57
4 MÚSICA ERUDITA BRASILEIRA

Musica erudita brasileira - todas as revistas

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Musica erudita brasileira - todas as revistas

4

M Ú S I C AE R U D I T ABRASILEIRA

Page 2: Musica erudita brasileira - todas as revistas

5

Escrever um panorama da História da MúsicaErudita ou de Concerto no Brasil é umdesafio há muito acalentado. Diferentede outras produções artísticas brasileiras,a música ainda carece de estudosorganizados com o objetivo de contar suahistória e, principalmente, contextualizá-laperante o repertório consagrado da músicaocidental. Essa vertente da produção musicalbrasileira por muitos é considerada comoo último tesouro ainda por ser descobertoe verdadeiramente explorado da culturado país. À exceção do célebre Villa-Lobos,e também de Camargo Guarnieri, poucose conhece a respeito dessa imensa produçãomusical. Isso se dá tanto nos meiosinternacionais como, espantosamente, entreos próprios músicos brasileiros, que bastantesabem e executam Mozart, Beethovene Brahms, mas que pouca informaçãotêm de compositores brasileiroscontemporâneos e mesmo de outros períodos.

Page 3: Musica erudita brasileira - todas as revistas

6

Por outro lado, enquanto a denominada MPB ouMúsica Popular Brasileira é consagrada pelos meiosde comunicação e conhecida internacionalmente comosímbolo da produção musical do Brasil do século XX,a música erudita ou de concerto ainda é um territórioinexplorado, quer pelos estrangeiros, quer pelospróprios músicos brasileiros. Diferentementeda produção de MPB, que abrange dos últimos anosdo século XIX aos dias atuais, a música “clássica”no Brasil está ligada diretamente ao início dacolonização pelos portugueses e perpassa pelos cincoséculos de transformações e adaptações culturaisocorridas no país.

A respeito de como interagem na cultura brasileiraessas duas realidades musicais complementares,citamos artigo do jornalista Irineu Franco Perpétuo1

que bem exemplifica essa situação:“É que parece cada vez mais que, no Brasil, falar

de música brasileira corresponde a falar de música“popular” brasileira. Claro que a supremacia, emtermos de difusão, da música popular sobre a músicade concerto é um fenômeno mundial. O que tornao caso do Brasil específico é que os principais autorese intérpretes de nossa música popular desfrutamdo status não apenas do carinho das massas, mas o afagoda “inteligentsia”, desalojando a música “clássica”da posição hegemônica mesmo entre as elites. Parao bem ou para o mal, os intelectuais orgânicosbrasileiros, na área de música, são gente como ChicoBuarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento − nãoAlmeida Prado, Edino Krieger ou Gilberto Mendes,por mais que possamos admirar e respeitar o talentodesses compositores. As idéias dos astros da MPB éque são levadas a sério, debatidas e discutidas pelosformadores de opinião pública. Quando acontece umfato de comoção nacional, e a imprensa quer sabera opinião de um músico a respeito, vai perguntar parao Chico. A intenção de voto de Caetano a cada eleiçãopresidencial é sempre repercutida pela imprensa comestardalhaço, mas ninguém vai averiguar em quemNelson Freire ou Antonio Meneses vão votar.

Não se trata aqui de atacar a música popularbrasileira, mas apenas lamentar o deslocamento sofridopela música brasileira de concerto.”

Ao procurarmos os vários fatores a que se devea atual situação de desconhecimento da história e daprodução da música de concerto no Brasil, deparamo-nos com dois principais, que são a falta de programaseditorais eficazes para a publicação de obras compostasno Brasil desde o século XVIII e o própriodesincentivo ou mesmo desinteresse das corporaçõesmusicais em conhecer e programar esse repertório emseus concertos. Diante desse quadro, nada maisoportuno que escrever, ainda que despretensiosamente,esta História da Música Erudita no Brasil, de modomultidisciplinar e em formato de revista.

Para esta publicação elaboramos uma pauta ondesubdividimos os assuntos em três grandes períodoshistóricos: do Descobrimento à Independência, doImpério ao Estado Novo e da Segunda Guerra aos diasatuais, sendo a subdivisão interna de cada fase formadapor artigos de diferentes características. Há os artigoscontextualizantes de um período histórico e que vêema produção musical no âmbito sociológico, e há os queexploram a biografia dos principais compositores decada período, tornando-se importantes verbetes parauma compreensão mais objetiva da biografia eprodução de cada compositor ou período estéticoabrangido. Esse formato, uma vez que esta é umarevista de divulgação de cultura brasileira no exterior,tem como objetivo possibilitar que o leitor, mesmo quejamais tenha ouvido falar a respeito dos assuntosabordados, possa ter uma ambientação históricae social na qual essa música foi produzida.

Acessíveis e interessantes para músicos,ou somente interessados em saber mais sobre essaprodução musical, os artigos foram escritos por algunsdos mais atuantes especialistas de cada subdivisão doassunto, entre jornalistas, acadêmicos e musicistas.A presença do CD anexo, assim como as bibliografiase discografias sugeridas, servem como ilustração a cadaassunto abordado nos artigos. Desse modo,pretendemos tornar a revista ainda mais dinâmica,possibilitando que a mesma possa ser utilizada comoum guia referencial para aqueles que pretendemcomeçar a se enveredar pelo tema, e até servir comobase bibliográfica para a elaboração de pequenas aulas.

Dentre as publicações mais importantes de História

Page 4: Musica erudita brasileira - todas as revistas

7

da Música no Brasil, sendo escritas cada qual porsomente um autor, podemos citar as de VicenteCernicchiaro, Renato de Almeida e Mário de Andrade,ainda nas décadas de 1920 e 30, passando por LuizHeitor Corrêa de Azevedo nos anos 60, Bruno Kieffernos anos 70 e Vasco Mariz em dias atuais.Nesta Textos do Brasil, por sua característicamultidisciplinar unindo conhecimentos específicospara cada assunto abordado, pretendemos contribuirpara incrementar e dar nova visão sobre essa nãovasta, porém importante, bibliografia existentea respeito do tema.

O primeiro texto da revista, “Música e sociedadeno Brasil colonial”, assinado por Rogério Budasz, tratainicialmente da música composta e utilizada pelosjesuítas com o objetivo de catequizar os povosindígenas brasileiros durantes os dois primeiros séculosda colonização. Apesar de não existir documentaçãomusical remanescente do período, o pesquisador fazuma minuciosa e aprofundada pesquisa sobre esseprocesso, tendo como fonte o trabalho realizadopelo emblemático Padre José de Anchieta, buscandoem suas notas as informações necessárias paraa reconstituição provável desse material. No mesmoartigo, Budasz trata da produção musical para os versosdo ilustre poeta da Província da Bahia ainda no séculoXVII, Gregório de Matos, podendo ser uma dasprimeiras informações a respeito de uma prática demúsica não-litúrgica ou profana em nosso território.Desta também não restou documentação musicalespecífica, porém é também possível realizar umprocesso comparativo e de reconstituição baseadoem manuscritos musicais existentes em Portugal, a quesão feitas referências em documentos da época.

Ainda no século XVII e início do XVIII temos,para não deixar de citar, o caso da música compostana região das Missões Jesuíticas dos Índios Guaranis −hoje pertencentes ao território brasileiro no Suldo país, mas que no período pertenciam à Coroaespanhola −, sendo sua produção artística e musicalmais diretamente ligada à arte barroca praticadaem países como Argentina, Paraguai e Bolívia.Para conhecermos mais a respeito desta produção,basta que conheçamos os trabalhos editoriais

e de partituras, assim como os registros musicais emdiscos e sobre música barroca hispano-americana.

Tratando a pauta com respeito a uma ordemcronológica e contextual passamos, a seguir, a tratar damúsica sacra no Brasil, sobretudo na segunda metadedo século XVIII e primeira metade do XIX.

Neste segundo artigo, “A Música no Brasil Colôniaanterior à chegada da Corte de D. João VI”, assinadopor Harry Crowl, é abordado um aspecto maisdifundido, porém também pouco conhecido daprodução musical do Brasil colônia, que é a músicasacra composta pelos mestres-de-capela nas sedes deBispados e a atuação dos músicos junto às Irmandadesleigas, sobretudo nas províncias das Minas Gerais, SãoPaulo, Bahia e Pernambuco.

Esse artigo trata justamente da música a partirdo primeiro documento musical encontrado, que é umrecitativo e ária da Bahia datado de 1759, e contextualizaas produções nordestinas do mesmo período para,aí sim, dar total ênfase à mais importante escolade compositores do período colonial, que é a das MinasGerais da segunda metade do século XVIII. É um textobastante completo, que contempla a produção de váriosnomes importantes do período, como Emerico Lobo deMesquita, Francisco Gomes da Rocha, Marcos CoelhoNeto, João de Deus de Castro Lobo, entre outros.

Nesta nossa introdução não podemos deixarde explicar, mesmo que brevemente, como esse estilomusical se estabeleceu no Brasil colonial,principalmente nos séculos XVIII e XIX. Essa

A música “clássica”no Brasil está ligada

diretamente ao início dacolonização pelos portugueses eperpassa pelos cinco séculos de

transformações e adaptaçõesculturais ocorridos no país

Page 5: Musica erudita brasileira - todas as revistas

8

linguagem musical eminentemente italiana tem umatrajetória interessante: D. João V de Portugal, a partirda década de 1710, manda jovens compositoresportugueses estudar na Itália como bolsistas, sobretudoem Roma e Nápoles, a fim de absorver o estilo musicalitaliano, que era o predominante na época, e trazê-lopara Lisboa. Do mesmo modo, compositores italianoscomo Domenico Scarlatti são levados a Portugal paradirigir a música na Sé e na corte lisboeta. Comoa mais importante colônia do império portuguêsdo período, o Brasil tem uma grande atividade musicale está em estreito contato com as novidades vindasda metrópole, passando também a ter sua produçãomusical nos mesmos moldes de Portugal. Com adescoberta do ouro, sobretudo na província das MinasGerais, outros importantes centros urbanos como VilaRica surgem para, além das tradicionais grandescidades como Salvador e Rio de Janeiro, possuíremintensa atividade musical, que caracterizará um dosmais profícuos momentos da história musical brasileira.

No entanto, não há parâmetro para astransformações nas atividades culturais e mesmo sociaisdo Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VIde Portugal para o Rio de Janeiro, que teve o fim desalvaguardar a alta administração portuguesa dainvasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em 1808.

O artigo que se segue, “Música na Corte do Brasil:Entre Apolo e Dionísio 1808-1821”, assinado pelomusicólogo e historiador Maurício Monteiro, começajustamente a falar das grandes mudanças sociológicase estilístico-musicais que se seguem após esteimportante momento da História do Brasil.

Com o objetivo de finalizar essa primeira sessão,segue, por nós assinado, artigo a respeito do maisrepresentativo compositor desse período colonialbrasileiro, que é o carioca José Maurício Nunes Garcia(1767 –1830). Esse texto, “José Maurício NunesGarcia e a Real Capela de D. João VI no Riode Janeiro”, trata de sua interessante biografiae de como suas obras sobreviveram através do tempo.Por ser um compositor que trabalhou sempre no Riode Janeiro, sendo sua primeira obra datada de 1783e a última de 1826, sua música também refleteas transformações que essa cidade, como capital

da colônia, sofreu em sua música e relações sociais.Esses anos foram intensos também para as artes

plásticas no Brasil, com a vinda da Missão ArtísticaFrancesa de 1817 e de músicos como o compositoraustríaco Sigismund Neukomm – que veio na missãodiplomática do Duque de Luxemburgo a serviçode Luís XVIII de França – e que permaneceu noRio de Janeiro por cinco anos, sofisticando a produçãode música instrumental na corte como música parapiano, de câmara e até mesmo sinfônica. Graçasà presença desse compositor, os músicos atuantes nacidade puderam travar contato com o que havia demais relevante da produção musical centro-européia,como a Missa de Réquiem de Mozart, regida por JoséMaurício em 1819, e os oratórios As Estaçõese A Criação de Joseph Haydn, este último tambémcomprovadamente regido por José Maurício em 1821.

Nos anos que seguiram ao processo deIndependência do Brasil de Portugal, ocorrida em1822, as atividades culturais sofreram um grandedeclínio em comparação aos faustos anos da presençada corte portuguesa no Rio de Janeiro. O início de umalonga reestruturação se inicia com a criação doImperial Conservatório de Música, atual Escola deMúsica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, queteve como seu primeiro diretor o autor do HinoNacional Brasileiro, Francisco Manoel da Silva,que durante o tempo de José Maurício esteve entreseus alunos diletos.

Esse período se caracterizou por uma certadesestruturação da Real Capela de Música,transformada em Imperial Capela, e seus músicos –entre eles seus mestres-de-capela José Maurício NunesGarcia e Marcos Portugal – sofreram sérias dificuldadesfinanceiras. Essa época coincidiu também coma ascensão de Rossini nos teatros do mundo todo,passando a ser um novo parâmetro para a produçãooperística italiana. As óperas de Rossini fizeram tantosucesso no Brasil que, mesmo durante a estada do ReiD. João VI no Rio de Janeiro, várias de suas óperasforam encenadas. Entre elas, sobretudo, Il Barbiere diSeviglia e La Cenerentola, com diferenças por vezes depoucos meses em relação às estréias européias. Essamodificação no gosto serviu de modelo para a criação

Page 6: Musica erudita brasileira - todas as revistas

Músicae sociedadeno Brasilcolonial

Carlos Julião. Cortejo da Rainha Negrana Festa de Reis. Aquarela coloridado livro “Riscos illuminados de figurinosde brancos e negros dos uzosdo Rio de Janeiro e Serro Frio”.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –DIVISÃO DE ICONOGRAFIA

ROGÉRIO BUDASZ

14

Page 7: Musica erudita brasileira - todas as revistas

Sem levar em conta alguns casos isolados de portuguesese franceses fixando-se na costa brasileira, por livrevontade ou não, durante as primeiras décadas do séculoXVI, a colonização e o efetivo povoamento dessaregião por europeus e seus descendentes tiveram inícioapenas na década de 1530. Missionários religiosostambém começaram a se estabelecer nessa época,sendo o grupo mais importante a Companhia de Jesus,que chegou em 1549 e fundou vários colégios ao longoda costa brasileira.

O povoamento da costa brasileira nos doisprimeiros séculos após a descoberta pelos portuguesesfoi condicionado pelos ciclos econômicos do pau-brasile da cana-de-açúcar, esse último marcando tambémo início da presença negra no Brasil. Os colonos eraminvariavelmente homens que estabeleciampropriedades rurais e, geralmente, amasiavam-secom as nativas, originando um novo tipo étnico,o mameluco, que se tornaria o principal responsável

pela expansão territorial da colônia. A colonização foimarcada por iniciativas e regulamentaçõescontraditórias, que, enquanto estimulavam a vindade colonos, reprimiam o desenvolvimento de umaidentidade brasileira por proibir o surgimento de casasimpressoras, periódicos e universidades.

Para o colono, a única forma de literatura eramuitas vezes aquela transmitida oralmente, nosromances populares ibéricos de teor histórico oumoral. Muitos desses romances, geralmente cantadossobre melodias simples para não dificultara inteligibilidade da narrativa, permanecem vivos atéhoje na tradição popular tanto em Portugal comono Brasil, e sofrendo poucas transformações nessesquinhentos anos, como é o caso de Conde Claros,A Bela Infanta, Gerineldo, e tantos outros.

Além desses, o repertório musical dos primeiroscolonos e seus descendentes incluiria também cantosde trabalho para acompanhar ações rotineiras,

15

Page 8: Musica erudita brasileira - todas as revistas

16

acalantos e cantigas, tanto em português como em tupi.A primeira geração de brasileiros crescia, assim,ouvindo romances, cantigas e ritmos ibéricos cantadose tocados na viola pelo pai, enquanto era embaladapelos acalantos da mãe tupi em seu idioma. Quer fossepelo seu conteúdo considerado “lascivo” ou pela suaassociação com os cultos nativos, algumas daquelascantigas, tanto ibéricas como tupis, escandalizaramos missionários, induzindo-os a comporem versõespias, ou “divinizadas”. José de Anchieta era mestrenessa transmutação e ensinava também as doutrinas,orações e hinos católicos no idioma tupi.

Fora do contexto missionário, também eramcomuns as bandas de corporações militares ou deescravos, mantidas pelos latifundiários mais destacadoscomo aparato de ostentação e demonstração de poder,ao realizarem entradas pomposas nas vilas ao som dosclarins, ou para impressionar visitantes. Promovidaspelas autoridades seculares e religiosas, várias festas,como as de Corpus Christi e da Visitação de SantaIsabel, incluíam procissões, música e danças, trazendoalegorias, mascarados e coreografias de índios e negros.Para o acompanhamento costumavam ser usadostambores, pandeiros, gaitas de fole, pífanose charamelas — termo esse que poderia incluir tantoinstrumentos de palheta, como a chirimia ibérica,quanto instrumentos de bocal, como as cornetas,sacabuxas, trompas e outros. Além disso, nas festase outros congraçamentos ao ar livre poderíamos,tal como hoje em dia, encontrar cantores repentistas,numa tradição que remonta aos segréisda Idade Média.

Tais festas e procissões, tal qual em Portugal,muitas vezes funcionavam como pretexto para

a socialização e diversão, como satirizaria o poetaGregório de Mattos no final do século XVII. Contudo,a despeito de várias regulamentações repressoras e dasopiniões de alguns moralistas, o congraçamento entreescravos era geralmente tolerado “para evitar malesmaiores”, no dizer de Antonil, pois a mistura de raçastambém dificultava a identificação étnica de escravosde várias nações e crenças, diminuindo o perigode insurreição. Já a mistura entre negros e branco, erainsistentemente reprimida pelas autoridades — e issoaté o início do século XX —, o que não parece jamaister surtido o efeito desejado, como o comprovam nãosó as descrições de viajantes como também o fatode terem sido reprisadas várias vezes no decorrer dosséculos as prescrições contra o ajuntamento de brancose escravos nas festas.

Quanto à música oficial do Estado e da Igreja,nota-se já no século XVI a tentativa de reproduzirem miniatura o estabelecimento musical português.Existiam, no entanto, algumas diferenças fundamentaisque dificultavam essa reprodução, ao mesmo tempoem que moldavam novas maneiras de fazer e usara música: se Portugal era pequeno e densamentepovoado, o inverso valia para o Brasil nos doissentidos. A rarefação populacional tornava inviáveiscertas práticas musicais e inúteis outras.

MÚSICA NO ESPAÇO DOMÉSTICO

A maior parte das vilas fundadas durante o primeiroséculo da colonização formava-se ao redor de algunsfortes militares e escolas jesuíticas. Enquanto isso,o grosso da população habitava as propriedades rurais,que cresceram muito — em número e tamanho — nasúltimas décadas do século XVI, passandoa especializar-se no cultivo da cana de açúcare na produção de seus derivados, açúcar e aguardente,assim como no cultivo da mandioca e na produçãoda farinha.

Distante dos centros urbanos — numa época emque eram poucos os que se destacavam —, o engenhoficava assim definido como a principal unidade deprodução e povoamento, enquanto a Casa Grandeera o seu centro administrativo e religioso, na verdadeo principal espaço de sociabilidade. Ali era promovida

Page 9: Musica erudita brasileira - todas as revistas

17

E era por isso que a prática musical também faziaparte da instrução dos filhos e afilhados do senhorde engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefasdiferentes, teriam os músicos escravos — cantorese charameleiros — que participariam do aparatode propaganda e demonstração de poder do senhorde engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejase vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas.

Os primeiros que se dedicaram ao ensinoda música foram os missionários, que, a princípio,concentravam-se nos nativos e usavam a música comoinstrumento auxiliar na conversão e catequese. Depoisdeles, representando oficialmente o estabelecimentomusical da Igreja, aparecem os mestres de capela,enviados de Portugal para organizar a atividademusical de determinada região mas que tambémexerciam a função de instrutores da arte da músicapara quem pudesse pagar. Mais tarde, também passama exercer essa função, embora de forma limitada,os cantores e instrumentistas mais destacadosdentre os índios, negros e mulatos instruídosna música européia pelos missionários e mestresde capela, com o objetivo principal de interpretarem

Alexadre Rodrigues Ferreira.Desenho aquarelado.Viola que tocam os pretos.Desenho aquarelado do livroViagem filosófica às Capitaniasdo Grão-Pará, Rio Negro, Cuiabá.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃODE ICONOGRAFIA

as composições por eles preparadas.Evidentemente, o filho de um senhor de engenho

não entraria numa relação mestre-aprendiz com omestre de capela local. Esperava-se que tomasse contados negócios do pai, fosse estudar em Portugal ouseguisse a carreira eclesiástica — podendo, neste últimocaso desenvolver suas habilidades musicais de maneiramais aprofundada. Este tipo de interesse musical nãoprofissional era bastante comum entre a aristocracia eburguesia abastada portuguesa, a ponto de váriosnobres, incluindo reis e príncipes, tornarem-secompositores competentes.

Sendo o profissionalismo musical indicativo debaixa estatura social, isso talvez explicasse o porquê daquase inexistência de compositores brancos nas MinasGerais do século XVIII (com exceção dos portuguesesenviados com a expressa finalidade de servirem comomestres-de-capela), numa época em que, após adescoberta do ouro, multiplicavam-se os centrosurbanos no interior da colônia, multiplicando-setambém as oportunidades de trabalho de cantores,instrumentistas e compositores.

Todavia, para a elite brasileira dos séculos XVIIe XVIII, mesmo desdenhando o profissionalismomusical, o diletantismo na música era qualidadeapreciável. A habilidade como compositor é colocadapor historiógrafos e bibliógrafos portuguesese brasileiros em pé de igualdade com a produçãoliterária, e a proficiência na execução à violaou à harpa equivaleria aos dotes poéticos e à instruçãonas assim chamadas artes liberais. De fato, inventários

a educação civil e religiosa, bemcomo os encontros sociais, porocasião de batizados, de casamentos,e da hospedagem de visitantes.Nesse contexto, a música eracultivada como auxiliar no fluirdas atividades sociais, comopassatempo na intimidadedo lar, acompanhando momentosde devoção religiosa ou comodemonstração de civilidade e poderpara os olhos e ouvidos externos.

Page 10: Musica erudita brasileira - todas as revistas

18

da época comprovam que o mobiliário das casasgrandes costumava incluir harpas, violas e cítaras, alémde dispor de aposentos usados como escolas, ondeos filhos eram instruídos em aritmética, gramática,retórica, religião e música.

Na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques deAlmeida Prado menciona, entre a aristocraciapaulistana de séculos passados, além de harpistase tocadores de “vários instrumentos”, dois tocadoresde viola. Frei Plácido, “eminente na prenda de tangerviola”, tomou o hábito em Alcobaça e teria tocado parao rei D. Pedro II de Portugal. Francisco RodriguesPenteado, pernambucano, demonstrava tal “mimo”na mesma arte que em 1648, voltando de Lisboa, foiconvidado por Salvador Correia de Sá e Benevidesa instruir “nos instrumentos músicos” suas filhas e seufilho Martim Correia. Evidentemente, em se tratandodas famílias aristocráticas brasileiras, os dotes musicaisnão poderiam ser utilizados como forma permanentede sustento: são práticas socialmente distintas o cultivoda música como profissão ou como “elemento decivilidade”, usando a expressão da época. À épocado convite de Sá e Benevides, Penteado encontrava-sedesprovido de recursos, pois havia esbanjado a fortunapaterna em Lisboa, e a solução encontrada, enquantobuscava formas mais nobres de aquisição de capital,seria remediar-se instruindo os filhos do mais poderosobrasileiro de seu tempo. Algum tempo depois,Penteado se estabeleceria em São Paulo, após casar-secom a filha de um latifundiário.

Fora do contexto religioso, além da citação deAlmeida Prado, a harpa aparece também em umpoema de Gregório de Mattos, animando uma festa.Mesmo utilizada como principal acompanhante das

funções religiosas pelo interior do Brasil até asprimeiras décadas do século XVIII, a harpa não pareceter-se difundido muito como instrumento doméstico.Nem mesmo o cravo parece ter exercido essa funçãoem larga escala, permanecendo neste papel a violaaté ser sobrepujada pelo piano no século XIX.

Principal acompanhador dos romances, cantigas,tonos e modinhas, além de ótimo veículo para a músicasolo, a viola de mão era instrumento de versatilidadeincontestável. Suas variantes no século XVI incluíamum instrumento de quatro ordens de cordas (a guitarrarenascentista), de seis ordens (conhecida na Espanhacomo vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens(muitas vezes chamada guitarra barroca). Este últimoinstrumento originaria mais tarde a viola caipirabrasileira, as diversas violas regionais portuguesas,e a guitarra espanhola, ou violão. Nomes de tocadoresque se especializaram na viola de cinco ordens, comoFelipe Nery da Trindade, Manuel de Almeida Botelhoe João de Lima aparecem com destaque na obra deDomingos do Loreto Couto, historiógrafopernambucano do século XVIII.

Além de chantre da catedral de Salvador porvários anos, João de Lima — conhecido do poetaGregório de Mattos — foi pedagogo e compositor,deixando obras de música sacra e profanae dominando a execução musical em váriosinstrumentos. Manuel de Almeida Botelho passouvários anos em Portugal, protegido do patriarcade Lisboa e do Marquês de Marialva. Loreto Coutoatesta que, além de muita música sacra, Botelho teriacomposto “sonatas e tocatas tanto para viola comopara cravo”, além de música de salão, comominuetes e tonos.

Forma de canção erudita bastante difundida naPenínsula Ibérica e América Latina, o tono humanogeralmente apresenta temática árcade, forma estróficacom refrão, e textura a uma ou duas vozes agudascontra um baixo, constituindo-se assim num ancestralda modinha portuguesa. Quanto aos tonos de Botelho,talvez se assemelhassem àqueles compostos peloportuguês Antônio Marques Lésbio, comacompanhamento à viola, ou mesmo com a peçaMatais de Incêndios, integrante dos manuscritos

Page 11: Musica erudita brasileira - todas as revistas

19

de Mogi (da década de 1720 ou 1730), e trazidosnovamente à tona graças às pesquisas de JaelsonTrindade, embora ainda reste alguma dúvida quantoa se esta peça é um tono humano, como sugeridopor Trindade, ou um vilancico natalino, conformeestudo de Paulo Castagna.

Embora não tenhamos notícia da sobrevivênciade peças compostas por aqueles violistaspernambucanos e paulistas, podemos ter uma idéiabastante aproximada do que tocavam, através dasfontes portuguesas do início do século XVIII, paraa viola de cinco ordens contendo o repertório-padrãopara a formação do instrumentista luso-brasileirodaquela época: danças italianas, francesas, ibéricase de influência afro-brasileira como o canário, o vilão,o arromba, o cumbé e o cubanco, além de muitasfantasias e rojões.

É importante lembrar que o repertório popularibérico e latino-americano era muito menosheterogêneo no século XVII do que em nossos dias.Portugal havia reconquistado sua independência daEspanha apenas em 1640. Naquela época, durantea infância e juventude de Gregório de Mattos, oselementos que ajudariam a definir a brasilidade apenascomeçavam a tomar forma. Muita poesia tanto noBrasil como em Portugal ainda era escrita em espanhol,e, enquanto peças de Calderón e Lope de Vega eramrepresentadas em Salvador, autores brasileiros tambémescreviam teatro naquele idioma. Naturalmente,a música desse período também pareceria a nossosouvidos bastante espanhola, tratando-se menos de umainfluência nacional específica do que da evidência deum estilo compartilhado e generalizado por todaa Península Ibérica e América Latina, como o atestam,por exemplo, os vilancicos e tonos de Gaspar

Fernandes e Antonio Marques Lésbio, bem comoo repertório português para viola e teclado.

Na ausência de documentos musicais, uma ótimafonte de informações sobre a música não-religiosatocada e cantada no Brasil seiscentista é a obra poéticade Gregório de Mattos (1636-1696). Além de descreverfunções musicais e teatrais, de mencionarinstrumentistas e cantores e de citar peças instrumentaiscomuns tanto em Portugal como na Espanha e AméricaLatina, Mattos usa vários tonos humanos espanhóiscomo refrão ou base para glosas de sua autoria. Emoutros casos, Mattos usa modas profanas em português,ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos”cantavam. Religiosos e moralistas continuavamencarando com suspeita esse repertório, sendo célebrea condenação de Nuno Marques Pereira, atribuindoaquelas modas à invenção do demônio — o qual, contaPereira, era exímio tocador de viola.

Na segunda metade do século XVIII, o repertóriomusical que passa a difundir-se pela colônia é, por umlado, o de danças afrancesadas como o minuetee a contradança — as principais coreografias de salão noBrasil até o início do século XIX — e, por outro lado, ascanções simples — as modas — agora influenciadas peloestilo galante da ópera e música sacra napolitanas, commelodias e harmonias ainda mais simples e adocicadas,despretensiosamente denominadas “modinhas”.Se a princípio estas apresentavam uma temáticapastoril árcade, vinculada ao gosto poético da época,o estilo é gradativamente influenciado pelo contextoafro-brasileiro, tanto na maneira de falar como nosritmos e harmonias do lundu — aquela dança que tantoescandalizou viajantes do norte da Europa —originando assim a modinha brasileira, que acabariavoltando para Portugal nas obras de poetase compositores como Domingos Caldas Barbosae Joaquim Manuel da Câmara.

Felizmente, foi preservada muita música desseperíodo, sendo notáveis as peças coletadas pelosviajantes austríacos Spix e Martius, as modinhasbrasileiras preservadas na Biblioteca da Ajudae na Biblioteca Nacional de Lisboa, e as peçasinstrumentais contidas no livro de saltériode Antônio Vieira dos Santos, compilado no início

Page 12: Musica erudita brasileira - todas as revistas

20

do século XIX. Há ainda uma única peça parateclado do século XVIII, a chamada Sonata Sabará,cuja autoria ainda permanece cercada de dúvidas.Finalmente, os duetos concertantes para dois violinosde Gabriel Fernandes da Trindade, da segundadécada do século XIX, nos dão uma idéiado estiloda música de câmara para cordascomposta nos últimos tempos do Brasil-colônia.

CASAS DE ÓPERA E ACADEMIAS

Uma espécie de teatro moral com intervençõesmusicais já se encontra presente no primeiro séculoda colonização, nos autos preparados por Joséde Anchieta e Manuel da Nóbrega. Tal comona Europa, a finalidade didática do teatro jesuíticoera óbvia, e os números musicais cumpriam a funçãode tornar mais atraente a mensagem de submissãoà igreja e ao rei. É evidente também a filiação desseteatro aos autos ibéricos seiscentistas, em especialos de Gil Vicente, sempre intercalando enredos levese cômicos com danças, canções e romances populares.Nos séculos seguintes, os modelos passariama ser Lope de Vega e Calderón.

São bastante numerosos os relatos sobrea representação de comédias musicadas nas casasabastadas das cidades, ou mesmo ao ar livre, comoaquelas para as quais o pernambucano Antônio daSilva Alcântara compôs a música em 1752. É quasecerto que tais comédias — a grande maioria escrita emidioma espanhol — seguissem o modelo da zarzuela deAntonio de Literes e Sebastián Durón, com árias, corose alguns recitados alternando com diálogos falados.

Durante o século XVII, não se tem notícia nacolônia da apresentação de óperas no sentido modernodo termo, ou seja, a encenação de um enredointegralmente posto em música. Mesmo no séculoXVIII, além do modelo das óperas de Antônio José daSilva, com diálogos falados e poucos números musicais,não era incomum encenarem-se libretos operísticossem qualquer emprego da música, funções que erammesmo assim denominadas “óperas”.

Sendo o teatro e a ópera — nas suas variadasacepções — desde cedo explorados no Brasil comoinstrumentos de doutrinação ideológica, não tardariama aparecer, patrocinadas pelo poder público, casasespecificamente destinadas à representação de dramas,comédias e entremezes em música — as casas de ópera— que visavam promover uma educação cívica paralelaà educação religiosa da Igreja. No decorrer do séculoXVIII, toda vila de maior porte passa a possuir,além da igreja, uma casa de ópera, aparecendoas duas muitas vezes lado a lado. Seguindo a marchade povoamento do interior que se sucede à descoberta

Romances Populares:

TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron

Discos; faixa 5: Romance da Nau Catarineta

DO ROMANCE AO GALOPE NORDESTINO. Quinteto Armorial.

Discos Marcus Pereira. Romance da Bela Infanta

José de Anchieta:

TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron

Discos; faixa 8: Quién te visitó, Isabel?; faixa 9: Mira Nero

A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura

e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 6: Venid a sospirar

con Jesu amado (Companhia Papagalia)

Marinícolas:

HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.

Estúdio Eldorado; faixa 2

TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron

Discos; faixa 12

Matais de Incêndios:

HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL I. Ricardo Kanji.

Estúdio Eldorado; faixa 36

A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura

e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 15 (Klepsidra)

Sonata ‘Sabará’:

NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Collegium Musicum de Minas. Prod.

independente, faixa 5

Modinhas:

MARÍLIA DE DIRCEU. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela

Nogueira. Estúdio Eldorado.

MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX. Manuel Morais

e Segréis de Lisboa. Movieplay; faixa 8: Eu nasci sem coração;

faixa 13: Ganinha, minha Ganinha; faixa 19: Menina, você que

tem?

Coleção de Spix e Martius:

VIAGEM PELO BRASIL. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela

Nogueira. Estúdio Eldorado

Recitativo e Ária:

HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.

Estúdio Eldorado; faixas 11 e 12

Duetos concertantes:

GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES. Maria Ester

Brandão, Koiti Watanabe. Paulus

DISCOGRAFIA

Page 13: Musica erudita brasileira - todas as revistas

21

do ouro, encontramos casas de ópera em váriaslocalidades das Minas Gerais, de Goiáse tão longe quanto em Cuiabá, no centrogeográfico da América do Sul.

O repertório das casas de ópera no século XVIIIe boa parte do XIX incluía principalmente dramasde Metastasio, como Ezio in Roma e Didone abbandonata,que, além de transmitir alguma lição moral, retratavamo herói como líder firme, sábio e magnânimo, masusando de disciplina quando necessário. Os libretosescolhidos eram bastante convenientes paraa finalidade proposta, pois a platéia fatalmenteidentificaria o herói com o soberano português.Embora o musicólogo Francisco Curt Lange tenhacompilado uma lista impressionante de óperasrepresentadas no Brasil durante o século XVIII,apenas algumas páginas de partituras sobreviveram,impossibilitando qualquer tentativa de reconstituição.Do período joanino, restam de Bernardo José de SouzaQueiroz a música de cena para uma peça teatralde 1813, dois entremezes e uma ópera, Zaíra, compostano Rio de Janeiro antes de 1816, além de algunsnúmeros avulsos de óperas do baiano Damião Barbosade Araújo. Além disso, muita pesquisa resta a serrealizada sobre as óperas de autores europeus —Marcos Portugal e Pedro Antônio Avondano, paracitar os mais importantes — representadas em casasde ópera brasileiras.

Por volta do final do século XVIII, devidoà escassez do ouro e ao fim do patrocínio público, ascasas de ópera desaparecem ou passam a ser definidas

mais e mais como espaços daqueles que podem pagare dos que, à custa de muita bajulação, conseguem umlugar ao lado daqueles. Já os atores, cantorese instrumentistas sempre foram na sua maior partemulatos e negros, cuja instrução teria sido providaou pelos mestres de capela locais ou, de maneira maisinformal, pelos diretores musicais dos regimentosmilitares ou das bandas de músicos dos engenhose minas. Algumas vezes, tais artistas conseguiam ir bemalém da casa de ópera local, como foi o caso dacantora mulata Joaquina Maria da Conceição Lapinha,que apresentou-se com sucesso em teatros portugueses.

Não se colocando na posição subserviente demúsico ou ator profissional, o rico e o letrado teriamrestritas possibilidades de demonstração de suashabilidades performáticas, fossem elas de poeta,intérprete ou mesmo compositor. Além do espaçodoméstico, havia a academia, um misto de clubeliterário e sociedade secreta que se difundiria pelosprincipais centros urbanos do Brasil a partir da segundametade do século XVIII. É no contexto das academias,ligadas à estética árcade, que surgem nomes como osde Tomás Antônio Gonzaga (cujas poesias foram depoismusicadas na série de modinhas do ciclo de Maríliade Dirceu) e Domingos Caldas Barbosa (cristalizadorda modinha brasileira), e de obras como a cantataHerói, egrégio, douto, peregrino, mais conhecida comoRecitativo e Ária para José Mascarenhas, compostaem Salvador em 1759.

Não sobreviveu até nossos dias o repertóriode música de câmara que talvez fizesse parte dasreuniões daqueles acadêmicos. Alguns deles possuíaminstrumentos de arco, como ficou registrado nos autosde devassa da Inconfidência Mineira. Além disso,comprovando a prática da música de câmara européiano interior do Brasil, há o relato de Spix e Martius,sobre um mineiro que intercepta os viajantesno interior da mata e os convida a irem à sua casa,onde, com instrumentos e partituras cedidas peloanfitrião, executam um quarteto de Pleyel.

ROGÉRIO BUDASZ

Doutor em musicologia (Phd) pela Universidade do Sul da Califórnia, mestre em musicologia pela Universidade de São Pauloe professor da Universidade Federal do Paraná.

Page 14: Musica erudita brasileira - todas as revistas

HARRY CROWL

A música noBrasil Colonial

anterior àchegada da

Corte deD. João VI

22

Page 15: Musica erudita brasileira - todas as revistas

OS AVANÇOS DOS ESTUDOS MUSICOLÓGICOS NOS

ÚLTIMOS ANOS, NA ÁREA DA MÚSICA PRODUZIDA

NO BRASIL NA ÉPOCA DA COLÔNIA, TÊM APONTADO

SEMPRE PARA UM FATO QUE JÁ NOS PARECE

IRREVERSÍVEL – DESCONHECE-SE TODA A MÚSICA

PRODUZIDA EM TERRAS BRASILEIRAS EM PERÍODO

ANTERIOR À SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII.

ASSIM COMO TAMBÉM DESCONHECEMOS A MAIOR

PARTE DO QUE SE PRODUZIU NAS REGIÕES NORTE

E NORDESTE EM TODA A ÉPOCA COLONIAL.

23

Page 16: Musica erudita brasileira - todas as revistas

24

Em Recife, encontramos o nome de Luís ÁlvaresPinto (1719-1789). Esse compositor, regente, poeta eprofessor viajou, por volta de 1740, para Lisboa, ondeestudou com Henrique da Silva Negrão, organista dacatedral de Lisboa, e que foi discípulo de Duarte Lobo.Na época em que viveu na capital portuguesa, elecompunha, tocava violoncelo na Capela real, faziacópias de música e dava aulas em casas de nobres.Na relação de músicos portugueses publicada porJosé Mazza, em 1799, ele informa o seguinte sobreesse compositor: “Luis Alvares Pinto naturalde Pernambuco, excelente Poeta Português e Latino,muito inteligente na língua Francesa, e Italiana;acompanhava muito bem rabecão, viola, rabeca veioa Lxa aprender contraponto com célebre Henrique daSilva, tem composto infinitas obras com muito acertoprincipalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humasexequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiroa quatro coros, e ainda em composições profanas temescrito com muito aserto” (sic).

Em 1761 já estava de volta a Pernambuco,profissionalmente atuante. Nesse mesmo ano escreveua Arte de Solfejar, cujo manuscrito encontra-sena Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi responsávelpela formação de vários músicos e mestres-de-capela.L. A. Pinto foi também militar, tendo tido a patentede capitão do regimento de milícia confirmadatambém em 1766.

Luís Álvares Pinto foi também um dos primeiroscomediógrafos nascidos no Brasil. Sua peça teatral emtrês atos, Amor Mal Correspondido, foi encenada em 1780.Em 1782, por ocasião da inauguração da igrejade São Pedro dos Clérigos, foi confirmado na funçãode mestre-de-capela, cargo que já desempenhava desde1778 e que ocupou até 1789, ano de seu falecimento.

De suas poucas composições que alcançaramos nossos dias restaram apenas um Te Deum alternado,cuja orquestração perdeu-se, e um Salve Regina para trêsvozes mistas, violinos I e II e baixo contínuo. Constaainda ter composto três hinos a Nossa Senhora daPenha, um hino a Nossa Senhora do Carmo, um hinoa Nossa Senhora Mãe do Povo, um Ofício da Paixão,matinas de São Pedro, matinas de Santo Antônio,novenas, ladainhas e sonatas.

Oconjunto da produção musical encontrado na capitania-geral das Minas Gerais, na época do ciclo do ouro,tornou-se a referência mais antiga da produção musicalartística no Brasil. Salvo alguns poucos exemplosisolados de manuscritos encontrados em outras regiõesdo país, a produção mineira consistiu-se no primeirogrande conjunto de obras musicais disponíveis parao desenvolvimento de um estudo mais aprofundadosobre a expressão musical no país.

Apesar do deslocamento do eixo econômico paraa região das Minas Gerais, é nas capitanias-gerais daBahia e Pernambuco que encontraremos as referênciasmusicais comprovadamente mais antigas do Brasil.Considerando que as descobertas de Mogi-das-Cruzesna década de 1980 apontam para as práticaspolifônicas portuguesas anteriores ao século XVIII,somos obrigados a retomar a antiga capital da colônia,Salvador, como ponto de partida para qualquerconsideração que queiramos fazer sobre a músicaexclusivamente escrita no Brasil, na época anteriorà independência política. Sendo a região por ondeiniciou-se a colonização, a Bahia apresenta nessaépoca uma sociedade já relativamente sedimentada,se comparada com as demais regiões da Colônia.Poderíamos acrescentar a Capitania de Pernambucocomo a segunda região mais importante do pontode vista sócio-cultural e econômico. Nesse sentido,o achado mais importante até agora é uma obrade caráter profano, anônima, composta em 1759,denominada Recitativo e Ária. Esse manuscrito parasoprano, violinos I e II, e baixo contínuo, datado de2/7/1759, está dedicado a José Mascarenhas PachecoPereira de Mello, um importante magistrado da“Casa de Suplicação”, a suprema Corte de Justiçade Portugal, na época. Essa composição, que estábaseada num texto vernáculo, também de autoriadesconhecida, é uma laudatória em homenagemao referido magistrado, que estava ligado à “AcademiaBrasílica dos Renascidos”, uma sociedade intelectualsemelhante à “Arcádia Romana”. O referidomagistrado estava recém-restabelecido de uma longaenfermidade e, ao que parece, o Recitativo e Áriafoi composto especialmente para recebê-lo numadas reuniões da “Academia”.

Page 17: Musica erudita brasileira - todas as revistas

25

Se Luis Álvares Pinto foi o único compositornascido no Brasil que teve a oportunidade de estudarem Lisboa — de acordo com a documentaçãoconhecida até o momento —, por outro lado,o português André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 —São Paulo, 1844) foi um músico enviado pelametrópole, no século XVIII, para ocupar a funçãode mestre-de-capela numa vila importante da colônia.Pouco se sabe sobre sua formação musical, apenas quefoi discípulo de José Joaquim dos Santos (ca. 1747 —1801?), compositor português aluno do napolitanoDavid Perez (1711 — 1778), importante músico quesistematizou o ensino musical em Portugal, cujas obrasforam amplamente difundidas inclusive no Brasil.André da Silva Gomes nasceu em Lisboa em 1752 eveio para o Brasil em março de 1774. Assim quechegou, foi contratado para ocupar o cargo de mestre-de-capela da Sé de São Paulo, tornando-se o quartoocupante da função. Suas atividades foram intensas,

pois, ao que parece, havia uma necessidadede reorganização dos serviços musicais da Sé. Desdesua chegada até 1801, foi também o responsável pelamúsica nas festas reais anuais da Câmara de São Paulo.Silva Gomes teve vários discípulos e agregados, entreeles futuros mestres-de-capela e organistas, como foio caso de Bernadino José de Sena, que foi seu agregadoem 1776 e mais tarde, desempenhou o cargode organista na vila de Nossa Senhora do Rosáriode Pernaguá, atual Paranaguá, PR.

Como já acontecia nas demais partes da colônia,o compositor precisou atuar em outras profissões parapoder sobreviver. Após requerer algumas funções quelhe permitiriam independência econômica em relaçãoà capela da música da Sé, foi nomeado interinamente,em 1797, para o cargo de professor régio de gramáticalatina da cidade de São Paulo, tendo sido efetivado porD. Maria I no cargo de professor de latim em 1801.André da Silva Gomes abandonou todos os serviços

Apesar do deslocamento do eixo econômicopara a região das Minas Gerais, é nas capitanias geraisda Bahia e Pernambuco que encontraremos as referênciasmusicais comprovadamente mais antigas do Brasil.

J. J. Emerico Lobode Mesquita.Tércio (1783).Fotografiado originalautógrafo.FUNARTE

Page 18: Musica erudita brasileira - todas as revistas

26

musicais além da Sé, de cujo salário abriu mãoem benefício da capela de música da catedral, que nãodeixou por solicitação expressa do bispo. As primeirascomposições de A. da Silva Gomes, datadas eassinadas, remontam ao ano de sua chegadaa São Paulo, 1774. Trazidas de Portugal ou copiadasaqui por ele, existem diversas obras de compositoresportugueses e italianos, na maioria salmos. Compôsmais de uma centena de obras. Muitas delas foramrecopiadas posteriormente por outros, sem que setranscrevesse o nome de seu autor. Suas composiçõesmais notáveis são a Missa a 8 vozes e instrumentose a Missa a 5 vozes. Sua última composição foi umaMissa de Natal, 1823, composta para ser executada naMatriz da Freguesia de Acutia (atual Cotia, SP), ao queparece, uma adaptação de outra obra bem anterior.

No último quartel do século XVIII aparece aindao nome de Theodoro Cyro de Souza como mestre-de-capela na catedral da Bahia. Esse é o ultimo caso denomeação direta de Portugal para o cargo em Salvador,e é também o primeiro compositor a atuar na regiãodo qual encontramos exemplos musicais concretos.Nascido em Caldas da Rainha, Portugal, em 1766,Theodoro Cyro de Souza recebeu sua formaçãomusical no Seminário Patriarcal em Lisboa,provavelmente sob a orientação de José Joaquim dosSantos. Em 1781, partiu de Lisboa para Salvador, ondeassumiria a função de mestre-de-capela, como patrocínio de D. Pedro III, da mesma maneira comoocorrera com André da Silva Gomes, em São Paulo.

A obra de Theodoro Cyro de Souza parece tergozado de considerável reputação em toda a região,pois sua única composição encontrada no Brasil atéo momento, os Motetos para os passos da Procissão doSenhor, é uma cópia do final do século XIX realizada

em Alagoinhas − BA, que foi localizada numa coleçãode música para a Semana Santa, anônima, provenientede Propriá − SE, divulgada numa primeira transcriçãopor Alexandre Bispo.

MÚSICA NAS MINAS GERAIS

O isolamento imposto pela Coroa portuguesa, assimcomo o próprio afastamento geográfico da região daCapitania-Geral das Minas Gerais, fará com que toda aorganização da vida cotidiana, religiosa e cultural dessaparte do Brasil torne-se um tanto peculiar, necessitando,assim, de critérios específicos para sua avaliação.

A descoberta do ouro trouxe enormes benefíciospara a Coroa portuguesa, como já se sabe. A partirde 1696, a grande movimentação humana em direçãoao interior do continente fez com que as autoridadesportuguesas regulamentassem a ocupação dessasregiões. Preocupados com o contrabando de riquezas,a Coroa viu-se forçada a proibir a entrada de ordensmonásticas nas regiões recém-ocupadas. Devidoao fato de que o Estado português e a Igreja Católicaformavam uma espécie de unidade corporativa desdeo século XVI, a inviolabilidade dos mosteirose conventos era uma realidade aparentementeirreversível. Portanto, ao mesmo tempo em quea autoridade eclesiástica representava o Estado, elatambém possibilitava o contrabando de ouro e pedraspreciosas diante das autoridades civis, sem que essaspudessem fazer muito a respeito. Diante de tal situação,muito comum nas regiões do Nordeste brasileiro,determinou-se que toda a vida religiosa na regiãodas minas fosse organizada por ordens leigas,ou irmandades formadas por homens comuns,que deveriam contratar todos os serviços relativosao “bom desempenho das funções religiosas”.

Na verdade, o denominativo “pardo” foi criadopelos portugueses para não haver distinção entrenegros forros, mulatos ou mesmo brancosnativos sem posses ou posição social.

Page 19: Musica erudita brasileira - todas as revistas

27

Essas irmandades eram denominadas tambémcomo ordens terceiras, confrarias e arquiconfrarias,de acordo com sua importância na comunidade.Eram distribuídas por etnias, ou seja, homens brancos,pardos ou negros. O Estado colonial incentivavaa rivalidade entre essas agremiações, que cuidavamde desde a construção da igreja até a contrataçãode artistas para a realização da decoração interna,talha, escultura e pintura, assim como a contrataçãode músicos para a criação e interpretação da músicaque deveria ser usada nas cerimônias. A maior partedos músicos e artistas atuantes na região era “parda”,ou seja, de sangue mestiço de brancos e negros.Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelosportugueses para não haver distinção entre negrosforros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem possesou posição social.

A informação mais antiga que temos a respeitode um compositor ou regente ou organista, na antigaVila Rica, é a de que Bernardo Antônio recebeua soma de 200 oitavas de ouro pela música anualde 1715. Esse dado consta no livro de receitas edespesas da Irmandade de Santo Antônio. Ainda naprimeira metade do século XVIII, encontramos osnomes de Francisco Mexia e de Antônio de SouzaLobo, em Vila Rica, assim como o do Mestre Antôniodo Carmo, em São João del Rei. Todas as notíciasrelativas à música em Minas no século XVIII estãorestritas aos livros manuscritos de receitas e despesasdas irmandades. Não há registros de nomeaçõesou informações impressas sobre os compositores, poisa imprensa inexistia na colônia. O cargo de mestre-de-capela era um privilégio das sedes de bispado, portantosomente a vila de Mariana contava com nomeaçõespara essa função. Nas demais vilas encontramosa denominação de “responsável pela música”, o quenão implicava um cargo permanente, pois um músicoresponsável pelo serviço em um ano determinadopoderia ser substituído no ano seguinte.

A documentação musical propriamente ditaencontrada até o momento concentra-se numaprodução posterior a 1770. Na condição de capitalda capitania, Vila Rica, atual Ouro Preto, foi localde atividade mais intensa durante o período de final

do século XVIII até por volta de 1850.O compositor mais antigo cuja obra é parcialmente

conhecida é Ignácio Parreiras Neves (ca. 1730—1794?).A alusão mais remota ao seu nome é a de seu ingressona Irmandade de São José dos Homens Pardos,em 16/4/1752. A partir daí, seu nome aparece comoregente-compositor e cantor (tenor), em várias ocasiõesaté 1793, atuante em quase todas as Irmandadese Ordens 3as de Vila Rica. De sua obra, conhecemosapenas três exemplos bem distintos entre si. São eles:o Credo em Ré maior, a Antífona de Nossa Senhora — SalveRegina e a Oratória ao Menino Deus na Noite de Natal.Nenhuma dessas obras está datada. A mais curiosade todas é a Oratória. Trata-se de uma composiçãosobre texto vernáculo em português. É a únicado gênero encontrada até agora no Brasil. No períodoem que Parreiras Neves atuou como cantor, dois outrosmúsicos importantes foram seus colegas no conjuntovocal. São eles: Francisco Gomes da Rocha e FlorêncioJosé Ferreira Coutinho. Considerando o fato de queesses músicos eram mais novos e que atuaram juntospor mais de 15 anos, acreditamos que esses doistenham sido discípulos de I. P. Neves. Não há qualquerindicação de como esses músicos que viveram naregião das minas aprenderam a arte da solfa. Nãohá menção em qualquer documento da existênciade alguma escola de música. Portanto, a resposta maisrazoável seria a de que eles se desenvolveram numprocesso de iniciação que seguia o modelo de relaçãomestre/discípulo, como no caso dos artistas plásticos,

Luís Álvaresde Azevedo Pinto.Te Deum Laudamus.Secretariade Educaçãoe Cultura dePernambuco, 1968.Restauraçãodo Padre Jaime Diniz.FUNARTE

Page 20: Musica erudita brasileira - todas as revistas

28

como já pode ser constatado.Francisco Gomes da Rocha (1754?—1808) ingressou

na Irmandade da Boa Morte da Matriz de NossaSenhora da Conceição, na Freguesia de Antônio Dias,em julho de 1766, e na Irmandade de São José doshomens Pardos, em junho de 1768.

Em todas essas confrarias, ocupou cargosimportantes, como o de escrivão e tesoureiro.Apresentou-se como regente e contralto em inúmerasfestividades, durante longo período da segunda metadedo séuclo XVIII. Foi também timbaleiro da tropa delinha, segundo o recenseamento de 1804. Nesse mesmorecenseamento consta que Gomes da Rocha contavacom 50 anos na época do mesmo, tendo, portanto,nascido em 1754. De sua produção, conhecemosapenas uma parte mínima, que são as obrasInvitatório a 4 para 4 vozes, 2 trompas, violinos Ie II, e baixo contínuo; Novena de Nossa Senhora do Pilar,de 1789, para 4 vozes, 2 trompas, vln. I e II, violae baixo contínuo; Spiritus Domine, de 1795, para2 coros, 2 oboés, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixocontínuo. Há ainda uma obra incompleta,as Matinas do Espírito Santo, também de 1795.

Florêncio José Ferreira Coutinho (1750—1820) foiregente, cantor (baixo) e trombeteiro do Regimentode Cavalaria Regular. Por três vezes foi contempladocom a contratação para a realização do serviço anualdas festas oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica.Em 1770, entrou para a Irmandade de São Josédos Homens Pardos, que lhe registrouo falecimento em 10/06/1820.

Outros três compositores de Vila Rica quemencionaremos são Marcos Coelho Neto (1746?—1806), Jerônimo de Souza Queiroz (17..—1826?)e o Pe. João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica,1794 — Mariana, 1832).

Coelho Neto, que era trompista, clarinista(trompetista), timbaleiro do 9º Regimento, alémde compositor e regente, exerceu ainda, segundodocumento localizado no cartório do 1º ofício de OuroPreto pelo professor Ivo Porto de Menezes, o ofício dealfaiate. Em 1785 foi designado pelo Governador-GeralLuís da Cunha Menezes para reger a música de trêsóperas e dois dramas reais, por ocasião dos festejos

LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM

MANOEL DIAS DE OLIVEIRA: MISERERE E MAGNIFICAT

IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: SALVE REGINA

Negro Spirituals au Brésil Baroque

Direction: Jean-Christophe Frisch. K617113 - França

LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM

Camerata Antiqua de Curitiba

Regência: Roberto de Regina. PAULUS 11563-0 - Brasil

IGNÁCIO PARREIRAS NEVES:

ORATÓRIA AO MENINO DEUS NA NOITE DE NATAL

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara

Direção: Ricardo Bernardes.

AMERICANTIGA PLCD51837 - Brasil

ANDRÉ DA SILVA GOMES:

MISSA A 8 VOZES E INSTRUMENTOS

Orquestra Barroca do 14º Festival Internacional de Música

Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora

Direção: Luís Otávio Santos

CD 14º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil

VENI SANCTE SPIRITU

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara

Direção: Ricardo Bernardes

AMERICANTIGA, Vol. I PLCD51837 - Brasil

JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA:

MISSA EM MI BEMOL MAIOR

Orquestra Barroca do 12º Festival Internacional de Música

Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora

Direção: Luís Otávio Santos

CD 12º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil

MATINAS PARA QUINTA-FEIRA SANTA

Orquestra Barroca do 11º Festival Internacional de Música

Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora

Direção: Luís Otávio Santos

CD 11o.Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil

MATINAS DE SÁBADO SANTO

Calíope

Direção: Júlio Moretzsohn

Museu da Música da Mariana III (CD - MMM III). Mariana, MG -

Brasil

MISSA PARA 4a FEIRA DE CINZAS

Calíope

Direção: Júlio Moretzsohn. CAL-001 Rio de Janeiro, RJ - Brasil

PE. JOÃO DE DEUS DE CASTRO LOBO:

MATINAS DE NATAL

Coral Porto Alegre e Orquestra

Regência: Ernani Aguiar

CD - FUNPROARTE, Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre,

RS - Brasil

DISCOGRAFIA

Page 21: Musica erudita brasileira - todas as revistas

29

do casamento dos infantes D. João e Mariana Vitória.Em 1804, ano do recenseamento geral de Vila Rica,o compositor declara contar com 58 anos, tendonascido, portanto, em 1746. De sua obra, podemos citaro hino Maria Mater Gratiae, de 1787, o Salve Reginade 1796, e a Ladainha em Ré Maior, denominadaem alguns manuscritos como Ladainha das Trompas.

Seu filho, também chamado Marcos Coelho Neto,foi trompista e trombeteiro do 19º Regimento.Em 1804, ele declarou ter 28 anos. Faleceu em 1823.

Acreditamos que as obras que levam o nomede Marcos Coelho Neto são da autoria do pai, poisapresentam características formais muito semelhantesentre si, e o filho seria demasiadamente jovem quandoo hino Maria Mater Gratiae foi composto.

Jerônimo de Souza Queiroz foi organistae organeiro. Era filho do português Jerônimo de SouzaLobo Lisboa e Anna Maria Queiroz Coimbra.Seu nome tem sido freqüentemente confundido como de seu pai, pois Souza Lobo foi, igualmente, umimportante músico em Vila Rica. Souza Queiroz atuouna Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar entre1798 e 1801. Em 1826, compôs a Missa e Credoa 4 vozes com acompanhamento “d’órgão”. A dataexata do seu falecimento é ainda ignorada, não tendo oseu nome aparecido em qualquer referência após 1826.

De sua obra, dispomos hoje de uma coleçãoaproximada de 20 manuscritos. Suas composiçõesmais importantes são: Credo em Ré Maior; Missa e Credoa 4 para coro e órgão (1826); Zelus Domus Tuae(Ofício de 4a feira santa); Astiterunt Reges Terrae (Ofíciode 5a feira santa); In Pace (Ofício de 6a feira santa).

O último grande compositor ativo em Vila Rica

foi, sem dúvida, o Pe. João de Deus de Castro Lobo(1794-1832). As primeiras notícias da atividade musicaldo Pe. João de Deus datam de 1810, quando seu nomeaparece como o responsável pela regência datemporada de Ópera em Vila Rica. De 1817 a 1823,atuou como organista da Ordem 3a do Carmo,alternadamente, a partir de 1819, com sua formaçãosacerdotal no Seminário de Mariana, que secompletará em 1821. Apesar de ter falecido bastantejovem, em 1832, o Pe. João de Deus foi um doscompositores mais “ousados” de sua época, escrevendoobras de grande dificuldade técnica tanto para as vozesquanto para os instrumentos. Pe. João de Deus deixouvariada obra litúrgica, além da Abertura em Ré-Maior,que é o único exemplar de música puramenteinstrumental encontrado em Minas pelo autordo presente texto.

Suas principais composições são: Missa e Credoa 8 vozes e orquestra; Missa a 4 vozes em Ré maior; Matinasde Natal; Matinas de Nossa Senhora da Conceição; Te Deum(1822); 6 Responsórios Fúnebres (1832).

O compositor faleceu em Mariana, aos 38 anosde idade, em 1832.

Antes do Pe. João de Deus, Mariana, comosede do bispado, foi um centro musical de grandeimportância, sendo que a função de mestre-de-capelafoi criada pelo primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz.Ainda na década de 1750, chega à Sé de Marianao Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo,no norte da Alemanha, originalmente para servirem Lisboa. Esse instrumento foi uma doação do reiao bispado e é considerado, hoje, como o órgão ArpSchnitger mais importante fora da Europa.

Ainda na década de 1750, chega à Sé de Marianao Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norteda Alemanha (...) Esse instrumento foi uma doaçãodo rei ao bispado e é considerado, hoje como o órgãoArp Schnitger mais importante fora da Europa.

Page 22: Musica erudita brasileira - todas as revistas

30

Outro compositor importante que provavelmenteatuou em Mariana foi Francisco Barreto Falcão,procedente da Vila de Sabará. Algumas de suas obrasencontram-se em manuscritos, no Museu da Músicade Mariana.

Da avaliação que se pode fazer até o momentoda produção musical de Vila Rica de Nossa Senhorada Conceição do Sabarabussu, atual Sabará,percebemos que a produção musical de lá foiigualmente intensa, porém a perda da documentaçãomusical foi ainda maior que em outros lugares.

Além de Francisco Barreto Falcão, que atuou emMariana, encontramos Manuel Júlião da Silva Ramos(1763-1824), que foi descoberto pelo musicólogo RégisDuprat. O compositor Manuel Júlião apareceexercendo funções musicais na Vila de Atibaia, SP,em 1808. É autor de um Credo, cuja linguagem estábem próxima da dos demais compositores.

As Vilas de São José e São João del-Reidesempenharam também um importante papel naprodução musical do período. O compositor de maiordestaque da região é, sem dúvida, Manuel Diasde Oliveira (1735 − 1813). Organista e regente, essecompositor jamais atuou fora de sua região, ondefoi organista na Matriz de Santo Antônio de São Josédel-Rei (atual Tiradentes).

A maior parte das obras atribuídas a Manuel Diasde Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentesentre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boaparte do conjunto de obras que hoje conhecemos.

Em São João del-Rei, os compositores maisimportantes são Antônio dos Santos Cunha,Pe. Manuel Camelo, João José das Chagas, FranciscoMartiniano de Paula Miranda e Lourenço JoséFernandes Braziel.

Santos Cunha representa, juntamente comoPe. João de Deus, o início das influências românticasna música produzida na região das minas. Essecompositor atuou em São João entre 1815 e 1825;ignoram-se as datas de seu nascimento e morte.

A primeira notícia escrita de atividade musicalem São João del-Rei data de 1717, quando oGovernador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedrode Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez umavisita à antiga vila.

O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relataminuciosamente a recepção, descrevendo desdea marcha de entrada da comitiva na vila até asolenidade na Igreja Matriz, “ao som de músicaorganizada pelo mestre Antônio do Carmo”. Na Igrejafoi entoado o Te Deum, “que foi seguido por todoo clero e música”, o que provavelmente indica umaforma alternada de canto em polifonia com os padrescantando um verso gregoriano e o conjunto musicalrespondendo com um verso musical, tal como se faz,ainda hoje, na cidade.

Daí em diante, o mestre Antônio do Carmoresponsabiliza-se pela parte musical de importantesfestas realizadas na vila. Em 1724 dirigiu a música nasolenidade de benção da nova Matriz. Quatro anosdepois, organizou a música para a festa de São JoãoBatista, promovida pelo Senado da Câmara, e, em1730, os “desponsórios dos Sereníssimos PríncipesNossos Senhores”. Pe. Manuel Camelo parece sero compositor mais antigo do qual conhecemos algumexemplo musical. Trata-se de uma Antífona:Flos Carmeli. Lourenço José Fernandes Braziel atuouem fins do século XVIII e início do XIX, sendo queo inventário de seus bens nos dá uma visão bastanteampla do tipo de repertório que era conhecido pelos

A maior parte das obras atribuídas a Manuel Diasde Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentesentre si, fazendo com que coloquemos em dúvidaboa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.

Page 23: Musica erudita brasileira - todas as revistas

31

compositores mineiros da época. João José das Chagase Francisco Martiniano de Paula Miranda sãocompositores também representativos da músicado início do século XIX.

Na Vila de Tamanduá (atual Itapecerica) apareceo nome de José Rodrigues Dominguez de Meirelescomo músico. Em época ignorada, esse compositortransferiu-se para a Vila de Nossa Senhora da Piedade(atual Pitangui). De sua obra, a referência mais antigaque temos é uma página de rosto existente no Museuda Música de Mariana; trata-se de uma Antífonade Santo Antônio, de 1797, que se encontra perdida.Existe ainda, no Museu da Música, uma AntífonaPortuguesa a Sta. Rita. As demais obras encontradassão: Ofício de Domingo de Ramos (1810); Ofício de 4a feirade Trevas “Zelus Domus” (1811); Ofício de 5a feira“Astiterunt” (1811); Ofício de Finados, todas completas.Todas essas obras estão no Arquivo Curt Lange,em Ouro Preto. Consta no arquivo que pertenceuao Maestro Vespasiano Santos, em Belo Horizonte,a ária a solo Oh Lingua Benedicta, de 1815.

Em 1985, foram descobertas pelo autor deste texto,uma Trezena de Santo Antônio e um Dominead Adjuvandum de Dominguez de Meireles.

Outro importante compositor é Joaquim de PaulaSouza, o “Bonsucesso”, de Prados, que deixou umaMissa em Sol Maior e outra em Dó Maior. Na regiãodiamantina, ou seja, da Vila do Príncipe do Serrodo Frio (atual Serro) e do Arraial do Tejuco (atualDiamantina), atuaram José Joaquim Emerico Lobode Mesquita (1746?−1805), José de Paiva Quintanilha(século XVIII/XIX) e Alberto Fernandes de Azevedo(século XVIII/XIX).

Lobo de Mesquita atuou como organistae compositor na Vila do Príncipe até por volta de 1775,quando se transferiu por motivos desconhecidos parao Arraial do Tejuco. Sua obra datada mais antiga queconhecemos é a Missa para Quarta-feira de Cinzas,de 1778, para 4 vozes, violoncelo obligatto e órgão

(baixo contínuo), o que mostra que o compositor,muito provavelmente, já atuava como organistanessa época. Em 1792, encarregou-se de compor umOratório para a Semana Santa, que se encontra perdido.Em 1795 abandonou o Carmo e em 1798, o Arraialdo Tejuco, por problemas financeiros, indo instalar-seem Vila Rica, onde viveu por um ano e meio. Coma decadência da Vila e a falta de melhor remuneraçãopara o seu trabalho, Lobo de Mesquita abandonaVila Rica em 1800, passando o cargo que ocupava naOrdem 3a do Carmo para Francisco Gomes da Rocha.A partir de dezembro de 1801 até a morte, tocava nasmissas da igreja da Ordem 3a do Carmo, no Riode Janeiro, em troca de 40 mil réis. O compositorfaleceu em 1805. Como todos os outros compositoresde sua época, a maioria de sua obra se perdeu.Algo em torno de 60 manuscritos chegaramaté os nossos dias.

José de Paiva Quintanilha atuou na Vila doPríncipe durante toda a sua vida e, ao que parece, peloestilo de sua Missa em Sol Maior, foi discípulo de Lobode Mesquita. Desse mestre, no momento, poucopodemos dizer além de que recebeu, da Irmandade doSantíssimo Sacramento da Vila do Príncipe, paracompor a música da Semana Santa de 1790, 1792, 1807e 1808, e que seu nome figura numa relação demúsicos da Irmandade de Santa Cecília no períodode 1817 a 1838.

O nome de Alberto Fernandes de Azevedoaparece no período de 1804−1805 na Capela dasMercês do Tejuco, tendo entrado para esta Irmandade,segundo Curt Lange, em 24/9/1799. Em 1818 e 1819foi encarregado de compor a música para cravo paraa Semana Santa para a Irmandade do SantíssimoSacramento da Matriz de Santo Antônio, no Tejuco.Apenas duas obras suas chegaram até os nossos dias:Gradual Veni Sancte Spiritus para quatro vozes, violinoI e II, viola, trompas e baixo; e uma Encomendaçãopara quatro vozes e baixo.

HARRY CROWL

Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná.

Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).

Page 24: Musica erudita brasileira - todas as revistas

MÚSICA NA CORTE DO BRASIL

Page 25: Musica erudita brasileira - todas as revistas

OPROF. DR. MAURÍCIO MONTEIRO

1808-1821

EntreApolo e Dionísio

s projetos de transferência da Corte somente seconcretizaram no período em que as incursõesnapoleônicas ameaçaram o Estado de Portugale a continuidade da casa de Bragança. Nos iníciosdo século XIX, diante do medo e das ameaças quelevariam à perda do poder e de partes do território

português, as opiniões sobre a retirada da Família Reale dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes.Para alguns se tratava de uma traição; para outros,estratégia. Podia ser, em outras palavras, tantoo abandono do povo e do trono, como o único recursocapaz de manter a casa monárquica, tendo em vista asameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já haviaalertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa paraos perigos de permanência da Corte em Portugal, naiminência do ataque francês, e para os benefícios que

Na página ao lado: Henrique Bernardelli.José Maurício tocando para D. João VI.MUSEU HISTÓRICO NACIONAL

33

Page 26: Musica erudita brasileira - todas as revistas

34

essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Parao marquês de Alorna, foi estratégica e importantea vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil,porque daqui, como um imperador em um vastoterritório, os domínios poderiam expandir-see o monarca poderia conquistar facilmente “as colôniasespanholas e aterrar em pouco tempo as de todas aspotências da Europa”1. As recomendações do marquêsde Alorna não foram novidades nos inícios do séculoXIX em Portugal. Não foi também a primeira vez queos franceses incomodaram a monarquia portuguesa,e muito menos era nova a aliança com os ingleses.Desde os tempos de D. João III, depois nos reinadosde D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquiajá admitia um projeto de se instalar fora das mediaçõesde Portugal e se estabelecer em algum lugardo ultramar. Ou porque temia as interferências dosestrangeiros – como no caso dos franceses na primeirametade do século XVII e na derradeira expansãonapoleônica nos inícios do século XIX, ou porquerealmente confiavam no potencial econômicodo Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durantequatro séculos, retirar-se de Portugal2. Se pensarmoscomo pensou o marquês de Alorna, a emotividade comque a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha,a retirada da Família Real para o Brasil era necessáriahavia muito tempo e inevitável, diante as ameaçasde Junot. Não bastava somente uma retirada nemas lembranças de uma terra promissora, que por direitode conquista deveria acolher o príncipe e sua família.Foi preciso ainda reforçar, nesse caso comoum atrativo para a retirada, as dimensões da colôniae a possibilidade da conquista de territórios vizinhos.

Como estratégia política ou como reação queprevia a expansão francesa, o príncipe regente, suamãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seusfilhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por13 anos, com seus costumes e suas práticas. A primeiramudança foi acolher um número estimado de reinóisentre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, jáno plano das perdas e da autoridade, começou nosdespejos. Para toda população que tinha uma dasresidências “das mais excelentes”, ou pelo menoshabitável, estaria sujeita, mais por obrigação

que por espontaneidade, a ceder sua residênciaaos portugueses. As autoridades coloniais mandarammarcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nasportas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”,para outros, “Ponha-se na Rua”3. Com a instalaçãoda Corte e com as medidas tomadas por D. João, asrelações com os estrangeiros foram mais abrangentes.Spix e Martius mostram que vários países vendiamprodutos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão,chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar,vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias,móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda,cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria,relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtosda Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné,Moçambique, Angola e Bengala4. O produto interno,a manufatura e a indústria, que ainda começavama crescer no Brasil, não eram competitivos, nemem termos de gosto nem em termos de tecnologiada civilização, com os da Europa. Os hábitosestrangeiros foram, dessa forma, assimilados peloscariocas, seja pela observação do outro, seja pelaimitação de seu comportamento.

Durante todo o período joanino, houve no Riode Janeiro uma intensa atividade musical, distribuídabasicamente em dois setores, o da Corte, ondea qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte,em que a funcionalidade era festiva e mítica. Éimportante pensar nisto, numa complexidade quesurge no momento em que negros e mestiços são

Os músicos diletantes ouamadores dividiam-se entreos negros e mestiços, com seuslundus, modinhas e batuques, ebrancos pobres que normalmentetinham uma outra ocupação,que lhes assegurava o sustento.

Page 27: Musica erudita brasileira - todas as revistas

35

chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezescom seus instrumentos típicos e com suas própriasinterpretações. Arregimentar músicos, pintores e outrosartífices para algum trabalho ou para abrilhantaralguma festa em caráter de urgência foi uma medidacomum nos tempos de D. João VI. Na verdade eranecessário atender um desejo de manter a pompa,a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para issoera necessário que houvesse mão-de-obra suficiente.Muitas vezes não era possível. Em algumas situações,criava-se, literalmente, o artífice e artesão,normalmente uma maioria de negros, mestiçose brancos pobres, cujo desejo e habilidade eramformulados pela ordem e obediência. Em algumascircunstâncias, para atender à demanda musical,ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poderde um sobre o outro. O caso dos músicos pobres,dos diletantes que estavam à mercê dessas relaçõesde poder, não foi diferente. Robert Southey chegaa falar de “devotos músicos” que eram chamadospara as festas das igrejas “muitas vezes por água”5 .Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entreos negros e mestiços, com seus lundus, modinhas

e batuques, e brancos pobres que normalmente tinhamuma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento.Entre esses diletantes, encontrava-se ainda algunsprofessores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”.

No Rio de Janeiro já existia uma vida musicalsignificativa para aqueles tempos históricos, comcompositores ativos e importantes, como Lobode Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, mortoem 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-de-capela, compositor e organista que se tornou umadas maiores expressões da História da Música noBrasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinistae compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas daColônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-seainda o vasto universo dos anônimos. A vinda daFamília Real para o Brasil, juntamente com algunsdos compositores e intérpretes portugueses queserviram a Corte em Portugal, influenciou o estiloe as práticas desses músicos coloniais, “construindo”uma nova percepção do gosto e uma nova maneirade observar o mundo das artes. O surgimento deinstituições de corte, como a Capela e Câmara Reais,favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais

Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

Page 28: Musica erudita brasileira - todas as revistas

36

oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquiaentre os músicos. As famílias aristocráticas que vieramcom D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele,contribuíram com seus comportamentos e hábitosde ouvir música em saraus e reuniões sociais. Em tudoisso pode-se somar ainda a circulação de viajantese negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa queas festividades adquiriram e, sobretudo, a construçãodo Real Teatro de São João, palco ideal paraas representações dramáticas. Se os homens vão e vêm,com eles circulam também as idéias.

A circulação de músicos estrangeiros no Rio deJaneiro joanino foi importante para o estabelecimentode uma prática de corte, para sustentar a demanda demúsica e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto,baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantorescastrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e emseguida a vinda de Neukomm foram acontecimentosimportantes que transformaram a idéia da criação e darecepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nosníveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo,mentais, criaram um outro espaço e uma outra formade audiência das obras no período joanino. Classicismoe italianismo vieram, respectivamente, com SigismundNeukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesseperíodo em que a Família Real esteve no Brasil foiexatamente uma articulação desses estilos. Se a músicavocal se firmou no virtuosismo italiano, a músicainstrumental se baseou nos modelos do classicismovienense. As relações da Casa de Bragança comas cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria,se reforçavam cada vez mais, através de questõespolíticas e conveniências matrimoniais.Acontecimentos como a vinda da Missão Artísticaem 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldinacom D. Pedro I aproximavam os portugueses doscostumes e hábitos europeus.

O que aqui denominamos por “classicismo”conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”.Um se refere à estilística tipicamente germânicae austríaca; outro, como diz o próprio termo queo define, a uma maneira de dramatizar e interpretarem termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim,uma situação político-administrativa, o “colonialismo”

português no Brasil do tempo de D. João VI. Esseúltimo termo tem significado histórico e prático. Naverdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependênciado Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalaçãoda Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação doPríncipe Regente, a situação dos trópicos não mudoumuito nas suas relações externas. Classicismo, comHaydn (através das relações Brasil-Áustria e a vindade Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismooperístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, DavidPerez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência deMarcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos porJosé Maurício. Essas relações são importantes paraa compreensão de uma estilística resultante de práticascoloniais, de um novo gosto, que foi mantido coma Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foisendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássicaera cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudopelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unidode Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A óperaitaliana do final do século XVIII e da primeira metadedo século seguinte reservava o caráter virtuosísticopredominantemente aos cantores castratti. Como umaextensão desse gosto, D. João VI incentivou a vindadesses cantores para a colônia, transportando,da melhor maneira possível, o cenário da práticamusical da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro.

A circulação de músicosestrangeiros no Rio de Janeirojoanino foi importante parao estabelecimento de uma práticade corte, para sustentar ademanda de música e, sobretudo,ajudar a construir um novo gosto,baseado em práticas cortesãs.

Page 29: Musica erudita brasileira - todas as revistas

37

A imaginação individual era canalizadaestritamente de acordo com o gosto dos patronos.No Brasil Colonial, a religião, através das irmandades,e por vezes o poder político, através dos Senados e dasCâmaras, ou de seus representantes mais ilustres,ditavam o gosto. Era preciso que o compositor tivessecomo princípio a funcionalidade da sua obra e a devidacorrespondência com os aspectos morais e espirituaispermitidos ou em uso no seu espaço social. A situaçãosocial do músico e a conseqüente estilística tomaram,a partir dos fins do século XVIII, um outro caminho:o interesse da coletividade cedeu lugar ao indivíduoe o fim paulatino do anonimato consagrou a estéticae o artista, agora com nome, endereço e personalidade.Na Áustria, Haydn passou quase a vida toda a serviçode príncipes, Mozart enfrentou-os e conquistou sualiberdade; Beethoven, aceito pela aristocracia, fez comque os príncipes admirassem sua arte; Neukommdesapontou a todos, aristocráticos e burgueses,e, embora tivesse a proteção de Charles Maurice deTalleyrand, preferiu uma vida mais ou menos nômade.

No Brasil joanino, ser músico da Corte ainda erauma situação favorável, por três motivos básicos:melhores oportunidades de mostrar sua arte, de tomarcontato com músicos estrangeiros e linguagensmodernas e, por fim, de garantir um status sociale financeiro em parte suficiente para viver em colônias.

A música praticada fora do círculo cortesão foi tãomultifacetada quanto a própria sociedade; e, aindamais, pode-se dizer que foi uma mistura de tradiçãoe novidade. Costumes e práticas de várias culturasconviveram no Brasil joanino. Negros e índioscompartilharam, de uma forma ou de outra, da culturado branco, imitaram-na, transformaram-na e, em algunsmomentos, procuram até se afastar dela. Nos tempos deD. Maria I e D. João, como foi em toda a vida colonial,os europeus tiveram de articular seus costumese hábitos com práticas autóctones ou que aqui seestabeleceram. Europeus eram dominadores, donos decolônias, e por isso mesmo tiveram um sentimentode cultura superior, de força e de retórica. Seu modode ver o mundo era melhor de que todos os outros, seu

Jean-Baptiste Debret. Vista interior da Capela Real, desenhada do degrau superior do altar-mor, olhando para o lado da entrada da Igreja.A orquestra de músicos ocupa toda a parte superior do fundo. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA

Page 30: Musica erudita brasileira - todas as revistas

38

O MÉTODO DE PIANOFORTE DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA.

Rio de Janeiro, UNIRIO, 1998, CD 002. Ruth Serrão (piano)

MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA E SIGSMUND NEUKOMM

Rio de Janeiro, 1998, Independente. Pedro Persone

(fortepiano). Luiza Sawaya (canto)

GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES

São Paulo, PAULUS, 1995, CD 11100-7. Maria Ester Brandão

e Koiti Watanabe (violinos)

MÚSICA PORTUGUESA E BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII PARA CRAVO

Rio de Janeiro, Brascan, 1990. Marcelo Fagerlande (cravo)

MATINAS DE FINADOS. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA

Rio de janeiro, Funarte, 1980, CD 07.Associação de Canto

Coral. Direção: Cleofe Person de Matos

MISSA DE SANTA CECILIA. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA

Rio de Janeiro, Funarte, 1980. Associação de Canto Coral

Orquestra Sinfônica Brasileira

Direção: Edoardo de Guarnieri. 2v

VENENO DE AGRADAR. MODINHAS

Lisboa, 1998, CD LS-9801. Luiza Sawaya (canto)

Achille Picchi (piano)

MUSICA BARROCA BRASILEIRA

Caracas, Centro de Estudios Brasileños, 1992, CD 2.72.0440

Camerata Barroca de Caracas. Direção Isabel Palacios

DISCOGRAFIA

Deus era uno, trino e onipotente, e também por isso,mais verdadeiro que os dos outros. Entretanto, tratamosaqui de formas culturais, cada uma com sua força etradição, mas que, sustentada por indivíduos diferentes,entrecruzavam-se todas. Nesse sentido, seria oportunopensar em um mundo apolíneo nos domíniosde Dionísio, e que é nada mais que uma cultura escrita,normatizada, programada e cheia de sanções moraisem um ambiente onde ela era mais espontânea.

As concepções de Nietzsche sobre os mitos deApolo e Dionísio podem se tornar úteis para introduzirtemas de culturas variadas nesses espaços comuns6.Numa outra dimensão da idéia que caracterizaos personagens, a música de Apolo é européia,encontra-se cultivada fora das camadas populares,levada para o ultramar como pressupostode modernidade e civilização, como um dispositivoimportante de uma cultura que cristianizou e sustentouo absolutismo de reis, príncipes e cortes. A músicade Dionisio é indígena, africana ou afro-ameríndia;encontra-se nas manifestações das culturas de tradiçãooral. No Brasil colonial, Apolo e Dionísio

se entrecruzaram entre lundus, modinhas, batuques,práticas de feitiçarias, alegorias e Te Deuns.Entretanto, em alguns momentos da vida socialda colônia, as ruas, praças, templos religiosos e, poralgumas vezes, os estabelecimentos de espetáculos setornavam espaços comuns. Neles, os vários estamentose grupos étnicos se reuniram para comemorar algumadata ou reverenciar algum nobre ou príncipee, de forma estratégica, esses encontros de todosserviram, mesmo que momentaneamente, para atenuaras diferenças sociais. Tudo que não estava na Corte,que não estava sujeito às regras de etiqueta e civilidade,que não seguia determinadas normas de tocar, cantar,compor e dançar, estava, conseqüentemente, sujeitoa ponderações muitas vezes preconceituosas.Ao contrário das práticas de corte, as manifestaçõesde características populares ou étnicas, como aquelasencontradas entre os brancos pobres, africanose indígenas, estiveram sujeitas a um outro tipode determinismo: a espontaneidade. Essas práticas,no caso de indígenas e africanos, estavam atreladasa cultos de deidades negras e a rituais animistas.A dos brancos pobres, os excluídos do processode corte, estavam sujeitas àquilo que chamamos aquide uma ‘articulação’ de culturas; pode-se dizer que elasabsorveram elementos de todas as outras, em menorescala, dos indígenas. Os negros também absorveram,através do catolicismo, formas miscigenadasdas práticas européias e deram uma outra roupagemàs suas tradições; preservaram-nas, fizeram comque elas sobrevivessem numa corte pitoresca queprocurava se impor7.

Tudo isso era um espetáculo, uma misturade catolicismo com atividades autóctones, própriade negros, índios e mestiços. Um espetáculo à partedaquilo que acontecia na Corte, ou dentro dos templos,nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tantode sincrético quanto de propriedade. A palavrasincretismo vem designar não a simples e inevitávelmistura, ou absorção de uma cultura pela outra, comouma forma em que as culturas não européias deveriamaceitar a cultura do outro. Em propostas maisabrangentes, sincretismo significa aqui uma maneirade preservar a própria cultura em detrimento das

Page 31: Musica erudita brasileira - todas as revistas

39

1. “...É preciso que Vossa Alteza mande armar com toda pressaos seus navios de guerra e de todos os de transporte que seacharem na praça de Lisboa, que meta neles a princesa, seusfilhos e os seus tesouros(...), podemos cobrir a retiradade Vossa Alteza e a nação portuguesa sempre ficará sendonação portuguesa. (...) Porque ainda que essas cinco provínciaspadeçam algum tempo debaixo do jugo estrangeiro,Vossa Alteza poderá criar tal poder que lhe seja fácil resgatá-las, mandando aqui um socorro, que junto ao amor nacionalas liberte e de todo. Dizem que é mal visto todo homem queaconselha tudo isto a Vossa Alteza”.Carta do Marquês de Alorna a D. João VI. 30 de maio de 1801.Cf.: NORTON, Luis. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo,Companhia Editora Nacional, 1938, p. 54.

2. Cf.: MATOSO, Antonio G. História de Portugal. Lisboa:Livraria Sá da Costa Editora, 1939, p. 439.

ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império. Porto: EdiçõesAfrontamento, 1993, p. 837.

3. Cf.: LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI o Brasil. Rio deJaneiro: Topbooks, 1996, p. 790.

4. Cf.: SPIX, J.B. & MARTIUS, C.F.P. Viagem pelo Brasil. 3 v.Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 67.

5. Cf.: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Belo Horizonte:Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 435.

6. Cf.: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia.Tradução: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1958,p. 179 p. As concepções aqui são tomadas em relação ao queé europeu e não europeu. Apolo é europeu, Dionísioé africano e indígena, e em certa medida, colonial.

7. Cf.: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana - América Latinae Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987.

interferências e das imposições das culturas européias.Nessa forma de observar o sincretismo, os negros,sobretudo, preservaram, da maneira possível, suasraízes e a absorção inevitável da cultura do brancose tornou um matiz para a preservação de sua própriacultura. Numa sociedade escravista e preconceituosaem tudo, esse sincretismo era a única forma possívelde preservar o que é seu sem cair nas malhas davigilância e das sanções do Estado e da Igreja. Foramnos círculos populares, nas casas, nas senzalas, nastribos e nas regiões rurais que as manifestações setornaram mais autênticas que nas cidades, que nasáreas onde a vigilância obrigava demonstrações dacultura européia. Preservar a cultura afro-americanaou indígena, assim como impor por meios diversosa cultura européia, era uma articulação viável que,ao mesmo tempo, preservava uma e absorvia outra.Surgem dois territórios onde as formas de culturase contracenam: um público e outro privado.

Fez-se a festa. Falou-se alto. A vida fora da Cortevinha de uma observação que era inversa à de ummundo proposto em um mundo diferente. Em todaessa sociedade, sobretudo nas vilas e cidades litorâneasonde as trocas com elementos externos aconteciamprimeiro, era de se esperar que existissem formasde convivência. Em outras palavras, pode-se dizer queexistiram momentos em que as diversas formas

MAURÍCIO MONTEIRO

Prof. Dr. em História pela USP, leciona na Universidade Anhembi-Morumbi e membro do Conselho Curador da Fundação Pe. Anchieta.

de culturas – as autóctones, as européias e africanas– manifestaram-se isoladamente, e em outrasoportunidades fundiram-se numa só, permitindoa existência de vários elementos se entrecruzando.Essas ocasiões poderiam acontecer em espaçosoriginais, na sua própria origem, como no caso dosíndios, ou podiam ser ainda preparadas para o formatodos rituais, do entretenimento ou da demonstraçãode poder. Se na igreja ouvia-se os Te Deuns, nas ruas,ao lado da imagem da santa, tocava-se gaitas típicas,flautas e tambores. Fora das festas de caráter cristão,existiu a convivência com negros que andavampelas ruas tocando suas calimbas e berimbaus.Os índios, talvez por estarem menos expostosà cultura urbana, participaram em menor escala desseprocesso de troca. Eles apareceram menos nas cidadese sumiram mais rapidamente do litoral. Mas é possíveltambém imaginar os índios descritos pelo príncipeMaximiliano Wied-Neuwied dançando lundusou batuques, ou o índio que era padre e fugiunu pela floresta. De qualquer forma, o Brasil,e mais particularmente o Rio de Janeiro, se tornouuma sociedade que tinha pajés, reis do congo,D. Maria I e D. João VI; transformou-se em um espaçode ritos, onde deuses de várias naturezas disputavamas almas tropicais. Criou-se um círculo de articulaçõese um espaço de tolerâncias.

Page 32: Musica erudita brasileira - todas as revistas

José Maurício Nunes Garciae a Real Capelade D. João VIno Rio de JaneiroRICARDO BERNARDES

Page 33: Musica erudita brasileira - todas as revistas

José Maurício Nunes Garcia (1767–1830) é um dos maissignificativos compositores da América colonial no quediz respeito à quantidade de composições, à qualidadeestética e à definição de uma linguagem própria,facilmente perceptível. Esse perfil o individualizae o destaca dos compositores mineiros ou hispano-americanos do século XVIII, que podemos identificar,respectivamente, dentro de uma “escola” ou estilocomum de composição. É também o único compositorcolonial cuja obra e biografia não foram esquecidasao longo destes dois séculos, pois contou com árduosdefensores, desde seus contemporâneos Manuelde Araújo Porto Alegre e Bento das Mercês, atéo Visconde de Taunay, que conseguiu fazer com que,em fins do século XIX, o governo brasileiro adquirisseas principais obras de José Maurício, reunidase conservadas, em coleção, por Bento das Mercês1,e editasse com Alberto Nepomuceno, em 1897,o famoso Réquiem de 1816, numa versão reduzida paracanto e piano ou órgão2.

Em 1930, o filho de Taunay, Affonso de E. Taunay,reuniu os escritos do pai a respeito de José Maurícioe Carlos Gomes, organizando-os no livro “DousArtistas Máximos: José Maurício e Carlos Gomes”3 ,contribuindo assim para a imagem que o século XXtem de José Maurício, das personagens e dos fatos queo cercaram. Essa visão foi bastante difundida duranteos primórdios da República, quando se buscava criara idéia de um “herói brasileiro”, que fizesse frenteao “vilão luso”, na busca desenfreada por umaidentidade nacional.

Ainda, durante o século XIX e o início do XX,outras iniciativas foram tomadas, por compositorescomo Leopoldo Miguez e Alberto Nepomuceno,visando recuperar a obra do padre mestre, através desua restauração e execução, como no caso dareinauguração da Igreja da Candelária, em 1900,ocasião em que foi executada a Missa em Si bemolde 1801, com reorquestração de Nepomuceno.

Louis Claude Desausles Freycinet.Teatro São João, do livro Voyage autour du monde, entreprispar ordre du roi... Execute sur les cervettes de S. M. l’Uraneet la Physicienne, pendant les années 1819 et 1820.Paris, Pillet Ainé, 1824.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS

41

Page 34: Musica erudita brasileira - todas as revistas

42

o que os subentende escravos. O Dr. Nunes GarciaJúnior, único filho legitimado de José Maurício,descreve seus avós paternos como mulatos claros“de cabelos finos e soltos”. Manoel de Araújo PortoAlegre, em seus “Apontamentos sôbre a vida e obrasdo Padre J. M. N. G.”8, indica a freguesia de NossaSenhora da Ajuda, na Ilha do Governador,Rio de Janeiro, como local de seu nascimento.

José Maurício tem sua formação musical comSalvador José de Almeida e Faria, “o pardo”, amigoda família e natural de Vila Rica, Minas Gerais. Desdeos doze anos já é professor de música e em 1783, aos 16anos, compõe sua primeira obra, Tota Pulchra es Maria.É ordenado padre em 1792 e, em 1798, é designadopara assumir a função de mestre-de-capela9 da Sédo Rio de Janeiro, que então funcionava na Igrejada Irmandade do Rosário e S. Benedicto. No entanto,José Maurício já compunha para essa instituiçãomesmo antes de sua nomeação, como comprovamos autógrafos das Vésperas de Nossa Senhora, de 1797,

também se reflete sobre a vida musical da cidade,através da construção de um Teatro de Óperae, principalmente, da criação de uma Real Capela deMúsica, nos moldes da Real Capela lisboeta.10

Quando do desembarque da Corte, a 8 de marçode 1808, todas as festividades de recepção estavampreparadas na Igreja de Nossa Senhora do Monte doCarmo, por ser a mais rica e ornamentada da cidade.Porém, D. João desejava que se celebrasse um Te Deum,em agradecimento pela boa viagem e chegada, na Sé,cujo conjunto musical, dirigido por José Maurício,contava com um grupo vocal formado por cantoresmeninos, nas vozes de soprano e contralto, e adultos,como tenores e baixos. Contava ainda com umpequeno grupo de instrumentistas, que segundoa prática de orquestração de suas obras até então,provavelmente consistiam em: cordas, flautas,ocasionalmente clarinetes, trompas e baixo contínuo,realizado por órgão, fagote e contrabaixo. Esteé o primeiro contato que o príncipe regente trava com

O tempo de JoséMaurício à frenteda Real Capela

é claramente umperíodo de transiçãoestilística entre suas

duas práticas

Pe. José Maurício Nunes Garcia.Litogravura.

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

Foi a partir da década de 1940,porém, que a vida e a obra de JoséMaurício Nunes Garcia contaramcom um estudo bastante sérioe profundo, realizado pela regentee musicóloga Cleofe Person deMattos, que, além de transcrevere promover a execução de suasobras, editou o “Catálogo temáticodas obras do padre José MaurícioNunes Garcia”4 , obra fundamentalpara o conhecimento da produçãomauriciana. Na década de 1980,a pesquisadora editou ainda 10partituras, reunidas em 8 volumes5 ;em 1994, o Réquiem de 1816, naversão completa de orquestra6 , e suabiografia mauriciana7 .

A 22 de setembro de 1767, nasceJosé Maurício Nunes Garcia, filhode Apolinário Nunes Garcia,(segundo registros) de raça branca,e de Victória Maria da Cruz, deascendentes imediatos “da Guiné”,

dedicados ao conjunto da Sé.Em 1808, fugindo das tropas

napoleônicas sob o comando deJunot, D. Maria I, o príncipe regenteD. João, a real família, parte daCorte e da alta administração doreino português deslocam-se paraa capital da colônia com o objetivo,ímpar na história da colonizaçãodo Brasil e das Américas, de láse instalarem e fazerem da cidadea nova capital do reino,aproximando-se da metrópole sobtodos os aspectos.

Um choque de urbanidadeentão se impõe sobre o Rio deJaneiro, que – por esforços pessoaisdo ainda príncipe regente, a sercoroado D. João VI apenas em 1818– vai gradualmente se tornando umacapital nos moldes europeus, coma vinda da imprensa, a abertura dosportos ao livre comércio, a criaçãoda Biblioteca Real. A modernização

Page 35: Musica erudita brasileira - todas as revistas

43

A partir desse ano começam a chegarao Rio de Janeiro os cantores vindos da Capela Realde Lisboa, e, no início de 1810, os instrumentistas.Os músicos são atraídos pelas possibilidadesde trabalho propiciadas pela instalação permanenteda Corte na cidade e pela construção, em andamento,do Teatro de Ópera.

Todos esses acontecimentos, que propiciam ummeio musical bastante rico e intenso, aliados às novasobras que começam a circular na colônia, trazidas porD. João11, serão os responsáveis pelas transformaçõesna linguagem musical de José Maurício.

O tempo de José Maurício à frente da Real Capelaé claramente um período de transição estilística entresuas duas práticas, desde há muito estabelecidas pelospesquisadores de sua obra: antes e depois da chegadada Corte. Se, antes, escrevia para grupos pequenos epossivelmente com limitações técnicas, vê-se obrigado,a partir de então, a escrever uma música mais brilhantee virtuosística, com o objetivo de se aproximar

arranjado sobre um tema cantado por D. João, e omoteto Judas Mercator Pessimus, os três últimos de 1809.Ainda em 1810, compõe um Ecce Sacerdos a 8 vozese o Magnificat das Vésperas de S. José, em 1811, a MissaPastoril para a Noite de Natal, a Missa em Mi bemol paracoro e órgão e um Te Deum em dó maior.

No entanto, a grande obra do período de JoséMaurício à frente da Real Capela é a Missa de NossaSenhora da Conceição para 8 de dezembro de 1810.É, sem dúvida, a obra mais complexa e grandiloqüentedas que havia composto até então e uma das maissofisticadas de toda a sua carreira, composta nummomento de plena maturidade: José Maurício tinha,então, 43 anos.

Era um momento cheio de esperanças e alegriaspara o compositor – por passar a trabalhar à frente deum grupo através do qual poderia mostrar todas as suaspotencialidades como músico e artista –, mas tambémde sofrimentos causados pelo preconceito, por suacondição de brasileiro, mulato, e por ter tido uma

a música do compositor carioca.No mesmo mês, D. João terá aindavárias oportunidades de avaliara qualificação musical do conjuntoda Sé e, especificamente,a qualidade do nível de criaçãode seu mestre-de-capela, o padreJosé Maurício.

O claro objetivo de D. João eramontar uma capela musical no Riode Janeiro nos moldes daquela quehavia em Lisboa, tanto no formatoquanto na fixação de um estilomusical para as obras que paralá seriam compostas. Designaentão José Maurício para dirigiras atividades da recém-criadainstituição, formada por músicos jáatuantes na cidade e alguns vindoscom D. João. Numa demonstraçãode apreço e admiração por seustalentos musicais, D. Joãoconcede-lhe o Hábito da Ordemde Cristo, em 1809.

do “estilo da Capela Real”.O que justamente caracteriza

esse período como de transiçãoé a síntese através da qual JoséMaurício adapta sua músicae sua linguagem, obtendo um estilohíbrido em sua criação, ainda comresquícios fortes da primeira fase,mas já alçando vôos em direçãoao estilo que iria caracterizarsua segunda fase: mais madurae moderna.

O período de 1808 a 1811é extremamente fecundo: JoséMaurício compõe cerca de setentaobras visando atender à extensasérie de solenidades. Entre as maisimportantes, comprovadamentedo período e que sobreviveram aténossos tempos, destacam-se: a MissaSão Pedro de Alcântara de 1808,e outra Missa São Pedro de Alcântarade 1809, um Te Deum para as Matinasde São Pedro, um Stabat Mater,

José Maurício tema oportunidade

de estrear obras comoo Réquiem de Mozart,

em dezembro de 1819,e o oratório A Criaçãode Haydn, em 1821.

Marcos Portugal.Litogravura assinada por Rodrigues.

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA EARQUIVO SONORO

Page 36: Musica erudita brasileira - todas as revistas

44

formação musical, em muitosaspectos, autodidata.

A composição da Missada Conceição para 8 de dezembrodaquele ano pode ter sido umacomprovação aos músicos e aopríncipe de que José Maurício podiase adaptar ao novo gosto. Essa missafigura entre suas obras maisimportantes, ao lado do Ofício eMissa de Réquiem, de 1816, da Missa deNossa Senhora do Carmo, de 1818,e da Missa de Santa Cecília, de 1826.

Em 1811, a chegada de MarcosPortugal, o mais afamadocompositor português de sua época,encerra o período de Nunes Garciacomo diretor e compositor da RealCapela. De renome internacional,Portugal vem assumir na cidadeas funções de Diretor do Teatro

1. Esse acervo encontra-se, hoje, na Biblioteca AlbertoNepomuceno da Escola Nacional de Música da UFRJ.

2. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de Réquiem 1816.Rio de Janeiro/São Paulo: Bevilacqua, 1897.

3. TAUNAY, Visconde de. Dous artistas máximos: José Maurícioe Carlos Gomes I. São Paulo: Companhia Melhoramentos/Rio de Janeiro: Cayeiras, 1930.

4. MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do padreJosé Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal deCultura/MEC, 1970.

5. Referências: Gradual de São Sebastião. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981; Tota pulchra es Maria. Rio de Janeiro:Funarte/INM/Pro-Memus, 1983; Gradual Dies Sanctificatus. Riode Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981; Missa pastoril paraNoite de Natal 1811. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,

1982; Ofício 1816. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,1982; Aberturas Zemira e Abertura em Ré. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1982; Salmos Laudate Pueri e Laudate Dominum.Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981.6. GARCIA, José Maurício Nunes. Requiem in D (CV 23.008/01,edited by Cleofe Person de Mattos) Stuttgart: Carus Verlag, 1994.7. MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia –biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca nacional/Departamento Nacional do Livro, 1994.8. Cf.: MURICY, José Cândido de Andrade (org.). Estudosmauricianos. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.9. Mestre-de-capela: pessoa responsável pela preparaçãodas músicas destinadas às cerimônias religiosas.10. A tradição das capelas reais portuguesas, como gruposde excelência na criação e execução musical para as festividades

em 1816, no intuito de retomarrelações diplomáticas com a Corteportuguesa –, José Maurício tema oportunidade de estrear obrascomo o Réquiem de Mozart, emdezembro de 1819, e o oratórioA Criação de Haydn, em 1821.O padre mestre compõe, no mesmoano, dois salmos, Laudate Dominume Laudate Puerum, que, segundo opunho do próprio compositor, foram“arranjados sobre temas da Creaçãodo Mundo do immortal Haydn”14.Podem ser observadas, ainda,citações do oratório As estações,do mesmo Haydn, em obras maistardias, como no Qui Tollis da MissaAbreviada, de 1823.

Sua última obra e legadoé a Missa de Santa Cecília,encomendada pela ordem

de Ópera de São João e de mestre compositorda Real Capela. José Maurício continua, todavia,compondo ocasionalmente para a instituiçãoa pedido de D. João, que o tem em grande estima.13

Através da amizade com o compositor austríacoSigismund Neukomm (1778–1858), discípulo de JosephHaydn – que veio ao Brasil em uma missãodiplomática promovida por Luís XVIII de França

Jean-Baptiste Debret. D. João VI. Do livroVoyage pitoresque et historique au Brésil.

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –DIVISÃO DE ICONOGRAFIA

homônima, em 1826. É sua obra maior, que podeser posta ao lado das grandes obras, compostasdurante o mesmo período, dentro da históriada música ocidental.

Em 1830, morre em extrema miséria. Sua obra,contudo, tem sido cada vez mais objeto de estudoe interesse por músicos e pesquisadoresbrasileiros e estrangeiros.

Page 37: Musica erudita brasileira - todas as revistas

45

religiosas, inicia-se em 1713, no reinado de D João V, graças àsgrandes riquezas proporcionadas pela descoberta de ouro emMinas Gerais. Uma das principais capelas principescas daEuropa, a Real Capela Portuguesa, desde o princípio, mantémestreitos contatos com a prática musical e litúrgica italiana,principalmente a Romana, ligada ao Vaticano. No mesmoperíodo, é criado o Seminário da Sé Patriarcal em Lisboa,importante centro de formação de músicos portugueses em todoo século XVIII, tendo, vários deles, a oportunidade de estudarem Roma ou Nápoles. Durante o reinado de D. João V,destacam-se os nomes de Antônio Teixeira (1707 – ca.1759), JoãoRodrigues Esteves (ca.1700 – depois de 1751) e Francisco Antôniode Almeida (ca.1702 – 1755). Seus sucessores, como D. José I,mantiveram essa prática, concedendo estudos a João de SousaCarvalho (1745 – 1798), Marcos Portugal (1762–1830), AntônioLeal Moreira (1758 – 1819) e João Domingos Bomtempo(1775 – 1842). Nessa mesma política de aproximação, D. Josémanteve contato com importantes compositores italianos daépoca, como os napolitanos Davide Perez (1711 – 1778) e NicolòJommelli (1714 – 1774), encomendando óperas e música religiosa,tendo este último, em 1766, enviado cópias de todas suas obrasreligiosas à Corte portuguesa, a pedido do rei de Portugal.“[...] D. João V cria o Seminário Patriarcal de Lisboa, em 1713, e,à maneira de outras cortes européias, italianiza o gosto musical,iniciando o envio de compositores portugueses para estudar nosprincipais centros de produção musical cortesã da época: Nápolese Roma. Ainda de maior importância é a contratação docompositor napolitano Davide Perez como mestre da CapelaReal de Música da corte de D. José I de Portugal, de 1752 a 1778.Perez, assim como Jommelli, compositor napolitano que tambémserviu a corte de Lisboa, era um dos compositores maisimportantes ligados à aristocracia européia na segunda metade doséculo XVIII.” (FERRAZ, Sílvio e DOTTORI, Maurício.“Manoel Dias de Oliveira e Davide Perez. Uma aproximaçãoentre o barroco mineiro e a ópera italiana.” In: Ciência e Cultura,nº 42 (9). São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP,setembro de 1990, p. 662-669).

11. Os arquivos musicais que vieram com a corte em 1808pertenciam à Biblioteca da Capela Real d’Ajuda, justamente acapela que se destacava por ser a de repertório mais virtuosístico.

12. MATTOS, Cleofe Person. José Maurício Nunes Garcia – umabiografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional /Departamento Nacional do Livro, 1997, p. 67.

13. “Marcos Portugal toma logo de assalto a vida musical daCorte... e o seu reino é incontestado. Aliás, o que ele encontraà sua frente? Cantores italianos vindos de Lisboa, certos cantoresbrasileiros, dos quais alguns eram notáveis mas que se integravamna vida musical da corte e que não podiam prejudicá-lo, enfim,músicos vindos de Lisboa e que tinham testemunhado a suaglória naquela cidade. Ou, pelo menos, quase. Havia uma sombrana imagem. Era o Padre José Maurício, compositor brasileiro dereal talento, fundador da Irmandade de Santa Cecília, no Rio deJaneiro, organista da Capela Real desde 26 de novembro de 1808e mestre de música a partir daquela data. Marcos Portugal, de um

orgulho incomensurável e que os escrúpulos não ajudavam aabafar, tomou o seu lugar como mestre de capela e foi, ainda porcima, perfeitamente desagradável e desdenhoso para com ele.Procurou afastá-lo de todas as maneiras. Teve a sorte de o PadreJosé Maurício ser um homem pacífico, bom e apagado, numapalavra, pouco talhado para a luta; isso permitiu-lhe levar avanteos seus planos com facilidade. Deve, no entanto, dizer-se que oPríncipe Regente não foi cego a suas manobras e que tentoureparar o melhor que pôde a injustiça que acabara de cometer.Mas a sua admiração por Marcos Portugal foi mais forte e, se nãoafastou o Padre José Maurício, não lhe atribuiu contudo mais queum papel secundário. No fundo, o Príncipe Regente via emMarcos Portugal o músico célebre que ele era sem dúvida, oautor capaz de compor uma música pela qual sentia uma atraçãosegura e à qual estava já habituado. Pensava ter ao seu serviço (e,de certa maneira, tinha razão) uma vedeta de primeiríssimoplano. Tinha de pagar o preço, mesmo que se tratasse de umainjustiça.” In: SARRAUTE, Jean Paul. Marcos Portugal – Ensaios.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 121 e 122.

14. MONTEIRO, Maurício Mário. “A construção do gosto: umestudo sobre as práticas musicais na corte de D. João VI” In:Anais do Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Org.: ElisabethSeraphim Prosser e Paulo Castagna. Curitiba : Fundação Culturalde Curitiba, 1999, p. 397.

OFFICIUM 1816

Camerata Novo Horizonte de São Paulo

Regência: Graham Griffiths. PAULUS - Brasil

LAUDATE DOMINUM

DOMINE JESU

TE CHRISTE SOLUM NOVIMUS

TE DEUM (1799?)

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara

Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Vol. I - Brasil

TE DEUM (1801)

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara

Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Série Relações

Musicais, Vol.II - Brasil

MOTETOS PARA SEMANA SANTA

CALÍOPE

Direção: Júlio Moretzohn

CALÍOPE

MISSA PASTORIL PARA A NOITE DE NATAL

LAUDATE DOMINUM

DIES SANCTIFICATUS

JUSTUS CUM CECIDERIT

LAUDATE PUERI

Ensemble Turicum. Direção: Luís Alves da Silva. K617 - França

DISCOGRAFIA

RICARDO BERNARDES

Regente e pesquisador especializado em música antiga luso-brasileira e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001.Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.

Page 38: Musica erudita brasileira - todas as revistas

C

A MODINHAE O LUNDUNO BRASIL

om crescimento populacional que vinha se acentuandodesde o início do século XVIII e a formação de centrosurbanos (tais como Salvador, Ouro Preto, Riode Janeiro, dentre outros), a demanda por um certotipo de entretenimento por parte de uma classe médiaemergente era condição imperiosa para a manutençãode um modelo de cultura que a metrópole, no casoPortugal, vinha impondo à colônia.

Antes dos concertos públicos, que só viriama acontecer no início do século XIX em Portugal (Nery,1991) e mais tardiamente no Brasil, o lazer erapraticado de diversas maneiras, tanto na Corte quantona colônia: as óperas, encenadas desde o século XVIII;as festas profanas, tais como aniversários de cidades,membros da família real ou alguma figura importantepertencente à classe dominante; as festas religiosas,que também tinham funções sociais.

Uma outra forma de entretenimento que vinhasendo praticada no Brasil desde meados do séculoXVIII era a música patrocinada por proprietáriosde posses, que mantinham orquestra formada porescravos negros especialmente treinados paraexecutarem os mais diversos instrumentos (violinos,viola, teclado, charamelas, dentre outros).As músicas que interpretavam eram os sucessoseuropeus que nos chegavam às mãos (Kiefer, 1982).Porém, tais eventos ocorriam em recintos fechadose para convidados especiais.

As primeiras manifestações damúsica popular urbana no Brasil

EDILSON VICENTE DE LIMA

Página ao lado: Domingos Caldas Barbosa.1ª edição da obra Viola de Lereno. Lisboa.

Na Officina Nunesiana.Anno 1798.

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS

46

Page 39: Musica erudita brasileira - todas as revistas
Page 40: Musica erudita brasileira - todas as revistas

48

Os saraus praticados pelas elites, entre os séculosXVIII e XIX, também foram formas de lazer, e, porconseguinte, de divulgação da música cultivada pelaclasse média em sua vida cotidiana. Era o local ondemúsicos amadores e profissionais podiam se irmanar,tocando ou cantando suas peças preferidas.Era também a oportunidade para as moças das finasfamílias exibirem seus dotes ao teclado, ou suaencantadora voz acompanhada pela delicadezado dedilhado na guitarra (Nery, 1994).

Portanto, o gosto pela música e, por conseqüência,pelo canto, parece ser uma constante na cultura doseuropeus vindos para o Brasil. O negro, por sua veze mesmo em condições sub-humanas, sempre cultivoua música, seja em sua forma ritualística longe dos olhosocidentais, ou como divertimento nos terreiros e praçaspúblicas. Desta forma, sem querer adentraras discussões sociológicas quanto às condições sociaisdas diversas camadas que residiam no Brasilem meados do século XVIII, ainda que altamenteeuropeizada, a colônia, aos poucos, foi construindoseu próprio caminho musical à medida que as vilasse desenvolviam.

É nesse ambiente e condições sociais que, nosúltimos anos do século XVIII, surge a modinha,um tipo especial de canção que será cultivada tanto emPortugal quanto no Brasil. Esta designa um tipo decanção lírica, singela e de duração reduzida, compostapara uma ou duas vozes acompanhadas por guitarraou teclado. Cultivada, inicialmente, pelas classes maisabastadas, aos poucos, vai se popularizando, até tornar-se, pouco a pouco, um veículo para a expressividademusical, tanto portuguesa quanto brasileira.

As discussões pela definição da paternidade damodinha parecem infrutíferas já que, a despeito da suaorigem e seu surgimento, vai ser adotada pelas duaspátrias como filha legítima. Mais do que o localde nascimento, é a trajetória e a aceitação por umadeterminada nação que definem uma nacionalidade.Porém, a origem da modinha está intimamenterelacionada com a moda portuguesa, sua antecessora,que em meados do século XVIII, designava,genericamente, qualquer tipo de canção e era praticadanos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas

(Araújo, 1963). No Brasil, a palavra moda assume duasacepções diferentes: qualquer tipo de canção, como emPortugal; e moda de viola, gênero de canção muitopraticada em São Paulo e Minas Gerais (idem, 1963).Ao absorver dessa última as características formaise melódicas, a modinha se configura de maneira muitorica, não assumindo uma forma específica.Caracteriza-se, também, por ser mais curta, maissingela, delicada e, sobretudo, pelo tema amoroso.

Mário de Andrade, no texto introdutório de suaantológica publicação de 1930, Modinhas Imperiais,defende que o diminutivo “modinha” está intimamenterelacionado com as características “acarinhantes” tãopresentes na cultura luso-brasileira: “Chamam-lheModinhas por serem delicadas” (Andrade, 1980). Estacaracterística, por sua vez, é descrita com muita graçano refrão da modinha “Quando a gente está coma gente”, de Domingos Schiopetta, músico que atuouem Lisboa entre o século XVIII e XIX: “Nós, lá noBrasil, com nossa ternura/ Açúcar nos sobe com tanta

Álbum de Modinhas, da coleção de modinhas imperiais da Divisãode Música e Arquivo Sonoro da FBN. Neste número, Despedida,de José Lino de Almeida Fleming. Narciso e Cia. s/d.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

Page 41: Musica erudita brasileira - todas as revistas

49

doçura/ Já fui à Bahia, já passei no mar,/ Coisinhas quevi me fazem babar”.

No final do setecentos, literatos e cronistasportugueses diferenciavam a modinha portuguesada brasileira e atribuíam a esta características própriasadvindas da colônia, no caso, o Brasil. O pesquisadorportuguês Manuel Morais descreve algumas delas:melodia ondulante, cromatismos melódicose acompanhamento singelo (Morais, 2000). Poderíamosacrescentar: melodias entrecortadas e compostasde motivos sincopados, ora em retardo, ora emantecipação, abuso de cadências femininas, porém,sempre primando por uma certa delicadeza(Lima, 2001).

O etnomusicólogo Gerard Béhague, em seupioneiro artigo sobre o manuscrito Modinhas do Brasil,que se encontra na Biblioteca da Ajuda em Lisboa(Béhague, 1968), destaca ainda aspectos poéticos queconsidera característicos do estilo brasileiroe, sobretudo, de Caldas Barbosa. Identifica doispoemas utilizados nas modinhas desta coleção comosendo de sua autoria: Eu nasci sem coração e Homenserrados e loucos. Domingos Caldas Barbosa, padre,também conhecido pelo nome árcade de LerenoSelinuntino, foi poeta, cantor de modinhas, exímioimprovisador e, naturalmente, tangia sua própriaviola-de-arame. Migrou para Lisboa e lá viveuno último quartel do século XVIII até sua morte.Tornou-se muito popular na corte por sua atuaçãocomo poeta e cantor de modinhas.

Seu livro, Viola de Lereno, uma coletâneade poemas em dois volumes, sugere letras de modinhase lundus de sua própria lavra. Teve várias publicaçõesem Lisboa entre 1798 e 1823 e uma na Bahia, em 1813.Nele, podemos encontrar o estilo que Caldas Barbosautilizou em seus poemas e que muito se assemelhamao estilo de vários textos encontrados no manuscritoModinhas do Brasil acima citado: neologismosafro-brasileiros, como “mugangueirinha”, alémde diminutivos como “enfadadinha” e “negrinho”;também os vocábulos “sinhá” e “nhanhá”, tratamentoque os escravos dispensavam às senhoras e senhoritasnessa época, bem ao gosto do vocabulário popularpraticado na colônia. Caldas Barbosa gozou de grande

sucesso no período em que viveu na corte onde eramuito comum apresentar-se acompanhado por suaviola e cantando modinhas.

Com base na análise poético-musical efetuada nomanuscrito da Biblioteca da Ajuda e da obra de CaldasBarbosa, Béhague sugere que, se não todasas modinhas da coleção, grande parte delas é deDomingos Caldas Barbosa. Destaca as característicasmusicais consideradas brasileiras presentes em muitasmodinhas desse manuscrito, sobretudo a frasesincopada, que no caso dessas peças, aparecetotalmente incorporada ao estilo musical, indicandouma prática adquirida naturalmente, ou seja,pela convivência, e não pelo resultado de estudostécnico-analíticos.

No estágio em que se encontram as pesquisassobre a modinha e o lundu, tanto no Brasil quantoem Portugal, encontramos vários poemas de DomingosCaldas Barbosa musicados por compositores derenome, tais como Marcos Portugal (1762-1830),compositor lisboeta que se transferiu para o Brasilem 1811 e aqui permaneceu até sua morte;e Antônio Leal Moreira (1758-1819), outro músicoportuguês de renome em Lisboa no final do séculoXVIII, só para citar alguns nomes. Outras tantasmodinhas sobre poemas seus, não trazem assinaturado compositor da melodia, porém é muito provávelque Caldas Barbosa compusesse música de “ouvido”,e por isso não tivesse o hábito de assinar suascomposições, pois consta que não era iniciadonos cânones musicais (Sandroni, 2001).

Fato é que, na documentação pesquisada atéo presente momento, há uma grande quantidadede modinhas que se destacam por possuir umamusicalidade muito própria: melodias sinuosas depoucos compassos e compostas por pequenos motivos,a presença da síncopa melódica, o acompanhamentoem arpejos de quatro colcheias, parafraseandoas batidas do nosso atual pandeiro ou ganzá. Insistonestas características pois elas serão associadasao universo afro-brasileiro e estão na base de gêneroscomo o choro, o maxixe e samba (Béhague, 1968).

Neste aspecto, o manuscrito Modinhas do Brasilé de fundamental importância, pois, das trinta

Page 42: Musica erudita brasileira - todas as revistas

modinhas que compõem a coleção, várias trazemmarcadamente estas características (Lima, 2001).Não afirmamos com isso que a musicalidade brasileirase resume aos aspectos acima destacados. Herdamos,com certeza, o gosto pela melodia que nos foi trazidapelos portugueses e todas as influências italianasincorporadas no decorrer do século XVIII; mas,certamente, a frase sincopada, como ela se apresentaem várias modinhas desse manuscrito, associadaao staccato monótono da viola ou guitarra, conferea elas um caráter muito particular, antecipando emaproximadamente um século as características musicaisque vão ser associadas ao choro, ao maxixee, posteriormente ao samba, como ficou dito acima.

A partir dessas afirmações, podemos concluir que,apesar de nossa dependência política, certascaracterísticas musicais e poéticas reputadas ao Brasil,inclusive por portugueses já no último quartel dosetecentos, apontam para um direcionamento próprio,pelo menos no que tange à produção musical.

Neste momento não podemos deixar de falardo lundu, dança popular brasileira introduzidano Brasil, provavelmente, pelos escravos angolanos,muito popular em meados do século XVIII (Andrade,1989). José Ramos Tinhorão descreve essa dançajá como um resultado da confluência de elementosda cultura negra, portuguesa e espanhola e praticadapor negros e mestiços no decorrer do século XVIIIe XIX (Tinhorão, 1991). O lundu-dança foi descritopor Tomás Antônio Gonzaga, um de nossos maiorespoetas inconfidentes, em uma de suas Cartas Chilenas,atestando ainda mais a sua popularidade na época.

O lundu era dançado, tendo comoacompanhamento o batuque dos negros einstrumentos já ocidentais, como a viola. Tornou-sepopular por seus elementos coreográficos: a famosaumbigada, o sensual requebrado das ancas e os trejeitosdas mãos e estalidos dos dedos, elemento que Tinhorãoassocia ao fandango Espanhol/ Português (idem, 1991).

A convivência entre negros livres e cativos, a classemédia e a corte, possibilitada pelos centros urbanosemergentes, aproximou, seguramente, o lundu damodinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fezcom que a modinha absorvesse o estilo sincopado dobatuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formasmusicais da recatada modinha, dando origem aolundu-canção. Estes lundus quase modinhas, ou estasmodinhas quase lundus, como destaca Mozart deAraújo em seu importantíssimo trabalho A modinhae o lundu no século XVIII (1963), são o maior exemploda fusão ocorrida, já no século XVIII, entre elementosda cultura da classe média européia e da culturapopular afro-brasileira.

É importante frisar que o lundu-dança foi utilizado,já no século XVIII, em espetáculos para divertircortesãos e membros da classe média, tanto no Brasilquanto nos salões de Lisboa. Isso torna evidente que,apesar de seu caráter “licencioso”, como queriamalguns, foi cultivado pelas classes mais favorecidas,mesmo que em forma de espetáculo e mais estilizado,e, certamente, influenciou músicos e poetas que nãopoderiam ficar imunes aos seus feitiços.

Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção,doravante chamada apenas de lundu, como sendo peça

50

Domingos Caldas Barbosa.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS

Page 43: Musica erudita brasileira - todas as revistas

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, M. de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte:Itatiania, 1989.

________________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia,1980.

ARAUJO, M. de. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo:Ricordi Brasileira, 1963

BÉHAGUE, G. “Biblioteca da Ajuda (Lisbon) Mss. 1595/1596:two eighteenth-century anonymous collections of modinhas”,Anuário do Instituto Interamericano de pesquisa musical, vol. IV,1968.

KIEFER, B. História da Música Brasileira: dos primórdios ao iníciodo século XX. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982.

_________ . A modinha e o lundu: duas raízes da música popular

EDILSON VICENTE DE LIMA

Musicólogo, autor do livro “As modinhas do Brasil” - Edusp 2001. Mestre em musicologia pela Universidade do Estado de São Paulo.Professor de História de Música e coordenador do curso de música da Unicsul.

MODINHA E LUNDU: BAHIA MUSICAL, SÉC. XVIII E XIX. BAHIA: Copene, s/d.

CANTARES D’AQUÉM E D’ALÉM MAR. SÃO PAULO: 1989

COMPOSITORES BRASILEIROS, PORTUGUESES E ITALIANOS DO SÉC. XVIII,

Américantiga, 2003

MARÍLIA DE DIRCEU.São Paulo: Akron, s/d

MODINHAS FORA DE MODA. São Paulo: Festa, s/d

MODINHAS E LUNDUNS DOS SÉCULOS XVIII E XIX.Lisboa. Movieplay, 1997

MÚSICA DE SALÃO DO TEMPO DE D. MARIA I. LISBOA: Movieplay, 1994

1900: A VIRADA DO SÉCULO. São Paulo: Akron, s/d

HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA (II). São Paulo: Eldorado, s/d

NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Belo Horizonte, s/d

VIAGEM PELO BRASIL. São Paulo: Akron, s/d

20 MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA/Sigismund Neukomm.

São Paulo: BIEM, 1998

DISCOGRAFIA

brasileira. Porto Alegre: Movimento, 1977.

LIMA, E. de. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.

MORAI, M. Modinhas, lunduns e cançonetas. Lisboa: ImprensaNacional – Casa da Moeda, 2000.

NERY, R V e CASTRO, P F. História da Música. Lisboa: ImprensaNacional – Casa da Moeda, 1991.

NERY, R.V. in “Música de Salão do tempo de D. Maria I – CD”.Lisboa: Movieplay, 1994.

SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Riode Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed.:Ed. UFRJ 2001.

TINHORÃO, J.R. Pequena história da música popular. São Paulo:Art. Editora, 1991.

para voz solista ou a duas vozes, em compasso bináriosimples, predominância da tonalidade maior, linhamelódica sincopada e geralmente composta porfragmentos curtos e o esquema formal variado. Comrelação ao texto, há predominância do uso da quadracom versos em redondilha maior e uso de refrão(Kiefer, 1986). O tema, na maioria dos casos, continuaamoroso, porém no caso do lundu, há uma tendênciapara a comicidade e a sensualidade (Sandroni, 2001).No século XIX, encontramos lundus estilizados,escritos em compasso binário composto, antecipando,ou já dentro de uma tradição romântica.

Durante o século XIX, a modinha e o lundu, jáautônomos em suas manifestações musicais, tornam-severdadeiros meios da expressividade musical tantopopular quanto erudita. Foi cultivado por músicoscomo José Maurício e Marcos Portugal; também porCarlos Gomes e, numa fase mais adiantada, por Villa-Lobos, já com sentimentos nostálgicos nas primeirasdécadas do século XX. Na vertente popular, serviramde suporte para músicos como Xisto Bahiae a maestrina Chiquinha Gonzaga e porque não dizer,de Tom Jobim e Chico Buarque. Ainda no século XIX,incorporaram-se ao repertório de espetáculospopulares e serviram de crônicas à sociedadede então, como no famoso lundu Lá no largo dasé velha, que tece uma saborosa crítica à corrupção

51

e aos desmandos econômicos da época.Finalizando, não obstante a origem aristocrática

da modinha, praticada, inicialmente, nos salõescortesãos e nas casas dos senhores mais abastados,aos poucos e numa convivência nem sempre tranqüila,foi absorvendo características musicais e poéticasdas manifestações advindas das classeseconômicas menos privilegiadas, irmanando-seao seu parceiro inseparável, o lundu. Ainda nessecaminho rumo a aceitação de todos, ambos,a modinha e o lundu, folclorizam-se, talvez num últimopasso para diluir-se na alma!

Page 44: Musica erudita brasileira - todas as revistas

FLUIZ AGUIAR

ora a honrosa exceção do livro “A Força Indômita” deMarcus Góes, editado em 1996, ainda não se fez umestudo minucioso sobre a vida de Carlos Gomes.Apesar da existência de uma série de livros, biografiase citações em diversas enciclopédias universais, o quese tem visto e lido é um amontoado de informaçõesbaseadas sempre nas mesmas superficialidades, nasmesmas fontes e, o que é pior, uma repetição constantede equívocos que vão se sedimentando...

Esses equívocos vão desde a data do nascimentode Carlos Gomes até suas origens. Muitas dessasinformações se baseiam no livro escrito por sua filha,Itala Gomes Vaz de Carvalho que, romanticamente,descreve seu pai como de origem espanhola,descendente dos Gomez de Pamplona e por aí vai...Na verdade Antônio Carlos Gomes (com S e nãocom Z) é filho de Manoel José Gomes, mulato, que porsua vez era filho de português com negra. A mãede Carlos Gomes, Fabiana Maria Jaguari Cardoso, erafilha de branco com índia. Nenhum traço espanhol,pois, em sua descendência.

Outro equívoco que se perpetua e continua sendodivulgado – o fato de Carlos Gomes ser um imitadorde Verdi – o que aliás, não seria nenhum demérito.Na verdade, Carlos Gomes sempre teve uma grande

CONSIDERAÇÕES SOBRE

veneração pelo Mestre de Le Roncole. Uma veneraçãoartística, veneração pessoal, vizinha da adoração. Emseu critério e escalonamento, Carlos Gomes colocavaVerdi logo abaixo de Deus e, em seguida, vinha suafamília. Neste particular é bastante conhecidaa narrativa de Luiz Guimarães Júnior sobre a primeiragrande emoção que a música de Verdi provocouno jovem Carlos Gomes. Famosa, também, a históriade seu primeiro contato com um “spartito” deIl Trovatore, em 1853, ainda em Campinas, meses apósa estréia da ópera. Desta emoção surgiu a composiçãoda Parada e Dobrado sobre motivo de Il Trovatore parabanda. Esta partitura foi – em 1976 – recuperada,revisada e reescrita por nós. É obra interessantíssima,em que o jovem Carlos Gomes, então com 17 anos,compõe para os instrumentos que dispunha na Bandaem que seu pai era o regente. Um tema, de autoria dopróprio Carlos Gomes, dá início à Parada (Desfile) e emseguida surge o tema do Dobrado (cabaleta – “Di taleamor” que sucede à belíssima ária “Tacea la notteplacida”). Solos alternados de trompete e clarineta.Estranhamente esta Parada e Dobrado termina emcompasso ternário, quase uma valsa.

Que Verdi foi o grande ídolo e modelo de CarlosGomes, não resta a menor dúvida. Mas não podemos

54

Page 45: Musica erudita brasileira - todas as revistas

esquecer – isto é muito importante – da influênciafrancesa de Gounod, no detalhe orquestral e, muitoespecialmente, de Meyerbeer, na grandiloqüênciada “Grand Opera”.

Carlos Gomes chega a Milão no ano da mortede Meyerbeer (1864). Bellini e Donizetti já haviamfalecido em 1835 e 1848, respectivamente, e o “belcanto” já dava sinal de envelhecimento... agonizava.Rossini, que viverá até 1868, encontrava-se afastado dacena lírica, em ócio voluntário. Verdi domina a cena!!!

Senão vejamos: Temporada 1864/1865 – “TeatroAlla Scala”:

02/janeiro – I Lombardi – Verdi19/janeiro – Ginevra di Scorzia – Rota02/fevereiro – I Vespri Siciliani – Verdi23/fevereiro – Gli Ugonotti – Meyerbeer

(em italiano, bem se vê)10/março – Le Aquille Romane – Chélard26/dezembro – La contessa d’Amalfi – Petrella31/dezembro – Norma – Bellini

A temporada prossegue pelo ano de 1865 comFaust (Gounod), em italiano – Rigolleto (Verdi) –Favorita (Donizetti) e L’Ebrea de Halévy (em italiano),do original La Juive. Sabemos, também, que o próprioVerdi, por motivos diversos, se auto exilara em Paris,somente voltando a compor em 1871 (Aída), e em 1874(Messa da Requiem). Neste período de aparente ócio,Verdi, após Don Carlos em francês – (1867), revisavasuas óperas anteriores (Macbeth, I Lombardi, SimonBoccanegra, Forza del Destino...). Mas, ao mesmotempo, Verdi se preparava e se reciclava para sua voltaà ópera com o Otello em 1887 e Falstaff em 1893.Verdi sabia que não tinha o menor sentido continuarescrevendo outras óperas no mesmo estilo e quea ópera estava prestes a sofrer uma renovação.

Paralelamente a este momento, a este auto-exíliode quase 17 anos, eclode o movimento dos“scapigliati”. Na verdade Carlos Gomes nunca foi um“scapigliato” na acepção da palavra. Mas era simpáticoao movimento de renovação da ópera e das artes emgeral. Conviveu, com toda certeza, com Boito, Faccio,Praga, Mariani e freqüentou os salões da Condessa

Carlos Gomes.Figurinos da ópera Lo Schiavo.Assinado por Luigi Bartezago.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

55

Page 46: Musica erudita brasileira - todas as revistas

56

Page 47: Musica erudita brasileira - todas as revistas

57

Maffei. Dessa convivência surgiram influências mútuas.É possível que Carlos Gomes tenha influenciado,com sua verve tropical, seu exotismo, sua originalidademelódica, harmônica e rítmica, aos compositorescontemporâneos daquele movimento.

Na verdade, a noite de 19 de março de 1870(estréia de Il Guarany no Teatro “Alla Scala”) marcauma época na história da ópera. O autor, jovemmaestro brasileiro, vindo de um país desconhecido.O libreto, baseado em romance de outro brasileirodesconhecido – José de Alencar. O tema, o amorde uma branca por um índio. Lutas de tribos rivais,presença de um cacique aimoré, antropófago e que,também, se apaixona pela moça branca, filha de umfidalgo português. Era muito exotismo junto. Tudobastante estranho; e o 3º ato – Campo dos Aimorés –com suas danças, evocações a Tupã, utilização deinstrumentos exóticos e inusitados – inubias, maracás...Tudo isto aliado a uma música que já prenunciavanovos caminhos: tendência à melodia infinita;abandono gradativo do esquema de árias, duetos, trios,quartetos, alternando com recitativos; música maisadequada ao texto, num desenvolvimento naturale espontâneo; nada de “belcantismo”, ao contrário,uma forte tendência na criação de situações dramáticascom a utilização de temas recorrentes e caracterizantesde uma determinada personagem ou situação; temasmusicais com grandes saltos melódicos ascendentese descendentes realçando uma certa virilidade em seusmeandros e arroubos harmônicos; tendência acentuadaao cromatismo; uso deliberado dos intervalos dequintas e sétimas, principalmente os chamados quintaaumentada e sétima diminuída, modulando comelegância e beleza; uso atrevido de nonas. Maso grande progresso, rumo à personalíssimacaracterização melódico-rítmico-harmônica de CarlosGomes se daria em 1873 com a ópera Fosca, verdadeiraobra-prima. Antecedendo 2 anos à Carmen de Bizet(1875) e de 3 anos à Gioconda de Ponchielli (1876),a ópera Fosca é um grito de alerta de uma novatendência lítero musical – o “verismo”. E, na Fosca,

Carlos Gomes está perfeitamente seguro de si. Nemuma nota a mais, nem uma nota a menos. Tudo emdose certa. Melodia, harmonia, ritmo se unem paraa mais perfeita e bela ópera de Carlos Gomes. Tudoque havia se evidenciado, de forma discreta,em Il Guarany (1870), atinge seu apogeu como enriquecimento de novas combinações tímbricasna orquestra, resultando uma instrumentação plenade matizes. Tratamento objetivo do libreto, excelentepor sinal, de autoria de Ghislanzoni, sem divagaçõese repetições desnecessárias. O final da ópera, a partirda frase “Non m’abborrir... compiagimi tu” é um dosmais belos momentos líricos de toda a história daópera. “Fosca”, que fracassou na estréia em 1873,conheceu o sucesso em 1878, já reformulada.

É muito importante realçar que Carlos Gomes nãoé somente o autor de Il Guarany, que muitos acreditamser apenas os dez minutos orquestrais da abertura,impropriamente chamada de protofonia. Por que nãonos referimos a esta abertura com o seu título original –sinfonia – como Carlos Gomes a denominou e como

Carlos Gomes.Caricatura publicada na Revista Illustrada, Anno 5, 1880FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE PERIÓDICOSIA

Página ao lado: Carlos Gomes. O Guarany. Imprensa Nacional. Riode Janeiro, 1986. Desenho de Álvaro M. Seth.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA

Page 48: Musica erudita brasileira - todas as revistas

58

era uso corrente naquela época? O caso do prelúdioprimitivo (da estréia em 19 de março de 1870) é umaoutra história.

Outras pessoas, entretanto, acrescentam que CarlosGomes é, também, o autor da modinha Quem sabe?com versos de Bittencourt Sampaio (“Tão longe, demim distante...”). Mas param por aí.

Carlos Gome é muito mais. Mesmo fora do Brasil,a partir de 1864, ele participou e viveu os problemassociais e políticos brasileiros. Embora não se devaconfundir conscientização com engajamento.Monarquista convicto e declarado, grande admirador

de D. Pedro II e da família imperial era, entretanto,a favor da causa abolicionista. Possuidor de umtemperamento difícil, irascível, meticuloso, detalhista(que o digam suas cartas) era sensível, nobre, generoso.Jamais um mesquinho.

Romântico por natureza, mas suas óperas estãoapoiadas no realismo, na corrente naturalista quedesembocaria no “verismo” (de vero = verdade).

As personagens das óperas de Carlos Gomes sãohumanas, de carne e osso. Nada de deuses, ninfas,mitos ou coisas que tais. Ouçamos, com atençãoa Fosca (1873) – a Maria Tudor (1879) – Lo Schiavo (1889)e, principalmente, Condor (pronuncia-se Côndor),de 1891. Esta última, inclusive, surge num momento de“crise universal”da ópera: quando o gênero lírico nãoera mais o centro do mundo musical. A Itália, também,volvia seus olhos e ouvidos à música instrumental.

É nestas águas que Carlos Gomes, também, foi sebanhar. Compõe a Sonata para quinteto de cordas que,em última análise, é um quarteto de cordas como acréscimo do contrabaixo. Não se trata de umasonata nos moldes clássicos e tradicionais. Masé música inspirada, espontânea, bem escrita e seuúltimo movimento – “vivace” leva o sub-título deBurrico de Pau. Música descritiva, não resta dúvida.

O romantismo musical brasileiro encontra, de fato,sua expressão mais ampla em Carlos Gomes e ZitoBatista Filho chega a afirmar que “genialidadeé fenômeno irreprimível e seu primeiro sintoma é odesafio ao horizonte”. Assim foi com Carlos Gomes:De Campinas (então São Carlos) para São Paulo, numafuga arquitetada, bem pensada e concretizada em 1859.De São Paulo ao Rio de Janeiro, uma distânciaconsiderável por terra e mar. A chegada na corteimperial, a Condessa de Barral, o imperador D. PedroII, seu ídolo, Francisco Manuel da Silva (autor do HinoNacional Brasileiro e diretor do Conservatório Imperialde Música), D. José Amat (diretor da Ópera Nacional).Vieram logo as perseguições, invejas e intrigas...

As duas primeiras composições importantes,as cantatas Salve dia de ventura e A Última Horado Calvário, ambas de 1860, estrearam em 15 de marçoe 16 de agosto, respectivamente.

Seguem-se suas duas primeiras óperas, também em

IL GUARANY

Plácido Domingo

Verónica Villarroel

Carlos Álvarez

Chor und extrachor der Oper Stadt Bonn

Orchester der Beethovenhalle Bonn. Regência: John Neschling

Sony SK66273 / 2 CDs

COLOMBO

Inacio de Nonno

Carol Mc Davit

Fernando Portari

Maurício Luz

Coros e Orquestra Sinfônica da Escola de Música da

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reg.: Ernani Aguiar

UFRJ MUSICA - emufrj - 004

ABERTURAS E PRELÚDIOS

Orquestra Sinfônica Brasileira

Reg.: Yeruham Scharovsky. OSBCD0001/98

SONATA PARA CORDAS ”BURRICO DE PAU”

Orquestra de Câmara de Londrina. ETU 112

Videos VHS e CDs

FOSCA

Gail Gilmore

Krassimira Stoyanova

Roumen Doykov

Orquestra, Coro e Solistas da Ópera Nacional de Sófia

Reg.: Luís Fernando Malheiro

FUNARTE / São Paulo Imagem Data / Sudameris 1997

MARIA TUDOR

Eliane Coelho

Kostadin Andreev

Elena Chavdarova-Isa

Orquestra, Coro e solistas da Ópera Nacional de Sófia

Reg.: Luís Fernando Malheiro

FUNARTE / São Paulo Imagem Data 1998

DISCOGRAFIA

Page 49: Musica erudita brasileira - todas as revistas

59

LUIZ AGUIAR

Pianista, maestro, compositor, pesquisador, restaurador e revisor da obra de Carlos Gomes.

1) Óperas completas, estreadas e muitasvezes apresentadas: 9

a) em português – A Noite do Castelo –1861Joana de Flandres – 1863b) em italiano – Il Guarany –1870Fosca –1873Salvator Rosa –1874Maria Tudor –1879Lo Schiavo –1889Condor –1891Colombo –1892 (na verdade um poemavocal – sinfônico mas claramentepensado como ópera)

2) Revistas musicais (vizinhas dasoperetas), estreadas e inúmeras vezesencenadas: 2

Se sa minga –1867Nella luna –1868

3) música vocal de câmara: 47 (5 emportuguês, 2 em francês, 1 em dialetoveneziano e 39 em italiano)4) Missas: 3 (Brevis – 2 e Solemnis –1)

a) São Sebastião – 1856b) Nossa Senhora da Conceição – 1859c) Sem título específico – 1852

5) Partes avulsas de missas (inacabadas(?) - perdidas as demais partes (?)

a) Kyrie – 1865b) Qui tollis – ?c) Credo – ?

6) Música instrumental de câmara: 4

a) Aria para clarineta e piano – 1857b) Al chiaro di luna (para bandolim ouviolino e piano) – ?c) Sonata para quinteto de cordas(Burrico de Pau) – 1894d) Variações para bandolim (Vem cá,Bitu) – ?

7) Música para piano: 36 (32 para pionosolo e 4 para piano a 4 mãos)8) Cantatas para coro masculino: 2

a) La fanciulla delle Asturie – 1866(coro e piano)b) Sacra bandiera – 1895 (coro e piano)

9) Arias avulsas para vozes e orquestra: 4a) Aria do cozinheiro (Eis-me aquinesta cidade) – 1855b) Aria do alfaiate (Senhor mestre,veja lá) – ? (na verdade um dueto)c) Aria de Teresa (Ogni brivido... ognirumor) 1872d) Mama dice (anteriormente compostapara canto e piano – 1882e em 1892 orquestrada pelo própriocompositor)

10) Coro “a capella” : 6a) Fugas tonais – 1866b) Fugas reais – 1866

11) Música orquestral: 3a) Variações sobre o tema do romanceAlta Noite – 1859b) Lalalayu (anteriormente compsotapara piano – 1866 e em 1867

orquestrada pelo prórpio autor)c) Eva (valsa) – 1871

12) Música para banda: 4a) Parada e dobrado sobre motivo daópera “O Trovador”- 1856b) “L’Oriuolo” (galope) composta em1888, posteriormente instrumentadapara banda por Giuseppe Mariani –1891c) Ao Ceará Livre – 1884d) Cruzador Escola “BenjaminConstant” – 1893

13) Música para coro e banda: 2a) Inno Marcia (Al fianco abbiam l’acciar)– 1883b) A Camões ( O teu dia irromperá dahistória) – 1880

14) Música para coro, banda e orquestra: 3a) Il Saluto del Brasile (Salve gloriososuol) – 1876b) Inno Alpino (In alto... in alto) – 1884c) Coro triunfal – também conhecidocomo Hino Progresso (Pela estrada deflores repleta) – 1885

15) Voz “a capella” (O Vos omnis) − ?16) Óperas inacabadas: 2

a) I Moschettieri (Gabriella di Blossac) −1871 (2 atos completos somente paracanto e piano)b) Morena – 1887 (idem)

Num balanço sucinto, a “vol d’oiseau”, podemos registrar, como finalização destas considerações,que a obra de Carlos Gomes se apóia no resumo abaixo:

português: A Noite do Castelo (1861) e Joana de Flandres(1863). Do Rio de Janeiro (8 de dezembro de 1863)a Milão (1864), passando por Portugal e França, embusca de conhecimento, de glória, num sonho que lhetrará o reconhecimento e a imortalidade. Trajetória deluminosidade crescente, com momentos de escuridão,depressão, dúvidas, sacrifícios e angústias, mas que,certamente, constitui uma página das mais belasda História do Brasil.

Funerais domaestro Carlos

Gomes.Fotografia

assinada porFidanza. 1896.

FUNDAÇÃO BIBLIOTECANACIONAL – DIVISÃO DE

MÚSICA E ARQUIVOSONORO

Page 50: Musica erudita brasileira - todas as revistas

TALEXANDRE PAVAN

CHOPIN CARIOCAObra do compositor Ernesto Nazareth mistura o refinamento

técnico da música de concerto com elementos populares

Ernesto Nazareth emSão Paulo em 1926.FUNDAÇÃO BIBLIOTECANACIONAL – DIVISÃODE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

odas as 229 composições de Ernesto Nazareth foramescritas para piano. Porém, ele só foi ter uminstrumento decente aos 63 anos, doado por amigosde São Paulo, depois de uma temporada na cidade.Até então, os pianos que usava eram de amigos, alunosou de lojas de música onde trabalhava.

Nascido no Morro do Pinto, no Rio de Janeiro,em 1863, Ernesto Júlio de Nazareth era filho de umdespachante aduaneiro e de uma pianista amadora,de quem herdou o gosto pela música de Chopin e pelovirtuosismo no instrumento. Aos dez anos de idade,ficou órfão de mãe e, na mesma época, sofreu umaqueda que provocou hemorragia no ouvido direito,causando problemas auditivos que o acompanhariampelo resto da vida.

Aos 14 anos, escreveu sua primeira composição,a polca-lundu Você Bem Sabe, que já revelava seu grandeinteresse pelos gêneros populares. A riqueza rítmicada peça fez com que fosse publicada e, daí por diante,Nazareth tornou-se músico profissional. A intençãodo pai era enviar o filho à Europa para aperfeiçoar

os estudos pianísticos, mas por falta de recursoso projeto foi cancelado.

A falta de dinheiro foi constante na vida deNazareth. Já adulto, era obrigado a executar acrobaciasmais virtuosas que suas peças musicais para podersobreviver. Além de professor de piano, se apresentavaem clubes que detestava e acabou arriscando atémesmo o serviço público – em 1907, conseguiu sernomeado escriturário do Tesouro Nacional, mas não foiefetivado no cargo por não dominar o idioma inglês.

Apesar das dificuldades financeiras, Nazarethcontinuava compondo. Mesmo sem o merecidoreconhecimento, ia cristalizando a linguagem urbanada música brasileira. “Nazareth imprimiu à rítmicaincipiente das polcas-lundus um caráter tão preciso,sistematizando e enriquecendo-a com uma tão grandevariedade de fórmulas, empregou nas suascomposições uma ciência rítmica, uma belezaharmônica e uma tal riqueza de invenção melódicaque o tornam de fato o expoente máximo damúsica popular brasileira e um autêntico precursor

60

Page 51: Musica erudita brasileira - todas as revistas

as peças com pouco valor como obras de concerto.Durante um bom período, garantiu o aluguel

como pianista da sala de espera do Cine Odeon,na Avenida Rio Branco. Como de costume na época,os espectadores se dirigiam ao cinema cercade uma hora antes do filme começar para ouviremos instrumentistas tocarem. No Odeon, tambémse apresentava a pequena orquestra do maestroAndreozzi, da qual Heitor Villa-Lobosera violoncelista.

Esse trabalho inspirou Nazareth em uma de suaspeças mais conhecidas, intitulada Odeon. Outras obrasde referência são Tenebroso, Apanhei-te, Cavaquinhoe Fon-Fon. O compositor transitou pela valsa, marcha,choro e tango. O nome tango foi usado no Brasil antesda Argentina, porém as peças de Ernesto Nazarethclassificadas desta forma nada têm a ver com a músicaportenha. Era apenas uma denominação maisaceitável, sob a qual o autor escondia as afinidadesde sua obra com os gêneros populares – comoo maxixe, uma espécie de pai do samba –, aumentandoas chances de ela ser editada. Alguns tangos deNazareth tiveram relativo sucesso, o que não quer dizerque tenham lhe rendido muito dinheiro. Segundoa praxe da época, quando as editoras compravamas peças, ficavam desobrigadas de repassar o lucrodas vendas para os compositores.

Em 1917, o diplomata Paul Claudel (irmãoda escultora Camille Claudel) transferiu-se paraa embaixada francesa no Brasil e trouxe comoacompanhante o compositor Darius Milhaud. Embora

SEMPRE NAZARETH (Kuarup),

de Maria Teresa Madeira (piano) e Pedro Amorim (bandolim)

ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES (Sonhos e Sons − Série Mestres

Brasileiros), de Maria Teresa Madeira (piano), Marcus Viana

(violino) e Sebastião Vianna (flauta)

ARTHUR MOREIRA LIMA INTERPRETA ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES

(Marcus Pereira), de Arthur Moreira Lima (piano)

RADAMÉS & AÍDA INTERPRETAM NAZARETH E GNATTALI (Kuarup),

de Radamés e Aída Gnattali (piano)

Inclui obras de Radamés Ganattali

DISCOGRAFIA

ALEXANDRE PAVAN

Jornalista, co-autor com Irineu Franco Perpétuo do livro “Populares e Eruditos” e colaborador da revista Carta Capital.

tenha sido apresentado aos ilustresautores brasileiros da época,Milhaud surpreendeu-se mais comos sons da rua do que com aquelesdas salas de concerto. “Seria dedesejar que os músicos brasileiroscompreendessem a importânciados compositores de tangos,de maxixes, de sambase de cateretês, como (Marcelo)

da nossa música erudita de caráternacional”, escreveu o musicólogoBrasílio Itiberê.

Essa característica da obrade Ernesto Nazareth trouxe maisproblemas do que dividendos aoautor: o povo não gostava muitode suas composições, porque nãoeram dançáveis, e os estudiosostorciam o nariz por considerarem

Tupinambá ou o genial Nazareth”, anotou o francês.Realmente, o pianista carioca deve tê-lo

impressionado, afinal, anos mais tarde, trechosdos tangos brasileiros Brejeiro e Escovado seriamaproveitados por Milhaud em sua suíte Le Bœuf SurLe Toit. Pena que o francês tenha se esquecido demencionar na partitura o nome de Nazareth, que maisuma vez não lucrou nada com a história.

Em seus últimos anos, Ernesto Nazareth teveo problema de audição agravado, mas, por motivoseconômicos, não pôde parar de tocar. Quando sesentava ao piano, era obrigado a debruçar-se sobreo teclado para tentar capturar o som das notas que lhefugiam. Em 1932, durante uma turnê no Uruguai,começou a apresentar os primeiros sinais de distúrbiosmentais. De volta ao Rio, passou por vários períodosde internação. Às vésperas do carnaval de 1934,escapou do manicômio e ficou desaparecido por 3 dias.Foi encontrado morto – por afogamento – próximoa uma cachoeira.

Ernesto Nazareth. Cavaquinho porque choras?Editora.Mangione (SP -1926) e Casa Carlos Gomes (SP-s/d).

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

61

Page 52: Musica erudita brasileira - todas as revistas

O Modernismo

62

Page 53: Musica erudita brasileira - todas as revistas

OLUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG

objetivo deste artigo é retratar a geraçãode compositores brasileiros ativos durante a PrimeiraRepública até o limiar da década de 1920.

Tradicionalmente considerados românticos − comoLeopoldo Miguez (1850-1902), Henrique Oswald(1852-1913) e Glauco Velásquez (1884-1914) − ou,alguns mais afortunados, precursores do nacionalismomusical − entre eles Brasílio Itiberê da Cunha(1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892), AlbertoNepomuceno (1864-1920) e Ernesto Nazareth (1863-1934) − essas caracterizações remetem a um ponto dereferência: a Semana de Arte Moderna. Esseacontecimento, que ocorreu entre os dias 13 e 17de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de SãoPaulo, “passou à história da cultura no Brasil comoevento que inaugura simbolicamente o modernismo”.(Travassos, 2000; 17). Em outras palavras,a (des)qualificação desses compositores se dava pelamaior ou menor proximidade de suas obras comos ideais desse marco zero, dividindo os períodoshistóricos em antes e depois da Semana.

Os critérios utilizados para as definiçõesde modernidade foram “a ênfase na atualização estéticae na luta contra o ‘passadismo’, representado a grossomodo pelo romantismo, na música, e peloparnasianismo, na poesia” (Travassos, 2000; 19)e no modernismo nacionalista.

Com base nesses critérios, os escritos tratavamde um digladiar entre o novo e o velho, o progressistae o ultrapassado, entre o independente e o

subserviente. Em suma, entre o nativo originale o estrangeiro transplantado ao exotismo dos trópicos.

De acordo com essa concepção, os artistasda Semana de 22 seriam não só os profetas do porvirmas os próprios agentes messiânicos dos novos tempos,levando a frente um projeto estético e ideológico cujoobjetivo era transfigurar a identidade e o centroideológico e cultural do Brasil, tendo São Paulo comoo centro irradiador.

Assim escreveu Menotti del Picchia (1892-1988),um dos ideólogos e porta-voz do movimentomodernista de 1922:

“Rinchem de inveja as outras ‘capitanias do país’,entretanto, em matéria de arte e de política, São Paulocontinua e continuará com a batuta e liderança [...]”.(Picchia apud Brito, 1971; 171)

Na mesma linha, Guilherme de Almeida (1890-1969) se refere que “São Paulo devia, par droit deconquête et naissance, ser também, no Brasil, o berço dalibertação intelectual”. (Almeida apud Brito, 1971; 178).

Como resultado, aos compositores da geraçãoanterior seriam passadistas, copiadores da Europa,tributários a uma estética que não mais representariaa sociedade de então, colaboradores na perpetuaçãode valores já ultrapassados. Entre esses compositores,alguns mereceram a qualificação de precursores, já quenão podiam ser de todo desqualificados. Quanto aosdemais, permaneceriam presos ao romantismo ou, namelhor das hipóteses, ao romantismo tardio.

Dessa forma, as forças antagônicas estavam postase os inimigos identificados. Seguindo o seu destinobandeirante, desbravador, os paulistas fizerama “batalha sem sangue da Semana de Arte Moderna”(Brito, 1971; 172) e saíram-se vencedores.

Página ao lado: caricatura de Alberto Nepomucenopor Enrico Caruso. Rio de Janeiro, 1917.COLEÇÃO PARTICULAR: SÉRGIO NEPOMUCENO

Musical Brasileiro

63

Page 54: Musica erudita brasileira - todas as revistas

64

No entanto, por mais significativos e escandalososque tenham sido os resultados obtidos no eventopaulista, os programas musicais apresentados nãose mostraram de todo inovadores. Wisnik já semanifestara a esse respeito ao diagnosticar que existiria“uma certa defasagem entre as idéias (alardeadas)e as obras (apresentadas)” (Wisnik, 1977; 66), além dea própria formação desses modernistas estar vinculadaao “passado”.

Em outras palavras, os resultados apresentadosdurante a Semana de 22 não se deram por um processode “geração espontânea”, e sim já eram gestadose amadurecidos por compositores como Brasílio Itiberêda Cunha, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno,Francisco Braga (1868-1945), Glauco Velásquez, entreoutros. Pode-se afirmar que estes compositores foramos “bandeirantes” que abriram o caminho paraos artistas da Semana, que sobre seus ombros

e conquistas os “novos modernos” tiveram êxito.Ainda segundo Wisnik, os modernos da Semana

de 22 manifestavam uma “preocupação febrilde atualização com referência às vanguardas européiase, portanto, de afastamento da tradição” (Wisnik, 1977;66), de onde se interpreta que um compositor comoNepomuceno estava comprometido com a tradição,cabendo aos “novos modernos” os lourosda atualização e do progresso.

Tal afirmação pode ser contestada por artigode Darius Milhaud (1892-1977), que viveu no Riode Janeiro entre 1917-1918, para Le Revue Musicalee também citado por Wisnik. Segundo Milhaud,Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald mantinhama biblioteca do Instituto Nacional de Música atualizadacom partituras de música contemporânea. Entretanto,cita somente os compositores e associações francesas,como C. Debussy, V. D’Indy, C. Koechlin, E. Satie,a Société Musical Independante e a Schola Cantorum,entre outros.

A atualização do meio musical carioca era tal que,ainda de acordo com Milhaud, “eles (Oswaldoe Nininha Guerra) me iniciaram na música de Satieque eu conhecia até então muito imperfeitamentee eu a percorri com Nininha, que lia excepcionalmentebem toda a música contemporânea” (Milhaud apudWisnik, 1977; 40).

Dois outros relatos se referem a essa ênfasecontemporânea patrocinada por Nepomuceno. Trata-seda série de 26 concertos realizados durante a ExposiçãoNacional de 1908, comemorativos ao centenário daabertura dos portos às nações amigas, por Dom João VI.Conforme Luiz Heitor Correa de Azevedo, “pode-sedizer que, em música, foi essa a nossa entrada oficial noséculo XX” (Azevedo, 1956; 171).

De acordo com José Rodrigues Barbosa, “Houveum momento em que as circunstâncias permitirama Nepomuceno uma série brilhantíssima de concertossinfônicos em que ele fez ouvir as produções dosnossos compositores e uma série luminosa da maismoderna literatura musical estrangeira”.(Barbosa, 1940; 28).

A abrangência do repertório apresentadodemonstrou que a relação de compositores estrangeiros

Alexandre Levy. Diploma da Premiação pelo Júri da ComissãoColombiana Mundial junto à Exposição Internacional de Chicago,1893. Edição da Sociedade Brasileira de Musicologia. São Paulo.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

Page 55: Musica erudita brasileira - todas as revistas

65

dada a conhecer ao público brasileiro não se restringiaaos franceses, como descrito por Milhaud algunsanos mais tarde, mas também incluía russose alemães, além de brasileiros.

Entre os estrangeiros, foram ouvidos Paul Dukas(1865–1935), Claude Debussy (1862-1918), AlexanderGlazunov (1865-1936), Albert Roussel (1869-1937),Rimsky-Korsakov (1844–1908), entre outros.

Já entre os brasileiros figuraram Araújo Vianna(1871-1916), Barroso Neto (1881-1941), ErnestoRonchini (1863-1931), Henrique Braga (1845-1917),Henrique Oswald, Carlos Gomes (1836-1896),Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, entre outros.

Com base na relação de compositoresapresentados durante os concertos da ExposiçãoNacional, pode-se concluir que se tratava de um eventoonde a intolerância estética não teria espaço. Assim,Carlos Gomes, compositor representativo do períodoimperial, vinculado à escola operística italiana, figuravaao lado de republicanos românticos e modernos,adeptos das escolas germânica e francesa. Daívislumbra-se, também, que a formação do públicode concerto estava entre os seus objetivos.

Reforça essa conclusão a respeito da atualizaçãodo modo de recepção o relato do pianista portuguêsJosé Viana da Mota (1868-1948), sobre a série deConcertos Populares, ocorridos em 1896 e 1897, e regidospor Nepomuceno. Esse pianista se manifesta que eram“os preços acessíveis a (sic) todas as bolsas, afim (sic)de espalhar o mais possível o gôsto (sic) pelamúsica [...]”. (Melo, 1947; 290).

A modernização pretendida no meio musicalcarioca se refletiu também na formação musical. Coubea Leopoldo Miguez realizar uma avaliação crítica dasprincipais escolas de música européias, culminandocom a publicação do relatório Organização dosConservatórios de Música na Europa, com o objetivode criar o Instituto Nacional de Música, fato que se deupelo Decreto nº 143, de 12 de janeiro de 1890.A qualidade e o grau de seriedade de seus professorese alunos era tal que, ainda de acordo com Viana daMota, “o que bem mostra a riqueza de elementosartísticos de que dispõe o Rio é que a associação[de Concertos Populares] não tem dificuldade

nenhuma em variar os artistas em seus concêrtos (sic)”.(Melo, 1947; 291).

Ainda sobre a ênfase na atualização estética, algunsexemplos da música de Alberto Nepomucenomostram-se sintomáticos e demonstram sua tendênciamodernizadora. Nas Variações sobre um Tema Originalop. 29, para piano, Nepomuceno utiliza politonalismo,escala hexatônica, escala pentatônica, entre outrosprocedimentos modernos. Também seguem a mesmatrilha a sua ópera Abul, bem como o ciclo de cançõesLe Miracle de la Semence, sobre texto do simbolistaJacques D’Avray (Senador Freitas Valle).

Merecem citação à parte as consideraçõesa respeito do Trio em fá sustenido menor,de Nepomuceno. Avelino Pereira relata que

“Em setembro [de 1916], o trio de piano, violinoe violoncelo formado por Barroso Netto, NicolinoMilano e Alfredo Gomes estreava no salão do Jornaldo Commercio o Trio em fá sustenido menor deNepomuceno, obra dedicada àquele conjunto musicale saudada por Luiz de Castro como o produtode um compositor que se tornou completamente moderno”[grifo nosso] (Pereira, 1995; 304).

Pereira ainda relata o fato de que os compositoresfranceses André Messager (1853-1929) e Xavier Leroux(1863-1919), recém chegados de Buenos Aires,compareceram a esse concerto de 1916. Ao final,ao ouvir o Trio, Messager dirigiu-se à Nepomucenodeclarando Vous avez débuté par un coup de maître!(Pereira, op. cit.; 304). Em audição posterior do Trio de

Luciano Gallet.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

Page 56: Musica erudita brasileira - todas as revistas

66

de a formação de muitos desses compositoresbrasileiros ter-se dado no velho continente, seguindo,na maioria das vezes, escolas progressistas.

Assim, para citar alguns dos mais conhecidoscompositores do período, observa-se que LeopoldoMiguez estudou em Portugal e na Bélgica; HenriqueOswald, na Itália; Alexandre Levy esteve na Itáliae na França; enquanto Alberto Nepomuceno tevea sua formação na Itália, na Alemanha e na França.(Uma boa panorâmica sobre esse assunto podeser encontrada no artigo Compositores românticosbrasileiros: estudos na Europa, de Maria Alice Volpe).

a música brasileira da escola alemã,considerada moderna, afastando-a dolirismo excessivo da escola italiana.Assim, Brahms e Wagner forammodelos em detrimento de Rossinie Verdi. No entanto, os programasmusicais se mantiveram ecléticos.Em um futuro não distante, Debussy,Fauré, Sant-Säens, entre outros,seriam somados a esse grupo.

As trocas com a Europa tambémmoldaram o crescente nacionalismomusical brasileiro. Não podemosperder de vista que, na época, a visãoeuropéia sobre o Brasil afirmavaa “impossibilidade de uma nação

Nepomuceno, Messager declarouque a obra colocava o autor entre osmelhores da música moderna (Pereira,op. cit.; 305). Darius Milhaudconcordava com essas consideraçõese estava desejoso da publicação doTrio para levá-lo para a Europa(Pereira, op. cit.; 308).

Após essas considerações, pode-se questionar a pretensãoatualizadora, anti-passadista, dos“novos modernos”. A geração decompositores da Primeira Repúblicajá se ocupava em manter-seatualizada, já que as trocas coma Europa eram freqüentes, além

civilizada nos trópicos e ainda por cima miscigenada”.(Odália apud Reis, 2002; 94). Logo, nada mais naturalque, no princípio, os brasileiros imitassem os europeuspara mostrarem que também eram capazes e, portanto,civilizados. Como exemplo temos José Maurício NunesGarcia (1767-1830), que compôs, entre outras tantasobras, uma Missa de Réquiem considerada obra-prima.Em uma etapa posterior, utilizaram-se temas nativoscom roupagem européia. O exemplo clássico sãoas óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio CarlosGomes (1836-1896). Após, a inspiração viria da músicapopular urbana, eventualmente da popular rural

ou folclórica, representada pela SérieBrasileira ou o prelúdio O Garatuja,de Alberto Nepomuceno e pelosTangos, Polcas e Valsas, de ErnestoNazareth. Um grande passo nessecaminho nacionalista foi a odisséianepomucena de escrever cançõessobre poemas em português, feito queainda sequer havia se concretizado emPortugal, segundo Viana da Mota.Continuando a migração dos pólos,chega-se ao extremo oposto, ondea música brasileira se vestiria deacordo com a sua sonoridade nativa,independente da citação folclórica.Foi um dos caminhos trilhados por

Para se ter em conta o espíritodesbravador desses compositores, valelembrar que até por volta de 1880,ópera e bel canto eram sinônimosde música no Brasil – e no restanteda América. Foi a partir dessa décadaque se deu efetivamente a introduçãoda música sinfônica e camerística noseventos musicais brasileiros, tendoMiguez, Oswald e Nepomucenocomo grandes divulgadores.

As mudanças de meios deexpressão e gosto pretendidos nãovisaram a substituição da ópera pelamúsica sinfônica ou de câmera.Tinham como objetivo aproximar

Alexandre Levy, Sinfonia.Edição da Sociedade Brasileira

de Musicologia. São Paulo.FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –

DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

Leopoldo Miguez. Desenho assinadopor Henrique Bernardelli em 1903.

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

Page 57: Musica erudita brasileira - todas as revistas

67

Villa-Lobos (1887-1959) em obras como os Choros paraorquestra ou nas obras Uirapuru e Amazonas.

Essa dinâmica de concepções nacionalistas não secoloca como pré, proto, ou qualquer outro prefixo tãocomum nas categorizações. São simplesmente visõesdistintas de nacionalismo, de acordo com o permitidopelas dinâmicas sociais de cada período histórico.Daí as afirmações do tipo “preocupação nacionalista”,para os compositores do período aqui tratado,apresentarem-se plenas de preconceito e presasao dogma do “futurismo” defendido na Semana de 22.Pela mesma razão, o juízo de que faltaria àNepomuceno, Levy e Brasílio Itiberê da Cunha maiorintimidade com a música brasileira mostra-senão procedente.

Parafraseando Mário da Silva Brito, poderãoparecer, ao público de hoje, tímidas e, por vezes,desajeitadas as realizações musicais dessescompositores brasileiros, mais acadêmicas do querevolucionárias, mas, ao seu tempo, repercutiamperturbadoramente, eram objeto de discussãoe poderiam causar algum escândalo. Mas foi, atravésdelas, que novas perspectivas puderam ser abertase processos mais amplos para a expressão musicalforam conquistados.

Portanto, o período da Primeira República, mostra-

LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG

Professor de piano no Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas (RS).Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Música, Musicologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de música no Brasil.Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1956.

BARBOSA, José Rodrigues. Alberto Nepomuceno. Revista Brasileirade Música. Rio de Janeiro, v.7, n.1, 1940. p.19-39.

BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro:antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1971.

CHAVES, Celso G. Loureiro. Literatura e Música. História daLiteratura Brasileira. Vol.3. Lisboa: Alfa, 2000.

MELO, Guilherme de. A música no Brasil: desde os tempos coloniaisaté o primeiro decênio da República. Rio de Janeiro: ImprensaNacional, 1947.

PEREIRA, Avelino Romero Simões. Música, sociedade e política:

NEPOMUCENO, Alberto − TRIO EM FÁ SUSTENIDO MENOR,

PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO. Trio Dell’Arte, 1995

Sony Music Entertainment

NEPOMUCENO, Alberto − SÉRIE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica

Brasileira/Souza Lima. Festa − Polygram, 1981

MIGUEZ, Leopoldo − SONATA OP.14, PARA VIOLINO E PIANO. VL. −Paulo Bosísio; Pno. − Lilian Barreto. 1998

OSWALD, Henrique − TRIO EM SOL MENOR OP.9. VL

Elisa Fukuda; Vc. − Antônio Del Claro; Pno. − José Eduardo

Martins. FUNARTE. 1998

LEVY, Alexandre − SUÍTE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica Brasileira/

Souza Lima. Festa

BRAGA, Francisco − TRIO PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO

Trio da Rádio MEC. Funarte ProMeMus

DISCOGRAFIA

se uma época muito rica para a música brasileira.A eterna atualização estética junto com a afirmaçãoda identidade brasileira, pelo auto-conhecimentode suas músicas nativas (urbanas ou rurais), refletemum “período mágico”, onde “reside a essência doverdadeiro e breve modernismo musical brasileiro”.(Chaves, 2000; 140). Na mesma linha reflexiva deCelso Loureiro Chaves, o modernismo musicalbrasileiro pós Semana de Arte Moderna dogmatizou-see virou Nacionalismo Musical Brasileiro.

Alberto Nepomuceno e a República Musical do Rio de Janeiro (1864-1920). Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto deFilosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio deJaneiro, 1995.

REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC.5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 2000.

VOLPE, Maria Alice. Compositores românticos brasileiros: estudos naEuropa. Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, v.21, 1994/95. p.51-76

WISNIK, José Miguel. O Coro dos Contrários – A Música em tornoda Semana de 22. São Paulo: Duas Cidades, 1977.