia”, apontando para algo revolucionário e grandioso, que se consolida no plano ficcional:

Atrás dele ajuntavam-se crianças, formando um cortejo a que em seguida se incorporariam adultos – homens e mulheres, moços e velhos – unidos todos em uníssono grito: Epidólia, Epidólia, Epidólia. (RUBIÃO, 2005: 177-8)

Partindo do gigante e chegando ao vazio, é notável que as ausências são marcas fundamentais da obra rubiana. Mani-festa-se em diversos estágios narrativos, o que é comum em textos sob a influência insólita, visto que esses são, em grande parte dos casos, rodeados por falta de explicações.

O leitor é surpreendido pelos contos, pois o primeiro parágrafo parece estar num enredo maior, o qual ele temporari-amente é privado de conhecer. Na leitura, surgem acontecimen-tos que estabelecem as ligações entre os elementos, possibili-tando a familiarização com o universo ficcional.

É o caso de “A diáspora”, em que um grupo de operá-

Page 25: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 49

rios liderados por Roque Diadema tenta construir uma ponte numa cidadezinha. O chefe trava uma série de embates a fim de conseguir seu intento. Entretanto, não há referência do motivo para a construção. Um grande silêncio.

Em muitos textos também há uma falta posterior. Ter-minam no clímax, ausentando as conseqüências daquelas ações que prenderam a leitura. Abrem uma fenda entre as expectati-vas do leitor e a realização da narrativa.

Observe-se “Aglaia”: a narrativa dá conta de uma mu-lher que, apesar de usar métodos anticoncepcionais e ter o úte-ro perfurado, entrega ao mundo, continuamente, ninhadas de filhos. O marido resolve ir embora e chama a parteira para au-xiliar a mulher num novo parto. Explicações não existem. É o silêncio que proporciona um exercício criador àquele que lê.

Murilo Rubião ainda utiliza algumas personagens que, em plena narrativa, desaparecem ou retornam. Quando somem, emerge na escritura um relato das sensações que esse ato causa no narrador. Quando aparecem, são incorporadas, na maior parte das vezes, sem questionamentos. “Elisa” pode ser vista nessa perspectiva. Ela volta no início do texto: “Empurrou com naturalidade o portão que vedava o acesso ao pequeno jardim, como se obedecesse a hábito antigo” e “Logo a desconhecida se adaptou aos nossos hábitos” (RUBIÃO, 2005: 47), mas não há perguntas incisivas sobre a atitude dela. Elisa simplesmente está. No fim, vai embora, e a preocupação do narrador e de sua irmã se resume a duas perguntas feitas por ela: “E Elisa? Como poderá encontrar-nos ao regressar?” (RUBIÃO, 2005: 49).

Lacunas abertas, buracos, vazio... As cores são elemen-tos que Rubião utiliza em grande escala nas suas narrativas. Têm cargas semânticas muito próprias e intensas. Sendo assim, dão uma contribuição valiosíssima para a análise textual. Em “Bruma” (“A estrela vermelha”), a narrativa permite a associa-ção da personagem-título com uma estrela vermelha, que é a cor da intensidade, característica própria de Bruma. “Ao me le-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 50

vantar, prestes a findar a tarde, estendia-se na minha frente uma estrela vermelha. Pouco a pouco, ela se desdobrou em cores. Todas as cores” (RUBIÃO, 2005: 124). Bruma desaparecera para sempre, uma vez que se torna todas ao mesmo tempo. Lo-go, é impossível uma leitura que se queira completa de Rubião sem pensar na magia cromática. Seja para se opor e, conse-qüentemente, enfatizar o contraste, seja para corroborar o pla-no. Simbolicamente, tem-se um elemento valiosíssimo.

A alternância de planos temporais é outro traço rubiano marcante. Nem todas as narrativas de Murilo apresentam seme-lhante intensidade de jogo com o tempo, mas vez ou outra se encontra o passado, volta-se ao presente ou fala-se sobre o fu-turo. O tempo mantém a atenção, pede uma releitura, requer entrega na atividade. No conto “A noiva da casa azul”, o narra-dor viaja para Juparassu a fim de encontrar sua namorada, que lhe mandara um bilhete. Chegando lá, depara-se com uma ci-dade em ruínas, onde encontra um morador que parece estar adiantado no tempo, a não ser que Dalila esteja em outro tem-po. Logo, uma confusão se instaura na cabeça do leitor, mas não na do narrador, que banaliza esse fato e vai até a casa azul de sua namorada.

Como deve ter observado até aqui, Rubião opta, na maioria das vezes, por nomes incomuns para suas personagens: Bruma, Og, Epidólia, Aglaia, Anatólio, Pererico... Denomina-ções que reforçam a individualidade das personalidades e dos enredos especialmente insólitos. Mais um traço da preocupação do autor com o acabamento de suas criações. Ele tem um pe-queno número de produções por ficar muito tempo escrevendo e reescrevendo cada uma delas. E nos dá mais combustível pa-ra visitar seu mundo.

Em “Os três nomes de Godofredo”, Murilo joga com a característica básica dos nomes – delimitar algo. Para o leitor, fica a indagação: existem personagens em planos diferentes que interagem ou são todos um só? Ao criar um texto interro-

Page 26: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 51

gativo, as identidades ficcionais são questionadas, e aquele se transforma em um grande espaço de discussões.

Alguns contos trazem também essa crise de identidade, tão presente no mundo contemporâneo, através de uma anoma-lia corporal. Os problemas que surgem são temáticas recorren-tes do mundo de hoje, proporcionando leituras que remetem à nossa realidade. “Teleco, o coelhinho” tem como enredo um bichano que sofre com as metamorfoses incontroláveis. Essa mudança contínua para outros animais surge da vontade de não desagradar e, sem controle, tem um efeito desfavorável: não consegue estabelecer relações sólidas. Teleco acaba não tendo identidade.

Um outro conto de Murilo Rubião muito referenciado é “O ex-mágico da Taberna Minhota”. Deparamo-nos com um indivíduo que não controla as suas habilidades mágicas e tenta se livrar da vida de uma vez. Mas não consegue. Até que “ou-vira de um homem triste que ser funcionário público era suici-dar-se aos poucos” (RUBIÃO, 2005: 11). E se emprega. Des-concerto que aparece como forma de instabilidade do eu.

A morte, aliás, é uma temática amplamente utilizada pe-lo autor. O fim da vida ou marca o desfecho ou acontece no i-nício/meio do texto, e o leitor passa a acompanhar seus refle-xos nas ações das personagens. São dois caminhos completa-mente diferentes, mas que ressaltam a morte enquanto trans-formação e, conseqüentemente, como fato imprescindível no enredo. No conto “O pirotécnico Zacarias”, o narrador-morto tenta fazer com que as pessoas os escutem, mas não consegue, uma vez que ninguém se aproxima de uma alma penada ou de um desconhecido naquela situação. Rememora todo o processo de sua morte e reflete sobre o que é falecer.

Já em “A fila”, a morte aparece no final para solucionar as ações anteriores. Após uma longa temporada na fila intermi-nável e no zoológico, Pererico recebe a notícia de uma morte importante, que o libera de todas as privações vividas naquele

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 52

lugar. No fim, a despedida de sua companheira de estadia. Figuras femininas normalmente estão nos textos rubia-

nos e, em boa parte dos casos, são a base dos mesmos. Para se verificar isso, basta pegar o índice do livro-base deste trabalho, Contos Reunidos, e verificar que os títulos de dez das trinta e três narrativas referenciam mulheres. Mas elas diferenciam-se através do papel que exercem na narrativa.

Em “Bárbara”, está uma mulher pedinte de coisas muito complicadas ou impossíveis, como um baobá e o oceano: ela é a portadora de todo insólito que perpassa o texto. Em “Ofélia, meu cachimbo e o mar”, uma personagem secundária; funda-mental, entretanto, para que os pensamentos do narrador ve-nham à tona.

Significativo também nesse autor é o grande número de edificações. Para só citar algumas, temos a ponte de “A diáspo-ra”, a Companhia de “A fila”, os prédios de “O edifício” e o de “A armadilha”. Mais do que simples elementos, elas têm pre-sença decisiva tanto na criação de uma esfera sombria para al-gumas narrativas quanto como estopim para outras.

O edifício do conto que recebe esse nome no título, por exemplo, não pára de crescer, e é justamente por isso que as ações narrativas se desenvolvem. “Mais de cem anos foram ne-cessários para se terminar as fundações do edifício que, segun-do o manifesto da incorporação, teria ilimitado número de an-dares” (RUBIÃO, 2005: 159).

Além disso, os meios de transporte e a conseqüente mudança de espaço podem ser percebidos muitas vezes nos textos rubianos. É o caso de “A cidade”, em que uma persona-gem é presa simplesmente por fazer perguntas. A primeira de-las é feita num trem no início do conto. “Destinava-se a uma cidade maior, mas o trem permaneceu indefinidamente na an-tepenúltima estação” (RUBIÃO, 2005: 57).

Aqui se chega também ao fim de nossa visita. Espera-se que tenha apreciado o passeio pela obra de Murilo Rubião em

Page 27: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 53

que se tentou ser cicerone. Referências Bibliográficas: CARNEIRO, Flávio. Entre o cristal e a chama: ensaios sobre o leitor. Rio de Janaeiro: EdUERJ, 2001.

ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. São Pau-lo, Companhia das Letras, 1994.

GARCÍA, Flavio. O “insólito na narrativa ficcional: a questão e os conceitos na teoria dos gêneros literários. In: GARCÍA, Flavio (org.). A banalização do insólito: questões de gênero li-terário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.

RUBIÃO, Murilo. Contos Reunidos. 2 ed. São Paulo: Ática, 2005.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 54

“O PIROTÉCNICO ZACARIAS” SE ENQUADRA NO FANTÁSTICO OU NO INSÓLITO BANALIZADO?

Luana Castro dos Santos Braz - UERJ

A palavra “fantasia” é considerada um gênero de arte

que usa a magia e outras formas sobrenaturais como elemento primário de uma história. Este gênero é geralmente distinguido de Ficção Cientifica e Horror pelo aspecto geral e pelos temas de cada autor individual. De modo geral, o termo fantasia cobre trabalhos de escritores, artistas e músicos, desde mitos e lendas até obras mais recentes, conhecidas por uma vasta audiência.

O termo “fantástico” é oriundo do latim phantasticus (-a, -um), que, por sua vez, provém do grego (phantastikós) – ambas as palavras provenientes da palavra (phantasia) “fantasi-a” e refere-se ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade. Todo texto fantástico torna-se distante da realida-de dos homens e possui elementos inverossímeis, imaginários, inconcebíveis, fabulosos, inexplicáveis, surreais, insólitos e produzem uma grande sensação de hesitação nas pessoas que estão lendo a narrativa.

Porém, Selma Calasans Rodrigues afirma que o fantás-tico “aplica-se, portanto, melhor a um fenômeno de caráter ar-tístico, como é a literatura, cujo universo é sempre ficcional por excelência, por mais que se queira aproximá-la do real” (RODRIGUES, 1988: 9).

Tanto no cinema quanto na literatura, o gênero fantástico possui as mesmas características. Observam-se mortos andando entre os vivos, encontram-se monstros das

Page 28: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 55

mais variadas formas, árvores, pedras e animais que falam, esses entre outros são uns dos eventos que não pertencem à nossa realidade. Normalmente, esses eventos não são entendidos e aceitos por um ser humano. Tzvetan Todorov cita em Introdução à Literatura Fantástica, que, dentro da nossa realidade governada por leis, acontecimentos que não podem ser explicados por essas leis ocorrem na incerteza de ser real ou imaginário. Para Todorov, um evento fantástico só ocorre quando há hesitação se esse evento é real, explicado pela lógica, ou sobrenatural, ou seja, guiado por outras leis que desconhecemos:

Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico. (TODOROV, 1992: 31)

Todorov, ainda afirma que o gênero Fantástico é “a he-sitação experimentada por um ser que só conhece as leis natu-rais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 1992: 31). A hesitação é a principal característica do gênero fantástico e é encontrado na fala dos personagens da narrativa ou pelo personagem-narrador, sendo este sempre nar-rador autodiegético, aquele que relata as suas próprias experi-ências como personagem central da narrativa (Cf. REIS, 2000) ou homodiegético, aquele que relata uma história advinda de sua própria experiência, vivenciada por ele como personagem, mas não como personagem principal e sim como personagem secundária (Cf. REIS, 2000: 259-267). No caso do conto a ser mencionado “O Pirotécnico Zacarias” o narrador é autodiegéti-co, porque coincide com a personagem principal da narrativa, o protagonista, no qual conta suas próprias experiências em pri-meira pessoa.

Contudo, a história não pode parecer de forma figurada, ou seja, alegórica, pois, se o leitor ou espectador explicar o so-brenatural como uma metáfora, a narrativa perde o sentido fan-tástico. O leitor deve estar pré-disposto para negar a alegoria e

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 56

hesitar quanto à realidade do fato. Todorov, ainda afirma que a hesitação ocorre quando o

leitor permanece entre uma explicação natural e uma explica-ção sobrenatural aos acontecimentos dentro da narrativa ou quando algum personagem questiona os acontecimentos que o envolve. Porém Todorov afirma que o Fantástico é um gênero que se dissipa:

dura apenas o tempo de uma hesitação (...) No fim da história, o leitor, quando não personagem, toma contudo uma decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse modo de fantás-tico. (TODOROV, 1992: 47)

Selma Calasans Rodrigues também afirma que o fantás-tico precisa da hesitação para consolidar-se e que a narrativa e o leitor tem que transparecer essa dúvida:

O texto oferece um diálogo entre a razão e desrazão, mostra o homem circunscrito à sua própria racionalidade, admitindo o mistério, entretanto, e com ele se debatendo. Essa hesitação que está no discurso narrativo contamina o leitor, que perma-necerá, entretanto, com a sensação do fantástico predominan-te sobre as explicações objetivas. A literatura, nesse caso, se nutre desse frágil equilíbrio que balança em favor do inveros-símil e acentua-lhe a ambigüidade. (RODRIGUES: 1988 11)

Notar-se-á então que no conto “O Pirotécnico Zacari-as”, de Murilo Rubião, não foi apresentada essa hesitação e questionamento. A narrativa estrutura-se a partir de eventos in-sólitos. Chama-se de Insólito “o que não acontece habitualmen-te; desusado, incrível, desacostumado.” (CALDAS AULETE, 1964: 2196). O insólito tem como conceito na narrativa tudo o que estremece o previsível ou irrefutável, a partir de um olhar comprometido com a realidade cotidiana ou mesmo da ordena-ção social. O insólito rompe com o sobre-humano ou o sobre-natural, não pertencendo ao natural, e com o extraordinário, a-presentando-se fora de certa ordem. O insólito representa-se por um conjunto de fatores da narrativa que marcam os textos devido a sua presença, enquanto desempenha uma compreen-são diversa do sólito, formando, assim, um universo no qual as

Page 29: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 57

verdades do mundo familiar e previsível dos leitores reais, se-res do cotidiano, estariam modificadas.

Portanto, o insólito vai além dos conceitos de realidade, verdade e até mesmo de gênero literário, pois sua presença na narrativa envolve efeitos diferentes, dependendo da época.

Ao questionar a função do insólito enquanto marca dife-renciadora de certo sistema literário, tem-se a idéia de que exis-te uma relação inerente entre o insólito e o conceito de verdade ou realidade da sociedade ou tempo em que é representado e, em conseqüência, do gênero literário em que atua como ins-trumento distintivo.

O evento insólito inscreve-se na narrativa quando o per-sonagem principal, Zacarias, ao ser atropelado e morto por um carro em que está um grupo de jovens, continua agindo como se ainda estivesse vivo. Ao perceber que os rapazes queriam jogá-lo num precipício, interrompe a discussão deles para exi-gir um outro final para seu corpo:

Não, eles não podiam roubar-me nem que fosse um pequeno necrológo no principal matutino da cidade. Precisava agir rá-pido e decidido: – Alto lá! Também quero ser ouvido. (RU-BIÃO, 2005: 29)

Depois de algum tempo, chegaram à conclusão de que todos deveriam se divertir, inclusive o defunto: “Propunha in-cluir-me no grupo e, juntos, terminarmos a farra, interrompida com o meu atropelamento”. (RUBIÃO, 2005: 30)

Observa-se que os rapazes, apesar de perceberem que estão diante de um evento insólito, não questionam a possibili-dade de um homem morto conversar e se divertir com eles tranqüilamente. Aceitam esse fato com tanta calma, que, para que Zacarias também tivesse a companhia de uma das moças que estavam com os rapazes – “as moças eram somente três, isto é, em número igual ao de rapazes” (RUBIÃO, 2005: 30) –, resolvem deixar na estrada o amigo Jorginho, um rapaz que discorda das atitudes que os seus amigos resolvem tomar em relação ao corpo de Zacarias, já que ele teria se espantado e

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 58

desmaiado ao ver o defunto falando. Zacarias, assim como os rapazes, também despreza o

fato insólito: “Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de construir uma nova existência” (RUBIÃO, 2005: 31). O narra-dor autodiegético não questiona a veracidade da sua morte, mas é de seu conhecimento que morreu: “Em verdade morri, o que vem de encontro à versão dos que crêem na minha morte” (RUBIÃO, 2005: 26). Contudo, apropria-se do insólito, pois percebe que sua morte tornou-se algo proveitoso para si, já que a sua “capacidade de amar, discernir as coisas, é bem superior à dos seres que por mim passam assustados” (RUBIÃO, 2005: 32).

Percebe-se, então, que ocorre uma banalização dos e-ventos insólitos. Essa banalização ocorre por um desprezo fren-te ao acontecimento insólito, pois os personagens secundários, a princípio, assustam-se com a possibilidade de um cadáver es-tar falando, mas, posteriormente, aceitam o fato, agindo com desprezo. Percebe-se, também, que a narrativa se estrutura en-torno desse evento insólito, pois é a partir da morte de Zacarias que o conto se constrói, narrando a trajetória do atropelamento do personagem principal, que retorna à “vida” e percebe que sua existência se tornou melhor.

Como foi apresentado acima, não é possível dizer que o conto se inscreva no gênero fantástico, assim como não se no-tam características de outros dois gêneros: maravilhoso e estra-nho.

Selma Calasans, recorrendo ao Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, mostra que:

O termo maravilhoso é derivado de maravilha, que vem do latim marabilia, um nominativo neutro, plural de mirabi-lis.Refere-se a ato, pessoa ou coisa admirável, ou a prodígio. Na teoria literária, porem, é um termo historicizado. Chama-mos de maravilhoso a interferência de deuses ou de seres so-brenaturais na poesia ou na prosa (fadas, anjos, etc.). (RODRIGUES, 1988: 54)

Page 30: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 59

A principal característica do Maravilhoso é a existência e a procura de fatos sobrenaturais, independentemente da rea-ção dos personagens frente ao fato. O conto lido não se esqua-dra nesse gênero, pois não ocorre a busca desse acontecimento sobrenatural nem expectativa de que ele ocorra.

Já o Estranho caracteriza-se pela hesitação de ter que aceitar ou não a situação insólita como verdadeira, tendo que escolher uma única opção antes que a história chegue ao fim, e dá-se esclarecimento lógico e racional para o fato. Nota-se que nesse conto não ocorre essa busca pela verdade nem uma ex-plicação racional e lógica. O povo prefere não questionar, e sim aceitá-lo sem explicações.

No conto “O Pirotécnico Zacarias” descarta-se a hipóte-se de a narrativa ser maravilhosa ou estranha. Pensar-se-á, en-tão, na possibilidade de ser realista-maravilhosa. Esse gênero tem como característica principal o encantamento, mas não e-xiste a presença dessa marca no conto, não podendo ser enqua-drado em tal gênero.

A Ficção Científica e o Terror são outros dois gêneros em que o conto não pode ser enquadrado por não apresentar ca-racterísticas evidenciadas. A Ficção Científica é uma forma de ficção desenvolvida no século XIX, que trabalha principalmen-te com o impacto da ciência, tanto verdadeira como imaginada, sobre a sociedade ou os indivíduos. O termo é usado, de forma mais geral, para definir qualquer fantasia literária que inclua a ciência como componente essencial, e num sentido ainda mais geral, para referenciar qualquer tipo de fantasia literária. A nar-rativa rubiana não apresenta nenhuma característica desse gê-nero apresentado. O Terror ou Horror existe em qualquer meio de comunicação em que se pretenda provocar a sensação de medo. Desde a década de 1960, qualquer obra de ficção com um tema mórbido ou repelente é conhecida do público como um gênero à parte, com grupos de fãs muito específicos que rendem cultos a subgêneros ou a determinados filmes e litera-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 60

tura a eles associados. Este gênero está intimamente ligado à ficção fantástica e à ficção científica.

Apesar de possuir algumas características do gênero ficcional do terror, como um homem morto estar andando pela cidade tranquilamente, o “Pirotécnico...” não pode ser conside-rado integrante deste gênero, pois não causa espanto e princi-palmente medo ns pessoas que estão convivendo com ele.

A partir dos eventos insólitos sobre os quais se estrutu-ram as reações da narrativa, verifica-se a possibilidade de que na obra de Murilo Rubião ocorra a presença de um novo gêne-ro literário: o Insólito Banalizado. A morte vivenciada pelo personagem principal e a reação dos rapazes que o atropelam é algo que foge à expectativa quotidiana. Não há dúvida se acei-tam ou não o acontecimento como possibilidade de ocorrer; e-les apenas aceitam, banalizando o fato.

Verifica-se que o conto não se filia ao Fantástico, pois além de não ocorrer qualquer hesitação em relação à morte do personagem-narrador, nota-se total banalização por parte dos personagens que o cercam, mesmo daqueles que a princípio manifestam uma dúvida, mas logo em seguida aceitam o fato com naturalidade.

Outro aspecto que pode ser abordado no conto “O Piro-técnico Zacarias” é o fato de ele apresentar epígrafes bíblicas. Murilo Rubião utiliza-se desses versículos bíblicos para dar ên-fase ao que será contado. O versículo bíblico do conto foi reti-rado do livro de Jó no Velho Testamento.

Jó foi um homem que sofreu na carne todo tipo de dor pelo amor que tinha por Deus. E mesmo tendo perdido tudo que possuía, Jó não duvidou e nem negou Deus, e no final re-cuperou tudo o que ele perdeu, e em dobro. Percebe-se que Za-carias tem uma segunda chance para mudar sua história; mes-mo tendo sido consumido, morto, ele não foi vencido por isso, e no final consegue até ultrapassar a morte, tornando-se uma pessoa mais feliz.

Page 31: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 61

Referências Bibliográficas: CALDAS AULETE. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Delta, 1964.

RUBIÃO, Murilo, “O Pirotécnico Zacarias”. In: Contos reuni-dos. 2 ed. São Paulo: Ática, 2005.

RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São Paulo: Áti-ca, 1988.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.

www.wikipédia.org/wiki/Fantasia_(literatura).

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 62

O INSÓLITO EM “MARIAZINHA”, DE MURILO RUBIÃO

Luciana Morais da Silva - UERJ

Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. (ASSIS, 2004: 13)

O conto “Mariazinha”, de Murilo Rubião, narrado por

uma personagem que é protagonista, se desenrola em uma ci-dade pequena, na qual a personagem mora. A narrativa se ini-cia com um fato mórbido: um defunto contar que seu próprio nome está sendo chamado por uma voz dita “lúgubre”.

A narração do “defunto” demonstra imprecisão no que se refere aos anos expostos, visto que esse aparece morto em 1943, para em seguida mostrar certo conforto, em 1923, por re-aver seus cabelos e conhecer Mariazinha. Contudo, esse retro-cesso no tempo não se dá como um flashback, ou seja, como um retorno a serviço do tempo psicológico do narrador autodi-égetico (Cf. GANCHO, 1991: 21-22). O flashback, analepse interna ou externa, ou prolepse é um recurso proveniente do fenômeno da anacronia.

Tal ocorrência não aparece no referido conto, porém é um recurso presente na narrativa machadiana Memórias Pós-tumas de Brás Cubas. Esta também narrada por um defunto, diferencia-se de “Mariazinha”, visto que, no conto de Rubião, o

Page 32: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 63

narrador-personagem constata o recuo de vinte anos. Já em Machado, tem-se uma história estruturada “a partir da qual ele volta ao passado próximo (como morreu) e ao passado mais remoto, sua infância e juventude” (GANCHO, 1991: 22-23), em uma rememoração dos fatos que narra e não em sua vivên-cia e descoberta.

Os vinte anos regressados, no conto “Mariazinha”, evi-denciam um narrador consciente de sua “volta à vida”, pois narra a revolta das demais personagens com relação a “as ruas que ficaram sem calçamento” (RUBIÃO, 2005: 42) e seu en-contro com Mariazinha. Esse tempo descrito foge ao ordinário, porque

A relação entre o começo e o fim, chamado intervalo, de de-terminado movimento, o cômputo de sua duração, bem como a passagem de um intervalo a outro numa ordem que liga o anterior ao posterior, chamada de sucessão ― todas essas no-ções que o uso do relógio suscita de maneira espontânea cor-roboram a compreensão prévia do tempo, por força de nossa atividade prática, que nos obriga a lidar com ele antes de con-ceituá-lo. (NUNES, 2000: 17)

Nota-se, assim, um conto norteado pela volubilidade do tempo, em que as ações das personagens se passam em perío-dos desconexos, uma vez que são o fomento para as ocorrên-cias incomuns. O tempo na narrativa corrobora para relações incoerentes entre as personagens, que pagam por crimes ainda não cometidos. É o que se observa na contestação de Zaragota:

– Enforcado é que não! – Estava certo se o matassem antes, quando seduzira Mariazinha! Agora não. Vinte anos tinham sido recuados. Não era mais noivo de mulher alguma, nem pertencia à diocese do eminente bispo. (RUBIÃO, 2005: 43)

É evidente a problemática exposta na diegese, pois um homem não pode simplesmente ser morto por um crime que a-inda não cometera, afinal, os vinte anos recuados fizeram-no inocente do ato de seduzi-la, já que “Mariazinha recuperou a sua virgindade” (RUBIÃO, 2005: 42).

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 64

Observa-se que o conto gira em torno dos eventos insó-litos, na acepção de “contrário ao costume, às regras; inabitual” (FERREIRA, 1985: 270), pois é narrado em um tempo incons-tante, de idas e vindas, por um defunto que participa das ações e demonstra sua apatia frente aos acontecimentos.

O indício de elemento não costumeiro na narrativa se dá logo no primeiro parágrafo, já que é incomum um homem sa-ber que um nome está sendo pronunciado, reconhecê-lo, mas não conseguir ouvir um “Silva” (RUBIÃO, 2005: 41), um so-brenome, isto é, um homem narra uma voz que declama “– Jo-sefino Maria Albuquerque Pereira da Silva!” (RUBIÃO, 2005: 41) e afirma que as palavras entram em seu “ouvido como go-tas de óleo” (RUBIÃO, 2005: 41).

Dessa forma, o leitor pergunta-se acerca da mutação de palavras em gotas de óleo, visto que o narrador-personagem parece não compreender o porquê de seu sobrenome não poder ser ouvido por si mesmo. Sendo assim, essa personagem termi-na por afirmar: “Devia ser a bala que não permitia entrar o Sil-va” (RUBIÃO, 2005: 42). Tal afirmação remete o leitor ao sui-cídio cometido pela personagem que narra a estória.

O “Silva”, deixado do lado de fora dos ouvidos e não transmutado em gotas de óleo pelo narrador, ficara perdido no ar, pois não se modificara em um óleo que “pesava” (RUBIÃO, 2005: 41). Ele é então algo incomum, uma vez que um nome de família pôde simplesmente desmanchar-se no ar, permane-cendo como diz o próprio narrador-personagem “no vestíbulo” (RUBIÃO, 2005: 41), ou seja, impedido de adentrar a consci-ência, ou apenas os ouvidos.

não só a sociedade moderna é um cárcere, como as pessoas que aí vivem foram moldadas por suas barras; somos seres sem espírito, sem coração, sem identidade sexual ou pessoal – quase podíamos dizer: sem ser. (BERMAN, 1987: 27)

A personagem Josefino, que narra os eventos, anula-se em toda a narrativa, pois não consegue nem sequer ouvir,

Page 33: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 65

mesmo tendo a percepção de um defunto-vivo, o qual fala e observa. Mostra-se enquanto um ser incapaz de governar sua própria vida, por esse motivo procura o caminho derradeiro e acaba por ser impotente frente aos diversos elementos incom-preensíveis em seu cotidiano. Josefino, carrasco, segundo pre-tendente de Mariazinha, passa a não ser capaz de entender um nome de família, o qual poderia lhe dar autonomia dentro da sociedade, na qual estava inserido.

É importante ressaltar a ausência de cronologia do tem-po, visto que no conto claramente perde-se a formação de

uma seqüência sem lacuna, contínua e infinita, percorrida tan-to para frente, na direção do futuro, quanto para trás, na dire-ção do passado, a sua armação fixa e permanente abriga ex-pressões temporais específicas e autônomas da cultura, que lhe interrompem, periodicamente, a vigência geral. (NUNES, 2000: 20)

Isso é demarcado no alargamento de um mês para que coubes-sem vinte anos, os quais são vividos intensamente pelos mora-dores da supracitada vila.

Rubião construiu uma personagem feminina lasciva e sedutora, que guia os homens de que se aproxima pelo caminho da perdição e do desespero. Essa mulher, a qual dá nome ao conto, pode ser denominada fatal, pois “não é apenas uma mu-lher que mata. Ela se confunde também com a megera, versão (...) daquela que estraga a vida de um homem” (DOTTIN-ORSINI, 1996: 15). Essa mulher é mais um elemento que compõe os insólitos da narrativa, visto que ela se alimenta da fraqueza dos homens, os seduz e mata, uma vez que nada faz para salvá-los, apesar de conhecer o fim deles, enforcamento.

Primeiramente, Mariazinha “acaba” com a vida de Za-ragota, já que ele é enforcado, “na torre da igreja” (RUBIÃO, 2005: 43), por tê-la seduzido, quando na verdade por causa do retorno do tempo nada fizera, reiterando o dito acima. Depois é a vez de Josefino, nova conquista, o qual é solicitado pelo bis-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 66

po “com humildade (eclesiástica): toque os sinos e case com Mariazinha” (RUBIÃO, 2005: 43), porém tem-se na narrativa a denúncia:

Na véspera, ao contrário do que ardilosamente tinham anun-ciado, eu fora seduzido por Mariazinha. Ao regressar à vila, não tinha mais dúvidas de que minha noi-va era uma depravada. Zaragota nenhuma culpa tivera. (RU-BIÃO, 2005: 45)

Constata-se, assim, o caráter transgressor da figura fe-minina, que ia, pelo caminho, enchendo-o de flores e beijos (Cf: RUBIÃO, 2005: 44), contudo, virgem e com “novos quin-ze anos” (RUBIÃO, 2005: 44), também insólito, destrói a vida do narrador-personagem. Porque esse, extraordinariamente a-pático, não toma atitude frente à sedução a que fora exposto, casar-se ou contar como se deram os fatos. Ele decidiu por sui-cidar-se, uma vez que insatisfeito com o que acontecerá, tomou a decisão de não casar. Desejava sufocar-se no álcool (Cf. RU-BIÃO, 2005: 45).

A discussão feita nos parágrafos acima remete a infor-mações inabituais, já que não é comum um homem ser seduzi-do e nada fazer para proteger sua reputação e delatar os ultrajes de uma mulher, a qual aparenta uma conduta leviana, que não é denunciada por nenhuma personagem, a não ser pelas que so-freram em suas mãos.

Comprova-se na narrativa o ardil que fora utilizado pelo padre para convencer Josefino a tornar-se o carrasco de Zara-gota. Isso através de uma ordem: “– Josefino Maria Albuquer-que Pereira da Silva, enforque o homem!” (RUBIÃO, 2005: 43). Além disso, o aceno com o possível casamento, que logo transformou Zaragota em um membro imprestável da socieda-de:

Como não houvesse quem discordasse, enforcou-se o canalha do Zaragota e deu-se início aos preparativos do meu casamen-to. Pensou-se primeiro no vestido de noiva. Que não podia ser

Page 34: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 67

comprido, de cauda, fomos todos acordes, sem que alguém ousasse mencionar a razão: dom Delfim jamais ameaçava du-as vezes. (Omitiu-se, portanto, qualquer referência à poeira das ruas.). (RUBIÃO, 2005: 44)

Há então na narrativa uma denuncia acerca da conduta incomum de um padre, que foi nomeado bispo após o retroces-so de vinte anos no tempo, algo extraordinário, visto que ele toma atitudes por vaidade e não por sua fé e ainda ameaça as pessoas. Sendo assim, não deveria ser nomeado nem mesmo ser respeitado, já que prova imaturidade e soberba, crimes con-tra a fé e a convivência com seus fieis.

Outro elemento insólito, presente no conto, é o som dos sinos que tocam em função do estado de espírito do supracitado bispo – “Agora os sinos tinham que ficar alegres, esquecer os defuntos. Porém a tristeza sufocava, mudava os sons. Demiti-ram o sineiro” (RUBIÃO, 2005: 42) – ratificando o desprezo do novo bispo pela posição de guia espiritual das pessoas, dia-logando com Berman tem-se uma assertiva que corrobora essa postura desregrada “tudo o que é sagrado é profanado (...) a au-ra de santidade subitamente se ausenta e (...) não podemos compreender a nós mesmos sem nós confrontarmos com essa ausência” (BERMAN, 1987: 88).

O Bispo Delfim, em geral, só tinha voz de comando pa-ra coibir as atitudes dos pertencentes a sua diocese, com os si-nos como extensão de seu corpo, ainda que para proceder-se um homicídio.

Mariazinha se casaria, o seu sedutor seria enforcado na torre da igreja. Os sinos concordaram, bimbalharam alegremente e dom Del-fim ficou escarlate, perdeu a monotonia. Ordenou que se ex-pulsassem as lâminas de aço, os instrumentos de metal. (RU-BIÃO, 2005: 43)

Dom Delfim decidiu-se por enforcar um homem pen-sando apenas nas comemorações de sua elevação a bispo, ou seja, por vaidade, pois temia que algum problema proveniente

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 68

do ocorrido atrapalhasse sua própria vida. De acordo com o narrador ele realmente almejava “dar ao povo um pouco mais de alegria.” (RUBIÃO, 2005: 43). Contudo, que tipo de alegria provém da morte de um ser humano?

Pensa-se na ausência de valores da sociedade contem-porânea. O povo comete um assassinato em praça pública e não há ninguém para confrontar um enforcamento com direito até mesmo a “carrasco” e “juiz”. Este fato tem-se tornado corri-queiro atualmente, uma vez que os homicídios não são vistos como hediondos, quando essa deveria ser a real noção das coi-sas. Afinal, consoante Berman:

homens e mulheres modernos podem muito bem ser levados ao nada, carentes de qualquer sentimento de respeito que os detenha; livres de medos e temores, estão livres para atropelar qualquer um em seu caminho, se os interesses imediatos as-sim o determinarem. (BERMAN, 1987: 112)

Os eventos infreqüentes tratados até aqui ocorrem em meio à instabilidade de um tempo apresentado por Rubião, que couberam apenas em “Maio – mês feliz. (...) deu pinotes, esti-cou-se todo. Dentro dele couberam os anos passados” (RUBI-ÃO, 2005: 42). Ressalta-se nessa narrativa a marcação, feita por Rubião, do tempo, o qual aparenta acontecer simultanea-mente, pois as conseqüências dos episódios vividos em 1923 ou em 1943 se dão com normalidade nos vinte anos que tei-mam em ir e vir.

Um dos principais elementos decorrentes desse tempo insólito seria realmente a morte do narrador personagem que se suicida em 1943, recebe extrema unção e retorna a vida com menos vinte anos, voltando novamente a 1943, tendo puxado o gatilho para ter seu fim derradeiro, narra seu próprio enterro e todos os problemas decorrentes do tempo e de sua morte. Exis-te, portanto, uma naturalidade em um período de vinte anos que se movimenta em apenas um mês, já que “o verdadeiro univer-so é concebido como acessível somente através da transcen-

Page 35: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 69

dência dos corpos, do espaço e do tempo” (BERMAN, 1987: 104).

Sendo assim, há o exame de uma época por meio da transcendência de tudo, visto que o narrador-personagem está morto, o espaço, que “é, por definição, o lugar onde se passa a ação numa narrativa” (GANCHO, 1991: 23), retrocedeu a pon-to das ruas serem descritas “sem calçamento” (RUBIÃO, 2005: 42). No entanto, o conto nos remete a um narrador que conta cenas desse espaço, que se modifica em decorrência da falta de solidez do tempo, assim como sua vida, aparentando uma vi-vência empírica.

Todavia, pensar-se-á na pouca probabilidade de realiza-ção física, e até sexual, de um morto, pois ainda que fossem re-trocedidos cem anos, o narrador-personagem teria passado pela sensação de post mortem, apesar de vinte anos mais moço lhe restaria à lembrança das “frases latinas” (RUBIÃO, 2005: 41). Reiterando tal efeito, tem-se, portanto, uma personagem que se decide pelo fim derradeiro como fuga para uma situação in-conveniente. Opta por continuar a viver em um plano paralelo, mas ainda intradiegético, já que, mesmo morto, narra com pre-cisão os eventos delineados no conto “ao meu enterro, Zarago-ta, amigo fiel, comparecia” (RUBIÃO, 2005: 46).

Em toda a narrativa observa-se um emaranhado de ir-rupções insólitas com sua culminância em filhos que são “reco-lhidos aos ventres maternos” (RUBIÃO, 2005: 42), em 1923, e depois começam “a se desprender – sem que fosse necessária a intervenção de parteiras – dos ventres das mulheres” (RUBI-ÃO, 2005: 46). Isso já em 1943, voltando confortavelmente ao ponto de partida. Os moradores nada objetam a respeito do o-corrido, fato corriqueiro na cidade, apenas “não se conformam” (Cf. RUBIÃO, 2005: 42) com ausência dos filhos recolhidos ao ventre, mas devido ao seu desprendimento em 1943 não há re-lato, constatando a estranheza, sobre o entra e sai dos descen-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 70

dentes ao ventre materno. A narração das diversas ocorrências insólitas corrobora

a dubiedade das sensações das personagens frente a esses even-tos que fogem ao esperado, ao ordinário, ao tido como lógico pelo senso-comum. Os membros reais do povoado intradiegéti-co não discutem a problemática do tempo constatada pelo leitor extradiegético, o qual sente a incoerência das mudanças inespe-radas, naturalmente incorporadas pelos participantes da ação ficcional.

Tais personagens, assim como o narrador-personagem, não discutem os vinte anos que retrocedem e os que se vão ao intervalo de um mês, apenas o constatam com argumentos a-cerca da inconveniência de ruas empoeiradas ou de uma morte sem fomento, mas ainda assim vil e cruel. A vida continua no decorrer de maio, mês das noivas, em que a determinação em casar Mariazinha destrói vidas, pois, enquanto um ser desejado ela seduz com sua virgindade recuperada, além de beijos e pas-seios fora da vila.

Josefino não se incomoda com o evento insólito do re-torno no tempo, já que, apesar de aproveitar ser vinte anos mais moço, não liga para sua nova chance de vida. Puxa novamente o gatilho da arma sem dar valor aos momentos que recuperará de sua vida. Foram úteis apenas para desfrutar da companhia de Mariazinha e dos preparativos para seu casamento. As de-mais personagens, como o padre, gostam dos acontecimentos provenientes do retorno do tempo, uma vez que conferiu a ele a elevação a bispo, cargo improvável se este corresse normal-mente.

A narrativa é permeada por acontecimentos que fogem ao ordinário, natural, esperado, decorrentes, principalmente, da ausência de constância do tempo que se movimenta, garantindo ao espaço, em que se estrutura o conto, mudanças pertinentes ao estranhamento dos mesmos, e até mantenedor de certo des-

Page 36: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 71

conforto, quanto aos eventos resultantes desse desequilíbrio. Entretanto, apesar da constatação desta ocorrência insólita nin-guém realmente demonstra uma tentativa de combate frente a essa problemática, os membros da vila simplesmente incorpo-ram tal evento ao seu cotidiano.

Dessa forma, as incoerências provenientes da questão do tempo estimulam os moradores a aceitarem os eventos im-pertinentes os tornando algo corriqueiro, comum, parte do coti-diano, pois, apesar de saberem do retrocesso do tempo não re-clamam e acabam por aproveitá-lo. Até mesmo um homicídio fora incorporado como uma ocorrência trivial, banal, a vida das personagens, já que essas nada fizeram para contestar.

Enfim, os eventos insólitos analisados na narrativa fo-gem ao racional, sólido, ordinário, ou seja, ao esperado e lógico do senso comum, porém no conto são congregados sem incon-venientes ao cotidiano dos moradores de uma vila. Isso de for-ma comum, habitual, corriqueira, sem questionamento, final-mente, os acontecimentos insólitos são banalizadas. Referências Bibliográficas: ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Clássicos da Literatura. Espanha, Barcelona: Sol90, 2004.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das letras, 1987.

DOTTIN-ORSINI, Mireille. A mulher que eles chamavam fa-tal. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1991.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 72

NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. Série Fundamen-tos. São Paulo: Ática, 2000.

RUBIÃO, Murilo. Mariazinha. In: Contos Reunidos. São Pau-lo: Ática, 2005, p. 41-46.

Sites da Internet:

http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/analepse.htm , 24/07/07 14:03

http://pt.wikipedia.org/wiki/Analepse , 24/07/07 14:04

http://www.direitonet.com.br/dicionario_latim/x/64/00/640/ , 28/07/07 23:05

http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx , 28/07/07 11:19

Page 37: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 73

A MANIFESTAÇÃO DO INSÓLITO NAS NARRATIVAS FICCIONAIS

DE MURILO RUBIÃO: “BÁRBARA” E “BRUMA”

(“A ESTRELA VERMELHA”) Luciana Policarpo dos Santos - UERJ

Uma das características que marca a literatura de Muri-

lo Rubião é a presença de eventos insólitos em suas narrativas. A expressão “eventos insólitos na literatura” pode ter

diversas significações. A crítica tem apontado esses eventos que aqui se chamam de insólitos ora como extraordinários – para além da ordem, ora como sobrenaturais – para além do na-tural, e eles são marcas próprias de gêneros literários de longa tradição como o Fantástico, o Maravilhoso, o Realismo Mara-vilhoso, o Sobrenatural, o Estranho, o Absurdo.

No Dicionário Aurélio, encontra-se: “insólito adj. 1. Contrário ao costume, às regras; inabitual. 2. Incomum” (FERREIRA, 2001: 392). Insólito pode ainda ser entendido como o que é desusado; estranho; algo que surpreende ou frus-tra a expectativa; que rompe com a ordem vigente; subverte o natural; que se contrapõe ao senso comum.

As narrativas rubianas se caracterizam por terem even-tos insólitos como marca constitutiva do gênero discursivo. Em uma dessas, Bárbara, há pelo menos dois eventos insólitos marcantes. O primeiro vê-se logo no início: “Bárbara gostava de pedir. Pedia e engordava” (RUBIÃO, 2005: 33), que é o en-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 74

gordar de Bárbara a cada pedido realizado. Ao longo de toda a narrativa vêem-se muitos exemplos dessa manifestação:

Pediu o oceano. Não fiz nenhuma objeção e embarquei no mesmo dia, inici-ando longa viagem ao litoral. (...) No regresso, quis desculpar meu procedimento, porém ela não me prestou atenção. Sofregamente, tomo-me o vidro das mãos e ficou a olhar, maravilhada, o líquido que ele continha. Não mais o largou. Dormia com a garrafinha entre os braços e, quando acordada, colocava-a contra a luz, provava um pouco da água. Entrementes engordava. (RUBIÃO, 2005: 35)

Nessa última passagem, o marido de Bárbara vai ao li-toral para buscar o oceano, mas, ao chegar lá, vê que ele é e-norme e tem receio de levá-lo, pois tem medo de que ela en-gorde na proporção do tamanho do pedido. Por isso, leva ape-nas uma garrafa contendo água. Tanto o pedido como a posição do narrador são insólitos, uma vez que isso seria sobrenatural: alguém tirar o mar do seu local próprio.

Quando Bárbara se cansou da água do mar, pediu-me um ba-obá, plantado no terreno ao lado do nosso. (..) Feliz e saltitante, lembrando uma colegial, Bárbara passava as horas passeando sobre o tronco grosso. Nele também dese-nhava figuras e escrevia nomes. (...) Estava terrivelmente gorda. (RUBIÃO, 2005: 36)

Os trechos acima descrevem um outro pedido de Bárbara e a continuação da manifestação do insólito nela. É ela quem expe-riencia o insólito.

O outro evento insólito é o filho que ela espera – sua própria gravidez pode ser considerada como inabitual: “crescia assustadoramente o seu ventre” uma vez que o marido ficou um tempo sem realizar pedidos, e ela estava emagrecendo na falta destes – pois ao invés de nascer um ser parecido com mãe: gordo e “que poderia ainda herdar da mãe a obsessão de pedir

Page 38: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 75

as coisas” (RUBIÃO,2005: 35), nasce “um ser raquítico e feio, pesando um quilo... miúdo e disforme” (RUBIÃO, 2005: 35), rompendo com a expectativa do leitor.

O menino, mesmo com o passar dos anos, continuava com o mesmo tamanho, e sendo carregado nos braços (Cf. RUBIÃO, 2005: 37). Bárbara o rejeitou, não o encomendara, não foi um pedido dela. Só existem duas passagens que dão in-formações sobre o menino, que, aliás, não é nomeado.

O narrador homodiégetico é quem conta a história, mas esta não é sua, é de Bárbara. Esse narrador sabe que algo so-brenatural acontece, no entanto, não reconhece o fenômeno; apenas o aceita. Quem reconhece os eventos como algo que fo-ge da expectativa são os leitores reais. O papel do narrador em “Bárbara” pode ser entendido como o de denunciar o insólito, mas não questioná-lo como sendo algo real ou imaginário, co-mo é observado no Fantástico (Cf TODOROV, 2004).

Diferentemente de “Bárbara”, o insólito em “Bruma” (“A Estrela Vermelha”) não aparece logo no início da história. O evento insólito sobre o que se estrutura a narrativa é o fato de Og ver astros coloridos de dia: “Na hora do almoço, Og chegava correndo, ansioso por contar-me dos novos astros que vira durante o passeio” (RUBIÃO, 205: 119).

Nessa narrativa, até o nome das personagens são insóli-tos: Og, irmão de Godofredo, narrador da história; dr. Sacavém e Bruma – que significa nevoeiro, neblina, cerração. Ela tam-bém está ligada aos elementos insólitos, porque sempre está ao lado de Og na hora das visões dos astros coloridos.

Um dos temas da narrativa é Godofredo morrer de ciú-mes de Bruma com Og; os dois que vão juntos ver os astros co-loridos durante as manhãs, e isso transtorna Godofredo. Este ama Bruma, mas quer afastá-la de Og, uma parte por ciúme e outra por imaginar que seja ela quem “enfiava aquelas tolices na cabeça” de Og.

Ao certificar-me, mais tarde, de que há muito uma paixão me

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 76

rondava, já me encontrava tolhido por sentimentos contraditó-rios, e nenhum impulso generoso poderia levar-me a confes-sar um amor que se turvara ao contato do rancor. Em vez de atrair Bruma. Conforme aconselhava minha mãe, agarrei-me à idéia de separá-los. (RUBIÃO, 2005: 120-121)

Outra manifestação que foge à expectativa é a atitude do psiquiatra, pois quando Godofredo, Og e Bruma vão ao con-sultório do dr. Sacavém, o médico fica maravilhado com as his-tórias narradas por Og, e se aborrece quando Godofredo inter-rompe o irmão para questionar o seu método:

Contei-lhe as manias de Og, suas visões, o motivo da consul-ta. Não o impressionei nem tampouco despertei o interesse dele para as minhas informações. Limitou-se a pedir a meu irmão que falasse dos seus astros prediletos. (...) Quando chegou a vez do astro policrômico, o psiquiatra de-monstrou sádica curiosidade pela narração, numa atitude que julguei indecorosa para um profissional. Parecia mais um as-trônomo inexperiente do que um médico. (...) A minha intervenção lhe (ao dr. Sacavém) desagradou. (RU-BIÃO, 2005: 122-123)

Como em “Bárbara”, este conto está repleto de aconte-cimentos insólitos. Vê-se o reconhecimento do insólito, sua a-ceitação. A mãe e Og aceitam e banalizam o insólito: “Porque você não se aproxima dela, em vez de martirizar Og, que só cuida dos astros?” (RUBIÃO, 2005: 120).

O narrador configura-se como autodiegético, ele está narrando uma experiência vivida por si mesmo, denuncia, re-conhece e não aceita o insólito, sendo oposto à mãe e ao irmão.

– Como são lindos pela manha! A violência das cores, no primeiro momento, assusta-nos. Depois, as tonalidades se amaciam, as nossas pupilas absorvem os raios... – Raios! Só o médico acabará com essa loucura! (...) ... Mas, constantemente, após os atritos, procurava mamãe e tentava convencê-la da necessidade de levar meu irmão a um psiquiatra.

Page 39: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 77

Ela ladeava o assunto, vencida pelo estranho carinho que de-dicava ao filho mais moço. (RUBIÃO, 2005: 120)

Após mais uma visão de Og, Godofredo chama a mãe e pressiona-a para levar o filho ao médico. Ela consente, com uma ressalva: “– Só consulta, nada de hospício!” (RUBIÃO, 2005: 121).

Bruma, Og e Godofredo vão juntos ao médico. Godo-fredo irrita-se com a atitude do médico perante o caso, faz al-gumas perguntas, este responde dizendo que mais tarde cuida-ria do caso dele (cf. RUBIÃO, 2005: 122-123).

Em seguida, Dr. Sacavém pergunta a Bruma se aquele comportamento era normal em Godofredo; a resposta foi afir-mativa. O médico prende-o pelos braços e o examina. Godo-fredo consegue se libertar e sai do consultório, deixando Bru-ma.

Tempos depois, quando volta à cidade à procura de Bruma – sente saudades dela - e do irmão que havia deixado no consultório do psiquiatra, não encontra nem edifício, nem mé-dico, nem Bruma, nem o irmão. Desespera-se e senta-se na grama, no lote vazio, e, ao se levantar, vê uma estrela vermelha que se desdobra em todas cores. Enxerga, então, o elemento in-sólito que Og via.

As duas narrativas rubianas aqui apresentadas se en-quadram em um novo gênero ainda em estudo, denominado provisoriamente Insólito Banalizado, que tem como caracterís-ticas: 1) a manifestação do elemento insólito; 2) sua aceitação; 3) sua apropriação ou desprezo; 4) a denúncia desse evento; 5) o possível reconhecimento do narrador e/ou das personagens; 6) o sentimento de angústia como efeito desse gênero. Muitas vezes, esse insólito incomoda; outras, fascina.

Em “Bárbara”, o insólito incomoda o narrador; em “Bruma”, no início, também, porém, no final, observa-se a per-sonagem-narrador vendo o insólito e, quem sabe, fascinando-se ao enxergar tão linda estrela.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 78

Referências Bibliográficas: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI: O mini dicionário da língua portuguesa. 4 ed. Rio de Ja-neiro, 2001.

RUBIÃO, Murilo, “Bárbara”. In: Contos reunidos. 2 ed. São Paulo: Ática, 2005, p. 33-39.

RUBIÃO, Murilo, “Bruma” (“A Estrela Vermelha”). In: Con-tos reunidos. 2 ed. São Paulo: Ática, 2005, p. 119-124.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

Page 40: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 79

A PÓS-UTOPIA INSÓLITA: UM OLHAR SOBRE A NARRATIVA

DE MURILO RUBIÃO

Marco Medeiros - UERJ

Não somos apenas o que existe. Há camadas que guerreiam. (NEJAR, 2003: 162)

Referindo-se ao momento posterior à década de 60 do

século XX, momento no qual a última tentativa vanguardista na poesia brasileira, o Concretismo, chegava ao fim, Haroldo de Campos (1997) afirma que os tempos que se iniciavam então seriam definidos com mais precisão como um momento pós-utópico, no lugar da noção mais usual de tempos pós-modernos. Apesar de referir-se, em seu texto, especificamente à poesia, o conceito de Campos conforma-se com propriedade também às produções em prosa.

Tal noção, concordando com o que afirma Carneiro (2005), se ajusta melhor ao panorama atual, pois desfaz algu-mas ambigüidades trazidas pelo termo pós-moderno, como, por exemplo, a discussão acerca do prefixo pós que, para alguns teóricos, indicaria uma quebra radical com as prerrogativas da modernidade, enquanto, para outros, entre eles Jean-François Lyotard (1979), o afixo nortearia uma redefinição de propostas, não uma ruptura.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 80

Desse modo, Campos pensa a modernidade a partir de uma expressão de Ernst Bloch: princípio-esperança, uma espé-cie de “esperança programática que permite entrever no futuro a realização adiada do presente” (CAMPOS, 1997: 265). As-sim, nessa perspectiva, a poesia das vanguardas, com seus ide-ais de progresso, passaria a ocupar o lugar social do jornal, em consonância com a utopia de Maiakovski, cuja “comuna ideal” brotaria não do decréscimo facilitador das inovações poéticas, mas do engrandecimento cultural do povo.

Sendo assim, os projetos utópicos, baseados no princí-pio-esperança, seriam construções coletivas, fundadas no traba-lho de um grupo que, abrindo mão da singularidade individual, buscaria, na realização de um projeto comum, a implantação de um mundo renovado.Como exemplo, podemos pensar a atua-ção dos autores do Romantismo brasileiro, unidos por um pro-jeto coletivo de plasmar a identidade nacional e renovar os ru-mos da arte.

A contemporaneidade, no entanto, depara-se com a cri-se total das utopias e das ideologias, conseqüentemente, crise das vanguardas. Se os projetos utópicos tinham no princípio-esperança uma orientação que apontava para o futuro, as pós-utopias o trocam pelo “príncipio-realidade”, preso ao presente. O foco no presente faz com que a diferença entre utopias e pós-utopias se defina através do termo deslocamento:

Deslocamento das ideologias estabelecidas – esquerda e direi-ta – para uma postura múltipla, multifacetada, herança talvez dos movimentos de contracultura. Deslocamento dos grandes projetos para os projetos particulares, formulados numa pers-pectiva menos pretensiosa, em que o posto de missionário, porta-voz do novo, é preenchido pelo cidadão comum, preo-cupado menos com rupturas radicais do que com a convivên-cia possível com o próprio presente. (CARNEIRO, 2005: 18-19)

E, nessa paisagem deslocada, o texto literário passa a ser, também, ponto de estrangulamento daquilo que se conside-

Page 41: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 81

rava “estabelecido”. A escrita passa a ser uma escrita indagado-ra, mais preocupada com perguntas que com respostas. Alijada de uma postura totalizadora, a produção dos escritores pós-utópicos se sustenta enquanto território opaco, que propõe a in-definição – das formas aos conteúdos – como ponto primaz pa-ra a criação.

Surgem, então, textos que não se prestam a classifica-ções radicalmente conclusivas. O cruzamento com outras lin-guagens e outras mídias intimida os gêneros na concepção mais tradicional do termo. Livre do impulso “novidadeiro” das van-guardas, a reescritura ganha espaço e exaure o conceito de ori-ginalidade. O interdiscurso e o intertexto tramam uma rede na qual o leitor é levado a experimentar diferentes níveis de leitu-ra, “superficial ou mais profunda, de acordo com a sua intimi-dade com outros textos” (MEDEIROS, 2007: no prelo).

A prosa de Murilo Rubião, criativa e única, se nos apre-senta como texto rico para o debate acerca do fazer literário em tempos pós-utópicos. Destarte, propomos, então, que lancemos alguns olhares sobre ela, baseando-nos narrativas constantes de O pirotécnico Zacarias (1981). De pirotecnias a dragões: o texto rubiano e as pós-utopias

Deixemos que o próprio Murilo Rubião nos aproxime de sua obra. Em entrevista constante da edição na qual basea-mos este ensaio, afirma:

Usando a ambigüidade como meio ficcional, procuro frag-mentar minhas histórias ao máximo, para dar ao leitor a certe-za de que elas prosseguirão indefinidamente, numa indestrutí-vel repetição cíclica. (RUBIÃO, 1981: 4)

A fala do autor assinala dois pontos fulcrais das pós-utopias: a ambigüidade e a fragmentação. Frente à escrita de Rubião, somos confrontados todo o tempo com esses dois sig-nos. Aliás, a ambigüidade aparece em sua obra já na dificulda-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 82

de com a qual o crítico se depara em defini-la em termos de gêneros textuais.

Conto ou crônica? Os textos oscilam entre esses dois gêneros. Por um lado, é inegável a relação entre extensão da narrativa e efeito causado no leitor, a chamada “unidade de e-feito”, delineada por Poe (1842) e apresentada como caracterís-tica essencial dos contos, além, é claro, da densidade do contis-ta que “mergulha de ponta-cabeça na construção do persona-gem, do tempo, do espaço e da atmosfera” (SÁ, 2001: 9). Por outro, as estratégias das crônicas também dão forma aos textos de Rubião. Lá estão uma série de características que Antonio Candido, em seu “A vida ao rés-do-chão” (1981), elenca como marcas desse tipo de texto: a linguagem mais próxima do colo-quial, o lirismo reflexivo, a simplicidade, a brevidade e a graça.

Além dessa dificuldade de classificação, um outro desa-fio se avulta quando discutimos Murilo Rubião. Se as pós-utopias desafiam os conceitos fechados, os textos de nosso au-tor corroboram essa questão ao afrontar um dos conceitos mais caros aos projetos utópicos – a unicidade.

Reescritura é um dos emblemas maiores de sua prosa. Obra exígua, seus textos brotam em reelaborações, o mesmo texto sendo reescrito e aparecendo em livros diferentes. É co-mo se o autor lançasse renovados olhares críticos sobre sua produção, obrigando-a a metamorfosear-se – tal qual suas per-sonagens, sempre em mutação – em novos textos.No entanto, esse movimento é uma via de mão-dupla: por um lado, poten-cializa a obra; por outro, a limita. Um de seus analistas mais acurados aponta para isso:

O método de composição de Murilo parece envolver um pa-radoxo: estende o texto para restringi-lo; amplia-o para con-centrá-lo. Assim, seu discurso narrativo muda de forma te-nazmente, sem inventar nada de substancialmente novo, com relação ao ponto de partida. No extremo, a esterilidade amea-ça roer suas modificações. (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1981: 6)

Page 42: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 83

Aliás, a imagem de uma via de mão-dupla no texto rei-tera seu olhar pós-utópico. Nesses tempos, as utopias, vez ou outra, retornam. No entanto, esse retorno se dá pela rota da crí-tica, não da esperança. O “princípio-realidade” faz com que as utopias sejam retomadas não mais voltadas “para o infinito ra-diante do futuro” (SEVCENKO, 1995: 50), mas como “pasti-che, simulação, impostura: um gesto repetitivo, anódino e frouxo” (SEVCENKO, 1995: 51).

Este jogo híbrido de utopias e suas negações resulta em criação interessantíssima quando nos debruçamos nas epígrafes que abrem as narrativas. Trechos da Bíblia, logo, recorrências de uma perspectiva utópica, as epígrafes transformam-se em espaço fértil em tensões.

“A flor de vidro”, por exemplo, abre com a seguinte e-pígrafe, retirada o livro de Zacarias, capítulo 14, versículo 7: “E haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz”. O texto, porém, propõe uma releitura irônica da epígrafe. O protagonista, Ero-nides, imerso em uma relação amorosa ambígua, misto de cari-nho e violência, fica cego ao fim do texto. Assim, os símbolos de claridade propostos pela epígrafe (dia, tarde, luz) são des-construídos pela cegueira da personagem.

Do mesmo modo, “A cidade” mantém uma relação des-construtora com sua epígrafe: “O trabalho dos insensatos afligi-rá aqueles que não sabem ir à cidade” (Eclesiastes 10, 15). Ca-riba, o protagonista, é preso ao chegar a uma cidade desconhe-cida, e fazer perguntas, sendo assim identificado como um su-posto criminoso que, segundo uma profecia, seria identificado por fazer perguntas. Assim, texto e epígrafe operam uma poie-sis singular, a partir da ampliação do sentido da referência bí-blica. Afinal, o texto nega a epígrafe – Cariba chegou à cidade e, mesmo assim, sofreu aflições – ou a referenda,lendo-se o “saber ir” não como um sintagma indicando localização, mas

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 84

modo, e assim, Cariba realmente não sabia ir à cidade – não fa-zendo perguntas?

Outro ponto que deve ser considerado ao se pensar no caráter híbrido da escrita de Murilo é a questão do narrador. Ao longo de O pirotécnico, o leitor é guiado por uma gama de nar-radores multifacetados, um concerto polifônico que expõe dife-rentes focos dos textos. De certa forma, os narradores rubianos retomam na pós-utopia o olhar utópico dos narradores prime-vos apontados por Walter Benjamim, narradores que imprimem suas marcas à narrativa, “como mão do oleiro na argila do va-so” (BENJAMIM, 1994: 205).

De um lado, temos narradores que atuam quase que como câmeras, heterodiegéticos, mantendo algo que, a primeira vista, aparenta ser um distanciamento daquilo que narram. É o caso do narrador de “O edifício”, que narra a construção de gi-gantesco prédio, espécie de Torre de Babel, pressago, fértil em desgraças. Por que afirmamos ser apenas aparente o distancia-mento do narrador? Ora, é justamente através dele e de sua voz distanciada, quase oracular, que o tom místico, profético do texto se dá. Assim, seu afastamento é um simulacro, faz parte do esquema do texto.

Do outro lado, aparecem os narradores em 1ª pessoa, maioria no livro. Fronteiriços, realçam o caráter fluído dos tempos pós-utópicos. Justamente por estarem em momentos-limites, suas vozes trazem a ambigüidade, instauram dúvidas.

O “conto” que dá nome ao livro, por exemplo, é narrado por um morto-vivo. Assim, seu relato se constrói nas malhas da hesitação, afinal, o protagonista e narrador encontra-se no es-paço entre a vida e a morte, cambiando entre o utópico e o pós-utópico. Aliás, o caráter desconstrutor do texto se acentua a partir de um jogo cromático às avessas operado por Zacarias. A escala de cores se altera e, em vez de ir-se do branco ao colori-do, faz-se o caminho inverso, como se o fim virasse início:

A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro

Page 43: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 85

espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compac-to, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor. Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou. (RUBIÃO, 1981: 14)

“Teleco, o coelhinho” reforça também a idéia da cam-biância, da falta de referenciais sólidos de sustentação. Através das metamorfoses de Teleco, transformando-se em diversos a-nimais, o texto se edifica na impermanência e na fragmentação. Aliás, o final da narrativa, o momento no qual Teleco consegue enfim transformar-se me humano, mas em uma criança morta, aponta, no texto, para a falência das tentativas de se solidificar identidades nos tempos contemporâneos ou, como teoriza Zygmunt Bauman (2001), na “modernidade líquida” na qual vivemos.

“Bárbara” também aponta para um outro aspecto pecu-liar das identidades pós-utópicas. Através da história da mulher insaciável, que está pedindo e que, quanto mais tem seus pedi-dos realizados, mais engorda, Rubião nos permite traçar um pa-ralelo interessante entre o texto literário e o homem pós-utópico.

Beatriz Sarlo (2006) corrobora a tese de que, na con-temporaneidade, a constituição das identidades seja marcada por aspectos de crise, deslocamento e fragmentação. Diferente de outros pensadores, no entanto, que apontam o vazio como marca da crise das identidades (ver, por exemplo, a obra teórica de Gilles Lipovetsky), Sarlo propõe uma alternativa ao vácuo - o mercado que, hoje, seria depositário de uma função simbólica para os indivíduos:

As identidades, dizem, se quebraram. Em seu lugar não ficou o vazio, mas o mercado. As ciências sociais descobrem que a cidadania também se pratica no mercado, e que as pessoas que não têm como realizar suas transações ali ficam, por as-sim dizer, fora do mundo. Fragmentos de subjetividade se ob-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 86

têm nesse cenário planetário, do qual ficam excluídos os mui-to pobres. O mercado unifica, seleciona e, além disso, produz a ilusão da diferença através dos sentidos extramercantis que abarcam os objetos adquiridos por meio do intercâmbio mer-cantil. O mercado é uma linguagem e todos nós procuramos falar algumas de suas línguas: nossos sonhos não têm muito jogo de cintura. Sonhamos com as coisas que estão no merca-do. (SARLO, 2006: 26)

O mercado, enquanto parâmetro simbólico de localiza-ção de identidades (ou de seus fragmentos), faria do indivíduo, nas palavras da autora, um “colecionador às avessas”, pois ele deixaria de ser um colecionador de objetos e se transformaria em um colecionador de atos de aquisição de objetos, já que sa-be que, no caráter transitório da modernidade tardia, os objetos perdem valor a partir do momento em que ele os obtêm.

Ora, se o mercado situa as identidades e os objetos são sua representação máxima, mas ao mesmo tempo possuem cu-nho efêmero, podemos entender as identidades contemporâneas como identidades transitórias. Afinal, “os objetos nos signifi-cam” (SARLO, 2006: 28), conferem algum sentido aos seres. No entanto, são voláteis: seu valor reside nas mudanças fre-qüentes que o mercado impõe o que, paradoxalmente, também retira o valor – eles não dão segurança ao indivíduo. Assim, os desejos de Bárbara delineiam a transitoriedade pós-utópica.

O penúltimo texto do livro, “O ex-mágico da Taberna Minhota”, se funda na desconstrução e nas metamorfoses. A-través do mágico que desejava livrar-se de seus poderes e, quando finalmente o consegue, se arrepende de “não ter criado todo um mundo mágico” (RUBIÃO, 1981: 57) reforça-se o pa-radoxo que se sustenta entre princípio-esperança e princípio-realidade.

O último, “Os dragões”, no qual tais criaturas mitológi-cas são humanizadas, para arrependimento posterior dos mora-dores da cidade que, outrora, as recebia, liga os tempos pós-utópicos ao autor das narrativas. Afinal, a obra de Murilo Ru-

Page 44: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 87

bião e a contemporaneidade são múltiplas, cheias de camadas e significações. Dois enigmas que, parafraseando Nicolau Seve-cenko (1995), não serão e nem merecem a violência de serem decifrados. Referências Bibliográficas: ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. O mágico desencantado ou as metamorfoses de Murilo. In: RUBIÃO, Murilo. O Pirotécnico Zacarias. 8 ed. São Paulo: Ática, 1981.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

BENJAMIM, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasili-ense, 1994.

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: CANDIDO, Antonio et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas trans-formações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

CAMPOS, Haroldo de. Poesia e Modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico. In: O arco-íris branco: ensaios de literatura e cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

CARNEIRO, Flávio. Das vanguardas ao pós-utópico: ficção brasileira no século XX. In: No país do presente: ficção brasi-leira no início do século 21. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

LIPOVETSKY,Gilles. A era do vazio: ensaio sobre o indivi-dualismo contemporâneo. Lisboa: Relógio d’Água, s.d.

LYOTARD, Jean-François. La Condition postmoderne. Paris:

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 88

Les Éditions de Minuit, 1979.

MEDEIROS, Marco. Identidades no texto, identidades do tex-to: o fantástico, o policial e os eus cambiantes. In: Anais do I Seminário dos alunos do Mestrado em Literatura Brasileira e do Doutorado em Literatura Comparada: Pesquisas e pesqui-sadores – perspectivas em diálogo. Rio de Janeiro: UERJ, 2007 (no prelo).

NEJAR, Carlos. Breve história do mundo. Rio de Janeiro: Edi-ouro, 2003.

POE, Edgar Allan. Review of Twice told tales. In: MAY, Charles E. (ed.). Short story theories. 2 ed. Ohio: Ohio Univer-sity Press, 1976.

RUBIÃO, Murilo. O Pirotécnico Zacarias. 8 ed. São Paulo: Ática, 1981.

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. 4 ed. Rio de Ja-neiro: Editora da UFRJ, 2006.

SEVCENKO, Nicolau. “O enigma pós-moderno”. In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de et al. Pós-Modernidade. 5 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995.

Page 45: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 89

A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS NAS NARRATIVAS RUBIANAS:

A RELAÇÃO DAS PERSONAGENS COM O INSÓLITO EM

“O PIROTÉCNICO ZACARIAS” E “OS DRAGÕES”

Marina Pozes Pereira Santos - UERJ

As narrativas rubianas constituem um tipo de narrativa

que se estrutura a partir de eventos insólitos, ou seja, do sobre-natural – algo que está para além do natural – e do extraordiná-rio – algo que está para além do ordinário –, e que, portanto, se contrapõem ao senso comum e rompem com a ordem vigente. As personagens rubianas presentes em “O Pirotécnico Zacari-as” e “Os Dragões” reagem de forma diferente entre si diante dos eventos insólitos para os quais elas apresentam versões particulares, as quais se sobrepõem uma a outra. Assim, diante das atitudes das personagens, há, no plano narrativo, negação de verdades possíveis e individualismos, termos caros à Pós-Modernidade.

Segundo Todorov, toda a narrativa é o movimento entre dois equilíbrios semelhantes, mas não idênticos. No início da narrativa, há sempre uma situação estável; a seguir, sobrevém algo que rompe esta estabilidade, que introduz um desequilí-brio; e, no fim, o equilíbrio é então restabelecido, mas não é mais o do início (Cf. TODOROV, 1975: 172). A narrativa ele-mentar comporta, portanto, dois tipos de episódios: os que des-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 90

crevem um estado de equilíbrio ou desequilíbrio, e os que des-crevem a passagem de um ao outro, ainda que o início (equilí-brio) ou o fim (restauração do equilíbrio) possam ser suprimi-dos (Cf. TODOROV, 1975: 172).

Nas narrativas que se estruturam a partir de eventos in-sólitos – marca própria de gêneros de longa tradição como o Maravilhoso, o Fantástico, o Estranho e o Realismo Maravilho-so ou, segundo Furtado, gêneros filiados à “literatura do sobre-natural” (Cf. FURTADO, 1980: 9) – cada ruptura da situação estável é seguida de uma intervenção insólita. Essa intervenção revela-se como elemento narrativo que melhor preenche a fun-ção: trazer uma modificação à situação precedente e romper o equilíbrio prévio estabelecido. Assim, a intervenção do insólito constitui sempre uma ruptura no sistema de regras preestabele-cidas na própria narrativa (Cf. TODOROV, 1975: 174).

Segundo Gancho, toda narrativa tem elementos funda-mentais, sem os quais não pode existir, tais elementos – enre-do, personagens, tempo, espaço e narrador – responderiam, respectivamente, às seguintes questões: O que aconteceu? Quem viveu os fatos? Quando? Onde? e Quem conta os fatos? Sem os fatos não há história, quem vive os fatos são as perso-nagens, num determinado tempo e lugar, e é o narrador quem caracteriza, conta e organiza os fatos da história (Cf. GANCHO, 1993: 5-9).

Para organizar os fatos no enredo não basta a apresenta-ção do começo, meio e fim da narrativa; é preciso a presença de um elemento estruturador: o conflito – componente que dá vida e movimento à história narrada –, criando uma tensão a partir da qual os fatos da história organizam-se ou estruturam-se (Cf. GANCHO, 1993: 10-11). Nas narrativas rubianas, os eventos insólitos assumem a função de conflito ao provocar o desequilíbrio de uma situação estável. Dessa forma, pode ser dizer, que os eventos insólitos estruturam as narrativas rubianas

Page 46: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 91

e, mais especificamente, “O Pirotécnico Zacarias” e “Os Dra-gões”, pois assim como é impossível imaginar Chapeuzinho Vermelho sem Lobo Mau, O Patinho Feio sem a feiúra, a Cin-derela sem a meia-noite, também é impossível imaginar “O Pi-rotécnico Zacarias” e “Os Dragões” sem eventos insólitos, sob pena de “morrer” ou “estagnar”, uma vez que lhes faltaria o e-lemento que dá vida e movimento à história narrada.

Em termos de estrutura, o conflito, via de regra, deter-mina as partes do enredo: 1) exposição: começo da história, na qual os fatos iniciais, as personagens, o tempo e o espaço são apresentados (uma espécie de preparação para instauração do conflito, que ocorrerá numa etapa posterior); 2) complicação: parte do enredo na qual o conflito se desenvolve; 3) clímax: momento de maior tensão, no qual o conflito chega ao seu pon-to máximo; e 4) desfecho ou conclusão: solução dos conflitos, momento em que é restabelecido o equilíbrio inicial desestabe-lecido pela intervenção insólita (Cf. GANCHO, 1993-11). Em “O Pirotécnico Zacarias” e “Os Dragões”, exposição e compli-cação se (con)fundem, visto que a própria introdução dessas narrativas apresenta o conflito de suas histórias, como se veri-fica em:

Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofre-ram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmen-te comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar. (RUBIÃO, 2005: 137)

Nesse primeiro parágrafo introdutório de “Os Dragões”, observa-se a junção da exposição com a complicação do enre-do, pois nele o narrador autodiegético – aquele, segundo Carlos Reis, que relata as suas próprias experiências como persona-gem central da narrativa (Cf. REIS, 2000: 259-267) – apresenta o elemento estruturador da história – a chegada de Dragões, se-res por si só insólitos, à sua cidade. Essa apresentação não é an-tecedida pela apresentação de uma situação de equilíbrio que,

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 92

seguida pela complicação, sofreria desestabilizarão e, conse-qüente, desequilíbrio.

Há de se ressaltar que, tanto em “O Pirotécnico Zacari-as” e “Os Dragões”, a complicação – apresentação do conflito – também não é seguida pelo desfecho ou conclusão da história no qual se dá a solução dos conflitos e conseqüente restauração do equilíbrio inicial desestabelecido pela intervenção insólita. No primeiro, a história começa com apresentação do conflito de Zacarias: provar a sua nova existência. O conflito não é so-lucionado ao final da narrativa, ou seja, ele não consegue com-prová-la, permanecendo a sua esperança de prová-la. No se-gundo, o conflito provocado pela chegada dos dragões – dis-cussões a respeito de sua natureza – não é solucionado ao final da narrativa. Zacarias não consegue confirmar sua nova exis-tência porque as demais personagens a banalizam, e não se chegar a conclusões dos questionamentos da natureza dos dra-gões, porque as personagens banalizam esse questionamento.

Assim, a primeira parte (exposição ou início da história) e a última parte do enredo (desfecho ou fim da história) são su-primidas dessas narrativas rubianas. A supressão tanto do iní-cio da história como do final não impede supor que havia uma situação de equilíbrio inicial rompida pela chegada dos dragões à cidade e uma possível restauração. Igualmente como haveria uma situação de equilíbrio anterior rompida pela morte “enig-mática” do pirotécnico Zacarias e uma possibilidade de restau-ração do desequilíbrio provocado pela sua morte quando este conseguisse ratificar sua nova existência.

Esses fatos são percebíveis em “Os Dragões” quando o narrador diz que absurdas discussões surgiram com chegada dos dragões, ou seja, a chegada dos dragões agitou a cidade e os moradores perdiam-se em discussões acerca de à qual raça eles poderiam pertencer, apresentando diferentes versões para caracterizar esses seres. Para o vigário da cidade, eles não pas-

Page 47: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 93

savam de seres enviados do demônio, versão apoiada pelo ve-lho gramático, provável professor de português, que lhes nega-va a qualidade de dragões. Um leitor de jornal, com vagas ide-ais científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em mostros antediluvianos, e o povo benzia-se, mencionando mu-las-sem-cabeça e lobisomens. Devido à falta de utilidade para os dragões, os moradores também consideraram a possibilidade de utilizá-los na tração de veículos, hipótese descartada porque a quantidade deles era inferior a dos pretendentes. Somente as crianças do local e o narrador autodiegético sabiam que os no-vos companheiros eram simples dragões. No entanto, o padre da cidade também não percebia essa evidência, pois, segundo suas convicções, os dragões deveriam receber nomes na pia ba-tismal e serem alfabetizados, ou seja, o padre queria dar-lhes tratamento humano. O narrador, contrariado, responde à suges-tão do padre da seguinte forma: “São dragões! Não precisam de nomes nem do batismo!” (RUBIÃO, 2005: 138).

Essa diversidade de tratamento oferecida aos dragões levou a uma crise de identidade, pois, apesar de serem dragões por essência, eles adquiriram vícios e moléstias humanas como alcoolismo, malícia, e vagabundagem. Contudo, o narrador a-creditava na possibilidade de convencer todos os moradores da cidade acerca da verdadeira essência desses seres: dragões, ou seja, ele tentava impor aquilo que ele achava ser verdadeiro. Assim, ele cogitava a hipótese de reeducá-los, visto ser a edu-cação deturpada que receberam a causa de todos os seus males.

Da mesma forma que em “Os Dragões”, em “O Piro-técnico Zacarias” o narrador autodiegético faz a junção da ex-posição – apresentação da história – com a complicação – apre-sentação do conflito –, no primeiro parágrafo: “Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria morrido o piro-técnico Zacarias?” (RUBIÃO, 2005: 25). Entretanto, no meio

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 94

da narrativa, o narrador descreve as instâncias de sua morte: Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou (...) A noite estava escura. Melhor, negra. (...) Ca-minhava pela estrada do Acaba Mundo: algumas curvas, si-lêncio, mais sombras que silêncio. O automóvel não buzinou de longe. E nem quando já se encontrava perto de mim, en-xerguei os seus faróis. (RUBIÂO, 2005: 26-27)

Portanto, o início da história não foi suprimido como em “Os Dragões”, mas deslocado.

No segundo parágrafo, o narrador apresenta as versões dos seus amigos para a sua morte:

A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que estou vivo – o morto tinha apenas alguma semelhança comi-go. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha morte pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma penada, envolvida por um invólucro humano. Ainda há os que afir-mam de maneira categórica o meu falecimento e não aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista pirotécni-co, mas alguém muito parecido com o finado. (RUBIÃO, 2005: 25)

Como se pode observar, as versões compartilhadas pe-los amigos de Zacarias tentem a aceitá-lo como morto ou vivo uma vez que para uns Zacarias está vivo, o morto tinha alguma semelhança com ele; para outros Zacarias está morto, o indiví-duo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma penada; ou ainda Zacarias está morto, e o indivíduo a quem an-dam chamando Zacarias é alguém muito parecido com o fina-do. Essas versões são negadas pelo seguinte argumento do nar-rador:

Em verdade morri, o que vem de encontro à versão dos que crêem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente (RUBIÃO, 2005: 26)

ou seja, Zacarias não está vivo e nem está morto, visto que Za-carias está convencido de sua morte e, no entanto, continua com os mesmos predicativos de uma pessoa viva. Zacarias ins-

Page 48: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 95

creve-se numa nova realidade, que não consegue provar para os seus amigos uma vez que estes fogem dele quando o avistam pela frente.

No passar dos meses, tornou-se menos intenso o meu sofri-mento e menor a minha frustração ante a dificuldade de con-vencer os amigos que o Zacarias que anda pelas ruas da cida-de é o mesmo pirotécnico de outros tempos, com a diferença que aquele era vivo e este, um defunto. (RUBIÃO, 2005: 32)

Assim, Zacarias não é um morto-vivo – um morto que vive – nem um vivo-morto, uma vez que ele não consegue provar sua nova existência.

Zacarias juntou-se ao grupo que estava no carro que o atropelou, após a discussão acerca do destino que seria dado ao seu corpo – discussão da qual ele também participou –, e todos, inclusive ele, deram continuidade ao programa da noite, inter-rompido com o seu atropelamento.

Segundo Barthes, a literatura se afaina na representação do real – “Desde os tempos antigos até as tentativas da van-guarda, a literatura se afaina na representação de alguma coisa. O quê? Direi brutalmente: o real.” (BARTHES, 1989: 22). As-sim, de acordo com Aguiar e Silva, o texto literário é um cro-nótopo, uma mensagem que depende de múltiplos códigos cul-turais não-literários que actuam numa dada época e numa dada sociedade (Cf. AGUIAR e SILVA, 1979: 35). Dessa forma, as narrativas rubianas dependem da conjuntura pós-moderna – descritas por Bauman – das quais acaba sendo um reflexo co-mo a negação da verdade, o individualismo e a crise de identi-dade:

A palavra “verdade” simboliza nos nossos usos uma determi-nada atitude que adotamos, mas acima de tudo desejamos ou esperamos que outros adotem para com o que é dito ou acre-ditado (...) A noção de verdade pertence à retórica do poder. (BAUMAN, 1998: 142-143) O aspecto novo, caracteristicamente pós-moderno e possi-velmente inaudito, da diversidade dos nossos dias é a fraca, lenta e ineficiente institucionalização das diferenças .

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 96

(BAUMAN, 1998: 155) Atualmente, o problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito. (BAUMAN, 1998: 155)

Desse modo, há a negação da verdade tanto no universo diegético de “Os Dragões” como de “O Pirotécnico Zacarias”, uma vez que o narrador autodiegético de cada narrativa não consegue impor suas crenças – no primeiro, de que os dragões são seres singulares; e no segundo, de que a personagem Zaca-rias faz parte de uma nova existência. A atitude das demais personagens é resultado da particularidade de opinião, fruto do individualismo, uma vez que cada um tem a sua opinião acerca da ocorrência dos eventos insólitos e não há uma disputa de quem está certo ou errado.

Quanto à crise de identidade, ela é recorrente no com-portamento dos dragões, pois, definidos a partir da educação que receberem, eles ora comportam-se como humanos ora co-mo dragões.

Assim, pode-se concluir que as narrativas rubianas es-truturam-se a partir de eventos insólitos que lhes dão vida e movimento ao gerar o conflito. São reflexo da época e socieda-de em que se configuram a negação da verdade, a crise de iden-tidade e o individualismo. Frutos das atitudes das pessoas, que vivem na sociedade contemporânea e que, nas narrativas rubia-nas, são representadas pelos “seres de papel” que o autor cons-trói. Referências Bibliográficas: AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 1979.

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1989.

Page 49: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 97

BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

FURTADO, Felipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1993.

REIS, Carlos. Dicionário de narratologia. Lisboa: Almedina, 2000.

RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. São Paulo: Ática, 2005.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 98

O INSÓLITO COMO UMACATEGORIA CONSTITUTIVA DE GÊNERO:

UM PERCURSO DO MARAVILHOSO AO INSÓLITO BANALIZADO

Michelle de Oliveira - UERJ

Refletir sobre o Insólito como categoria de gênero im-

plica a delimitação de uma questão bastante discutida: o con-ceito de gênero. A palavra gênero, “do latim, genus; -eris signi-fica tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração” (SOARES, 2004: 7). De acordo com Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “é possível fundamentar o conceito de gêneros literários como categorias que se especificam por figurarem de modo particular a realidade e por apresentarem caracteres distintos” (AGUIAR E SILVA, 1973: 222).

Teorizando ainda sobre a questão dos gêneros, Vítor Manuel a concebe historicamente, de acordo com o pensamen-to do homem em diversas épocas: “cada gênero representa o homem e o mundo através de uma técnica e de uma estilística próprias, intimamente conjugadas com a respectiva visão do mundo” (AGUIAR E SILVA, 1973: 222). Sendo assim e pen-sando-se na etimologia da palavra, gênero seria um conjunto de traços ou características que se associam ou se filiam a uma de-terminada época.

Platão, em sua Arte Poética, associa a questão do gêne-ro a um conceito amplamente difundido na Literatura: o de mimeses. Para Platão, mimeses seria a imitação ou representa-

Page 50: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 99

ção da realidade. Nesse contexto, faz-se necessário, para se re-fletir sobre o Insólito como uma categoria de gênero, a delimi-tação do próprio conceito de Insólito, assim como a sua per-cepção pelos seres da narrativa. Realizar-se-á, para isso, um percurso pelos gêneros da tradição, o Maravilhoso, o Fantásti-co, o Estranho, o Realismo-Maravilhoso, e pelo novo gênero aqui proposto, o Insólito Banalizado.

A palavra insólito, do latim insolitum, abarca aquilo que não é habitual, o que é desusado, estranho, novo, incrível, de-sacostumado, inusitado, pouco freqüente, raro. O caráter insóli-to é percebido de diferentes modos, em consonância com o pensamento, a cultura e os valores do homem de dada época.

Na Idade Média, a crença no aspecto religioso e a inter-ferência do deífico marcaram profundamente a sociedade. Por-tanto, a crença na existência de Deus constituia-se algo inques-tionável. Refletindo-se sobre a questão dos gêneros inseridos em um contexto histórico que os situa, o gênero Maravilhoso surge na Antiguidade clássica, tendo o seu segundo apogeu na Idade Média. No referido gênero, o insólito, além de incorpo-rado à realidade dos seres da narrativa, é demandado por elas, de forma que seja a aventura insólita a propulsora das ações. Em outros termos, seria o próprio insólito, aliado ao aventurar-se, que constituiria o enredo ou a trama nas narrativas maravi-lhosas.

No gênero Fantástico, o insólito é percebido pelos seres da narrativa como algo extranatural, o novo, o sobrenatural. Visto o insólito como algo surpreendente e levando-se em con-ta os valores do homem da época que abrange o referido gêne-ro, podem-se associar as características principais que o delimi-tam ao período histórico-cultural em que o gênero emerge. O homem no século XVII já não acreditava simplesmente nos as-pectos divinos que influenciavam a sua realidade, buscando, então, explicações mais racionais que dessem conta desta. Daí,

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 100

o homem ficar dividido ou hesitante entre a religião e a ciência. O gênero Fantástico, como espelho daquela sociedade, irá re-fletir o comportamento dos indivíduos que a compõem, produ-zindo a hesitação e a ambigüidade como traços que o distingue dos demais gêneros.

A respeito dessas duas características essenciais ao Fan-tástico, pode-se inferir que nesse gênero há a hesitação porque os seres de papel nunca têm a comprovação sobre a consuma-ção ou não do sobrenatural. Atribui-se, então, tal ocorrência a uma possível alucinação. Contudo, não se encontra uma res-posta lógica que explicite a questão, pois qualquer explicação lógica parecerá inverossímil. O conflito nunca é resolvido, nem no plano intratextual nem no plano extratextual, pois tanto as personagens quanto os leitores permanecem em dúvida diante de acontecimentos surpreendentes ou sobrenaturais.

Tem-se a comprovação disso partindo-se da verificação da seguinte passagem do conto “O Horla”, de Guy de Maupas-sant:

Desvairado, lancei-me sobre ela para agarrá-la. Nada encon-trei. Ela havia desaparecido. Então, fui tomado de uma cólera furiosa contra mim mesmo. Não se admite que um homem sensato e sério tenha semelhantes alucinações! (MAUPASSANT, 1997: 76)

Essa passagem se refere ao momento em que o insólito irrom-pe: a personagem principal vê uma flor quebrar-se sozinha e atribui a isso uma possível alucinação. Assim, tal questiona-mento feito pela personagem-narrador (se seria ou não uma a-lucinação) revela a função própria do gênero Fantástico: a de pôr em xeque a razão, com a narrativa adquirindo um caráter dúbio e ambíguo.

No que concerne ao gênero Estranho, encontra-se, nas narrativas que nele se enquadram, a dissolução da hesitação no plano narrativo devido ao estabelecimento da explicitação, em dado momento, do evento sobrenatural. Edgar Alan Poe, teóri-

Page 51: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 101

co e contista, em sua narrativa “A queda da casa de Usher, cria um narrador que explica racionalmente o acontecimento insóli-to, enquadrando tal narrativa no gênero Estranho:

– Essas aparições que o transtornam não passam de fenôme-nos elétricos, nada extraordinários... ou pode ser que ganhem essa aparência de fantasmas por causa dos miasmas fétidos do lago. (POE, 1995: 82)

A casa narrativa aparece envolta por um clima tenebroso, cer-cada por fantasmas, sombras, escuridão, sendo este um ambi-ente propício para a aparição do insólito.

Surgido no século XX como conseqüência do questio-namento sobre o conceito de verdade, devido à plurissignifica-ção do real, o Realismo-Maravilhoso configura-se como dife-rente dos demais gênero devido a

buscar o modo de reunir o natural e o sobrenatural numa rela-ção não disjuntiva das isotopias e que resulte tanto na oposi-ção com as modalidades realista e maravilhosa, quanto na di-ferença com a fantástica e a estranha. Para tanto é preciso re-tomar a estrutura elementar da significação para sondar a pos-sibilidade de uma construção semântica específica em que o maravilhoso é predicado da realidade e esta o é de maravilho-so. (CHIAMPI, 1980: 140)

Dessa forma, conjuga-se, no Realismo-Maravilhoso, um mun-do mágico que se associa ao mundo real, havendo a relação contínua entre o natural e o sobrenatural.

O insólito Banalizado, enquanto gênero, “imita ou re-presenta” (utilizando a conceituação de Aristóteles) um período histórico-cultural que tem como traço marcante a contempora-neidade: a Pós-Modernidade. Assim, o Insólito Banalizado manifesta uma sociedade em que os conceitos e valores do ho-mem se modificam constantemente, de modo a se constituírem algo fluido, objetivando a negação das verdades, das identida-des e a fragmentação, assim como a incorporação de aconteci-mentos surpreendentes. Refletindo uma sociedade por si só contraditória, a Pós-Modernidade promove a uniformidade –

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 102

abolindo fronteiras de raças, classe e nacionalidade – contudo, ao mesmo tempo, promove

uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo em que tudo o que é sólido desmancha no ar. (BERMAN, 1987: 15)

É nesse contexto pós-moderno que surgem as narrativas de Murilo Rubião e, conseqüentemente, o novo gênero que ora se propõe: o Insólito Banalizado. Tal gênero é assim denominado devido aos acontecimentos que até então eram inabituais ou in-sólitos serem aceitos pelos seres da narrativa como algo corri-queiro, comum, banal.

Adentrando o universo das narrativas rubianas, tem-se, em “Os dragões”, o evento insólito sendo ocasionado pela apa-rição de dragões em uma cidade. No entanto, em vez desse fato ser percebido no plano narrativo como algo que surpreende, ele é aceito pelas personagens, que o adequam à sua realidade, sem haver, contudo, um questionamento sobre a origem dos dragões e o seu estabelecimento na cidade. Nessa narrativa, tem-se a banalização, como marca que distingue esse gênero dos de-mais, na passagem em que a personagem-narrador trata o fato de educar os dragões como algo extremamente comum, incor-porando-o à sua vivência: “No entanto eu acreditava na possi-bilidade de reeducá-los e superar a descrença de todos quanto ao sucesso da minha missão” (RUBIÃO, 2005: 139).

Nas narrativas rubianas, as sensações de tédio, angústia e desespero não são ocasionadas unicamente pela irrupção do insólito, mas também pelo confrontamento dos seres de papel com a realidade intratextual. E é devido ao deparar-se com a realidade que não há espaço para a instalação da hesitação no plano dos acontecimentos, já que os seres da narrativa têm a comprovação do insólito.

Em “A noiva da casa azul”, a personagem-narrador se

Page 52: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 103

desespera ao se deparar com uma realidade chocante, ao perce-ber que não podia mais ver Dalila. Em “O ex-mágico...”, a ro-tina e a realidade de um funcionário público tornara sua vida monótona e entediante: “ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos” (RUBIÃO, 2005: 11). A personagem-narrador não se espanta em retirar do bolso objetos e animais, ao contrário, torna esse hábito algo co-tidiano, natural, banalizando, assim, o evento insólito:

Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gai-votas, maritacas. As pessoas que me encontravam nas imedia-ções, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estriden-tes gargalhadas. (RUBIÃO,2005: 9)

Após a banalização do evento insólito, o mágico sente-se angustiado com a sua rotina involuntária de fazer aparecer objetos e animais, daí buscar a morte como fuga da realidade. É freqüente, nas narrativas rubianas, a morte ser vista pelas personagens como uma solução para uma realidade esmagado-ra, dilacerante. As personagens rubianas se estabelecem, pois, num clima propenso à desestruturação e aniquilação do ho-mem, vêem-se frequentemente vencidas e sem forças devido à frustração de todo tipo de expectativas e esperanças. Assim, o próprio cenário, bem como as personagens, é envolto em um clima sombrio, sendo comum a cor negra aparecer como metá-fora de morte, vazio, sombra, escuridão. A narrativa rubiana, em si, apresenta-se como obscura, misteriosa, caracterizada pe-la ausência (de informações) e pelo vazio.

O narrador rubiano acentua o caráter insólito da narrati-va por meio de marcas temporais indefinidas, jogos de oposi-ção/contradição, afirmando algo em dado momento, para cons-tituir, após, o seu total esfacelamento. Dessa forma, a narrativa adquire um caráter transgressor, visto que não visa à ordenação normativa das narrativas ficcionais mais tradicionais. Pelo con-trário, antepõe-se algumas vezes a estas, devido ao rompimento

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 104

com modelos fixos, podendo a narrativa, por vezes, romper com a seqüência começo-meio-fim, como ocorre, por exemplo, em “Mariazinha”. A história inicia-se em 1943, há um recuo de vinte anos, partindo-se, então para 1923, no mês de maio:

Maio-mês infeliz. Conheci Mariazinha e ouvi a sua história – deu pinotes, esticou-se todo. Dentro dele couberam os anos passados, voltaram-me os cabelos e Mariazinha recuperou sua virgindade. (RUBIÃO, 2005: 42)

Logo após, retorna-se novamente a 1943, ressaltando-se ainda mais a inconstância do tempo.

Ademais, concebendo-se o gênero como ancorado tanto em formas internas quanto em formas externas, ou seja, consi-derando-se tanto o aspecto formal quanto o seu conteúdo, tem-se nas narrativas rubianas a utilização de parágrafos curtos – prevalecendo a coordenação – com o objetivo da não-explicitação de como se estabelecem as relações entre os seres da narrativa. Em outras palavras, têm-se o recurso a períodos curtos/coordenados, justamente para não ocorrer a digressão prolongada do narrador, havendo, assim, a fragmentação das informações, de modo que o leitor permaneça sem uma expli-cação para dados acontecimentos.

Tomando-se como exemplo dessa asserção “Elisa”, tem-se a personagem que dá nome à narrativa chegando a casa do narrador, adaptando-se aos hábitos da casa e sumindo poste-riormente sem dar nenhuma explicação. A seguinte citação dá conta da ausência de explicação pela qual é tomada a narrativa: “Não nos disse o nome, de onde viera e que acontecimentos lhe abalaram a vida” (RUBIÃO, 2005: 48). Neste trecho há três in-formações: Elisa não disse o seu nome, nem de onde viera e nem que acontecimentos que lhe abalaram de algum lugar até ali. Desse modo, as informações são passadas rapidamente, como um flash, sem que, contudo, o leitor tome o conhecimen-to de como se deram. Assim, o dito não se constitui em ele-mento esclarecedor.

Page 53: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 105

Pelo percurso realizado, refletindo sobre a concepção de gênero e tomando por base, além das definições propostas, a conceituação do Dicionário Aurélio Buarque de Holanda – “o gênero como agrupamento de indivíduos, objetos, etc. que te-nham características comuns” –, infere-se que o insólito pode ser visto como uma categoria de gênero. Embora se constitua de diferentes modos, dizendo respeito ao contexto histórico-cultural em que está inserido, assim como levando em conta a sua percepção pelos seres da narrativa, o insólito irrompe, ten-do uma característica comum: a manifestação do que abala a ordem vigente no plano dos acontecimentos narrados, apontan-do para o não-esperado, para o incomum. Referências Bibliográficas: AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. 3 ed. Coimbra: Livraria Almedina,1973.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1987.

CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo: Pers-pectiva, 1980.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Lín-gua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

RUBIÃO, Murilo. “A noiva da casa azul”, “Elisa”, “Mariazi-nha”, “Os dragões”, “O ex-mágico da taberna minhota”. In: Contos reunidos. 2 ed. São Paulo: Editora Ática, 2005.

MAUPASSANT, Guy de. “O Horla”. In: Contos fantásticos – O Horla e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 1997.

SOARES, Angélica. Gêneros Literários. 3 ed. São Paulo: Áti-ca, 1993.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 106

http://www.espacoacademico.com.br/035/35eraylima.htm – página consultada no dia 30 de junho de 2007.

Page 54: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 107

O INSÓLITO EM MURILO RUBIÃO: BREVE ANÁLISE DE NARRATIVAS RUBIANAS,

APRESENTANDO O ELEMENTO TEMPORAL COMO INSTRUMENTO DE

CONSTRUÇÃO DO INSÓLITO.

Monique Paulenak da Silva - UERJ

O tempo é “o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida” (MANN apud NUNES, 2000: 5-6)

A obra do escritor Murilo Rubião possui como impor-

tante característica a manifestação do insólito. Vale lembrar que o termo insólito designa o que não é comum, afasta-se de uma ordem, é extraordinário ou, como o próprio nome diz, não é sólito. Isso significa que o autor mineiro constrói sua narrati-va explorando acontecimentos e atos que seriam inaceitáveis ou intrigantes em um plano empírico.

Na elaboração de uma narrativa, alguns elementos tor-nam-se indispensáveis. Cândida Vilares Gancho destaca cinco elementos sem os quais a narrativa não se constrói. A saber, es-ses elementos são: enredo, personagens, espaço, tempo e nar-rador. (Cf. GANCHO, 1991: 5). Na apresentação do insólito na narrativa, tais componentes podem ser utilizados, engendrando-o.

Em algumas narrativas, por exemplo, pode haver perso-

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 108

nagens com atitudes que não são comuns, assim como o narra-dor pode ser elemento que favorece a manifestação do insólito, se esse narrador rompe com uma expectativa do leitor e/ou sur-preende com o seu posicionamento em relação aos casos que relata.

Um dos elementos que se destacam na narrativa rubiana como construtor do insólito é o “tempo”. Como já afirmou Thomas Mann, o tempo é “o elemento da narrativa, assim co-mo é o elemento da vida”(MANN apud NUNES, 2000: 5-6), ou, ainda, de acordo com Benedito Nunes, “para narrar (...) precisamos do tempo”(NUNES, 2000: 6). Compreende-se, en-tão, que esse componente possa assumir papel determinante no desenrolar da narrativa.

Deve-se saber que, de acordo com a narrativa, o ele-mento tempo pode ser dividido em distintas classificações, co-mo, por exemplo, “tempo cronológico” ou “tempo psicológi-co”. Cândida Vilares Gancho define o primeiro como sendo o “tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, isto é, do começo para o final. Está, portanto, ligado ao enredo linear” (GANCHO, 1991: 21), e o segundo como sendo o

tempo que transcorre numa ordem determinada pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou dos personagens, isto é, altera a ordem natural dos acontecimentos. Está, portanto, ligado ao enredo não-linear. (GANCHO, 1991: 21)

O que se enfocará aqui envolve as indicações cronoló-gicas, as referências que se encontram no interior do texto, cuja função deveria ser ordenar os casos narrados em um nível de compreensão da história no mínimo razoável. Pode-se dizer que a organização temporal é um guia que orienta a narrativa, pois, além de seqüenciar as ações, também as relaciona no es-paço físico. Portanto, essas referências são de suma importân-cia, já que proporcionam a possibilidade de entendimento dos acontecimentos narrados.

No entanto, em Murilo Rubião, a questão do tempo não

Page 55: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 109

constitui algo sólito para sustentar uma história, havendo va-gueza nas indicações e falta de exatidão. É válido lembrar que o tempo em narrativas ficcionais – como é o caso de Rubião – baseia-se no tempo real (com referência a horas, dias, anos, di-visões do ano em estações, meses etc.), e, lembrando Umberto Eco, “todo o mundo ficcional se apóia parasiticamente no mundo real, que toma por seu pano de fundo” (ECO, 1994: 99).

Neste presente trabalho se apresentará uma breve leitura interpretativa de “A noiva da casa azul” e “Elisa”, destacando o elemento tempo, as indicações cronológicas que têm a função de situar os acontecimentos, e de que forma essa marca favore-ce a manifestação do(s) evento(s) insólito(s) em tais narrativas.

Em “A noiva da casa azul”, a história nos é apresentada por um narrador autodiegético, que relata sua experiência de retorno à cidade onde vivera sua infância e adolescência, a fim de encontrar sua namorada Dalila. Porém, quando chega a tal cidade, Juparassu, não encontra sua amada, mas, sim, depara-se com uma cidade em ruínas. Essa simples e rápida exposição pode pressupor uma história comum, aceitável e compreensí-vel. No entanto, a narrativa é envolta por forte conflito entre informações temporais.

Em um trecho, o narrador-personagem informa, vaga-mente, quando ocorre sua viagem de volta à cidade:

– Então, o que veio fazer aqui? Refreei uma resposta malcriada, que a insolente pergunta me-recia, notando ser sincero o assombro do empregado da estra-da. – Tenciono passar as férias em minha casa de campo. – Não sei como poderá. – É coisa tão fantástica passar o verão em Juparassu? (RUBI-ÃO,2005: 53-54)

Então, a leitura desse trecho, em que o narrador-personagem, já na cidade de Juparassu, dialoga com o agente da estação – este que estranha a chegada do personagem – em que desembarca, informa que essa viagem acontece em um verão.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 110

Em outra passagem, o narrador-personagem menciona quando se dera o seu início de namoro com Dalila:

No verão passado, por ocasião da morte de meu pai, os mora-dores da casa azul, assim como os ingleses das duas casas de campo restantes, foram levar-me suas condolências, e uma dupla surpresa: Dalila perdera as sardas, e seus pais, ao con-trário do que pensava, eram ótimas pessoas. Trocamos visitas e, uma noite, beijei Dalila. (RUBIÃO, 2005: 53)

Partindo desses trechos, compreende-se que há apenas cerca de um ano o narrador-personagem esteve na cidade de Juparassu, em sua casa de campo e com Dalila, visto que situa os aconte-cimentos entre dois verões: o do momento da viagem e o do verão anterior, quando iniciara seu namoro.

Mas a narrativa entra em um desconcerto diante do sur-gimento do personagem colono. Ao ser indagado pelo narra-dor-personagem, que ecnontra a cidade agora destruída, o co-lono afirma que mora naquela região há anos:

Rodeei a propriedade e encontrei, nos fundos um colono cui-dando de uma pequena roça. Aproximei-me dele e indaguei se residia ali há muito tempo. – Desde menino – respondeu, levantando a cabeça. – Certamente conheceu esta casa antes dela se desintegrar. O que houve? Foi um tremor de terra? – Insisti, à espera de uma palavra salvadora que desfizesse o pesadelo. – Nada disso aconteceu. Sei da história toda, contada por meu pai. A seguir, relatou que a decadência da região se iniciara com uma epidemia de febre amarela, a se repetir por alguns anos (...). (RUBIÃO, 2005: 55)

Surge, dessa forma, uma extrema contradição, pois o colono declara que naquela região ocorreu uma epidemia que se estendeu por anos, causando o abandono da cidade. Contu-do, se o personagem principal estivera na localidade há alguns meses e desconhece o fato, existe, então, uma incoerência entre o tempo desse personagem e as informações que são transmiti-das através do personagem colono.

Page 56: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 111

Na verdade, quando o elemento tempo não é sólito, ele põe em fragilidade também o elemento espaço – nesse caso, a cidade fictícia de Juparassu –, que se refere ao “onde” ocorrem os acontecimentos experienciados pelos personagens e, ainda, a seqüência lógica das ações – causa e conseqüência.

No início de seu relato, o narrador-personagem diz que o motivo que o levou a rumar de volta à cidade de sua infância é uma carta enviada a ele por Dalila. Entretanto, essa Dalila que nem sequer aparece na narrativa, senão apenas por menção do narrador, é, em determinado momento, dita falecida pelo personagem colono. Considerando que o personagem que narra segue em viagem para Juparassu no mesmo dia do recebimento da correspondência, há um desencontro de informações, envol-vendo, de uma só vez, tempo, espaço e ações.

Em nenhum momento são explicadas essas contradi-ções, que se encontram presentes no texto, estando esse confli-to sem solução até o seu desfecho. Aliás, o narrador-personagem conduz até o final sem nenhuma explicação, à me-dida que não questiona a incompatibilidade das informações que recebe do colono. Durante a narrativa, o narrador-personagem não adiciona ao seu relato indagações que bus-quem uma resposta para o que se passou. Ele não expõe questi-onamentos referentes a esse desencontro de tempos, ao se de-parar com sua casa de campo destruída, afirmando ter estado lá há menos de um ano. Mas, pelo testemunho do colono, a casa já estava inabitada há muito mais tempo. O narrador-personagem conduz a uma banalização do caso, à medida que não busca uma explicação para o conflito que se instala. A nar-rativa, então, adquire, assim, uma atmosfera que se distancia do sólito.

Na narrativa rubiana “A noiva da casa azul”, fica evi-dente que as referências temporais, além de serem vagas – pois não se verificam indicações de datas completas, precisas –,

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 112

constituem somente uma ferramenta para a manifestação do in-sólito, posto que não existem indicações físico-temporais apre-sentadas de forma a fixar a narrativa em um plano físico e cro-nológico compreensível.

Em “Elisa”, a história também é apresentada por um narrador autodiegético. O narrador-personagem relata um a-contecimento que viveu, contando o caso da chegada de uma desconhecida que surge em um dia qualquer, hospedando-se em sua casa, sem avisar ou pedir licença, apenas abrindo o por-tão, entrando e instalando-se.

Dessa forma, a narrativa foge à ordem do que se consi-dera comum: o fato de alguém chegar dessa maneira em uma residência. Mais incomum ainda é sua aceitação, como aconte-ce com o personagem-narrador, escapando ao comum e nar-rando-o com naturalidade. O narrador-personagem aceita a pre-sença da desconhecida em sua casa, sem mesmo saber como se chama. Também é importante lembrar, para um melhor enten-dimento da reflexão, que Elisa (a desconhecida) surge na casa; repentinamente e sem avisar, parte; e depois retorna a casa co-mo se nada insólito houvesse ocorrido.

Nessa narrativa, as indicações de tempo que se encon-tram não causarão grande conflito, gerando contradições, como se verificou em “A noiva da casa azul”. Porém, as vagas indi-cações (característica da obra de Rubião) cercam o evento insó-lito, contornando-o de maneira a marcar o clima incomum de “Elisa”.

Sabendo que a narrativa segue o enredo linear, deve-se destacar, primeiramente, o trecho logo do início em que o nar-rador-personagem indica um mês de abril como sendo o mês em que a desconhecida surge pela primeira vez em sua casa: “Uma tarde – estávamos nos primeiros dias de abril – ela che-gou a nossa casa” (RUBIÃO, 2005: 47). Em uma passagem mais adiante, ele menciona quando se dera a primeira partida

Page 57: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 113

de Elisa, ao relatar o retorno da personagem: “Um ano após sua fuga – estávamos novamente em abril – a vi aparecer no por-tão” (RUBIÃO, 2005: 48). O narrador-personagem declara, en-tão, que a duração entre o primeiro aparecimento da persona-gem e sua “fuga” foi, portanto, de menos de um mês.

Isso significa que, em um período de menos de um mês, a personagem Elisa adapta-se a casa do narrador-personagem e sua irmã, e estes, por sua vez, aceitam comumente sua presença e, ainda, que ela recupera-se de um estado de aparente fragili-dade física, como nos relata o personagem-narrador:

Cedo começou a engordar, a ganhar cores e no rosto, já es-tampava uma alegria tranqüila. Não nos disse o nome, de onde viera e que acontecimento lhe abalaram a vida. Respeitávamos, entretanto, o seu segredo. Para nós era ela, simplesmente ela. Alguém que necessitava de nossos cuidados, do nosso carinho. (RUBIÃO, 2005: 48)

Essa passagem deixa clara a aceitação e a tranqüila convivên-cia; a atitude dos moradores da casa para com Elisa, a maneira como tratam uma desconhecida, contrastando com o curto pe-ríodo de tempo que a desconhecida está hospedada na casa.

Em uma primeira leitura, a narrativa pode conduzir a pressupor que a personagem desconhecida convivera por um período mais extenso no ambiente com os moradores da casa, até que houve sua adaptação. Essa suposição se desfaz quando o narrador-personagem menciona o mesmo mês de abril de sua chegada como mês também de sua fuga.

Contudo, o narrador-personagem, de maneira sutil, já explicitava uma duração de tempo curta dessa primeira passa-gem de Elisa pela casa. Pode-se constatar isso observando a seqüência de expressões relativas a tempo e duração utilizadas pelo narrador-personagem em seu relato: “nos primeiros dias ela chegou”, “logo se adaptou aos nossos hábitos” “cedo come-çou a engordar” “uma noite interrogou-me” “na manhã seguin-te encontramos vazio o seu quarto”.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 114

Assim, nas expressões encontradas no transcorrer da narração, verifica-se que o narrador-personagem não se contra-diz, nem as indicações temporais. Nessa narrativa, no entanto, enquanto não há uma ocorrência de contradições referentes ao tempo, ocorre uma quebra de expectativa que se calca na se-qüência temporal, pois surpreende a aceitação e indiferença pe-rante o evento insólito – que está nas atitudes das personagens – em curto período de tempo. Pode-se afirmar, então, que o e-lemento tempo acentua o insólito.

Da mesma maneira que em “A noiva da casa azul”, o elemento tempo está sujeito a uma banalização e é empregado também para banalizar os eventos insólitos manifestos na nar-rativa. Quando o narrador-personagem faz referência à fuga de Elisa, indicando que a personagem chegara e partira no mesmo mês, o tempo se torna uma marca do insólito à medida que não corresponde à expectativa do leitor. Até então, imaginava-se o mês de abril como mês de chegada e não de partida, como o narrador-personagem deixa transparecer naturalmente em seu relato.

A partir duas narrativas aqui apresentadas – “A noiva da casa azul” e “Elisa” –, pode-se concluir que indicações tem-porais presentes são utilizadas com intento de, ora acentuar o evento insólito, ora desorganizando a narrativa, criando contra-dições. Enquanto, em “A noiva da casa azul”, as informações temporais transmitidas pelo colono desfazem todas as informa-ções anteriormente apresentadas pelo narrador-personagem, manifestando o insólito, em “Elisa”, as indicações referentes ao tempo confirmam o evento insólito, pois o destacam, chaman-do atenção para sua aceitação e também para a peculiar manei-ra das ações da personagem que dá nome a narrativa, em que o mês de abril é citado para representar o mês que a personagem surge, some e retorna a casa.

Verificou-se, ainda, que as narrativas rubianas são

Page 58: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 115

compostas por vagas indicações temporais. E, na ausência de referências temporais, também diante de informações de tempo incoerentes, os casos relatados podem perder-se na narrativa, perdendo, assim, juntamente, a lógica das ações – causa e con-seqüência – e do espaço. As indicações cronológicas, conside-radas o sustentáculo de uma narrativa, orientam as ações, colo-cando-as em uma ordem de compreensão da história. Na obra rubiana, afastam-se disso. Viu-se, também, que o tempo pode ser utilizado para a construção do insólito. Referências Bibliográficas: ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia da Letras, 1994.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1991.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 2000.

RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. 2 ed. São Paulo: Ática, 2005.

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 116

CRISE DE IDENTIDADE E PERDA DE VALORES SOCIAIS

COMO RESULTADO DA PÓS-MODERNIDADE: CARACTERÍSTICAS RECORRENTES

NA OBRA RUBIANA, QUE TEM EVENTOS INSÓLITOS COMO SUA MARCA PRINCIPAL

Thalita Martins Nogueira - UERJ

Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual o meu lugar. (BERMAN, 1987)

A obra de Murilo Rubião, na sua maioria, tem a sua

construção narrativa organizada em torno de eventos insólitos, à medida que é a partir de tais eventos que a história tem seu início. Define-se por insólito tudo aquilo que contraria as leis da realidade convencionada pelo senso comum ou que rompe com a ordem conhecida. Portanto, a maior parte da narrativa rubiana tem eventos insólitos como marca distintiva, sendo im-prescindível que a construção narrativa se dê em função de tais

Page 59: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 117

ocorrências. Na obra rubiana, os eventos insólitos têm grande impor-

tância, uma vez que legitimam a exposição da crise vivenciada pelo homem com a chegada da Pós-Modernidade, período que simboliza uma parte da História humana em que o homem en-contra-se fragmentado e, portanto, adota uma atitude fragiliza-da perante o mundo que o rodeia. Nesse sentido, três contos podem ser destacados a fim de discutir tal tema, já que podem ser encarados como paradigma do mesmo. São eles: “O ex-mágico da taberna minhota”, “O pirotécnico Zacarias” e “O convidado”.

Em cada um desses contos, bem como em todos os ou-tros que constituem a obra de Murilo Rubião, o insólito se ma-nifesta de maneira singular, colaborando para que ela se mostre bastante diversificada e complexa. Além da marca principal do insólito, as narrativas rubianas destacadas lidam com temas que envolvem a natureza humana e suas relações em um mundo completamente transformado pelo progresso.

Em meio a tantas transformações, o homem contempo-râneo já não se assombra com o que presencia, já que tudo é tratado com extrema naturalidade e até mesmo desprezo. Nessa perspectiva, é lícito propor o surgimento “Insólito Banalizado” enquanto novo gênero, representante do cenário pós-moderno onde, segundo Rousseau:

(...) Todos se colocam frequentemente em contradição consi-go mesmos, e tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo. Este é um mundo em que “o bom, o mau, o belo, o feio, a verdade, a virtude, têm uma existência apenas local e limitada”. (BERMAN, 1987: 17)

“O convidado” retrata a questão do reflexo da Pós-Modernidade de maneira bastante intensa, ao passo que o per-sonagem principal, José Alferes, se vê completamente entedia-do e transtornado ao ir a uma recepção onde os convidados demonstram extrema superficialidade uns com os outros e com

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 118

tudo que os cerca. Bem como o incômodo sentido por ele por não conseguir se encaixar naquele mundo que, segundo ele mesmo, não possui sentido algum:

Mas logo ele se retraía e se afastava ante a impossibilidade de acompanhar os diálogos, que giravam em torno de um único e cansativo tema: a criação e corridas de cavalos. (RUBIÃO, 2005: 217) Sentado num banco de pedra, José Alferes sente aumentar sua irritação pelas lisonjas, as apresentações cerimoniosas, os ges-tos delicados. Rejeitava firme, às vezes duro, novas solicita-ções para aderir aos grupos de criaturas cativantes e vazias. (RUBIÃO, 2005: 218) O porteiro recebeu-o com a cordialidade cansativa dos que naquela noite tudo fizeram para integrá-lo num mundo des-provido de sentido. (RUBIÃO, 2005: 221)

Outra narrativa rubiana que trata da questão pós-moderna da perda de valores e desconforto perante o mundo é “O pirotécnico Zacarias”. Nela, o personagem principal, Zaca-rias, narra a naturalidade com que os jovens que o atropelam falam sobre seu corpo defunto, ressaltando, assim, o caráter de-sintegrador do tumulto gerado pela Modernidade, de maneira que tradições antes vistas de forma hermética ficam à deriva desse processo de transformação (Cf. BAUMAN, 1998: 153-154):

Havia silêncio, mais sombras que silêncio, porque os rapazes não mais discutiam baixinho. Falavam com naturalidade, do-sando a gíria. (RUBIÃO, 2005: 28) A idéia inicial, logo rejeitada, consistia em me transportar pa-ra a cidade, onde me deixariam no necrotério. Após breve discussão, todos os argumentos analisados com frieza, preva-leceu a opinião de que meu corpo poderia sujar o carro. E ha-via ainda o inconveniente das moças não se conformarem em viajar ao lado de um defunto. (Neste ponto eles estavam re-dondamente enganados, como explicarei mais tarde.). (RU-BIÃO, 2005: 28) Limitaram-se a condenar o mau gosto de Jorginho – assim lhe chamavam – e a sua insensatez em interessar-se mais pelo destino do cadáver do que pelas lindas pequenas que os a-

Page 60: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 119

companhavam. (RUBIÃO, 2005: 28-29) A fim de melhor compreender esse processo pós-

moderno emergente na obra de Murilo Rubião, vale destacar a sensação contraditória de dúvida e prazer sentida pelo persona-gem Zacarias pela sua morte, que é o evento insólito principal da narrativa. Não há no texto marcas que comprovem a veraci-dade de sua morte, pois ele possui predicados de uma pessoa viva, apesar de não ser reconhecido pelos vivos como alguém do mesmo plano que eles; Zacarias observa também que sua própria maneira de ver o mundo após sua morte é superior a dos mortais que o cercam:

Em verdade morri, o que vem de encontro à versão dos que crêem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente. (RUBIÃO, 2005: 26) Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de construir uma nova existência. (RUBIÃO, 2005: 31) Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agoni-zante? E a minha angústia cresce ao sentir, na sua plenitude, que a minha capacidade de amar, discernir as coisas, é bem superior à dos seres que por mim passam assustados. (RUBI-ÃO, 2005: 32)

Outra questão em destaque no mundo pós-moderno é a identidade do indivíduo. Em “O ex-mágico da taberna minho-ta”, o personagem principal sente-se confuso por não possuir uma identidade assim como os outros indivíduos que o cercam. Segundo Bauman (2005), essa aspiração por uma identidade definida busca trazer segurança ao indivíduo pós-moderno. Is-so, na verdade, é algo contraditório, já que o sentimento de an-siedade origina uma ambigüidade, pois além de não solucionar o problema, coloca-o em condição ainda mais perturbadora. Assim, o ex-mágico relata a sua tristeza e indignação pela falta de um passado:

O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 120

encontrava a menor explicação para sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e entediado. (RUBIÃO, 2005: 7) Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles ros-tos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que a-companham o amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado. (RUBIÃO, 2005: 8-9) E o ócio levou-me à revolta contra a falta de um passado. Por que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar? (RUBIÃO, 2005: 12)

Na narrativa em questão, o personagem principal deixa clara a superficialidade dos homens e sua incapacidade de per-ceber a verdade sobre o mundo pós-moderno quando narra a experiência de contato com os leões que faz aparecer diante de si. Estes animais, ao contrário das pessoas com quem ele é o-brigado a conviver e que são a platéia de suas mágicas aciden-tais, assim como ele, possuem a capacidade de discernir sobre o mundo que os cerca. Sobre tal verdade, Bauman utiliza-se da linguagem heideggeriana para concluir que:

a forma especificamente pós-moderna de “ocultamento” con-siste não tanto em esconder a verdade do Ser por trás da falsi-dade dos seres, mas em obscurecer ou apagar inteiramente a distinção entre verdade e falsidade dentro dos próprios seres e, desse modo, tornar os temas do “cerne da questão”, de sen-tido e de significado absurdos e inexpressivos. (BAUMAN, 1998: 158)

Pode-se afirmar que a perda de identidade é uma das conseqüências mais perturbadoras do processo pós-moderno, à medida que se o próprio indivíduo não encontra explicações claras sobre seu próprio eu, como terá capacidade de se questi-onar sobre os acontecimentos que o cercam? A modernidade é, portanto compartilhada por toda espécie humana que vive nes-se período da História e, segundo Berman é responsável pela união da mesma:

Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunida-de: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente de-

Page 61: Murilo Rubião e a narrativa do insólito - dialogarts.uerj.br · ana com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, também narrado por um defunto. Para ela, trata-se

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 121

sintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”. (BERMAN, 1987: 15)

E, se na era moderna, a questão principal girava em tor-no da construção de uma identidade, de maneira que sua deli-mitação possibilitasse seu reconhecimento universal, no cená-rio pós-moderno este problema resulta da dualidade entre a im-possibilidade de encontrar uma forma de identidade fixa e a necessidade dessa contínua busca. (Cf. BAUMAN, 1998: 154-155) Essa busca constante sempre se faz necessária, à medida que os processos que envolvem a modernidade somente evolu-em, deixando os indivíduos cada vez mais vulneráveis a suas conseqüências. Assim, o ex-mágico mostra sua desesperança e desconsolo por se ver diante de pessoas e seres que, segundo ele, são incapazes de ajudá-lo na busca de algo que eles nunca poderiam compreender; o convívio obrigatório com esses seres, produtos da modernidade, enfastiava o ex-mágico:

Nada fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não poderia vir de parte alguma. (RUBI-ÃO, 2005: 9) Eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os pássaros. (RUBIÃO, 2005: 9) Rolei até o chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência. (RUBI-ÃO, 2005: 11) Quando era mágico, pouco lidava com os homens – o palco me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam. (RUBIÃO, 2005: 12)

A partir das marcas encontradas, pode-se concluir que a narrativa rubiana retrata as questões pós-modernas de crise de identidade, pulverização dos valores sociais e desconserto do indivíduo perante o mundo, de maneira bastante interessante e relevante, à medida que utiliza os elementos insólitos experen-ciados pelas personagens, a fim de criticar essa nova ordem

Murilo Rubião e a narrativa do insólito / ISBN 978-85-86837-31-9 / Dialogarts 2007 122

transitória denominada Pós-Modernidade, que visa destruir as estruturas aceitas até o referido momento da História. Referências Bibliográficas: BAUMAN, Zygmund. “Sobre a verdade, a ficção e a incerte-za”. In: O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Za-har, 1998, p. 142-159.

BAUMAN, Zygmund. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1987.

RUBIÃO, Murilo. “Elisa”. In: Contos reunidos. São Paulo: Á-tica, 2005, p. 47-49.