20
MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS NA MUSEOLOGIA BRASILEIRA Jislaine Santana dos Santos 1 “As contas desse colar Hoje a raça está formada Nossa aventura, plantada Nossa cultura é raiz”. (Bahia de todas as contas, Gilberto Gil, 1983) O interesse deste capítulo é visualizar como as populações negras vêm sendo representadas em alguns museus sobre a temática afro-brasileira. Para tanto, apresentaremos uma revisão bibliográfica destacando alguns autores no campo da Museologia no Brasil que problematizaram as aproximações entre exposições museológicas e memórias afro-diaspóricas. Mario Chagas (2011) em seu texto “Memória e Poder: dois movimentos” desempenhou uma análise tendo como foco os museus, visando compreender a relação entre memória e poder. O autor problematiza dois movimentos que discutem a relação entre memória e poder em instituições voltadas para a preservação do patrimônio cultural nos séculos XVIII e XIX e nos dias atuais. A idéia que a Revolução de 1789 possa ter sido provocada pela memória acumulada reluz como o grande estopim para tal acontecimento, podendo assim dizer que o pesquisador possui razão quando menciona que existe um momento de memória que segue em rumo ao passado e chegando ao seu destino se “cristaliza”, como veneração saudosa, reminiscência que aliena e ladeia o individuo de si e seu próprio período temporal, “lembrança que reificada e saturada de si mesma e por isso sem possibilidade de criação e inovação” existe ainda um momento de memória que se rasteja em direção ao presente. É a batida entre esses movimentos, sendo que o segundo leva a vantagem mesmo que por pouco tempo, que cria a possibilidade da memória ser 1 Graduada em Museologia (Bacharelado) pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected]

MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS NA

MUSEOLOGIA BRASILEIRA

Jislaine Santana dos Santos1

“As contas desse colar

Hoje a raça está formada

Nossa aventura, plantada

Nossa cultura é raiz”.

(Bahia de todas as contas, Gilberto Gil, 1983)

O interesse deste capítulo é visualizar como as populações negras vêm sendo

representadas em alguns museus sobre a temática afro-brasileira. Para tanto,

apresentaremos uma revisão bibliográfica destacando alguns autores no campo da

Museologia no Brasil que problematizaram as aproximações entre exposições

museológicas e memórias afro-diaspóricas.

Mario Chagas (2011) em seu texto “Memória e Poder: dois movimentos”

desempenhou uma análise tendo como foco os museus, visando compreender a relação

entre memória e poder. O autor problematiza dois movimentos que discutem a relação

entre memória e poder em instituições voltadas para a preservação do patrimônio

cultural nos séculos XVIII e XIX e nos dias atuais.

A idéia que a Revolução de 1789 possa ter sido provocada pela memória

acumulada reluz como o grande estopim para tal acontecimento, podendo assim dizer

que o pesquisador possui razão quando menciona que existe um momento de memória

que segue em rumo ao passado e chegando ao seu destino se “cristaliza”, como

veneração saudosa, reminiscência que aliena e ladeia o individuo de si e seu próprio

período temporal, “lembrança que reificada e saturada de si mesma e por isso sem

possibilidade de criação e inovação” existe ainda um momento de memória que se

rasteja em direção ao presente. É a batida entre esses movimentos, sendo que o segundo

leva a vantagem mesmo que por pouco tempo, que cria a possibilidade da memória ser

1 Graduada em Museologia (Bacharelado) pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail:

[email protected]

Page 2: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

um enorme disparador de modificações e alterações particulares e sociais (CHAGAS,

2002, p.5).

Por esse caminho, compreende-se que ao admitir que a memória

acumulada possa ter sido o dispositivo detonador da Revolução de

1789, está aberta a vereda para a compreensão de que no seio da

memória acumulada (solução saturada), uma contramemória pode

operar e pode desembocar no poder de agir. Avançando um pouco

mais. Se de um lado a memória explode na Revolução, de outro a

Revolução inaugura novas articulações de memória. Uma nova e

moderna rede (de pode e memória) é construída, uma rede por onde

passam novas relações de classe, novas relações com o corpo, com a

religião, com as instituições públicas e privadas (CHAGAS, 2002,

p.5)

Apresentando discussões sobre as aproximações entre memória e poder nos dias

atuais, tendo como fio condutor os museus, foi possível perceber a função do museu

enquanto local para salvaguardar o patrimônio. O autor conceitua o museu como “[...]

um campo onde encontram-se os dois movimentos de memória e que desde o

nascedouro está marcado com os germes da contradição e do jogo das múltiplas

oposições” (CHAGAS, 2002, p. 16).

As instituições museológicas são vistas como locais para se comemorar a

memória do poder ou ainda aparelhamento com interesse em trabalhar com o poder da

memória. A memória é construída no presente, localiza-se na extensão relacional entre

os seres e entre os indivíduos e os fatos:

Com todos esses ingredientes, o pesquisador está habilitado para o

entendimento de que a constituição dos museus celebrativos da

memória do poder decorre da vontade política de indivíduos e grupos

e representa a concretização de determinados interesses. Os museus

celebrativos da memória do poder- ainda que tenham tido origem, em

termos de modelo, nos séculos XVIII e XIX - continuaram

sobrevivendo e multiplicaram-se durante todo o século XX. Aqui não

se está falando de instituições perdidas na poeira do tempo; ao

contrário, a referência incide em modelos museológicos que,

superando as previsões apocalípticas de alguns especialistas,

sobrevivem e continuam deitando regras. Para estes museus, a

celebração do passado (recente ou remoto) é a pedra de toque. O culto

à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles

tendem a se constituir em espaços pouco democráticos onde prevalece

o argumento de autoridade, onde o que importa é celebrar o poder ou

o predomínio de um grupo social, étnico, religioso ou econômico

sobre os outros grupos. Os objetos (seres e coisas), para os que

alimentam estes modelos museais, são coágulos de poder e

indicadores de prestígio social. O poder, por seu turno, nestas

instituições, é concebido como alguma coisa que tem locus próprio,

Page 3: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

vida independente e está concentrado em indivíduos, instituições ou

grupos sociais (CHAGAS, 2002, p. 16-17).

Essas orientações de Mario Chagas (2002) são fundamentais quando analisamos

os patrimônios e as exposições museológicas relacionadas às diásporas negras. Ao

longo deste capítulo, visualizaremos as problematizações comuns relacionadas a essa

temática visando inventariar, de algum modo, como as populações e culturas negras

foram e são comumente representadas nos museus. Para tanto, realizaremos uma breve

revisão de algumas pesquisas sobre as intersecções entre as diásporas negras e o campo

museológico brasileiro.

1.1 Problematizando a regra: silêncios, subrepresentações e estereótipos

O museu é definido pelo Conselho Internacional de Museus - ICOM como “uma

instituição permanente sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu

desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe

o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de

educação, estudo e deleite”. Como espaço de saber e de poder, torna-se emblemático

para a compreensão de diversas práticas sociais. Aqui nosso interesse se voltará para a

representação das diásporas negras.

Dão-se alguns sentidos ao termo diáspora. De modo geral, relaciona-se a

dispersão de um povo em decorrência de perseguição política, religiosa ou étnica,

segundo Marilise Reis:

A definição do conceito diáspora, segundo o Dicionário de relações

étnicas e raciais (Cashmore, 1996), vem dos antigos termosgregos dia

(através, por meio de) espeirõ (dispersão, disseminarou dispersar) e

está associada às ideias de migração e colonização da Ásia Menor e do

Mediterrâneo (800 a 600 a.C). De acordo com Cashmore (1996), na

tradução grega do Deuteronômio, a palavradesigna, também,

maldição, visto sua referência à dispersão dos judeus exilados da

Palestina depois da conquista babilônica. Por isso, a conotação

inicialmente positiva das sociedades que se disseminavam por meio e

entre diferentes geografias políticas e culturais transformou a diáspora

num termo de opressão e de vitimização. É justamente por isso que,

no sentido clássico, a noção de diáspora corresponde a exílio forçado,

dor e sofrimento (REIS, 2010, p. 39).

Page 4: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

A diáspora ainda é vista como algo que envolve o experimento junto à

intelectualidade e a “consciência identitária”, assim, podemos conceituá-la como uma

zona de conflito, onde se deve perder ou obter através da experiência com os indivíduos

em diáspora. Desse modo, conseguimos experimentar o lado positivo, apontando a

procedência da história, ou mesmo a parte negativa, com o experimento de

desvalorização e de eliminação (REIS, 2010, p. 40).

Segundo esta autora, a diáspora africana teve maior intensidade entre os séculos

XVI e XVIII, graças ao procedimento de retirada por meio da força brutal dos negros

africanos para lugares como as Américas, Europa e Ásia, fato consolidado em virtude

da escravidão e também pelo tráfico negreiro através do Atlântico.

Quando observamos museus dedicados à temática das culturas negras na diáspora

de imediato visualizamos essas questões em sua expografia2. Segundo Marcelo Cunha

(2006), “entendemos exposições como estratégias comunicacionais com lógicas e

sentidos próprios, relacionados com o processo de produção de fatos, eventos e bens

sociais, reconhecidos pela materialidade, revelando redes de relações entre

acontecimentos, idéias e indivíduos” (p. 14).

Mas o que seria expor? Podemos dizer que esse fazer pode ser realizado a partir

da revelação, de representar aspectos de um determinado momento da história, de

montar uma proposta estética e política etc. Assim, concordamos com o pensamento

deste autor quando diz :

Expor é revelar, comungar, evidenciar elementos que politicamente

precisam se explicados, em uma perspectiva relacionada a um

momento histórico, uma produção estética, um ideal político. A

exposição deve ser percebida como “obra aberta”, alimentada e

realimentada permanentemente, articulada e articulando-se com outros

elementos do sistema de conhecimento. Expor é propor, daí seu

caráter de abertura a debates e outros objetos [...]. Exposições

caracterizam-se como um discurso, uma estratégia informacional, em

um contexto de comunicação, com narrativas realizadas com o

objetivo de transmitir/ou reforçar idéias, em uma proposta conceitual,

ao tempo que compõem, no caso de exposições museológicas, um

projeto de preservação de referências políticas, históricas e de

dinâmicas culturais e patrimoniais. Nesse sentido, as exposições

museológicas devem ser pensadas considerando-se suas inserções em

2Área da Museografia que “se ocupa da definição da linguagem e do design da exposição museológica,

englobando a criação de circuitos, suportes expositivos, recursos multimeios e projeto gráfico, incluindo

programação visual, diagramação de textos explicativos, imagens, legendas, além de outros recursos

comunicacionais” (FRANCO, 2008, p. 61).

Page 5: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

cenários panorâmicos, o das políticas e ações culturais públicas como

resultado de processos históricos e transformações sociais [...]. Não

pode ser entendida como o fim de um processo, mas como outros

elementos e signos do sistema de conhecimento e de poderes

instituídos, um meio para a comunicação e transmissão de conteúdos

valorizados e trabalhados pela instituição museu (CUNHA, 2006, p.

15-16).

Em uma exposição seleciona-se o que será exposto. Dessa forma, coloca-se tudo

aquilo que seu organizador acredita ser favorável à construção de seu argumento, sendo

silenciados muitas vezes conteúdos de grande significância. Outro fator seria

esquecimento de um objeto ou memória de maneira proposital, provocada por quem

está à frente da montagem da expografia. Visto sob essa perspectiva o museu pode se

transformar em um ambiente institucional dedicado a apresentação das diversas

culturas. Entretanto, também pode se transformar em espaço que oculta, exclui e

esconde, subrepresenta ou estereotipa práticas culturais.

Conforme destacou Marcelo Cunha (2006), quando se fala da cultura africana ou

mesmo do negro nos museus, naturaliza-se e resume-se, muitas vezes, à representação

da religião, da capoeira e do trabalho forçado no período escravocrata, com destaque

para os instrumentos de tortura usados nos mesmos. Entretanto, sabemos que as práticas

culturais da população negra não se resumem a esses aspectos.

Esse traçar da cultura afro, na maioria das vezes, não condiz com o que são as

heranças de matrizes africanas, com as diferentes contribuições para a cultura brasileira,

por exemplo. Os museus, em regra, difundem um discurso doloroso aos olhos do

público, evidenciando uma visão negativa e por vezes racista que ganhou força no

século XIX e que chega até nossos dias. Ideal forjado no período escravocrata, em que

eram apontados como seres não civilizados, tratados como animais domesticados,

servindo como moeda para trocas comerciais e simbólicas.

Além disso, as religiões de matriz africanas são abordadas em diversas exposições

museológicas de maneira teatral, onde se dá ênfase ao “sincretismo religioso” e ao olhar

do colonizador. Sendo que os terreiros são poucos mencionados e valorizados, no

decorrer das diásporas, mesmo sendo um local de resistência e lutas. Outro aspecto é

que muitas vezes não se dá espaço aos lideres que estão vivos. Além disso, as culturas

das populações negras são tratadas em expografias de modo recorrente como

“populares” e “folclóricas”

As práticas institucionais do Brasil revelam esforço permanente em

negar traços étnico-culturais que ponham em risco desejos de

Page 6: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

‘modernidade’, ‘progresso’ e ‘desenvolvimento’ nacional, baseado em

referências culturais ditas ‘ilustradas’. Os museus sempre estiveram a

serviço deste projeto, exibindo objetos testemunhos das culturas ditas

superiores, modelos para a formação de um caráter e personalidades

que comportem modos e maneiras ‘elegantes e civilizados’. Objetos

de culturas de negros [...] geralmente são apresentados pelo viés do

exotismo e da variação/deturpação dos padrões superiores a serem

seguidos, moldando-se, para tal, conceitos como cultura e

religiosidade popular, folclore, objeto etnográfico e manifestação de

cultura tradicional [...]. A religiosidade fica limitada à apresentação de

informações com ênfase no sincretismo. As religiões afro-brasileiras

são apresentadas como homogêneas, confundindo, inclusive, nas

imagens apresentadas, elementos que pertencem a estruturas religiosas

e simbólicas diferenciadas, padronizando as representações sobre as

diversas práticas religiosas africanas no Brasil [...]. Quanto às

lideranças religiosas, a abordagem vem envolta em tom memorialista,

com referencias a pais e mães-de-santo já falecidos, normalmente os

fundadores das diversas comunidades religiosas, sem menções às

gerações recentes de líderes com suas novas formas de atuação e

busca de atualização de suas práticas [...]. É pouco mencionada e

valorizada a importância dos terreiros, ao longo da história das

diásporas, como centro de resistências e lutas, como espaços que

possibilitaram a manutenção, preservação e transmissão atualizada de

elementos das culturas africanas de geração a geração. A

religião/divindades é um dos temas mais explorados de forma

teatralizada, sendo um dos que apresenta maior possibilidade na

elaboração de cenários e dioramas. [...]. As religiões afro-brasileiras

aparecem, na maioria das instituições pesquisadas, na perspectiva do

sincretismo, com o desenvolvimento de discursos que atrelam o

imaginário afro-brasileiro ao universo religioso católico [...]. No

Memorial das Baianas de Acarajé e Vendedoras de Mingaus, em

Salvador, encontramos imagens de Santa Bárbara relacionada à Iansã,

orixá que está ligada à produção, venda e consumo do acarajé, uma

das iguarias a ela destinada. Neste caso, a imagem traduz, de forma

bastante forte, a permanência do sincretismo em uma determinada

prática cultural afro-brasileira, não mais na perspectiva de ferramenta

para escamotear práticas religiosas proibidas (CUNHA, 2006, p. 68-

85)

A maioria dos museus brasileiros ao apresentar e representar em exposições a

temática das culturas negras ainda a resume à religião, sob a luz do sincretismo, ou a

objetos relacionados aos castigos que o negro escravizado foi submetido, possuindo

ainda imagens que representam as cenas de negras limpando as casas grandes, dos

homens carregando liteiras (também conhecidas como cadeira de arruar), trabalhando

nas lavouras, nas sapatarias sendo castigados com palmatórias contendo lâminas ou

pregos etc.

Deborah Silva Santos (2014) no texto Apontamentos sobre as culturas negras nos

museus no século XIX analisou o modo como o “outro” africano e seus descendentes

foram construídos historicamente, levando em conta povos de origem asiática, indígena

Page 7: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

ou americana. Destaca que do século XVI ao XIX a África se despoja dos elementos do

reino animal, vegetal, mineral e em grande quantidade homens e mulheres. Entretanto, a

partir do século XVII os ditos gabinetes de curiosidade começam a se transformar, vão

abandonando a característica de possuírem inúmeros objetos, visando outras formas de

apresentação daquilo que existia em locais longes e desconhecidos. Assim, nota-se que

era necessário não somente obter o objeto, mas investigá-lo, estudá-lo e organizá-lo por

classificação, buscando explanar o “mistério” da criação, interpretar os “outros”.

A pesquisadora informa que no século XVIII são construídos os museus como

instituições nacionais européias e responsáveis por abrigar as coleções da monarquia e

franquear o acesso ao público. Este século edifica a instituição museal, porém é o século

XIX que molda como são apresentados atualmente, chegando a atingir outras partes do

mundo. Nesse mesmo período são criados os museus de artes, o museu de história

natural e museu etnográfico:

O século XVIII criou o museu como instituição, mas foi o século XIX

que o moldou como hoje conhecemos e o proliferou para todas as

partes do mundo, como instituição de caráter enciclopédico, instalada

em grandes edifícios, com procedimentos científicos em relação à

pesquisa, à salvaguarda, à exposição, a preocupação com a educação e

a relação com o público, a especialização dos seus trabalhos e a

segmentação por áreas de conhecimento: artes, história natural e

tecnologia. Os museus de arte mantiveram a procura pelo ‘belo’

estético e por obras clássicas e introduziram o espaço para o ensino

através das escolas de belas artes, dando incentivo ao estudo e a

produção, através das cópias dos artistas. O desenvolvimento

industrial e tecnológico do período criou a tipologia dos museus de

artes tecnológicas, que tiveram nas Exposições Universais, a partir da

segunda metade do século XIX, o seu maior incentivo, ao trazer para a

expografia questões referentes às exposições temporárias. Durante o

século XIX os museus de história natural investiram na formação dos

acervos, para isso organizaram expedições cientificas de coleta de

acervo que percorreram os territórios colonizados, com o objetivo de

estudar seus recursos naturais e seus habitantes, formando coleções

referentes à botânica, à zoologia, à mineralogia, à etnografia e à

arqueologia que foram enviados para os principais museus europeus.

(SANTOS, 2014, p.95-96).

Nesses termos a autora, relembra que em meados do século XIX os seres humanos

eram explicados de acordo com teorias pautadas nos determinismos biológico e

geográfico, que confirmavam a distinção biológica entre os homens devido à atribuição

racial. Nesse patamar estavam inclusos os museus etnográficos, onde os elementos

africanos eram um dos acervos privilegiados. Destaca essas questões no caso brasileiro,

com a criação do Museu Nacional no início do século XIX, chegando ao final do

Page 8: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

referido século com as destacadas presenças do Museu Paraense Emilio Goeldi e do

Museu Paulista, instituições difusoras dessas teorias no Brasil. Essas instituições tinham

por anseio organizar o conhecimento humano e um saber “evoluído”, fazendo a

classificação da coleção e influenciando no debates nacionais indicativos ao

desenvolvimento do povo brasileiro (SANTOS, 2014, p. 99). Segundo Deborah Santos

(2014), os museus, cada um deles ao seu modo, deram sua contribuição para a

divulgação no Brasil das teorias raciais no século XIX.

Ainda no rol dos estudos sobre a representação das culturas afro-diaspóricas nas

exposições museológicas, Raul Lody (2005) na obra O negro no museu brasileiro:

construindo identidades apresenta duas linhas de força voltadas para a atualidade: as

instituições museais e sua relação com a tradição e a gama de aspectos do negro na

cultura e no imaginário brasileiro.

O pesquisador investigou festas e coleções relativas às diásporas negras em

diversos estados brasileiros, com destaque para a Bahia, Pernambuco, Sergipe e

Alagoas3. Dessa maneira, ressalta que os objetos que adentram as instituições

museológicas são frutos de um procedimento de “feitura”, de utilidade e significações.

Nesse sentido, destaca que grande parte destes artefatos vem de uma longa jornada

como “[...] rescaldo de apreensões policiais, outros doados por intelectuais, outros

doados pelos próprios usuários ou por pessoas delas próximas” (LODY, 2005, p. 16-

17).

A partir disso podemos estudar o estilo e as procedências das coleções. Esses são

elementos que poderão articular a apreciação, o estudo, fixar relações, para classificar

grupos e pode se auto-reconhecer, para definir regiões e idéias contribuindo para

redefinir as relações entre a África e o nosso país. Entretanto, Raul Lody chama a

atenção para que se modifique o modo de apresentar esses fatos:

3 Raul Lody (2005) estudou inúmeras instituições museais, coleções e cidade, a exemplo da

Coleção Perseverança de Alagoas, Xangô pernambucano no Museu do Estado, Candomblé de Salvador:

Coleção do Instituto Geográfico da Bahia, Um museu inspirado em Gilberto Freyre, Coleção afro –

pernambucana no Museu do Homem do Nordeste, Arte africana no Museu Nacional de Belas-Artes, Arte

dos povos bantu no Museu Paraense Emílio Goldi, Coleção afro-maranhenses: Patrimônios dos terreiros

mina-jeje e mina-nagô e das festas de São Luís, Coleção da Fundação Freyre, Museu Théo Brandão e o

xangô das Alagoas, Museu Arthur Ramos, Museu Câmara Cascudo, Coleção angola de Luís da Câmara

Cascudo, Museu do Ilê Axé Opô Afonjá, Coleção do Museu Nacional (UFRJ), Instituto Feminino da

Bahia, Museu Afro-Brasileiro de Laranjeiras, Sergipe, Pencas de balangandãs no Museu Carlos Costa

Pinto, Bahia, Museu Afro-Brasileiro (UFBA), Coleções afro-brasileiras no Museu de Folclore Edison

Carneiro. .

Page 9: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

Ao mesmo tempo, vejo uma necessidade urgente de rever esse olhar

museológico perante o que se consagrou exclusivamente etnográfico.

As comunidades afrodescendentes reclamam e exigem suas

representações nos museus e também querem retomar testemunhos

materiais de suas histórias, sociedades, para retomar assim os objetos

e suas funções, desempenhando seus papéis, assumindo os verdadeiros

significados (LODY, 2005, p. 18).

O pesquisador ainda destaca que mesmo depois do regime escravocrata, tanto a

memória quanto os objetos que representam práticas relacionadas ao negro no Brasil se

tornaram alvos da polícia e do meio político:

Também nas cidades de Salvador, Recife, Rio de Janeiro e outras

durante o Estado Novo (1937), foram registrados abusos de autoridade

policial, resultado em invasões de terreiros e apreensão de objetos,

levados, então, para delegacias policiais, hospitais psiquiátricos e,

posteriormente, utilizados como documentos de marginalidade e

loucura, resultantes da danosa mistura de raças. Cinqüenta anos após

perseguições institucionalizadas, uma geral e aberta absorção social

toma e retoma matrizes próximas de um ideário africano/afro-

brasileiro numa também estética do ser negro, porém as causas

transpõem a virtude do esteta e atingem fundamentação econômica,

política e social. Daí concepções e representações materiais sustentam

patamares de uma reafricanização, de um purismo africano ou ainda

de uma busca dos símbolos culturais de uma plural ação civilizatória

africana. Também dessa ação resultados próprios e assim afro-

brasileirados geram motivações para artistas plásticos, músicos,

grupos de afoxé, blocos afro, escolas de samba, artesãos de terreiros,

lideranças políticas, além de um amplo processo educativo sobre

questões de uma historiografia de fundo social em vez da épica e

heróica história oficial de feitos e fatos de figuras notáveis e, quase

exclusivamente, agentes do poder e da dominação. Das relações

internacionais redefinidas após a descolonização acelerada da África

na década de 1960 e de movimentos ideológicos em busca das

identidades africanas e em sua diáspora, destacam-se a negritude e a

Africanness, que estimularam e apoiaram ideologicamente o

surgimento de grupos organizados de negros e também de não-negros

mobilizados pela causa da liberdade em seus patamares econômico,

cultural e social(LODY, 2005, p.24-25).

Ainda destacando alguns trabalhos representativos no campo da Museologia e das

diásporas negras, o trabalho de Myrian Sepúlveda Santos (2004) analisa as

representações dos negros em algumas coleções e museus brasileiros. O argumento

inicial da pesquisadora é que os museus afro-brasileiros situados em Salvador e São

Paulo são pequenas portas abertas para extensas modificações. Esses têm por objetivo

expressar uma inovação na questão das representações sobre o povo negro para um

amplo público.

Page 10: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

No entanto, destaca que muitos museus ainda reproduzem discursos que abrigam

um conteúdo que vai contra o mencionado acima. Myriam Sepúlveda faz uma análise

dos conflitos e disputas que aconteceram nas distintas representações de negros que

estão presentes em determinados museus brasileiros, que, em ampla parte, são

instituições oficiais responsáveis pela salvaguarda da memória nacional. Para tanto,

examinou o poder na edificação dos diálogos sobre o passado, que significados são

lembrados e esquecidos e qual a afinidade dessas narrativas com métodos que induzem

a desigualdades raciais e as aproximações entre raça, memória e nação (SANTOS,

2004, p. 3).

Evidenciando o Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro destaca que

existe um silêncio em relação aos artistas negros, pois não se divulgam informações

sobre os produtores das obras. Diante disso, podemos dizer que as mesmas são

apresentadas, mas a história dos autores, sua raça, simplesmente deixa de ser exposta e

inclusa no contexto:

O silêncio sobre raça pode representar a predominância de um

imaginário coletivo, comum, capaz de se impor ao conjunto de

cidadãos, independentemente de cor, etnia ou raça. Cabe a nós,

entretanto, investigar este imaginário comum e perceber em que

medida ele traz hierarquia de valores e elege padrões estéticos e

produções culturais de um segmento populacional em detrimento de

outro. O que encontramos no Museu Nacional de Belas Artes não é

apenas o silencio sobre a natureza racial dos autores das obras de arte.

Os curadores dessa coleção não só silenciaram sobre a identidade de

autores negros, como também, ao logo da história, ignoraram muitos

deles, excluindo-os do seleto grupo que representa a arte e

intelectualidade brasileira. (SANTOS, 2004, p. 6).

Para a autora, na maioria das exposições, além do silêncio e da exclusão, o negro

é enaltecido em práticas como samba, carnaval e futebol, sendo esses aspectos mais

citados nos museus brasileiros:

O estereótipo criado de que os negros são bons em música e esportes

caminha junto com o de que eles são ineficientes como políticos,

empresários, industriais, advogados, médicos, engenheiros e demais

profissões de prestígio. Samba, carnaval e futebol fazem parte,

portanto, de uma memória da nação que não é freqüentemente

reiterada nos museus, mas em práticas populares. Ainda assim, no

Museu da República, os curadores da exposição ‘A Ventura

Republicana’, Gisela Magalhães e Joel Rufino dos Santos, procuraram

inovar as exposições museológicas, agregando ao acervo tradicional

encontrado no museu, praticamente todo ele relacionado aos

representantes das elites políticas e econômicas, objetos que fizessem

jus à contribuição dos excluídos: indígenas, sertanejos, e o povo das

Page 11: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

ruas. É no módulo denominado ‘a rua’ que encontramos a frase de

Gilberto Freyre ‘O brasileiro é negro nas suas expressões sinceras’. A

exposição traz para dentro do museu a negritude do brasileiro que se

configura no domínio da rua em uma tentativa declarada de

popularizar o discurso lá encontrado e atrair mais público (SANTOS,

2004, p. 6-7).

A maioria dos museus brasileiros produz diálogos que possuem como

característica o silêncio sobre como o negro deu sua contribuição de maneira positiva

para a edificação do nosso país ou uma memória ativada a partir da escravidão. Assim

podemos a partir dos apontamentos da autora ressaltar algumas exposições que narram o

negro escravizado, submisso, submetido à dor, aos castigos severos vividos a longo

período de escravidão:

O Museu Imperial, por exemplo, que foi criado em 1940, durante o

Estado Novo, com a proposta de recolher, ordenar e expor objetos de

valor histórico ou artístico referente a fatos e vultos dos reinados de D.

Pedro I e, de D. Pedro II, trás pouquíssimos indícios da presença do

negro na vida do Império. Já o Museu Chácara do Céu, antiga

residência de Raymundo Ottoni de Castro Maya, transformado em

museu em 1972, reúne uma rica coleção de obras de arte, entre elas

desenhos e gravuras de viajantes europeus que documentam o Rio de

Janeiro no século XIX, como Debret e Rugendas. Na página eletrônica

deste precioso Museu, encontramos duas imagens que bem

representam o negro brasileiro: escravos sendo castigados. O Museu

Histórico Nacional, instituição que procura retratar fatos e momentos

relevantes a história do país ao longo dos séculos, traz imagens do

negro que fazem com que ninguém queira com ele se identificar. Há

na exposição ‘Colonização e Dependência’ uma narrativa evolutiva de

um processo econômico que se estende desde as grandes navegações,

comércio colonial, ciclos da cana de açúcar, do café e da mineração

até a abertura dos portos e imigração. Quando chegamos no trecho

relativo às plantações de cana de açúcar encontramos uma grande

maquete de um engenho, onde vemos negros escravos trabalhado e ao

lado a figura de um negro com uma gargalheira. Em frente às vitrines

dois troncos imensos sinalizam que negros eram colocados ali por

castigo. No ambiente neutro em que são mostrados estes objetos, eles

tendem a cumprir a função de banalizar os açoites, as chicotadas, o

trabalho forçado, a separação de famílias, o aviltamento a que foram

submetidos os escravos (SANTOS, 2004, p. 11).

Ainda sobre a representação dos negros nos museus brasileiros, Joana Angélica

Flores Silva (2015) faz uma análise destacando a perspectiva de gênero nos museus de

Salvador. Seu trabalho destaca como as mulheres negras vêm sendo representadas nos

Page 12: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

museus de tipologia histórica em Salvador4. Dessa forma foi analisada metade da

expografia de longa duração, do Museu do Traje e do Têxtil do Instituto Feminino da

Bahia, que narra o universo feminino no argumento da moda, no século XIX.

A pesquisadora reconhece que o Museu do Traje e do Têxtil produz uma

ideologia representativa que não favorece as igualdades de gênero e racial. Assim

afirma que exposição museológica contribui para a discriminação de raça. As mulheres

negras representadas nos museus históricos de Salvador são apresentadas no contexto

expositivo com eliminação de “cenários construídos, vividos e vivenciados", edificando

a representação de um conhecimento que dá ênfase a desvalorização que elas ainda

enfrentam (SILVA, 2015, p. 5).

[...] Utilizando-se do recorte da exposição do Museu do Traje e do

Têxtil, podemos aferir onde o universo feminino se destaca pelas

roupas e modos de convivência no cotidiano das mulheres desse

período. No espaço expositivo, as manequins de cor branco abrigados

em vitrines, se encontram dispostas em ambientes, donde vê-se a

dinâmica dos passeios, das festas, das relações maternais etc. em

contraponto com as peças que ilustram a única vitrine composta por

manequins na cor preta, cujos trajes representam as mulheres

escravizadas, não evidenciando uma proposta de visibilizar a também

participação das Mulheres Negras na construção política, econômica e

social do país. A disposição espacial dos suportes escolhidos pelo

Museu incentiva à prática de uma leitura, cujo contraste social retira

dos objetos históricos (os trajes), a sua gama de informação que vai

além do simbólico e que podem influenciar na omissão de fatos

históricos, silenciados-quando não modificados à revelia pela

historiografia oficial - o que deixa o público visitante à mercê da

história dos grupos sociais que formaram a sociedade brasileira e

baiana do século XIX, apresentada de forma fragmentada e parcial.

Nesse contexto, é que o contraponto do diálogo em branco e preto,

toma o lugar de enunciado na exposição: de um lado, a somente

existência de brancas, economicamente bem sucedidas, do outro,

negras que viveram desprovidas, economicamente. A exposição não

contempla nos seus discursos as questões políticas, econômicas,

sociais e também afetivas que fizeram parte dos cotidianos desses

indivíduos, naquela sociedade. São as cores, em meio ao universo da

moda, que o branco e o preto por si só, demarca e historiciza o

universo das Mulheres Negras nessa exposição. (SILVA, 2015, p. 5-

6).

4 Sobre esse artigo usando como referência bibliográfica podemos dizer que Joana Angélica Flores

Silva (2004) estudou museus de tipologia histórica em Salvador, buscando identificar como as mulheres

negras estão sendo retratadas nesses espaços museais com destaque para a expografia de longa duração do

Museu do Traje e do Têxtil, do Instituto Feminino da Bahia, ressaltando a moda feminina no século XIX.

Page 13: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

As instituições museológicas, em grande parte, produzem amostras de mulheres

negras como servas da comunidade, em todos os séculos. A negra é associada, como diz

Joana Silva, a “[...] uma figura simbólica, alusiva à imagem de mulher forte, cuidadora

dos (as) frágeis e desprotegidos (as), legitimando o imaginário cultural coletivo que

atribui a essas mulheres, o papel único de impossibilitada de pensar” (SILVA, 2015, p. 7).

O negro ainda possui destaque através do seu corpo, que foi utilizado artisticamente e

também usado por muitas instituições museais para com o mesmo fim, contribuindo

para um discurso sexual e racista:

Numa abordagem que discorre sobre a participação do museu como

espaço de representação e poder, podemos afirmar que a exposição

construída a partir das narrativas artísticas que caminham dos

manequins aos textos, do início ao final do circuito expositivo, onde

em meio ao universo da moda a carta de Carlos Gomes à Princesa

Isabel dá o toque final para o lugar que ali está a Mulher Negra, nele é

demarcado e legitimado a sua condição também nos dias atuais,

quando os seus trajes se contrapõem às vestes da mulher branca que

supostamente lhe deu a liberdade (SILVA, 2015, p. 8).

Resta-se a dúvida de que se foi representada a moda do século XIX na exposição

do Museu ou se a partir dali se forma outra expografia, onde as negras seriam vistas de

maneira inferior, pois usavam roupas fabricadas com tecidos considerados inferiores aos

das mulheres brancas. Nesse aspecto, quando não são silenciadas, muitas vezes, são

sub-representadas nas exposições museológicas.

As pesquisas aqui apresentadas consistem em indícios de como os museus

brasileiros, salvo raras exceções, têm representado às culturas afro-diaspóricas.

Analisando a representação dos povos negros e das diásporas nos museus observamos a

existência de tensões que no passado e presente marcaram impossibilidades e

imprecisões em meio à confrontação entre narrativas e idéias culturalmente diferentes.

As exposições em museus brasileiros, ao edificarem simbologias acerca das culturas

afro-diaspóricas, apresentam, em grande parte, um discurso onde à predominância

referencial e o capital simbólico está ligado a uma visualização de mundo ajustadas ao

ocidente branco.

Podemos afirmar que no século XIX as culturas dos povos negros estavam

formadas nas ações de salvaguarda e análise dos museus, como “os outros”, o diferente

e o estranho. As instituições daquela época, ao apresentarem características

enciclopédicas, apresentavam uma cultura material da população africana relacionando-

a aos determinismos biológico e geógrafico. Todavia, ainda hoje o negro é silenciado

Page 14: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

quando representado na maioria dos museus brasileiros. Quando ganha um destaque é

por meio da religião, apontada como parte da resistência do negro, constantemente

perseguida, sendo esta uma forma de luta para que tivesse seu espaço, o real

reconhecimento, a valorização e, principalmente o respeito que merece.

As pesquisas aqui apresentadas destacam que na maioria das exposições o negro

é resumido à religião, a capoeira, ao samba, ao futebol, sendo ainda representado na

expografia museal como submisso, reforçando uma narrativa que apresenta o domínio

do branco sobre os mesmos. Além disso, o lado artístico, a literatura, a política, entre

outros, são aspectos que envolvem o negro, mas que são excluídos, esquecidos,

silenciados muitas vezes nesses espaços de poder e representação.

Entretanto é preciso ressaltar que muitos museus não abarcam as questões

políticas e sociais que podem ser recuperadas a partir de seus acervos. Eles ainda

reforçam os símbolos da escravidão, por exemplo. As narrativas reafirmam a

desigualdade, que assola não somente o espaço de interação entre homens e mulheres

negras representados na exposição, contribuindo para que suas culturas sejam

difundidas de maneira preconceituosa.

1.2 A exceção como enfrentamento: outros itinerários possíveis

Mesmo com tantas instituições museológicas que tentam representar o negro (a)

em suas expografias se conclui que falta muito para observarmos uma representação

igualitária e respeitosa. A partir da conscientização de que o povo africano contribuiu

para com a construção da identidade cultural brasileira poderemos notar as iniciais

mudanças no campo das exposições, pois não são somente os indivíduos que as

observam precisam mudar seu ponto de vista, mas quem as fabrica, eliminando um

olhar preconceituoso que formula memórias seletivas que desfavorecem uma raça e

silencia práticas culturais tão importantes. Nesse aspecto, algumas experiências vêm

sendo realizadas em diversos museus brasileiros visando construir itinerários

alternativos de representação das diásporas negras.

Seguindo esse entendimento, convêm observarmos as discussões de Joseania

Miranda Freitas e Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha (2014) na análise da

exposição de curta duração “Exu: outras faces”, no Museu Afro-Brasileiro de Salvador,

Page 15: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

realizada no ano de 2013. Visando problematizar os bens afrobrasileiros na cidade de

Salvador/BA, realizam um estudo a partir da exposição apontando os aspectos

considerados por ela eficazes e de extrema valia para desmistificar algumas ideias

preconcebidas sobre esse orixá. Essa expografia tinha como propósito inovar o olhar do

público, como também fazer com que as pessoas pudessem se auto-identificar com a sua

cultura, além de produzir a diversidade das faces dos Orixás sem ocasionar desconforto

ou mesmo atitude voltada para o preconceito.

Não muito diferente de outras cidades, Salvador mesmo possuindo muitos

adeptos e simpatizantes das religiões afro-brasileiras ainda se torna palco para

manifestações de intolerância religiosa e discriminação racial:

A cidade de Salvador é conhecida por sua forte herança africana,

traduzida em grande parte por representações relacionadas às matrizes

religiosas. Ainda assim, a cidade, como outras partes do mundo, tem

passado por um forte processo de intolerância religiosa. Nas últimas

décadas tem crescido o número de organizações neopentecostais, com

diversas denominações e filiações, que dão continuidade aos apelos

preconceituosos do cristianismo, observados ao longo da história, em

relação às religiões de matriz africana. Ainda que grande parte dos

adeptos convertidos a estas novas igrejas seja de afrodescendentes,

práticas relativas às religiões de matriz africana têm sido vistas como

expressões satânicas. Estas ideias têm se difundido através de pais e

educadores que repetem para seus filhos e alunos imagens que

demonizam divindades e práticas do candomblé, elaboradas a partir

dos discursos de suas lideranças religiosas, realizados nas igrejas e

meios de comunicação, marcados por atitudes de perseguição moral,

que imprimem nos fiéis a intolerância que, semelhante à antiga

perseguição policial aos terreiros de candomblé, que durou até o

terceiro quartel do século XX no Brasil, impedem o acesso ao

conhecimento da diversidade cultural da sociedade (FREITAS,

CUNHA, 2014, p 193)

A exposição aderiu a escolha do Orixá Exu para iniciar novas expografias que

dialoguem, mostrando inúmeros olhares em relação às heranças deixadas pelos negros

africanos, expostas no desenvolvimento religioso e reveladas em muitas línguas. Aqui é

importante destacar como os curadores organizaram a exposição sobre Exu e suas

respectivas faces:

Corpo - A energia de Exu permite ao corpo humano vivenciar

descobertas e aprendizagens. Esta energia promove o despertar da

alegria, do desafio, do prazer e das escolhas que marcam os destinos

de cada pessoa. Línguas - Exu possui o conhecimento de todos os

idiomas conhecidos, desconhecidos, desaparecidos ou pouco

utilizados, característica que aproxima pessoas, constrói ideias e tudo

que envolve o falar. Artes - O fazer artístico no mundo material é uma

Page 16: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

das possibilidades de manifestação de Exu. A sua forte energia

impulsiona processos artísticos, tais como: música, canto, dança,

pintura, escultura, arquitetura, teatro, poesia, literatura e

cinema.Escrita - A comunicação, oral ou escrita, é a característica

principal de Exu. A transmissão de informações em diversificados

modos constitui-se num campo de possibilidades de manifestação de

Exu. Tecnologia - Tudo que é relacionado à tecnologia e ao

movimento está também na essência de Exu, pois ele é o intermediário

para a criação de artefatos tecnológicos. Caminhos e Continuidade -

Exu apresenta as possibilidades de recomeço ou de renovação, para

que a vida possa ter continuidade. Exu é impulso da vida em sua

complexidade. É energia vibrante que estimula as pessoas a

perceberem a importância da vida, valorizando os momentos vividos

em plenitude. Exu, em suas diferentes faces, direciona o ser humano a

experienciar a vida com intensidade (FREITAS, CUNHA, 2014,

p.198)

Segundo os pesquisadores essa exposição de curta duração “por suas

características de implicação com a realidade social de intolerância às religiões de

matriz africana, representou uma atitude política ao defender os direitos constitucionais

de liberdade religiosa” (FREITAS, CUNHA, 2014, p. 205).

Ainda destacando outra iniciativa no Museu Afro-Brasileiro de Salvador é

possível registrar as ações museológicas em torno das coleções sobre a capoeira.

Joseania Miranda Freitas, José Joaquim de Araújo Filho e Jean Herbert Batista Brito

(2013) analisam no texto “A capoeira dos mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no

acervo do Museu Afro-Brasileiro da UFBA”a coleção voltada para esses mestres da

Bahia que atuaram no século XX, sendo este um período onde a capoeira era vista como

um ato marginal.

O Mestre Pastinha ressaltava sua vontade em ver a capoeira reconhecida como

parte do patrimônio cultural do Brasil, além de se ter o devido cuidado com as atitudes

para preservar a mesma, para que não fosse silenciada, perdida no decorrer do tempo. A

capoeira é um dos legados culturais da diáspora negra, reúne informações musicais, os

instrumentos, a voz, o movimento do corpo dos indivíduos em roda, que alguns

denominam como dança, luta.

A coleção do Museu Afro-Brasileiro reúne elementos que testemunharam a

capoeira jogada no século XX na Bahia, através dos Mestres Pastinha (Vicente Joaquim

Ferreira Pastinha), Bimba (Manoel dos Reis Machado) e Cobrinha Verde (Rafael Alves

França). É dada ênfase a dois feitios considerados de grande importância na construção

dos agrupamentos dos elementos dos mestres. A princípio, os próprios líderes da

capoeira estavam atentos e guardavam documentos, fotografias, carteiras das academias,

Page 17: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

registros feito por alunos, livros, papéis, entre outros. Já o segundo aspecto encontra-se

na preservação das peças, sendo os herdeiros os responsáveis por confiar e entregar os

objetos a uma instituição museológica entre os anos de 1983 e 1984 (FREITAS,

FILHO, BRITO, 2013,).

A atuação dos pesquisadores nessa coleção contribuiu para que fosse possível

criar contextos que dessem direção ao entendimento dos inúmeros assuntos vivenciados

por Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde, por exemplo, de maneira que revelasse coisas

sobre a existência dos seus objetos antes da transferência para o espaço museológico:

O estudo das peças da coleção exigiu o estabelecimento de nexos

entre os artefatos - produtos da cultura material, sua vida anterior e

sua transformação em objetos museológicos - e as diversas memórias,

registradas ou não, sobre a vida de cada mestre, sobre a formação das

coleções por cada família e suas diversas histórias, individuais e

coletivas. Ao final do processo a coleção passou a ter um caráter

autobiográfico, apresentando uma série de dados que levaram à

identificação de cada mestre, com a explicitação de suas diferentes

formas de praticar e registrar a capoeira, sendo necessário, portanto,

subdividi-la, com seus nomes [...] (FREITAS, FILHO, BRITO, 2013,

p. 179).

Os três Mestres negros lutaram contra o racismo, o preconceito e demonstrou o

quanto a capoeira tinha extenso significado para quem a conhecia e sabia seu valor

histórico cultural. O estudo dos objetos dos Mestres foi um meio de gerar uma via de

comunicação. Nesse sentido, as duas exposições apresentadas, embora dialoguem com

temáticas tradicionalmente associadas ao universo afro-brasileiro não apresentam uma

visão estereotipada, estimulando, desde a sua inauguração em 1982, leituras críticas que

possibilitam reconhecer as diferentes contribuições dos povos descendentes das

diásporas negras.

Ao continuar a narrar o contexto sobre contribuições em expografias em museus

pode-se dizer que Emanoel Araújo teve a satisfação em pode ir à frente realizando seus

trabalhos e produzir uma mostra cultural conhecida como “Vozes da Diáspora” no ano

de 1992, quando ele se tornou diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo. A

expografia seria entorno dos objetos africanos e referentes aos pintores negros que

viveram no século XIX.

Outro exemplo significativo consiste na atuação do Museu Afro Brasil,

inaugurado em 2004 na cidade de São Paulo sob a curadoria do artista plástico baiano

Emanoel Araújo. O local se tornou uma referência, pois desenvolveu exposições que

abarcavam a cultura negra, como por exemplo, a expografia “A mão afro-brasileira:

Page 18: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

significado da contribuição artística e histórica” que se tornou muito conhecida e

utilizada como referência:

A obra enfatiza as artes visuais sem descurar de outras expressões

artísticas a exemplo do Teatro Experimental do Negro abordado por

Abdias Nascimento. A entidade não apenas instaurou um novo ponto

de vista no que concerne a representação dos afro-brasileiros como

também se dedicou a um trabalho de base visando letramento e

qualificação profissional da população negra. O TEN, como ficou

conhecido, possuía uma dimensão estética e política sem precedentes

na história da cultura brasileira no que concerne a afirmação de uma

identidade negra construída a partir do próprio segmento em oposição

às identidades a ele atribuídas (SILVA, 2013, p.41)

No Museu Afro Brasil trabalha-se com as nações Ketu, Jejê e Angola, além de

ressaltar o culto de Babá Egun. A curadoria quis provocar o olhar do visitante expondo

no local as múltiplas faces das religiões afro-brasileiras. O Museu Afro Brasil pode ser

considerado um lugar que valoriza a cultura afro-brasileira. Nesse sentido, se as ações

em debates não modificam o quadro da mobilidade da sociedade, provocam

interferência na construção simbólica, na medida em que colocam em discussão

nacional aspectos que historicamente foram silenciados (SILVA, 2013).

Diante dos diversos exemplos apresentados neste capítulo concluímos que as

populações afro-brasileiras precisam ter voz ativa e que essa voz adquira ressonância

nos museus brasileiros. Suas práticas culturais devem ser evidenciadas e suas obras e

legados apreciados. Nesse sentido, a presença dos herdeiros e das heranças das

diásporas negras não deve figurar apenas como tema das exposições. Acreditamos que

os próprios agentes representados devem se tornar protagonistas nos processos

museológicos, configuração que só recentemente começa a modificar. Para tanto,

visualizaremos nos próximos capítulos a poética e a política em torno dessas

problematizações tendo como estudo de caso o Museu Afro-Brasileiro de Laranjeiras-

SE.

Page 19: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana

REFERÊNCIAS

CHAGAS, Mário de Souza. Memória e Poder: dois movimentos. Universidade

Lusófona de Humanidades e Tecnologias estudos Avançados de Museologia, 2002.

CUNHA. Marcelo Nascimento Bernardo da. Teatro de Memórias, Palco de

Esquecimentos: Culturas Africanas e das Diásporas Negra em Exposições. Tese de

Doutorado em História- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC/SP, 2006.

FRANCO, Maria Ignez Mantovani. Processos e métodos de planejamento e

gerenciamento de exposições. 3º Fórum Nacional de Museus: Planejamento e

organização de exposições, 2008.

FREITAS, Joseania Miranda; CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Reflexões

sobre a exposição temporária do MAFRO/UFBA - Exu: outras faces. Revista Eletrônica

do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio |

MAST - vol. 7 nº 1 – 2014.

LODY, Raul. O negro no museu brasileiro: Construindo identidades/Raul Lody;

[ilustração do autor]. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

REIS, Marilise L.M. dos. Diáspora como movimento social: implicações para a análise

dos movimentos sociais de combate ao racismo. Ciências Sociais Unisinos 46(1):37-46,

janeiro/abril 2010.

SANTOS. Myrian Sepúlveda dos. Entre troncos e Atabaques: Raça e Memória

Nacional. Colóquio Internacional Projeto Unesco 50 anos depois. Salvador, 2004.

SANTOS. Deborah Silva. Apontamentos sobre as culturas negras nos museus no século

XIX. Revista XIX, Artes e Técnicas em Transformação, n. 1, 2014.

SILVA, Nelson Fernando Inocencio da. Museu Afro Brasil no Contexto da

Diáspora:dimensões contra-hegemônicas das artes e culturas negras. Universidade de

Brasília – UnB Instituto de Artes - IdA Programa de Pós-Graduação em Arte. Brasília

2013.

SILVA. Joana Angélica Flores. As mulheres negras e os museus de Salvador: Um

diálogo em branco e preto. Universidade Federal da Bahia. XVIII Simpósio baiano de

Pesquisadoras (es) sobre mulher e relações de Gênero, 2015.

FREITAS. Joseania Miranda; FILHO. José Joaquim de Araújo; BRITO. Jean Herbert

Batista. A capoeira dos mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no acervo do Museu

Afro-Brasileiro da UFBA. Pontos de Interrogação, v. 3, n. 2, jul./dez. 2013.

Page 20: MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS … · à saudade, aos acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem ... Segundo esta autora, a diáspora africana