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Questões sobre Estudos Africanos
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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 1
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 2
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 3
Ficha Técnica:
Heranças Globais – Memórias Locais
Revista de práticas de museologia informal
Nº 2. primavera 2013
Diretor
Pedro Pereira Leite
ISSN - 2182-7613
Edição: Marca d‟ Água: Publicações e Projetos
Redação: Casa Muss-amb-ike
Ilha de Moçambique,
3098 Moçambique
Lisboa: Passeio dos Fenícios, Lt. 4.33.01.B 5º Esq.
1990-302 Lisboa -Portugal
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 4
Índice Museologia informal e Estudos Africanos ......................................................... 7
Cartografias dos Estudos Africanos .................................................................. 9
1ª Questão: Os Estudos Africanos como campo de investigação científica .............. 10
2ª Questão: De que forma a proposta das Epistemologias do Sul se constitui como
uma problemática dos Estudos Africanos .............................................................. 15
3ª Questão: Qual é a relação entre Epistemologias do Sul e Estudos Africanos. ...... 29
A proposta da museologia informal como campo de investigação-ação ......... 35
Horizontes da emancipação Social: As epistemologias do Sul, o Barroco e a Fronteira
....................................................................................................................... 36
A Metodologia de investigação-ação .................................................................. 42
As Narrativas Biográficas e as metodologias de investigação-ação ................. 50
A Saúde Materno-Infantil e os Problemas do Desenvolvimento ..................... 61
Poética das viagens museológicas ................................................................. 75
Diário de Bordo .............................................................................................. 76
Moçambique ................................................................................................... 77
Viagens na fronteira (parte 1) .......................................................................... 88
Tertúlias na Baixa .......................................................................................... 95
Oficina do Riso ................................................................................................ 99
O Ciclo de Cinema Escravatura e Tráfico de Seres Humanos ........................ 102
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Apresentação
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Museologia informal e Estudos Africanos
Heranças Globais - Memórias Locais apresenta neste número uma reflexão
temática sobre a relação da Museologia Informal e os Estudos Africanos. Como
temos vindo a referenciar esta é uma revista semestral que apresenta os
resultados do projeto de investigação ação em curso no Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra financiando pela FCT com o nome
“Heranças Globais: a inclusão dos saberes das comunidades no
desenvolvimento integrado do território” (SHRH/BPD/76601/2011).
Este projeto foi submetido no painel de avaliação de “Estudos Africanos” da FCT.
A natureza interdisciplinar dos Estudos Africanos, e a sua intima relação ás
questões dos processos de globalização, nomeadamente as questões da
memória e do esquecimento justificam uma reflexão deste nosso projeto sobre
esta questão.
Um dos objetivos fundamentais do nosso projeto é o estabelecimento de uma
rede de parcerias com outros investigadores e atores locais. Deste modo, neste
número iniciamos igualmente a colaboração de outros autores, com o objetivo
de ir progressivamente alargando o seu espaço de influência.
Centrar na questão dos Estudos Africanos, permite-nos centrar as publicações
das revistas em questões temáticas. A centralidade dos temas permitem
aumentar a focagem em assuntos relevantes para os processos de investigação.
Uma outra alteração, esta mais prosaica, diz respeito à periodicidade. Mantemos
a sua natureza semestral, mas balizamos a publicação em torno da Primavera e
Outono. Cremos que assim acentuamos melhor a sua natureza de “Encontros”
dialógicos.
A direção, junho 2013
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Sobre Estudos Africanos
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Cartografias dos Estudos Africanos1 Trabalhamos neste artigo um conjunto de questões relativas aos Estudos Africanos, aos
Estudos Sobre o Desenvolvimento e sobre as Epistemologias do Sul. Durante os
trabalhos de preparação da investigação no sul de Moçambique, nomeadamente na
revisão de literatura, formos encontrando algumas questões umas de natureza teoria,
outras de natureza metodológica que mereceram alguma atenção e reflexão. Aqui
procuramos aprofundar essas questões duma forma crítica
O artigo encontra-se articulado em torno de três questões. Estas questões não esgotam
os campos de reflexão, mas constituem um importante momento reflexivo que permite
o desenvolvimento dos trabalhos de investigação no âmbito do projeto Casa Muss-amb-
ike. Ao mesmo tempo constituíram um importante contributo para o Curso de
Formação Avançada do Doutoramento em Estudos Africanos, realizado por Ana
Fantasia no ISCTE-IUL, com a qual temos vindo a desenvolver os projetos em
Moçambique.
1 Por Pedro Pereira Leite, CES- Universidade de Coimbra. e Ana Fantasia –CEA- ISCT-IUL. (Uma
parte deste texto foi usada nos trabalhos do Curso Avançado de Estudos Africanos)
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1ª Questão: Os Estudos Africanos como campo de
investigação científica
A investigação científica pode definir-se como o processo de busca de
conhecimento. O conhecimento científico é um processo de observação do real, construído por determinadas ferramentas
através de determinados procedimentos, por determinados sujeitos. Esta distinção
entre o sujeito que conhece e o objeto que é alvo da ação desse sujeito constitui um dos paradigmas em que assente a ciência
moderna. Um conhecimento que se diz objetivo, porque parte da observação de
factos, da sua aceitação como fenómenos interdependentes, mas ao mesmo tempo constrói uma consciência dos seus limites.
O conhecimento científico, pelo seu procedimento opõe-se assim a outras
formas de pensamento, tais como o pensamento mágico ou o senso-comum.
A delimitação do objeto de investigação
constitui-se como a questão crucial na formação do conhecimento científico. O
quê, como e para que se observa o real é uma operação mental, feita por um
sujeito: Um cientista, segundo determinados procedimentos, expostos claramente aos seus pares. É a relação
entre o sujeito e o objeto.
O cientista, para além de aplicar os
métodos e os procedimentos científicos, é também um produtor de conhecimento. E a produção desse conhecimento inicia-se
com o questionamento sobre o real. A ciência observa fenómenos. Fenómenos
que se constituem como questões relevantes para a comunidade científica, para a sociedade em geral. Para além da
delimitação do seu objeto, importa também questionar a sua relevância, para
a comunidade científica em particular e para a sociedade em geral.
Qual será então a delimitação do objeto da
investigação em estudos africanos e a sua
relevância para o conhecimento científico é
a resposta epistemológica que vamos procurar responder.
Iniciemos pela reflexão sobre o que distingue os fenómenos estudados pelos Estudos Africanos no âmbito da ciência. Os
Estudos Africanos são uma disciplina científica ou um campo disciplinar?
Sabemos que o pensamento científico se tem vindo a consolidar em termos de disciplinas. As primeiras ciências modernas
a afirmarem-se, de onde derivaram os modelos disciplinares foram a ciências
ditas puras, ou exatas. As ciências da matéria. A busca dos elementos básicos do mundo exterior. A ciência construi também
uma linguagem, a matemática. Das primeiras ciências, com base na alegoria
da ramificação foram emergindo diferentes disciplinas científicas que estudavam
fenómenos naturais. A astronomia, o mundo exterior, a Ciência Natural, o mundo vivo, a geologia, o planeta, a
medicina o corpo humano, a psicologia a mente humana, a etologia, o
comportamento animal, a sociologia, a organização das sociedades, a antropologia, o homem e a sua relação
com o mundo.
Com o crescente conhecimento dos
fenómenos do mundo as diferentes áreas foram-se fragmentando em especialidades. Algumas delas deram origem às ciências
aplicadas. A medicina, por exemplo, uma área praticada desde a antiguidade, é um
campo onde o método científico produz um crescimento e eficácia extraordinária, como consequencia no aumento da
qualidade de vida e na longevidade da espécie humana. Também os fenómenos
humanos, mais diretamente relacionados com a organização da vida social dos homens, do seu passado, forma alvo da
proposta de estabelecimento das regras do conhecimento científico. Embora seja um
fenómeno que se gerou mais tarde do que nas ciências naturais, a ciência social, desde os trabalhos de Augusto Comte que
aspira à constituir-se como metodologia
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cientifica e a compreender as leis gerais da
sociedade.
Se olharmos atentamente para as diversas
disciplinas, no âmbito da sua génese, verificamos então que o que as distingue é fundamentalmente o campo de observação
do sujeito que observa e o conjunto de regras e procedimentos que utiliza. Desse
modo ao que se observa, como se observa é também relevante entender de onde se observa.
A questão dos Estudos Africanos como campo disciplinar é útil para entender esta
questão de “onde se observa”, já que pela sua definição plural de “estudos” parece indicar uma pluridisciplinaridade e assim
integrar um novo tipo de investigações científicas interdisciplinares que mais do
que se definirem pela delimitação do seu objeto, definem-se pelo seu processo.
Vale a pena olhar para a formação do paradigma científico moderno para entender a forma como a fragilidade das
fronteiras disciplinares. Uma primeira distinção, entre a observação do mundo
natural e o mundo dos homens, permite fazer evoluir a ciência natural e a formação das suas disciplinas de observação, do
infinitamente grande (astronomia) ao infinitamente pequeno (física). Do estudo
da matéria ao Estudo da Vida é um passo. A ciência natural ainda dividida nos três reinos (mineral, vegetal, e animal) ev olui
a partir a classificação das espécies com a aplicação da metodologia de Lineu e com a
ideia da evolução de Darwin. Mantendo naturalmente a divisão entre natureza e o homem, estudado pela Filosofia e pela
Teologia. Só em pleno século XIX, o humano será alvo do olhar científico, com
base no mesmo paradigma.
Uma outra questão que tem levantado alguma polémica na academia, coloca-se
com a emergência da interdisciplinaridade. Grosso modo podemos dizer que quando o
objeto de investigação deixava de ser investigação pura para passar ser investigação aplicada a convocação de
vários olhares disciplinares era convocada.
A essa multidisciplinaridade foi então adicionara a defesa do dialogo
interdisciplinar a a convocação da reflexão de metodologia interdisciplinares. Mas a questão não se reduz apenas a isso. A
mobilização dos contributos de diversas disciplinas implica a produção de produtos
de investigação mestiços.
O caso dos Estudos Culturais na sua relação com as ciências da educação é um
exemplo paradigmático. Quando em meados dos anos cinquenta os sistemas de
ensino europeus se tornam universais (universal no sentido de se estender a todo o universo do Estado, embora a teoria
do ensino para todos também se torne universal no sentido da sua expansão por
todos os estados do mundo, em ações de disseminação promovidas pela UNESCO),
emergem as questões da compreensividade dos sistemas. Isto é por via da consciência de que à “alta cultura”
objeto de estudo dos sistemas escolares coexistia com uma “cultura tradicional ou
popular” vinculada pelas organizações sociais e comunitárias. Colocava-se então o problema de como incluir esses
elementos, até aí considerados marginais, para as escolas. Facilmente se entende
que com as questões das migrações, dos grupos minoritários estes problemas tornam rapidamente objeto de estudo,
mobilizando diferentes áreas disciplinares, sejam dos estudos literários, da história,
da antropologia, da sociologia, de psicologia, criando “diálogos horizontais” entre diferentes ramos das disciplinas
tradicionais, na busca de propostas metodológica de compreensão de
diversidade e da inclusão.
Um outro exemplo desta questão, talvez até mais relevante para a questão dos
estudos africanos são os “Estudos para o Desenvolvimento”. A ideia de
desenvolvimento no discurso contemporâneo está presente uma ideia de que a mobilização da vontade de mudança,
de transformação da sociedade se mede por indicadores do progresso.
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Etimologicamente desenvolvimento
significa o crescimento natural das forças contidas num ponto2. Mas, para além do
seu significado etimológico a palavra foi apropriada pelas ciências sociais, em particular pela economia (BEIROCH, 1986)
e rapidamente se torna num conceito interdisciplinar. Rogério Roque Amaro, em
2003 propôs uma leitura crítica deste conceito através da sua releitura crítica (AMARO, 2003).
O autor situa a sua formulação inicial em Adam Smith na “Riqueza das Nações”3. No
entanto a questão emerge fundamentalmente no pós-guerra como um conceito que situa as condições da
aplicação dos processos de industrialização nas sociedades do Norte. O
Desenvolvimento seria então um modelo de aplicação de um conjunto de
procedimentos e técnicas que faria crescer as economias e criava bem-estar nas sociedades.
Com a emergência das independências do Sul, na Ásia e na África, nas décadas de
2 Desenvolvimento, acto de desenvolver.
Crescer, fazer medrar. 3 Adam Smith, (1723-1790). Filósofo e
Economista inglês. A sua obra mais famosa, “O
Inquérito sobre a Natureza e Causa da Riqueza
das Nações, publicado em 1776, é uma das
obras fundadoras ciência económica clássica.
Segundo Adam Smith, é o funcionamento do
mercado e a liberdade de troca (livre-câmbio)
que fundamenta a riqueza das nações. A sua
teoria irá também opor-se às teorias da
fisiocracia, fundamentado a mecanização e a
divisão do trabalho como criadores de riqueza.
Segundo Adam Smith, o interesse individual,
em concorrência no mercado permitiria a
criação da máxima riqueza para a sociedade
(SMITH, 1987). Adam Smith, com a sua teoria
do mercado fundamenta a ideia do crescimento
contínuo e cumulativo (ou acumulativo se
preferirmos). A esta ideia opunha-se na época
as conceções de Thomas Malthus (1766-1834)
o economista inglês que argumentava a
necessidade de equilibrar o crescimento
geométrico da produção de bens, com o
crescimento exponencial do consumo dos
recursos.
quarenta a sessenta do século XX, o
desenvolvimento torna-se num objeto semiófero. A independência é feita, entre
outras bandeiras, para trazer desenvolvimento e bem-estar aos países colonizados.
Ainda que essa visão reducionista tivesse sido criticada por diversos economistas, a
avaliação da aplicação dos planos de desenvolvimento nesses países evidenciou, num primeiro momento, a grande
eficiência das campanhas de saúde pública e dos planos de vacinação. Através dessas
ações tinham aumentado a esperança média de vida e diminuído a mortalidade, especialmente a mortalidade infantil.
Por seu lado a aplicação dos planos de educação tinham aumentado a taxa de
escolaridade de muitos dos países recém-independentes. Tudo faria esperar
progressos da produtividade económica e do aumento generalizado do Bem-estar social.
Contudo, como muitos estudos acabaram por revelar, não se verificou esse
progresso e em muitos casos, tinha havido mesmo um retrocesso nos indicadores de desenvolvimento para níveis anteriores à
independência. No início do sáculo XX, quando se estabelecerem os Objetivos de
Desenvolvimento do Milénio, falava-se das “Décadas perdidas”, do desenvolvimento em África.
A questão que interessa aqui relevar é que este campo de Estudos, que agrega a
economia, a sociologia, a antropologia, a história, a saúde, a gestão e as questões ambientais (pela preocupação do
desenvolvimento integral), a educação instalou-se nas academias permitindo
desenvolver a tal interdisciplinaridade.
O mesmo acontece com o Estudos Africanos. Como refere Franz-Wilhem
Heimer na sua apresentação dos Cadernos de Estudos Africanos em 2001, “Estudos
Africanos em Portugal, Balanços e Perspetivas” os Estudos Africanos
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emergem, como campo institucional nos
anos sessenta na Europa (HEIMER, 2001,17), como uma substituição dos
antigos Estudos Coloniais. Com a recomposição do sistema mundo emergem na Europa os “area studies” tomando como
objetos de estudos as problemáticas específicas das regiões.
Ora se nesse primeiro momento se o que caracterizava o “africanista” era o seu interesse por África, portanto o local de
investigação, os seus objetos de investigação deveriam estar ligados a um
espaço específico; rapidamente algumas questões se irão levantar rompendo esta barreira. Um exemplo dessa rutura com o
local é o caso da apropriação da “condição africana” como objeto de investigação
científica pela da História e pela filosofia. No primeiro caso verificámos a emergência
nos anos 70 do século XX da História de África através da escola dos Analles. A questão dos povos sem história foi, no
âmbito da renovação da historiografia francesa, uma das questões abordadas
pela “Nova História”. Os historiadores salientaram então que a História era em grande medida a narrativa dos
vencedores. Os vencidos, como era o caso dos africanos até aí sujeitos à condição
colonial, estavam ausentes das narrativas. Henri Moniot escrevia em a “história dos povos sem história” que escreveu “Havia a
Europa e era toda a História. Por cima e à distância, algumas grandes civilizações.
Cujos textos, ruínas, por vezes os laços de parentesco, de troca ou de herança da Antiguidade Clássica, nossa mãe, ou a
amplitude das massas humanas que opuseram aos puderes e ao olhar
europeus, faziam admitira às margens do império de Clio, aos bons cuidados dum orientalismo apaixo-nado pela filologia e
pela arqueologia monumental e votados, frequentemente, à ostentação das
“invariantes” espirituais. O Resto: povos sem história, como de comum acordo os consideravam o homem da rua e os
manuais da Universidade” (Moniot, 1977, p. 129).
Se até aí os africanos eram objeto dos
estudos estudos etnográficos, na maioria dos casos conduzidos por missionários.
(uma tradição que se enraizava mais na prática protestante do que na católica), as independências e as lutas anticoloniais
chamaram a atenção para a necessidade de escrever essa história. A monumental
obra de Joseph Ki-Zerbo, encomendada pela UNESCO é um bom exemplo da busca da legitimação no passado das novas
nações, como de resto eram as narrativas nacionais europeias.
Também a história faz emergir tomará consciência de incluir nas suas narrativas os processos que levaram à dominação das
nações africana. Um caso paradigmático é consciência do fenómeno negreiro e sua
influência na diáspora africana pelos outros continentes. A célebre questão do “The
Black Atlantic abordada por Paul Gilroy (Gilroy, 1993) que recupera o conceito de dupla consciência. Este coinceito havia sido
introduzido pelo filósofo americano W. Du Bois (1868-1963) como uma característica
dos negros americanos que transportavam simultaneamente a consciência da sua nova condição de cidadania em simultâneo
com a consciência da escravatura, conduz os Estudos Africanos para além do topoi
continental, para se centrar nos fenómenos das influências globais. Agora o objeto de estudo dos Estudos Africanos
alarga-se para os fenómenos contemporâneos da africanidade vivida,
para explicar como é que os descendentes dessa diáspora leem a sua pertença ao mundo. A dupla consciência traduz uma
dupla referenciação, por um lado a experiencia e a memória da escravidão e
do racismo e por outro lado o seu confronto com as trocas e influencias que sofrem nas sociedades contemporâneas
em que estão inseridos
Esta condição africana de resto já havia
sido proposta por Aimé Césaire (1913- 2008) (Césaire, 1971) e Léopold Sédar Senghor (1906-2001) por volta de 1935
(SénghoR, 1977) que utilizam o conceito de negritude para designar a
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“personalidade africana”. Nas palavras de
Senghor, “o que faz a negritude dum poema, é menos o tema do que o estilo, o
calor emocional que dá vida às palavras, que transmuda a palavra em verbo” (Margarido;1964, p V). Por via da
literatura emerge igualmente um campo de reflexão conhecida por Estudos Pós-
coloniais. Inicialmente ligada aos estudos literários4. O Pós-colonialismo procurou igualmente repensar a estrutura
epistemológica das ciências sociais e humanas, colocando-se do ponto de vista
das sociedades periféricas (um outro conceito introduzido por Immanuel Wallerstein (sociólogo, nasceu em 1930),
(Wallerstein, 1994) e Samir Amin, que classifica as sociedades hegemónicas como
Centrais e as dominadas como Periféricas (Amin, 1970). A Teoria Pós-Colonial efetua
por via dos discursos e das narrativas a análise os processos da dominação (política e cultural), e de afirmação da
diferença (de grupos e de culturas) que muitas das vezes são bandeiras de
movimentos sociais.
Sistematizando a questão que se coloca numa reflexão sobre a epistemologia
destas heranças nos Estudos Africanos podemos sumariamente concluir que na
sua génese concorrem não só as questões da formação de diálogo entre as disciplinas
4 Considera-se usualmente que a Teoria Pós-
Colonial se formalizou com o Livro de Edward
Said, professor de literatura na Universidade
de Colúmbia, nos Estados Unidos da América.
Edward Said (1900-2000) nasceu m Jerusalém
e publicou em 1978, o livro Orientalismo
(SAID, 2004), onde considera que a ideia de
Oriente é uma construção do Ocidente para
justificar a sua dominação política. Segundo
Said, o discurso das ciências sociais e humanas
foi moldado pelos padrões ocidentais que se
tornaram hegemónicos pela dominação
colonial. Embora esta questão não seja
exclusiva de Edward Said porque já em Frantz
Fanon (1925-1961), que no ano da sua morte
pública “Os Con-denados da Terra”, (FANON,
1977) fez uma crítica aos mecanismos de
dominação colonial do ocidente; o Orientalismo
tornou-se uma referência para os trabalhos
académicos sobre Pós-colonialismo.
científicas, como também nela concorre a
evolução do ponto de vista da análise dos fenómenos, na sua relação com o ponto de
observação. Ou seja para lá duma evidência de que os Estudos Africanos se constituem maioritariamente como um
campo disciplinar nas universidades do norte (ou se quisermos dos centros de
produção de conhecimento dominante), há também a dificuldade de delimitar o objeto de estudo apenas aos fenómenos que
ocorrem no continente africanos. Assim, dados os vários processos em que os
africanos estiveram envolvidos o objeto de estudo poderá situar-se numa ligação duma qualquer comunidade ao universo
cosmológico africano.
A questão dos Estudos africanos no caso
português adiciona ainda algumas especificidades à questão. Como antigo
país colonial que foi, adicionado a um regime político que alicerçou a sua ideologia identitária ao longo de cinquenta
anos numa narrativa duma “nação pluri-racial e pluri-continental” na base da qual
manteve uma longa e desgastante guerra de quase cem anos. (em algumas leituras o processo de colonização do interior de
África é retratado como tendo-se iniciado nas “campanhas de pacificação” do século
XIX, considerando-se que o estado de militarização, nem a resistência africana nunca cessaram). Ora esta narrativa
identitária teria tido uma certa dificuldade em ultrapassar o “trauma”, podendo
identificar-se ao nível dos discursos uma transmutação sucessiva duma narrativa do “espírito de cruzada”, “missão
civilizadora”, “luso-tropicalismo” e finalmente “comunidade lusíada”. É nessa
“turbulência” que os Estudos africanos se instalam em Portugal. Será apenas nos anos 90 do século XX que podermos falar
numa emergência dos “estudos africanos em Portugal”, instalando-se na academia
por via de centros de investigação, licenciaturas, mestrados e mais recentemente em doutoramentos.
(Heimer, 2001, 21).
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 15
Neste ponto da nossa reflexão importará
fundamentalmente olhar para os fenómenos africanos na sua complexidade
contemporânea para procurar respostas para os problemas contemporâneos. A consolidação deste campo de estudos
dependerá fundamentalmente dos contributos que outras formas de olhar a
realidade podem trazer. Analisar os fenómenos africanos e os seus processos de conhecimento podem ser um deles
2ª Questão: De que forma a proposta das Epistemologias do Sul se constitui como uma
problemática dos Estudos Africanos
As epistemologias do Sul constituem uma proposta epistemológica alternativa à
“epistemologias do norte”, feita por Boaventura Sousa Santos em Toward a New Common Sense: Law, Science and
Politics in the Paradigmatic Transition, publicado em Nova Iorque pela Routledge,
em 1995. Nesse trabalho o autor ensaia uma visão crítica ao paradigma científico que segundo ao autor conduziu à
hegemonia da produção saber sobre o mundo do ocidente. Este saber, segundo o
autor encontra-se numa crise paradigmática. A esta crise ensaisa uma leitura do paradigma emergente.
A leitura crítica inicia-se com “Um discurso
sobre as ciências”, o seu discurso de sapiência proferido na Universidade de Coimbra na aula magistral de abertura do
ano letivo de 1986. (SANTOS, 1987). O texto será sucessivamente enriquecido
com “Introdução a uma ciência pós-moderna”, (1989), “Pela Mão da Alice: o social e o político na Pós-modernidade”,
1994. Em “Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the
Paradigmatic Transition, New York: Routledge (1995) surge a sua proposta de
uma “epistemologia do sul”, proposta que é retomada na “Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência”
publicado em 2000 e “Gramática do
tempo: para uma nova cultura política” publicado em 2006. Finalmente em 2010,
em colaboração com Maria Paula Meneses apresenta um volume “Epistemologias do Sul”onde reúne várias contribuições
teóricas feitas a partir do sul. Devemos logo de início vincar a formação
em direito do autor e realçar a importância das questões da regulação e da ação política. Na leitura epistemológica do autor
a questão da regulação versus emancipação estarão sempre presentes, o
que implica uma valorização do que se poderá considerar a “função social da ciência”. O seu discurso e a sua proposta
assume deliberadamente um posicionamento crítico face á ordem do
mundo e uma busca de alternativas teóricas. Isso mesmo ressalta das críticas
que faz ao paradigma epistemológico que conduz à hegemonia saber do ocidente. Um paradigma que, segundo ao autor
sustentou o domínio do ocidente sobre o mundo. Esse paradigma é o produtor da
globalização do mercado de onde emergem trocas desiguais. As trocas desiguais criam as dependências e
desregulações ambientais. Assume-se que partes dos problemas do mundo atual
resultam da aplicação de resultados dessa ciência moderna, propondo-se a análise dos processos que podem favorecer um
rutura. A resposta epistemológica da busca dum novo posicionamento paradigmática
insere-se nestas preocupações. Ao partir do postulado de que parte desta ciência moderna deixou de dar respostas
inovadoras aos problemas da sociedade atual, o autor procura, na esteira da
análise sobre as revoluções científicas de Khun (Khun, 2009), antever um novo paradigma através da escuta “das vozes
do mundo”. Se o saber produzido pelas ciências deixou responder aos problemas
do mundo e se transformou num saber que se limita a reproduzir a si mesmo sem perspetiva crítica, há que procurar
formular novas perguntas para obter novas respostas. O saber científico deixou de ser
inovador e emancipador. A sua proposta é procurar saberes emergentes em locais e
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em comunidades que resistem à
hegemonia dessa ciência eurocêntrica.
É por essas razão que afirma que a produção do conhecimento científico está
numa fase de transição paradigmática. Uma transição de poderá durar várias
décadas e que permite a abertura de espaços de inovação crítica. Uma inovação crítica que ainda será tributária dos
paradigmas dominante em termos metodológicos e conceptuais, mas que
permite a emergência de vozes alternativas de conhecimento não hegemónico. Boaventura Sousa Santos
defende que para reconhecermos a inovação é necessário partir de
comunidades científicas não hegemónicas. Estas comunidades científicas são constituídas por investigadores
empenhados nas suas próprias investigações, sem coação de organizações
hegemónicas. Ora ao propor essa descentração das organizações de saber hegemónicas procura processos de
produção de saberes diferentes e silêncios que resulta dos processos de globalização.
A partir dos resultados da globalização hegemónica, a alternativa teoria de Boaventura Sousa Santos procura ancora-
se naquilo a que chama uma “globalização alternativa (SANTOS, 2000, p 000). O
domínio do paradigma científico do norte levou ao esquecimento e ao silenciamento de outros saberes. A cartografia destes
silêncios levará Boaventura Sousa Santos a reunir num conjunto de nove títulos com
o tema geral “Reinventar a emancipação Social: para novos manifestos” onde apresenta as propostas de globalização
alternativa. Por exemplo o sexto volume dessa coleção, com o título “Vozes do
Mundo”, (SANTOS, 2008) é apresentado experiências sociais alternativas à
hegemonia globalizadora. São propostos outros modos de vida e outros saberes que, segundo o autor, permitem
reconhecer os conhecimentos rivais. Estes conhecimentos rivais são essenciais para
procurar o que faz mover o mundo e o que dá sentido ao mundo.
A emergência destas “Epistemologias do sul” opõe-se à “Epistemologia do Norte”. A epistemologia do norte é uma
epistemologia de dominação que se organiza em estruturas verticais. O paradigma hegemónico foi o que permitiu
a consolidação dos projetos de poder coloniais, patriarcais, de exploração
assalariada. Constitui-se com base no fetichismo da mercadoria, na dominação identitária desigual é o fundamento da
troca desigual. O novo paradigma alternativo, contra-hegemónico deverá
constituir-se como epistemologias horizontais. Epistemologia de diálogo e de relações iguais
No campo das ciências sociais o projeto de dominação tinha conduzido problemáticas teóricas estéreis da como, “por exemplo, a
relação entre estrutura e ação ou entre a análise macro e a análise micro e que, em
meu entender, a distinção e a relação fundamental a fazer era entre acção conformista e acção rebelde”.
(SANTOS, 2006). Esta distinção vai alicerçar o trabalho científico do autor na
busca da consolidação do novo paradigma crítico, diversificado observado a partir do Sul. Este empenhamento a partir das
ações rebeldes permitem observar práticas de conhecimentos construídos por
processos cognitivos diferenciados, que geram experiencias sociais alternativas de resistência e emancipação social.
A proposta de conhecer a partir da perspetiva do sul implica uma posição do conhecimento feito a partir dos grupos
marginalizados, dos grupos sociais vítimas do sofrimento e da opressão das operações
de globalização. O conhecimento torna-se assim numa prática global que procura ultrapassar o conformismo que reduz a
realidade a processos de conciliação. A epistemologia do sul é uma proposta
poética e utópica gerada a partir das injustiças do mundo. As epistemologias do sul constituem-se como uma proposta de
enfrentamento e confronto com as práticas hegemónicas, com o objetivo de acabar
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 17
com o sofrimento e de criar um
pensamento alternativo.
A crise do paradigma científico moderno
A crítica à epistemologia do norte é feita a partir de três contextos de crise paradigmática. O contexto do
conhecimento, o contexto sociopolítico e o contexto cultural. O contexto da crise do conhecimento tem vindo a ser tratado
por Boaventura Sousa Santos desde a publicação em 1987 do “Discurso sobre as
Ciências Sociais”, posteriormente desenvolvidos na Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna em 1989 e na “Crítica
da Razão Indolente: contra o desperdício da Experiência”,publicado em 2000.
Nesses trabalhos Santos defende que o conhecimento dominante criado pela Ciência Moderna não está de acordo com o
que sabemos sobre as coisas do mundo.
Os fundamentos da crítica da relação entre sujeito que conhece sobre objeto que é
conhecido através do método de observação, que fundamenta este
conhecimento, tem vindo a ser questionado desde os anos 20, com os trabalhos sobre a relatividade de Einstein,
entre outros. O sujeito que observa interfere no objeto. A partir desta
constatação, Santos defende que não há uma neutralidade axiológica. A ciência é comprometida e não há um conhecimento
sobre o objeto que não envolva também o sujeito que conhece.
Igualmente a emergência das teorias dos sistemas, da cibernética e as teorias do caos, levam a que o conhecimento seja hoje entendido como uma constelação de
complexidade interdependente em processo. Exclui-se portanto, das ciências
sociais a possibilidade de determinar leis gerais. A ciência não é mais de que um
modo de explicar a realidade, através de determinados procedimentos que interferem com essa mesma realidade. O
conhecimento é hoje mais uma probabilidade, o que aliás constitui um
tema que tem estado em debate desde os
anos noventa, nos debates sobre a interdisciplinaridade5.Os quatro princípios
que fundamentam o fim das disciplinas são a complexidade, a indeterminação, a incerteza e os sistemas abertos com fonte
de inovação que se opõem a sistemas fechados que tendem para a entropia.
Os trabalhos sobre este novo paradigma emergente são objeto dos trabalhos de Boaventura Sousa Santos em
“Reeinventar a emancipação social” (SANTOS, 2003). Nele são apresentados os desenvolvimentos das epistemologias
femininistas, pós-coloniais e dos estudos para a paz, que confrontam os
procedimentos da ciência clássica, revelando que essa ciência moderna estava comprometida com os preconceitos
sociais. Sousa Santos defende uma ciência prudente para um conhecimento prudente.
As novas linhas de reflexão para a ciência, apontadas pelo autor, implicam uma relativização dos conceitos apontados para
limites externos da ciência. O desenvolvimento do conhecimento passa
pela instrumentalização dos argumentos do conhecimento. O conhecimento medeia o pensamento mas não medeiam os
sistemas. Os limites do conhecimento derivam das relações de poder na
sociedade.
O século XVIII transforma a ciência num discurso de poder e com o positivismo o
pensamento científico domina o processo do conhecimento (os conhecimentos rivais) e subordina a filosofia. Por essas vias, o
conhecimento científicos, enquanto discurso de poder, limita a emergência de
vozes rebeldes. Este é o limite da epistemologia do norte. É um discurso sobre a natureza que reflete o poder na
sociedade. Como pensamento hegemónico
5 A Carta da Transdisciplinaridade foi aprovada
em 1994 nos Encontros da Arrábida e defende
a o fim das disciplinas e a necessidade de
interdisciplinaridade. Entre outros participaram
Edgar Morin, Lima de Freitas e Bensarb
Nicolescu
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 18
exclui outros conhecimentos. Para a
epistemologia do conhecimento científico moderno não há conhecimento fora de si.
Por isso é necessário criar outras epistemologias para dar vozes a outras formas de saber. As epistemologias do sul
têm como limites o seu próprio rigor. O rigor constitui a base da emergência de
outros conhecimentos.
Em relação à crise do contexto social e político, decorre do esgotamento teórico e
analítico da ciência no mundo moderno. O esgotamento do futuro é visível pela crise financeira que é um sintoma de
esgotamento do modelo. A crise financeira recentra o norte as questões da resolução
dos problemas do mundo. O postulado hegemónico de desenvolvimento gera não mais do que subdesenvolvimento e o
modelo de conhecimento moderno não permite vislumbrar alternativas.
Santos afirma “depois de cinco séculos a ensinar o mundo o que é a civilização e o que é a democracia e o que são os Direitos Humanos, a Europa já não tem muito a
ensinar ao mundo” a partir do momento em que dentro de si própria a democracia
e os Direitos Humanos são suspensos. Governada por vice-reis, personagens
nomeadas fora dos processos de decisão democrática, para tomarem decisões sobre o mundo, a Europa e o seu sistema político
revela que está incapaz de aprender com os sinais do mundo. A tradição colonial da
Europa impede-a de apreender o mundo. As epistemologias do sul são também espaços de reconstrução das economias da
solidariedade e de dar voz a outros processos produtivos.
Quais são esses pilares emergentes? Segundo o autor há impulsos temporais contraditórios. Há claramente dois tempos. Um marcado pela urgência do agir. A
ecologia, o aquecimento global, o modelo energético são sinais de que são
necessários novos modelos de produção e de consumo. A ciência, no fundo tem sustentado o modo de produção
hegemónico. O modo de produção do
capitalismo americano, construído com
base na manipulação da natureza leva a que a autonomia da ciência seja
inoperante. A ciência é sustentada pelas corporações e desenvolve o que o capital exige. A longo prazo a ciência até talvez
não seja necessária se não ultrapassar a sua circularidade. A circularidade da
ciência é o que conduz a formulação de que apenas são problemas científicos, os problemas que essa ciência formula. Ora
como a fenomenologia determina os conteúdos, a ciência hegemónica evita
formular problemas que não podem ser determinados cientificamente. A ciência moderna demonstra uma grande
dificuldade em lidar com problemas de sentimentos e de espontaneidade.
A negação do outro leva a que, por exemplo, as conceções de natureza indígenas não sejam consideradas, porque
na mairia dos casos, as comunidades indígenas relacionam-se com a natureza com base nos seus sistemas de saber, de
pensar e de sentir. Este processo, leva a que o sistema social e político da
modernidade esteja impossibilitado de se radicalizar. O mundo contemporâneo domesticou o pensamento radical,
exigindo-se hoje uma antropologia da emancipação (livro em elaboração) onde
defende que é também necessário descentrar as formas de pensar das ciências sociais. A domesticação do
pensamento (selvagem6) levou a que a produção do conhecimento passa a ser
feita fora da sociedade, criando-se instituições (escolas e universidades). Esta separação entre o saber e o fazer em
instituições que apenas se dedicam à produção de conhecimento impede a
emergência de ações rebeldes porque produz conhecimento padrão. Ou seja, é
impossível ter uma ideia revolucionária numa instituição reacionária.
6 O pensamento selvagem de Levi-Straousse
de 1962, onde faz a analise dos mitos e dos
ritos da sociedades arcaicas
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A impossibilidade de formular perguntas pertinentes e a probabilidade de obter respostas fracas é o tem central do livro “A
Gramática do Tempo” (2006), onde faz a leitura do que é ser cosmopolita hoje e coloca em cena os horizontes de
possibilidade emancipatória. São horizontes que se situam em torno de uma
economia verde versus um capitalismo verde, buscando soluções nos mercados livres e não regulados com base em
investimentos verdes.
Em relação às alterações que emergem no contexto cultural, o terceiro elemento
analisado por Boaventura Sousa Santos no âmbito do seu trabalho de descolonizar as
ciências sociais, tem como base as evidências que se tem revelado nos últimos anos sobre a sensação de
esgotamento da ciência. A ciência já não responde aos problemas do mundo. Por
outro lado, desde há várias décadas que vários povos, sujeitos à colonização, indígenas e afrodescendentes tem vindo a
fazer várias reflexões epistemológicas e a construir ações de emancipação social.
Alguns países emergentes, como por exemplo a índia e a china, ao ascenderam como poderes no mundo transportam
também novas formas de refletir epistemologicamente, refazendo as leitura
das relações entre o ocidente e o oriente.
Uma das ideias que está errada é a crença de que a ciência é uma criação da Europa.
Por exemplo a ideia de que a matemática é feita pelos árabes, esquecendo o contributo de Al-khwazmi7, ou de que a a
Revolução Industrial só aconteceu na Europa, esquecendo a destruição da
indústria oriental, ou de que os europeus foram os primeiros a chegar à América. A história da sociologia começa no
positivismo, esquecendo os trabalhos de Ibn Khaldun sobr o Asbyyah (o assobio,
como sinal identificador da solidariedade clânica). A transfiguração é tão grande que
7 A ideia de zero, que assume valor associado a
outra coisa e da unidade, o um, como ideia que
põem em causa a ideia de Deus
muitos dos “heróis” da ciência, como por
exemplo Arquimedes é retratado como um homem branco. Negação da epistemologia
dos outros e a sua apropriação pela ciência moderna é um exemplo de criar propostas de transição epistemológicas, centradas
nas diversidades do sul.
Características das Epistemologias do Sul
A crítica ao pensamento e à ciência moderna, formado pelas sociedades ocidentais e que se tornou dominante no
mundo global parte da constatação de que na sua formulação existe um sistema de distinções entre o visível e o invisível. É o
que o autor chama de “pensamento abissal” (SANTOS. 2010, 30) uma
característica ontológica que distingue o visível do invisível. O objetivo do subjetivo. Uma metáfora que acompanha a ontologia
ocidental deste a metáfora platónica da alegoria da caverna. O que é iluminado e o
que está na sombra. A razão é o instrumento dessa operação. Uma linha que é abissal que torna invisível tudo que
acontece do lado de lá da linha. Assim, representa-se do norte imperial, colonial e
neo-colonial do lado de cá da linha, correspondendo, o lado de lá da linha ao
sul colonizado, silenciado e oprimido.
O outro lado da linha, o subjetivo não tem realidade ou, se a tem, é em função dos interesses do norte operacionalizados na
apropriação e na violência. Esta impossibilidade de operacionalizar o outro
conduz à impossibilidade da copresença entre as partes. No domínio da produção conhecimento pelo pensamento ocidental a
ciência e o direito constituem as formas paradigmáticas do pensamento abissal da
ontologia ocidental. No pensamento científico ela define a distinção entre verdadeiro e falso. No campo jurídico
define a distinção entre legal e ilegal. A distinção entre o legal e o ilegal é um
instrumento normativo da ação.
A proposta de observação deste fenómeno, segundo Sousa Santos, parte da análise
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das tensões visíveis entre a apropriação e
a resistência, no cruzamento com as tensões invisíveis presentes a regulação e
a emancipação do sistema. Essa forma de pensamento dual pode expressar-se em múltiplas representações. Uma das formas
propostas pelo autor é aquilo a que chama a “cartografia moderna dual”. A cartografia
moderna exprime na sua componente visível pela cartografia jurídica e na componente invisível na cartografia
epistemológica (SANTOS, 2010, 30). A primeira, a cartografia jurídica, regula o
que é incluindo e o que é excluído, criando os termos das “legalidades” e das “ausências”, dos “não lugares” e dos
“grupos humanos sacrificados”. Por seu lado a cartografia epistemológica coloca
uma segunda linha de visibilidade invisíbilidade, determinando o que é
conhecimento científico e exclui os não-conhecimentos. Todo o saber do mundo constituído fora do paradigma científico.
Os dados dos dos excluídos, dos ausentes são lidos e reinterpretados com as lentes
da razão.
As epistemologias do Sul tornam-se por essa via numa proposta de trabalho de criar uma “sociologia das ausências” e uma
sociologia das emergências”. Esta proposta conduz a uma “ecologia dos saberes” como
prática de regulação social.
A aplicação desta proposta é operacionalizada num primeiro momento
por uma diagnose dos diferentes tipos de saber. Saberes produzidos pelo conhecimento científico e pelo pensamento
não científico. No diagnóstico verifica-se um primeiro diálogo entre o conhecimento
ocidental e os outros conhecimentos. De seguida propõe-se um diálogo entre saberes para centrar as análises nos
elementos da convergência e nos denominadores comuns. O produto final é
expresso através narrativas linguísticas e ações transformadoras. Ações que se centram em processos de resolução de
problemas. A resolução de problemas concretos, como desafio das comunidades
permite lançar o desafio de criar
instituições adequadas as intervenções no
mundo real. Que espaço, que tempos e que formas de sociabilidade e podem
reconstruir para evitar a reprodução da reprodução das linhas abissais. (SANTOS, 2010, p 56).
Em suma a proposta da operação das epistemologias do sul assenta da desfamialização do que nos é familiar e na
abertura de uma janela para a experiencia cognitiva do mundo. Implica produzir um
estranhamento a partir do qual se reconstrói outros olhares e outras experiencias. Partimos do postulado de
que a experiencia e o conhecimento é diverso e infinito. As epistemologias do sul
devem captar os seus limites, incluindo as sensações, os afetos e a razão. Revelar a diversidade cognitiva do mundo é
questionar o mundo. Do questionamento emerge ação.
As epistemologias do sul deverão permitir a emergência de pensamentos alternativos. Por exemplo é importante questionar a ideia da universalidade. A
verdade duma entidade não pode depender do seu contexto. A ideia do
universalismo europeu por exemplo é uma falsa ideia. “Se é europeu não pode ser
universal”, afirma Sousa Santos a propósito da questão dos “Direitos Humanos como campo de tensão global
(Santos, 2006, 409). Este pensamento alternativo não prossegue a ideia do
universal, propondo um dialogo a partir de campos de convergância e compromissos. Uma outra característica que este
pensamento alternativo deve ultrapassar é a arcaica distinção entre conhecimento
natural e conhecimento sobre a humanidade, seja no indivíduo, seja nos grupos. A separação entre o homem e a
natureza é uma classificação artificial.
Este pensamento emergente não é um conhecimento completo. Partindo da ideia
da complexidade do mundo, não aspira à construção duma totalidade. Assumindo a incerteza recusa contudo a ignorância
completa. Deve-se assumir como um
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conhecimento emergente em processo que
assentar na em limites do rigor e no caráter retrospetivo da coerência. A
verdade é o que acontece e o que desacontece. Que há as situações de bifurcação e impasse. Que se aprende e se
desaprende no processo de aprendizagem de um dado conhecimento. O real deve ser
concebido como uma entidade ativa que se oferece ou que resiste a ser conhecido por um certo tipo de conhecimento. E é sobre
essas dificuldades que assenta o diálogo de saberes.
Quanto aos limites externos à pragmática epistémica ela quebra a relação entre o sujeito e o objeto. A ciência tradicional
necessita de objetos. A questão é definir quais são os objetivos de conhecimento e a sua relevância para a sociedade. As
dificuldades do conhecimento alternativo revelam-se quando admite que nem todo o
conhecimento é contável, e nem todos os conhecimentos são incomensuráveis. Os critérios de validação das epistemologias
do sul são dados pelas ações que desencadeiam e pela sua adequação aos
problemas do mundo.
A proposta metodológica das epistemologias do sul
Os procedimentos da epistemologia do sul são definidos pela sociologia das ausências e pela sociologia das emergências, propondo uma ecologia dos sabres e uma
tradução intercultural.As áreas de tradução intercultural são áreas que criam
legibilidades entre os saberes, que relacionam os indivíduos com as comunidades, a relação entre os indivíduos
e a natureza. A epistemologia do sul deve permitir a emergência da transcendência.
A epistemologia ocidental faz uma distinção entre a imanência e a transcendência. Onde o primeiro se
encontra nos limites da experiencia, sendo o transcendente o que se encontra para
além da humanidade. Com isso a ciência cria uma rutura com a espiritualidade que é remetida para o campo da teologia. Nas
epistemologias do sul há lugar para a
espiritualidade como processo de
conhecimento. As epistemologias do sul apontam para três caminhos pragmáticos,
o de democratizar a democracia, o de descolonizar e o de desmercantilizar. São três campos onde emerge a indignação
Sociologia das Ausências e Sociologia das Emergências8
A proposta de Boaventura Sousa Santos para uma Sociologia das Ausências e para
uma Sociologia das Emergências e de uma Prática de Tradução emancipatoria através
duma Hermenêutica Diatópica é apresentada na sua obra “Gramática do Tempo” (Santos, 2006, 87-161). Ele
transporta também a formulação da Re-invenção da emancipação social, um
objetivo teórico proposto pelo autor.
Para Sousa Santo é necessário entender como é que estão a ser produzidas
alternativas à globalização neo-liberal e ao capitalismo global, que constitui o corolário do pensamento ocidental. Tem como
objetivo criar uma comunidade internacional independente, pró via do
cruzamento de diferentes tradições teóricas, metodológicas e culturais a fim de constituir uma interação entre a cultura
e o conhecimento. O reconhecimento das alternativas criadas pelas diferentes
experiências sociais do mundo permite conhecer saberes muito mais amplos do que aqueles que a tradição da
epistemologia do norte permite reconhecer. Por isso é necessário combater
o desperdício das ideias e o desperdício da experiência (que o autor descreve na “Critica à Razão Indolente” (Santos, 2000),
e dar visibilidade ao conhecimento alternativo. O conhecimento alternativo
constitui uma ecologia de saberes. A razão cosmopolita é uma razão plural, aberta à diferença.
8 Artigo publicado por Boaventura Sousa
Santos na Revista Critica de Ciências Sociais,
63, outubro, 2002, pp 237-280, no âmbito do
projeto Reinventar a Emancipação Social
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A compreensão do mundo a partir da razão e do conhecimento produzido pela racionalidade ocidental assenta na busca
do domínio e controlo do mundo. É uma racionalidade que assenta numa determinada conceção de tempo e de
temporalidade. Esta distinção é fundamental para compreender esta
racionalidade. O tempo é compatado no presente ampliado no futuro. A temporalidade é linear.
A contratação do tempo no presente cria uma conceção de totalidade. O presente é um instante. A sua projeção no futuro
permite planear e planificar as ações, abrindo também a capacidade de projetar
no futuro o tempo presente.
A expansão do tempo no futuro, por seu lado é feita pela compreensão da história como uma linearidade. Sendo linear o
tempo é possível perspetivar a sua continuidade. O plano faz para da
prospetiva.
A alternativa proposta por Santo a esta racionalidade indolente (porque se fechou
em si própria e perdeu a capacidade de pensar o mundo fora de si) é a constituição duma racionalidade
cosmopolita. Essa racionalidade, ao invés deverá ampliar o presente e conter o
futuro. É uma racionalidade que necessita de traduzir a experiência do mundo. A racionalidade cosmopolita não busca uma
teoria geral, mas procura comprrender o que está fora da racionalidade indolente.
A razão indolente, caracterizada por Sousa Santos (Santos, 2000), é uma razão impotente, porque nada consegue ver fora de ela própria: uma razão arrogante,
porque não sente necessidade da pratica incondicional da liberdade; uma razão
metonímica, porque se reivindica como a única forma de racionalidade; e como uma
razão proléptica, porque não se compromete a julgar o futuro porque sendo uma racionalidade total no presente,
desmonta, pela retórica, todas as objeções possíveis.
Esta racionalidade arrogante, produz um pensamento em que nada existe fora de si próprio (desse pensamento) e nenhuma
das suas partes pode ser pensada fora do seu todo (porque cada parte é uma parcela do todo). A razão indolente opera uma
redução da multiplicidade do mundo e a linearidade do tempo (como por exemplo
foi formalizado por Weber em “A Ética Protestante”, em que a ação virtuosa produz resultados virtuosos, e vice-versa)
fundamenta um processo próprio de entender o progresso com um único feixe
pré-determinado.
Esta conceção da totalidade, pensada no paradigma da racionalidade indolente
impede-a de conceber outras visões do mundo (outras totalidades) sejam pensadas como heterogeneidades. Desta
maneira, as tensões sociais essenciais no mundo contemporâneo, as tensões entre a
regulação e a emancipação socais, que se traduzem em diferentes experiencias sociais, não podem ser resolvidas. A teoria
e a prática são separadas. Apresentadas como discrepantes, instaurando um hiato
de possibilidades para o pensamento e a ação. Essa impossibilidade de pensar é particularmente evidente nas realidades
dos chamados áreas periféricos e semi-prefiféricas, porque procura pensar
realidades a partir da sua própria matriz constitutiva.
Torna-se necessário, segundo Sousa
Santos criar uma alternativa a este pensamento hegemónico das ciências sociais. É aí que surge a sua proposta de
formular uma “sociologia das ausências” e uma “ecologia dos saberes”, organizadas a
partir de novas formas de racionalidade que surgem precisamente nas periferias desse mundo hegemónico.
A sociologia das ausências é um procedimento de conhecimento que procura transformar objetos improváveis
em possíveis, como forma de transformar as ausências em presenças.
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Trata-se também de uma forma de resistência a esse pensamento que emerge da “razão indolente e preguiçosa” – que
não se exercita porque se considera única e exclusiva. A sociologia das ausências é também um procedimento metodológico
rebelde e emancipatório. É necessário demonstrar que existem pensamentos
alternativos, é necessário reconhecer que a ausência não é mais do que uma negação das existências, ou uma
incapacidade, voluntário ou não, de reconhecer o real.
O pensamento produzido pela razão metonímia e proléptica traduz uma visão hegemónica do mundo ignorante, residual,
inferior, local e improdutiva. A sociologia das ausências visa sobretudo criar uma carência e transformar a falta ou o
desperdício de experiência social em campos de trabalho como forma de
ampliar o mundo presente. Por isso, a razão cosmopolita exige uma ecologia de saberes que combatam as monoculturas.
Na sociologia ocidental, as ausências são produzidas por meio de cinco modos (ou
“monoculturas”): a monocultura do saber e do rigor; a do tempo linear; a da naturalização das diferenças; a da escala
dominante; e, finalmente, aquela do produtivismo capitalista.
Para a razão indolente tudo que não é considerado produtivo no contexto neo-liberal e de capitalismo global é
considerado “improdutivo”. Estas ausências que deixam de lado, como não-existentes, outras formas de experiências
sociais e outras visões do mundo. É esse o objetivo da sociologia das ausências:
subverter a ordem de produção de ausências transformando-as em objetos presentes. Tornar possível como objeto de
conhecimento o que está escondido, ignorado ou esquecido pelo pensamento
dominante. Propõe a substituição das monoculturas por “ecologias”. A inversão, segundo Boaventura Sousa Santos é
possível por meio de cinco modos, que caracterizariam a prática da sociologia das
emergências. a ecologia dos saberes; a
das temporalidades; a do reconhecimento;
a das escalas locais e globais; e aquela das produtividades. Cada uma dessas
ecologias diz respeito às monoculturas acima enumeradas, apresentando contrapontos frutíferos entre a sociologia
das presenças e a sociologia das ausências.
A sociologia das emergências enfrenta o mundo procurando encontrar nele os sinais existentes no presente como possibilidades
de criar futuros. Trata-se de viver no presente os sinais do futuro. Propõe pensar a realidade a partir das
experiencias do presente como emergências do futuro.
Ora a sociologia das emergências é constituída por uma ecologia dos saberes, que tem como objetivo identificar as formas de saber e outros critérios de rigor.
Parte do princípio que não há ignorância e não há saber completo. Considera que
todo o saber é uma superação duma ignorância. Opõe-se assim à monocultura do saber. A ecologia das temporalidades,
parte do princípio de que o tempo não é linear, e que as relações de poder são
acentuadas peloa conceção do tempo de cada conjunto social. Cada conjunto social
tem as suas próprias temporalidades. A ecologia dos reconhecimentos procura revelar as identidades e as diferenças. A
colonialidade do pensamento indolente diferencia a igualdade e a diferença. A
ecologia das trans-escalas parte do princípio de que o local não é uma parte do global. Cada espaço existe
independentemente das dinâmicas globais e não se subordina a uma única escala de
temporalidade. Pelo contrário, a ecologia das trans-escalas procura revelar os tempos vividos. Finalmente a ecologia da
produtividade procura valorizar modos alternativos de produção e colocar em
como prioritário objetivos de produção ao invés de objetivos de distribuição e de consumo.
A sociologia das ausências procura substituir o vazio do futuro dado pelo
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tempo linear (vazio porque é previsível)
por um tempo de possibilidades plurais. Este feixe de possibilidades é operado no
presente. O presente é então uma possibilidade. Um modo de viver e ver o mundo. O movimento do mundo vistos
como possibilidade resulta da perspetiva de carência (algo que falta), da perceção
da tendência (algo em processo) e a perceção de latência (o que está na frente do processo, o que já existe).
A sociologia da emergência opera então sobre a possibilidade de ampliação dos saberes, das práticas e dos agentes, no
âmbito da identificação das possibilidades de futuro. Ora essa semântica de
expectativa manuseia possibilidades e potência social.
Contudo as sociologias das ausências e a das emergências terão como resultado a
produção de uma grande quantidade de realidades e objetos antes não existentes.
São objetos mais fragmentados, formas mais caóticas e plurais do que aquelas antes vividas. Importa portanto afinar a
operação metodológica capaz de compreender e ressignificar essas outras
realidades. Esse procedimento metodológico deverá constitui um
“procedimento de tradução” que contemple sua heterogeneidade e aponte, sobretudo, a não-univocidade de sentidos no mundo
contemporâneo.
A tradução das legibilidades reciprocas das experiencias do mundo, dos saberes e das
praticas exige uma hermenêutica diatópica . Uma hermenêutica diatópica é produção de uma teoria da interpretação do
conhecimento por zonas de contacto das visões do mundo. (um exemplo será a
conceção dos Direitos Humanos, da Umma e do Dharma). As zonas de contacto são zonas de transformação em que cada um
tem que se redescobrir através do outro.
O procedimento metodológico de tradução exige portanto um rigor na definição do
que se quer traduzir, quando traduzir, quem é que traduz e como se traduz. Em
relação ao que traduzir, apenas se torna
possível quando à convergência de sensações. A tradução é um processo
holístico. Por seu lado, só é possível traduzir quando há contacto. A questão de quem traduz é provavelmente a mais
complexa. A representatividade do agente no grupo pode ser um indicador de
seleção. Contudo, na sociologia das ausências e das emergências é necessário dar voz aos atores. Finalmente a questão
de como traduzir abre a necessidade de construção de topoi (lugares de consenso),
que permitam ultrapassar as dificuldades criadas pelas diferencias de línguas e linguagens, de locais e de situações. As
práticas sociais articulam as palavras e os silêncios. O gesto do silêncio e a tradução
do silêncio são os elementos mais exigentes do trabalho de tradução.
Em suma através da re-invenção da experiencia procura-se criar novas constelações de saberes e de praticas sociais suscetíveis de produzir alternativas
credíveis.
A hermenêutica Diatópica e uma conceção multicultural dos Direitos
Humanos
Trata-se de um texto publicado em 2002 e parte duma questão sobre a interpretação
dos direitos humanos como tema da politica internacional É um debate que situa a questão dos DH como um duplo
debate, ora como um instrumento de emancipação social na Europa, ora como
um instrumento de dominação europeia sobre o mundo.
No primeiro caso, no âmbito europeu, os DH tornaram-se um tema polémico, com
as força emancipatórias a defenderem, sucessivamente as questões das liberdades
políticas, dos direitos económicos e dos direitos culturais e qualidade de vida,
naquelas que são habitualmente consideradas as três gerações dos DH. Por outro lado, na afirmação a hegemonia
europeia, os DH a par com a Democracia, eram um instrumento de afirmação
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política, onde a duplicidade de aplicação
era frequentemente revelada no âmbito das querelas da guerra fria. Uma
duplicidade que tinha em linha de conta. “Duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos,
complacência para com ditadores amigos, defesa do sacrifício dos direitos humanos
em nome dos objectivos do desenvolvimento - tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guião
emancipatório”. No entanto, face ao colapso dos vários projetos de
emancipação social vários grupos recorrem aos DH como forma de reeinventar o seu discurso emancipatório.
A questão que o autor procura tratar neste artigo é sobre a validade do discurso como projeto emancipatório. O autor afirma que
isso é possível desde que sejam entendidas “as tensões dialécticas que
informam a modernidade ocidental. A crise que hoje afecta estas tensões assinala, melhor que qualquer outra coisa, os
problemas que a modernidade ocidental actualmente defronta. Em minha opinião, a
política de direitos humanos deste final de século é um factor-chave para compreender tal crise”.
Segundo o autor no final do milénio verificam-se três tensões. Uma tensão entre os sistemas de regulação social e o
sistema de emancipação social. Uma tensão entre o sistema do Estados
Moderno e a sociedade civil, e uma tensão entre os Estado-Nações e a Globalização.
A tensão entre a regulação e a emancipação, a tensão entre a “ordem e o
progresso” deixou de ser uma tensão criativa. Os discursos e as práticas
emancipatórias deixaram de ser um outro para passaram a ser um duplo da regulação. A crise do estado providência e
a crise da revolução social são sintomas dessa situação. O discurso sobre os
direitos humanos é um campo particularmente evidente desta crise, mas é também uma possibilidade de a superar.
A tensão entre o Estado e sociedade civil, revela-se na formulação contraditória entre um Estado cada vez mais
minimalista, por contraponto a uma sociedade civil que é cada vez mais um mimetismo desse estado, que se organiza
e se auto-reproduz através das leis desse estado que alrga a sua influencia a todos
os setores e atividades da vida dos cidadãos. Ora os DH estão, na sua primeira geração, no centro desta questão,
ao mesmo tempo que a aplicação dos temas da segunda e terceira geração dos
DH implicam que o Estado é o agente e o garante dessa mesma aplicação.
Finalmente a tensão entre o Estado-Nação
e a globalização revela-se na erosão acentuada no modelo de soberania política pela intrusão de cada vez maiores campos
sujeitos a regulação globais por organizações supra-nacionais. O modelo
político da modernidade ocidental está alicerçado no Estado-nacional como unidade fundamental de soberania. O
sistema interestatal é um sistema de estados soberanos que se autorregulam
através de por compromissos. Os sinais da erosão do sistema de Estados é hoje evidente por via de vastas parcelas das
funções soberanas e serem deslocadas para outros atores. A questão é portanto
saber se a regulação social e a emancipação social também deverão ser deslocadas para o campo da globalização,
ultrapassando o quadro moderno do Estado-Nação , falando das questões da
equidade global.
Nesta campo, os Direitos Humanos, um processo que tem vindo a ser traduzida
como um processo global poderá encontrar uma campo de afirmação. A tensão, porém, repousa, por um lado, no facto de,
tanto as violações dos direitos humanos, como as lutas em defesa deles
continuarem a ter uma decisiva dimensão nacional, e, por outro lado, no facto de, em aspectos cruciais, as atitudes perante
os direitos humanos assentarem em pressupostos culturais específicos. A
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 26
política dos direitos humanos é
basicamente uma política cultural.”
Mas, coloca o autor a interrogação, sendo um campo oriundo duma cultura
hegemónica poderá ser ampliado. Como poderão ser construídos diálogos para
além dessa hegemonia. Os Direitos Humanos não poderão constituir um espaço de debate e ação em torno das
diferenças, das particularidades e da universalidade.”Como poderão os direitos
humanos ser uma política simultaneamente cultural e global?”
O trabalho avança de seguida para uma proposta analítica e para uma proposta de
prática diatópica Como proposta analítica Santos defina e a globalização é o
processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a
capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival.”. E esta
é uma definição que implica entender a globalização atual como um domínio do ocidente sobre um determinado localismo,
e implica entender o que é o local. Ou seja, aquilo que a ciência moderna estuda
é o resultado da globalização num local. O domónio de um sobre o outro. Portanto,
eleger o local como ponto de partida da análise é assumir uma sociologia das ausências. Cada local tem uma dimensão
específica. E local aqui é o espaço através do qual se afirma. O inglês como língua
franca implica a localização de outras línguas globais. A afirmação de um local reflete-se na afirmação de outros locais.
A compressão do espaço e do tempo que se associa à globalização deve ser analisado como um processo social que
combina situações diferenciadas. Como um processo de tensão onde se defrontam as tensões da regulação e da emancipação.
Se por um lado as relações de poder se tendem a afirmar como hegemónicas, as
força de emancipação também procuram espaços de afirmação. Assim, por exemplo os movimentos migratórios são espaços de
afirmação de de uma globalização contra-
hegemónica. Entre os turistas que vivem
esta compressão do espaço-tempo e os camponeses ou moradores agrilhoados a
espaços urbanos cercados vivem diferentes modos de compressão do espaço tempo.
Para analisar as diferentes formas de
globalização assimétricas há que considerar diferentes formas de produção. O autor propõe uma análise de quatro
modos de produção de globalização, que dão origem a outros tantos modos de
globalização.
O primeiro é o localismo globalizado. “Consiste no processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado
com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformação da
língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial
das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA.”
A segunda forma de globalização é globalismo localizado. “Consiste no impacto específico de práticas e
imperativos transnacionais nas condições locais”. Resultam disso a restruturações e desestruturações variadas, subordinadas
às lógicas das transnacionais. Constituem-se hoje no saque aos recursos naturais e a
destruição maciça de recursos naturais e culturais, a conversão da agricultura de subsistência para monoprodução agricoloa,
ajustamentos estruturais e desvalorização do trabalho.
Nesse processo a “divisão internacional da produção da globalização” estrutura-se nos países centrais como centros de especialização de “localismos
globalizados”, onde os países periféricos cabem com ”globalismos localizados”. “O
sistema-mundo é uma trama de globalismos localizados e localismos
globalizados.”
No entanto, a intensificação das interações globais entre estes dois processos são acompanhados por outros dois processos:
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 27
o cosmopolitismo e ao património comum
da humanidade. Como cosmopolitismo entende o autor, os modos de organização
e de diálogo criados pelas relações entre os atores internacionais. O cosmopolitismo constitui-se como a ampliação dos modos
de organização social, que existem nos quando dos estado-nações à escala global.
Em relação ao património comum, derivam da emergência de questões de consciência que apenas fazem sentido quando
analisadas à escala global, tal como as alterações climáticas, a sustentabilidade
ambiental e a biodiversidade, os modelos de produção energética. Trata-se de um campo de interção física e simbólica que
exigem “fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações
presentes e futuras.”
As questões do cosmopolitismo e do património comum da humanidade são
campos de tensão entre a globalização hegemónica e a contra-globalização emancipatória. É portanto útil, em tenros
de análise distinguir a globalização de cima para baixo, da globalização de baixo para
cima.
É neste contexto que a questão dos Direitos Humanos emerge como questão
complexa. Ela tanto pode ser formulada, quer pela globalização hegemónica, quer pela globalização emancipatória, como
localismo globalizado ou como cosmopolitismo.
O autor apresenta uma a proposta de analisar a complexidade dos Direitos Humanos por via das condições culturais como forma de cosmopolitismos na
globalização contra-hegemónica. “A minha tese é que, enquanto forem concebidos
como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado - uma forma de
globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento do «choque de
civilizações» tal como o concebe Samuel Huntington (1993)”. Ora contra esta guerra do Ocidente contra o resto o Resto
do mundo onde os direitos humanos se
integram numa globalização contra-
hegemónica e emancipatória, é necessário que os Direitos Humanos se afirmam de
“baixo para cima”. Os Direitos Humanos devem se reconceptualizados como multiculturais. Haverá que articular a
legitimidade local com a competência global. “O multiculturalismo, tal como eu o
entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a
legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-
hegemónica de direitos humanos no nosso tempo”.
A metodologia de processo proposta parte
da necessidade de desuniversalizar os Direitos Humanos como forma de superar o seu cartar hegemónico para assumir um
caráter contra-hegemónico.
Atualmente há pelo menos quatro regimes internacionais da aplicação de direitos
humanos: o europeu, o inter-americano, o africano e o asiático. Como já noutros trabalhos salientou, cada cultura tendem a
considerar os seus valores fundacionais como os mais abrangentes. No entanto
apenas o ocidente os formula como universais. Por essa razão, a pretensão da
universalidade do cultura ocidental não é mais do que uma questão da própria cultura ocidental. Os seus pressupostos
tem vindo a ser revelados pela suposta “possibilidade de reconhecimento racional
da natureza humana, onde o individuo dispõe duma dignidade absoluta e irredutível, cuja defesa cabe ao Estado.
Ora, como nota Sousa Santos, esta formulação exige que todos os indivíduos
estejam colocado no mesmo plano (principio da igualdade) e que as sociedade não sejam hierárquicas. A sociedade como
resultado da soma de indivíduos livres e iguais é um pressuposto claramente
ocidental.
O entendimento da sobreposição do princípio sociológico aos princípios filosóficos deriva do desenvolvimento da
História dos Direitos Humanos no contexto
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 28
da Guerra Fria, onde o liberalismo
enfrentava o comunismo e que levou, a uma predominância clara dos princípios
eurocêntricos na formulação da declaração de 1948 e a subordinação dos povos coloniais ao direitos cívicos, e durante
muitos anos ao direito à propriedade como único direito económico.
Apesar disso, muitos são os agentes e as organizações, que lutam pelos direitos humanos no mundo. Nessa campo
emergem muitas práticas e ações emancipatórias que devem ser mobilizadas como campo de dialogo intercultural. “A
tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste em transformar a
conceptualização e prática dos direitos humanos de um localismo globalizado num projecto cosmopolita”
Essa tarefa exige uma transformação na prática dos Direitos Humanos. Em primeiro locar é necessário superar o debate entre
universalismo e relativismo cultural. São dois falos conceitos. O universalismo cultural é um conceito incorreto, tal como
o relativismo cultural. É necessário diálogos interculturais na busca de
preocupações isomórficas que produzam “coligações transnacionais a competir por
valores ou exigências máximas.
A segunda premissa é de quer todas as culturas possuem conceções de dignidade humana, mas nem todas estão traduzidas
na conceção ocidental dos direitos humanos. É portanto necessário identificar
as preocupações isomórficas em diferentes culturas para promover um diálogo. A terceira premissa é a necessidade de
entender que todas a s culturas estão em processo, e em certa medida são
incompletas e problemáticas.
A quarta premissa é de que todas as culturas têm visões diferentes da
dignidade humana, sendo que algumas são mais abertas do que outras. Finalmente em todas as culturas os indivíduos são
distribuídos em grupos de pertenças identitários, que se organizam de formas
hierárquicas que formam categorias sociais
homogéneas, articuladas pelo princípio da igualdade; ao passo que o princípio das
identidades opera pelo principio da disjunção (da diferença). Género, raça, orientação sexual, grupo). “Os dois
princípios não se sobrepõem necessariamente e, por esse motivo, nem
todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais”.Segundo estas premissas, pode-
se constitui uma conceção mestiça dos Direitos Humanos, que se organiza em
constelação, mutuamente legíveis e em rede de referência.
A hermenêutica Diatópica
A hermenêutica diatópica é uma proposta teórica de construção da cultura do outro a partir da leitura a a partir do outro. Trata-se de colocar universos diferentes
(saberes, modos de estar, modos de sentir). Os universos de sentido formam
constelações de topoi forte. Os topoi são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura.
Funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem,
dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos. Um
topi forte usado noutra constelação cultural perde o sentido. A hermenêutica diatópica procura ultrapassar essa
dificuldade, procurando conhecer os outros a partir do seu próprio discurso.
A hermenêutica diatópica tem por base “a ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que
pertencem. No interior duma cultura essa incomplitude não é visível, pois o desejo à
totalidade leva a que a parte seja confundida com o todo. “O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém,
atingir a completude - um objectivo inatingível - mas, pelo contrário, ampliar
ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 29
numa cultura e outro, noutra. Nisto reside
o seu carácter dia-tópico”
Essa é a vantagem de usar a hermenêutica diatópica no âmbito dos Direitos Humanos,
como metodologia de ação das possibilidades e exigências emancipatórias
a partir do contexto local e dos atores em cenas, evitando-se a canibalização cultural. Os exemplos de topos podem ser
considerados o topos de Dharma na cultura hindu e o topos de umma na
cultura islâmica. A combinação destes topos com os Direitos Humanos revelam a a sua incomplitude. Dharma e em certa
medida a umma colocam o ndividuo numa ordem geral do universo como elemento
processual, sendo que a conceção do Direitos Humanos est´+a organizada em termos de espelho de direitos e deveres,
sendo que apenas podem ser conferidos direitos a quem se exigem deveres.
O reconhecimento das incompletudes mútuas é condição para o diálogo intercultural. A hermenêutica diatópica é um processo coletivo, feito a diversas
mãos. O seu objetivo a ampliar a consciência da incompletude mutua
através do diálogo. Através do processo diatópico, literalmente variação de lugar,
evitam-se os epistemicídios de outras culturas. A hermenêutica diatópica abre um campo de possibilidade para busca e a
afirmação de outras culturas e colocar em cena outros atores em simultaneidade.
A questão do diálogo implica contudo a partilha de canais de comunicação e de posições sociais. Se as culturas partilham processos de troca desigual, que
possibilidades existem de diálogos. “O dilema cultural que se levanta é o
seguinte: dado que, no passado, a cultura dominante tornou impronunciáveis algumas das aspirações à dignidade
humana por parte da cultura subordinada, será agora possível pronunciá-las no
diálogo intercultural sem, ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a sua impronunciabilidade?” Como facilmente se
pode deduzir, os processos partilhados
também afetam a organização social,
criando grupos hegemónicos. A hermenêutica diatópica pode ser um
processo que permite ultrapassar a distribuição desigual.
Conclui então o autor que o campo dos
Direitos Humanos aplicados com hermenêutica diatópica poderá contribuir com eficácia para a emancipação social e
para a construção duma ecologia dos saberes no âmbito dum apolítica
cosmopolita.
3ª Questão: Qual é a relação entre Epistemologias do Sul e Estudos Africanos. Iniciamos esta reflexão colocando como fundamentação epistemológica a
necessidade do procedimento científico delimitar com rigor o seu objeto de
investigação como forma de assegurar a sua objetividade. Simultaneamente verificamos que a investigação deve incluir
um questionamento sobre a utilidade da investigação.
Verificamos que em determinadas circunstâncias se constituem procedimentos de investigação que
agregam investigadores e metodologias de diferentes disciplinas com o objetivo de
produzir determinadas investigações sobre fenómenos complexos. Figurativamente representam agregações de disciplinas,
procurando responder a problemas mais complexos. Afirmamos que este tipo de
campo disciplinar se afirma mais pelo processo de formação das sínteses que produz, pelo local onde se exerce, do que
pela delimitação do objeto, ou seja pela sua epistemologia. A formação de áreas de
saber transdisciplinares constitui uma das propostas para responder aos problemas
da complexidade. (MORIN, 1994). De seguida analisamos a proposta teoria das Epistemologias do Sul, desenvolvida
por Boaventura de Sousa Santos. Nesse trabalho teórico, o autor apresenta uma
proposta de análise sobre a “Sociologia das Ausências e a Ecologia dos Saberes” como um procedimento que se enquadra na
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busca dum novo paradigma científico. O
autor parte duma crítica ao paradigma atual das ciências, que considera esgotado,
porque incapaz de dar respostas inovadoras aos problemas das comunidades nas suas relações com o
mundo. A emergência desse novo paradigma científico nas ciências deverá
olhar para o mundo como uma totalidade complexa (Santos, 2002). Uma proposta duma nova abordagem
metodológica que advém do que o autor considera como “esgotamento do modelo
de racionalidade” (op. cit., 88). O modelo de conhecimento da racionalidade tem sido construído pela relação entre sujeito que
conhece sobre objeto que é conhecido através do método de observação. Este
método implica distanciamento e não interferência, para além da verificação da
sua reprodutibilidade Este procedimento tem vindo a ser questionado desde os trabalhos sobre a relatividade de Einstein,
onde se infere que a observação dum objeto por um determinado sujeito cria
uma interação mútua. Ou seja um objeto não pode ser reconhecido fora do sujeito que o conhece e fora do seu sistema de
pensamento. O modelo da racionalidade nega uma ontologia a tudo o que se
encontra fora da sua própria racionalidade. O modelo pós-moderno (o autor propõe o vocábulo cosmopolita) necessita de
reconhecer que o conhecimento seja hoje entendido como uma constelação de
complexidades interdependentes e em processo. A ciência deve ser entendida como um modo de explicar a realidade,
através de determinados procedimentos que interferem com essa mesma realidade.
Com esse reconhecimento o conhecimento é entendido como probabilidade que dever ser observado pela interdisciplinaridade .
Advoga-se inclusive a reorganização dos processos de formação dos saberes, com
base na inclusão da complexidade dos sistemas, da indeterminação dos processos, da incerteza dos movimentos a
adoção de sistemas abertos com fonte de inovação que se opõem aos sistemas
fechados que tendem para a entropia (ibidem).
A busca de novas linhas de reflexão para a
ciência, apontadas por Sousa Santos implica a relativização dos conceitos
usados e enfrentar as evidências que na matriz da produção do conhecimento se encontram as relações de poder
estabelecidas na sociedade. Relações que são hierárquicas e horizontais e que
determinam os próprios limitem desse conhecimento. O conhecimento é então uma possibilidade dada pela relação da
função da sua capacidade de reprodução com a sua adequabilidade como resposta
às questões colocadas. O conhecimento provável emerge da tensão processual entre conservação e inovação, ou com
defende o autor um confronto entre a ação conformista e a ação com “quiddam”
(Santos, 2006, 83). Como afirma o autor da “Gramética do
Tempo” (Santos,2006), os contextos sociais e políticos contemporâneos exigem que o conhecimento formule problemas
para os grandes questionamentos da humanidade. Esse conhecimento é hoje
um procedimento que implica a criação de diálogos que partem das situações concretas dos indivíduos e das suas
comunidades. Formular perguntas pertinentes é um primeiro passo para a
questionar as suas relevâncias. Na formulação das pertinências, partindo da fundamentação sobre o relevante como
afirmação de relações de poder, é necessário segundo o autor questionar as
ausências como um primeiro passo para entender o que está a emergir. A relação entre a ausência e a emergência
advém da incorporação no processo de conhecimento da experiencia cognitiva do
mundo. A experiencia intersubjetivas permite identificar as emergências. Ainda segundo Sousa Santos, a experiencia e o
conhecimento do mundo são diversos, infinito e os seus limites encontra-se na
capacidade de captar razão, as sensações, e os afetos. Ou seja a capacidade de assumir uma forma de consciência do
mundo como vontade de representação. Revelar a diversidade cognitiva do mundo
é questionar o mundo, assumir a
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experiencia intersubjetiva de
transformação que é emergente. Sistematizando a sociologia das ausências
é um procedimento de conhecimento que procura uma fenomenologia de transformação de objetos improváveis em
objetos possíveis. Trata-se de uma forma de catalisar as ausências em presenças,
configurando a necessidade de incorporar um sociologia das emergências, que permite ultrapassar as razões metonímicas
e prolépticas . A redução do presente e á ampliação do futuro que o com que o
modelo da racionalidade moderna se implicou, contrapõe o autor com a necessidade da razão cosmopolita ampliar
o presente e reduzir a possibilidade de futuro.
A sociologia das ausências visa essencialmente criar uma carência e
transformar a falta ou o desperdício de experiência social em campos de trabalho como forma de ampliar o mundo presente.
A sociologia das ausências procura substituir o vazio do futuro dado pelo
tempo linear (vazio porque é previsível) por um tempo de possibilidades plurais. Este feixe de possibilidades é operado no
presente. O presente é então uma possibilidade. Um modo de viver e ver o
mundo. O movimento do mundo vistos como possibilidade resulta da perspetiva de carência (algo que falta), da perceção
da tendência (algo em processo) e a perceção de latência (o que está na frente
do processo, o que já existe). Ainda segundo Sousa Santos o modelo de racionalidade conduziu o conhecimento
para um campo de “monoculturas” de saberes. A essa monocultura que conduziu
o conhecimento à sua esterilização é necessário uma “ecologia de saberes”. A ecologia dos saberes constitui-se por via
da incorporação dos sabres locais. A ciência deverá encontrar soluções para
explicar o mundo a partir da riqueza das experiencia e vivências locais. A sociologia da emergência opera então
sobre a possibilidade de ampliação dos saberes, das práticas e dos agentes, no
âmbito da identificação das possibilidades de futuro. Ora essa semântica de
expectativa manuseia possibilidades e
potência social que se traduzem numa ecologia de saberes. (ibidem, 112)
A questão do rigor relativo à prática da sociologia das ausências e das emergências na busca duma ecologia de
saberes obriga a uma prática de diálogo entre diferentes linguagens e modos de
pensamento. Para é enfrentar esses problemas, o autor propõe aquilo a que chama hermenêutica diatópica para
enfrentar a produção de uma grande quantidade de realidades e objetos antes
não existentes (ibidem, 113). Trata-se de objetos mais fragmentados, formas mais caóticas e plurais do que aquelas antes
vividas e inteligíveis. Importa portanto afinar a operação metodológica capaz de
compreender e de ressignificar essas outras realidades. Esse procedimento
metodológico constitui-se como um “procedimento de tradução” que contemple a heterogeneidade do real e aponte,
sobretudo, a não-univocidade de sentidos no mundo contemporâneo. A hermenêutica
diatópica é produção de uma teoria da interpretação do conhecimento por zonas de contacto das visões do mundo,
considerando que é nessas zonas de contacto que se encontram os processos
de transformação. Do ponto de vista epistemológico a reconstrução de processos de significação
a partir desses elementos comuns poderá constitui-se como uma proposta no campo
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Museologia Informal e Investigação-ação
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 35
A proposta da museologia informal como campo de investigação-ação9
Este artigo constitui uma reflexão sobre as metodologias de
investigação-ação aplicada na museologia informal.
Iniciamos o artigo com uma reflexão sobre os Horizontes da
emancipação social, a proposta de Boaventura Sousa Santos
apresentada em 2000 no seu livro “Critica da Razão Indolente”, para
de seguida fazermos uma atualização da nossa reflexão sobre a
Investigação-ação aplicada na museologia informal.
Constitui o nosso principal objetivo fazer uma reflexão crítica sobre as
metodologias que temos vindo a testar.
9 Por Pedro Pereira Leite- CES.UC
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 36
Horizontes da emancipação Social: As epistemologias do Sul, o Barroco e a Fronteira
Quanto em 2000, Boaventura de Sousa
Santo Publica a Sua Crítica da Razão
Indolente, o primeiro volume de uma série
de quatro onde o autor se propõe a
construir uma crítica ao paradigma a
racionalidade ocidental e a construir uma
teoria crítica assente na transição
paradigmática, apresenta uma reflexão
sobre os horizontes da emancipação social
(Santos, A Crítica da Razão Indolente:
Contra o Desperdício da Experiencia, 2000).
A análise crítica da mudança paradigmática
que o autor enuncia neste livro é sustentada
na tensão dialética entre regulação e
emancipação que, segundo o autor,
caracteriza a emergência e a hegemonia do
pensamento moderno ocidental. Segundo o
autor o pensamento ocidental é um
pensamento dual, que se vai constituir
como dominante no mundo global é um
pensamento abissal que se caracteriza num
sistema de distinções visíveis e invisíveis. A
componente visível do sistema expressa-se
através da tensão entre a apropriação e a
resistência; e a sua componente invisível
expressa-se através da tensão entre a
regulação e a emancipação social. As
tensões internas do sistema são portanto
reveladas pelo confronto entre a
emancipação e a regulação.
Este pensamento dual expressa-se em
múltiplas representações. Uma dessas
formas é aquilo a que o autor chama a
“cartografia moderna dual”, que se exprime,
na sua componente visível pela cartografia
jurídica e na componente invisível na
cartografia epistemológica (Santos,
Boaventura Sousa & Menezes, Maria Paula,
2009, p. 30). Se a primeira regula o que é
incluindo e o que é excluído, criando os
termos das “legalidades” e da “ausências”
dos não-lugares e dos grupos humanos
sacrificados; a segunda linha invisível,
determina o que é conhecimento e exclui os
não-conhecimento dos excluídos10.
É uma questão é complexa, sobre a qual já
nos temos vindo a debruçar noutros
trabalhos, sobretudo na sua dimensão
relativa às epistemologia do Sul (Leite,
Cassa Muss-am-ike: O Compromisso no
Processo Museológico, 2011). As
epistemologias do Sul, como já analisámos
em artigo anterior, é uma proposta
epistemológica que o autor propõe logo de
início em “A Gramática do Tempo: para uma
nova cultura política” (Santos, 2006). O
trabalho a que autor se propõe, a de
identificar a emergência dum novo
paradigma, é feito a partir duma reflexão
sobre o atual paradigma. De certa maneira,
o novo ainda não existe e apenas se poderá
ter conhecimento dele através de sinais.
Essa falta de distância e de perspetiva
produzirá certamente, como o autor
reconhece, sérios limites na análise.
O autor reconhece a impossibilidade de
evitar a contaminação do trabalho de
reconhecimento do futuro por formas de
pensamento construídas no paradigma
atual. Mas, como o autor também refere é
necessário efetuar esse esforço de reflexão
para ousar traçar caminhos que a prática do
trabalho científico se encarregará de validar
ou infirmar. É esse ensaio de procurar os
elementos que enunciam a possível
transição da modernidade (a razão
indolente) para uma outra razão
cosmopolita (que integra as diversidades e
as experiencias do mundo) que o autor vai
aprofundar no seu trabalho inicial (Santos,
2000).
10
Uma primeira abordagem desta questão é feita em
(Santos, 2013)
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 37
Depois de revisitar os papeis que a ciência e
o direito tiveram na constituição da
modernidade (liberalismo político e
marxismo) e na racionalidade (ciência), o
autor ensaia na segunda parte do livro “as
armadilhas da paisagem”: onde faz uma
crítica à epistemologia do espaço-tempo
através da análise aos sistemas de
representação cartográfica e a crítica da
“epistemologia da cegueira”, que é
responsável pela representação dos limites
do atual paradigma científico. Nesta
proposta analisa a determinação da
relevância, dos graus de relevância, a
determinação da identificação, a
impossibilidade da duração, e a
determinação da interpretação e da sua
avaliação. Esse será o processo que
permitirá o reconhecimento dos limites da
atual “epistemologia da cegueira” e a
emergência duma “epistemologia da visão”.
Será na busca dessa nova epistemologia
que o autor fundamentará a pertinência da
sociologia da ausências e das emergências,
que conduzirá à proposta de inclusão das
ecologias do saberes e dos procedimentos
de transição, com que o autor
fundamentará as suas epistemologias do sul
(Santos, 2006).
Mas será ainda nesse livro de 2000 que o
autor aprofundará a proposta apresentada
em 199411incluirá esse sul emergente como
proposta duma constelação tópica onde se
inclui a fronteira e o barroco como topoi
da transição. Ora por razões das nossas
investigações, e das leituras que temos
vindo a fazer do autor, temos vindo a
explorar sobretudo a riqueza teórica destas
“epistemologias do sul”, tendo deixado de
lado a riqueza destes outros elementos
desta constelação tópica. O nosso objetivo
neste momento o de integrarmos a questão
da fronteira nossa reflexão.
11
Apresentado igualmente em (Santos, 2013)
Revisitemos brevemente esta terceira parte
do livro. Como temos vindo a salientar o
autor procura que as construções destes
novos horizontes estejam ligadas às
práticas sociais. Às lutas emancipatórias,
também elas diversas e distintas. É uma
prática que procura a reconstrução do
conhecimento que recuse a objetivação do
outro, que o conheça reconhecendo a sua
capacidade de, autonomamente, produzir
conhecimento sobre si próprio e sobre nós
mesmos. Um conhecimento crítico que
tenha por base a intersubjetividade (Leite,
2012)
Não procuramos neste artigo dar conta da
riqueza e do esforço crítico desta parte da
obra, mas penas destacar os aspetos mais
relevantes para o projeto de investigação
que estamos e desenvolver no CES da
Universidade de Coimbra12, nomeadamente
a questão da reflexão crítica sobre as
comunidades de fronteira.
Regressando ao trabalho de Boaventura
Sousa Santos Continuar, em “Os horizontes
são humanos: da regulação à emancipação”
(Santos, 2000, p. 239 ss) vale a pena
destacar a sua crítica ao poder, sobretudo a
sua reflexão à teoria de poder em
Foucault13, à qual contrapõe uma cartografia
12
Heranças Globais: A Inclusão dos Saberes das
comunidades no desenvolvimento integrado dos
territórios, (BPD SFRH / BPD / 76601 / 2011).
No nosso trabalho temos vindo, para além da
investigação nos vários espaços, a proceder à
critica dos fundamentos teóricos que presidiram
ao estabelecimentos dos objetivos de
investigação. Como, na nossa perspetiva a
Teoria Crítica não reduz a realidade ao que
existe, tudo é deve ser entendido como o feixe
de possibilidades. A análise crítica deverá então
analisar e avaliar a natureza e o âmbito das
alternativas empíricas. Essa busca da procura
das alternativas ao que existe conduzi-os à
crítica da teoria do desenvolvimento integrado e
à crítica dos conceitos de comunidades, no qual
este artigo se enquadra 13
Em Poder e Conhecimento
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 38
relacional dos podres, que formam uma
constelação de espaços e dimensões sociais,
em torno das quais se manifestam outras
tantas relações de poder. É nesse âmbito,
na vontade da ação que emergem as novas
possibilidades de poder social solidário.
A procura dos dispositivos da ação leva
Boaventura Sousa Santos, no sexto e último
capítulo desse livro, a procurar os caminhos
da transição paradigmática. Em "Não
disparem sobre o utopista" (Santos, 2000,
p. 305) o autor (retomando e reformulando
alguma reflexões deita em “Pela mão de
Alice”, (Santos, Modernidade, Identidade e
Cultura de Fronteira, 2013) envereda pela
reflexão sobre as formas da ação possível. É
nesse capítulo, que apresenta as propostas
utópicas com base nos sinais emergentes
dos bloqueios do paradigma da
modernidade. Sinais, que como acima já
salientamos são detetados, nas fronteiras,
no barroco e no sul.
Antes de avançar para a identificação
dessas propostas utópicas, ensaia uma
cartografia da transição paradigmática. O
seu mapa orientador, que parte das
incapacidades de respostas pertinentes para
as questões socialmente relevantes do
paradigma modernos, propõe pontos de
observação. Esses pontos de observação,
que se constituem como pontos de
relevância para os processos de
emancipações social nas suas tensões com
os poderes de regulação social, são
delimitados pelos espaços - estruturais
definidos no capítulo anterior, a saber
(espaços doméstico, de produção, de
mercado, de comunidade, de cidadania, e
mundial), aos quais correspondem formas
de poder (o patriarcado, a exploração, o
feiticismo das mercadorias, a diferenciação
identitária desigual, a dominação e a troca
desigual) que como vimos se relacionam de
formas e intensidades diferentes, daí
resultado unidades sociais, instituições,
dinâmicas de desenvolvimento, formas de
direito e propostas epistemológicas que
configuram as diferentes formas de
realidade fenomenológica.
A importância do entendimento destas
possibilidades de real constitui o filtro a
partir do qual de pode observar as ações
rebeldes. As ações que visam ultrapassarem
os bloqueios e as opressões na sociedade.
Estas ações sociais rebeldes são as formas
de resistência social contra essas formas de
poder e, na medida em que se organizam
segundo articulações locais ou globais,
constituem-se como campos de ação e
investigação do paradigma emergente.
As diferentes dimensões espaciais do poder
relacionam-se com uma ou várias das
formas que assume, tornadas visíveis pelas
suas expressões simbólicas. As
comunidades cooperativas domésticas, os
processos de produção solidários, os
consumos responsáveis e solidários, as
comunidades amiba (comunidades abertas e
plurais), o socialismo sem fim, as
sustentabilidades democráticas e soberanias
dispersas. Uma transição que segundo
Sousa Santos tem que ser simultaneamente
epistemológica e societal. Isto é que novos
modos de conhecimentos, devem estar
alicerçados em formas de estar, de fazer de
ser e de organização social.
É nesta experiencia, na vivência da função
da experiencia que precede a determinação
do objeto, que radica a pertinência da
observação que desencadeia a ação. Como
tudo o que é observado se relaciona com
tudo, (como identificou John Locke no seu
“Ensaio sobre o entendimento humano”), o
conhecimento produzido pela ciência é ao
mesmo tempo universal e infinito.
Simultaneamente redundante e inovador. A
ultrapassagem desse paradoxo é possível
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 39
pelo diálogo processual entre o sujeito e o
objeto. A subjetividade do objeto é
reconstruída na ação. A construção duma
inquietação. A intersubjetividade é uma
destas respostas teóricas que permite
reconstruir, a partir da inquietação formas
de emancipação social.
Os lugares de fronteira
Os lugares de fronteira constituem-se como
formas de sociabilidade privilegiadas para a
observação. As comunidades de fronteira
são espaços onde se cruzam as tradições
locais e as tradições que resultam dos
movimentos de confronto (Santos, 2000, p.
321). São espaço de se reconstituem com
base na mestiçagem, construindo normas e
hierarquias dinâmicas, estabelecem relações
fluidas. São processos onde se confrontam
tempos diferenciados, produzidos em
espaços diferenciados. Há portanto uma
certa instabilidade no ar. As relações
estabelecidas são simultaneamente
horizontais e verticais.
A emergência do novo paradigma nestes
territórios de fronteira, segundo Sousa
Santos deverá ocorrer nas suas margens. A
fronteira do mundo global é o espaço onde
o paradigma dominante encontra as
maiores resistências em se implementar,
sendo dessa resistências que deverá
emergir as novas formas de organização e
conhecimento paradigmático. Será também
nesses espaços afastados dos centros que
deverão ser mais percetíveis as incoerências
das formas de dominação.
Pela sua natureza fluida estes espaços
marginais são espaços difíceis de
caracterizar. Tanto são visíveis formas
estruturais dominantes, como formas de
poder emergentes. São espaços de conflitos
estruturais. É esse conflito que importa
analisar a constituir como espaço de ação.
Uma ação que tem que ser construída a
partir dos protagonistas da transição.
A fronteira, ou melhor a experiencia dos
limites é um local onde se torna possível a
intensidade da existência. A vivência dos
limites no espaço é uma experiencia
possível em comunidade. Não interessa
neste domínio as experiencia dos limites
individuais, uma vez que essas experiências
não se traduzem em interações sociais. No
entanto, na fronteira há espaço para a
intervenção do individual na inovação. Dada
a instabilidade dos processos nos espaços
de fronteiras, a inovação é um elemento
que permite ultrapassar problemas. A
construção desse novo paradigma é um
esforço de fronteira.
O Barroco
O segundo elemento que Boaventura Sousa
Santo explora nesse capítulo é o Barroco
(Santos, 2000, p. 330). O Barroco como se
sabe é uma forma de expressão artística
que se constitui no sul da Europa no século
XVII, como resposta à iconoclastia
protestante e calvinista do norte da Europa,
e que é posteriormente exportada para as
colónias americanas e asiáticas. Uma
excentricidade da modernidade.
O termo barroco é usado nesse livro como
expressão metafórica duma forma de
cultura capaz de ultrapassar os limites da
forma para procura processos de
emancipação social. Ou seja, segundo
Sousa Santos, a excentricidade desta forma
cultural que surge nos países periféricos do
então centro (o Barroco manifesta-se em
nos espaços do catolicismo, como realºao
ao movimento protestante, num momento
em que a hegemonia do sistama mundo se
desloca do mediterrâneo para o Norte a
Centro da Europa). Como reação ao porque
se reproduz em cada espaço de acordo com
as especificidades de cada lugar, que se
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 40
traduz na constituição de formas específicas
desses mesmo lugares, apenas é possível
devido á fragilidade dos centros de poder
colonias. Ou seja é uma manifestação
inversa da tendência hegemónica do centro.
E é nesta asserção que o termo adquire
significância no campo da análise da
emancipação social no âmbito do paradigma
emergente.
O caráter aberto e inacabado do Barroco em
cada espaço é sinónimo metafórico da
criatividade das margens em relação ao
centro. E é essa criatividade inovadora que
Boaventura Sousa Santos procura para
exemplificar, como em termos sociais, a
organização social deverá criar alternativas
às formas hegemónicas da globalização.
É certo que o Barroco se constitui também
como uma forma de afirmação do poder.
Um poder fraco, diluído, mas um poder
hegemónico. Mas será esse modo de
afirmação que servirá de suporte às ações
emancipatórias que mais tarde surgirão
nesses espaços. Assim, segundo o autor, o
Barroco constituirá a base das narrativas
nacionalistas com que os países da América
enfrentarão os poderes coloniais.
Mas a metáfora tem também um outro
alcance, que o autor procura salientar.
Sendo uma expressão cultural que se
manifesta pela exuberância da forma,
sugerindo a sua incompletude, propiciando
a diversidade dos olhares e dos pontos de
vista, o barroco exemplifica a incompletude
da forma e abre caminho a interrogação, à
busca de alternativas e a novas formas de
expresso. Assim, continuando pelo discurso
metafórico, o paradigma sócio-político
emergente deverá ser encontrado nas
margens do sistema hegemónico. Estamos
portanto praticamente a prenunciar a
emergência das epistemologias do Sul.
Mas antes disso, interessa ainda explorar a
metáfora barroca na relação da forma como
representação do real. O barroco procura a
ilusão e a aparência. O barroco procura a
subjetividade da aparência. Captar a
transcendência pela pluralidade das formas.
O contrário portanto da objetividade do
conhecimento científico, que procura a
delimitação do objeto. A forma barroca é
uma forma transitiva. Uma forma que
estimula a criatividade do olhar. A
dificuldade em definir os limites, uma das
características da pintura barroca permite
dissimular as transições. As formas
misturam-se, fundem-se criando sombras
passíveis de ser elas próprias outras formas
que se revelam nessa mistura. Anuncia-se
assim a emergência de novas formas de
organização e ação social pela mistura de
formas existentes. O novo paradigma
emergirá das velhas formas. Ele estará já
em formação nessas formas de organização
atual. Importa portanto afinar os
instrumentos de análise para os capturar.
Uma captura de algo que está movimento,
algo que ainda é fluído.
Um derradeiro elemento que o autor
salienta em relação ao Barroco como forma
cultural, é a presença da festa como
primeiro elemento das modernas culturas
de massa. A festa barroca é uma festa
ritualizada, ensaiada, com fortes
investimentos sociais para uma vivência
fulminante. A festa barroca, tais como os
eventos contemporâneos são fenómenos
fugazes. Há um tempo e um espaço de
concentração de energia, que é rápida e
intensamente consumido. Mas é essa
intensidade vivenciada que constitui o
catalisador para as novas manifestações.
Ora esta metáfora aplicada à ação
emancipatória permite facilmente entender
que uma ação social que concentre uma
determinada intensidade de movimento
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 41
sociais emancipatórios criará um efeito de
reprodução no tempo. A festa é de certa
forma uma metáfora para a o fenómeno de
catalisação da emancipação social. Ao
contrário do cientista moderno, onde a
investigação está separada da ação, a
investigação do novo paradigma emergente
não pode deixar de ser concebida na própria
ação. Mais do que um comprometimento
com a ação, a investigação constitui-se
comum compromisso com a ação
emancipatória.
Mas a festa barroca transporta igualmente
uma componente de proximidade com a
vida real. Quer o teatro, quer as formas
burlescas, quer as manifestações profanas
que ocorrem em paralelo com as festas
religiosas, constituem como espelhos da
vida. Os problemas retratados são os
problemas vividos diretamente pelas
comunidades. Os seus resultado são visíveis
e imediato. É possível uma apropriação
dessa realidade. Os movimento sociais
emancipatórios deverão também eles estar
em sintonia com os problemas das
comunidade. Deverão dar resultados
concretos para os problemas vividos.
Tomando como exemplo a ação dramática é
de salientar o efeito do riso. A comédia é
uma manifestação dramática que emerge
nos séculos XVI e XVII como espelho
burlesco da sociedade, das suas
personagens e das suas preocupações.
Entre outras manifestações, como noutro
local veremos, o riso14 constitui um espaço
de reflexão sobre o si que as sociedades
indolentes procuraram condicionar e
cercear. A capacidade de rir de si mesmo é
uma unidade de reconhecimento duma
comunidade.
14 Ver a “Oficina do Riso”, mais à frente nesta
Revista
Como salienta Boaventura Sousa Santos a
partir dos trabalhos de Max Weber, o riso é
ostracizado pela ética capitalista. Ao
desencantamento das sociedades modernas,
contrapõe a festa do movimento
emancipatório. Na tradição das festas
operária, a transição paradigmática também
emerge no riso.
A última característica da festa barroca,
para além da representação do real e do
riso, é o efeito subversivo que se permite
intuir. O carnaval barroco é uma
manifestação subversiva. A transgressão e a
inversão dos papéis sociais que o carnaval
permite, conduzem quer ao reconhecimento
de si, quer ao reconhecimento dos outros. A
inversão das hierarquias, na festa e no
carnaval é um passo para a experiencia da
inovação (também não é por acaso que o
carnaval é um fenómeno mediterrâneo). Da
inversão da hierarquias à vontade da
experiencia de mudança é um pequeno
passo. A festa traduz-se dessa forma como
um imenso potencial emancipatório a
explorar pela ação social. Uma ação que é
primeiramente experimentada e vivencias
pela estética e pela ética do prazer.
O Sul
O último topos tratado por Boaventura
Sousa Santo nesse livro é o Sul (Santos,
2000, p. 340). Já dele falamos mais acima
nesta revista. Resta salientar que para o
autor este constitui um meta-topos, ou seja
um lugar que preside à “constituição dum
novo senso comum ético. O sul é também
ele uma metáfora cultural para uma
“arqueologia da modernidade”. Como o sul
é o espaço de colonização do outro, dos
outros, das margens do sistema mundial,
ele próprio é um mundo de fronteiras e
barroco, de hierarquias e subordinações.
Sendo a transformação da modernidade
construída na base duma dupla dicotomia,
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 42
entre Norte-Sul e Ocidente-Oriente, sendo
que a primeira tem uma conotação
fundamentalmente sócio-económica e a
segunda sócio-cultural, rapidamente as
relações na globalização de fundem. No
século XIX deixa de ser possível esta ma
delimitação geográfica, porque em todo o
lado há uma dominação do outro e uma
subordinação dos mercados e das formas de
produção aos interesses do centro.
Mas será nesse sul que durante o século XX
emergirão as forma de consciência dos
outros, da violência dos sistemas de
dominação, será neles que emergirá a
vontade de rebelião, a consciência do
sofrimento humano. Segundo o autor é no
sul que existe a experiencia de luta por um
mundo alternativo.
A vontade de emancipação social sairá
segundo Sousa Santos, da conjugação
destas três tipologias tópicas: dos
fenómenos de fronteira, com características
barrocas, nos espaços do sul. Três formas
metafóricas de entender que se deverão
relacionar para evitar o esvaziamento do
potencial emancipatório. Esta condição
defrontará o paradigma da modernidade nos
seus espaços estruturais. O paradigma
emergente continua uma incógnita, mas
Ester trabalho é um importante contributo
teórico para a investigação ação.
----------------------------------------
1. A Metodologia de
investigação-ação
Há uma longa tradição nas ciências sócias
na utilização de metodologias qualitativas,
nas quais se insere a metodologia da
investigação-ação. A propósito desta
questão já nos debruçamos na nossa tese
de doutoramento, onde procuramos refletir
a museologia a partir das práticas da teoria
da conscientização, proposta por Paulo
Freira (Leite, 2011). No cerne desta
questão, como então notávamos estava a
relação entre o sujeito e o objeto, um dos
axiomas da ciência moderna.
Posteriormente desenvolvemos essa
reflexão em “Objetos Biográficos” (Leite,
2012), onde procuramos apresentar a
proposta da poética da intersubjetividade
como metodologia na museologia. Uma
metodologia qualitativa de investigação-
ação. Uma metodologia que procura, na
sequência das propostas de Boaventura
Sousa Santos, olhar a partir do Sul, da
Fronteira e do Barroco (Santos, 2013) e
(Santos, 2002).
A questão da dissolução do objeto de
investigação no sujeito dessa investigação
onde assenta onde assenta o paradigma da
ciência moderna permite intuir as
possibilidades de emergência de padrões de
inteligibilidade intersubjetiva. O
conhecimento construído a partir do sul
emerge na relação entre as dimensões
subjetivas dos indivíduos que criam õu
estabelecem constelações de compromissos
e consensos, através dos quais se vão
desenvolvendo as diferentes ações sociais.
Algumas dessas constelações cristalizam-se
em formas organizacionais, outras nem
tanto. Em todas elas encontramos formas
de estruturação, mais ou menos formais,
formas simbólicas e de legitimação.
Ao traçar os objetivos da investigação ação
no âmbito desta postura, o investigador
para além de procurar o outro15 não pode
deixar de se procurar a si mesmo. O
15
Como temos vindo a trabalhar nas questões da memória e do esquecimento, a alienação do outro é uma forma de esquecimento do eu. Ou seja, a teoria crítica ao afirmar que a ciência moderna o estabelecer a distinção entre sujeito e objeto cria uma alienação do objetos (que explica o fetichismo da mercadoria), estabelece igualmente a alienação do sujeito. Uma arrogância epistemológica que é um resultado do auto-esquecimento ( (Santos, 2013, p. 293)
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 43
conhecimento que vai produzir, os seus
objetivos de conhecimento, não pode
constituir-se como a validação do que já
está adquirido (gerando a redundância),
mas adotar uma postura dialogante, de
procura de informação original acerca de
situações ou de atores em processo. A
produção dos conhecimentos teóricos
deverá ser obtida através de um processo
de diálogo (entre o investigador e os
membros representativos das comunidades
que vivenciam as situações ou problemas
investigados.
Por outro lado, a Investigação-ação não
procura um conhecimento teórico sobre um
determinado fenómeno. Ela procura
produzir guias ou regras práticas para
resolver os problemas e planear as
correspondentes ações de resolução através
da implicação e da participação daqueles
que são afetados por esses problemas.
A Investigação-ação permite analisar as
possíveis generalizações a estabelecer a
partir de várias pesquisas semelhantes.
Cada processo em que o investigador
participa é um enriquecimento pessoal,
assim como o é para os membros das
comunidades envolvidas.
Os processos de investigação-ação
aumentam o envolvimento das pessoas em
causas que lhe são próximos, desenvolve o
interesse das pessoas e dos grupos em
processos de mudança social.
Um investigador envolvido num processo de
investigação-ação envolve-se com a
comunidade em que trabalha. Dispoõe por
isso duma distância muito reduzida em
relação aos outros. Um bom pesquisador
não pode deixar de ser aceite pela comum
idade.
Este envolvimento com as comunidades e
com as suas causas não deve impedir o
investigador de publicar os resultados das
sua pesquisa. Para alem de assegurar que
os resultados da investigação não se
restringem a um pequeno grupo de
pessoas, a publicação dos resultados da
investigação também deverá assegurar a
filtragem entre o que é socialmente
partilhado.
A investigação ação gera mudança social
com base em elementos concretos da vida
dos grupos. Estas ações são filtros que
permitem adequar as ideias e os projetos às
condições sociais de intervenção e permitem
ao investigador verificar ou não a utilidade
do seu trabalho.
O procedimento metodológico da
investigação-ação, como método qualitativo
implica a formalização de um conjunto de
regras que permitam a recolha da
informação em diferentes momentos do
processo, para que a sua análise seja
possível e acessível em qualquer momento
da investigação. O ciclo de diagnóstico,
planeamento, ação experimental e
validação/descrição do conhecimento, é pois
um ciclo aberto, em que a cada momento se
utilizam procedimentos dos momentos
anteriores.
A questão que nos interessa neste momento
refletir, é a adequação desses
procedimentos de Investigação ação no
âmbito do nosso projeto “Heranças Globais:
A inclusão dos saberes das comunidades no
desenvolvimento integrado dos territórios”.
No estabelecimento dos objetivos de
investigação deste projeto, afirmávamos
que íamos procurar analisar as tensões na
memória social das comunidades através
dum conjunto de procedimentos que
evidenciava a adesão à metodologia da
investigação ação. Vamos agora refletir
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 44
sobre a atualidade do uso desta
metodologia a partir dos diferentes
instrumentos de trabalho, e dos mais
recentes contributos.16
O seminário realizado no CES em Coimbra,
em dezembro do ano passado foi útil para
reproblematizarmos a questão da
Investigação-ação no contexto dos
movimentos sociais. É sabido a reflexão que
tem vindo a ser feita sobre esta questão a
partir das experiencias sociais na Europa17,
sobretudo nos campos da sociologia urbana.
Como Sérgio Rodriguez Gravitto nos
recorda, não menos relevantes são os
legados das das décadas de 60-70 com os
trabalhos de Orlando Fals Borda18 na
Colômbia e Paulo Freire19 no Brasil, este
último já acima referenciado.
Desde essa altura, as metodologias da
investigação-ação tem vindo a ser aplicadas
em diferentes latitudes, em diferentes
campos do saber procurando aplicar a
investigação académica no campo das
diferentes disciplinas. Ele tem constituído
um importante instrumento de intervenção
e negociação no âmbito da formação das
políticas públicas, através das quais os
16Para este trabalho baseamo-nos na utilizamos
os contributos do Seminário “Investigation-ación
2.0” feito por César Rodriguez Gravitto na
Cátedra Boaventura Sousa Santos em 11 de
Dezembro 2012, Faculdade e Economia da
Universidade de Coimbra. 17
Veja-se nomeadamente (Guerra, 2007). 18 Orlando Fals Borda (1925-2008), Colombia.
Em 1959, junto con Camilo Torres Restrepo,
fundou a primeira Faculdade de Sociologia da
América Latina na Universidade Nacional, na
qual foi o decano. Foi um dos fundadores dea
Investigação-ação Participativa (IAP), método de
investigación qualitativa que pretende con hecer
as necessidades sociaies de uma comunidade, e
juntar esforços para transformar a realidade
com base nas necessidades sociais 19 Paulo Freire (1921-1997) . É o criador da
Pedagogia do Oprimido e influencia a pedagogia
crítica
diferentes movimentos sociais vão
procurando garantir processos
participativos.
A investigação-ação tem-se vindo a tornar
num saber aplicado nas lutas sociais. Busca
um saber produzido com as comunidades e
fundamenta-se no pensamento com os
atores sociais. A IA é hoje aplicada numa
escala local mas continua a ser trabalhada
numa escala muito próximo das
comunidades, criando compromissos na
ação.
A investigação-ação como instrumento de
sua aplicação no local é um bom desafio
para localmente pensar o global. Como tal é
uma metodologia que tem vindo a ser usada
nas universidades populares, nas escolas
dos movimentos sociais.
Localmente, na comunidade, na cidade ou
nos estados a IA mostra-se hoje como um
processo adequado à formação das políticas
públicas. Nos novos modelos de governação
democrática20, as políticas públicas são
estabelecidas por negociação. A organização
em grupos e cidadão revela-se como um
instrumento eficaz para intervir na
comunidade, para captar recursos e para
disseminar modelos de intervenção.
A utilização deste modelo permita ao
investigador criar uma agenda de
investigação no âmbito de intervenções
públicas e conciliar o processo de
investigação com o ativismo público. O
ativismo do investigador torna-se um
processo de cidadania no âmbito de
construção de instituições. Tanto mais
relevante é esta questão, quanto sabemos,
que por tradição, as universidades,
enquanto centros de saber hegemónico
20
Na formulação de políticas públicas joga-se hoje a capacidade de afirmação dos sistemas de poder democrático. (Pasquino, 2007, p. 287)
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 45
criadas na modernidade, são estruturas
hierárquicas, filtrando e reproduzindo as
formas de saber hegemónicas. A
participação do investigador nos processos
de cidadania é ela própria uma possibilidade
de inovação social na construção de
instituições de saber
A investigação-ação é um processo
metodológico que permite transformar a a
imagem social em imaginação pública. Ao
desenvolver intervenções públicas com base
na participação, a permite um entendimento
do real mais consistente e uma abordagem
construída a partir de diferentes ângulos de
entendimento. Aumenta com isso o
envolvimento dos atores nos movimentos
sociais, e permite escolher as relevâncias
nos processos. A investigação-ação, por
estar mais próxima dos processos, está
numa sintonia mais elevada em relação às
questões relevantes para cada comunidade
a cda momento. Uma das críticas feitas à
investigação tradicional, feita com base no
paradigma moderno, é a de quando formula
os problemas, já eles estão ultrapassados.
Enquanto a investigação tradicional, por
norma chega tarde aos fenómenos que
procura explicar, a investigação-ação
constitui uma forma de ultrapassar os risco
de falta relevância na ação.
Finalmente uma última vantagem nos
processos de investigação-ação para o
investigador. A proximidade e a participação
nos processos de investigação cria um efeito
efeito emocional, que facilita a motivação. A
ação é uma presentça constante. Há claro o
risco de um envolvimento excessivo, quer
com atores, quer com os processos. Uma
situação em que apenas a experiencia e a
maturidade dos investigador@s permite
ultrapassar a calibrar.
Há contudo alguns dilemas que a
investigação-ação continua a enfrentar. Não
há um caminho único, nem um caminho
linear para a construção do presente. A
Utopia é diversificada e polissémica.
Sabemos que o mundo em que vivemos
continua a ser contraditório, injusto e
problemático. A investigação-ação não
procura resolver todos os problemas das
relações desiguais, do modelo energético
com base no carbono, dos diferentes
conflitos no mundo, do modelo económico
com base na fetichizarão da mercadoria, da
economia predadora dos recurso naturais. É
no entanto uma metodologia que contém na
sua formulação os elementos necessários
para trabalhar sobre a transição
paradigmática.
A investigação-ação é um instrumento
adequado para trabalhar na construção da
transição paradigmática. Na América Latina,
um continente que enfrenta hoje uma forte
pressão para explorar os seus recursos
naturais, gerando diferentes conflitos e
alimentando uma espiral de procura de
recursos, alimenta o modelo económico que
deixou de se basear na indústria para se
centrar na venda de matérias-primas. A
América Latina centra-se na exploração das
últimas fronteiras terrestres.
Os processos de investigação-ação têm
vindo a evidenciar a necessidade de intervir
e denunciar um conjunto de ações, ao
mesmo tempo que contribui para a criação
de novas sociabilidades e novos sentidos de
comunidade. À ocupação dos territórios
indígenas da amazónia, a sua inclusão nos
processos de produção extrativista da
economia global, tem vindo a produzir
denuncia de violação dos direitos humanos.
A criação desta relação tem favorecido a
criação de instituições e ações comuns nos
movimentos indígenas.
Este envolvimento nas lutas sociais e nos
processos de ação e na construção de
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 46
instituições comuns constitui um dos
principais desafios que a investigação-ação
enfrenta na atualidade.
Será a investigação-ação uma empresa
quixotesca? Uma forma de solucionar os
problemas do mundo. É claro que a
resposta é negativa. A investigação-ação é
um instrumento de trabalho. Uma forma de
intervir para solucionar problemas. É
necessário não esquecer que a investigação-
ação composta riscos. Não podemos estar
envolvidos com o objeto de investigação
durante demasiado tempo sem sermos
contagiados por esse mesmo objeto. Há
portanto que balizar bem o tempo de
intervenção. Ultrapassar o tempo de
investigação, é de certa forma deixar de ser
investigador e assumir a uma condição de
ator cidadão. A fronteira entre ambos é
difícil de distinguir.
Um outro risco da investigação-ação é o
voluntarismo. A participação nos processos
sociais e o ativismo social é absorvente. A
implicação nos processos sociais absorve a
ação do investigador. Esse envolvimento
pode conduzir ao abandono dos princípios e
objetivos iniciais da investigação ou a uma
acomodação aos ritmos do mundo. A
investigação é prática, mas não dispensa
uma reflexão, individual e em grupo sobre
os resultados que a cada momento vão
sendo obtidos, bem como dos processos que
a cada momento se devem tomar.
Verifica-se também que o investigador em
ação corre também o risco de criar
dependências em relação aos atores com
que se envolve. A criação de cumplicidades,
de redes de solidariedade é normal no ser
humano em processo. No entanto
dificilmente resistem à quebra de laços e de
compromissos criados. Quando o
investigador enfrenta o dilema da escolha
entre a razão e a emoção a decisão é quase
sempre problemática.
Finalmente, o investigador em ação corre
também o risco de esgotamento. A prática
de investigação ação é esgotante. O
envolvimento permanente e as exigências
sociais são cansativos. O investigador, a
cada momento tem que se adaptar aos
contextos de investigação. Sair de sí para
procurar o outro é um exercício que obriga
também o reconhecimento de sí. Isso pode
conduzir a conflitos individuais ou sociais
que obrigam o investigador a tomar opções.
Visto as condições de aplicação da
metodologia, há que avaliar os processos
onde a metodologia de investigação-ação
pode ser usada. Temos vindo a defender o
seu uso em torno dos conflitos de memória.
Determinar quem fala, como fala e quando
fala e de onde fala é um dos objetivos da
oficina “cartografia das memórias”.
Mas como temos vindo a defender, o mundo
atual apresenta uma diversidade de modos
de produção de conhecimento, de escritas
científicas e de modos de produção de
conhecimentos e saberes, que a
investigação-ação não pode olvidar. Implica
isso que a produção de instrumentos de
investigação seja mestiços.
A escrita científica, produzida na academia
tem uma gramática própria, ancorada na
tradição. Há outras formas de escrita,
plurais. Os suportes das escritas e a
formação de redes são também plurais. A
investigação-ação 2.0, tal como propõe
Servgio Rodriguez Gravillo, é também uma
proposta de intervenção na produção de
escritas mestiças. É necessário utilizar as
diferentes formas de narrativa. As
jornalísticas, as literárias, as académicas a
partir do rigor das ciências sociais.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 47
Mas na atualidade é a produção de
multimédia o grande espaço de
oportunidade que é necessário aproveitar. O
multimédia tem vindo a constituir-se como
uma espaço emergente na construção de
narrativas, de plataforma colaborativa para
trabalho em rede, incluindo a criação de
redes de investigação.
É nesse sentido que temos vindo a
aprimorar e a aperfeiçoar os processos de
disseminação dos conhecimento e dos
resultados. Criamos para isso diferentes
plataformas de intervenção, procurando
agtravés dos procedimentos de tradução,
aplicar e refletir sobre os diversos sentidos
produzidos nos diferentes espaços, nas
diferentes comunidade.21 Esse espaço
constituem também eles espaços de
intervenção em rede22 estando ainda em
processo de maturação e desenvolvimento.
Em suma as metodologias de investigação-
ação que temos vindo a aplicar resultam
duma necessidade de criar uma maior
empenhamento na construção dum mundo
sustentável. Parte da constatação de que é
necessário alterar os mapas e os roteiros da
investigação. Uma investigação empenhada
numa cultura dos saberes produzidos a
partir da proposta das epistemologias do sul
e dos territórios da fronteira. Alterar o ponto
de projeção. Projetar a ciência a partir do
sul a partir da construção de processos
participativos que favoreçam a construção
de ações coletivas.
Tem sido a partir dessa premissas que
temos vindo a construir as nossas oficinas
de participação: A cartografia das
memórias, a oficina biografia, a aula do riso
21
Veja-se em http://globalherit.hypotheses.org/ 22
Veja-se a página de museologia informal no Face Book em www.facebook.com/groups/investigacaosociomuseologia/, ou os blogos desenvolvidos em http://globalheritages.wordpress.com/
e as estratégias de mediação. Elas visas
responder às perguntas de se saber o que
se faz, através de quem faz, como fazem e
de onde fazem. Um caminho para criar uma
clínica de Direitos Humanos como projeto
que a seu tempodesenvolveremos.
Bibliografia:
Guerra, I. (2007). Fundamentos e Processos de Uma
Sociologia de Acção. Principia: Celta.
Leite, P. P. (2011). Casa Muzambique: O compromisso no
processo museológico. Ilha de Moçambique: Marca d'Água.
Leite, P. P. (2012). Objetos Biográficos: A Poética da
Intersubjectividade em Museologia. Ilha de
Moçambique/Lisboa: Marca D' Água.
Pasquino, G. (2007). Curso de Ciência Política. Oeiras:
Principia.
Santos, B. S. (2002). A Crítica da Razão Indolente: Contra o
desperdício da Experiencia. Porto: Afrontamento.
Santos, B. S. (2013). Modernidade, Identidade e Cultura de
Fronteira. In B. S. Santos, Pela Mão de Alica: O social e o
político na pós-modernidade (pp. 139-161). Coimbra:
Almedina.
Santos, B. S. (2013). O norte, o sul e a utopia. In B. S. Santos,
Pela Mão de Alice: O Social e o Plítico na Pós-modernidade
(pp. 235-305). Coimbra: Almedina.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 48
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Narrativas Biográficas
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As Narrativas Biográficas e as metodologias de investigação-ação23
A integração das narrativas biográficas nos processos de investigação
constitui uma proposta metodológica do empirismo crítico que desloca o
centro de produção de conhecimento para os objetos de investigação,
permitindo ultrapassar os bloqueios e os desvios da observação do real por
parte dos atores científicos.
Na sua crítica ao paradigma científico eurocêntrico, hegemónico na produção
dos discursos dos atores, Boaventura Sousa Santos (2000) propõe as
“epistemologias do Sul” como um processo de investigação e inclusão dos
saberes dos atores. Neste artigo vamos procurar olhar para o processo de
produção das narrativas biográficas a partir da leitura desta proposta
epistemológica.
Neste artigo fazemos uma revisão das metodologias de trabalho sobre
objetos biográficos e apresentamos os estudos e investigações que temos
vindo a fazer em comunidades no Sul de Moçambique com ápio do Centro
Comunitário de Djabula. São resultados duma investigação em processo que
deverá ser completada com outros trabalhos no terreno, e que aqui abrimos
como processo de discussão na comunidade científica.
O projeto será completado nos próximos meses, através da proposta de uma
“Casa das Memórias” a desenvolver com a população local através de
objectos, histórias, sons e danças que são escolhidos e darão suporte às
narrativas escolhidas pela comunidade.
Os projetos criados com os atores locais, a partir dos seus problemas
permitem a aproximação e o diálogo entre os diferentes saberes.
O presente artigo constitui o corpo da comunicação apresentada no 5º
Congresso Europeu de Estudos Africanos, realizado em Lisboa, em Junho de
2013
23
Ana Fantasia – CEA-IUL, e Pedro Pereira Leite –CES-UC -Comunicação apresentada no 5th Europeean Congress on African Studies, realizado em junho de 2013 no ISCTE-IUL
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A integração das narrativas biográficas nos
processos de investigação constitui uma proposta metodológica do empirismo crítico
que desloca o centro de produção de conhecimento para os objectos de investigação, permitindo ultrapassar os
bloqueios e os desvios da observação do real por parte dos atores científicos.
Na sua crítica ao paradigma científico eurocêntrico Boaventura Sousa Santos
(Santos, 2000) propõe as “epistemologias do Sul” como um processo de investigação
que parte da inclusão dos saberes dos atores locais para a produção do processo de investigação. Neste artigo vamos
procurar olhar para o processo de produção das narrativas biográficas a partir da leitura
desta proposta epistemológica.
As epistemologias do sul constituem-se
como epistemologias horizontais, construída sobre as diversidades dos saberes, numa
perspectiva de procura de diálogos construtivos, na busca da emancipação social e na construção de comunidades
solidárias.
Segundo o autor que tem vindo a questionar as ciências sociais sobre a natureza do conhecimento produzido, a
“epistemologia do norte” depois de fortes avanços no conhecimento da natureza nas
últimas centenas de anos, tem vindo a enfrentar fortes bloqueios e redundâncias, mostrando-se incapaz de responder aos
grandes problemas da humanidade: Os problemas da distribuição dos recursos
disponíveis, a criação e a distribuição da riqueza e os modos de organização social.
Segundo o autor as narrativas científicas permitiram ao longo das últimas décadas a
consolidação dos projectos de poder coloniais, patriarcais e de exploração da mão-de-obra assalariada. Entre outros
mitos, estas narrativas tem produzido o fetichismo da mercadoria e tem vindo a
conduzir a dominação identitária e a processos de troca desigual. O paradigma científico do norte, enquanto componente
do processo de dominação conduziu as ciências sociais a problemáticas teóricas
estéreis, tais como: A análise das relações
entre estrutura e acção, ou entre a análise macro e a análise micro.
Ora segundo o autor a ciência deve interrogar a partir das condições de acção.
De condições duma acção emancipatória e transformadora. É a partir dessa acção
rebelde (por contraponto à acção conformista da ciência do norte, que almeja compreender sem transformar), que o autor
procura alicerçar todo o trabalho de consolidação do novo paradigma crítico. Um
trabalho observado a partir do Sul, a partir dos territórios e dos saberes esquecidos e dominados, na busca da pluralidade dos
saberes. Aquilo a que chama a “ecologia dos saberes” a partir do qual procura resgatar
do esquecimento praticas, modos de ser e de estar que tem sido dominados em nome dos valores da ciência e do progresse.
Este empenhamento a partir das acções
rebeldes permitem, segundo Boaventura Sousa Santos, observar práticas de conhecimentos construídos por processos
cognitivos diferenciados, que geram experiencias sociais alternativas de
resistência e emancipação social. A proposta de conhecer a partir da perspectiva do sul implica uma posição do conhecimento feito
a partir dos grupos marginalizados, dos grupos sociais vítimas do sofrimento e da
opressão das operações de globalização. O conhecimento torna-se assim numa prática global que procura ultrapassar o
conformismo que reduz a realidade a processos de conciliação. A epistemologia
do sul é uma proposta de transição paradigmática construída sobre a poética e as utopias geradas a partir da observação
das injustiças do mundo.
É neste sentido que a abordagem das narrativas biográficas, enquanto metodologia qualitativa, construída a partir
do empirismo crítico, nos parece relevante como proposta de trabalho.
Na construção das diferentes narrativas sobre o real, o investigador procura captar,
através de diversos instrumentos, a realidade percepcionada. Esta colheita de
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 52
dados é o que lhe permite, nas fase
posterior, partir para o processo narrativa de produção de conhecimento, validando ou
não as suas hipóteses de investigação.
Uma das críticas que as epistemologia do
sul fazem ao processo metodológico centrado no sujeitos cientista enquanto
produtor de conhecimento, é o de que na maioria dos casos, o que o investigador social reproduz, enquanto pesquisador não
é mais dos que as suas preocupações, validando, ou invalidando as construções
teóricas dominantes ao seu universo de conhecimento.
Ao deslocar a produção do discurso para os próprios sujeitos, as narrativas integram a
diversidade dos olhares do mundo, as pluralidades das experiencias. Estas narrativas, trabalhadas pelo investigador,
permitem a integração de outras vozes na produção da racionalidade. A construção do
conhecimento torna-se um processo de diálogo intersubjectivo.
O próprio processo de produção de conhecimento, desde a recolha dos dados,
da escolha dos processos de registo, a experiencia das narrativas, os trabalhos de validação e análise dos resultados, bem
como a construção dos processos de comunicação e devolução do conhecimento
traduzem uma prática em que o investigador se envolve, transformando-se a si próprio. Ao interpretar os dados do
mundo, ao destingir na experiência o que é individual e o que é colectivo, o olhar
biográfico permite a construção duma experiencia relacional que estrutura a acção.
Mas, para além da experiencia do
investigador, a mobilização e o reconhecimento das experiências dos atores sociais traduz igualmente um processo de
emancipação social. O reconhecimento das experiências de vida, da participação social
dos actores é mais do que uma simples experiencia reflexiva. Ela pode constituir um processo de acção, um catalisador da acção.
Ao solicitar a palavra aos diferentes atores, a metodologia está também a fornecer
instrumentos de reconhecimento do poder
da emancipação social que cada um dispõe. Instrumentos que podem ser utilizados em
processo de construção de acção e de inovação social.
As narrativas biográficas partem duma problematização transitiva e reflexiva dos
objectos sociais. Se as relações ente o sujeito que observa e o objecto que é observado são transitivas (a ciência como
técnica de analise da probabilidade e da imprevisibilidade) a sua expressão, como
processo é uma relação entre a forma de comunicação (uma linguagem) e o compromisso que se cria como resolução
dos conflitos das partes (uma dialéctica). O compromisso não anula o conflito, apenas o
procura superar.
Por outro lado se a relação entre o sujeito
que observa e o objecto que é observado é reflexiva, (ciência como processo de
interacção comunicativa) a sua expressão, como processo comunicativo é dialéctica. Isto é: o que é narrado, ainda que seja
reportado a outro tempo e a outro espaço e reflectido sobre outras experiências; não
deixa de constituir uma acção que transporta um potencial transformador. O potencial da acção, como possibilidade
advém da sua relação com a adequação e conformidade ao contexto e aos papéis dos
diferentes actores sociais.
Objectos Biográficos
O processo de investigação sobre objectos
biográficos tem vindo a incluir uma reflexão sobre o sujeito implicado nas narrativas; seja do investigador sobre o seu objecto de
investigação ou seja do narrador de si mesmo como implicado na construção duma
memória de si, que se constitui como um processo de formação da consciência de si e das suas acções.
Esta problemática tem vindo a ganhar
espaço de reflexão na academia, herda um património que tem vindo a ser trabalhado em diversas abordagens das ciências sociais
e humanas. A sociologia na escola de Chicago iniciou a utilização deste objecto
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 53
por volta da década de vinte do século
passado, no entanto a emergência do quantitativo e da crença no domínio da
natureza pelos modelos objectivos, veio submergir a questão das abordagens biográficas para um plano de menoridade
científica. As metodologias qualitativas e os fenómenos subjectivos são alvo de pouca
reflexão fora de círculos muito restritos das academias.
Nos anos sessenta a historiografia inglesa influenciada pela escola dos Analles, através
da História Oral, inicia nesta ciência uma abordagem metodológica a resgate de memórias e eventos do movimento operário
por via de entrevistas a indivíduos que testemunharam os acontecimentos.
Paralelamente, durante essa década, a emergência das independências africanas, permitirá o desenvolvimento das
metodologias sobre História Oral aplicadas às comunidades “sem história”. Recorde-se
que na época a base da História era sinónimo de “domínio da escrita”, pelo que a associação da ciência ao símbolo gráfico
que expressa o pensamento era considerada uma das distinções entre “selvagens e
civilizados”. Quem não dominava os instrumentos simbólicos da notação escrita
era considerado primitivo, e através dessa operação mental legitimava-se os processos de hegemonias colonial que o conceito de
civilização transportava. Em nome da civilização geraram inúmeros processos de
violência e destruíram-se inúmeras formas de saberes, formas de estar e perderam-se inúmeros processos e técnicas de
transformação que as comunidades em todo o mundo tinham acumulado.
Ainda no âmbito das políticas culturais defendidas pela UNESCO nos anos setenta,
para resgate de tradições, que se procede em vastos territórios africanos e americanos
à recolha e registo de tradições orais, sejam por via dos contos tradicionais, seja por via da música, da dança ou do trabalho. Esta
tradição entroncava na velha tradição europeia nacionalista que havia iniciado com
o movimento romântico, durante o século XIX, a fixação da “tradição” através da
escrita24. Através do estudo das línguas,
procurava-se encontrar e legitimar a natureza distintiva das nações. Um
movimento que contrariava a devesa da modernidade universal que o movimento iluminista procurava.
No campo da antropologia e da educação,
nos anos setenta do século passado, podemos verificar igualmente uma “apropriação” desta metodologia qualitativa
para abordagem da relação de subjectividade construída pela “história de
vida” como processo formador.
Em suma interessa-nos aqui acentuar o
argumento que o uso das narrativas biográficas entronca numa tradição
qualitativa das ciências do humano. Pontuamos igualmente que como metodologia de trabalho de pesquisa e
recolha de informação, as narrativas biográficas nos permite trabalhar a partir de
problemáticas da intersubjectividade.
A problemática da intersubjectividade parte
do confronto do olhar sobre o real a partir da interacção entre os sujeitos produtores
de conhecimento perante a consciência do seu próprio conhecimento. Trata-se de procurar uma relação dialéctica de
superação. Uma relação que ultrapassa a relação tradicional entre o sujeito-objecto
que funda a ciência moderna, bem como não se satisfaz pela busca do conhecimento pelo conhecimento.
O intersubjectividade ao procurar situar-se
no campo relacional assume que o processo potencia a criação duma dialéctica de transformação. Na narrativa biográfica, nos
diferentes interlocutores, podem emergir formas de consciência de si próprio como
ser social e experiencial. É igualmente um processo que catalisa formas de consciência de si através da acção. A operação de
narrar a biografia é uma forma de tomar consciência de si e dos outros, de reelaborar
os olhares sobre si e sobre o mundo. Narrar o si mesmo é uma forma de experiência.
24 Um movimento que encontra nos Irmãos
Grimm um exemplo paradigmático.
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Trata-se portanto duma acção comunicativa
que se traduz numa narrativa de representação que contem, para além de o
ser individual o ser social em contexto. Mais, esta acção transcende ainda a relação entre o individuo e o todo pela possibilidade
de inclusão do sentido estético e ético na relação. É por isso, igualmente uma poética.
Trata-se portanto duma meta narrativa que contém uma pluralidade de histórias individuais que se constituem como
fragmentos discursivos duma narrativa comum, de sentido emancipatório porque
incorpora o reconhecimento (HONNET, 2011).
Uma narrativa constitui-se como um enunciado comunicacional, onde o emissor
produz um discurso em função do destinatário. Ainda que essa narrativa seja feita no foro privado, ela constitui-se como
um discurso reflexivo, onde o resultado alcançado depende da consciência do social
desse sentido. Uma reflexividade que é tanto mais evidente quanto sabemos que no domínio da investigação, seja por parte do
investigador que utiliza a metodologia, seja por parte do objecto de investigação, que
não há uma neutralidade na representação. Os discursos, como acção, implicam uma
vontade. Desse modo a produção do sentido na narrativa biográfica constitui como uma epistemologia e como uma fenomenologia
que se verificam no domínio da intersubjectividade.
Os objectos biográficos transportam a densidade de significados que compõem as
diferentes experiencias dos sujeitos, as suas expectativas de acção e a natureza relacional onde a interacção se
processualiza. Esta riqueza pode ser apropriada pelo olhar museológico para
construir uma prática de relacionamento entre o individual e o social ou vice-versa,
na medida em que para além da sua natureza reflexiva, como forma de consciência do real a interacção biográfica
assume-se como uma prática de integração de dados e como uma prática
transformacional.
É neste domínio: o da utilização das práticas
biográficas nos processos de investigação, que queremos salientar a sua pertinência
como um elemento catalisador de processos de prática de transformação social. O olhar biográfico transporta um ato de narração.
Uma acção de relatar a experiência vivida como construção do seu sentido. Esta
poética da palavra ou dos gesto emerge como um reflexo do mundo experienciado e traduz o questionamento sobre a adequação
da experiência a cada situação do presente. Uma inquietação que é gerada em função
das vontades de reconhecimento como vontades de futuro
A construção da narrativa social processa-se portanto numa dupla dimensão processual.
No plano do individuo comunicante que processualiza a experiencia individual em função do receptor da mensagem; e no
plano do individuo como ser social, que igualmente se concretiza através do
processo comunicacional, que transporta a consciência social do mundo. É nesse ato de comunicação que se processualiza a
adequação dos saberes das comunidades, enquanto herança social, para a
reconstrução dos sentidos e das orientações do social. Uma luta pelo reconhecimento e
pela emancipação.
É esse movimento de reconhecimento e
reconstrução dos sentidos que se constitui como um movimento libertador, um momento que ao ser socialmente partilhado
se constitui como criador de solidariedades pela emergência da consciência da
alteridade.
O utilização das metodologias sócio
biográficas permitem recentrar a produção dos saberes nos indivíduos como produtores
das suas próprias experiencias e permitir o exercício de construção dos sentidos do social solidário. Se o exercício de
biografização, a produção individual de sentidos é um momento experiencial,
potencialmente libertador pela verbalização ou pelo ato performativo; o desafio essencial das metodologias biográficas
decorre no processo da formação da consciência do individual como parte do
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social. É nesse diálogo entre o “eu” (na sua
múltipla dimensão consciente e inconsciente) e os outros (também nas suas
múltiplas dimensões), entre as linguagens da alteridade, que emerge o saber mestiço. Um saber que se alicerça na partilha das
experiências como vontade de futuro.
Como método de conhecimento a biografia e a narrativa biográfica é simultaneamente um modo de conhecimento onde os autores
se assumem como produtores conscientes dos caminhos das suas vidas. Desse modo,
o processo de conhecimento obtido não é apenas referencial (construído pelos currículos predeterminados) mas é um
saber que decorre da experiência pratica intercultural (do acto de narrar, do acto de
pensar, do acto de partilhar, do acto de transformar, do acto de sentir, do acto de imaginar) integral. É esta capacidade
transformadora que constitui a riqueza epistemológica dessa proposta na
museologia e que a permite alicerçar no interior dum paradigma emergente da transição no interior duma ecologia de
saberes para uma emancipação social.
Ora, como afirma Elsa Lechner “Independentemente do olhar disciplinar de onde se parte, as histórias de vida e relatos
de experiencia têm ainda o poder de emancipar. Desde logo porque levam a
tomadas de consciência, porque depois ultrapassas a fronteira dos estereótipos e permitem ao sujeito ressituar-se face à sua
história e papéis sociais. Assim conceber a pesquisa biográfica também nos seus
efeitos significa reconhecer a carga política que comporta, quer como método, quer como forma de apreender as realidades
humanas” (LECHNER, 2009, 9). Importa reconhecer às narrativas biográficas,
quando assumidas como narrativas sócio biográficas, como temos vindo a defender, o
seu valor epistemológico como processo de partilha solidária de experiencias significativas para a construção dum
mudança participada onde o local se funde no global.
Em suma, ao invés de uma recolecção de elementos valorizados característicos das
fenomenologias com base no empirismo
lógico, que geram redundâncias que apenas comprovam e reproduzem os processos de
reprodução das narrativas hegemónicas, as narrativas biográficas, como método qualitativo, busca o reconhecimento de si
como processo de mudança. Com a narrativa biográfica o discurso científico
transfere-se para os sujeitos, que se tornam protagonistas da acção
Esta metodologia da investigação-acção tem-se mostrado adequadas à recolha de
informação original acerca de situações ou de actores em processo, à concretização de conhecimentos teóricos obtidos através do
diálogo entre os investigadores e os membros das comunidades analisadas, e
permite criar soluções adequadas aos problemas com que a comunidade se defronta. Como resultados da investigação-
acção verifica-se o envolvimento dos membros das comunidades e o aumento da
motivação para a mudança. A investigação-acção torna-se um processo de transformação que dá um indicador da
utilidade do trabalho de investigação
As narrativas biográficas, finalmente, permitem ultrapassar as redundâncias do empirismo lógico, onde todos os fenómenos
são capturados como imagens (fragmentos das experiencias vividas) que são analisados
inseridos num quadro de significações, preestabelecido que se justifica a si mesmo. Como todos os fenómenos são referenciados
no campo da híper categoria espaço/tempo, e como tal relacionados com os seus
contextos a procura da sua lógica narrativa, construída a partir do quadro de referência de quem observa, impede a verificação da
inovação em contexto.
O Centro Comunitário de Djabula
Djabula é hoje um Centro Comunitário
situado a meia centena de quilómetros a sul de Maputo, no distrito da Bela Vista, na
estrada para a Ponta do Ouro. Há vinte anos, quando o régulo de Matatuíne concessionou as terras à pequena ONG
portuguesa Vida, que havia trabalhado em Matíno na construção duma escola, o local
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era um deserto. O objectivo foi criar um
centro comunitário. A oferta do uso da terra foi para concretizar essa ideia. Na cerimónia
oficial da cedência do espaço foi feito um compromisso falado. A ONG comprometeu-se a ficar no local durante o tempo que
fosse necessário para dar um uso adequado à terra.
Esta cerimónia, criou relação afectiva com uma comunidade que vivia dispersa no
mato em torno de tabancas. No início foi necessário construir uma estrada. Havia
apenas uma picada um caminho trilhado a pé pela população local. A abertura duma estrada, com cerca de trinta quilómetros de
extensão permitiu a acessibilidade ao local do centro. Com acessibilidade foi possível
fazer chegar materiais de construção para criar um Centro Comunitário.
A ideia inicial do centro foi de desenvolver um trabalho de apoio à comunidade para a
geração de rendimentos. Os poucos habitantes de Djabula viviam da venda de carvão, obtido no desbaste da floresta, e
que produzem em pequenos fornos artesanais. Alguns tinham pequenas hortas
junto das habitação e criavam pequenos animais domésticos. Era uma população escassa e com várias ligações à Suazilândia,
para onde os homens partiam para a criação de gado.
As primeiras ideias do Centro foram de desenvolver a agricultura para abastecer o
mercado em Catembe e daí chegar ao Maputo. Rapidamente ficou claro que a
agricultura era uma actividade marginal. Tão marginal quanto a área. O tipo de solos e a dificuldade em captar águas eram dois
dos principais problemas. A principal vocação de Matatuíne era a pecuária e não
a agricultura. Uma observação mais atenta e um melhor entrosamento com as populações locais fizeram entender que fora
das margens de aluvião dos rios não havia condições para a agricultura.
Paralelamente aos projectos de apoios à geração de rendimentos, desenvolviam-se
diversos projectos de desenvolvimento integrado. Foram feitas intervenções na
melhoria das condições de habitação e
construção de poços. Foi construído um centro de saúde, e foram feitas diversas
acções de educação para a saúde. Os cuidados de saúde primários, a saúde materno infantil, os cuidados com o
consumo de águas salobras. Como o objectivo da intervenção era o de criar uma
autonomia na comunidade, o Centro Comunitário foi concebido para ser um centro das actividades da comunidade. Por
isso deveria ser desenvolvida a sua autonomia e sustentabilidade. Foi por isso
estimulada a criação duma associação de desenvolvimento local, através da participação da comunidade, que tem como
objectivo fazer, no futuro, a gestão do centro, ao mesmo tempo que, actualmente,
com o apoio da ONG, procura assegurar a sustentabilidade do centro pela criação der
renda.
No centro pensam-se e são aplicados e
testados os projecto. Com apoio nos programas de cooperação internacional de ajuda ao desenvolvimento, cujos maiores
dadores são os Italianos e Espanhóis e portugueses, apresentam-se projectos, que
normalmente têm uma duração de dois anos a partir dos quais se procura criar
dinâmicas próprias. Por exemplo, um dos projectos foi a capacitar mulheres para obtenção de rendimentos alternativos ou
complementares das actividades agrícolas. Desse projecto resultou a criação duma
associação de artesanato com uma marca própria (a marca Djabula).
A associação de artesanato produz Batiques e outros trabalhos de tecelagem e costura. Foram instaladas cinco máquinas de costura
e formadas várias mulheres. Foram criados cinco grupos de trabalho, todos voltado para
a actividade do artesanato, através da transformação de materiais locais.
Com o projecto procura-se criar condições de financiamento para o investimento
inicial, devendo, no final do projecto, a associação ganhar a sua autonomia através da venda dos produtos que fabrica. No caso
do grupo dos Batique, por exemplo, era preciso panelas para fazer os tingimentos.
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Era necessário dinheiro para comprar as
matérias-primas que não se encontravam no local. O projecto permitiu financiar os
investimentos necessários. Através da venda dos produtos em Maputo, as receitas revertiam para a Associação, que as deve
aplicar na compra de mais materiais. Actualmente no Centro existe uma sala de
costura onde estão instaladas as máquinas de coser. O trabalho é remunerado em função do número de horas de trabalho de
cada costureira.
O artesanato tem um grande problema que é sua sustentabilidade. A associação gere o rendimento gerado por esta actividade e as
costureiras só trabalham quando há encomendas. Há alguma procura mas não
se consegue é vender nesses mercados sem um sistema de comercialização a funcionar. Para criar esse sistema de comercialização é
necessária uma maior diversidade de produção. O sucesso do artesanato está
muito ligado á sua comercialização. A ONG deu apoio à comercialização dos produtos em Maputo, através da exploração de
contactos comerciais nas lojas e feiras, que acontecem duas vezes por ano na Fortaleza.
Mas são ainda poucas as oportunidades de venda.
O trabalho no terreno na ajuda ao desenvolvimento é um trabalho lento e com
resultados demorados. A Associação do Centro Comunitário de Djabula passou, a partir de 2010 a ter uma maior
responsabilidade na gestão da sua infra-estrutura e na partilha dos rendimentos. A
comunidade tem uma palavra a dizer na distribuição dos rendimentos. Por exemplo, no último ano houve vários casamentos e
funerais em que a comunidade decidiu contribuir. Ao despender essas verbas há
uma menor capacidade de comprar matérias-primas para a Feira de Artesanato
em Maputo, onde se costumam fazer boas vendas e contactos.
A sustentabilidade do centro é hoje assegurada através da sua manada. Através da venda das cabeças de gado
excedentárias torna-se possível pagar as despesas correntes - os pastores, a
alimentação das famílias e criar ainda um
pequeno fundo para investimento nas outras actividades. A compra da manada
resultou também de um projecto onde foram adquiridas cinquenta cabeças. A partir das cem cabeças faz-se a venda do
excedente.
Actualmente discute-se se no trabalho com as comunidades em África se deve apoiar os processos associativos ou os chamados
inovadores em cada comunidade. Esta é uma questão interessante que conduz a
resultados diferentes. A organização VIDA tem vindo a apostar no desenvolvimento do trabalho associativo. Segundo os seus
princípios, é aquele que melhor permite a participação da comunidade e uma
distribuição de rendimentos mais equitativa. Os defensores do investimento nos chamados atores privilegiados,
concentrando o investimento da ajuda ao desenvolvimento em novas dinâmicas,
procuram potenciar o efeito multiplicador do investimento. Nestes casos há uma menor participação das comunidades e um menor
distribuição dos benefícios.
O trabalho com as associações como meio privilegiado de intervenção na comunidade implica que se tome em atenção o trabalho
de organização interna do grupo associativo, que se treinem capacidades de
comunicação e reivindicação. Na ajuda ao desenvolvimento tudo se passa pela proposta e pela execução de projectos.
Tudo está referenciado a acções que se desenvolvem no tempo e implica um
controlo das diferentes actividades para monitorizar os seus resultados.
A ONG Vida tem vindo a vocacionar-se mais para uma intervenção no apoio às
associações de agricultores. Para esse trabalho a sua experiência no Centro Comunitário de Djabula é uma importante
mais-valia pelo exemplo de organização que esta Associação dispõe. É hoje possível
verificar que ao longo destes anos, os seus membros dominam os mecanismos da vida associativa, de organização de reuniões, de
concepção de projectos. É muito interessante olhar para os seus membros e
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verificar que dispõem de capacidade de
argumentação e reivindicação em situação de negociação social.
O trabalho com as diferentes associações veio ampliar os interlocutores. Actualmente
estão identificadas 15 associações do Distrito. É um trabalho extenso e complexo
numa região de povoamento disperso com uma densidade de 7 habitantes por Km2. Percorrer todas essas associações é um
trabalho muito moroso, mas muito rico em contactos humanos e na diversidade das
situações. Há associações agrícolas que produzem determinados produtos que poderão ser trocados na região, ou
associados a outros na rede de comercialização. Hoje, um dos seus
principais problemas é o desafio de se sustentar todo este projecto. Uma peça essencial desse processo é a criação duma
Casa Agrícola, numa zona mais central, a partir da qual se possa fazer um apoio a
esta diversidade associativa que encontramos.
A proposta de trabalhar as narrativas biográficas na comunidade de Djabula
O rosto gretado pelo sol olha-nos altivamente. Oferece-nos a mão. Aberta e
receptiva ao contacto. Olha-nos nos olhos à procura do nosso olhar. Sente-nos e Vê-nos
antes de soltar a palavra. A palavra tem peso. Cada som é aferido ao seu sentido. Procuram-se significados. Reunir partes do
todo. Dar sentidos. Em Matutuíne, a palavra do chefe tem peso e valor. Sentimos isso
quando falamos com ele. Quando o procuramos para conhecer a sua história de vida. Para conhecer os seus modos de vida.
Este encontro com João Khoma, capataz da
fábrica, dirigente associativo, por direito de linhagem chefe local fez-nos entender que
há discursos sobre o silêncio. Há vozes
que se dizem e não se ouvem, enquanto que há outras vozes que ultrapassam as
sombras para darem sentido ao
momento vivido. “Porque é que as pessoas pobres são alegres”, perguntou-
nos a certa altura. Talvez porque a
pobreza que nós vemos seja apenas
uma parte da matéria. Se basearmos a medida na felicidade, os bens materiais
não perderão espaço.
Ao encontramos estas palavras, entendemos que o que se diz em Matutuíne.
As palavras são projecções dos conflitos na mente. A mente confronta-se com o real.
Procura dominar esse real. As narrativas são pontos de emergência do consciente que transporta os sentidos do mundo.
O nosso desafio foi então entender de que
forma essas narrativas, enquanto projecção da consciência do mundo e o do
inconsciente colectivo, reflectiam modos de olhar esse mundo. Olhar como eram integradas as ordens do mundo e procurar
as sombras dos discursos como espaços de transição expressam os conflitos não
resolvidos. É nestas tensões que a acção se gera, com sucesso quando se adequa
ao real, com insucesso quando dele se desadequa.
As narrativas biográficas transportam toda essa carga energética no discurso.
Os fenómenos biográficos concentram a energia dos modos como cada um
racionaliza o mundo, como o sente. Transporta os modos como cada
indivíduo integra o todo. São portanto fenómenos visíveis no espaço da
narrativa, vividos no tempo da narrativa. Escutar os sons, sentir o
momento do discurso é uma experiencia
que transporta sentidos plurais sobre os quais importa pensar.
Nesse discurso de João Khoma, sobre a questão da pobreza e da felicidade,
sentia-se essa tensão. Dizia-nos, ainda
de mãos dadas, balanceando à sombra dum embondeiro: “-Há um tempo atrás,
foi criado um Fundo de Desenvolvimento Local, para apoiar projectos agrícolas,
dotado com sete milhões de U$. A ideia era fazer as populações saírem da
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pobreza absoluta. Eram beneficiários
agricultores individuais. Cada um trazia o seu projecto. Uns para comprar
motores de rega, outros para
comprarem ferramentas, sementes. Este projecto acabou por beneficiar
sobretudo os comerciantes, pois era quem conseguia fazer o projecto. Eles
recolhiam os empréstimos e subcontratavam os agricultores para
cultivarem o que queriam vender. ”.
E continuava: “Mas, aqueles que conseguiram fazer projectos, com apoio
das associações, de acordo com os regulamentos, cada pessoa apenas se
podia candidatar a um apoio máximo de 200.000 meticais para comprar o que
necessitasse. No final, como o valor foi dividido por todos os candidatos,
acabaram por receber apenas ¼ do que se havia solicitado”. E concluí com
perspicácia. “Ora assim cada um fica com uma dívida, e como o dinheiro
recebido não chega para completar o
investimento, acaba por gastar noutras coisas. O comerciante, com está sempre
a vender consegue desenvencilhar-se. Mas o agricultor individual fica mais
pobre. Antes eram pobres e sem dívidas. Agora são pobres com dívidas.
Nestas palavras nota-se amargura de
quem vê com clarividência o que se vai passando, A forma como esta gente de
fora chega, cheia de projectos que trazem promessas, deixando atrás de si
os rastos da pobreza quando, findo os seus projectos regressam às suas
terras. “O fundo acaba apenas por beneficiar uns quantos: Os fundos são
para os amigos”. Os agricultores são marginalizados. Só lhes resta
adaptarem-se a mundo e fazerem amigos.
Mas também estes novos amigos se vão
transformando. A rede de interesses vai-
se instalando. Vai irradiando da cidade
para o interior. Muitas vezes, aparecem por ali dadores que pedem a
apresentação de projectos. Como os
projectos vaiáveis são poucos, em regra, as avaliações são negativas. Mas quem
aprecia o projecto sabe o que está a fazer. Pouco tempo depois eles
aparecem com outro promotor. Eles acabam por ser apropriados pela “máfia”
que se instala entre os dadores e os beneficiados.
Conclusão
Neste artigo procedemos a uma revisão
das propostas teóricas das “epistemologias do sul”, de Boaventura
Sousa Santos, a partir da aplicação das metodologias de investigação-ação com
base nas narrativas biográficas. A partir dos exemplos de “oficinas biográficas”
desenvolvidos por Elsa Lecnher (2012) e da proposta dos “círculos de memória”
de Pedro Pereira Leite (2012), procuramos analisar as suas condições
de produção nas comunidades do sul de Moçambique. Nesse processo
descrevemos e analisamos a metodologia de trabalho.
De seguida apresentamos em linhas
gerais o desenvolvimento do trabalho que levou à formação do Centro
Comunitário de Djabula, no Sul de Moçambique. Durante os trabalhos de
diagnóstico identificámos alguns atores
locais relevantes e analisamos as condições de desenvolvimento dos
trabalhos.
Na sequência dos trabalhos a
desenvolver vai ser proposto um projeto
de “Casa das Memórias” a desenvolver com a população local no Centro de
Desenvolvimento Comunitário de Djabula. A Casa das memórias será
elaborado pela população local através de objectos, histórias, sons e danças
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 60
que são escolhidos e darão suporte às
narrativas escolhidas pela comunidade.
A negociação deste tipo de projeto com os actores locais permite partir dos
partir dos problemas locais, das pessoas. Permite uma aproximação e
um diálogo entre os diferentes saberes, ao invés de fazer projectos em
gabinetes. Olhar para os problemas das
comunidades de múltiplas perspetivas e ganhar profundidade nas análises.
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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 61
A Saúde Materno-Infantil e os Problemas do Desenvolvimento25
A saúde materno-infantil é um tema que tem vindo a preocupar técnicos de saúde, investigadores e agentes de cooperação a nível
mundial, tornando-se numa estratégia internacional, desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde, com o objectivo de promover serviços
de qualidade, de forma a reduzir o número de mulheres e recém nascidos afectados por doenças preveníveis e tratáveis durante a
gravidez ou parto. Com os acordos de Alma Ata, promovidos em 1978 pela Organização
Mundial de Saúde, iniciou-se um processo a nível mundial de difusão dos cuidados primários de saúde. Na declaração que resultou deste
encontro, expressou-se a necessidade de acção urgente de todos os
governos, todos os trabalhadores da saúde e do desenvolvimento bem como da comunidade mundial, para proteger e promover a saúde de
todas as pessoas do mundo, sem qualquer discriminação. Na Cimeira do Milénio realizada no ano 2000, os líderes de 191 Países
definiram alvos concretos para a melhoria de vida da população mundial. Na declaração resultante desta cimeira, foi definido como
objectivo concreto a “redução, até 2015, da mortalidade materna em três quartos e da mortalidade de crianças com menos de 5 anos em
dois terços, em relação às taxas actuais” (Nações Unidas, 2000), no que se refere aos cuidados de saúde materno-infantil. Entro os oito
objectivos gerais traçados nesta declaração, este objectivo, o quarto, tem sido um dos mais difíceis de alcançar. No relatório de 2013 a
mortalidade materna e das crianças continua bastante elevada em muitos países da África subsariana, onde uma em cada nove crianças
morre antes dos cinco anos (Nations, 2013).
Para se atingirem estes objectivos foram apontadas como acções prioritárias a vacinação dos bebés, a sua nutrição adequada, o incentivo
do aleitamento materno, e a aplicação de comportamentos nutricionais adequados. Um conjunto de projectos que implicam um importante
apoio às comunidades, quer na implementação dos serviços de saúde, quer de assistência à comunidade no campo da Educação para a saúde.
Perante estes resultados tem vindo a ser salientada a necessidade de se efectuarem mais estudos que aportem outros olhares e novos
conhecimentos que permitam inverter estes resultados. (Nations, 2013) Entre os novos modos de olhar para estes problemas, tem-se vindo a
defender a necessidade de se colocar perguntas pertinentes para os problemas concretos das comunidades. Por exemplo, saber qual é a
percepção das mulheres em relação à sua própria vulnerabilidade na comunidade, como é que as mulheres imaginam, compreendem e
atuam face á saúde no dia-a-dia. Quais os seus modos de relação com
os serviços de saúde implementados.
25 Por Ana Fantasia – CEA – ISCTE: Trabalho apresentado no Curso de Doutoramento
em Estudos Africanos
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 62
Torna-se portanto necessário compreender a relação entre a percepção
de vulnerabilidade reprodutiva das mulheres e as estratégias de saúde implementadas. É importante perceber de que modo a mulher decide e
aceita participar nas propostas de melhoria da saúde que lhe são feitas,
bem como é necessário entender de que forma os contributos e a participação da comunidade podem ajudar a implementar os diversos
objectivos estabelecidos. Na Guiné-Bissau os dados oficiais sobre a mortalidade materno-infantil
são muito escassos, contudo, segundo o relatório de desenvolvimento humano de 2013, em cada 10.000 nados vivos morrem 150 crianças
com menos de 5 anos. No que se refere à taxa de mortalidade materna, esta era de 790 óbitos (dados de 2008), sendo um dos países que
apresenta uma maior taxa de mortalidade materna e infantil. Nesta situação importa entender o modo como os servições e as
medidas de saúde materno-infantil estão a ser implementadas e qual o grau de proximidade e adesão das mulheres a estas medidas. A
relevância desta investigação encontra-se nesta proposta de procurar entender, por um lado a extensão dos serviços de saúde a uma
comunidade, e por outro lado o modo como as mulheres actuam face à
proposta de saúde. Neste documento faremos, num primeiro momento uma leitura crítica
sobre a ideia do desenvolvimento, de seguida apresentamos as contribuições mais relevantes da análise no campo da saúde
reprodutiva. No final procuraremos concluir sobre a relevância desta questão para as comunidades Felupes.
A ideia de Desenvolvimento
A ideia do desenvolvimento como
objectivo ou como processo, tem vindo, desde o discurso de investidura
em Janeiro de 1949 do segundo mandato do presidente Harry S.
Truman, a impregnar o vocabulário das ciências sociais.
O presidente Truman, para além do
Plano Marshall, com o qual em 1947 havia iniciado o ERP (European
Recovery Program), programa de assistência financeira à reconstrução
europeia, concebido como ajuda às
nações democráticas europeias a conter o avanço do projecto comunista,
propunha, no seu segundo mandado, assegurar o funcionamento das
instância de regulação mundial, com
base nas Nações Unidas e suas agências, assegurar o apoio às nações
fundadas nos princípios da democracia liberal (com base na livre iniciativa e
no livre-câmbio), e propôs um novo
programa que permitisse o crescimento das regiões subdesenvolvidas através
da aplicação dos resultados do progresso científico e industrial das
nações democráticas. A proposta do desenvolvimento como
caminho de resolução do subdesenvolvimento, é portanto uma
proposta que vai impregnar uma história de mais de meio século de
debates de políticas, programas, debates teóricos e propostas. É um
tema que é recorrente nas ciências sociais: tendo na economia, na
sociologia, na antropologia, nas
relações internacionais e na história
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 63
campos férteis de investigação e
debate. Ele impregna igualmente o discursos e as narrativas das demais
ciências, como a psicologia do
desenvolvimento, o desenvolvimento urbano, o desenvolvimento cultural,
através de uma análise diversificada de problemáticas, todas elas procurando
reflectir os programas de acção, sobre o humano, sobre o social e sobre a
cultura. Nesta abordagem da dualidade
Desenvolvimento/Subdesenvolvimento, como processo, para além do
determinismo processual (onde se evidencia uma relação de causa-efeito)
podem-se igualmente notar, como elementos integrantes desse
paradigma, a importância da
centralidade do Estado, como forma organizacional da condução e
concretização das diversas agendas. Uma centralidade através da qual
passava toda a negociação dos programas de ajuda ao
desenvolvimento, negociação que se efectua sobretudo através de
programas que canalizam as “ajudas ao desenvolvimento”. Ainda que
marginalmente outros parceiros como as ONG possam a emergir como
atores, com diferentes capacidades de negociação, a convicção sobre o
princípio de alocar recursos a
determinado fins permanecia o elemento paradigmático.
É certo que a crítica à ideia de Desenvolvimento, como processo de
“ultrapassagem” da condição de subdesenvolvimento sempre esteve
presente. Por exemplo, com a emergência das políticas neo-liberais,
os estados europeus tenderam a distanciar-se duma intervenção directa
e a incentivar a intervenção das empresas e a estimular a emergência
de trocas nos “mercados”; enquanto, por outro lado, alguns críticos tem
vindo a chamar a atenção, não só para
o desgaste semântico do conceito, como fundamentalmente para a
constatação que apesar de todo o
esforço aplicado, para além das retóricas discursivas e em políticas
públicas, as questões da pobreza, de desigualdade, da desregulação
ambiental se vinham mantendo e ampliando.
Não é todavia de subestimar que nos anos iniciais, sobretudo entre os anos
sessenta e setenta, em África, e para além dos diversos conflitos que
periodicamente assolaram diversas regiões, após as independências
importantes avanços na promoção do bem-estar das populações, na
promoção da saúde, na educação, na
infra-estruturação dos diversos territórios foram alcançados. Os novos
estados nacionais através de políticas públicas e os diversos programas de
“ajuda ao desenvolvimento”, seja por via das organizações internacionais
(UNESCO, UNICEF, OMS, FAO); seja por via de políticas de cooperação
entre estados ou através de ONG‟s, alcançaram num primeiro momento
importantes resultados mas que rapidamente estagnaram.
Esta “modernização social e seu crescimento económico” estagnou na
década de oitenta: “a década perdida”
nas palavras de Frederico Mayor, o que levará a busca de novas práticas e
novos objectivos pelas organizações internacionais, que ficará conhecido
como os “Objectivos de Desenvolvimento do Milénio” (ODM),
um conjunto de indicadores que procuram concentrar a acção num
processo de construção de mudança social, com o objectivo a melhorar os
índices de Desenvolvimento Humano. Vejamos como essa mobilização da
vontade de mudança, de transformação das sociedades, medida
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 64
por vias de indicadores do progresso,
se foi ajustando ao longo destes anos. Em 1996, Gilbert Rist propôs-se
construir uma “História do
Desenvolvimento” (Rist, 2002). Segundo o autor, depois de apresentar
a sua raiz protestante, criada por Adam Smith na “Riqueza das Nações”, o
autor analisa como ele se transforma num mito “eurocêntrico”. Um mito que
radica no “espírito de cruzada” dos primeiros actos de ocupação europeia
do sul, que dará origem ás diversas colónias, colónias que são alimentadas
por um intenso tráfico negreiros, que faz produzir uma debandada de
milhões de seres humanos das áfricas para as Américas. Depois, com a sua
transformação “em Missão
Civilizadora”, através da partilha e ocupação da vastidão dos territórios
africanos, até aí inacessíveis ao homem branco. Uma ocupação que em grande
parte é devida à necessidade de procura de matérias-primas para
alimentar o mercado europeu. Um programa que é bem visível no
projecto da Sociedade das Nações (Rist, 2002).
Rogério Roque Amaro, em 2003 propôs igualmente uma leitura crítica deste
conceito através da sua releitura (Amaro, 2003). Roque Amaro percorre
a formulação conceptual, desde a sua
formulação inicial com Adam Smith na “Riqueza das Nações”, passando pela
sua aplicação à industrialização das sociedades do centro, aos conflitos
entre os defensores do desenvolvimento, versus crescimento
económico. Aborda o problema dos conflitos Este-oeste versus Norte-sul
que marcou os “gloriosos trinta anos” do pós-guerra, até chegar à crítica
formulada a partir dos anos 70. Nos três últimos pontos do seu trabalho vai
apresentar, o que na sua opinião, são
os argumentos da potencialidade do
conceito. A questão do modelo de
desenvolvimento como uma sucessão
de técnicas aplicadas no terreno da economia é criticada sem grande
sucesso por economistas no pós-guerra. A emergência das
independências das colónias africanas a partir da década de sessenta criara o
terreno fértil para a aplicação dos planos de desenvolvimento. As
avaliações feitas dos planos rapidamente revelam que, se por um
lado, as campanhas de saúde pública e vacinação, tinham aumentado a
esperança média de vida e diminuído a mortalidade, especialmente a
mortalidade infantil, a aplicação dos
planos de educação tinham aumentado a taxa de escolaridade de muitos
destes países, os esperados progressos da produtividade e económica e do
aumento generalizado do Bem-estar social não se tinha verificado. Alias, em
muitos casos, tinha havido mesmo um retrocesso aos níveis dos indicadores
de desenvolvimento. Se o “arranque” das economias do
“terceiro mundo” não se tinha verificado, também é verdade que
muitos outros problemas foram começando a ganhar visibilidade,
nomeadamente o desregulado
consumo de matérias-primas, e os impactos do crescimento económico ao
nível do ambiente. Ao mesmo tempo, é necessário não esquecer, toda a
intervenção é legitimada com presença da ciência e de inúmeros consultores
hiper-especializados (Amaro, 2003). É também a época, em que quebrada a
cortina de ferro na Europa central e de leste, a utopia colectivista do
socialismo se revela como incapaz de construir uma sociedade de indivíduos
sem a presença do mercado; e ao mesmo tempo as sociedades do
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progresso e do bem-estar vêem a
economia de mercado transformar o indivíduo no centro do consumo, numa
“sociedade de indivíduos” (Elias, 1993).
E a partir da crítica destes modelos vão emergir as ideias da participação da
comunidade, a mobilização das capacidades a partir da própria
comunidade e a necessidade de abordar os vários problemas de forma
integrada (Amaro, 2003). Esse novo modelo vai ser defendido como modelo
de intervenção das Nações Unidas, onde, para além de outras questões,
integra ainda a questão da Paz, como elemento estruturante das relações
humanas. Como consequência dessa consciência
crítica emergem novas formulações
sobre o conceito de desenvolvimento. Rogério Roque Amaro salienta o
surgimento de seis, por ordem cronológica: sustentável, local,
participativo, humano, social e integrado. O autor organiza-os em três
“fileira conceptuais, em função do paradigma dominante” (Amaro, 2003).
O ambiental, centrado nas condições do sistema vital de subsistência e
sobrevivência. O das pessoas e das comunidades, centrado na dimensão
social e cultural do humano. E a dos Direitos Humanos, centrada nas
questões da filosofia e da ética.
Não vamos aqui detalhar a análise do autor sobre estes paradigmas, mas
interessa salientar, entre eles, a dominância do paradigma
“desenvolvimento humano”, que através do contributo do PNUD tem
vindo a reformular os paradigmas de intervenção do âmbito do
Desenvolvimento Social, com base na criação dum conjunto de indicadores
que dão um retracto sobre o “processo de criação de condições sociais
mínimas, de produção de bem-estar humano nos vários países do mundo”,
e que devem balizar a intervenção dos
estados membros e organizações internacionais. Este é um conceito que
emerge nas organizações
internacionais, por via das contribuições das ONG de
Desenvolvimento que se centravam no desenvolvimento e empoderamento
das comunidades. A análise do Rogério Roque Amaro é,
como aliás ele refere, um modelo de reflexão. Não podemos generaliza-lo
directamente a casos concretos, tanto mais, que a noção de
“Desenvolvimento Integral”, defendido pela UNESCO com um valor de fim e
como processo, se cruza com todos os paradigmas, acrescentando outros
valores, tais como o são os da
multidimensionalidade dos processos, da interdisciplinaridade, da
complexidade e da participação. Este último conceito, de
desenvolvimento Integral, “pode ser concebido como um processo que
conjuga as diferentes dimensões da vida, dos seus percursos de mudança
de melhoria, implicando por exemplo a articulação entre o económico, o social,
o cultural, o político, o ambiental; a quantidade e a qualidade, as várias
gerações, a tradição e a modernidade, o endógeno e o exógeno, o local e o
global, os vários parceiros e
instituições envolvidas, a investigação e a acção, o estar, o fazer, o criar, o
saber e o ter (as dimensões existenciais do desenvolvimento); o
feminino e o masculino, as emoções e a razão, etc (Amaro, 2003), acaba por
se transformar numa dimensão disjuntiva dos processos de acção
sobre o social. E é nesse quadro que os objectivos de
“desenvolvimento do milénio” são concebidos. Os oito compromissos que
emergem desses objectivos passaram a balizar a acção e o projecto do
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futuro. Esse é todavia, como refere
Roque Amaro um dos desafios que o conceito transporta, a que se junta
muitos outros, nomeadamente o
desafio do novo paradigma científico baseado na complexidade e na ruptura
da pós-modernidade. É com base nessa reflexão que se interroga sobre a
utilidade desse conceito como conceito operativo. O autor defende a ideia de
desenvolvimento, enquanto conceito, como uma ideia operativa: Como algo
sobre o qual se exerce a reflexão com o objectivo de criar melhores condições
de vida. Algo, através da qual se podem realizar os grandes desígnios da
humanidade. (Amaro, 2003) Ora aqui chegados importa então
reflectir como é que a questão do
desenvolvimento se tem vindo a situar no âmbito das epistemologias das
ciências sociais. A arquitectura do campo semântico dos Estudos do
Desenvolvimento é um campo complexo. A perspectiva do Pós-
Desenvolvimento, tal como é apresentada por Adam Ziai (Ziai, 2007)
tem sido apontada como um caminho teórico para ultrapassar os impasses na
crenças das transformações sociais e económicas com base no plano da
acção. A análise dos Pós-desenvolvimentistas, para além de
abordar a questão da génese
eurocêntrica do projecto, introduz na análise das narrativas da acção, a
análise das relações de poder e o papel dos atores, nomeadamente a questão
do direito da participação das comunidades na concepção, gestão e
avaliação dos programas e medidas que lhe digam directamente e
indirectamente respeito. A crítica do pós-desenvolvimento
procura ir para além da crítica ao eurocentrismo das políticas de
desenvolvimento como processo de ultrapassagem da dependência criadas
pelos sistemas coloniais e pós-
coloniais. Procura ultrapassar a crítica ao mecanicismo dos processos de
desenvolvimento, concebidos como um
conjunto de passos pre-derminados que contem moldam a realidade social,
e procura a reproblematização dos fenómenos económicos a partir da sua
complexidade e da diversidade de relações entre os actores em
interacção. Em “Exploring Post-development
Theory and Practice. Problems and Perspectives” Arama Zial, apresenta
uma interessante síntese das problemáticas do pós-desenvolvimento.
(Ziai, 2007; Ziai, 2007) Assumindo a natureza polémica das fundamentações
teóricas dos Estudos do
Desenvolvimento como um campo de problemáticas controversas e
fracturantes, procura fundamentar uma crítica aos seus limites teóricos no
âmbito do paradigma científico hegemónico. Procura portanto
ultrapassar a ideia da sacralização Desenvolvimento, concebido quer como
um fim (o objectivo a alcançar, mensurável através de determinados
indicies, como por exemplo o Índice de Desenvolvimento Humano, ou os
Índices de Desenvolvimento Económico), quer como um processo
(concebido como um caminho de
determinadas práticas e procedimentos) para atingir um
objectivo. A ideia de uma pós-desenvolvimento, na esteira do que
vinha sucedendo nas demais ciências sociais com a ideia do pós-
modernismo. (Ziai, s.d.) A nova proposta do pós-
desenvolvimento, de acordo com a proposta de Arturo Escobar parte da
abordagem ao problema da criação da riqueza, através duma análise
multidisciplinar. Para Escobar a criação da riqueza deve partir das condições de
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cada comunidade numa perspectiva de
criar uma emancipação. A questão do que é a pobreza, torna-se aqui numa
questão chaves, para a definição dos
conceitos de emancipação. A pobreza, no pós-desenvolvimento, é mais do
que ausência de bens-materiais. A Pobreza tem essencialmente a ver com
a capacidade de cada comunidade, assegurar ou não, a sua
sustentabilidade no espaço e no tempo. (Escobar, s.d.)
Finalmente, esta proposta dos estudos do Pós-Desenvolvimento só é viável a
partir dum conjunto vasto de estudos de base. O livro citado, na parte final
procura apresentar um conjunto de casos, onde partindo da análise das
realidades das comunidades,
resultaram processos que conduziram à construção dos programas de
desenvolvimento. É nesta dimensão que emerge a importância dos atores
locais, como protagonistas dos processos, a importância da
incorporação dos processos de negociação informal e das práticas
reflexivas nos processos de construção dos projectos. A análise da proposta de
Zial implica que de alguma forma é necessário fazer diminuir as exigência
formais das agências de financiamento, abandonar a rigidez formal dos
processos burocráticos e partir para a
construção de projectos com base na observação das condições das
comunidade, na negociação da acção com esses atores, procurando, através
do seu protagonismos, alcançar processos de emancipação social.
Ora a incorporação das teorias do Pós-Desenvolvimento implica igualmente
olhar para a forma de organização dos processos da actividade. No fundo, há
uma linha que atravessa o olhar sobre estas problemáticas que continua a
dividir os campos de problematização. Dum lado temos as teorias do
mercado, que defendes a necessidade
de reduzir a actividade económica à troca de mercadorias, que implica a
continuidade dos processos de
globalização. No outro lado desta linha, temos as teorias críticas, que olhando
para os diversos bloqueios que a mercantilização do mundo produz, que
conduz a impasses ambientais, energéticos, alimentares, obriga a
pensar formas de transição. Uma transição que é emergente e deverá
partir duma análise da emergência. A proposta da “Economia Solidária”
(Hespanha & Santos, 2011) é uma proposta que entronca nesta
perspectiva. A Economia Solidária baseia a sua proposta na investigação
sobre as formas económicas de
carácter associativo, cooperativo e autogestionário. A compreensão das
práticas económicas marginalizadas, são na economia solidária a chave da
construção dos novos projectos. Isso permite a incorporação das alternativas
de desenvolvimento, o estudo e a reflexão sobre as diversidades de
cenários e o pensar, a vontade de ultrapassar a escassez de recursos e
pensar na realização do ser humano. Cada caso é um caso singular, que se
integra numa ecologia de saberes. É essa singularidade que enriquece a
pluralidade de análise dos casos e
fundamenta a análise teórica e pratica. Como tal, nesta abordagem é
necessário repensar o papel do Estado e das políticas públicas. O Estado,
como organização matricial, é repensado como instrumento de
regulação das fórmulas descentralizadas de produção. Ao invés
de se concentrar na construção teleológica do mercado, os dos
objectivos nacionais primordiais, o Estado fornece um conjunto de
serviços que assegura a distribuição e o acesso aos recursos.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 68
Em suma sintetizando as actuais
problemáticas dos Estudos do Desenvolvimento, à questão do
mercado e da globalização neo-liberal
que temos vindo a assistir como processo hegemónico, propõe-se a
integração dos processos locais, das diferenças e da heterogeneidade que
as características endógenas e de contexto das comunidades permitem.
A ideia do crescimento económico com base num processo pre-determinado e
a ideia do desenvolvimento como um “fim desejado” acabou por produzir um
espaço global, sem configuração específica fora do quadro de
referências hegemónico, que apenas sobrevive na manutenção de centros
hegemónicos em dominação das
periferias. Nesse processo, a globalização mobiliza os diferentes
agentes (Estado, empresas, Organizações Internacionais), que
formata e instrumentaliza em função dos seus fins, ao qual é necessário
contrapor outros processos de organização, legitimação e
estruturação social. Processos que devem resultar das condições
concretas de cada comunidade, da produção de conhecimento
emancipatório, de formas de organização solidárias com base na
participação das comunidades, onde
são integradas as questões da igualdade de género, da resolução de
conflitos pela negociação de compromissos, assegurando a livre
expressão e o debate de ideias como processo de construção da acção
social. A questão do desenvolvimento não
pode ser uma questão teleológica, mas tem que resultar duma vontade de
desenvolvimento. Como todas a acções e processos sociais a vontade de
desenvolvimento é uma narrativa. O processo de construção das narrativas
alimenta-se dos desejos e das
capacidades de negociação de cada um dos actores. Na formulação dos desejos
estão implícitos os modelos. Nesse
sentido, não pode haver vontade de desenvolvimento sem vontade de
emancipação e sem vontade de construir a acção. Essa questão levanta
o problema dos limites da vontade do desenvolvimento. Saber até que ponto
uma comunidade se empenha na sua própria transformação, seja por
contágio de outros contextos, seja por vontade própria. Esse aspecto reforça o
carácter multidisciplinar dos processos e dos agentes de desenvolvimento e
reforça a necessidade de concretizar processos de investigação implicados
numa acção emancipatória que permita
a construção de compromissos com as comunidades.
Esta aparente complexidade epistemológica conduz a investigação
para a sua implicação na acção. É nesse sentido, o valor da acção da
investigação nos Estudos para o Desenvolvimento, que importa
igualmente equacionar. Quando abordamos a teoria da acção e a
estratégia da participação dos atores, referimo-nos à sua “vontade de
desenvolvimento”. Como verificamos, mais acima, esta vontade, é muitas
vezes enunciada a propósito do
desenvolvimento como vontade de futuro. Nos Estudos sobre o pós-
desenvolvimento, em particular no campo epistemológico das
Epistemologias do Sul, defende-se que há uma necessidade de recentrar a
acção no presente. Formular perguntas pertinentes para obter respostas fortes.
(Santos, 2006) O saber e as prática das comunidades, muitas delas alvo de
processo de hegemonização e dominação, foi alvo de um processo
que conduziu ao esquecimento e à dissimulação. Muitas dessas formas
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 69
transformaram-se e misturaram-se
produzindo outras formas de acção, que a sociologia das emergências
procura resgatar. Ora segundo o autor
é necessário descentrar as formas de pensar das ciências sociais.
A domesticação do pensamento levou a que a produção do conhecimento tenha
passado a ser feito fora da sociedade, criando-se instituições (escolas e
universidades) que são instâncias legitimadoras das narrativas. Esta
separação entre o saber e o fazer em instituições que apenas se dedicam à
produção de conhecimento impede a emergência do conhecimento sobre as
acções rebeldes porque produz conhecimento padrão. Ou seja,
segundo o autor verifica-se uma certa
impossibilidade de gerar uma ideia revolucionária numa instituição
conservadora. A implicação com a acção permite transportar a produção
de conhecimento para a comunidades, implicando-a nesse processo,
partilhando com essa comunidade o processo de emancipação. (Santos,
2006).
A saúde reprodutiva em Africa
Os debates actuais no âmbito da ajuda ao desenvolvimento dos sistemas
públicos de Saúde nos países menos avançados evidenciam a relevância dos
processos de sustentabilidade dos
sistemas de saúde públicos: A extensão e a qualidade dos cuidados de
saúde fornecidos ou a fornecer dependem da capacidade de financiar e
manter esses serviços. Este é um processo complexo onde se confrontam
diferentes visões e formas de construção de políticas públicas.
Quando em 1978 é aprovada e
assinada por 134 países a “Declaração
de Alma-Ata”, um conjunto alargado de
actores sociais exortam os vários governos do mundo, as organizações
internacionais, nomeadamente a
Organização Mundial de Saúde e a UNICEF, bem como as instituições
financeiras (o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) a aplicar os
princípios da Conferência Internacional de Cuidados Primários de Saúde.
Nessa conferencia promovida pela Organização Mundial da Saúde, na
antiga União Soviética defendia-se, entre outros aspectos, que a
universalidade do acesso e das redes de cuidados primários de saúde
constituíam a chave para, até ao ano 2000, alcançar “um nível aceitável de
saúde para todos os povos do mundo
(…) mediante o melhor e mais completo uso dos recursos mundiais,
dos quais uma parte considerável é actualmente gasta em armamento e
conflitos militares”. (World Health Organization;, 1978)
Para além da retórica política, característica da época da Chamada
Guerra Fria, nesta declaração sobressai nitidamente uma defesa da importância
da Saúde e dos serviços de Pública no atingir dos fins do desenvolvimento.
Realça que “a saúde - estado de completo bem- estar físico, mental e
social, e não simplesmente a ausência
de doença ou enfermidade - é um direito humano fundamental” (World
Health Organization;, 1978) na qual concorrem os diferentes sectores da
sociedade. Através destes serviços Universais de
Saúde pretendia-se corrigir “a chocante desigualdade existente no estado de
saúde dos povos, particularmente entre os países desenvolvidos e em
desenvolvimento, assim como dentro dos países” (United Nations, 1978).
Para além da importância dos serviços e acesso a serviços de Saúde na
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 70
construção do “desenvolvimento” a
declaração defendia ainda no seu itam IV o “direito e dever dos povos
participar individual e colectivamente
no planeamento e na execução de seus cuidados de saúde. (ibidem, IV). Ainda
no ponto seguinte definia a principal responsabilidade pela implementação
aos governos, essa mobilização da participação das comunidades na
resolução não deixa de ser da maior relevância, pois nem sempre este
princípio estará presente em todas as propostas.
Realça-se ainda que nesta declaração os cuidados de saúde primários foram
definidos como sendo “cuidados essenciais de saúde baseados em
métodos e tecnologias práticas,
cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao
alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua
plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter
em cada fase de seu desenvolvimento(…). Fazem parte
integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função
central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e económico
global da comunidade. Representam o primeiro nível de contacto dos
indivíduos, da família e da comunidade
com o sistema nacional de saúde, qual os cuidados de saúde são levados o
mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e
trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo
de assistência à saúde”. (World Health Organization;, 1978)
Contudo, após a forte crise do petróleo de 1979, na década de oitenta o
mundo assistirá ao imergir, na política económica, dos princípios do
neoliberalismo. Para estimular a economia e promover o funcionamento
dos mercados, os Estados deveriam
centrar-se na regulação e abster-se de intervir directamente na prestação de
serviços à sociedade. Através dos
programas de apoio ao desenvolvimento e ajuda humanitária,
ou de ajustamentos estruturais, as grandes instituições mundiais
(sobretudo o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial)
defendem a restruturação e renegociação das dívidas externas.
Como contrapartidas das ajudas e apoio aos projectos direccionados ao
crescimento económico e social exige-se, que todas as trocas de bens e
serviços se desenrolem no mercado. O impacto desta orientação tem vindo a
repercutir-se nos ajustamentos dos
serviços públicos de saúde. Um ajustamento que tem vindo a ser
executado sobretudo com a exclusão dos mais pobres e dos menos aptos a
participar nos processos de mercantilização da vida social. (Pfeiffer
& Chapman, 2010) Vários estudos realizados, sobretudo
sobre o impacto do domínio da medicina baseada no mercado, ou seja
da mercantilização da saúde, especialmente nos EUA, vêm
demonstrando que as políticas neoliberais aplicadas, têm posto em
causa a qualidade dos serviços
prestados. Na equação que resulta da aplicação na saúde do princípio da
rendibilidade do produto pode existir uma contradição com a correcção dos
procedimentos médicos e dos serviços de saúde. O facto de se permitir que as
forças do mercado ditem os mecanismos de cuidados de saúde,
favorece o aumento de uma gestão ineficiente e a desigualdade de
condições de acesso: o serviço mais rentável não é, necessariamente, o
mais adequado às necessidades do paciente, aqui transformado em
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 71
cliente. Paralelamente, a
mercantilização do acesso ao serviço, gera uma desigualdade de
oportunidade em função da
disponibilidade de renda para pagamento desses mesmos serviços.
Nesta alteração de lógicas, também se verifica que tendencialmente se
desvaloriza a relação paciente – médico. Ainda que no procedimento
unitário se possa verificar uma economia de recursos, a tendência, a
prazo, no conjunto social mostra ser um aumento de custo social e perda de
eficiência do serviço e crescimento das desigualdades no acesso aos serviços
de saúde (Rylko-Bauer & Farmer, 2002).
Este é um processo que acentua a
importância da participação dos indivíduos e das comunidades nos
processos de decisão de formação de políticas públicas. No âmbito das
narrativas dos profissionais de Saúde e dos serviços de Ajuda Humanitário a
reflexão sobre os impactos dos mecanismos de ajustamento estrutural
nas comunidades tem permanecido ausente. Os seus efeitos, no
afastamento dos grupos mais vulneráveis começa actualmente a
emergir como um campo de investigação, onde se procura
relacionar os processos de
marginalização económica com as percepções sobre os riscos na saúde
pública e as diferentes estratégias de gestão da saúde dos indivíduos e das
comunidades. (Chapman, 2006) Os ajustamentos nos sistemas públicos
têm sido conseguidos aumentando a desigualdade no acesso aos serviços
públicos de saúde. Esta problemática relaciona directamente a produção dos
serviços de saúde pública com a problemática dos Direitos Humanos e
com os Objectivos do Milénio (ODM), estabelecidos em 2000, no qual as
mulheres e o seu empoderamento,
através da protecção à gravidez à saúde materno-infantil constituem
objectivos prioritários.
Segundo dados das Nações Unidas, publicados anualmente nos seus
relatórios de Desenvolvimento Humano ou nos relatórios da OMS (Organização
Mundial de Saúde), as metas previstas para o desenvolvimento do milénio,
estão longe de ser atingidas. Em muitos países do mundo, sobretudo
situados na África subsaariana, a vulnerabilidade e as desigualdades de
acesso aos sistemas de saúde são extremamente marcantes. Revelando-
se ainda elevados índices de mortalidade materno-infantil, por
causas que são, actualmente possíveis
de prevenir. A saúde materno infantil (SMI) é uma
estratégia internacional desenvolvida pela Organização Mundial da Saúde, a
qual tem por objectivo promover serviços de saúde de qualidade
acessíveis a todos. Com esta estratégia, pretende-se reduzir o
número de mulheres a sofrer de doenças preveníveis ou tratáveis que
possam provocar danos irreparáveis ou mesmo a morte durante a gravidez ou
o parto. (Chapman, 2010) Nos estudos realizados por Jónína
Einarsdóttir numa comunidade da
Guiné Bissau entre os anos de 1993 e 1998, foi possível observar que a
mortalidade infantil era, há data, bastante comum, sendo que cerca de
um terço das crianças nascidas não chegaram à idade de cinco anos.
Verificava-se que a grande maioria destas mortes era provocada por
causas perfeitamente preveníveis. (Einarsdóttir, 2004)
Neste estudo, a autora defende que as construções culturais, valores e
considerações éticas relacionadas com religiões ou outras ideologias, assim
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 72
como as relações de género e os
processos de subsistência são, todos eles, factores fundamentais na
formação das práticas reprodutivas das
mulheres. (Einarsdóttir, 2004) Nos trabalhos apresentados (por
exemplo em Chapman, 2006) verifica-se uma estreita correlação entre a
construção da percepção dos riscos na gravidez nas mulheres, criando uma
situação de vulnerabilidade para a qual os serviços de saúde, com as suas
práticas de ajustamento, não possuem mecanismos de resposta. E face a essa
percepção, as mulheres grávidas, encaram a sua diferença social e
encontram mecanismos alternativos nos sistemas de medicina tradicional,
recorrendo à feitiçaria e curandeiros,
afastando-se, para a maioria das questões relacionadas com problemas
da gravidez, dos sistemas de saúde promovidos pelo Estado.
Em várias investigações desenvolvidas até agora, parece evidenciar-se uma
correlação entre a diferenciação dos processos cognitivos do risco das
grávidas e as práticas biomédicas utilizadas. A noção antecipatória de
risco influência de forma significativa o risco efectivo na saúde materno-
infantil. Dessas evidências empíricas aponta-se a necessidade de levar em
linha de conta, nas práticas de
intervenção médicas, a sua relação com as práticas sociais dominantes. As
conclusões apontam no sentido de que, para garantir o desenvolvimento da
saúde materna nos serviços públicos, é necessário levar em linha de conta os
processos sociais em que as comunidades estejam envolvidas.
(Chapman, 2010) A questão da participação das
comunidades, e sobretudo das mulheres grávidas nos processos de
planeamento e produção de serviços de saúde tem vindo a ser apontado em
vários trabalhos como um dos
caminhos a trilhar. Dar voz às mulheres, construindo as suas
narrativas de vida como parte
integrante dos processos, é hoje um campo de investigação que necessita
de ser analisado e reflectido.
Conclusão
Procurando agora sintetizar e sistematizar as principais questões que
resultam deste trabalho. Iniciamos esse questionamento com a
evidenciação de que a saúde materno-infantil se constitui como uma das
principais preocupações da comunidade técnica e científica no campo das
organizações internacionais. No que se refere aos oito objectivos do milénio a
atingir em 2015, é o objectivo que se
mostra mais difícil de alcançar na áfrica Subsariana. Evidenciamos que esta
questão se encontra por estudar na Guiné-Bissau, um dos Estados mais
pobres de áfrica, onde existem grandes problemas na implementação das
políticas públicas. Perante a fragilidade das políticas publicas e da dificuldade
de implementação das acções propostas pelas organizações
internacionais, evidencia-se a importância das acções desenvolvidas
por via da participação das comunidades.
De seguida passámos em revista a
“teoria do desenvolvimento” onde procurámos evidenciar que a ideia de
desenvolvimento procura, na actualidade, novos caminhos. Há hoje
um entendimento que o fenómeno do
desenvolvimento buscou implementar modelos e concepções construídas fora
dos contextos e dos processos das diferentes comunidades. Verificámos
que uma das vias propostas para repensar os problemas do
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 73
desenvolvimento passava pela procura
de respostas aos problemas concretos das comunidades, construindo esses
processos a partir da incorporação das
experiencias e dos saberes das comunidades. Dar voz ás comunidades
e construir os processos a partir da sua participação tem sido considerado
como uma das alternativas a prosseguir no campo das
epistemologias. Trata-se portanto de repensar os conceitos de eficácia e
eficiência da ajuda ao desenvolvimento, agora proposto como
processos de diálogo sobre as experiências dos actores sociais na
comunidade, procurando incorporar os seus saberes e as suas práticas na
construção de acções socialmente
significativas. A partir deste diálogo, centramos a
nossa problemática na questão da saúde reprodutiva nos países da África
Subsaariana onde se evidencia a sua relevância no debate sobre a eficácia e
eficiência da ajuda ao desenvolvimento dos sistemas públicos de Saúde.
Procuramos relevar que sustentabilidade dos sistemas de saúde
públicos: A sua extensão e a sua qualidade nos cuidados de saúde
fornecidos ou a fornecer dependem não só da capacidade de financiar e manter
esses serviços, mas sobretudo da
inclusão da participação das comunidades, dos seus saberes e das
suas práticas, procurando através deles criar diálogos sobre conhecimentos
rivais. Salientamos que este é um processo
complexo onde se confrontam diferentes visões e formas de
construção de políticas públicas. Os debates actuais no âmbito da ajuda ao
desenvolvimento dos sistemas públicos de Saúde nos países menos avançados
evidenciam a relevância dos processos de sustentabilidade dos sistemas de
saúde públicos: A extensão e a
qualidade dos cuidados de saúde fornecidos ou a fornecer dependem da
capacidade de financiar e manter esses
serviços. Este é um processo complexo onde se confrontam diferentes visões e
formas de construção de políticas públicas.
Revelamos ainda que nos mais recentes trabalhos sobre a percepção
do risco na gravidez em mulher se evidencia a estreita correlação entre a
percepção da vulnerabilidade da grávida sobre a sua condição face às
práticas dos serviços de saúde. A implementação de práticas estranhas
às comunidades e a relativa falta de diálogo na implementação das práticas
médicas levam a uma procura de
alternativas nos sistemas tradicionais e alternativos. A incapacidade do
ajustamento aos saberes rivais dos serviços de saúde impede diálogos
construtivos. Por outro lado, a fragilidade dos sistemas públicos em
estados frágeis, leva a que perante a insuficiência ou a descontinuidade do
serviço de saúde público, sejam incentivados os modos alternativos nas
comunidades. Realçamos que as várias investigações
desenvolvidas apontam que, para garantir o desenvolvimento da saúde
materna nos serviços públicos, é
necessário incorporar as comunidades nos diferentes processos. Nestes
processos é necessário dar voz às mulheres grávidas, incorporar a sua
participação nos processos de planeamento e produção de serviços de
saúde é um desses modos. Propomo-nos no desenvolvimento
deste trabalho procurar analisar as formas como a construção de
narrativas biográficas se podem constituir como um campo de
investigação inovador neste domínio. Propomos executa-lo na Guiné-Bissau,
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 74
na região dos Felupes, uma das regiões
com menor incidência dos serviços públicos de saúde e com menor
conhecimento dos processos sociais.
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Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 75
Poética das viagens museológicas
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 76
Diário de Bordo26
Damos início neste número à publicação dos Diários de Investigação. Inicialmente
publicados no nosso blog “Cadernos de Investigação” na plataforma Hypotheses. .
São notas tomadas na espuma dos dias, sobre os quais mais tarde construímos
reflexões de pesquisa. Tratam-se portanto de textos em bruto, com uma edição
mínima.
Em relação ao projeto publicado na plataforma, trata-se duma iniciativa recente,
que corresponde a componente de divulgação do nosso projeto de Investigação
“Heranlas Globais. Ele pode ser consultado em
http://globalherit.hypotheses.org/diario-de-bordo.
Neste número apresentamos dois Cadernos. O de Moçambique (parte 1) e o da
Raia Transfronteiriça (parte 1).
26
Pedro Pereira Leite- CES-UC
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Moçambique
r
No Caderno de Investigação Moçambique (parte 1) apresentamos os resultados dos
nossos trabalhos de investigação realizados em Moçambique. Neles contamos com
o apoio da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, com particular destaque
do nosso amigo José Teixira; da ONG Vida, através da Patrícia Maridalho e da Filipa
Zacarias; e como sempro da Isa e do Sérgio, quer criaram as condições logísticas
no terreno. No texto, para respeito com a privacidade dos protagonistas os nomes
são alterados.
Fly TAP 281 From Lis-Mpt
A 31 mil pés de altitude em rota de cruzeiro de
789 Km/h. Estamos mais ou menos em cima do
Atlas sobre o continente africano. Esperam-me
dez horas de viagem. São 11 horas e tenho
chegada prevista para as 21:00. Em Maputo serão
10 da noite.
No aeroporto ficaram os sorrisos de despedida da
Ana, do Gabriel e do Santiago. A apreensão de
mais uma viagem a Moçambique. Talvez mesmo
algum ciúme de ficar. São sempre as mesmas
queixas de ser mal-amada. Deixei para trás a
cidade de Lisboa mergulhada na Crise.
O avião está cheio. Alguns passageiros com
crianças de colo ajeitam-se como podem. Pobres
coitados. São horas de tormento para quem está
fechado num espaço minúsculo. Eu estou nas
cadeiras do meio. Aqueles bancos de quatro
lugares. Mas sobre a coxia o que dá jeito para de
vez em quando me levantar para esticar as
pernas.
É tempo de olhar par o que vou fazer. Os
objetivos da viagem estão estabelecidos. Recolher
informações, fazer contactos, organizar ações de
investigação. Levo na bagagem Paul Ricoeur. A
memória, o silêncio e o esquecimento. Vai-me
acompanhar nesta viagem.
Reencontro com José Forjaz- O homem,
o arquiteto e o professor.
Saio de manhã cedo e sinto de novo o cheiro da
cidade das acácia vermelhas. Dormi apenas
algumas horas. Após a chegada a I e C estavam à
espera no aeroporto e fomos comer qualquer
coisa rápida. Depois pusemos as conversas em
dia. S está a descer da Ilha e Y de regresso a
Maputo para repensar os objetivos. Saio para
comprar um cartão de telemóvel. A Ana trocou-
me o meu velho cartão de Moçambique com o de
São Tomé. Um dos meus trabalhos será sentir a
poética da cidade. Vaguear pelas ruas. Sentir os
seus movimentos. Os seus cheiros.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 78
Logo à saída do Centro Comercial Polana, passo
pelo atelier do Arquiteto JF e marco uma reunião
com a secretária. Levo de Coimbra o pedido de
recolher alguma informação sobre a obra do
arquiteto.
Prossigo pela cidade. No palácio dos casamentos a
música invade o ar. É sexta-feira e é sempre um
dia de muitos casamentos. Foi uma ideia
importada dos antigos países de leste após a
independência. Funciona como um registo. Em
Maputo é uma ocasião para ver ao vivo a cor e o
som.
Continuo pela Julius Nyerere. Entro no Centro
Cultural Português, no piso térreo da embaixada
de Portugal. Apresenta uma exposição de
fotografias sobre o lixo de Maputo. A lixeira de
Maputo é um ponto de atracão para crianças à
procura de alimentos. É um olhar sobre a miséria
que nos é proposto. Par uns é um modo de vida,
para os europeus é uma mostra do atraso. Uma
narrativa que nos remete para a passividade da
contemplação. É uma exaltação do lixo.
Sigo a minha busca do sabor da terra. Procuro o
perfume das acácias rubras. Sigo para o Jardim
dos namorados. Toca o novo telefone. É uma
chamada o atelier do Arquiteto Forjaz a marcar a
reunião para o meio-dia. Regresso a casa
apresado para apanhar o gravador.
Ao meio-dia entro na vivenda ao lado do Polana.
José Frojaz recebe-me de camisa branca. É a
segunda vez que o visito, depois de em 2009 ter
trabalhado nos seus arquivos. Tem um Mac em
cima da mesa. Conversamos sobre a exposição.
Exlico-lhe que pertendia uma entrevista para
construir um guião. Ele mostra-me o livro “José
Forjaz” que foi feito pela Escola Portuguesa. Tem
uma compilação da sua obra. Oferece-me o livro.
Diz.me que tem uma exposição organizada por
um amigo. O arquiteto Keil do Amaral (o Pitum de
Canas de Senhorim). Tenho os contatos. Logo no
primeiro dia tenho matéria para trabalhar.
A exposição, marcada para dezembro em
Coimbra. O livro que me oferece chama-se a
“Poética do Espaço”. Curioso não é. A arquitecto
contina a rabiscar nos esquiços que tem em cima
da mesa. É um mestre da arquitetura.
Será que as palavras mudam o mundo?
O dia amanheceu ventoso. Sento-me a trabalhar
na varanda sobre a baía de Maputo. Tenho a
cidade e os seus sons a meus pés.
Tomo o pequeno-almoço. Um croisant tostado e
um sumo de laranka servido por A a cozinheira de
mão leve da tia I.. Trago na bagagem um texto
para finalizar sobre a poética da
intersubjectividade. Escrevo toda a manhã. O
texto fica vançado.
Por volta da hora de almoço chega I. Temos um
caril de amendoim. Conversamos longamente no
terraço.
Por volta das três horas I regressa ao trabalho e
eu volto ao texto. Há que finalizar as memórias de
São Brás. Anoitece rápido sobre a cidade.
Tia I regressa com a proposta de jantar de Salada
de Marisco no porto. Saímos os três. Eu I e C.
Conversas sobre os destinos cruzados da vida. Os
filhos crescido, os que estão a crescer. Depois do
jantar uma visita à noite de Maputo. Passamos
pelo bar Shima na MaoTse-Tung. Estranho nome
este para uma avenida. Afinal era o nome que
existia em 1975, que depois mudou para Mao-
Tse-Dong. Enfim afinal ninguém liga aos nomes
das ruas na noite de Maputo. A avenida está na
fronteira com o Caniço. Os frequentadores dos
dois lados da avenida misturam-se aqui no bar.
Une-os a cerveja e o gosto pela música.
Ao fim de algumas horas regressamos a casa de
C. Mais umas horas de conversa. Olhamos paras
os cruzamentos da vida sobre vários pontos de
vista. Por vezes parece que estamos em circuito
fechado tal é a redundância. Parece que
queremos mudar o mundo com as palavras. Será
que as palavras mudam o mundo? Há que
procurar os traços da mudança.
Palavras ditas e não ditas
Amanheceu cinzento e chuvoso. Acordo à nove
horas e leio um bocado na cama. Sinto o silêncio
da cidade domingueira. A cabeça pesa um bocado
das Laurentinas e sabe bem este descanso.
Temos marcado o mata-bicho para a Baixa. A
Cristal. Damos uma volta pela cidade. Vamos ao
Shopright fazer compras para C que mudou de
casa. Vive agora numa vivenda ao pé da
residencial Palmeiras. Vamos almoçar um
esplêndido cozido à portuguesa na Matola.
Estamos em território do pai de I O avô C é uma
personagem curiosa que foi para Moçambique nos
anos cinquenta. Por lá ficou com muitas histórias
para contar. Passou pela independência. Lá ficou.
Sempre na Matola.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 79
Chegamos ao restaurante. O ambiente está tenso
e cheio de tugas. Não deixa de ser curioso comer
o cozido, na matola, num sítio cheio de Tugas.
Aliás isto está cheio de tugas. Vamos ver o que aí
vem. As tensões são razões familiares. Caminhos
cruzados que pouco interessam à investigação.
Mas a suas histórias de vida são um aspeto
importante para a compreensão destas
cartografias urbanas que vou construindo.
Voltemos ao cozido. A refeição estava boa. Mas é
curioso como as tensões rapidamente tomaram
conta do ambiente. A conversa azeda nos
detalhes e acusações mútuas. Há palavras que
ditas magoam. Há palavras que não são ditas e
que também magoam. Cada um faz um juízo do
que deve ser ou não dito. Mas cada um também
acha que há coisas que não devem ser ditas. Num
tempo de inflação da palavra e da imagem a
realidade multiplica-se aos nossos olhos. Os reais
e os irreais misturam-se. Torna-se difícil marcar
uma linha de rumo.
E a propósito…Onde está o meu passaporte. Não
me digam que perdi o passaporte?
O Caminho de Djavula
Saída às 7 da madrugada para Djavula. Regresso
às 19:30, já noite dentro. Debaixo de trovoada
tropical sob Maputo acabei por gastar 200 paus
em táxi mas valeu a pena.
O dia foi espectacular. Atravessado o rio Maputo
no batelão logo pela manhã pudemos observar a
azáfama no cais. Do Catembe chegam rios de
gente para a grande cidade. Um dia de pequenos
negócios. Produtos da horta, carvão em sacas.
Todos se dirigem apressadamente para as ruas
perdendo-se no cinzento da chuva. No Catembe a
lama forma lagoas. No cais as vendedeiras de
pescado oferecem os seus produtos. Espero pelo
jeep debaixo do telheiro duma cantina.
Espero pela boleira de F á saída do cais. Encontro
dois espanhóis que vão visitar o projeto de
Djabula. Arrancamos pela picada. A estrada
nacional 201 em direcção a Bela Vista.
Atravessamos a ponte sobre o rio Tembe e
passamos por Salamanga. O grande templo Hindu
do Sul de Moçambique.
Pelo caminho fomos conversando sobre o projeto.
Os seus vários problemas e as oportunidades de
futuro. Chegados ao de Formação descemos do
Todo o Terreno. Debaixo dum embondeiro a Filipa
fez um briefing. Depois visitamos a oficina, o
velho galinheiro onde foi ensaiada uma criação de
galinhas e ovos para venda em Maputo, um
projeto que não resultou devido à distância ao
mercado. Uma oficina de mel. Olhamos a horta.
Foquei com a sensação de que o projeto está num
impasse.
Regressamos por Bela Vista. No caminho o jipe
tem um furo. Macaco com pouco balanço. O
suporte a entrar-se na lama. Falta altura.
Demorará duas horas até mudar o peneu.
Persistência e desenrascanço. Finalmente com
roda seguimos. Em Bela Vista um almoço já pela
tarde dentro de frango assado. Encanto
partilhamos uma 2M anoitece. Cheira a chuva. O
céu escurece e rebenta a chuva. Fazemos o resto
do caminho na lama, debaixo de intensa chuva.
Apanho o último batelão por uma unha negra.
Nem compro o bilhete. Vai cheio de gente.
Encontro um lugar no convés. Atravesso debaixo
duma grande agitação. Três travestis seguem no
convés para a noite da Bagamoio. Loiraças
vistosas que agitam o barco.
Discursos Cruzados
Começo o dia com uma reunião na Eduardo
Mondlane na Karl Marx, por cima da Livraria
Universitária. No edifício parece existir uma
residência universitária e uma cantina. É muito o
movimento de jovens. Pelo contrário, a livraria
parece estar em processo de dissolução. Poucos
livros nas prateleiras. Subo ao 2º andar, onde
está o escritório de AC.
Enquanto espero olho para o espaço de exposição
de arte. Entretenho-me a folhear o jornal
comemorativo dos 50 anos da UEM. Olhos os
discurso do Prof. Manuel Garrido Araújo. Professor
de Geografia e docente da UEM. Representa a
geração do 8 de Março, a geração que em 1977
toma conta da Universidade na sequência do
discurso de Samora Machel afirma que a
Universidade tem que estar ao serviço da
construção do socialismo. A questão que o jornal
levanta é procurar como é que essa geração
macrou os destinos da universidade. Um discurso
que contrasta com o discurso atual da busca de
Excelência. De procurar ligar a investigação ao
trabalho. Como é se se liga o m undo do trabalho
à universidade.
A conversa decorre com afabilidade. Falamos dos
projetos. Da questão da Rota dos Escravos da
UNESCO. A propósito de exposições conversamos
sobre a exposição “os filhos da Lua” que levou
milhares de pessoas à fortaleza de Maputo. Mais
tarde encontrarei o catálogo. Foi uma exposição
interessante que levou milhares de pessoas à
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 80
fortaleza e que ilustra as novas dinâmicas da zona
portuária. Com a instalação do novo museu das
pescas e a criação de uma zona de animação
turística o centro vai ter uma nova centralidade.
Será curioso saber o que vai acontecer à urna do
Gugunhanha, o herói nacional moçambicano no
interior do museu. Ficará ou será remetido para o
cemitério.
Olhares exteriores
O passaporte desapareceu. Depois da declaração
à polícia local, ala para o consulado na busca de
solução. O Consulado de Portugal em Maputo é
um edifício na Mao-Tse-Tung. É interessante
entrar no espaço e observar os funcionários.
Todos eles matem o ar de cansados como
estivessem em Portugal, o que contrasta com a
alegria de viver em Maputo que todos mostram.
Visita ao espaço de CES Aquino de Bragança.
Situado numa rua paralela á 24 de Julho, numa
vivenda ao estio colonial, é um edifício sóbrio,
limpo com guardas afáveis. Parece que se procura
uma legitimidade perdida. Uma busca às origens.
O problema da cooperação entre países é o da
aplicação dos modelos. A aplicação de modelos
exteriores sem levar em consideração as
dinâmicas instaladas leva à construção de novas
realidades. Realidade diferente das projetadas,
altaraçoes das tradições. Ligar capacidades das
pessoas é afinal isso mesmo.
Ao fim da tarde mais uma reunião sobre Roteiro
da Escravatura em Moçambique. C é um indivíduo
afável. Cortez e simpático que rapidamente se
prestou a manter uma conversa sobre a
actualização da investigação. O relatório sobre
Moçambique data de 1981 ou 91. Entretanto na
Ilha foi feito o projeto de Sidel Fumá “o Jardim da
Memória. Uma exposição que está também
presente no Museu de Arte de Maputo.
No Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique,
no nº 8 encontra-se bastante trabalho sobre a
escravatura na Ilha. Quase tudo o que existe foi
feito por Gerad Lizang e Luís Filipe Pereira. No
entanto os estudos sobre a escravatura em
Moçambique têm um problema de base. O silêncio
sobre os traficantes. Quase todos os que têm
possibilidade de se dedicar ao estudo da
escravatura são descendentes de traficantes.
Em Inhambane encontram-se ligações entre os
libré-engagés e o envio de negros para as ilha
reunião no Indico. A banja, era o momento em
que os chefes locais e os comerciantes
portugueses que desciam de Quelimane fazia
negócios. Era entre 1727 e 17989. Ver o número
da revista do Arquivo Histórico de Moçambique
sobre Inhambane.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 81
As culturas na Cidade
Ontem, em casa da I. Jantamos como o Z e a I O
jantar foi esmerado. Entradas de geleia com atum
e prato principal de camarão no forno.
Saio de manhã para a cidade. Inicio a busca da
Poética. Andar pela cidade. Fazer a sua
cartografia. As ruas da cidade de Maputo são
coloridas. É curioso como as capulanas estão a
desaparecer da cidade. Em vez das roupas
coloridas, das longas peças de tecido enroladas ao
corpo da mulher e das camisas tropicais dos
homens, surgem agora os fatos cinzentos dos
executivos. As mulheres, é certo, ainda ostentam
a sua africanidade nos penteados elaborados.
Aproximam-se da imagem sul-africana. Mas a
concentração urbana e o delírio do excesso e do
consumo passaram a ser um sinal característico
da cidade.
Há uma grande carga energética no ar. Os
fenómenos concentram energia. São mais visíveis
do espaço e menos duradouros no tempo. Tudo
passa rapidamente. Procuramos na cidade olhar
para alem dos olhos. Escutar o som da cidade.
Olhar para o movimento. Sentir os cheiros da
cidade.
Á porta da pastelaria Surf sou quase atropelado
por um todo o terreno vermelho. Para em cima do
passeio. Sai uma negrinha formosa. Voluptuosa
nas formas. Roupas finas ondulando ao vento.
Transporta a arrogância de quem sabe que
concentra os olhares. Será a amante do ministro?
Mas para além da ostentação da riqueza há ainda
a ostentação da pobreza. Não será bem
ostentação. Será mais um novo tipo de pobreza.
No Norte do País foi criado num Fundo de
Desenvolvimento Local com sete milhões de U$
para fazer as populações de Cabo Delgado saírem
da pobreza absoluta. Os pescadores e os
comerciantes de peixe são os beneficiários. O
objetivo é ajudar na compra de motores e novas
artes de pesca.Mas quem acaba por beneficiar são
os comerciantes, porque acabam por ter
condições para aceder aos projetos.
De acordo com os regulamentos, um pescador
pode candidatar-se a um apoio até 200.000
meticais para comprar o novo motor ou arte. No
entanto, como o valor é dividido por todos os
candidatos, acaba por receber apenas ¼ do que
solicita. Fica com uma dívida. Como o dinheiro
não chega para investir, acaba por gastar noutras
coisas e fica mais pobre. Antes eram pobres e
sem dívidas. Agora são pobres com dívidas.
O fundo acaba apenas por beneficiar uns quanto.
“O fundo é para os amigos”. Os pescadores são
marginalizados. Pouco são os projetos viáveis, e
quando eles surgem, são apropriados pela “máfia”
que se instala entre os dadores e os beneficiados.
Por exemplo, o caso da bomba de gasolina
apresentado em Q. foi regeitado, para um ano
mais tarde ser apresentado pelo governador de C.
que assim se apoderou dum projeto feito e pago
por outro.
Há discursos sobre o silêncio. Vozes que não se
ouvem. Ouvimos estas palavras a caminho do
complexo industrial de Salamanga. Falara A e K.
Ambos são dirigentes associativos e sentem os
problemas.
Porque é que as pessoas pobres são alegres.
Perguntou F à entrada do barco quando
regressamos de Catembe. Fiquei com a pergunta
no ar enquanto olhava ao longe os prédios de
Maputo e sentia a brisa do mar a bater-me no
rosto.A minha volta sentia a concentração de
gente. Olhei os seus rostos sorridente. F tinha
razão, eles mostram-se felizes. Vinham de muitos
lados, juntavam-se ali, naquele momento e
naquele barco, para logo que chegarem a terra
partirem lestos à procura do seu destino. Eis um
pergunta a que tenho que tentar responder.
Nessa noite fomos ao bar da estação. Estava
cheio de tugas à procura dos corpos das miúdas.
Encontros com álcool e tabaco. Fumo e ritmo. A
emergência do corpo. Realça-se o contraste com
os que vinham no barco. Há aqui uma opção de
investigação que é necessário seguir.
Participação
Trabalho em casa. Finalizo os textos sobre a
“Memória de São Brás” e o texto sobre as
“Estratégias de mediação”27. Preparo as propostas
para apresentar em Moçambique sobre os
trânsitos dos africanos pelas suas memórias.
Heranças e História. Ouço ecos de Portugal. O
encontro de Setúbal e das vontades da L. de
colocar as suas vontades sobre todas as outras.
Parece que fica demonstrado a incapacidade de
entender o que é participar. Vamos jantar a casa
de C frango assado com Piri-piri.
Marracuene
Domingo de manhã vamos ao Marracuene. Vamos
mata bichar numa nova padaria duns tugas. Em
Maputo abrem-se novas padaria. Os tugas quando
27
Publicados no nº1 desta Revista, Dezembro 2012
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 82
chegam gostam de instalar padarias. Há uma
padaria no novo Centro Comercial ao pé do
Tribunal Administrativo que tem um pão bem
tuga. Nas padarias estabelecem-se diálogos. A
reprodução dum país através dos seus gestos
como estratégia de sobrevivência. Conversas
sobre os negócios. O patrão sempre de olho
atento no balcão.
Saímos pela EN 1 em direção ao Xai-Xai. Mais ou
menos a 25 de distância surge a FACIL. Na
estrada, de início, a habitual confusão de
domingo.
A história dos Moçambicanos é igual a tantas
outras. Famílias desestruturadas. Estamos
perante 3 gerações. Uma que aqui chega, na
época colonial, para procurar sobreviver. Outra,
nacional, nasce em Moçambique e faz toda a sua
vida em Moçambique. Está hoje bem na vida e
sabe mexer-se no território, aproveitar as
oportunidades e evitar as dificuldades. A terceira
geração vive os tempos da globalização. Nasceu
em Moçambique mas tem os olhos postos no
mundo. Tem acesso ao mundo, mas não sabe
muito bem distinguir o real do virtual. São sinais
dos tempos. Uns assistiram e fizeram construir
uma nação. Criaram afilhados. Viram chegar e
partir muita gente. Uns chagavam cheios de
esperança. De vontade de fazer. Outros
chegavam com vontade de ganhar. Partiam. Uns
com saudades, outros sem vontade de voltar.
A emergência duma nação foi feita numa aliança
entre os combatentes do norte e os aculturados
do sul. A influência sul-africana vai emergindo
como contágio. O lodge sul-africano marca a
paisagem no Marracuene. Piscina, e bungalaws no
meio do mato. O mato é ainda um espaço
selvagem.
Estávamos sentados. De repente a I. levanta-se e
exclama: - Uma cobra! Uma Mamba. Rápido, dois
rapazes saltam para a estrada. Com dois paus
esmigalham a cabeça do pobre bixo que se
aventurara nos domínios dos veraneantes. Estava
à hora errada no locar errado. Não tinha
estabelecido alianças duradouras.
Descansado, mergulho no Indico. – Olha lá tem
cuidado com os Tubarões! Gritam-me. Este é sem
dúvida um mundo perigoso Regresso. Sento-me
numa cadeira à conversa com C Olhamos para o
mar. Ele diz-me: “sou capaz de estar uma tarde a
olhar para as ondas.“
No bar há um emregado que não fala. Ele passa
silencioso por entre as pessoas, diligente. Tem
uma estratégia de sobrevivência que passa por
não se fazer notado. Acabamos a almoçar pizza.
Regressamos atravessando o Nikomati numa
lancha. Na saída vendedores de camarões e
amendoins enxameiam o espaço. No caís uma
rapariga no bar. Um bar vazio. O que é que há de
estranho no bar vazio. Será uma estratégia de
sobrevivência.
Cai a noite em Maputo. Nesta altura do ano cai
rápida. Vamos jantar ao alentejano. J. e a sua
mulher macua vão apresentar o filho da Ilha. O
problema é sempre o visto. Aparentemente um
alemão não pode ter um filho moçambicano. Um
filho moçambicano não pode ter um visto
moçambicano para visitar a Alemanha num
passaporte alemão. A Alemanha não pevê a dupla
nacionalidade. A mulhar macua ostenta o seu
orgulho swahili.
Memorando
Mais uma reunião na UNESCO. Sou bem recebido.
Sinto o calor e o afeto dos participantes. Termino
a reunião e regresso a pé. Passo pela cooperação
holandesa. Tem como lema “Ligar as capacidades
das pessoas”. Como se ligam fragmentos de vida
perdidos. No passado domingo, quando fomos a
Marracuene assitimos a um acidente na EN1. A
dada altura, na passagem dum cruzamento, um
carro vermelho destravado atravessa-se na
estrada levando vários indivíduos pela frente e
passando por cima de outros. No carro vejo o
barulho. Corpos projetados no ar. Corpos a
controcer-se no chão. O carro perde-se no meio
da multidão. Um bramido de gente acompanha o
louco. Nós seguimo em frente. A imagem do
acidente fica. Lamentos que ecoam.
Durante a reunião caio-me a haste dos óculos.
Aproveito para procurar um oculista. Paaso pela
embaixada para saber do passaporte e ao lado
encontro um É uma loja moderna na avenida
Mao-Tsé-Tung onde fui arranjar as hastes dos
óculos. Tipo simpático. Não levou nada. Deixo
ficar quinhentos paus à mulatinhas. Frescas na
manhã abafada de Maputo. Atenderam-se com
um sorriso franco. A amante do patrão, roliça, de
pequena estatura torce o nariz à rapariga macua
de nariz largo. Presente que tem que dominar a
rapariga. Evitar que a sua frescura contagio o
entusiasmo que o patrão lhe dirigir. A vida é uma
competição.
A loja está vazia. Fresca. Mas lá fora a cidade
move-se. O movimento da rua pressente-se. O
ruído entre por entre as frestas das portas. A
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 83
frescura ordenada da loja contrasta com o bulício
da cidade. Este é um mundo isolado.
Artificializado pelo ar condicionado. O telefone
toca. A patroa atende. A rapariga macua mete
conversa comigo. Mexe em diversos objetos. Ri-
se. Levanta-se da mesa e passa à frente. Olhar
guloso por se mostrar.
Hoje janta-se em casa. De regresso passo pelo
museu de de Arte. Esqueço-me que está fechado
à segunda-feira. Tenho que lá voltar noutro dia
para ver a exposição sobre a ilha de Moçambique.
Vou visitar o Muzarte e ver se encontro alguma
coisa. Está encerrado para obras. Azar. Volto para
casa trabalhar.
O jardim da Memória
Trabalho sobre o memorando de entendimento.
Escrevo as suas linhas principais e envio por email
e saio para dar uma volta. Passo pelo museu de
geologia à procura do seu diretor. Prece que tem
um museu em mãos lá para os lados de Tete. Não
tenho sucesso. Sigo para o museu de Arte para
visitar a exposição sobre a Ilha de Moçambique. O
Jardim da memória. Olha para a exposição, tiro
umas fotos e trago os folhetos de Informação.
Sigo para a Bagamoio na baixa. Procuro a Escola
de Artes. Deixo o telefone. Regresso a casa para
trabalhar. Procura estratégias alternativas.
A noite cai depressa. Troveja e relampeja. Falta a
energia durante um bom pedaço de tempo.
Passamos o serão a jogar às cartas.
Os círculos da memória
Ainda não recebi notícias do protocolo. Vou ao
CES Aquino de Bragança, e passo pelo consulado.
De caminho encontro o Centro de Estudos
Estratégicos da CPLP. Converso com o diplomata.
Trata-se dum espaço, duma vivenda à procura de
um uso mais intenso. Não havia luz e net. O
diplomata escritor estava com os nervos em
franja. Estava com ar de quem não queria estar
por ali.
Regresso pela Nekrumah, onde está instalado o
quartel ao pé das construções de Pancho Guedes
e regresso pela 24 de Julho. Volto a trabalhar em
casa.Tento alguns contactos e não encontro
niguem. É o fim do mês será por causa disso que
não encontro ninguém.
Há noite fui jantar a casa do L e I Estava lá dois
colegas. Falamos da exposição da ilha, dos
círculos da memória. O W, o chato do W sempre a
brincar. Porque é que os manequins são brancos?
O Jardim da memória está construído em círculos.
O círculo íntimo, da família, o círculo do grupo, e
o círculo do mundo. A escravatura é uma
experiencia limite de ultrapassagem dos círculos
de sobrevivência.
A dualidade
Acordo cedo e leio um pouco a saborear o tempo
da manhã. Tomo banho e desço ao Natilus para
comer o croissant prensado e um sumo de
laranja. Encontro Z. Conversamos sobre Maputo.
O Z é uma personagem atenta da vida de Maputo.
Olhar arguto observa o que se está a passar.
Tenho que me despachar porque fiquei de ir à
fortaleza falar com M. Z dá-me boleia até à baixa.
Entramos na estação para beber uma Manica. É
cedo e nunca bebo antes do meio-dia, mas o bar
da estação tem aquele encanto. Aproveito par ver
a exposição sobre o Museu dos Caminhos de Ferro
que se anuncia e olhar para a galeria
Kulungwana. Tem uma exposição sobre viagens.
Trânsitos e inquietações. Conversamos
amenamente. O telemóvel toca. Era M a
perguntar se podemos alterar o encontra para a
tarde. Continuamos na conversa. Uma conversa
agradável que corro sobre o que é Moçambique,
como são os Moçambicanos.
Às duas horas despeço-me de Z e atravesso a
Bagamoio Falamos dos públicos. Dos problemas,
dos recursos disponíveis. Da motivação para fazer
coisas. Como gerir um espaço museológico de
natureza militar, que concentra heranças
coloniais, objetos de memória da libertação. A
estratégia passa por se assumir como um centro
de arte contemporânea. A fortaleza como uma
porta de entrada para a cidade. Não há galerias
em Maputo.
Saio e regresso a casa. Passo pelo CES Aquino de
Bragança. Encontro-me como J. Falamos sobre as
questões das estratégias para o Indico. Uma
conversa amena que poderá ser recuperada mais
tarde. Passo pela livraria Conhecimento na 24 de
Julho. A velha livraria Europa-America
desapareceu. Transformou-se numa loja de
decorações. Compro um livro do José Luís Cabaço
sobre a Luta de Independência. A dualidade de
Simmel A dualidade resulta das energias que se
confrontam. Uma dialéctica interpretativa do real.
Penso na questão da dualidade. Partindo duma
determinada posição, no espaço e no tempo cada
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 84
um depende do outro para observar. A
observação individual está em contexto (depende
do social). Logo os olhares são transcalares e
transtemporais. –A relação de subordinação, que
emerge da relação social potencia ou a ordem ou
a subversão da ordem. A transtemporalidade
como subversão da ordem. A tatuagem e os
piecingos como marcas do tempo. Donde que
resulta que ordem e poder é uma oraganização do
espaço e do tempo.
O silêncio das palavras escritas
Olhar para o tempo que passa. Andar por aí a
olhar o tempo. As coisas estão aqui mesmo à
nossa frente. Nós é que não as vemos. Nós não
vemos o que não perguntamos. Olhar para o
silêncio das palavras escritas. Está na altura de
criar a poética do café. Quem faz o quê e como
faz?
As personagens do Nautilus
A pastelaria Nautilus, nas esquina da 24 de Julho
com a Julius Nyerere é uma pastelaria de
monhés. Durante o dia são várias as personagens
que por aí passam. Ensaio um retrato social da
cidade.
A matrona de calças largas, longos cabelos
negros, caídos em caracóis sobre as costas, entra
apressada no café e corra para o banheiro. Está
certamente apertada com alguma inconveniência.
A cooperante, que não copera mas dá lições de
inglês e uma mulatinha de cara espantada. Ao
lado, um casal misto. Ela moreninha. Esguia. De
linhas direitas. Elástica como uma gazela. De
bunda redondinha e cheia. Ele com ares de tuga.
Com aquele ar mal-encarado, com uma espécie
de buço sobre o lábio. De camisa aos quadrados
por fora das calças, à moda dos trópicos, testa
enrrugada, franja sebenta a cair para o lado.. A
qualquer momento parece que vai cantar o fado.
A barriga já sobressai. Toma o pequeno almoço
tardio. Nos olhos pressente-se a noite escaldante
entre lençóis.
Mais ao lado, uma consultora financeira. Branca e
loura, de fato de executivo entre apressada. Que
diabo quem se lembra de andar de fato de
executivo com este calor. Tem, é certo, uma
camisa branca. Mas uma saia travada e uma
casaquinha cinzenta retiram-lhe o sal. Usa colar
de metal e tem um olhar sem brilho. Triste!. De
quem passa horas e horas a olhar para números.
Sente-se uma ausência de vida. Está a viver
angustiada em África. Não entende a sua poética.
Será que trabalha para o FMI ou para o Banco
MUndial
Entra um casal com uma criança. Sentam-se
numa mesa e pedem sumo para a criança, bolo e
cafés para eles. Tem ar de quem vem de viagem.
Devem viver longe, no mato e parecem
incomodados com o movimento da cidade.
Sentem prazer no ar condicionado do café. A
criança faz uma birra. A birra é um sinal do seu
incómodo. Não está habitada ao frio do ar
condicionado.
Reparo que lá na montra está uma mulatinha.
Ponto estratégico para observar. Dedilha
freneticamente mensagens no telemóvel. Entra
um militar e encontra-se com ela. São dois
jovens. Ele é militar graduado com ar de que foi
tratar de qualquer assunto ao ministério enquanto
ela esperava. Têem o mundo e o tempo pela
frente.
É curioso como dentro do espaço do Nautilus os
fregueses de organizam no espçao. Os africanos
ficam à janela. No balcão. Os indianos preferem
juntar-se do lado direito de quem entra. Lá fora,
na esplanada, juntam-se da tarde as senhoras da
terra. Com o decorrer da tarde vão sendo
substituídas pelos homens. Com eles o fumo toma
conta do espaço. Os estrangeiros flutuam como
borboletas, sem saber onde cair. Em regra caiem
na primeira mesa vaga.
Em Maputo os modos de vestir mostram quem
são. Na pastelaria Nautilus, no cruzamento da 24
de Julho com a Julius Nyerere o espaço é um
ponto de encontro. Os empregados são todos
negros. Atrás do balcão, estão os donos.
Indianos. Cada um assume a sua posição no
espaço com um ar distinto. Assumir o papel diria
eu.
Os pilares da museologia informal
O Puto S faz hoje 4 anos. Estas doem.Estou de
novo à mesa do Nautilus. Hoje não tenho nada
marcado e vou perder-me pela cidade. Percorrer
as ruas de Maputo. Procurar fazer um retrato das
suas gentes e dos seus movimentos. Vou até ao
mercado do pau. A cor das gentes. O movimento.
Entro outra vez na fortaleza. O que fazer da
fortaleza. A fortaleza é um ponto de encontro e
um ponto de memórias.
De tarde sento-me no terraço a escrever. Revejo
os sete pilares do saber do Eduardo Morin.
Conhecer para além da paralaxe; Conhecimento
pertinente; Responder à condição humana;
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 85
Reconhecer a identidade de terceiros; Enfrentar
as incertezas; Compreender por meio do diálogo;
Exercitar a ética. Cruzo isso com um texto sobre
os “tempos do presente” do Miguel. Um tempo
social, de ostracismo; um tempo público que é
cada vez mais reduzido; um tempo científico que
procura relevância; um tempo de intervenção,
que procura novos caminhos; um tempo de
memória que procura a criatividade; um tempo de
parceria que procura novos parceiros.
Bem-vindo ao nosso mundo
Cruzamos Maputo em direção à Matola á procura
dum restaurante no campo de tiro. No caminho
fala-se da esperteza moçambicana. Um polícia
manda parar o carro e pede pela inspeção. O
carro novo, com menos dum ano, não precisa.
Resultado. Um estrangeiro incauto paga uma
multa sem saber. O restaurante estava fechado
para obras.
Regressamos para Maputo em direção ao mercado
do peixe, com as suas cores garridas, à procura
de caranguejo. Decidimos almoçar em casa. No
caminho olho para o movimento do espaço. Olho
para as esquinas de Maputo. Trata-se dum
modelo de venda. O monhé, com supermercado
aberto, distribui uma determinada quantidade de
mercadoria a pequenos vendedores para
venderam nas ruas da cidade. Multiplicam-se os
pontos de venda No espaço e não há faturação.
Ao invés de se concentrar numa superfície,
distribui-se. Porque é que o museu não se
constitui como uma rede de pontos de memória
ao invés de procurar concentrar. O que é que está
a desaparecer. São as donas que vendiam gasosa
na marginal A marginal, a rota do domingo está a
desaparecer.
S fez um caranguejo à moda dos Capelas. Parte-
se caranguejo em pedaços. Pica-se cebola e
cebolinho e frita-se juntamente com os pedaços
do caranguejo. Coloca-se um copo de uísque, um
piripiri. O segredo está em escolher os
caranguejos com ovas. As fêmeas não estão
secas. Almoçamos do Terraço, com vista para a
cidade. Foi um bom repasto e um fim de tarde
fantástico. Lá mias para o fim, as tensões do clã
saltaram. Não há bom sem mau.
Hoje consome-se o imaterial. Na parede do
prédio, lá longe em letras garrafais a Vodacom
escreveu “bem-vindo ao nosso mundo”. Reflexos
da construção do mundo como um momento.
A borboleta da Nelson Mandela
No final da tarde viajamos à Matola para visitar a
casa-museu da A onde está uma belíssima
coleção de pinturas de Malagatana e Noémia de
Sousa. Retenho uma homenagem a Nelson
Mandela. Uma belíssima borboleta.
A senhora da fortaleza
A questão da cooperação portuguesa, neste
mundo de interesse parece que tem andado a
apanhar bonés. É certo que tem havido vários
projetos. Mas tenho a sensação de que em vez de
olhar para a realidade, deixa-se levar pela teoria.
Se é que tem teoria. Trabalhar com as
associações de camponeses é um desafio
interessante. Ouvir as histórias contadas pelos
mais velhos. Vozes de experiencia de vidas,
contadas na primeira pessoa, através das quais
ressoam os dramas coletivos. Histórias à volta da
fogueira são sons que falam dos tempos. Da
experiencia do passado. Dos olhos do presente.
Dos desejos de futuro.
Em Maputo ando a circular entre a Urbanidade, a
Sub-urbanidade e a agricultura. Há que pensar se
a questão da dualidade social não é uma ilusão se
não incluirmos a uma terceira dimensão A poética
como gramática do tempo e do espaço
Entre histórias de vida, regresso à fortaleza para
conversar com M a senhora da fortaleza. Formada
em gestão de eventos culturais, dedica-se à
medicina tradicional. De cabelos vermelhos, cara
jovem e arguta. Procura modernidade no
trabalho. Formada em História na Eduardo
Mondlane, tem formação em Conservação e
gestão do Património da Unesco. Dualidade entre
a tradição e a modernidade.
Mostra uma boa capacidade de fazer uma leitura
do que é a realidade em Moçambique. Tem
algumas ideias para desenvolver na Fortaleza.
Uma liga de amigos. Olha para o monumento
como um monumento património moçambicano,
Assume a sua herança. Defende que os museus
podem ser mediadores entre as universidades e
os públicos. Os monumentos devem alargar a sua
intervenção aos estudantes. A construção da
identidade moçambicana como representação
social. Procura resolver a questão de como os
maputenses se podem apropriar da fortaleza.
Interroga-se sobre o que fazer para programar.
Defende que a fortaleza deve deixar de ser um
espaço cultural aleatório. Faria falta um curso de
curta duração sobre gestão de monumentos e
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 86
conservação de objetos. Fiquei de fazer um
seminário.
Depois, da fortaleza, vamos falar com J da escola
de Artes. J tem colaborado com o Museu de Arte à
mais de 10 anos. Tem feito um trabalho com
escolas. Foi o trabalho com as escolas que levou
aos museus públicos diferentes. O problema é
fazer trabalho em dois espaços diferentes. Há que
pensar em questões com interesse para os alunos
se puderem motivar. Agora está com um projeto
para as comemorações dos 35 anos da
independência. Procura utilizar estudantes em
estágio. Vão procurar levar objetos, replicas, para
os visitantes tocarem. Algumas Histórias de vida
que vão sendo registadas.
As narrativas de Maputo
O dia amanheceu claro. O ruído da cidade invade
lentamente o quarto e insinua-se pelas cortinas.
Estou quase a terminar o livro do José Luís
Cabaço sobre os contextos da independência de
Moçambique e sobre os seus primeiros anos. O
dia anterior correu bem.
Ontem à noite apareceu lá em casa L uma
massagista Reiki. Ia fazer umas massagens, de
modo informal. Ficamos horas na conversa. A
ideia do Reiki é a busca das energias do corpo.
Fazer fluir as energias, criar equilíbrios. Procurar
os pontos de tensão, para os libertar. Uma busca
de soluções que andamos todos a procurar
Estou novamente no Nautilus a olhar o mundo
que aqui circula. A negra pestanuda, de ancas
largas com o branco sebento. Vermelhinho como
um tomate. Esta é um mundo interessante. A
globalização de Maputo traz uma aculturação. Na
outra mesa o grupo discute as questões da chuva
e de desentendimento que houve no dia anterior.
São fragmentos de vida que circulam no ar.
Os olhares de Maputo é um texto a construir.
Uma narrativa sobre as oralidades. As narrativas
mudam com as pessoas. Os homens com as
camisas de fora das calças estão a ser
substituídos pelos fardamentos da globalização.
Direitinhos, de fato e casaco, com mala de
executivo, de andar apressado, sem ligar a
ninguém. São seres que vivem no seu mundo.
Imunes aos outros. Os homens de cinzento. Eles
e elas. A conquistarem o planeta. Elas de saltos
altos. Bem cheirosas. Com cuequinha de tanga
cor de laranja a sair da calça baixa. A perna bem
torneada. Cultivada em ginásios. Ao fim da tarde,
depois dos relatórios bem elaborados ao chefe. As
suas boquinhas debochadas. Sempre prontas a
chupar e o corpinho oleado pelo óleo de coco.
Assim à distância são intocáveis. Sentam-se e
cruzam a anca. Seduzem a todo o momento, com
todo o arsenal. Mas é só para ver. Não se pode
tocar. São intocáveis.
Chega o perito em agricultura para conversarmos
sobre projetos. Por exemplo o gado nguni: “Nguni
Catle Breed, é um boi sul africano. Era um gado
guardado pelos pastores, resultante da mistura de
zebus com os bois (Bos Indicus, com Bos Taurus).
Foi criado em África, mas preterido para criação.
Falamos dos problemas da agricultura em África.
Das queimadas como processo de fertilização das
terras. Do controlo das espécies. Projetos.
Histórias e sonhos constantemente revividos. Por
vezes tenho a sensação que estes fragmentos da
realidade trazem sons. Vozes do mundo em
movimento. É por isso que gosto de os escutar
Maputo tem as suas horas. A cidade tem cor e
movimento. A melhor hora do dia é as três da
tarde. Hora em que se sai do trabalho. As moças
arranjam-se e aperaltam-se. Nas sextas-feiras
pressente-se a festa no ar. Os perfumes tomam
conta das esquinas. Os vendedores agitam-se nos
preparativos para vendar os últimos produtos.
Estas tardes no Piri-piri, com uma imperial e uma
chamuça dão para observar a rua. Os aceleras de
Maputo. Os Honda Civic que aceleram à procura
do último rasto da luz verde tomada pelo
vermelho.
Olhares Índicos
Encontro-me ao princípio da manhã com JP no
CES Aquino de Bragança. A conversa corre solta.
O CES procura centrar o seu discurso na região a
sul. Falara do sul a partir do sul. Na região há um
comércio de bazar. É preciso entender as lógica
do comércio de bazar. É um “mercado” com as
suas características próprias. Diferente do
comércio “global” embora conviva e se aproveite
dele. Sem compreender isso é difícl atuar no
mundo indico. Os tugas ainda andam a sonhar
com o império perdido e não vêm claramente
isso.
A segurança do Indico está nas mãos da África do
Sul. A AS posiciona-se como guardiã do Índico e
da rota do cabo. Tem três submarinos e 4
fragatas. Tem feito exercícios com a marinha da
nato. A conceção de defesa da AS centra-se no
indico e estabelece alianças com a Europa e com
a Índia. Assumir a segurança do continente,
assegurar as rotas marítimas e os bancos de
pesca.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 87
O Norte ainda olha o sul como espelho da culpa.
Hoje é preciso multiplicar os saberes alternativos.
O homem é como como retábulo do tempo. Umas
vezes abem-se algumas portas, noutras alturas
fecham-se. Nestes tempos vivem-se os tempos do
sul
No CES procura-se o Homem do Indico. Faz-se
uma antropologia das comunidade índicas
Seguindo algumas ideias de Omar Ribeiro
Thomaz. Os olhares Indicos de hoje são um
caminho de investigação.
Se olharmos para Maputo, que é uma cidade em
mudança, podemos escutar o eco dos sons da
construção. Mas essa construção vai dar aonde. O
que é que a história e a memória nos dizem. A
consciência duma narrativa desloca o olhar –
serve para passar a voz do outro.
Saio com estas palavras a ecoar. Os dias estão
curtos em Maputo. Escuta-se o vento do Indico. A
monção.
Dias curtos em Maputo
Passo pela Eduardo Mondlane. Ontem jantei chez
L com I e L uma rapriga maconde, nascida em
Moçambique, expatriada e dedicada à animação
teatral, retornada à busca das raízes. Falou-se da
moçambicanidade, dos retornos a Moçambique.
Aprender a reinventar a moçambicanidade
Aprender a cozinhar a cozinha do Índico. Vinda
dum colégio de freiras em Santarém, parte com
os pais para Tete. Retornada com saudades da
terra. Regesso numa noite de chuva. Amanhã
parto. Os dias da partida são curtos.
Aeroporto
Entro no aeroporto com antecedência para evitar
as confusões. Os objetivos traçados para a
viagem foram alcançados. Na bagagem mais
alguns livros, e material de investigação para os
próximos meses.
Passei a tarde a comer tapas com Z no Cantinho
dos Sabores. Pão e queijo acompanhados de
tinto. Depois um passeio pela baixa, passagem
pelo Vida para dizer adeus. Almoçamos na cantina
dos professores em Maputo. Sopa de cozido com
piri-piri. Duas Manicas para fechar. Conversa com
S, uma arquiteta que esteve a trabalhar na Ilha.
Passeio pela cidade antes da última chamada para
o voo para Lisboa. Na bagagem levo a Poética de
Aristóteles e a História, Memória e Esquecimento
de Ricoeur, para acabar de ler sobre na passagem
sobre África. A História trata do particular. A
poética trata do Universal.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 88
Viagens na fronteira (parte 1)
r
No Caderno de Investigação Viagens nas Fronteiras (parte 1) apresentamos os
resultados dos nossos trabalhos de investigação realizados na fronteira luso-
estremenha. Neles contamos com o apoio da Rede Transfronteiriça Museion.
Devemos uma palavra de agradecimento às nossas colegas Mercedes Stofel, Ana
Carro, Aida Rechena e Juan Valdés que possibilitaram as condições no terreno. No
texto, para respeito com a privacidade dos protagonistas os nomes são alterados.
Estas viagens tiveram o grande mérito de permitir interrogar o real de descobria
caminhos de diálogos sobre as memórias e os esquecimentos.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 89
Viagem pelos museus da Raia.
Saímos de Lisboa ao raiar da manhã em
direção a Norte. Passada a lezíria ribatejana,
infletimos para leste, ao longo do curso do
Tejo. A medida que as suas margens se
estreitavam e as arribas aumentavam, o
pinhal tomava conta da paisagem. Á direito o
Tejo encaixado nos vales de xisto. Terras
enxutas onde medram eucaliptos e
escasseiam as gentes.
Primeira paragem em Castelo Branco. A praça
da cidade, reabilitada pelos programas Polis.
Percorremos o centro a pé. Olhamos para os
novos equipamentos que surgem.
A biblioteca, um Centro de Informática, Cafés
e esplanadas. Uma casa da música em
construção. Seguimos pela antiga via de
contorno do recinto medieval em direção á
igreja matriz. Panos de muralha encontram-
se a descoberto. No final da rua surge a
residência episcopal onde está instado o
museu Manuel Gonçalves Proença Júnior.
O palácio setecentista, amplo no janelame,
com jardins ao gosto da época. Nas antigas
hortas estão agora instalados equipamentos
para jovens e crianças. Parque infantil em vez
de rosas. Já dentro do museu fomos
recebidos pela Diretora AR. Um percurso de
luxo onde passamos pelas suas várias
secções. Começamos pela arqueológica. A
coleção recolhida pelo jovem arqueólogo que
deu o nome ao museu, recolhida no princípio
do século e reabilitada nos projetos do IPPAR,
Instalado no piso térreo olhamos para dentro
de vitrinas onde víamos pontas de seta e
facas do paleolítico, pedaços de ferro e
bronze da idade dos metais, conjuntamente
com estelas e colunas. Tudo
harmoniosamente distribuído pelo espaço.
De seguida subimos ao primeiro piso. No
consulado de Catarina Vaz Pinto o museu
passou a ter um novo conceito dedicado à
tapeçaria. Depois duma galeria dedicada aos
bispos de Castelo Branco, uma diocese criada
no século XVIII aquando da elevação da vila a
cidade e extinta cento e dez anos (1771-
1881), surgem as tapeçarias encaixadas em
grandes módulos que convidam à descrição.
Enquanto de preparava uma exposição de
arte sacra para o período da Páscoa, com
base num conjunto de obras locais. De saída
ainda apanhamos o grupo de bordadeiras que
trabalham no espaço do museu resgatando o
bordado tradicional de castelo Branco.
Bordados a seda, com cores garridas e
motivos orientais, refletem heranças de
outras viagens
No final um almoço de cozido à portuguesa
num restaurante local. O vinho do Fundão,
tinto carregado a regar as carnes generosas.
Conversas soltas sobre museologia. Os
trabalhos com as comunidades ciganas foram
pontuais com algumas reclusas do
estabelecimento prisional Um museu que tem
vindo a procurar incluir a comunidade e o
território na planície albicastrense.
O Caminho da Serra da Gardunha
Partida para o Fundão em direção à Serra da
Gardunha. Paragem no Fundão em busca do
Museu de Arqueologia e do grupo
Arquofundão de Pedro Mendes Rosa Em
terras do Fundão procuramos pelo edifício dos
museus, bem encaixado no tecido urbano da
velha vila. Ruas estreitas e pedonalizadas.
Nas ruas da aldeia miúdos ciganos a
brincarem A presença da comunidade cigana
é evidente nas ruas. Nas casas ouvem vozes.
Como estão as narrativas desta comunidade
nos museus.
Encontramos as portas do museu de
Arqueologia do Fundão encerradas. Estava-se
em tempo de trabalho de campo nas aldeias
da serra. J. Abriu-nos a porta e deu-nos
entrada. Uma visita guiada pelo neolítico,
pelas primeiras comunidades dos metais.
Pelos povos que ergueram as estelas
graníticas. A abundância de referências às
meimoas na toponímia. Resgates de tempos
esquecidos nas pedras.
O museu reconstrói cenários. Encena
situações e técnicas.
O Castelo Novo
Dormida em Castelo Novo. Na Casa de Petrus
Gutierrez encontamos uma antigo Hotel,
reformado por um casal de reformados. O
Filho arquiteto fez o projeto. De remodelação
e de vários apartamentos na serra da
Gardunha. Uma decoração moderna. Nas
paredes sobressaem os quadros do Pintor
Barata Moura
A povoação acastelada protege a fonte das
águas do Alardo. Numa terra de verões
soalheiros a presença de água é fonte de
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 90
riqueza. Terá sido assim na idade da pedra.
Terá sido assim na época de reconquista. Al-
adro são fontes de riqueza.
O Castelo da Castelo Novo foi algo de
intervenção do IPPAR. A aldeia faz parte do
Roteiro das Aldeias Históricas de Portugal e
beneficiou de vários projetos de apoio ao
turismo cultural. São visíveis os processos de
requalificação. Hotelaria, Restauração. Aposta
nas atividades tradicionais.
A Grande Serra.
Subida à Serra da Estrela pelo lado da
Covilhã. De passagem pelo museu dos
lanifícios, até ao alto da Torre. Não restam
memórias do primeiro eco-museu de Hugues
de Varine nos anos setenta. A Serra está
voltada para o Turismo. O parque de
campismo. As antigas termas, das Caldas da
Saúde transformadas em Hotel, as pistas se
ski, a venda ambulante na torra. Descida
para Manteigas. Os trilhos da serra vão dar à
sede do parque Natural.
Visita às Fábrica de lanifícios de Manteigas. A
tradição moderniza-se pelo Design e pelos
mercados externos. Exportação e mercados
externos na vanguarda da produção da
riqueza. Produz-se lã na serra para vende no
Japão e nos Estados Unidos.
O Rio Zêzere. Nasce na Serra. Desce em
direção a Manteigas. Passa por Belmonte,
Fundão. Embrenha-se a norte da Gardunha e
desagua no Tejo em Vila Nova da Barquinha.
Barragem de Castelo de Bode.
Belmonte
Belmonte é terra de judeus. Conhecia nos
idos de oitenta quando tentava a agricultura.
Na época havia o castelo, a torre Centum
Cellase conhecia-se a presença dos marranos.
Hoje têm cinco museus. O Eco-museu do
Zêzere. O Museu dos Descobrimentos. O
Museu do Azeita. A Igreja de São Francisco e
o museu Judaico. Para não falar do Castelo,
alvo duma intervenção do IPPAR. A Pousada
de Belmonte, um equipamento turístico é
também ela própria num edifício histórico
Começemos pela recuperação da Pousada O
Convento de Belmonte, instalado no alto dum
morro com vista para o vale do Zêzere. O
claustro e a nave foram reconvertidos em
espaços de Lazer. Os quartos instalado em
novas células monásticas.
No núcleo urbano surge-nos com alguns
trabalhos de requalificação. Não é um pleno
geral de requalificação, mas o espaço
encontra-se cuidado.
Na antiga Tulha dos Cabrais encontra-se o
Eco-museu do Zêzere. Trata-se dum
equipamento voltado para a História Natural
do Rio, para os elementos sobre a sua
biodiversidade. Uma reconstrução dos vários
níveis do seu percurso, tipos de geologia,
espécies que o habitam. As questões da
produção de energia. É um equipamento
sobretudo didáctico. O equipamento é
revelador da estratégia museológica
adoptada. Fazer de Belmonte um ponto de
partida para diferentes roteiros. A maioria
deles no seu interior, sem esquecer o
território envolvente.
A viagem passa a Histórica no Museu das
Descobertas. Em frente, no paço dos Cabrais
uma instalação multimédia propõe uma
viagem ao Novo Mundo com partida de
Belmonte. Iniciando pela sua geologia, pela
sua história, chegando aos Cabrais. Relata a
grande aventura de Pedro Alvares Cabral, a
ciência e a náutica necessária para atravessar
o grande oceano ignoto. Uma grande sala
multimédia mostra e procuras dar a
experimentar o tempo do mar. No novo
mundo relata-se a exuberância e a
diversidade da natureza. Os primeiros
contatos. Um jogo permite negociar com um
índio através da troca de produtos. A floresta
é representada por fitas que caem do teto.
Uma parte sobre a escravatura. Uma
narrativa sobre o novo país e até algum
atrevimento na fala sobre a construção da
identidade brasileira, não faltando a música, a
comida e os seus autres de referencia.
Ainda no campo da História pode-se subir ao
castelo. De entrada gratuita, dotado dum
anfiteatro ao ar livre, dotado de janelas
manuelinas, tem um grande vista sobre o
Zêzere e o vale da Ribeira de Caria.
Descendo para a vila, passando pela
Sinagoga e pela Judiaria encontramos o
Museu Judaico. Um museu de consciência
sobre a herança judaica dos marranos. Uma
comunidade resgatada do esquecimento nos
anos 20 (1924). No seu interior peças de
culto, memória dos habitantes. Grelha de
leitura das marcas das famílias judaicas e um
pequeno memorial às vítimas da Inquisição.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 91
O Último Equipamento é o Museu do Azeite.
Um antigo lagar de Azeite transformado em
Lugar de Memória. Tem um ponto de venda
de produtos derivados do Azeite.
Sortelha
Sortelha é uma das outras Aldeia Históricas.
Em terra exaurida. Provavelmente numa
antiga via Romana entre Emérita Augusta e a
Guarda. Almoçamos um arroz de lebre num
restaurante instalado num antigo solar.
Olivenza
Olivenza é uma terra raiana. Chegados ao fim
da tarde, passado o Guadiana em Badajoz,
dirigimo-nos para Sul até à Ribeira de
Olivenza. Entramos em direção ao centro da
cidade. Percorremos a cerca medieval,
vigiada pela torre de Menagem do velho
castelo português.
Dentro do velho castelo, na antiga cadeia
encontra-se instalado o Museu Etnográfico
Gonzalez Santana. Trata-se dum museu
municipal criado com as colecções desse
filantropo local. Em 1980 a partir dum
pequeno núcleo expositivo foi fomentada a
ideia de criação do museu. O projeto de
museu desenvolve-se então para ser
instalado na “panaderia do rei”. É inaugurado
em 1991.
Instalado no interior dum conjunto de
edifícios históricos, o museu de agradável
visita apresenta um conjunto variado de
coleção etnográfica estremenha. O motivo a
visita é a exposição “El água en el hogar
antes da la década de los 60”, produzida por
Miguel Ángel Vellecillo Teodoro e Maria Teresa
Plaza Nuñes. Trata-se duma exposição
temporária, criada a partir das colecções dos
museus sob o tem da água. Através de
objetos e de fotografias é feita uma proposta
de revisitação aos modos de uso da água na
cidade.
A década de 60 é o momento em que a
cidade passa a ser abastecida pela rede
pública. A proposta é olhar para os modos de
uso da água antes desse tempo. Olivença
está situada numa região freática rica. Ali
perto, as antigas termas de São Francisco são
conhecidas desde o tempo dos romanos, são
um exemplo dessa riqueza freática.
A identificação dos pontos de captação de
água: As antigas fontes e os modos de
captação e transporte das águas são a
primeira proposta de interpretação. Nas
diferentes casas as águas são armazenadas
em cisternas. Vários filtros são apresentados.
O uso da água nas lavagens é um outro
elemento. As aguadeiras e as lavadeiras são
as personagens que surgem como as
principais profissões ligadas à água. Com a
chegada da água, os tanques passam a ser
espaços municipais.
O asseio e a higiene pessoal são uma outra
forma de uso da água documentada na
exposição. Os lavatórios, os banheiros, as
silas e até os bacios são objetos de outro
tempo. Na vila as necessidades dos seus
habitantes eram recolhidas de manhã por
carros de muares que passavam. A partir da
exposição documentam-se os vários ofícios
relacionados com a água.
A exposição dispõe ainda dum guia educativo
que permite desenvolver diversas actividades
pedagógicas com público escolar. O museu
editou O Guia do Visitante e seis monografias
sobre outras tantas salas do museu: Arte
Sacra, Arqueologia, Música, Jogos e
Brinquedos, Artefactos agrícolas e meteoritos.
Situada na raia Olivenza foi no passado um
território disputado entre a monarquia
castelhana e portuguesa. Com o tratado de
Alcanizes em 1217. Doada à ordem dos
Templários, e vila crescerá como terra de
fronteira. Um castelo altaneio, rodeado de
fosso fará a defesa duma cidade murada. No
seu interior cruzam-se duas ruas. Dom João
II e Dom Manuel farão importantes obras,
onde sobressai a imponente igreja de Maria
Madalena. Ampliadas as muralhas medievais,
a cidade será palco de disputa nas guerras
peninsulares. A muralha medieval dará lugar
à muralha de nove baluartes. Conjuntamente
será construída a imponente ponte da ajuda,
para permitir o abastecimento de tropas a
partir de Elvas. Em 1801 nas disputas das
guerras peninsulares passará para o domínio
espanhol.
A identidade portuguesa surge marcada na
tipologia de construção e nos materiais
urbanos. A calçada portuguesa marca as ruas
pedonalizadas. O oliventino, o português da
raia terá sido falado pelas gentes de Olivença
até aos inícios do século XX. Com o
franquismo acentua-se a centralização
castelhana. Os últimos anos permitem uma
maior liberdade de busca de referências.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 92
Olivenza surge-nos como um pequeno burgo
aristocrático. Com várias casas senhoriais
terá feito da Oliveira a sua principal riqueza.
Os Silêncios de Olivenza? Onde está a
identidade oliventina. Qual a relação de
Olivença com Badajoz.
Saídos da cidade vamos em direção ao
Guadiana. A ponte da Ajuda, uma ponte
fortificada sobre o Guadiana, destruída para
impedir o acesso de margem direita acentua
a dependência do território de Badajoz.
Passados os anos bélicos, uma nova ponte
facilita agora a comunicação entre as duas
margens.
Badajoz
Saídos do território de Olivenza regressamos
a Badajoz. Cidade grande da Estremadura,
rivaliza com Cáceres e Mérida em tamanho.
Situada entre a meseta e o Atlântico, sobre
as margens do Rio Guadiana é uma porta de
defesa fácil. No centro da cidade velha, o seu
alcazar, mostra uma construção nova onde se
instalou o museu da cidade de Badajoz “Luís
Morales”.
Um museu onde se propõe uma viagem à
história da cidade. Como elemento de
relevância sobressai a importância do período
moçárabe onde Badajoz é centro dum
importante Taifa. De Badajoz passaram Al-
Mansur (Ibn-al-Aftas) Muhamed al-Muzaffar e
Umar al-Mutawakikil, expoentes da época de
ouro dos Almóadas e Almorávidas. Até ao
século XVII Badajoz é uma terra de
mouriscos. Nessa data são expulsos e
escravizados. Badajoz será palco de guerras
importantes. No século XVIII durante a
guerra da sucessão (1705), na guerra
peninsular (entre 1808 e 1812) e na Guerra
Civil Espanhola (1934) onde Badajoz foi terra
republicana.
O museu, instalada na Casa de Luís Morales,
terá sido construída no século XVI, é ao longo
do tempo alvo de importantes benefícios, até
à instalação do espaço museológico. O espaço
propõe uma viagem de cinco mil anos,
contada através de objetos, de cartazes,
reconstituições, maquetas, audiovisuais,
reproduções, meios interativos.
Destaca-se neste museu a importância da
criação do Reino de Badajoz, (Batalyaws) e
da dinastia aftasi por Ibn Marwan, que em
875 mantém uma disputa com o califado de
Córdova. A herança muçulmana é alvo de
especial relevância., Considera-se que é um
período de particular progresso, onde se
cultivam as artes e as ciências e que a tornou
um importante espaço cultural peninsular. O
odor de Batalayaws é uma interessante
mostra dos cheiros da cidade islâmica.
Com a entrada da cidade no mundo moderno
a exposição, que continua a acentuar a linha
cronológica aborda a questão do
repovoamento, das batalhas por Portugal, das
guerras da sucessão, das laranjas e da
independência (peninsulares). Mostra o
turbulento século XIX e os primeiros anos do
século XX. Os exércitos de Badajoz eram
vistos como resistentes e ferozes.
No exterior, na Praça do Alcazar, junto às
casas mudéjar uma feira anima a cidade.
Bancas de artesanato, música, organizações
sociais mostram um pouco da vida urbana.
Elvas
Saídos de Badajoz atravessamos o Caia em
direção ao recinto amuralhado de Elvas.
Classificada como Património da Humanidade
em junho de 2012, Elvas foi uma cidade de
fronteira que agora se quer recolocar no
centro da modernidade através do turismo e
da cultura. O seu museu, o Museu de Arte
Contemporânea de Elvas é apontado como
um exemplo da intervenção modernizante do
antigo Ministério da Cultura.
Instalado numa casa senhorial, o museu
alberga a colecção dum benemérito local
“António Cachola”. Na visita, destaca-se a
exposição “Traços, Pontos e Linhas” onde se
apresentam o conjunto de desenhos dessa
coleção. Instalado num espaço generoso
dispõe das diversas condições dum museu
moderno.
Este museu contrasta todavia com o espaço
urbano envolvente. Ainda que sejam visíveis
importantes obras de intervenção e
requalificação urbana, a cidade, nesse sábado
soalheiro, parece adormecida. São visíveis a
não resolução dos conflitos entre carros e
peões. Entre desníveis. O turismo é aqui
levado à letra como elemento estruturante. O
guia urbano propõe um percurso pelos fortes
e fortins da cidade, pelos diferentes pontos de
relevância identificados. Um percurso
alucinante que termina no castelo. Uma
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 93
espaço intervencionado pelo IPPAR, onde se
paga entrada. No exterior uma soberba vista
sobre a planície. Mais uma vez não se falam
dos ciganos. Não existem nos discursos,
embora estejam presentes nos rotos que
passam nas ruas.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 94
Oficinas
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 95
Tertúlias na Baixa
Por. Pedro Pereira Leite28, Luísa Costa29, Rita Machado30, Claire Hognisbaum31, Isabel Vitor32
As “Tertúlias na Baixa” foram um conjunto de propostas de oficinas de
mediação com o objetivo de mostrar modos inovadores na exploração do
espaço sociomuseológico e de procurar a integração com as comunidades.
Foram realizadas no âmbito da “Exposição Baixa em Tempo Real”, uma
organização do Departamento de Museologia da ULHT, apresentada na
Galeria Milennium/BCP, na Rua Augusta em Lisboa de 1 de março a 30 de
Maio de 2013.
Em novembro foi proposto que cada um desenvolvesse um conceito
inovador e experimental de intervenção no campo da mediação cultural.
Entre março e abril de 2013 foram concretizadas no âmbito do progrmas de
ação cultural da exposição. De seguida apresentamos um resumo de cada
uma das ações desenvolvidas.
28
Investigador CES- Universidade de Coimbra 29
Designer- Universidade de Lisboa 30
Psicóloga Mediadora Cultural 31
Musicóloga, professora 32
Museóloga- Museu de Setúbal
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 96
Namorar na Baixa 33
A partir do mote “Em fevereiro as lojas da
Baixa enchem-se de corações vermelhos. O
frio da pedra é aquecido pelo calor das
paixões. A paixão é um dos territórios
poéticos. A proposta deste sábado é explorar
a baixa como espaço poético e dos poetas”.
Luísa Costa apresenta uma proposta de
explorar os espaços a partir das múltiplas
dimensões poéticas.
Luísa Costa apresenta uma proposta de
exploração do espaço através da palavra do
poeta. Procura captar as emoções sentidas
ou pressentidas em casa espaço da cidade,
propondo reconstruir os roteiros da cidade.
No final da sessão, a partir dum conjunto
selecionado de poemas, cada interveniente é
convidado a colocar um poema em cada
espaço de baixa com o qual sinta
identificação.
Músicas da Baixa34
A partir do desafio “Em Março inicia-se a
primavera. A Sinfonia
da natureza toma conta
dos jardins da cidade. O
território da Baixa não
tem jardins floridos,
mas tem no seu coração os ritmos do
mundo. A proposta deste sábado é explorar
os ritmos do mundo na baixa”. Claire
Hognhisbaum
apresentou uma
proposta de mediação
musical construída com
base nos m ritmos do mundo.
Clair Hognisbhaum apresenta uma proposta
de construção das sonoridades
33
Proposta mediada por Luísa Costa, realizada no sábado 23 de fevereiro 34
Proposta mediada por Claire Hognhisbaum, realizada no sábado 9 de março
percepcioanadas por cada participante a
partir dos sons do espaço urbano.
A sessão inicia-se com a apresentação dos
participantes, através de exercícios de
sociometria. Subtilmente, são introduzidas
formas ritmas, através das quais cada um se
apresenta, sendo que o grupo reproduz as
sonoridades dos outros, procurando criar
uma ideia de conjunto.
De seguida é proposto construir um roteiro
musical, construído a partir da imitação de
sons da natureza. É apresentado numa folha
de papel A4 um desenho com diversos sons
básicos. Vento, Chuva, Trovão, Passo,
Pedras que caem, vozes humanas e sons
animais. Cada elemento do grupo escolhe
duma caixa de instrumentos disponível no
espaço, instrumentos que improvisa como
instrumentos musicais para reprodução do
conjunto dos sons de naturais. A partir da
reunião desses elementos é proposta a
criação dum ritmo uniforme. Construir uma
narrativa sonora da história apresentada.
No passo seguinte é proposto ao grupo
explorar a sonoridade do espaço urbano.
Cada elemento aplicará uma venda nos olhos
e explora o espaço urbano durante um curto
período de tempo. Por razões de segurança e
para estimular a confiança no outro, o
elemento com os olhos vendados é “guiado”
por outro membro do grupo sem olhos
vendados. Cada elemento deverá ter em
atenção as sonoridades envolventes
De regresso ao espaço museológico, cada
participante verbaliza as sonoridades,
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 97
procurando nos instrumentos disponíveis, a
reprodução mais adequada. No processo de
seleção o grupo pode sugerir formas de
construção dos sons. Finalmente o grupo
procura criar uma sonoridade coletivas. A
construção duma opera.
A cartografia das memórias e poética do
espaço’ & 'Subjectivamente falando com
gente da Baixa’35
A tertúlia foi construída a partir da proposta
“Cartografia das memórias e poética do
espaço‟36, que explora
a expedição como
proposta de
construção de
processos
museológicos onde
ensaiamos a
inserção das
metodologias das
Histórias de Vida,
num trabalho desenvolvido com os
comerciantes da baixa. A proposta da
metodologia da viagem, que tem por base a
metodologia da Cristina Bruno, tendo sido
explorada em diferentes contextos, e
apresenta como suporte a publicação
„Saraswati Lisbon: as experiências da viagem
sobre as heranças de Lisboa‟. A proposta de
utilização das Histórias de Vida tem vindo a
ser explorada por nós em diferentes
contexos37, neste trabalho em colaboração
com Isabel Vitor, com o trabalho
“Subjectivamente falando com gente da
Baixa”: O trabalho parte das entrevistas a
três lojistas da Baixa, com o objetivo de
selecionar um objeto cuja memória seja
representativo da história do espaço. Esta é
35
Proposta Mediada por Pedro Pereira Leite e Isabel Vitor, realizada no sábado 23 de março 36
Ver Heranças Globais, nº 1 , 2012, pp 16-19 37
Veja-se artigo supra “As Narrativas Biográficas e as metodologias de Investigação-ação sobre a memória e o esquecimento.
um metodologia usada pelo Museu de
Trabalho de Setúbal38. Para esta tertúlia
foram apresenados as histórias de Horácio
Zagalo (cambistas na Baixa antiga); Manuela
Cutileiro (artes de curar bonecas e a
saudade); João Nunes (ofício de cravar
pedras preciosas e as antigas oficinas de
ourives); Vasco Melo (A Casa Campião, sorte
e Lotaria em jogo).
O objetivo foi o de explorar a Baixa como
edifício humano, espaço de múltiplas
confluências e identidades, lugar antigo
apresentado na primeira pessoa do singular.
Sai-se à rua e seguem-se as passadas de
quem conhece a Baixa como a palma da
mão. A Baixa, sobre certos pontos de vista -
quatro pessoas, quatro percursos, quatro
modos de contar e simbolizar, mapas
mentais bem guardados por quem viveu e
vive este espaço único da grande cidade.
Revelar a História da Baixa ou da Baixa
Esquecida.
Danças da Baixa
Rita Machado – Psicóloga. Tem trabalhado a
música e a dança como proposta de
construção de bem-estar na comunidade.
Rita Machado apresentou uma proposta de
trabalho que foi aplicada pela autora num
centro comunitário em Barcelona. Muitas dos
utentes do centro de dia estavam afastadas
dos seus espaços domésticos, dos seus
38
Ver encontros sobre Memória e Oralidade realizado em outubro de 2012 em Setúbal.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 98
objetos de memórias. Verificava-se que
tinham dificuldades em explorar os espaços
onde viviam e criar objetos identitários para
preencher os seus espaços de memória. O
trabalho desenvolvido à época baseou-se em
exercícios de construção de identidades,
através da apropriação do espaço e a da
recolha e partilha de objetos de memória. A
partir dos grupos de trabalho e das
especialidades funcionais de cada membro
do grupo foram reconstruídos objetos de
memória (por exemplo, através da aplicação
de botões, criar rostos de bonecas O
trabalho desenvolvido foi posteriormente
apresentado em exposição pública
A proposta de mediação para a tertúlia
procurou desenvolver o conceito da
adequação do espaço através das cores. A
atribuição de cores ao espaço vivido.
Distribuir cores pelos espaços da casa
Amarelo (alegria, leveza, criatividade,
energia), Azul (serenidade, contemplação),
Verde (serenidade, calma) e Laranja
(movimento, espontaneidade). A partir da
simbologia das cores, ao espaço doméstico,
cada protagonista foi convidade e atribuir cor
ao espaço da baixa. Espaço de recolhimento,
de moviumento, de contemplação de
convívio.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 99
Oficina do Riso
A proposta da Oficina do Riso tem por base os trabalhos desenvolvidos por
Pierre Mayland e Luísa Rogado no Museu do Homem e do Mar na
Carrapateira em Aljezur. Numa das viagens que efetuamos ao museu do
Mar no ano passado encontramos esta atividade e recolhemos os seus
principais elementos.
Depois de refletir sobre a proposta, a após a inclusão da algumas das
atividades que temos andado a desenvolver no âmbito da psicodança,
apresentamos uma primeira proposta de desenvolvimento ao Museu da
Ruralidade em Entradas, a integrar no programa de atividades do
Entrudanças. O Museu da Ruralidade é o espaço sede do grupo sobre
Oralidade, Memória e Esquecimento que temos vindo a acompanhar. Por
diversas razões não se concretizou nessa altura, tendo sido feita uma
primeira experiencia no Liceu Camões em Lisboa, em maio de 2013.
Trata-se duma proposta que se encontra em desenvolvimento, e que
procura desenvolver de formar experimental um processo de experiencia de
reconhecimento de si, dos outros e dos objetos menemónicos através do
riso.
Procura-se explorar a dimensão libertadora do Riso como instrumento de
reconhecimento de si e dos outros. Parte do reconhecimento de que o riso é
uma das mais poderosas formas de expressão dos sentimentos. A sua
função na construção do bem-estar pessoal e coletivo é reconhecida e
incorporada na organização e processo social. No caso concreto da proposta
apresentada ao musue de Entradas, procurava-se explorar a questão do
Entrudo como expressão do burlesco e da caricatura representa. Nas
sociedades que viveram o processo do Barroco, o processo de libertação
das tensões individuais e coletivas foi e continua sendo marcado pelas
expressões do burlesco.
Todas as comunidades vivenciam estas tensões da inversão dos papeis.. A
oficina do Riso procura construir a partir do riso, um conhecimento de si e
um reconhecimento do outro como forma de construção de ação
libertadora. Enquadra-se numa procura de metodologias de trabalho sobre
o Barroco, que mais acima desenvolvemos39.
39
Veja-se A Proposta da Museologia Informal como metodologia de Investigação-ação, na págiam 55
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 100
A proposta de metodologia tem
por base a aplicação da Poética da
Intersubjetividade, constituída por
quatro momentos: A Formação do
cenário e a constituição do círculo
fenomenológico, o aquecimento, o
desenvolvimento e a
conscientização.
A proposta parte da utilização do
sentir do corpo e do movimento.
São pretextos para a catalisação
do riso. A partir do riso procura-se
criar uma predisposição para a
construção de ação social em
associação.
Procura-se através dos um acesso
ao eu. Sentir a liberdade do eu e
deixar o eu fluir. Há que aprender
a a escolher o riso e procurar
equilibrar a mente e sentir o
mundo. Todo o trabalho é feito
com o objetivo do reconhecimento
de si através da prática do riso
individual.
A procura da alegria permite
influenciar o ambiente de forma
positiva. A utilização do riso como
sensação natural explora
expressões de sentimentos, deixa
fluir as tensões e expressa a nossa
liberdade . “A essência do eu em
sociedade”. É um processo que
procura ultrapassa a dor e o
sofrimento que são uma ilusão
criada pelos pensamentos.
No Aquecimento procura-se falar
dos benefícios do riso, procura-se
que cada um recorde quando e
como se ri. Em regra, o riso é um
processo contagiante,
desencadeando rapidamente
situações vivenciadas pelos
membros do grupo.
Segue-se a ação. Através de
exercícios de relaxação e de
respiração vão ser simuladas
gargalhadas. Pode ser solicitado
para se imitar animais e tipos de
riso. Podem ser usados jogos,
dança, percussão, adereços. O
Objetivo é sentir o riso do grupo e
procurar a catarse40 coletiva
através do riso.
A ultima fase do processo implica
a reflexão. É um processo para
tomar consciência do que se
sentiu. É um tempo de relaxar e
de sentir no corpo o efeito
transformador do método. Pricura-
se entender o que aconteceu com
o grupo
Cada atividade deverá ter uma
duração de cerca de duas horas e
pode ser concretizado num espaço
museológico, com alguma
privacidade para que as ações
sejam pertença do círculo.
Há vários tipos de riso que
revelam estado emocionais e as
caratrísitcas de quem ri.
O Riso aberto expressa-se
através de gargalhadas sonoras é
característica de pessoas
extrovertidas, amigas do outro e
sinceras.
40
Catarse de integração. Um conceito desenvolvido por Moreno, parcialmente abordado em (Leite, Objetos Biográficos: A Poética da Intersubjectividade em Museologia, 2012). No próximo numero será desenvolvida esta questão
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 101
O Riso verdadeiro: é um riso
que vem de dentro. Uma força
incontrolável que muda o rosto de
quem ri. É característico de
pessoas amigas e confiantes em
si.
O Riso largo: é próprio de
pessoas abertas e generosas.
O Riso permanente é
característico de alguém satisfeito
e otimista. É um riso que se
mantém durante o tempo de
comunicação.
O Riso contagiante: É próprio de
pessoas emotivas e otimistas, é
um riço que contagia.
O Sorriso de boca fechada: é
característico dos que controlam o
que dizem.
O sorriso de esguelha: é próprio
daquelas pessoas que disfarçam o
sorriso para que o outro não o
percebam.
O falso Riso: é rápido. Não altera
o rosto e não desencadeia
emoções.
O Riso rápido: É característico de
egoístas, pessimistas ou
introvertidas.
Existe uma vasta bibliografia sobre
o riso. Noutra altura darémos
contas destas leituras criticas e do
desenvolvimentos desta oficina.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 102
O Ciclo de Cinema Escravatura e Tráfico de Seres Humanos
Entre os dias 6 e 9 de Maio de 201, realizou-se na delegação de Lisboa co CES, promovido pelo Comité português do projeto da UNESCO “A Rota do
Escravo”, em colaboração com o CES de Coimbr e o CEsA do ISEG, um ciclo de cinema “Escravatura e Tráfico de Seres Humanos: Ontem e Hoje. Uma
dúzia de filmes e dois debates constituíram o programa deste ciclo, que contou com a participação de várias dezenas de pessoas.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 103
Qual o sentido deste ciclo de
cinema, próximo das comemorações do dia de África a
25 de Maio. Tráfico de pessoas humanas é um fenómeno presente. Todos sabemos. O
Esquecimento é outro fenómeno que afecta as sociedades do norte,
aquelas que mais se envolveram no fenómeno histórico do tráfico negreiro. Um tráfico que favoreceu
uma determinada acumulação de capital num sistema pré-
capitalista. Uma alavancagem para a acumulação do norte. E qual o efeito do fenómeno da escravatura
nas sociedades do sul. Das novas sociedades constituídas com o
contributo e integração destes escravos. Terá o fenómeno da
dupla consciência de Paul Jilroy um oposto no fenómeno do esquecimento analisado por Jung,
Lacan e Riceur?
Vale a pena acentuar algumas
questões que este ciclo levantou. Em primeiro lugar a pertinência dum ciclo de cinema para discutir
fenómenos históricos. Sabemos que muitas das reconstituições do
passado são meras reinvenções. Conhecemos descrições sobre as condições de captura e transporte
dos cativos. Sabemos e imaginamos o que pode ser o ser
humano considerado como mercadoria. Como valor de uso e de troca, ultrapassando a sua
dimensão ontológica. Mas mais recentemente podemos olhar para
o cinema, quer na sua dimensão estética, quer na sua dimensão de documentário como um processo
narrativo de denúncia.
Deixem-me subir à palmeira,
filmado em Moçambique nos anos finais do colonialismo mostra, através duma narrativa poética
essa tensão entre o mundo
tradicional, o filha da terra que
parte para a cidade e regressa para o funeral. Já por seu lado, o
Amistad, do realizador Steven Spliberg, reconstrói através da gramática de Hollywood a
violência e o sofrimento do tráfico. Ensaia mesmo uma releitura sobre
a fundação da nação americana, com base nesse combate pela liberdade do ser escravo.
Por seu lado, o documentário “Not my live” mostra a dimensão atual
do fenómeno. Uma visão mais moralista, mês nem por isso menos violenta do que é o
fenómeno do tráfico de seres humanos na atualidade. Em suma.
O filme como documento e o debate como processo de
consciência.
Uma segunda questão que mercê ser acentuada, esta de natureza
mais histórica, relaciona-se com a análise do fenómeno da
escravatura. Em regra este fenómeno inclui três dimensões do problema: A questão da
escravatura como sistema; o tráfico de escravos; e o
abolicionismo.
No primeiro caso temos uma análise dum fenómeno que
acompanha a história dos grupos e das comunidades de forma mais
ou menos persistente. Seja como cativo de guerra, seja por nascimento, milhões de seres
humanos foram escravizados ao serviço de grandes estados ou
pequenas comunidades. Trata-se da análise dum sistema complexo e durável que leva um ser humano
a reduzir outro ser a um objeto.
No segundo caso, falamos dum
fenómeno que alicerça um processo de concentração de capital. O tráfico organizado,
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 104
transatlântico de milhões de seres
humanos, destinado a serrem usados como mão-de-obra em
numa economia de plantação nas terras americanas e caribeanas. Um trafico que é organizado pelos
europeus, que se alicerça numa pratica antiga, mas que ganha
formas próprias no âmbito da formação do sistema económico capitalista.
Com efeito o “Tráfico” é uma forma de comércio que está
intimamente ligada às políticas mercantilistas europeias. É um fenómeno que deve ser analisado
no âmbito das responsabilidades (europeia e das chefatura
africanas), no quadro duma organização económica que forma
um sistema mundo (comércio triangular), com um objetivo de acumular capital na lógica dos
interesses europeus.
Trata-se da formação dum sistema
internacional e intercontinental que se tornou progressivamente autónomo, que criou os seus
atores próprios produzindo um enriquecimento dos intermediários
e das instituições de suporte. É um processo que paralelamente ao enriquecimento de uns se produz
uma desumanização do outro. O escravo torna-se um objeto:
Despersonalizado, dessacralizado, descivilizado, e desterritorializado. O escravo africano é retirado dos
seus quadros de referência africanos e obrigado a recriar
outras sociabilidades, noutros territórios, com outras comunidades. Quando não morre
no processo de transporte, ou no processo de trabalho, torna-se
ator de outras sociabilidades mestiças41. Um processo que é
41
Ver Claude Meillassoux (1986) Anthropologie de l'esclavage: le ventre de fer et d'argent
marcado pela barbaridade e pela
violência.
Trata-se, para a fenomenologia da
história duma questão que analisa o processo do tráfico negreiro como um processo que assegura a
desumanização do ser. O ser humano passa a objeto. “A
coisificação do se humano” como base dum processo social
Finalmente no terceiro caso, o
fenómeno do abolicionismo, que é não poucas vezes tratado como
que um processo de branqueamento do fenómeno. Uma forma de expiação da culpa.
Depois do reconhecimento do mal, valoriza-se o processo de abolição,
como que através do reconhecimento da “nobreza do
ato concedido” se procura o perdão. Um perdão moral que confere dignidade a quem o
reconhece, ao mesmo tempo que apela a quem foi vítima para se
erguer a partir do ponto em que está. Um processo que por vezes procura apaziguar a memória dos
fenómenos.
Estes três modos de abordagem
conduzem-nos a um terceiro ponto que gostaríamos de acentuar: O fenómeno da transformação do ser
humano em mercadoria. Trata-se duma questão da actualidade,
sobretudo na análise das questões do trabalho.
Sem procurar, nesta reflexão,
abordar as questões do trabalho, interessa revelar os processo
como, ao longo dos séculos, e ao longo dos diferentes processos a desvalorização do ser se confronta
com a dignidade da afirmação do ser e das suas formas de
( 1991) trad. The Anthropology of Slavery: The Womb of Iron and Gold)
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 105
organização. O processo do tráfico
negreiro é um exemplo do modo como se constituem ideias tipo
(preconceitos) que perduram transformando o preto em escravo e em africano. No século XV, o
preto que qualifica um ser pela sua forma (adjetivo) transforma-
se num substantivo (confere-lhe substância pelo conteúdo). Trata-se dum processo estruturante que
mostra como a linguagem produziu a desubstancialização dos
africanos.
Um processo violento que retira valor e memória aos africanos,
que está na génese de criação de preconceitos em relação aos
outros, na recusa da aceitação da diferença, neste caso através da
cor da pele.
Um processo que nos conduz à questão da análise da memória. A
análise da memória social revela-nos mais as crenças do que as
verdades. Ou por outra, a crenças na verdade. A Memória da escravatura remeto-nos para a
análise dum fenómeno terrível, de visões divergentes de diferentes
comunidades, de memórias de diferentes atores
Situar os Estudos Africanos na
análise do fenómeno da escravatura.
A análise do discurso africano, da oralidade é situar a análise da palavra. O movimento da palavra
que é ritualizada. A palavra é o exercício de símbolos. Os simbolos
expressam a ligação com o mundo. A vida e a morte. A ligação à organização social, o
poder da comunidade, mediado pela sua sacralização. A
importância do parentesco. A família e os seus membros tem um lugar social. O estatuto dum
indivíduo liga-se ao da sua família,
e a sua família liga-se ao seu passado.
A dimensão coletiva do poder africano está ligada ao processo da sua relalção com os
antepassados. Os objetos do poder conferem prestígio e mostram a
sua riqueza. (Tecidos, armas, conchs, espelhos)
Apresentação de "La Route de
l’escalavage dans l´océnan Indien42
Resumo : Uma viagem por lugares da memória para resgatar do esquecimento o tráfico negreiro no
Oceano Índico. Este documentário mostra os resultados do projecto
da UNESCO, entre 2004 e 2010, que levou á criação de jardins de
memória em seis locais ligados entre si pelos laços do trato humano. Madagáscar, Reunião,
Moçambique, Maurícias, Mayotte e Pondcherry na India.
O oceano Índico é hoje um espaço de culturas mestiças. Espaço híbrido que resultou dos intensos
movimentos de pessoas e mercadorias que deixaram marcas
nos rostos e nos modos de ser e estar das gentes. Uma história feita de sofrimento no passado
que este projeto mostra hoje como um grito de liberdade em
defesa dos direitos humanos.
42Documentário de 65 „:realização: Sudel Fuma e Vitor Randrianazary, produzido por : Cátedra da UNESCO da Ilha de Reunião, 2011
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 106
Notas de Blog
Pan-africanismo e negritude
Sob o signo de tornar a África
visível com objeto de conhecimento, proferiu hoje (Junho 2013) Elísio Macamo uma
intervenção no painel de reflexão “Pan-africanismo no processo de
produção de Ciência Social em África.
Defendeu a necessidade de olhar
para as raízes do pan-africanismo, anteriores à emergência da ideia
negritude com Leopold Shengor nos anos quarente do século passado.
O Tema pan-africanismo é discutido na passagem do século
XIX para o XX em três congressos Pan-africanisas (Paris, Londres e
São Francisco). Nessa época, onde a construção dos Estados de Homens Livres na Libéria e Costa
do Marfim, o Pan-africanismo emerge como uma proposta
política.
Desta relevância do Político sairá a linha do Pan-africanismo que
influenciará a produção da Ciência Social em África, que terá sempre
em linha de conta a ideia de ação política como projeto. Que levará entre outras questões à
constituição da OUA, em 1963, em simultâneo com outras ideias de
aglutinação regional (como por exemplo o pan-arabismo). Por essa razão, o Pan-africanismo,
enquanto projeto, acabará por ficar ancorado na ideia do Estado
como ator.
Um segunda dimensão do Pan-africanismo hoje discute-se no
domínio da Filosofia. A discussão da filosofia africana, da maneira
específica de pensar e produzir
conhecimento a partir de África.
Há quem defenda a existência duma filosofia Bantu. O que é
neste domínio relevante é que o debate sobe a africanidade é um raíz constitutiva.
Numa terceira dimensão, também política situam-se as dimensões
das experiências africanas ensaiadas nos anos sessenta. a Ujumma na Tanzânia, o Socialismo
africano, as experiências do Kenya e do Gana, a maioria delas
falhadas como projetos, mas que assumiram África como entidade política. Essa experiências criaram
uma agenda de investigação que marca a emergência das ciências
sociais e que acabaram por ser constituitivas dos Estudos
Africanos.
Nesse sentido a relação entre o Pan-africanismo e as Ciências
Sociais pode ser entendido como um processo histórico.
Museologia Informal e
Pensamento Contemporâneo
Para um novo senso-comum é
uma proposta epistemológica de Boaventura Sousa Santos. Desde a publicação em 1987 do “Discurso
sobre as Ciências Sociais”, posteriormente desenvolvidos na
Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna em 1989 e na “Crítica da Razão Indolente: contra o
desperdício da Experiência”,publicado em 2000.
Sousa Santos defende que o conhecimento dominante criado pela Ciência Moderna não está de
acordo com o que sabemos
A crítica à epistemologia do norte
é feita a partir de três contextos
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 107
de crise paradigmática. O contexto
do conhecimento, o contexto sociopolítico e o contexto cultural.:
O contexto da crise do conhecimento tem vindo a ser tratado por Boaventura Sousa
Santos a partir da análise crítica da relação entre sujeito que
conhece sobre objeto que é conhecido através do método de observação. O autor defende que
não há uma neutralidade axiológica nesta relação, uma vez
que quem questiona (ou observa) determina a resposta (a observação) A ciência é
comprometida e não há um conhecimento sobre o objeto que
não envolva também o sujeito que conhece.
A ciência não é mais de que um modo de explicar a realidade, através de determinados
procedimentos que interferem com essa mesma realidade. O
conhecimento é hoje mais uma probabilidade. Uma busca dum novo senso comum com base em
pergunta pertinentes.
Este novo senso-comum permite
conceber a existência duma realidade objetiva prévia ao sujeito. Uma realidade que é
anterior ao sujeito cognostente e que o estrutura. Uma realidade
que não é necessariamente conhecida por esse sujeito.
Ora todos nós, como sujeitos ou
como cientistas criamos modelos sobre essa realidade. Modelos que
procuram estar em correspondência e em conformidade prever essa
realidade. A validade do modelo, a sua verdade, advém desta
verificação.
Isto implica que não exista uma
verdade absoluta, nem tão pouco uma verdade incorporada no
sujeito. O que se verifica é apenas a adequação do modelo à extensão da realidade analisada.
Entre a realidade e o modelo verifica-se uma diferença de
extensão e de qualidade. É pois possível e muito natural que se verifique uma realidade para além
da que é analisada no modelo conceptual do sujeito. Um mundo
transcendente.
Uma vez que a realidade é modelada por uma ação, é essa
ação que, enquanto percurso, liga o conhecimento ao mundo
objetivo. Uma ação que é ela própria transcendente ao ligar o
sujeito ao mundo objetivo, produzindo um conhecimento da realidade que é apenas aquele que
conseguimos entender.
Ora se extensão da interrogação
determina a extensão da resposta a qualidade dessa interrogação determina a qualidade do
conhecimento obtido. O conhecimento é apenas uma parte
do real. O que se conseguiu extrair.
Esta interrogação sobre o sujeito
que conhece, o objeto que se conhece e o conhecimento em si
mesmo modula o pensamento contemporâneo. As interrogações sobre a unidade e a totalidade, o
contínuo e o descontínuo continuam a polarizar as
categorias do conhecimento.
O Tudo é parte de outro todo, o somatório dos descontínuos é um
contínuo, os recetores são também emissores e o objeto é
também um sujeito deixaram de se constituir como paradoxos e incorporaram a fenomenologia do
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 108
conhecimento através dos
sisgtemas abertos. Sistemas de níveis em que cada elemento pode
ocupar diferentes posições nem diferentes sistemas.
Se a mente dum ser humano
opera num destes níveis, nada impede que se a mente social seja
um outro nível. Uma mente em que o conhecimento emerge como uma natureza relacional
intersubjetiva.
A proposta da intersubjetividade
na museologia permite articular as relações entre a unidade da mente com as interações sociais que
fundamentam a partilha social de objetos qualificados.
Museologia Informal e Planeamento Estratégico
O planeamento estratégico tem sido orientado pela lógica das necessidades. O desafio da
terceira geração de planeamento é fazer o planeamento a partir dos direitos.
Assim, em vez de projetar em função do futuro. Priojeta-se na lógica do presente. Os
equipamentos museológicos e as
ações museológicas desloca-se do
discurso das narrativas hegemónicas e centram-na nas
narrativas inclusivas.
Prevenir, proteger e participar são as palavras de orientação desta
museologia informal.
Museologia e Mimetismo
Quando as exposições são estéreis. Vazias de perceções. Sem inovação.
Quando o mimetismo é uma estrutura. Isto é quando se assume como uma conceção do
real, à qual se contrapõe uma estratégia. Um sistema de ação.
A Museologia Informal assume-se como uma reflexão sobre a ação
para criar processos inovadores Um sistema estruturado implica
um discurso legitimador através
da presença de narrativas. Os
discursos simbólicos como
narrativas de legitimação.
Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 109
O ponto da Bauhütte Em época de centenário de Almada celebremos celebremos a busca de almada.
No circulo, há um ponto interseccional com o quadrado e com o triângulo. É um ponto interior do triângulo equilátero.
A perfeição do ponto de Bahütte permite a construção do Pentagrama . No pentagrama estão presentes os quatro elementos (ar, terra, água, fogo) mais o
quinto elemento. A quinta essência. O Espírito.
Depois de Almada Negreiros, foi Lima de Freitas quem se dedicou ao estudo deste fascinante traçado geométrico: o Ponto da
Bauhütte. No seu livro Almada e o Número, Lima de Freitas desvenda-nos todo o mistério deste ponto secreto, bem como a sua origem e simbolismo:
A Bauhütte foi uma federação ou associação autónoma e secreta que uniu as lojas de pedreiros e construtores do Santo Império Germânico, incluindo
as da Suiça e dos países limítrofes de língua germânica"(Lima de Freitas, 1990, p.45)
Como os pedreiros viajavam de obra para obra, o ponto da Bauhütte servia de senha para identificar e creditar a competência do obreiro.
No entanto, a que enunciado deveria responder este traçado misterioso?
"o «Ponto daBauhütte» é aquele a que se refere uma quadra transmitida tradicionalmente pelos entalhadores de pedra da época
gótica e que fala de: «um ponto que está no círculo e se coloca no quadrado e no triângulo: conheces este ponto? Tudo irá bem. Não o conheces? Tudo será em vão» (Lima de Freitas, 1985, p.174)
Foi o próprio Almada Negreiros que traduziu esta quadra popular que Mössel encontrou no folclore germânico. Em suma, o Ponto da Bauhütte era um ponto interior ao círculo que determinava o quadrado e o triângulo
equilátero inscritos.
Eis o traçado de Almada Negreiros:
Segundo Lima de Freitas, o ponto encontrado por Almada Negreiros e que representou no painel Começar no átrio da
Gulbenkian, não responde totalmente à quadra dos entalhadores da Bauhütte:
"o traçado achado por Almada para determinar o ponto da Bauhütte constitui, quanto a mim, uma meritória aproximação, mas não responde
inteiramente às exigências postuladas pela célebre quadra (...) O ponto de
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Almada comanda, de facto, a construção do quadrado e do triângulo no
círculo, contudo não está no círculo; por outro lado, o triângulo obtido não é equilátero e não corresponde, portanto à perfeição do Três." (Lima de
Freitas, 1990, p.55)
Muitos anos depois da morte de Almada Negreiros, Lima de Freitas descobriu o ponto que correspondia às exigências da quadra:
No próximo número
Rota do Escravo
Memória e Esquecimento
O Museu Afro-digital
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Heranças Globais Memórias Locais é uma revista semestral que
apresenta os resultados do projeto de investigação ação em curso no
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra financiando
pela FCT com o nome “Heranças Globais: a inclusão dos saberes das
comunidades no desenvolvimento integrado do território”
(SHRH/BPD/76601/2011).
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