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Jonas Vieira

Jonas Vieira, jornalista e radialista, biógrafo, brasileiro, natural de Fortaleza, Ceará, nascido no dia 25 de dezembro de 1934, iniciou sua carreira como jornalista na condição de revisor dos jornais Gazeta de Notícias e O Povo, ambos da capital cearense, com a idade de 16 anos.

Fez o curso secundário no Liceu do Ceará, ao mesmo tempo em que comple-tava outro curso, de inglês, no Instituto Brasil Estados Unidos (IBEU), onde passou a lecionar, a partir de 1955, aos 21 anos de idade. Ainda em 1955, empregou-se na Ceará Rádio Clube, como assistente de produção.

Deixou o IBEU em 1958, filiando-se, integralmente, ao jornalismo, na condição de repórter do jornal Correio do Ceará, pertencente à cadeia de emissoras de rádio e jornais, Diários e Rádios Associados. Colunista da seção de rádio do jornal Unitário, sob pseudônimo de J. Júnior.

Viaja para o Rio, em 1959, dando prosseguimento à carreira jornalística. Primeiramente, como tradutor da antiga Editora Cruzeiro, que publicava inúme-ras revistas. Repórter dos jornais O Dia e A Notícia, durante o ano de 1959, e, no ano seguinte, do Diário da Noite e O Jornal. Ainda em 1960, foi contratado pela agência de notícias norte-americana Associated Press, como repórter.

Em 1962, foi admitido como repórter do jornal Última Hora, onde permaneceu até o ano de 1969, retornando, então, aos jornais O Dia e A Notícia. Na época, anos setenta, criou e editou os house organs do Club de Regatas Vasco da Gama, da Associação dos Profissionais da Caixa Econômica do Rio de Janeiro (APCE) e da cadeia de supermercados, Casas Sendas. Redator da agência de notícias Reuters.

Em 1978 e 1979, trabalhou como redator e subeditor da agência de notícias Jornal do Brasil, saindo em 1980 para ingressar na agência de notícias O Globo, também como redator e subeditor. No mesmo período, atuou como produtor e apresentador de programas na Rádio Roquette Pinto AM, do Rio de Janeiro, e, posteriormente, transferiu-se para a Rádio Nacional do RJ, a fim de exercer idênticas funções, além de redator de jornais falados da emissora.

Passagem, como redator, pelo Jornal dos Sports e pauteiro do jornal O Povo do Rio de Janeiro. No começo dos anos 90, foi contratado como pauteiro e redator das rádios CBN e O Globo, e, em 1996, como redator e editor de jornais falados da Rádio Tupi.

Autor de três biografias: Orlando Silva, o cantor das multidões, premiada pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), recentemente lançada em terceira edição; Herivelto Martins, uma escola de samba, em parceria com o jornalista Natalício Norberto; e César de Alencar, a voz que abalou o rádio. Por publicar, Francisco Carlos, ídolo do rádio e do cinema nos anos dourados, e Gonzagão e Gonzaguinha, duas vidas.

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JONAS VIEIRAO Maior Ídolo dos Anos Dourados Francisco Carlos

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JONAS VIEIRAO Maior Ídolo dos Anos Dourados Francisco Carlos

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Sumário

Prefácio 7 Carlos Drummond 9 Cyll Farney 21 Getúlio 22 Francisco Alves 23

Marta Rocha 26 Carlos Manga 27 Sílvio Santos 32 Teresinha Morango 34

Cauby Peixoto 35 Jorge Goulart 37 Laura Alvim 40 Harry Stone 42 Norma Benguell 44

Elis Regina 46 Lupicínio Rodrigues 48 Araguari 49 Ângela Maria 50 Capiba 51

Orlando Silva 52 Gregório Barrios 54 César de Alencar 56 Cearense 59

Belo Horizonte 60 João Gilberto 62 Clube da Chave 65 Carlos Lacerda 72

Grande Emoção 74 Jk e Sarney 77 Vestido de Noiva 78 Flamengo 81

Machado de Assis 82 Noel Rosa 83 Dálmatas e Faisões 84 Sônia Dutra 85

Mara Rúbia 86 Fiorentina 88 Nestor de Holanda 89 Os Cafajestes 90 Cantores 93

Jango e a Vedete 98 Lamartine Babo 101 Ídolo 103 Acontecimentos 105

Aviso aos Navegantes 108 Ângela Maria 112 Nelson Gonçalves 113 Barnabé, Tu és Meu 114

Garotas e Samba 117 1958 121 Rádio Nacional 124 Francisco Carlos Eternamente 138

Francisco Carlos Já 141 Agradecimentos 146 Crédito das fotografias 147

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Francisco Carlos com 6 meses

Com três anos

Com sua irmã Cléa Rodrigues

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P R E F Á C I OFrancisco CarlosChico Carlos

Olhos verdes tentadores, olhos meigos de criança; são teus olhos dois amores. E assim brincando de olhos, me olhei no espelho, e ele viu o que eu ainda não sabia: Não o inventei: ele já estava pronto; o mundo já o fizera assim.

Quando o conheci, eu um aluno de um professor de risos Oscarito, (esque-cido pela memória do Brasil), deparei-me com um Carioca não de berço, mas de espírito, cantor de grandes sucessos e com uma enorme veia cômica.

Na ocasião, Cyll Farney estava filmando na Alemanha, e me ocorreu a ideia de lançá-lo como um galã no cinema. Mais uma vez meus Protetores, aprova-ram e ficaram contentes: por não terem de me ajudar: ele já era um vencedor. Francisco Carlos − Chico − porque todo Francisco, é um Chico − como Francisco Alves − lembrei-me também de Carlos − Roberto Carlos − uma junção de nomes e talentos. Chico Carlos.

Lembrei-me agora do humor contagiante, hilariante de Chico, uma criança como a própria alegria. Quando a noite terminava num bar, lá vinha Chico, contando estórias para os garçons e amigos presentes. Tecia-as encantando a todos. Chico era uma festa de gargalhadas. Ou melhor, uma explosão de alegria, que enchia o ambiente em que estava, prolongava as noites com seu riso e nos trazia manhãs de felicidade.

Modesto, uma vez viajando juntos de avião, ele levantou-se da poltrona, quando o avião aterrissou, e me disse: Manga, estamos em Belo Horizonte, gentilmente deixou que eu fosse à sua frente, cedendo-me a passagem; ao chegar à porta, deparei-me com uma multidão de meninas, brotos que vinham enlouquecidas correndo em minha direção; aos berros, agitando fotos, cartazes, etc. Amedrontado, corri de volta ao avião, ficando escondido no banheiro. Chico Carlos, faceiro, com seus enormes olhos

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verdes e grande sorriso, desceu calmamente a escada do avião, abrindo os braços como que dizendo: Venham, estou em suas mãos, em seus braços, em seus corações.

Ali entendi por que era chamado O Rei dos Brotos. E eu acrescentei ao meu dicionário: broto, amigo, querido, companheiro, iluminado e muito, muito engraçado.

Francisco Carlos, um perfume que se evaporou, deixando todos aprisionados na alegria de sua voz e na saudade de sua presença. Uma cadeira vazia, não preenchida por ninguém.

Até breve Chico; tenha paciência. Posso demorar mais um pouco? Mas vou, é claro que vou até você, para abraçá-lo e reviver o riso, a voz, os meigos olhos verdes. Até.

Rio de Janeiro, 10 de Março de 2010

Carlos Manga

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C a r l o s D r u m m o n dDuas marchinhas, lançadas para o carnaval de 1950, não só alegraram milhões de foliões por todo o País. Muito mais do que isso, os seus respectivos títulos passaram a identificar e nomear dois tipos especiais de mulheres: o broto (brotinho), designativo de mocinha, entre 14 e 18 anos (podendo avançar, em certos casos, até os 20 anos) e balzaquiana, em homenagem às mulhe-res maduras, depois dos 30.

A primeira, Meu Brotinho, de autoria de Humberto Teixeira e Luís Gonzaga, teve como porta-voz um jovem cantor, Francisco Carlos, em início de carrei-ra, com 21 anos; e a segunda, Balzaquiana, de Antônio Nássara e Wilson Batista, consagrou outro jovem cantor, Jorge Goulart, de 23 anos. Por curio-sa coincidência, ambas composições deslancharam as carreiras artísticas dos dois intérpretes, que colheram, então, seus primeiros sucessos.

As letras de Meu Brotinho e Balzaquiana são de um preciosismo extraordi-nário e autênticos hinos de louvor à mulher: Ai ai brotinho/ não cresça meu brotinho/ nem murche como a flor/ ai ai brotinho/ eu sou um galho velho/ mas eu quero o teu amor/ Meu brotinho por favor não cresça/ por favor não cresça/ já é grande cipoal/ veja só que galharia seca/ está pegando fogo neste carnaval.

Balzaquiana foi uma espécie de contraponto ao Brotinho, uma sacada, digamos assim, de dois gênios da MPB, o cartunista e jornalista Antônio Nássara, e o sambista Wilson Batista, inspirada no romance do compositor francês Honoré de Balzac, A mulher de trinta anos: Não quero broto/ não quero não quero não/ não sou garoto/ pra viver mais de ilusão/ sete dias na semana/ eu preciso ver minha balzaquiana/ O francês sabe escolher/ por isso ele não quer qualquer mulher/ papai Balzac já dizia/ Paris inteira repetia/ Balzac tirou na pinta/ mulher só depois dos trinta.

As expressões brotinho e balzaquiana não saíram do uso popular, por muitos e muitos anos, até serem substituídas por gírias mais recentes: gata, em substituição a broto, e coroa, no lugar de balzaquiana. É interessante registrar que a música popular brasileira tornou a focalizar os mesmos temas, a mulher jovem e a mulher madura, por meio de dois sambas, ambos de Luís Antônio, Mulher de trinta, de 1957, e Menina moça.

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Mulher de trinta deslanchou a carreira do cantor Miltinho, até então crooner do conjunto de Djalma Ferreira na Boate Drink, no Rio de Janeiro, para se tornar um dos artistas mais populares do País. Depois ele lançou Menina moça, sucesso tão grande quanto Mulher de trinta, que deu a Miltinho e ao compositor Luís Antônio uma grande alegria e uma inesquecível tristeza.

A historinha merece ser contada, rapidamente, para ilustrar como o Brasil funciona: um candidato a empresário, de nome Geraldo Lima, que frequenta-va a Boate Drink, revelou a Miltinho que estava inaugurando uma etiqueta de discos para lançamento de jovens valores e quis saber se o cantor se interessaria em inaugurar o negócio como seu primeiro artista. Entre as faixas gravadas estava o samba Mulher de trinta, que estourou de imediato.

− O disco vendeu uma barbaridade. − contou-me Miltinho − Vendeu tanto, que Geraldo pegou todo o dinheiro que ganhou e foi morar na França. Momentos antes do embarque, ele deu dois cheques, um para mim e outro para o Luís Antônio, como pagamento pelo nosso trabalho. Os dois cheques não tinham fundo. Restou o consolo: abriu as portas do êxito para mim e para o Luís, e uma lição de vida.

É interessante destacar que os compositores das décadas de 1930, 1940 e 1950, principalmente os autores de música carnavalesca, costumavam recorrer a expressões e gírias criadas pelo povo do Rio de Janeiro em suas músicas, ou personagens da cidade. Em outras palavras, o povo influencia-va diretamente os compositores.

Humberto Teixeira e Luís Gonzaga, com Meu Brotinho, e Nássara e Wilson, com Balzaquiana, percorreram caminho inverso para o sucesso e ainda de quebra enriqueceram a língua com dois preciosos ditos, sobretudo balza-quiana, um sofisticado neologismo.

Não obstante, os produtores, pesquisadores e escritores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, em A canção no tempo, 85 anos de músicas brasi-leiras, dois volumes, que abrangem composições lançadas pela MPB de

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1901 a 1985. Eles garantem que a palavra brotinho surge, pela primeira vez, na música popular brasileira, em 1949, no samba de Benedito Lacerda e David Nasser, Normalista, sucesso gravado pelo cantor Nelson Gonçalves, com a carreira em acelerada ascensão.

De fato, diz a letra de Normalista: Vestida de azul e branco/ trazendo um sorriso franco/ e num rostinho encantador/ Minha linda normalista / rapidamente conquista/ meu coração sem amor/ Eu que trazia fechado/ dentro do peito guardado/ meu coração sofredor/ Estou bastante inclinado/ a me entregar aos cuidados/ daquele brotinho em flor.

Contando a história de Normalista, Jairo e Zuza informam: Este samba é um hino de louvor à normalista, menina-moça que não pode casar ainda, só depois de se formar. E é em seus versos que aparece pela primeira vez na MPB a expressão brotinho em flor, popularizada pela canção e que até mereceu uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, anos depois.

Adiante, historiando o aparecimento de Balzaquiana, os dois autores acrescen-tam: Depois do sucesso de Normalista, quando a palavra brotinho ficou em moda, Wilson Batista resolveu homenagear a mulher mais velha, propondo a Nássara fazerem uma música sobre o assunto. Então, os dois desenvolveram o tema na forma de uma marchinha que, por sugestão de Nássara, recebeu o nome de Balzaqueana (Jairo e Zuza optaram grafar balzaqueana com e), em alusão ao romance A mulher de trinta anos, de Honoré de Balzac.

O poeta Carlos Drummond de Andrade, em memorável crônica no Jornal do Brasil, de 1984, comenta a origem da palavra broto e reitera que seu emprego como sinônimo de adolescente (moça ou rapaz) não se deu com a marchinha de Humberto e Gonzaga, em 1950, nem tampouco com Normalista, de Benedito e Nasser. Ele cita o próprio JB, de 1932, quando a palavra broto foi usada, pela primeira vez, como sinônimo de adolescente (moça ou rapaz), mas que, na época, acabou não vingando.

Drummond exalta, então, a marchinha Meu Brotinho como responsável pela reinvenção de broto e atribui ao cantor Francisco Carlos, de quem se confes-sa admirador, a popularidade que a palavra ganhou a partir de sua gravação. Francisco Carlos escreveu uma cartinha ao poeta agradecendo os elogios e foi agradavelmente surpreendido ao receber inestimável cartão de Carlos Drummond, datado de 7 de abril de 84, dizendo:

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Prezado Francisco Carlos: Recebi há pouco sua carta, endereçada para o Jornal do Brasil. Eu não podia ignorar quanto a sua atuação artística influiu na popularidade da expressão Brotinho. É fato indiscutível. Lembro, entretan-to, que as minhas crônicas sobre o assunto registram vários depoimentos, pelos quais se verifica que a palavra Broto, usada como símbolo da mulher adolescente, já era falado por volta de 1932. Cordialmente, o abraço do velho admirador, Carlos Drummond de Andrade. P.S. Obrigado pela foto.

O depoimento de Carlos Drummond de Andrade não deixa dúvida de que foi a marchinha Meu Brotinho que, realmente, serviu para a popularização da palavra brotinho, e a verdade parece caminhar nesse sentido. No samba Normalista, a palavra brotinho é mencionada en passant, ao final dos versos da primeira parte da composição, como um recurso retórico do brilhante letrista David Nasser, que, da mesma maneira que Drummond, conhecia o termo empregado pela primeira vez em 1932, no Jornal do Brasil, como testemunha o poeta.

Já Meu Brotinho, não. A composição é toda centrada na menina-moça, a adolescente, e não apenas consagrou-se de imediato como um êxito carnavalesco, entrando para o cinema, no filme Carnaval no fogo, como projetou a carreira de Francisco Carlos. Além do mais, Humberto e Gonzaga eram os dois compositores de maior sucesso na MPB, por força do estouro do baião, gênero em primeiro lugar em audição na época, criação da dupla. Ora, somente em 1950, os dois emplacaram quatro composições (clássicos) entre as mais executadas do ano: Paraíba, Qui nem jiló, Assum preto e Baião de dois. Gonzaga foi mais adiante. Em parceria com Zé Dantas, lançou o clássico Cintura Fina.

O sucesso não tem explicação, mas uma coisa é certa: ele é multiplicador para quem está na crista da onda. Exatamente em 1950, os compositores Humberto Teixeira e Luís Gonzaga formavam a dupla de maior êxito na música popular brasileira, na esteira de permanentes hits colhidos desde 1947, quando os dois lançaram o baião com o clássico Asa branca.

Meu Brotinho era um baião. Como Luís Gonzaga hesitava em gravá-lo, Humberto tratou de procurar um intérprete para a nova composição da dupla. Um dia, ele ouviu, escutando a Rádio Mec, um jovem cantando uma canção sua, Louca (Louca, nunca houve um amor igual ao meu/ Louca,

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só você que não compreendeu), num programa de estudantes e calouros. O jovem cantor, fardado do Colégio Juruena, na Praia de Botafogo, identifica-ra-se apenas pelo nome Francisco.

Ao término do programa, quando saía da emissora, Francisco foi chamado pelo porteiro da rádio para atender um telefonema. Desconfiado, pensando que era seu pai, Francisco de Oliveira Rodrigues, que o flagrara matando aula, o jovem estudante relutou, mas acabou indo ao aparelho:

− Aqui é Humberto Teixeira, autor de Louca. Gostei demais de sua voz e faço--lhe um convite. Venha ao meu escritório, na rua México, para conversarmos.

Francisco Carlos, na semana seguinte, compareceu ao escritório do compo-sitor e também advogado: − Fui fardado e meio ressabiado. Para surpresa minha, Humberto deixou-me à vontade e continuou elogiando minha voz e interpretação de Louca. Mostrou-me então uma música que se tornaria pouco tempo depois num sucesso sem precedentes. Era Asa Branca.

A convite do Humberto, na semana seguinte, compareci a um show no Clube da Aeronáutica, apresentado por Haroldo Barbosa, com grandes nomes do rádio na época: Orlando Silva, Dalva de Oliveira, Dorival Caymmi, Os cariocas, Braguinha, entre outros cartazes.

Francisco Carlos com sua mãe Norah

Francisco Carlos com Dalva de Oliveira

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Francisco Carlos com Humberto Teixeira no Egito

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Haroldo Barbosa, a mando de Humberto, pregou uma surpresa no jovem convidado, pedindo o seu comparecimento ao palco para cantar: − Fiquei nervosíssimo. Aplaudido, fui ao palco e cantei Cabelos brancos, de Herivelto Martins e Marino Pinto. Os aplausos continuaram. No final do show, Braguinha, que era diretor da Continental Discos, fez-me uma proposta para gravar um disco. Humberto Teixeira, porém, cortou-me a proposta de Braguinha, revelan-do que eu iria gravar na RCA Victor uma marchinha de nome Meu Brotinho, para o carnaval de 1950. Do outro lado do disco, um 78 rotações, Mulher me deixa em paz.

− Não foi minha estreia no disco − relembra Francisco Carlos: − Um pouco antes eu havia gravado uma música do Fernando Lobo, Distância, comple-tando um disco da Orquestra do Russo do Pandeiro. Quando gravei Meu Brotinho, o diretor da Victor, Vitório Latario, antes que eu entrasse no estú-dio, advertiu-me, com uma franqueza inesquecível: Olha, garoto, reza para que essas músicas façam sucesso. Se não, nunca mais apareça com essa cara de pidão por aqui. Latario, ele próprio, ligou para Francisco Carlos duas semanas depois lhe oferecendo gordo contrato com a gravadora. Meu Brotinho transformou-se, rapidamente, em sucesso nacional, e até música de cinema. Recorda o cantor − A marchinha caiu no gosto, principalmente, das mocinhas e sendo cantada por toda a parte. Foi então que o Watson Macedo, da Atlântida Cinematográfica, mandou-me um convite para partici-par de uma de suas históricas produções, em preparativos.

− Ele olhou-me firmemente e indagou se eu era o intérprete de Meu Brotinho. Respondi que sim e Watson antecipou: Vamos fazer com você um quadro no Copacabana Palace, vestindo uma camisa listrada e cercado de mocinhas, tudo brotinho. Eugênio Carlos, O entalhador, era meu rival. Como galã, meu amigo Anselmo Duarte, o queridinho das mulheres na época, fazendo par com Eliana, a ‘namoradinha do Brasil’, minha amada amiga, e José Lewgoy, o eterno vilão das chanchadas da Atlântida. Nome do filme: Carnaval no fogo, um suces-são. Ficou oito semanas no Cine Rian, em Copacabana, batendo todos os recordes de bilheteria e superando E o vento levou, até então imbatível. Com Meu Brotinho e esse filme, começa, de fato, a minha história como artista.

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Francisco Carlos tinha 21 para 22 anos quando a glória abriu suas portas para o seu nome, praticamente num piscar de olhos. É curiosa a maneira como o destino transforma a vida das pessoas, para o bem ou para o mal, dependendo do que está reservado para cada ser. Até o final de 1949, quando teve a chance de gravar Meu Brotinho, Francisco Carlos batalhava por um lugar ao sol sem que nada de relevante lhe acontecesse. De repente, com uma simples música, lançando um modismo que agradou em cheio a multidão, tudo mudou para o jovem cantor nascido no bairro do Grajaú, filho de pais pernambucanos, Francisco de Oliveira Rodrigues e Norah da Silva Ribeiro Rodrigues.

De ilustre desconhecido, Francisco Carlos virou celebridade da noite para o dia, entrando no ano de 1950 com o pé direito, na invejável condição de artista mais popular do disco, do rádio e do cinema brasileiro, ou seja, o ídolo maior dos chamados anos dourados, que compreendem a década de 1950, quando o povo brasileiro viveu dias de muito glamour, ditados, sobretudo, pelas chanchadas da Atlântida, que atraíam multidões, e pelo rádio, que reunia extraordinários cantores, músicos, produtores, locutores, radioatores e animadores, e o futebol conquistava a primeira Copa para o País, em 1958.

Apenas dois momentos marcantes interromperam esse idílio do povo com a alegria: no próprio ano de 1950, em pleno Estádio do Maracanã, o Brasil perdia a Copa do Mundo para o Uruguai, depois de esfuziante campanha ao longo da competição; e, em 1954, a nação chorava a morte trágica do então presidente Getúlio Vargas, ao cometer suicídio em seu quarto no Palácio do Catete.

É imperioso observar que, quando se afirma que Francisco Carlos foi possui-dor de um reinado artístico durante a década de 1950, vale ressaltar que sua espetacular ascensão não se deveu a um golpe de marketing − uma espécie de jogada preparada para sublimar o seu nome, como aconteceu, por exem-plo, com o cantor Cauby Peixoto.

Cauby (nada a desmerecer seu imenso talento como cantor) surgiu no rádio e no disco em meio a ardiloso trabalho do esperto empresário Di Veras, que, inspirado em vitoriosos esquemas de lançamento e badalação de novos artistas em prática desde os anos 1940, nos Estados Unidos, como foi o caso de Frank Sinatra, garantiu-lhe ondas de fãs gritando o seu nome em programas de rádio e shows em cinemas, teatros e clubes, que culminavam em planejados tumultos a fim de chamar a atenção da mídia e do público.

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Moças arregimentadas exatamente com esse fim, rasgavam as roupas de Cauby (o mesmo estratagema usado para promover Frank Sinatra no início de sua carreira, nos Estados Unidos), enquanto Di Veras telefonava para as redações de jornais e revistas apontando os lugares onde essas demonstra-ções de paixão pelo jovem cantor ocorriam. Não foi o caso de Francisco Carlos, que, por sorte ou mérito pessoal (ou as duas coisas), deu um único tiro na mosca e acertou em cheio, com a gravação de Meu Brotinho.

A escalada dele em direção ao topo do estrelato nacional verificou-se em dura disputa com numerosos artistas masculinos que surgiram nos anos 1950, como o já citado astro Cauby Peixoto, Luís Cláudio, outro belo cantor, João Dias, sucedendo Francisco Alves, Luís Vieira, Gilberto Milfont, Carlos Augusto, infelizmente morto em trágico acidente de carro, e mais antigos cantores já consagrados pelo povo, como Orlando Silva, Sílvio Caldas, Carlos Galhardo, Nelson Gonçalves, Roberto Paiva, Ciro Monteiro, Jorge Veiga, Moreira da Silva, Gilberto Alves, Dick Farney, Vicente Celestino e Luís Gonzaga, para citar os mais festejados.

Deve-se, ainda, acrescentar a essa constelação de grandes nomes da MPB, na época, outros tantos astros e estrelas estrangeiras famosos mundialmen-te, como os cantores americanos Bing Crosby, Nat King Cole, Dick Haymes e Frank Sinatra, culminando, em meados da década de 1950, com o fenômeno de massas Elvis Presley; as cantoras Doris Day, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Billie Holliday, as orquestras de Tommy Dorsey, Harry James, Artie Shaw, Benny Goodman e Glenn Miller, que, mesmo com ele morto continuava fazendo sucesso por meio de imorredouras gravações, e mais: a onda do bolero, gênero musical que chegou ao Brasil nos anos 1940, com o cantor Pedro Vargas e que se popularizou em escala impressionante a ponto de atrair para o País magníficos intérpretes, como Gregório Barrios, vindo da Espanha e fixando-se no Rio de Janeiro.

Uma prova de que a ascensão de Francisco Carlos no mundo artístico brasi-leiro decorre, de maneira espontânea, sem apoio de empresários e de campanhas de marketing, como se tornou comum com numerosos artistas, desde a década de 1960, foi o seu ingresso na Rádio Nacional, na Praça Mauá, Rio de Janeiro. A toda poderosa RN, do Governo federal, que prece-deu em fama e prestígio em todo o País a Rede Globo de Televisão, desde a década de 1970, após sua criação, em l965.

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Na era do rádio, salvo raríssimas exceções, para se tornar conhecido do público e gozar do privilégio de gravar um disco, um aspirante a cantor (ou cantora) precisava fazer sucesso apresentando-se em emissoras de muita audiência, como as Rádios Nacional, Tupi e Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro, sintonizadas pela maioria dos ouvintes no Brasil. Entrar para a Rádio Nacional, líder absoluta de audiência, pertencer ao seu rico elenco, então, era a glória de qualquer artista e garantia de imensa popularidade.

Depois de lançar Meu Brotinho e figurar no filme Carnaval no fogo com essa marchinha, Francisco Carlos almoçava num restaurante da rua Duvivier, em Copacabana, com Anselmo Duarte, Jorge Dória e Humberto Teixeira, quando um rapaz aproximou-se da mesa e saudou o cantor: Meu pai assistiu, ontem, ao filme Carnaval no fogo. Não é você quem canta a Marcha dos brotinhos?

Respondi que sim e ele identificou-se como filho do general Leoni Machado, superintendente das Empresas Incorporadas Rádio Nacional. Disse que seu pai também vira o filme e queria fazer uma surpresa a ele, levando-me à sua casa, na rua Mascarenhas de Morais, em Copacabana. Acertamos o dia e fomos, eu e Humberto, à casa do general Leoni, sendo recebidos por sua esposa, Eleonora. Marcelo, filho do general, assim que entramos, chamou seu pai, e anunciou: Olha só quem está aqui! O general Leoni reconheceu-me e deu-me forte abraço, confessando-se meu fã.

O apartamento estava cheio de artistas da Rádio Nacional e alguns jornalis-tas, como Miguel Cyrl e David Nasser. Os olhares voltaram-se todos para mim, enquanto o general Leoni me pegava pelo braço e me levava para a biblioteca do apartamento, onde, olhando-me carinhosamente, perguntou-me se eu estava cantando em alguma emissora de rádio. Declarei que não e ele indagou-me se queria cantar na Rádio Nacional. Fiquei emocionado e concordei de pronto.

− Fui instruído a procurar, no dia seguinte, o Paulo Tapajós, diretor artístico da Nacional, e assinei de imediato um contrato com a emissora, parecendo um sonho, pois eu era fã de Francisco Alves, Orlando Silva, entre outros cartazes da emissora, e passava a figurar ao lado deles, sem ter recorrido a padrinhos ou favores, pelo contrário, entrando pela porta da frente como convidado.

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C y l l F a r n e yCom a entrada de Francisco Carlos na Rádio Nacional, sua fama tornou--se absoluta. Ele conta, entre outros episódios que passaram a acompanhar a sua carreira, que estava almoçando com Humberto Teixeira e o cantor Nuno Roland num restaurante no centro da cidade, quando se ouviu um alarido na rua.

Humberto foi até a porta do estabelecimento, curioso, para ver do que se tratava e voltou preocupado: Carlos, tem uma pequena multidão aí fora querendo te ver. Acho bom você não sair porque não tem polícia e o assédio a você pode se tornar incontrolável. Mal ele terminou de falar, invadiram o restaurante. Foi um deus nos acuda. Mas eu gostei. Sempre gostei e gosto do assédio do público. É sinal de admiração e carinho.

Não demorou muito e Francisco Carlos foi eleito rei do rádio, além de conquistar também o papel de galã em dezenas de filmes nacionais, onde já brilhavam os bonitões Cyll Farney e Anselmo Duarte.

− Eu e Cyll éramos muito amigos − recorda Francisco Carlos −, não havia despeito, ciumeira entre nós. Certa vez, Cyll convidou-me para ir com ele numa festa em Ipanema. A casa estava cheia e a nossa chegada causou alvoroço. Havia muito assédio e Cyll, não demorou, virou--se para mim e disse: Carlos! Agora que eu me toquei. Eu e você juntos somos um espetáculo para milhões. A gente não vai ter paz. Que tal sair de fininho e jantar em outra freguesia? Foi o que fizemos, aproveitando uma distração dos donos da casa. Foi pior. O mesmo problema repetiu-se no restaurante.

Francisco Carlos com Cyll Farney

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G e t ú l i oO sucesso de Francisco Carlos foi tão fulminante, que já no segundo ano de sua carreira ele desbancava, nada mais, nada menos, que o seu xará, Francisco Alves, o Rei da Voz, tomando-lhe o cetro de Rei do Rádio. Todo ano, a Revista do Rádio promovia o concurso para eleger o rei e a rainha do rádio, envolvendo a maioria dos ouvintes e fãs dos artistas, que votavam nos seus ídolos. Era uma iniciativa da Associação Brasileira de Rádio.

− Houve uma grande festa na entrega das medalhas do concurso e todos os artistas foram levados ao Palácio do Catete, onde fomos recebidos pelo presidente Getúlio Vargas. Foi uma grande emoção para mim, naquele ano, 1952, pois eu acabara de vencer um dos meus ídolos, o fabuloso Francisco Alves, e, de quebra, era recebido pelo presidente Vargas, que me dedicou uma atenção especial, em meio ao numeroso grupo de colegas recebidos por ele. O presidente estava ligado em tudo que acontecia no meio artístico. Fiquei impressionado e ainda mais seu fã.

Francisco Carlos com Gétulio Vargas

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F r a n c i s c o A lv e sVencer Francisco Alves, um dos cantores mais populares, senão o cantor mais popular do Brasil até sua morte, em 1952, não era façanha para qualquer um. O próprio Francisco Carlos recorda que logo depois desse concurso, deu-se a inauguração da Rádio Nacional de São Paulo, para onde acorreu grande caravana de artistas da Rádio Nacional do Rio: − Fui dos mais cortejados pelos fãs paulistas, mas fiquei impressionado com o cartaz de Francisco Alves. Terminado o espetáculo de inauguração, com a presença do governa-dor, fomos todos para o Hotel Excelsior, na Avenida Ipiranga, e terminamos a noitada num jantar no Brás. Fazia muito frio, mas, mesmo assim, havia muita gente esperando por nós. Ninguém me contou, eu assisti. Francisco Alves era puxado, abraçado, como se fosse um Deus. Não foram poucos os que fizeram questão de beijar suas mãos.

− Depois, eu e o grande Chico ficamos bons amigos. Lembro de um momento memorável na minha carreira, quando ele adoeceu da garganta e não pôde apresentar o seu famoso programa no domingo, na Rádio Nacional, no quadro Quando os ponteiros se encontram. Chico sugeriu o meu nome para substituí-lo. Quase não acreditei e confesso que fiquei nervoso no instante em que a locutora Eloísa Helena anunciou o meu nome. Era muita responsabilidade. Depois, ele me procurou e fomos juntos, em seu automóvel, até o Largo do Machado, onde o Chico mostrou-me algumas músicas e falou da sua admi-ração por mim.

Uma leitura atenta do século 20 conduz a algumas conclusões bastante significativas. Esse século foi polarizado por intenso romantismo e histórica violência, com duas guerras mundiais, as de 1914 – 1918 e 1939 – 1945, uma guerra localizada, a da Coréia, e a longa ameaça de uma guerra nuclear capaz até de acabar com a vida no planeta, ou seja, a Guerra Fria iniciada entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética, mas que, felizmente, ficou somente na ameaça.

Apesar de todos esses conflitos, a humanidade, pelo menos no Ocidente, cantou e dançou ao som da velha valsa e do foxtrot, do tango, da rumba e do bolero. No Brasil, além desses gêneros, os brasileiros brincaram e se esbaldaram, como se nada estivesse acontecendo, no carnaval, embalados

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pelo samba e a marchinha. Pelo menos até o final da década de 1950, a primeiros anos da década de 1960, violência nas ruas mostrava-se reduzida a brigas comuns. Não havia assaltos a mão armada, arrombamentos, sequestros de pessoas, arrastões, com pouquíssimas categorias de ladrões, também chamados de amigos do alheio: os punguistas, que procuravam agir na maior discrição, os oportunistas, e os chamados ladrões de galinha, que atacavam residências, mas que fugiam em pânico (imagina) quando eram flagrados pelos donos da casa.

Em outras palavras, os antigos ladrões (inclusive os ladrões dos cofres públicos) tinham vergonha de serem flagrados e apontados como ladrões, bem ao contrário dos seus sucessores e demais criminosos que passaram a agredir a população a partir dos anos 1970, coincidindo com a dissemina-ção do consumo de tóxicos.

A mesma leitura indica que a década de 1950 foi a mais romântica de todas, aquela que inaugurou a moderna sociedade de consumo, promovendo incom-parável liberdade de ir e vir e de agir das pessoas, sobretudo as mulheres.

A explicação mais razoável parece estribar-se nos seguintes fatos: terminada a Segunda Guerra Mundial, em 1945, o mundo, liderado pela principal potên-cia vencedora do conflito, os Estados Unidos, mergulhou no sonho de uma era de paz duradoura na Terra, e estimulado por larga produção de bens e novas tecnologias, trazendo o aperfeiçoamento de antigas invenções, como o rádio, o cinema, o disco, os veículos, os aviões, os eletrodomésticos, e introduzindo revolucionárias novidades, como a televisão.

A década de 1950 produziu o crescimento da comunicação e da propaganda, alteração de hábitos e costumes, diversificação da moda e a valorização da mulher, tendo como artífice os festejados concursos de miss realizados no Estádio do Maracanãzinho, no Rio, com os arrojados (para a época) maiôs Catalina, para a escolha de Miss Brasil, quando se destacaram candidatas-modelo como Marta Rocha, Adalgisa Colombo e Maria Emília Correa Lima. Selecionada a candidata brasileira, ela ia em seguida concorrer ao título máxi-mo da beleza mundial, o Miss Universo, em Miami, nos Estados Unidos.

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Francisco Carlos figurou entre os nomes que mais brilharam nessa década repleta de acontecimentos, personagens, surpresas e mudanças. O Rio de Janeiro polarizava as atenções do país, como capital da República e do prazer, por oferecer todo tipo de diversão e atrações: no rádio, com famosos progra-mas de auditório nas Rádios Nacional, Tupi e Mayrink Veiga; no teatro, exibição de peças estreladas por grandes nomes da dramaturgia brasileira, destaca-damente o maior ator brasileiro, Procópio Ferreira; badaladas revistas da Praça Tiradentes, a maioria assinadas por Walter Pinto, com vedetes de alto porte, como Mara Rúbia, Virgínia Lane, Marly Tavares, Anilsa Leoni, Norma Bengel e Elizabeth Gasper.

Francisco Carlos com Francisco Alves

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M a r t a R o c h aA prova do prestígio de Francisco Carlos estava por toda a parte aonde ia. Certa vez, quando da escolha de Miss Bahia para o concurso nacional de Miss Brasil, em 1954, ele foi convidado a fazer uma apresentação no Iate Clube de Salvador. Terminado o desfile e a escolha de Marta como candidata baiana, FC cantou, mas antes teve que atender, pacientemente, o assédio de todas as candidatas a lhe pedir autógrafo, à frente, a própria vencedora, que, posteriormente, tornou-se sua grande amiga e também pintora.

− Anos mais tarde, consagradíssima, Marta ia gravar Na Baixa do Sapateiro comigo, mas, lamentavelmente, ela engessou a perna por causa de uma queda e a gravação foi cancelada, porque no estúdio da RCA Victor, perto da Central do Brasil, o estúdio ficava na parte de cima de um prédio e o acesso era por uma escada em caracol. Com a perna engessada, Marta não podia subir e a gravação foi feita sem a sua participação. Ela gravou uma música para o carnaval com a Emilinha Borba.

Pintura a óleo Francisco Carlos

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C a r l o s M a n g aO elevado prestígio de Francisco Carlos na época pode, ainda, ser aferido em dois outros casos, envolvendo duas figuras que se tornaram celebridades no país, uma no cinema, Carlos Manga, e outra no rádio e na televisão, Sílvio Santos. FC conta: − Eu estava no aeroporto Santos Dumont, no Rio, esperando avião para São Paulo, quando um jovem magrinho, usando uniforme de trabalho da antiga empresa aérea Cruzeiro do Sul aproximou-se de mim. Identificou-se e caminhamos pelo hall do aeroporto, enquanto ele se dizia diretor do fã clube do cantor Dick Farney e que gostaria de me prestar uma homenagem. Era Carlos Manga.

− Na volta de São Paulo, fui ao local anunciado, repleto de jovens, onde se realizou um show. Após o espetáculo, Manga revelou-me que tinha um sonho, o sonho de fazer cinema e que precisava de uma oportunidade. Gostei da conversa dele e ficamos amigos. Eu era contratado da Atlântida e havia feito vários filmes com Watson Macedo e José Carlos Burle, principais diretores da companhia. Aproveitei uma visita de Luís Severiano Ribeiro, o todo poderoso distribuidor de filmes no Brasil, aos estúdios da Atlântida, onde seria rodado um musical dirigido por Macedo.

− A produção do filme estava parada por causa de desentendimentos com Macedo e eu então sugeri o nome do Manga para fazer o trabalho de direção. Manga foi muito elogiado pelo seu desempenho e, a partir daí, consagrou-se como um dos maiores diretores de cinema do Brasil, sendo responsável por inúmeros sucessos de bilheteria, dirigindo cartazes como Oscarito, Grande Otelo, Cyll Farney, Adelaide Chiozzo, Miriam Teresa, filha do Oscarito, Margot Louro, Zezé Macedo, Renato Restie, Augusto César Vanucci, entre outros. Eu mesmo fiz vários filmes com ele, como Garotas e samba, Colégio de Brotos e Esse milhão é meu. Pelo visto, acertei na mosca apadrinhando, digamos assim, o Manga no início de sua brilhante carreira.

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Cena do filme Colégio de brotos com Oscarito

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Cena do filme Esse Milhão é Meu

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Filme Aviso aos Navegantes

Filme Esse Milhão É Meu

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S í lv i o Sa n t o sO outro cartaz que ganhou uma mãozinha inestimável de Francisco Carlos, foi o comunicador e depois bem sucedido empresário Sílvio Santos, que se tornou dono de canal de televisão, o SBT, deixou o Rio de Janeiro, onde atuou como modesto locutor e não conseguiu se firmar, até ir para São Paulo tentar a sorte e coroou-se na área de negócios e da comunicação.

Francisco Carlos estava no bar que funcionava no antigo 22º andar da Rádio Nacional do RJ, na companhia do compositor Valzinho, quando chegou-se a eles o compositor paulista José Roy. Pouco depois, aproximou-se do grupo um locutor ainda em início de carreira na emissora, trabalhando num programa dirigido ao homem do campo, dizendo uma vinheta do patrocinador, Óleo de Lima. A vinheta era Viva o Óleo de Lima e o locutor, Sílvio Santos.

Sílvio dirigiu-se a José Roy e revelou que gostaria de trabalhar em São Paulo. Roy respondeu-lhe que quem tem prestígio em São Paulo é o Francisco Carlos. É que o diretor da Rádio Nacional de São Paulo, Osmar Campos Filho, era muito amigo do cantor. Ali mesmo, Francisco Carlos fez um bilhete para Osmar e entregou-o a Sílvio Santos, recomendando-o ao amigo Osmar.

Naquele mesmo dia, à noite, Sílvio embarcou para São Paulo, indo procurar Osmar Campos Filho na Rádio Nacional paulista. Com o tempo, engajou-se com Manoel da Nóbrega, que possuía o Baú da Felicidade, tornando-se seu sócio e deslanchando, afinal, sua vitoriosa carreira no rádio e na televisão de São Paulo.

Francisco Carlos conta que, anos e anos depois, surpreendeu-se ao ver Sílvio Santos na televisão, à frente de um programa de crescente sucesso, no qual figurava um quadro, Porta da Esperança, onde alguém da plateia era sorteado e manifestava um desejo. Sorteada, uma fã do cantor disse que gostaria de revê-lo. Convidado pela produção do programa, Francisco Carlos (levando um quadro seu para a fã) foi a São Paulo apresentar-se no Porta da Esperança, e reencontrou-se, depois de muitos anos, com Sílvio. Os dois, então, confraternizaram-se em pleno programa e relembraram os antigos tempos da Rádio Nacional e o bilhete a Osmar Campos Filho.

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− Não conto isso para me gabar − insiste Francisco Carlos: − Mas são episódios importantes da minha carreira e tenho muito orgulho em contar que, assim como fui ajudado, também dei minha contribuição, na medida do possível, para os que me procuraram em busca de apoio. Nos casos do Manga e do Sílvio, a satisfação é dupla, porque eles foram além de qualquer expectativa.

− Posso alinhar outros nomes, sem falsa modéstia, como meus extras (figurantes) em filmes. Lembro bastante de Daniel Filho, grande ator, que pedia-me participação no filme Colégio de Brotos, ou então gente maravilhosa que incentivei no começo da carreira, como Augusto César Vannucci, Ed Lincoln, Fausto Guimarães (o apresentador), Noel Carlos, Coleneh Costa, o cômico Badaró, e Teresinha Morango (ex-Miss Brasil).

Francisco Carlos com Silvio Santos no programa Porta de Esperança. Atendendo o pedido de uma fã

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Te r e s i n h a M o r a n g o− Falo com muito carinho da Teresinha − acrescenta Francisco Carlos. Ela candidatou-se a um concurso de beleza patrocinado pela revista Radiolância, onde eu tinha uma página à disposição. Pediu o meu apoio e eu dei a maior força, além de levá-la para fazer uma ponta no filme Colégio de Brotos. Ficamos grandes amigos, até que Teresinha foi eleita Miss Brasil, confirmando nossa expectativa sobre a sua imensa beleza. Ela e eu posamos para a capa da revista O Cruzeiro, publicação de maior popularidade na época.

− Apostei no sucesso de Aguinaldo Timóteo, ainda completamente desconhe-cido, ouvindo-o cantar uma noite, e fui o primeiro a gravar Adelino Moreira. Gravei dele o samba Ela hoje é diferente, acompanhado por Jacob do Bandolim. Lancei Aroldo Eiras como compositor, gravando duas músicas que ele me ofereceu, Adorável como um sonho e Minha prece.

− Outra figura querida a quem fiz questão de ajudar foi Sônia Mamede, que, um dia, abordou-me declarando-se minha fã e pedindo um autógrafo. Iniciamos forte amizade. Sônia passou a me acompanhar nas filmagens da Atlântida e, uma tarde, o diretor Watson Macedo, vendo-a conversar comigo, indagou se ela era do Norte. Com muita presença de espírito, Sônia retrucou: Sou não, meu bichim. Watson adorou e contratou-a. Não preciso comentar, agora, que Sônia tornou-se uma das maiores estrelas brasileiras.

Francisco Carlos com Terezinha Morango

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C a u b y P e i x o t o− Certo dia, recebi um telefonema do empresário Di Veras, pedindo-me que o visitasse em seu escritório, pois tinha um bom negócio para me propor. Logo que cheguei, ele foi direto ao assunto: Gostaria de promover uma rivalidade entre você e o Cauby, igual a de Marlene e Emilinha. Ele então revelou que a ideia era um desfile meu em carro aberto pelas principais avenidas e encerrar o desfile cantando num espetáculo com o Cauby.

− Respondi: Ouvi o Cauby cantar uma vez e gostei. Mas o cartaz sou eu, Di Veras. O que eu ganho com isso? Disse-me que tinha reservado boa quantia em dinheiro para mim e fez uma oferta. Recusei. Ele dobrou a oferta e eu aceitei, desde que a promoção não fosse no Rio de Janeiro. Ficou combinado que seria Belo Horizonte e que haveria uma tentativa de briga entre mim e o Cauby, apartada por Russo do Pandeiro, um dos acompanhantes de Carmem Miranda nos Estados Unidos. Com esse cachê que o Di Veras me pagou, com-prei um apartamento em Copacabana.

Copacabana assumiu, a partir dos primeiros anos da década de 1950, a primazia da diversão noturna na cidade, com a inauguração de dezenas de boates, várias delas se tornando notórias como pontos de encontro da sociedade carioca, de artistas, intelectuais e turistas, como as Boates Arpege e Drink, e as internacionais revistas montadas por Carlos Machado, no Copacabana Palace.

A música estava presente por toda a cidade, o carioca cantava de dia e de noite, principalmente à noite, nos programas de rádio, nos dancings do Centro e da Lapa, nas boates de Copacabana. Nos dancings e boates atuavam cantores chamados de crooners (palavra inglesa designativa de pessoas que cantam baixinho, discretamente), à frente de conjuntos de poucos músicos que tocavam ininterruptamente um variadíssimo repertório contemplando os gêneros musicais mais populares, como o samba, o bolero, o foxtrot, etc.

Dancings e boates revelaram-se excelentes escolas de aprendizado do canto popular, como prova a consagração de magníficos intérpretes da MPB, cujas carreiras foram forjadas em longas noitadas como crooners de conjuntos ou pequenas orquestras que animavam a noite carioca das décadas de 1940 e 1950, Luís Gonzaga, Luís Vieira, Elisete Cardoso, Tito Madi, Miltinho, Jorge

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Goulart, Ângela Maria, Jamelão, Helena de Lima, Elis Regina, João Gilberto, entre outros. Francisco Carlos lamenta não ter passado por essa escola musical:

− O sucesso despontou cedo na minha vida e eu sinto que me faltou mais cancha, como se dizia antiga-mente, mais experiência, para desenvolver a minha arte. Trabalhar como crooner ajuda muito a tempe-rar a voz e a enriquecer repertório. Cito o caso do Miltinho, por exem-plo, que começou cedo na vida artística, mas que forjou sua arte cantando na noite durante vários anos, o mesmo sucedendo com minha amiga Elisete Cardoso. Fui bem, mas fui obrigado e aprimorar-me com o bonde andando, o que requer redobrado esforço para não decepcionar os fãs.

De fato, ao contrário de numerosos cantores que ralaram muito até firmar prestígio e ganhar popularidade, Francisco Carlos iniciou carreira pelo alto e logo transformou-se no maior cartaz brasileiro dos anos 1950, no rádio, no disco, no cinema e na linha de shows, constituindo um fenômeno único no País. Veja-se o caso de sua contratação pelo Copacabana Palace, que apresentava uma linha de espetá-culos noturnos, principalmente para turistas, e que, para isso, a direção do famoso hotel escalava Caribé da Rocha, tido como uma pessoa muito gros-seira no trato com os artistas, para selecionar e cuidar das atrações para o exigente público que comparecia, todas as noites, ao Copa.

Francisco Carlos com Cauby Peixoto

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J o r g e G o u l a r tFrancisco Carlos era a principal atração do show Varig, a dona da noite, na boate Meia-Noite, apresentado pelo locutor Murilo Néri: − Não sei por que, mas o Caribé gostava muito de mim. Na verdade, eu era muito querido pela família Guinle. O velho Otávio, que nunca dava palpite nos shows do Copa, tinha especial atenção comigo e recomendava ao Caribé a renovação do meu contrato. Cheguei a ser padrinho de casamento do Eduardo Guinle. Certo dia, durante um almoço, Caribé me propôs novo contrato.

− Disse-lhe, sinceramente, que não dava mais para continuar, porque estava tendo prejuízo. Chovia convites para cantar no Rio e fora do Rio e não podia atendê-los por causa do Copa. Mostrei, então, recibos de shows, como o de São José do Pinhal, em que eu ganhava numa noite o que o Copa me pagava o mês inteiro. Comprometi-me a levar outro cantor para o meu lugar e apresentei Jorge Goulart, que foi aprovado e levou, de quebra, a minha amiga Nora Ney, formando uma dupla de muito sucesso, como eu esperava.

De acordo com Francisco Carlos, o Copacabana Palace foi responsável pela compra do seu primeiro carro, um Peugeot, zero quilômetro: − Ao renovar meu primeiro contrato com o Copa, o Caribe, para surpresa minha, concordou em adiantar o dinheiro que eu ia ganhar naquela temporada, permitindo a compra do automóvel. Ele não fazia isso com ninguém. Anos depois, troquei o Peugeot por um Oldsmobile, Star Fire, que custava uma fortuna. Só havia dois Star Fire no Rio, o meu e o do milionário Raza Gaballa. Era o máximo da esnobação.

Um dos aspectos mais interessantes da carreira de Francisco Carlos, é que ele não tinha em mente transformar-se num cantor quando chegasse a vida adulta. O seu sonho de menino era o desenho: − Eu nasci no dia 7 de abril de 1925, no Grajaú, mas com oito anos fui com meus pais e irmãos para o Recife, por problemas financeiros. Papai era corretor financeiro, tinha uma casa bancária e perdeu tudo. Fomos nos refugiar numa fazenda próxima do Recife, a Fazenda Dois Irmãos, em 1934, onde ele passou a criar gado. Três anos depois, contudo, estávamos de volta ao Rio, indo morar na Gávea. Foi quando ganhei meu primeiro prêmio como artista.

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Ele arrebatou o primeiro lugar num concurso de desenho do jornal O Globo, para a revista Gibi, concorrendo com centenas de candidatos: − Entusiasmado com o prêmio, procurei aprimorar-me com o prof. Oswaldo Teixeira, grande mestre do desenho e da pintura, que ensinava numa casa da rua Paulino Fernandes, em Botafogo. Nas horas vagas, exercitava-me na Sociedade Brasileira de Belas Artes, onde conheci pintores renomados como Guinhar, Vicente Leite e Manuel Santiago. Era muita coisa para um menino de apenas 13 para 14 anos, minha idade então. A partir daí dei início à minha carreira como pintor.

A carreira de pintor de Francisco Carlos passa por Paris, onde ele viveu dois anos, por conta própria, deixando praticamente de cantar durante todo esse período. Diz ele: − Ainda gravei uns poucos discos, na França, versões de músicas brasileiras em francês. Foi um tempo muito proveitoso para mim, embora tenha me custado um bom dinheiro. A ideia surgiu por ocasião de uma excursão de artistas brasileiros pela Europa, organizadas por Humberto Teixeira, a Caravana do baião, com a finalidade de divulgar a MPB pelo mundo.

Na volta dos outros artistas, decidi ficar e fazer um curso de pintura nos melhores ateliers franceses.

− O grupo em que fui, liderado pelo Humberto, tinha o Waldir Azevedo, Dalton Vogeler, Poly, o percussionista King, Orlando Silveira, Hoana, Lombardi Filho, o jornalista Eugênio Lira Filho, Darlene Glória, a cantora Marta Kelly e a bailarina Lúcia. Quando nos preparávamos para deixar Roma com destino à Grécia, o motor do avião pifou e ficamos aguardando nova partida no aero-porto. A tensão era grande e o Valdir Azevedo e eu, que não éramos de beber, decidimos tomar uns uisquinhos para tomar coragem. Foi uma graça. Parecia um filme de comédia a nossa entrada no avião, cheio de árabes vestidos a caráter. O que dissemos de bobagens foi uma grandeza, mas serviu para descontrair a nós e o grupo.

− O avião seguiu para Gaza, onde desembarcamos. Aproveitamos para visitar o túmulo de Sansão e Dalila e ainda fizemos shows para os soldados brasi-leiros da força de paz da ONU estacionados no Egito. Valdir Azevedo e eu,

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uma tarde, saímos atrás de presentes e lembranças e encontramos um bazar onde havia de tudo. O vendedor abriu um baú e de lá tirou uma caixi-nha para nos mostrar. Assim que a caixinha abriu, tocou uma música. Qual?

O baião Delicado, do Waldir. Surpresa geral. Quem cedera os direitos? Ninguém sabia. Ficou por isso mesmo. Na volta à Europa, gravei dois LPs, um na França, lançado em vários países, e outro em Portugal, onde realizei demorada temporada no Cassino Estoril e era saudado como o Rei do Rádio do Brasil.

Francisco Carlos com Francisco Alves, Dircinha, Jorge Goulart, Linda Batista e João Dias

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L a u r a A lv i m− Decidi permanecer na França, como já disse, por conta própria, estudando pintura durante dois anos. Graças a isso, minha pintura ganhou maturidade e proporcionou-me, ao retornar ao Brasil, firmar minha carreira como pintor e realizar exposições. Uma delas foi muito marcante. Recebi da Socila um convite para expor meus quadros em sua galeria. O convite foi prefaciado por Ricardo Cravo Albim e atraiu grande público, destacando-se o pintor Osvaldo Teixeira, um dos maiores do Brasil, e uma mulher encantadora, Laura Alvim, que se declarou minha fã.

− Ela me contou, então, que era proprietária de uma mansão na Avenida Vieira Souto e surpreendeu-me revelando, particularmente, que precisava de ajuda. Disse-me que atravessava fase financeira bastante crítica e esforçava-se para não se desfazer da mansão da família na Avenida Vieira Souto, para a qual havia recebido inúmeras propostas de construtoras. Argumentou que amava a memória do pai e, a convite dela, visitei a mansão em Ipanema. O lugar estava em precárias condições. Prontifiquei-me a ajudá-la e, posteriormente, com a sua morte, tive a satisfação de ver que a casa não tinha sido demolida e se transformara num centro cultural, a Fundação Casa das Artes Laura Alvim. Acredito que, de certa forma, contribui para esse auspicioso fim.

− Por falar, ainda, em pintura, não posso deixar de fazer um registro histórico sobre um grande pintor, o também cantor Gastão Formenti, que eu ouvia com a maior admiração ainda menino, no rádio e por meio de suas gravações. Certa tarde, na Rádio Nacional, vieram me dizer que ele estava a minha procura, no corredor da emissora. Fui ao seu encontro e nos cumprimen-tamos efusivamente. Levei-o a um estúdio, onde Gastão explicou que tinha um filho, César Formente, que havia composto uma música e gostaria de vê-la gravada.

− Declarou-me que, se quisesse, ele mesmo poderia gravá-la, ou então poderia recorrer a Francisco Alves ou outro cantor, porém o autor tinha uma grande preferência: queria que a música fosse lançada e gravada por mim.

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Gastão, então, cantou a composição, deixando-me emocionado. Eu ouvia, com exclusividade, na minha frente, uma voz demasiadamente familiar aos meus ouvidos nos tempos de infância. Chamava-se Abandono. Gostei e gravei. No dia da gravação, Gastão compareceu ao estúdio da Victor. Os quadros dele, atualmente, são considerados uma raridade e somente são encontrados com ricos colecionadores. Gastão era um pintor de cavalete e pintava ao vivo.

Francisco Carlos em Paris 1964

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H a r r y S t o n eFrancisco Carlos atribui a íntima amizade que estabeleceu com o promoter norte-americano Harry Stone, que durante décadas viveu no Rio de Janeiro representando os interesses da indústria cinematográfica dos Estados Unidos no Brasil, preciosa abertura para realizar lucrativa incursão naquele país, além de conhecer de perto e até fazer amizades com algumas celebridades da música e do cinema dos EUA, como Louis Armstrong, Jane Mansfield, Ivone de Carlo, Errol Flynn, Jeanette Mc Donald, Nelson Neddy, Nat King Cole, Merle Oberon, Rita Hayworth e o maestro Xavier Cugat.

− Harry Stone oferecia grandes recepções em seu luxuoso apartamento no Flamengo quando da passagem pelo Rio de artistas norte-americanos, e eu era permanentemente convidado por ele para participar desses encon-tros que ele promovia. Cito, principalmente, Rita Hayworth, Merle Oberon, Nat King Cole e Xavier Cugat, que me fez insistente convite para que eu excursionasse com ele e sua orquestra em vários países. Recusei, porque na época a minha agenda de compromissos no Brasil não me dava espaço. Foi uma pena.

− Mas visitei os Estados Unidos, como convidado do Carnival Ball, que reunia cantores de inúmeros países e pagava excelente cachê. Viajaram comigo, além da cantora Marion, o conjunto Night and Day, do Armando do Solovox, e Vadeco, do Bando da Lua. O show foi no Waldorf Astoria, onde cantei, entre outros números, Aquarela do Brasil. Um sucesso inesquecível. Na ocasião, eu levava uma carta de apresentação do diretor da RCA Victor no Brasil, Paulo Roco, à direção da gravadora em Nova York, e outra carta do meu amigo Harry Stone para uma amiga, em Nova York.

− Essa carta era endereçada a um prédio de quatro andares, todo em tijolinhos vermelhos, que tinha uma placa na entrada com o nome dos moradores. Destinava-se a Suzane Stainer, uma moça rica e de muito prestígio, que me recebeu prontamente. Ela disse que estivera no Rio e que eu guardava belas recordações da cidade e de amigos brasileiros. De repente, entrou na sala, onde estavam eu e meu amigo Bob Bogdan, que trabalhava em Nova York e me fazia companhia, a estrela Jane Fonda, ainda muito jovem.

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− Susane foi buscar um violão e entregou-me, dizendo: Mister Stone afirma na carta que o senhor é um grande cantor. Por favor, cante para mim e a Jane. Cantei várias canções e, quando terminei, Jane Fonda ligou para o pai falando do show particular na casa de sua amiga Suzane, que era filha, vejam só, do presidente da Music Corporation, o maior centro de espetáculos e eventos dos Estados Unidos.

− Ali mesmo fui convidado, através de um telefonema, para comparecer à MC. Compareci à sede da podero-sa organização, que funcionava no alto de um prédio de 43 andares, dois dias depois. Surgiu, porém, um problema: os músicos que tinham vindo comigo para os shows no Aldorf Astoria já haviam retornado ao Brasil e o único que permanecia em Nova York era o percussionista Élcio Milito. Levei-o comigo.

− O diretor artístico da MC, Harold Bradowky, pediu-me que cantasse. Acompanhado apenas do Élcio, mandei ver. Cantei músicas ritimadas, como Aquarela do Brasil, na Baixa do Sapateiro, e terminei cantando, sem acompanhamento, Ave-Maria no Morro. Quatro norte-americanos nos ouviam atentamente. Firmei contrato que eles me ofereceram para uma série de apresentações por toda a costa americana e países da América Central. O curioso é que eu me apresentava com quatro bailarinas vestidas de baianas, contratadas por eles, encarregadas de fazer a chamada mise-en-scène. Foi engraçadíssimo, mas muito emocionante e compensador.

Francisco Carlos com Louis Armstrong

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N o r m a B e n g u e l lFrancisco Carlos, entretanto, fala com carinho redobrado sobre suas viagens à América do Sul: − Naquela época, Punta del Leste, no Uruguai, era a sensação turística do Continente, com seus cassinos de alto luxo e shows internacionais. Minha primeira apresentação em Punta del Leste foi com a Companhia de Carlos Machado e seu elenco de bailarinas, todas enxutas. Entre elas, despon-tava Normal Benguell, um mulheraço, que, depois, revelou-se grande atriz e até diretora de cinema. Ficamos muito amigos. Nas temporadas seguintes, voltei sozinho, apenas acompanhado de uma orquestra.

− Em retribuição aos sucessivos convites, cheguei a compor um samba com Monsueto em homenagem a Punta del Leste, Amor brasileiro em Punta del Leste, gravado na RCA Victor. Durante anos, participei da grande festa brasileira de Punta Del Leste chamada Carnaval, só com músicas carnavalescas recém-lançadas no Rio. Uma delas, que lembro com bastante carinho, foi uma composição da dupla Armando Cavalcante e Klecius Caldas, Quem dá aos pobres, que eu gravei e cantei muito na temporada uruguaia. Na verdade, era expressivo o número de brasileiros que acorria a Punta del Leste, sobretu-do para jogar. Mas eu, particularmente, nunca perdi um centavo com o jogo. Não era trouxa de ganhar por um lado, dando o maior duro, e perder do outro, nas roletas e carteados.

− Falei em Monsueto, uma figura inesquecível, meu amigo, uma amizade surgida quando ainda éramos garotos. Foi na Gávea, na rua dos Oitis, onde morávamos, eu, meus pais e meus irmãos José Augusto, Fernando, Humberto e nossas irmãs Cléa, Fernanda e Teresa. Ali conheci o sambista Monsueto, pessoa impagável, sempre de bom humor e contador de histórias. Monsueto, espertamente, vendeu-me um patinete quebrado, o malandro. Anos depois, já adultos, eu e ele riamos dessa roubada, que me custou alguns cascudos aplicados por meu pai, para deixar de ser otário. Foi a primeira lição de malan-dragem que recebi, felizmente dada por um malandro sangue bom, o meu devotado amigo Monsueto Campos Meneses, infelizmente, já falecido.

O Brasil em peso ouvia a Rádio Nacional do Rio de Janeiro nas décadas de 1940 e 1950, sobretudo nesta última. Nela, atuavam os maiores cartazes da MPB na época e Francisco Carlos foi um deles, passando a figurar,

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com destaque, no horário nobre da emissora, à noite, quando a Nacional brindava o público com históricos programas de entretenimento, principal-mente música e humor.

Figurar nessa programação abria, de imediato, o caminho para shows por toda a parte do País, onde os artistas da popular emissora faturavam gordos cachês apresentando-se em praças públicas, clubes, teatros, cinemas, outras rádios fora do Rio de Janeiro. Logo, logo, Francisco Carlos foi contratado para se apresentar em São José do Pinhal, São Paulo.

A diferença entre o que ele ganhava na Nacional e o que ganhou, numa única noite, em São José do Pinhal, dá bem uma ideia do que significava para os artistas da RN os contratos para apresentações no chamado interior brasileiro, ou seja, outras praças que não o Rio de Janeiro. FC ganhava, com o seu primeiro contrato na RN, 12 mil cruzeiros por mês. Pela noitada no teatro de São José do Pinhal, ele recebeu 150 mil cruzeiros. Uma diferença e tanto.

Francisco Carlos com Victor Costa diretor da Rádio Nacional

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E l i s R e g i n aNão demorou muito e Francisco Carlos ganhou um programa só seu, na RN, às 3 da tarde, considerado horário nobre da emissora, em que o cantor desfilava o seu repertório e atendia aos fãs: − O programa era apresentado por Jonas Garret, que, um dia, comunicou-me que estava presente uma mocinha magra, vinda de Porto Alegre, declarando-se minha fã e desejosa em me conhecer pessoalmente. Mandei que ela entrasse. Ela usava um vestidinho modesto, rosa, de organdi.

A moça veio ao palco e foi entrevistada por FC: − Ela então cantarolou Alô Marilu, um rock balada que eu havia gravado, numa versão do Ramalho Neto. Revelou que estava em busca de uma chance para cantar no rádio carioca, mas, até então, não tinha tido êxito. A mocinha magrinha era Elis Regina. Sou capaz de assegurar que foi a primeira vez que a voz de Elis foi ao ar no Rio de Janeiro. No meu programa.

Desenho de Francisco Carlos. Árabe

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L u p i c í n i o R o d r i g u e sPor falar na Elis, outro lendário nome da terra gaúcha marcou a trajetória de Francisco Carlos. Foi o composi-tor Lupicínio Rodrigues, autor de dezenas de clássicos da MPB, como Nervos de aço, Vingança, Cadeira vazia, entre muitos outros.

− No dia seguinte à minha primeira apresentação em Porto Alegre − conta FC −, fomos almoçar, eu o José Roy e o Lupicínio. Era um lindo restaurante, sugerido pelo Lupe, que nos disse: Vocês querem conhecer o meu sítio? Eu e José Roy aceitamos o convite e fomos. Era um lugar afastado do Centro de Porto Alegre e bastante arborizado. Encontramos uma casa rústica, com uma porteira branca, dava para uma alameda de acesso à casa, habitada por um grupo de mulheres, todas idosas, umas sentadas embaixo de árvores e outras na varanda.

− Perguntei ao Lupe do que se tratava e ele explicou: São mulheres da vida decaídas, coitadas, que já foram borboletas noturnas e não conseguem mais sobreviver da ocupação que abraçaram ainda jovens. A elas, aliás, dediquei um samba, gravando uma música do Clécius Caldas e Armando Cavalcante, chamado Anjo da noite. Pois bem. O grande Lupicínio declarou-nos que mantinha aquela casa de antigas prostitutas, com a ajuda de alguns amigos, que forneciam alimentos, enquanto ele provinha o restante. Fiquei comovido com o que vi. O fato lembrou-me uma composição do Lupe, Maria Rosa, em que ele homenageia as prostitutas, dizendo, entre os versos, “vocês Maria de outrora/ amem somente uma vez”.

− Quando regressei ao Rio, ainda impressionado com a iniciativa do Lupe, tratei de gravar, imediatamente, um samba que ele me ofereceu, Eu não sou de reclamar. Este samba estava num acetato que o Lupe gravou e me deu, com uma advertência: Não vá fazer com este samba o que o Francisco Alves fez com Vingança. Levou e não gravou. Vingança foi gravado por Linda Batista e transformou-se num dos maiores sucessos da querida cantora.

Francisco Carlos com Linda Batista e Ângela Maria

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A r a g u a r iNa linha de ajuda ao próximo, a Rádio Nacional do RJ tinha um programa patrocinado pela Esso dedicado a pessoas que se destacavam à frente de obras assistenciais, como foi o caso de Custódio Pereira Sobrinho, da cidade de Araguari. Custódio fundara uma entidade de amparo aos pobres, Sociedade São Vicente, que abrigava pessoas doentes, mutiladas, abandonadas nas ruas, desamparados de toda espécie.

Um dia, Francisco Carlos foi a Araguari realizar um show. Antes do espetáculo, que teria lugar à noite, no teatro da cidade, FC visitou a instituição e saiu de lá impressionado: − Fiquei tão tocado pela obra e o esforço em mantê-la, que, no momento em que eu cantava Alma dos violinos, do Lamartine Babo e Alcir Pires Vermelho, comecei a chorar. Parei e expliquei ao público que havia visitado, naquela tarde, a Sociedade São Vicente, e decidia, naquele instan-te, que o meu cachê seria todo destinado à SSV, assim como os direitos de venda do disco com a valsa Não custa você voltar, de Rennê Bittencourt, gravada na RCA.

− Logo que regressei ao Rio, o Vitor Costa, diretor da Nacional, chamou-me em seu gabinete e mostrou-me uma carta vinda de Araguari, cheia de elogios a mim. Na verdade, fiz muitos shows de ajuda a instituições de caridade pelo Brasil e não recordo isto como gabolice, mas como um preito à minha mãe, que era uma pessoa muito caridosa. Ela própria ajudava a manter, em Botafogo, no Rio, o Asilo João Evangelista, que cuidava de velhinhos e meninas abandonados.

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 n g e l a M a r i aOs anos 1950 foram pródigos no lançamento de cantoras que marcaram época na música popular brasileira, ombreando-se ao sucesso de outras grandes intérpretes surgidas na década anterior, como Emilinha Borba, Marlene, Dalva de Oliveira, Ademilde Fonseca. Elisete Cardoso, embora já viesse batalhando por um lugar ao sol desde a década de 1940, somente nos anos 1950 teve o seu talento reconhecido e aplaudido, depois de gravar Canção de amor, de Chocolate e Elano de Paula, no finalzinho de 1949.

Uma nova cantora, porém, foi a sensação dos anos 1950 (da mesma manei-ra que Francisco Carlos): a macaense Abelim Maria da Cunha, Ângela Maria, que começou a vida artística como crooner do Dancing Avenida, na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, em 1948. Em 1951, Ângela despontava com um disco 78 rotações contendo duas composições: Sou feliz, de Augusto Mesquita e Ari Monteiro, e Quando alguém vai embora, de Ciro Monteiro e Dias da Cruz. No ano seguinte, 1952, sua gravação do samba Não tenho você, de Paulo Marques e Ari Monteiro, batia recordes de venda e ela logo foi eleita Rainha do Rádio, numa ascensão meteórica e retumbante.

Francisco Carlos lembra que ele, o cantor Roberto Luna e Ângela Maria foram, juntos, fazer uma excursão pelo interior de São Paulo, apresentando-se em 21

cidades: − Eram multidões que acorriam para nos ver e ouvi. Em Campinas, eu e Ângela estávamos no interior de uma caminhonete, aguardando nossa entrada no palco em praça pública, quando parte da multidão cercou o nosso carro querendo nos tocar e pedir autó-grafos. Eles acabaram virando o carro, de onde saímos com a ajuda da polícia. Foi um sufoco, mas eu e Ângela não podíamos deixar de reconhecer que ficamos sensibili-zados pelo excesso de carinho.

Com Ângela Maria

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C a p i b aCerta noite, em São Paulo, Francisco Carlos caminhava pela Avenida São João, na companhia dos compositores José Roy e Capiba (Lourenço da Fonseca Barbosa), quando um carro parou e dele saltou um homem muito alegre e comunicativo, que se dizia presidente de um grande clube da cidade, o Pinheiros, onde estava rolando monumental festa. Declarando-se fã de FC, convidou os três para irem ao clube, na condição de seus convidados: − Eu estava cansado, porque acabara de fazer um programa meu semanal de rádio, e recusei. O homem insistiu e Capiba, de quem eu gravei vários frevos, com o seu jeitão nordestino de apreciar as coisas, convenceu-me a ir a tal festa. Sentamo-nos numa mesa, discretamente, para não chamar a atenção, quando, de repente, o nosso anfitrião entra no palco, pára a orquestra, e anuncia o meu nome.

− Fiquei aborrecido, pois ele havia se comprometido comigo de não revelar que eu estava presente. O público, então, irrompeu em palmas, que não paravam, exigindo minha presença no palco. Contrariado, subi ao palco, com o meu nome sendo gritado pela plateia, e concordei, atendendo a pedidos, para cantar uma música. Nessa época, eu fazia muito sucesso com uma compo-sição do Fernando César, Por que brilham os teus olhos. Foi uma loucura. O público não parava de aplaudir, mas eu fui curto e grosso, no bom sentido. Disse que poderia continuar a cantar, mas isso dependia do presidente do clube... E voltei ao meu lugar na mesa com o Roy e o Capiba.

− Foi uma situação inusitada. O homem, que tinha descido para a plateia, foi cercado e pressionado para que eu continuasse cantando. Ele veio até nossa mesa com uma proposta e eu encarreguei o Roy de ir ao seu gabinete acertar o pagamento do cachê. Roy voltou com um cheque e eu subi novamente ao palco, iniciando um show que se prolongou por mais de uma hora, terminan-do em carnaval. Posteriormente, vim saber que a iniciativa de me atrair ao Pinheiros tinha sido uma jogada de marketing. Ou seja, fui usado como cabo eleitoral do presidente, que era candidato à reeleição e, de fato, foi reeleito.

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O r l a n d o S i lv aA relação entre Francisco Carlos e outro grande ídolo da MPB dos áureos tempos do rádio, Orlando Silva, é exemplo típico de um velho chavão, as voltas que o mundo dá, ou seja, o princípio segundo o qual a vida é regida por ciclos que trazem inesperadas mudanças e inexplicáveis transformações.

Ainda muito jovem, Francisco Carlos, estudante, fardado, seguia para o colégio na companhia de outros colegas: − Era no começo da tarde, para a primeira aula, de matemática. Do outro lado da calçada, passava um dos meus ídolos, Orlando Silva, despertando a atenção geral. Não me contive. Abandonei os colegas e tratei de segui-lo. Minha intenção era abordá-lo, falar da minha admiração por ele, mas faltou-me coragem. Tremi. Resultado: não falei com o Orlando e perdi a aula.

− Anos mais tarde, tornei-me seu colega na Rádio Nacional. Orlando tinha uma maneira peculiar de chamar os colegas e amigos. Ele e Gregório Barrios eram os únicos que me chamavam de Carlinhos. Ninguém mais me chamava assim. Um dia, saímos juntos de um programa do Manoel Barcelos. No elevador, ele pediu-me carona no meu carro, pensando que eu ia para Copacabana, onde morava. Eu não ia para Copacabana, porém senti-me tão lisonjeado que respondi afirmativamente. No trajeto, relatei o episódio do tempo de estu-dante. Ele riu: Puxa, Carlinhos, você me confundiu com o Clóvis. Eu nunca fui de assustar criancinhas. E recordou seu primeiro encontro com Francisco Alves, que também o deixou trêmulo.

Em 1989, Francisco Carlos homenageou Orlando com um elepê dedicado a uma dúzia de composições tornadas famosas pelo Cantor das multidões, produção do advogado Milton Varela, um orlandófilo histórico, reunindo grandes músicos, como Hélcio Brenha, Ed Maciel, Dino, Sergio de Pinna, Deo Rian, Wilson das Neves, e arranjos de Orlando Silveira. FC regravou Minha crença, Meu romance, Céu Moreno, História de amor, Súplica, Uma lágrima, uma dor e uma saudade, Nada além, Lágrimas de homem, Lágrimas de rosa, Noutros tempos era eu, Maria, Maria e Aos pés da cruz. No encarte do disco, Milton destaca: O Chico Carlos está soberbo. Cantou com a arte e competência de que é capaz. Está em plena forma. Não imitou e, em certas músicas, foi personalíssimo. Criou uma nova interpretação.

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O disco foi muito bem recebido pela crítica e ganhou do cantor e produtor Paulo Tapajós, figura lendária do rádio brasileiro, ex-diretor artístico da Rádio Nacional, rasgados elogios, considerando Francisco Carlos um prodígio vocal à altura do homenageado. O crítico e historiador musical Ary Vasconcelos, chegou a afirmar que Francisco Carlos pertence a uma categoria de cantores em vias de extinção: os de belíssima voz. E narrou, então, que, em 1985, havia levado Francisco Carlos para cantar no Seis e meia da ABI, produzido e apresentado por ele, Ary: Foi um delírio na plateia, Francisco Carlos sendo aplaudido de pé e intimado a bisar vários números.

Francisco Carlos com Orlando Silva

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G r e g ó r i o B a r r i o sOs propalados anos dourados (anos 1950) foram marcados, musicalmente, pelo baião, o samba-canção e o bolero, concorrendo no mesmo nível de popularidade com o samba, o foxtrot, a valsa, o tango e, posteriormente, o rock, este último estrelado pelo cantor Elvis Presley. Tanto o samba-canção, como o baião e o bolero, entretanto, começaram a ganhar visibilidade na década anterior, o primeiro com o cantor Dick Farney, o segundo, com Luís Gonzaga, e o terceiro, com o cantor mexicano Pedro Vargas, que introduziu o gênero no Brasil apresentando-se no antigo Cassino da Urca e na Rádio Nacional do Rio de Janeiro.

Francisco Carlos com Gregório Barros e Esther de Abreu

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O cantor espanhol Gregório Barrios, um dos maiores intérpretes do bolero, veio ao Rio fazer algumas apresentações e decidiu fixar residência no Brasil, ao perceber o sucesso sempre crescente do gênero no País. Ganhou de imediato fãs aos milhares e não havia programa de rádio que dispensasse a presença de Gregório, cujos discos rivalizavam-se, em venda, aos maiores cartazes brasileiros.

Contratado pela outrora famosa boate Night and Day, sua noite de estreia atraiu uma multidão à Cinelândia, Centro do Rio, ansiosa para vê-lo e ouvi-lo. Francisco Carlos compareceu a essa estreia e, com o tempo, tornou-se íntimo amigo de Gregório e, até, seu confidente.

− Estranhamente − recorda FC −, meu amigo Gregório Barrios era uma pessoa exageradamente insegura, que vivia com a mania de perseguição, achando que todo mundo estava contra ele. Dizia-se infeliz no amor e me contava que todas as tentativas de acertar sua vida, amorosamente, tinham fracassado. De repente, sua vida desmoronou de tal maneira, que ele, para sobreviver, montou uma sapataria no porão de uma casa na rua Marquês de Abrantes, no Flamengo, onde fui encontrá-lo, um dia, experimentando um sapato nos pés de uma mocinha. Fiquei chocado. Felizmente, seus amigos reuniram-se e trabalharam para soerguer sua carreira artística, o que de fato aconteceu.

Francisco Carlos não conta, mas, certa tarde, Gregório Barrios, que costumava apresentar-se todos os sábados no Programa César de Alencar, na Rádio Nacional, não sabia como entrar no palco da emissora porque estava bêbado. Percebendo o vexame, César, depois de anunciá-lo, aproveitou os aplausos do público e, habilmente, colocou-se de um lado do cantor, instruindo o locutor encarregado de ler os comerciais para que fizesse o mesmo pelo outro lado. Amparado pelos dois, Gregório foi levado ao microfone e cantou. Segundo César de Alencar, o galego arrasou. Estava inspiradíssimo.

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C é s a r d e A l e n c a rNem os mais duros inimigos e críticos (numerosos) de César de Alencar foram incapazes de não reconhecer que o programa por ele produzido e apresentado na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, foi o mais popular do rádio brasileiro, em todos os tempos. Por isso mesmo, era dura a disputa no meio artístico, inclusive político, para participar do festejado Programa César de Alencar, todos os sábados, a partir das 15h às 19h, numa sucessão de atrações, prêmios e brincadeiras que atraíam multidões ao grande auditório da emissora, na Praça Mauá, formando filas desde a madrugada.

Francisco Carlos tornou-se, logo no início da carreira, uma das principais atrações do elenco da Nacional e, consequentemente, uma dos astros do Programa César de Alencar. Havia, entretanto, um problema. Era justamente nos fins de semana, que os cantores e músicos da emissora apegavam-se para firmar bons contratos de apresentações fora do Rio de Janeiro, engor-dando a conta bancária com elevados cachês.

Toda quinta-feira, quando saía a escala de artistas requisitados por César para o seu programa, surgiam os conflitos. Quem tentava convencer o comunicador de que precisava faltar para faturar mais algum, era rechaçado de pronto com o pedido, sem exceção para ninguém, inclusive a grande estrela do programa, Emilinha Borba, que vivia às turras com o exigente animador por causa desse choque de interesses.

El Broto, como César de Alencar anunciava a presença de Francisco Carlos em seu programa, bateu de frente inúmeras vezes com César para faltar ao programa, atendendo convites de todas as partes do Brasil: − Eu ía na marra, como foi o caso, certa vez, quando viajei a Salvador, a fim de cantar no desfile para a escolha de Miss Bahia, sendo eleita Marta Rocha. Na segunda-feira, na volta, era razoável a fila de colegas na sala do Paulo Tapajós, diretor artístico da Nacional, tentando justificar as faltas, e para fugir da ira do César.

Francisco Carlos esclarece: − Mas tudo terminava numa boa. Eu e César ficamos bons amigos. Até que um dia ele me pregou um susto terrível. Ele tinha um programa na Nacional de São Paulo, onde eu também deveria me apresentar. Combinamos que iríamos no automóvel dele e, no dia seguinte,

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partimos. Assim que pegamos a estrada, César meteu o pé no acelerador. Fiquei assustado e falei: César, não estou com pressa. Você está correndo demais.

− Para surpresa minha, ele não apenas acelerou mais o carro, como começou a rir e a me provocar, repetindo: Que tal morrermos juntos, Broto? Já pensou as manchetes em todos os jornais e matérias de revistas? Morrem em desastre na Rio – São Paulo César de Alencar e Francisco Carlos. Encolhi-me no banco e ele prosseguiu: Já imaginou que enterrão?

Senti que ele havia bebido. Calei-me e pensei numa maneira de escapar do aperto. Foi então que me veio uma ideia luminosa. Propus a ele tomar um cafezinho no primeiro bar ou restaurante que a gente avistasse. Por sorte, apareceu logo adiante um bar e ele parou.

− Tomamos o café, ele voltou ao carro e eu continuei sem me mexer. César gritou: Vamos lá, Broto. Ainda temos muito que rodar. Ergui o braço e bati com o outro punho fechado, mandando-lhe uma banana: Aqui, oh, que eu viajo mais com você. Ele foi sozinho e eu fiz o resto da viagem de ônibus. Nunca mais entrei num carro guiado pelo César.

Francisco Carlos com César de Alencar

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C e a r e n s eFilho de pais pernambucanos, mas carioca do Grajaú, Francisco Carlos foi citado, inúmeras vezes, em jornais e revistas, como tendo nascido no Amazonas, Rio Grande do Norte e Ceará: − Eu não me importava com esse fato, pois seria uma honra ter nascido em qualquer um desses Estados, mas não era verdade. Uma tarde, caminhando pela avenida Rio Branco, encontrei meu querido amigo Ernani Albuim, capitão-de-corveta, cearense orgulhoso do seu torrão natal, que me segurou pelo braço e me obrigou a ir a uma reunião no Centro Cultural do Ceará, ali mesmo, na avenida Central.

− O lugar estava lotado e o público, quando anunciaram meu nome, explodiu em palmas. Meu amigo Ernani, tomando o microfone, registrou: Vamos redobrar essas palmas, porque Francisco Carlos não é apenas um grande cantor. Ele também é cearense. Foi uma ovação e pedidos de canta, canta. Não desmenti, é claro, meu amigo Ernani, e cantei uma música do meu amigo João Carlos Barroso, gravada com o conjunto Quatro Azes e um Coringa, cujo refrão exaltava: Eu só queria/ que você fosse um dia/ ver as praias bonitas/ do meu Ceará. Todo mundo cantou junto. Saí de lá cidadão cearense, com muito gosto.

Em apresentação cercado pelas fãs

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B e l o H o r i z o n t e− Eu morava no Leblon, quando fui procurado por um senhor muito bem vestido, dizendo que era de tradicional família de Belo Horizonte e me pedindo um grande favor. Ele tinha uma única filha, que era muito estudiosa, mas, ultimamente, vinha faltando demais às aulas e só tinha sua atenção voltada para ouvir os meus discos. O médico da família, rica, orientou os pais da moça para que eu fosse levado a Belo Horizonte e ajudasse a mocinha, que tinha 15 anos, a convencê-la a voltar aos estudos e quebrar, digamos assim, esse encantamento.

− Cheguei a pensar que se tratava de uma piada e recusei, mas o pai da moça mostrou-me um retrato dela, insistiu no pedido e ofereceu-me bom dinheiro para ir ao encontro da filha. Como eu precisava ir a Belo Horizonte, dias depois, para uma apresentação, acabei prometendo, por solicitação de minha mãe, que se sensibilizou com o caso, a procurar a minha fã. Fui visitá-la em sua casa, depois de impor ao pai dela que não aceitaria receber dinheiro por isso. Cantei algumas músicas e autografei discos. Final feliz. Estou revelan-do esta história ao público pela primeira vez na minha vida.

− Este não foi um caso único. Poderia citar inúmeras situações como essa. Não foram poucas as ocasiões em que fui obrigado a cantar com o paletó de presidentes de clubes, donos de cinemas e administradores de estádios onde eu me apresentava, porque o meu paletó havia sido rasgado na porta de entrada. Foram apertos de toda ordem que terminaram me traumatizando. Fiquei com pavor de multidão, até hoje. É incrível um artista afirmar isso, mas é verdade.

− Em outra ocasião, fui a Belo Horizonte fazer um show a convite do meu amigo Ramos, irmão do Luís de Carvalho, diretor, na época, da Rádio Inconfidência. O espetáculo foi montado num hangar, com previsão para cerca de quatro mil pessoas, número considerável naqueles anos. O lugar estava apinhado. Quase fui trucidado pela multidão, que invadiu o palco, pisou nos instrumentos da orquestra, desorganizando tudo. Não sei como saí vivo de lá.

Carlos Manga confirma esse e outros episódios envolvendo Francisco Carlos e a multidão de admiradores que acorriam para os seus shows. Em entrevista

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ao programa Conexão, de Roberto D’Ávila, na TV Educativa, Manga abre um espaço para falar fora de sua carreira de diretor de cinema e de televisão, comentando uma observação do jornalista sobre o carisma de Roberto Carlos e as multidões. Manga retruca: Realmente, o Roberto é extraordinário como ídolo, mas eu posso lhe assegurar que houve um outro cantor no Brasil com igual carisma e poder de atrair multidões: Francisco Carlos. Eu fui testemunha ocular de inúmeras vezes em que multidões acorriam para vê-lo e ouvi-lo. Onde ele se hospedava tinha guarda na porta do seu quarto de hotel a fim de impedir a entrada fortuita de fãs. Era impressionante.

Show Francisco Carlos

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J o ã o G i l b e r t o A MPB dos anos 1930, 1940 e 1950 é pródiga em histórias de músicas oferecidas pelos compositores e recusadas pelos cantores da época, e que se tornaram, posteriormente, autênticos clássicos, em inesperadas gravações feitas por outros intérpretes, inclusive, o próprio autor.

Um exemplo badaladíssimo de uma dessas composições é o samba Amélia, a mulher de verdade, de Ataulfo Alves e Mário Lago. Ataulfo mostrou a música a Orlando Silva, Carlos Galhardo, Francisco Alves, Sílvio Caldas, os cantores mais populares, e nenhum deles se interessou em gravá-la. Confiante, porém, na obra, Ataulfo tratou ele mesmo de gravá-la. Amélia foi o maior sucesso do carnaval de 1941 e entrou para a seleta galeria de clássicos da MPB.

Francisco Carlos não foi exceção nesse rol de furos, deixando de lançar várias composições de sucesso que lhe foram ofertadas e recusadas porque não

houve amor à primeira vista: − Foi um erro, admito, mas não tinha, como continuo sem ter, bola de cristal. João Gilberto tocava violão no Bar Scott, na rua Fernando Mendes, em Copacabana, fazendo música de fundo para os frequenta-dores da casa. Nem cantar ele cantava.

− Uma tarde, passei no Scott e João fez a maior festa com a minha

Francisco Carlos com Consuelo Velasquez (Autora de Besame Mucho) e Humberto Teixeira

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chegada. Batemos um papo e ele comentou que tinha ouvido um samba que gostara muito e sugeriu que eu gravasse essa composição. Era Chega de saudade, de Tom e Vinicius. Fomos a um estúdio na rua Barata Ribeiro e João, acompanhando-se ao violão, cantou o samba com a letra na frente escrita num papel. Não me interessei, mas gostei do João cantando o sam-ba e sugeri que ele próprio fizesse a gravação. Acertei. João iniciou sua vitoriosa carreira com Chega de saudade, deu visibilidade definitiva a Tom e Vinicius e eu atirei no que vi e acertei o que não vi. Ainda bem. Talvez comigo tivesse sido um fracasso. A gente nunca sabe.

− Outro furo meu ocorreu com o samba-canção Teus olhos, do Garoto, que eu cantei na Nacional mas não gravei. O mesmo ocorreu com Nono manda-mento, do René Bittencourt, que não me agradou, e Pois é, que o Ataulfo insistiu bastante para que eu gravasse e eu não me interessei, por causa do arranjo que foi feito. Ataulfo até ficou aborrecido comigo por causa disso. De outra feita, eu estava para gravar um samba-canção do Antônio Maria, quando Dolores Duran me pegou na Nacional e me pediu, com um jeitinho muito dela: Deixa eu gravar essa música. Gosto muito desse samba.

− Liguei para o maestro Zacarias, na Victor, e pedi para cancelar a gravação, já marcada. O Zacarias ficou uma onça. Dolores deu pulos de alegria e gravou essa pérola Nunca mais vou fazer o que o meu coração mandar. Ninguém resistia a um pedido de Dólares Duran, uma das pessoas mais ternas que eu conheci, e que queria aprender desenho e pintura comigo. Chegamos a combinar tudo, mas, infelizmente, ela faleceu de repente e deixou a maior saudade entre os seus amigos e colegas.

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Revista do Rádio da época

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C l u b e d a C h a v eAntes de falar no Clube da Chave, que fechou, paradoxalmente, segundo Francisco Carlos, por excesso de êxito, cabe fazer necessária digressão, tendo como pano de fundo o crescimento e glória da boemia carioca em três décadas de fausto, quando a cidade ainda era a capital federal do Brasil: os anos 1930, 1940 e 1950.

Três bairros dominaram as noites do Rio naqueles anos, atraindo gente de toda a parte: Lapa, Centro e Copacabana. Destaque, em primeiro lugar, para a Lapa, que, nos felizes versos dos compositores Herivelto Martins e Benedito Lacerda, no samba A Lapa, gravado por Francisco Alves, foi o ponto central do mapa/ do Distrito Federal/ salve a Lapa.

A Lapa era repleta de cafés, bares, restaurantes, hotéis de encontros e as chamadas casas noturnas ou dancings, posteriormente denominadas boates, animadas por orquestras e conjuntos que tocavam os mais variados gêneros musicais, atraindo numeroso e diversificado público masculino em busca de bebidas, mulheres (prostitutas ou mulheres liberadas) e alegria. A Lapa foi, com sobras, a rainha da noite do Rio de Janeiro durante pelo menos duas décadas, os anos 1930 e 1940, cedendo o trono a Copacabana, até então um bairro quase que exclusivamente residencial, nos anos 1950.

As ruas do Centro do Rio ficavam apinhadas de gente, mas somente nas primeiras horas da noite, por causa dos numerosos cinemas (a Cinelândia), teatros. bares e restaurantes do bairro, que começavam a fechar por volta das 11 (23) horas, o mais tardar, meia-noite. As exceções eram os dancings e gafieiras, que funcionavam até às 3, 4 horas da manhã.

A extinta Zona, antigo Mangue (atualmente, a Cidade Nova) era outro ponto de encontro noturno no Rio, mas com um movimento específico de frequen-tadores que procuravam o lugar não para curtir a vida, no sentido clássico, tendo como ponto de partida a bebida e a dança, e depois a cama.

A Zona tinha como destacado frequentador o chamado povão, reunindo mari- nheiros, soldados, embarcadiços (inclusive estrangeiros) e desocupados. Era, na realidade, área explícita de prostituição, secundada por alguns poucos

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bares e restaurantes onde estouravam renhidos conflitos por causa de mulheres e de bebida, que obrigavam a polícia a fazer constantes intervenções, várias vezes na mesma noite, e que o carioca, adequadamente, chamava de “barra pesada”.

A Lapa, não. Havia, claro, uma briga aqui e outra acolá, mas em caráter isolado e logo contornada pela ação de guarda-costas contratados para dominar e defenestrar os mais abusados que ousavam conturbar o ambiente, sem neces-sidade de recorrer à polícia, salvo esporádicos casos de conflitos muito graves, geralmente envolvendo malandros temidos, armados de navalha, em dispu-ta de espaço − tempo de Madame Satã, Meia-Noite, Camisa Preta e Edgar, históricos malandros.

Concordando com os saudosistas que os anos dourados do Século 20, no Brasil, e, sobremaneira, centraram-se na década de 1950, uma conclusão parece inegável: a avassaladora contribuição do bairro de Copacabana para esse desiderato. Com efeito, nada de significativo, bombástico, acontecia no Rio (e, por extensão, no País) que não tivesse como palco o querido bairro carioca, apontado como princezinha do mar, desde 1945, pelos compositores Braguinha e Alberto Ribeiro, autores do samba-canção Copacabana, primeiro grande sucesso da carreira do cantor Dick Farney.

De fato, foi extraordinária a passagem de Copacabana de simples bairro residencial para sede da badalação mundana carioca e brasileira, com a abertura de incontáveis casas de shows, boates, restaurantes, bares, cafés, inferninhos − pontos de encontro preferidos para quem morava ou estava de visita à cidade.

O jornalista-radialista-compositor-poeta-boêmio, Antônio Maria, conhecia, como a palma da própria mão, todos os caminhos de Copacabana. Chegado ao Rio em 1940, Maria não demorou a optar morar no bairro e transformá-lo em musa de inesquecíveis artigos e crônicas produzidos para jornais e revistas, relatando o dia e a noite (preferencialmente a noite) da gente e dos fatos que faziam de Copacabana uma espécie de shangrilá urbano.

Desenho de Francisco Carlos

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Consequentemente, ninguém melhor do que ele para nos fornecer mais do que um retrato, um autêntico pôster, de Copacabana, que permanece, com poucos retoques, atual. Palavra de Maria: Da guarita do Forte do Leme à guarita do Forte de Copacabana, de sentinela à sentinela, são 121 postes de iluminação, formando o colar de pérolas, tantas vezes invocado em samba e marchinhas. Cada edifício tem uma média de 50 janelas, por trás das quais se escondem, estatisticamente, três casos de adultério, cinco de amor avulso e solteiro, seis de casal sem bênção e dois entre cônjuges que se uniram, legalmente, no padre e no juiz. Por trás das 34 janelas restantes, não acontece nada, mas muita coisa está por acontecer. É só continuar comprando os jornais e esperar.

A fauna copacabanense, segundo o olho clínico do grande boêmio Antônio Maria: Na calçada preta e branca da praia, um vaivém de príncipes, ladrões, banqueiros, pederastas, estrangeiros que puxam cachorros, mulheres de vida fácil ou difícil, vendedores de pipocas, milionários, cocainômanos, diplomatas, lésbicas, bancários, poetas, políticos, assassinos e book-makers. Passam estômagos vazios e outros empanturrados, em lenta digestão. No asfalto deslizam automóveis cada vez mais novos, compridos e mais conversíveis. Enquanto isso, a vida está acontecendo dentro dos bares e restaurantes. Grande Maria.

Bares e restaurantes eram o que não faltava em Copacabana. De acordo, ainda, com Antônio Maria, entre os mais votados, estava o Sacha´s; o Lucas, onde era servido elogiadíssimo chope tomado em pé, na varanda do restaurante, considerado o maior faturamento na Zona Sul; O Galo, cuja maior frequência era de portugueses; o Au Bon Gourmet, temido pelos altos preços cobrados pelos seus pratos e bebidas, só frequentado por gente muita endinheirada, como aconteceu, certa ocasião, com a presença do milionário norte-americano Henry Ford II, acompanhado de um casal; o mesmo status gozava Le Bec-Fin; o Ariston; Churrascaria do Leme, Chatô, Calipso, Piaf e o badalado Fiorentina, no Leme, que atraía artistas, jornalistas e intelectuais.

As boates, entretanto, foram o ponto alto das noites cariocas nos anos 1950, como locais de encontros e desencontros, de diversão, de música, de namoro,

Desenho de Francisco Carlos

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badalação, sobretudo em Copacabana, onde elas mais se concentraram. Quase sem exceção, as boates ofereciam música ao vivo para escutar e dançar, com as noitadas prolongando-se, em algumas delas, até o raiar do dia. As estatís-ticas mostram que, só em Copacabana elas somavam em torno de 25 − número expressivo e demonstrativo de uma boemia pujante.

Basta registrar que, apenas na rua Duvivier, funcionavam três boates: Little Club, Ma Griffe e Bacará; na Av. Princesa Isabel, Hi-Fi e Drink; na Fernando Mendes, Scotch, Michel e Cangageiro; na Carvalho de Mendonça, Clube 36 e Dominó; na Av. Atlântica, Stadium, Ok, Maxim’s, Havaí, Fred’s, Meia-Noite e Pigale; na N. S. de Copacabana, Au Bon Gourmet e La Bohème; na Rodolfo Dantas, Fafá Lemos e Jirau; e na Gustavo Sampaio (Leme) o Arpège, as mais famosas. A Boate Night and Day, que rivalizava, em fama, às de Copacabana, funcionava no Centro da cidade, mais precisamente, no antigo Hotel Serrador, na Cinelândia.

Foi em meio a esse frenesi, que surgiu o Clube da Chave, fundado pelo compo-sitor Humberto Teixeira, o ator Jardel Filho e Francisco Carlos, para comer e beber pelo preço de custo, espelhando-se no locutor-comunicador César de Alencar, com a sua Cantina do César. O Clube da Chave instalou-se no Posto 6, no antigo prédio onde havia funcionado o Cassino Atlântico, e, rapidamente, tornou-se uma atração, por duas razões: a presença de gente famosa e os preços baixos cobrados pelos pratos e bebidas servidos.

− O clube era apenas um ponto de encontro e nada tinha de sofisticado − conta Francisco Carlos: − O importante era o ambiente e não ser explorado. Em pouco tempo, passou a atrair socialites, artistas, inclusive, estrelas internacionais. O prédio pertencia ao empresário Bianco, que gostou da idéia e nos cedeu o espaço, sem cobrar aluguel. Ele não precisava. Era muito rico e nosso amigo. Figurinhas fáceis de encontrar no nosso clube eram o Dorival Caymmi, Teresa de Sousa Campos, Jorginho Guinle, Davi Nasser, Tom Jobim, entre outros. Detalhe: só abria à noite. Infelizmente, nem eu, nem o Humberto e nem o Jardel tinham vocação para administrar o negócio e o Clube da Chave, por incrível que pareça, fechou por excesso de êxito. Mas marcou época.

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Francisco Carlos com Ibrahim Sued

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C a r l o s L a c e r d aTrês nomes dominaram o noticiário político nos anos 1950: Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda. Getúlio, na verdade, ocupava o centro da política brasileira desde 1930, quando chegou à Presidência da República, à frente de uma revolução, permanecendo no poder até 1945. Eleito presidente em 1950, ele abalou o País ao suicidar-se quatro anos depois, quase ao final do mandato, alvo de fulminante campanha liderada pelo jornalista e deputado Carlos Lacerda, também eleito, mais tarde, em 1960, governador do antigo estado da Guanabara. Juscelino foi eleito presidente da República no vácuo deixado por Getúlio e também sofreu dura oposição de Carlos Lacerda, extraordinário orador.

Francisco Carlos e Carlos Lacerda foram muito amigos. A amizade foi uma iniciativa de Lacerda, que se declarou, logo no primeiro contato entre os dois, fervoroso admirador do cantor: − Eu acabara de fazer um show no Fluminense F. C., e segui para jantar no Fiorentina. A noite já ia alta, mas ainda tinha muita gente no restaurante. Quando eu me aproximava do Fiorentina, ouvi a voz de um homem, à distância, de gravata, porém sem paletó, chamando pelo meu nome. Fiquei surpreso. Era Carlos Lacerda. Ele perguntou-me se eu não era o cantor Francisco Carlos e, diante da minha resposta afirmativa, cumprimentou-me efusivamente e revelou que acompanhava a minha carreira há muito tempo.

− Retruquei que a admiração era recíproca e, a partir daí, prosseguiu grata amizade, até sua morte. Logo em seguida, apareceu Raul Brunini, radialista e deputado, a quem Carlos Lacerda me apresentou. Tiramos uma foto juntos, publicada no dia seguinte pelo jornal Tribuna da Imprensa. Dias depois, falando na antiga TV Rio, encerrando sua campanha para governador da Guanabara, Lacerda, ao encerrar sua fala, despediu-se dizendo que estava, naquele momento, indo ao encontro do amigo Francisco Carlos, na minha residência, onde seria homenageado com um jantar. Senti-me bastante lisonjeado pela referência, pois, afinal, Lacerda era um político de alto prestígio na época.

Francisco Carlos conta que Carlos Lacerda, assim que assumiu o Governo da Guanabara, anunciou que iria promover um festival internacional de músicas e queria que eu o presidisse: − O festival era uma homenagem a mim, disse-me, então. Fiquei impressionado com a sua maneira de obsequiar os amigos e

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de quem ele gostava. Por outro lado, em diversas vezes, cedi-lhe amplo apartamento que eu tinha no Leblon, a pedido dele, para que se isolasse e meditasse sobre seus problemas políticos e pessoais.

De acordo com Francisco Carlos, Carlos Lacerda gostava, especialmente, de três músicas do seu repertório: − Uma era o samba de Geraldo Pereira, Promessa de um caboclo, que eu havia gravado com o regional do Benedito Lacerda, e a outra, a valsa Seremos felizes. Mas havia uma terceira, que era realmente a sua preferida. Tratava-se de um bolero, Eu tive que te beijar, de Brondisky e Robin, versão do Ghiaroni, que eu gravei com o Trio Irakitan. A letra dizia: Assim que te avistei/ Desejei beijar-te a boca/ Por mais que fosse louca/ a minha ideia eu arrisquei/ Era tal o desejo de dar-te um beijo/ que sem te conhecer eu te beijei. Carlos Lacerda gostava de solfejar a melodia desse bolero e sempre me pedia para cantá-lo, dizendo que era dedicada à sua mulher, Dona Letícia.

Francisco Carlos cantando com Trio Irakitan

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G r a n d e E m o ç ã oFrancisco Carlos relaciona inúmeros momentos de grande emoção na sua carreira artística, mas tem um episódio que ele considera insuperável. Aconteceu, certa ocasião, em que ele voltava de apresentações em Recife, a bordo de um avião lotado: − De repente, o avião começou a trepidar, alternan-do com solavancos, agitando todos os passageiros. Eu estava sentado numa das últimas cadeiras, as de trás. Olhei pela janelinha e vi um rolo de fumaça negra saindo de um dos motores. A impressão era que o avião perdia altura.

O medo instalou-se, prossegue FC, a começar por mim: − Ao lado da minha poltrona, um senhor passou a chorar e a repetir que estava voltando do enterro do pai, aumentando ainda mais a minha angústia. Foi aí que entrou em ação a aeromoça do avião, aliás, a grande personagem daquele momento de completa inquietação na minha vida. Ela passou a distribuir comprimidos de tranquilizante para os passageiros, ao mesmo tempo em que esboçava sorrisos e repetia palavras de calma, vai tudo acabar bem, é uma pane passageira que está sob controle.

− Quando ela chegou até a mim, abriu largo sorriso e declarou-me que a minha presença, naquela hora, era um bálsamo. Os seus olhos brilharam e ela propôs: Por que você não canta, agora, para nós, no microfone de bordo? Isso, certa-mente, vai ajudar a melhorar o ambiente. Eu não sabia o que fazer e dizer, mesmo porque o meu medo não era menor do que o dos outros passageiros. Entretanto, diante da insistência da moça, caminhei, com dificuldade, para a frente do avião, e ela, com o microfone na mão, anunciou: Temos o privilégio de contar com a presença de um dos maiores cartazes do rádio e da música popular brasileira a bordo do nosso avião. A nosso pedido, ele vai cantar alguns dos seus maiores sucessos.

Francisco Carlos recorda o fato entre risos: − Parece inacreditável, mas eu cantei. Cantei músicas alegres, de carnaval, para um público singular, que me aplaudia freneticamente ao final de cada composição. Atendi pedidos, dei bis, na verdade, virou um autêntico carnaval a bordo do avião em pane, que foi, aos poucos, felizmente, colocado sob controle da tripulação.

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Chegamos ao Rio com um motor a menos, porém vivos. Recebi abraços e beijos, como se fosse um rei. Foi um susto e tanto, mas acabou valendo. Eu e a aeromoça fomos homenageados, posteriormente, pela empresa de aviação pelo ato de heroísmo...

Capa de LP

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J K e Sa r n e yFrancisco Carlos relembra que manteve com os presidentes da República do Brasil, desde Getúlio Vargas, à exceção dos três últimos, Collor de Melo, Fernando Henrique e Lula, honrosa amizade, especialmente, Juscelino Kubitschek e José Sarney: − Juscelino, sempre que me encontrava, dizia ser meu fã ardoroso. Nosso relacionamento começou quando fui cantar nos festejos do Dia do Trabalhador, 1º de Maio, em Belo Horizonte, e ele estava presente no palanque. Abraçou-me efusivamente e me pediu que cantasse Aquarela mineira, do Ari Barroso, um samba de 1950. Juscelino vibrava com essa música.

− No caso de José Sarney, surpreendeu-me o conhecimento que ele tinha da minha carreira e do meu repertório. Certa vez, fui cantar em Goiânia e recebi um telefonema de um dos seus principais assessores, Antenor Monturil. No telefonema, Antenor disse: Francisco Carlos, estou na Granja do Torto, ao lado do presidente Sarney, que é seu grande admirador e pergunta por você. O presidente está indagando se você ainda canta, no mesmo tom, Alma dos violinos, do Lamartine Babo e Alcir Pires Vermelho. E convidou-me para passar naquele palácio, na volta ao Rio. Alma dos violinos é uma das minhas músicas prediletas, que me ajudou muito a conquistar o apoio da crítica.

Francisco Carlos com José Sarney e Monturil

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V e s t i d o d e N o i v aUm dos relatos mais impressionantes da carreira de Francisco Carlos, foi seu relacionamento com o cantor Francisco Alves. Chico Alves, reconhecido como o Rei da Voz, era o grande astro da Rádio Nacional do Rio de Janeiro nos últimos anos da década de 1940, até sua trágica morte, em 27 de setembro, de 1952.

Com a ascensão de Francisco Carlos, em 1950, na própria Nacional, Francisco Alves passou a olhar, com reservas, o jovem intérprete que, de repente, começou a roubar-lhe espaço e a ameaçar sua fama, posta em cheque com o número avassalador de cartas dirigidas a Francisco Carlos por fãs em todo o Brasil e, pior ainda, diante do resultado de um concurso promovido pela Revista do Rádio, em 1951, destinado a eleger o cantor mais popular do Brasil. A pergunta do concurso era: Qual o cantor mais popular do Brasil?

Francisco Carlos ganhou a eleição, desbancando Francisco Alves, reconheci-damente orgulhoso de ostentar a fama de cantor mais popular, e logo na própria emissora onde ele atuava, por um novato. Em conversas reservadas com colegas da rádio, Chico Alves não escondia que se achava incomodado com a fama crescente do jovem cantor, a quem cumprimentava friamente.

Aconteceu a inauguração da Rádio Nacional de São Paulo, para onde viajaram os maiores cartazes do rádio carioca, levados pelo diretor Vitor Costa, para uma festa de arromba na capital paulista, entre eles, justamente, Francisco Alves e Francisco Carlos. Depois da inauguração e show na rádio, houve um coquetel no hotel que hospedava os artistas. Aracy de Almeida, conhecida gozadora, sabedora da birra de Francisco Alves, armou-lhe uma armadilha. Vendo-o numa roda, ela aproximou-se e entrou na conversa.

Discretamente, no momento em que Francisco Carlos passava pela roda, Aracy puxou-o pelo braço e o colocou ao lado de Chico Alves. Sorrindo, perguntou: E aí, Chico, o que você acha do cantor mais popular do Brasil? Desconcertado, Francisco Alves riu, abraçou o rival e retrucou: Este menino canta muito. Vou ter que me esforçar bastante para não perder o meu trono...

A partir daí, segundo Francisco Carlos, a amizade entre os dois tornou-se extremamente cordial e legítima: − Dias depois, chegando em casa, no

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Francisco Carlos com Aracy de Almeida e Heleninha Costa

Jardim Botânico, minha mãe avisou-me que Francisco Alves me telefonara duas vezes à minha procura. Consegui localiza-lo no Jóquei Clube, onde ele era quase sempre encontrado, não apenas para ver os seus cavalos, mas, principalmente, por causa do carteado. Ele era muito chegado a um carteado.

− No telefonema, Chico disse-me que precisava me ver. Combinamos que ele passasse em minha casa e saímos juntos no seu carro, um belo Buick, rumo à rua Silveira Martins, onde ele morava. No caminho, ele revelou-me que tinha feito um samba, com David Nasser, e gostaria que eu lançasse e gravasse a composição. Diante do meu interesse, já no Largo do Machado, ele desceu do automóvel, abriu a mala do carro e tirou o violão. Olhou-me e começou a cantar um samba-canção. Ora, não precisa comentar que o local ficou cheio de curiosos, atônitos com a nossa presença. Chico, então, cantou-me Vestido de Noiva, cuja letra e música eu aprendi ali mesmo, foi gravado por mim, com ele no estúdio na RCA Victor, fazendo sinais de apro-vação durante a gravação.

Certa noite, Francisco Alves convidou Francisco Carlos para irem, juntos, a um show na boate do Carlos Machado, Um vagabundo toca em surdina,

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com o gaitista Edu da Gaita. Machado, vendo os dois cantores, anunciou suas presenças, insinuando que os dois subissem ao palco. Com os aplausos do público, Chico Alves levantou-se e preparava-se para atender o convite, mas Francisco Carlos puxou-o pelo braço, fazendo-o desistir: Não vai, Chico. Ele quer faturar em cima do seu nome e do meu. Nós estamos aqui como espectadores e não para dar canja.

Francisco Alves riu e comentou: Você me faz lembrar o Mário Reis, que tinha essa preocupação comigo, quando saíamos juntos. Canja, só em casa, para os amigos.

Outra demonstração de amizade e admiração de Francisco Alves para com Francisco Carlos deu-se pouco tempo antes da morte de Chico, que apre-sentava, todos os domingos, ao meio-dia, um programa famoso, Quando os ponteiros se encontram. O auditório da emissora ficava lotado de admiradores do Rei da Voz, que nunca faltava a esse encontro. Às vésperas, porém, de um desses domingos, Chico apanhou forte resfriado. Ligou para Francisco Carlos e pediu-lhe que o substituísse.

Francisco Carlos recorda: − Na hora do programa, ele estava lá e adiantou que iria me acompanhar ao violão. Antes de entrar no palco, Chico olhou-me firme, sorriu e observou: Ô Broto − era assim que ele me chamava − você está amarelo? E deu uma gargalhada. De fato, eu estava nervoso. Era muita responsabilidade: minha carreira tinha começado há pouco tempo e eu ia substituir um artista do nível do Chico, meu antigo ídolo, um cartaz permanente. Mas foi tudo bem. Fiz um programa, para mim, memorável.

A Rádio Nacional do Rio de Janeiro foi uma emissora tão grandiosa, graças ao seu incomparável elenco de cantores, produtores, músicos e radioatores, que o seu espaço era infinito para o brilho de tantos astros e estrelas. Uma prova dessa grandiosidade é dada pelo radialista e pesquisador da MPB, Osmar Frazão, que costuma afirmar: A Rádio Nacional teve quatro ídolos (cantores): Francisco Alves, Orlando Silva, Francisco Carlos e Cauby Peixoto. Chico e Orlando, nos anos 1930 e 1940; Francisco Carlos e Cauby, nos anos 50. Entre as cantoras, Emilinha Borba e Marlene, Dalva de Oliveira, Ângela Maria e Linda Batista, entre outros nomes célebres.

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F l a m e n g oClube do coração, Francisco Carlos?

− Flamengo.

Algum motivo em particular?

− Sim. Eu era garoto de calça curta e vi Leônidas da Silva jogar. Era um malabarista, o criador da bicicleta, que encheu os meus olhos de felicidade, vendo atuar. A convite de Leônidas,conheci sua casa, na Gávea. Foi com Leônidas que entrei na legião de torcedores do Flamengo. Outro jogador que me encantou foi Perácio, também do Flamengo. Estranhamente, anos depois, quando negociava um apartamento, encontrei Perácio. Tornara-se corretor de imóveis, para sobreviver. Naquela época o futebol não pagava a fábula que oferece hoje aos craques.

− Fui amigo do grande presidente, Dario de Melo Pinto, por intermédio do seu filho, Ronaldo, meu amigão. A propósito, o fabuloso Ademir Meneses poderia ter vindo para o Flamengo, mas o meu primo Rubens Moreira, de Recife, desviou-o para o Vasco. A propósito do Vasco, fui eu, um rubro-negro, o cantor que gravou um hino do Vasco, um disco 78 rotações, eleito num concurso realizado em São Januário, com a finalidade de escolher uma música de exaltação ao clube. A gravação foi uma solicitação do próprio Vasco. No outro lado do disco eu gravei Na fonte dos sonhos, versão de Ramalho Neto.

− A minha ligação com o futebol, como torcedor, porém, foi restrita aos anos 1930 e 1940. Nos anos 50, eu não tinha tempo para nada, a não ser cuidar da carreira. Mas fiz grandes amigos no esporte, como o antigo locutor Antônio Cordeiro, criador de No mundo da bola, na Rádio Nacional, o Washington Rodrigues, o José Carlos Araújo e o Luís Mendes.

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M a c h a d o d e A ss i sFalando sobre hábitos pessoais, Francisco Carlos revela que ganhou um livro que lhe causou profunda admiração e contribuiu, a partir daí, para cultuar um hábito: colecionar raridades literárias: − O livro trazia cartas de Machado de Assis para os amigos, escritores, entre eles, Joaquim Nabuco e José de Alencar. Adorei e passei a frequentar sebos atrás de preciosidades assim e me orgulho de possuir algumas joias. Atendendo convite da Academia Brasileira de Letras, levei esse livro à Dona Carmem, secretária da ABL, que me apresentou ao presidente da casa, o saudoso Austragésylo de Athayde. Ele fez uma bela dedicatória e autografou o livro para mim.

− Entre outras passagens curiosas desse livro, destaca-se uma carta resposta de Machado de Assis a José de Alencar sobre o poeta baiano Castro Alves. Na carta de Alencar, ele diz que Castro Alves está hospedado em sua casa, na Tijuca, e faz rasgados elogios ao seu hóspede. Machado endossa os elogios. Por falar em poeta, aproveitei a visita à ABL e fui ver de perto a escrivaninha do meu poeta predileto, Olavo Bilac, sentando-me, vaidosamente, em sua cadeira.

Quadro de Francisco Carlos

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N o e l R o s aUm dia, o diretor de cinema Rogério Sganzerla resolveu fazer um filme sobre o compositor Noel Rosa, cujo papel seria vivido pelo ator Joel Barcelos, e convidou Francisco Carlos para o papel de Francisco Alves.

− Havia uma cena em que Noel colocava um dinheiro no bolso de Francisco Alves, que eu estranhei. Indaguei ao Rogério o que aquilo significava. Ele explicou que era o pagamento de um samba do Noel, que o Francisco Alves havia comprado. Não gostei. Disse que não faria a cena. Discutimos a questão. Retruquei que o David Nasser, quando visse a cena, ia cair de pau em cima da gente, pois ele era muito amigo do Chico Alves. O filme não foi adiante e eu nada recebi de pagamento, mas foi melhor assim. Para mim, era um desres-peito à memória de um grande cantor, colega e amigo. Valeu o prejuízo.

− Esta minha preocupação com a ética pode ter me custado alguns contra-tempos aqui e ali, porém rendeu-me inestimáveis elogios e reconhecimento. Por exemplo: fui indicado para sócio do fechado Iate Clube do Rio de Janeiro. Meu nome foi aprovado, sem bola preta, o que não aconteceu com muita gente boa, que se candidatou e foi vetado. Para festejar a aprovação do meu nome pelo Iate, fiz um show no Hotel Sheraton em homenagem a Ari Barroso, cantando dezenas de músicas do seu glorioso repertório, entre elas, Aquarela mineira, que eu gravei. Mariúsa, filha do grande Ari, compareceu e fez questão de declarar, em público, que eu fui um dos maiores intérpretes da obra do seu pai.

− Ainda sobre o Iate Clube, aproveitei minha condição de sócio e comprei uma lancha, à qual dei o nome de Seresta, para passear. Um dos meus prazeres é contemplar e viajar no mar. Sempre que posso, passeio pela baía de Guanabara. O mar, lagos, lagoas são lugares que me atraem. Quando jovem, fui remador do Botafogo, levado pelo saudoso amigo José Augusto Rodrigues, e também andei praticando boxe. Foram, entretanto, ocupações passageiras, por mero prazer.

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D á l m a t a s e F a i s õ e sQuem quiser manter a atenção de Francisco Carlos, uma chave: falar de faisões, uma paixão que ele mantém há muitos anos: − Tive inúmeros apartamentos, mas sempre gostei de morar em casas. Troquei um apartamento que eu tinha no Leblon por uma boa casa em Santa Teresa, onde iniciei uma criação de Dálmatas, que chegou a ser focalizada pelo programa Globo Repórter, da TV Globo. Foi quando iniciei forte amizade com José Eduardo Guinle, outro grande criador de Dálmatas, que me presenteou com um exemplar especial da raça.

− A criação de Dálmatas convivia com outra paixão: os faisões. Sou fissurado por essas aves, pelas cores cintilantes de suas penas em prodigiosa harmonia cobrindo o seu corpo. Comecei a coleciona-los depois que fui presenteado pelo meu amigo Carlos Lacerda com um faisão. No meu caso, os faisões são exclusivamente para serem contemplados e não para serem comidos. Os faisões, alguns pássaros e meus quadros, depois da minha família, são os xodós da minha vida. Por minha família, refiro-me à Marilene Alves de Moura Rodrigues, com quem casei, e nossa filha, Norah Maria de Moura Rodrigues, filha única.

Francisco Carlos com sua filha Norah Rodrigues

Francisco Carlos e sua esposa Marilene Rodrigues

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Sô n i a D u t r aFrancisco Carlos é demasiadamente discreto ao falar sobre sua vida amoro-sa como ídolo do rádio, do disco e do cinema. Ele admite que foi difícil fugir do assédio de muitas mulheres e garante que alguns casos explorados pela imprensa não tinham procedência. Um deles foi com a cantora Sônia Dutra, filha do deputado Elói Dutra, político de prestígio no Rio de Janeiro, até 1964, quando o seu mandato foi cassado pelos militares após o golpe que derrubou o presidente João Goulart, naquele ano.

Sônia era uma moça linda, da alta sociedade carioca, mas desejosa de entrar para a vida artística, como cantora: − Éramos muito amigos, mas apenas amigos. Um dia, Sônia fez-me uma proposta curiosa: você toparia um noivado comigo, Carlos? Tomei como uma brincadeira, mas ela insistiu e explicou que se tratava de uma jogada publicitária, que iria render-lhe uma capa na prestigiosa revista O Cruzeiro. Realmente, fomos capa da revista, como noivos, e o assunto rendeu muita matéria nas revistas e jornais, capas nas revistas do Rádio e Radiolândia. Era o que minha amiga queria.

− Quando ela gravou seu primeiro LP, dedicou-me no disco as seguintes palavras de carinho: Francisco Carlos, se eu tivesse um irmão não gostaria tanto como gosto de você. Até hoje, somos grandes amigos, eu e Sônia. Fiz isso por ela, como fiz por vários amigos e colegas, porque entendo que ajudar alguém, quando essa pessoa precisa, é um ato nobre e que nos engrandece. Posso citar, ainda, o caso do grande locutor Heron Domingues, noticiarista do lendário Repórter Esso, na Rádio Nacional, que indiquei como narrador de jornais falados no cinema.

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M a r a R ú b i aEntre as maiores vedetes dos anos 1950, destacava-se Mara Rúbia, um mulheraço projetado pelas revistas musicais dos Teatros Carlos Gomes, Rival, Recreio, João Caetano, onde brilharam nomes como Renata Fronzi, Virginía Lane, Sônia Mamede, Eloína, Conchita Mascarenhas, Nélia Paula, que rivaliza-vam com as vedetes do Carlos Machado (Boate Night and Day e Copacabana Palace), Angelita Martinez, Aída Campos, Norma Benguel, Carmem Verônica, Diana Morel, Dorinha Duval, Iracema Vitória, Margot Bittencourt, Rose Rondelli, Madalena de Paula − um timaço de belas e lendárias mulheres, que enfeita-vam e deslumbravam as noites musicais do Rio de Janeiro naqueles tempos sortudos, mais precisamente, entre 1950 e 1960.

Uma noite, Francisco Carlos foi dar uma paquerada na boate Hi-Fi, e deu, de cara, com Ari Barroso, sentado numa mesa com Mara Rúbia - Eu gostava do Hi-Fi, por causa dos seus shows, e assim que entrei na boate, lá estava o Ari, àquela altura, já bastante mamado, com a Mara. Levantou-se, abraçou-me e falou para todo mundo ouvir: Meu Broto, você caiu do céu. Francisco Carlos, você vai me atender a esta mulher. Eu não tenho mais pica para atender um mulherão como esse

− O Ari era uma pessoa surpreendente. Quando ele compôs Rio de Janeiro, telefonou-me e ordenou: Francisco Carlos, acabei de fazer uma homenagem ao Rio e escolhi você para lançar e gravar Rio de Janeiro. Respondi: − Claro, mestre. Pode mandar a partitura de piano para ser feito o arranjo, que eu gravo. De fato, dias depois, o José Alvarenga, grande amigo do Ari e diretor comercial da Rádio Tupi, passou na Nacional e me entregou a partitura do belo samba, Rio de Janeiro, que a minha amiga Dalva de Oliveira depois gravou. No dia da gravação, ele estava presente e, como já narrei, implicou com o s de nossas flores. Ele achava que eu não tinha cantado o s claramente, o que não era verdade. Ele, porém, insistia: Meu Broto, um S é altamente significante. Um S transpõe montanhas.

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Francisco Carlos com Sonia Mamede

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F i o r e n t i n a− Outro concorrido ponto de encontro da noite carioca que eu frequentei − prossegue Francisco Carlos − foi o restaurante A Fiorentina, no Leme, que ficava aberto a noite toda, recebendo, principalmente, artistas, intelectuais e jornalistas. Foi fundada pelo meu amigo particular Sílvio Hoffman e adminis-trada por Araquém Lima. Na Fioretina, havia presenças obrigatórias, como Edu da Gaita, Mário Lago, Bororó, Anselmo Duarte, Jorge Dória, o Capitão Asa, Zélia Hoffman, Valdir Machado, Elis Regina, Luís Mendes, Walter Clark, José Amádio, diretor da revista O Cruzeiro, Anselmo Domingos, Paulo Gracindo e Manoel Barcelos. Na fundação da Fiorentina, Sílvio insistia para que eu jantas-se sempre lá e dizia que era por conta da casa. Eu respondia que não, que era minha obrigação pagar, e ele retrucava: Faço questão, Carlos. Preciso da sua fama e do seu cartaz. Você é quem está me ajudando ao vir aqui.

− Uma noite, eu estava na Fiorentina, e, lá pelas tantas, presenciei uma cena engraçadíssima, envolvendo Ari Barroso e a atriz Wilza Carla, que conheci magrinha e, com o tempo, engordou muito e até fez tipo com a gordura. Ari gostava de mexer, provocar as pessoas: desarrumava o laço de uma gravata, desalinhava um cabelo, um comentário sarcástico, enfim, brincadeirinhas capazes de irritar colegas e amigos. Não sei o que ele fez para provocar a Wilza, mas o fato é que, quando olhei, ela despejou o prato de talharim em sua frente no peito do Ari. Ari, porém, não perdeu a pose: olhou para o garçom que se aproximava, estupefato, para atender à mesa e reclamou: não foi esse o prato que eu pedi... Foi uma gargalhada geral.

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N e s t o r d e H o l a n d aJornalista, radialista e compositor, Nestor de Holanda tinha muitos amigos, mas também contraiu numerosas inimizades, em virtude da língua ferina, ou melhor, pena ferina mantida em colunas de jornais que assinava expondo casos e fazendo provocações, contra Deus e o mundo. Ninguém − nem os amigos mais próximos de Nestor − escapavam de suas críticas e, em algumas ocasiões, chegou mesmo a ser agredido, como aconteceu com César de Alencar, que lhe desferiu potente soco na entrada do prédio da Rádio Nacional, na Praça Mauá, atirando-o ao chão.

Francisco Carlos − em grande evidência − não seria uma exceção, atribuindo-lhe uma historinha: Mal apareceu pelo (Café) Nice, cantando ainda na Rádio Tamoio, emissora dirigida por Anselmo Domingos, que era, também, na época, cronista de rádio do Diário da Noite, Francisco Carlos virou personagem de anedotas. Porque, certa vez, foi procurado por uma fã, que lhe pediu: Você tem aí um retrato seu, para me dar? Ele apalpou os bolsos: Não, querida. Eu, hoje, estou isento de fotografias.

Francisco Carlos não deixou barato. Foi à sala de produtores da Rádio Nacional, onde Nestor trabalhava, e inquiriu: − Você presenciou isso, Nestor?

Nestor de Holanda respondeu que não. FC insistiu:− Então, alguém lhe contou.

NH sorriu e explicou: − Não, El Broto. Mas eu não podia deixar você de fora das minhas gozações. Afinal, você é atualmente o maior cartaz do rádio e eu não gasto o meu latim com gente desconhecida. Só com grandes cartazes. A propósito, você tem uma fotografia aí para me dar?...(Risos)

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O s C a f a j e s t e sUm dos mitos dos anos 1950, no Rio de Janeiro, atendia pelo temido nome de Os cafajestes, que dispensa explicações. Era integrado por um grupo de rapazes da classe média carioca, da Zona Sul, que se comportavam, intencional e paradoxalmente, como indivíduos desclassificados, desordeiros, provocando brigas, desmanchando festas e impondo medo onde fossem.

Antônio Maria tinha, porém, uma visão light do famigerado grupo, ao qual dedicou uma crônica (em jornal) que dá prazer ressaborear, pelo estilo e como testemunho: No relato das madrugadas cariocas, há um capítulo que nunca foi bem explicado − Os Cafajestes. Quem escreveu sobre eles, geralmente, disse de menos ou de mais. Realmente, na Praia de Copacabana, durante seis anos, reinaram uns 20 rapazes de boas famílias, face corada e musculatura exuberante. Conheci-os em fins de 1949, no apartamento 603 da Galeria Duvivier, onde se reunia o Estado Maior, comandado por Edu e constituído por Mariozinho de Oliveira, Paulo Soledade, Artur de Assis, Carlos Peixoto e mais alguns outros, em sua maioria, aviadores. Tocavam violão, faziam samba e fascinavam as moças da praia. Eram odiados pela polícia e, como o ódio da polícia não desonra ninguém, eles viviam. Como as brigas começavam, eu não sei, nem ninguém sabe. Mas quase toda festa tinha seu show. Edu era o mais bonito, o mais querido das mulheres e valente como ele só. Dizem que o seu soco não era violento, mas brigava com muita raça e malícia. Caía aos pés do adversário e puxava-lhe as pernas e deitava sobre ele, com uma saraivada de socos, que não acabava mais. Uma vez, no Copacabana, com Mariozinho, fechou o tempo e o baile. Na porta do toilette dos homens, resistiam a toda a polícia que viesse. Mariozinho, como um alucinado, ria, dava pontapés, bofetões e dobrava a gargalhada, quando vencia um policial. Nessa noite, Edu foi baleado nas pernas. Mas, o estouro da bala não dispersou o grupo. Tempos depois, num Baile das Atrizes, a polícia, tentando evitar o batefundo de logo mais, começou a briga na porta na entrada da festa. Foi um Deus nos acuda. Moça deu ataque, boca perdeu dentadura, sangue correu do lábio e a orquestra parou de estalo, no melhor do samba. Contam que Edu levantou a blusa de um marujo − o moço ficou com os braços para cima e o rosto tapado − e a bolacha comeu, durante dois minutos, como o ritmo dessas perfuratrizes que esburacam o asfalto. O resto dos cafajestes

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achava essas coisas lindas e fazia outras tantas. A especialidade do grupo, era, porém, o carnaval. Podia faltar dinheiro para tudo, menos para a fantasia e para os ingressos dos bailes. Fascinados pela bravura e jovialidade dessa gente, vieram rapazes de São Paulo e se incorporaram ao bando. Um deles foi o milionário Baby Pignatari e outros foram Índio e Toddy, comerciante de café, em Santos. No último carnaval dos cafajestes, em 1950, no Vogue, eu vi Mariozinho cantar, das 22h às 6h, um hino de paz e bem-querer aos seus amigos fraternos: Um aperto de mão/ pedi nossa união/ salve, salve Cidade de São Sebastião. Estava em pé em cima de uma mesa, vermelho como um camarão, cantando sem parar, Aquilo parecia uma despedida. Na hora, eu não pensei. Mas, vendo, hoje, aquilo era a cantiga da última festa. No fim daquele ano, numa noite de sexta-feira, caiu o Constellation. Eu ouvi no rádio do automóvel e senti um aperto na garganta, quando disseram que o comandante era Eduardo de Oliveira.

Francisco Carlos conheceu Os Cafajestes e até firmou amizade (superficial) com alguns deles, como Mariozinho e Paulo Soledade: − Essa turma não era de brincadeira. Uma noite, fui ao Clube Caiçaras, na Lagoa, e lá pelas tantas, um diretor do clube meu amigo me procurou e me convidou para cantar. Disse a ele que ia pensar com carinho sobre o convite, mas ele então revelou que Os Cafajestes estavam na festa. Não pensei duas vezes. Discretamente, saí do clube. No dia seguinte, soube de tudo. Pouco tempo depois, o tempo fechou no Caiçaras, que ficou quase todo quebrado.

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Francisco Carlos com Bill Farr

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C a n t o r e sEm entrevista a Simon Khoury, na Rádio Jornal do Brasil (anos 1970), Francisco Carlos fez um resumo de sua carreira e enfrentou uma sabatina do produtor e ator.

É fundamental ter voz para ser cantor, Francisco Carlos? − iniciou Simon a entrevista.

− Na minha opinião, sim. Não gosto de vozes pequenas. Cantor, para mim, tem que ter voz, como era comum no tempo do rádio. Na chamada música popular brasileira, mais propriamente, a era da televisão, a voz tornou-se secundária. Às vezes, surpreendo-me vendo cantores fazendo a maior força para interpretar uma música, como se estivessem se espremendo para cantar. Parece até que estão com asma. Sinto vontade de ajuda-los.

Roberto Carlos, então, não está entre suas admirações. Ele é um cantor de voz pequena...

− Roberto é um cantor de lindas músicas, mas ele contou com um leão e um tigre para promover sua carreira. Eu não tive isso. No meu tempo não existia máquina para promover os artistas. Era cada um por si e Deus por todos. O Roberto, a exemplo de vários intérpretes, tem a voz pequena mas sabe coloca-la. Aí está o seu mérito. Repito, entretanto, que considero cantor aquele que tem voz potente, não para cantar se esgoelando, porém que seja capaz de realizar um pianíssimo (falsete), quando necessário, porque tem material para isso.

O visual é importante?

− No meu entender, um cantor, um artista, tem obrigação de se apresentar bem, respeitando o público. Falo de cantor romântico. Nos Estados Unidos, em certas ocasiões, vi cantores (?) se apresentando vestidos de urso, de búfa-lo, e já vi muita gente mal vestida ocupando palcos. Nesses casos, a música e o canto tornam-se secundários. No rádio não tinha disso não. O mesmo não se pode dizer da televisão.

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Considera a música estrangeira superior a brasileira?

− Pelo contrário, não troco nossa música pela estrangeira. Cantei e gravei algumas versões, mas 80 por cento do meu repertório contemplam músi-cas brasileiras.

Quem foi mais importante, você ou Dolores Duran?

− A vida é engraçada. Depois que morreu, é que Dolores virou mito. Fomos colegas na Rádio Nacional e nos apresentamos inúmeras vezes juntos em shows dentro e fora do Rio, mas a atração era eu. Dolores foi minha adorável colega e cansávamos de inventar brincadeiras entre nós. Ela sempre foi mito para mim.

Alguma vez deixou o público esperando, sem cumprir compromisso?

− Nunca. Em toda a minha carreira, cumprir compromisso era ponto de honra. Cheguei a cantar com febre de 40 graus, mas não faltei. Certa vez, durante excursão pelo Sul, em Londrina, perdi praticamente a voz. Fazia um frio bárbaro e a garganta foi afetada. Cantei assim mesmo, com um locutor explicando o problema, que foi compreendido pelos espectadores. Como o meu repertório era conhecido, eu iniciava a música e o público seguia adiante.

Como eram os seus contratos? Tinha empresário?

− Nunca tive empresário. Eu mesmo cuidava dos meus contratos. Tudo por escrito, nada de boca. E mais: sempre cobrei caro para me apresentar e não foram poucas as vezes em que era obrigado a fazer duas apresentações, uma atrás da outra, nos lugares onde ia. Fui primeiro lugar em correspondência durante 12 anos na Rádio Nacional, como o artista que mais recebia cartas. Em 1958, fui eleito Rei do Rádio e recebi, da imprensa, o troféu Tupiniquim, como melhor ator. A entrega dos prêmios foi no Cine São Luís.

Por que parou de cantar?

− Porque decidi dedicar a maior parte do meu tempo à pintura, que é a minha paixão, junto com a natureza. Parei com as gravações, o cinema, e dirigi minha vida para a contemplação da natureza, os faisões, os dálmatas, os passarinhos. Não me arrependo. Canto só quando quero. Sou um privilegiado. Fiz tudo o que queria. Olho sempre para baixo, não olho para cima, porque sinto que tenho

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uma proteção forte ao meu lado. O meu querido e inesquecível amigo Ronaldo Bôscoli ainda tentou mudar minha opinião, insistiu para que eu voltasse a cantar regularmente, mas não funcionou. Eu já tinha feito minha opção.

Você foi alvo de provocações?

− Várias vezes. Na rua, em clubes. Geralmente eram rapazes invejosos por causa do belo mulherio que me cercava ou me acompanhava. Certa vez enfrentei um grupo deles, na Tijuca, uma atitude temerária, que, felizmente, ficou só na discussão. Eles cercaram o meu carro, um Oldsmobile, e a moça que estava comigo. Houve, entretanto, um episódio curioso, em São Paulo, certa vez, que não chegou a ser uma provocação, mas perigo real de vida. O motivo, porém, não era inveja. Era paixão do fã por mim.

O fã, no caso, era um homem?

− Exatamente. Foi numa boate famosa, a Boate Cave, onde eu ia cantar. Assim que eu entrei, fui abordado por um homem corpulento, com sotaque nordestino, que me pediu para cantar uma música só para ele. Disse que não podia, pois estava atrasado, e ele não se conformou. Argumentou que a música solicitada tinha sido o centro de uma grande paixão amorosa, e insistiu. Diante de nova recusa, assinou um cheque e repetiu que pagaria o que eu pedisse. Não atendi e ele então apelou, puxando um baita revólver e ameaçando: Não quer cantar por bem, vai cantar por mal. E eu cantei, no hall da entrada da boate, com o testemunho de alguns circunstantes atônitos. Era o tango Aventureira, versão do meu amigo Haroldo Barbosa. O homem, que depois eu vim saber, era deputado, ouviu tudo, banhado em lágrimas.

Você vestia-se bem?

− Muito bem. Era obrigação, mas a gente, independente disso, fazia questão de vestir-se apuradamente. Meu alfaiate era o Pascoal da Mata, que trabalhava para muitos colegas, que tinha uma loja na Cinelândia. No cabelo, brilhantina Glostora. Usei bastante. E fumei Hollywood e Continental, os cigarros da moda, mas larguei o vício a tempo e a hora. Nunca fui de beber. Por isso, jamais dei vexame bebendo além da conta.

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Que tipo de público você mais gostava?

− Multidões em praça pública e teatros. Nunca gostei de boate. Em boate sempre tem gente bêbada, chata, que perturba o artista. Meu público era arrebatado, cobria-me de afeto e de presentes, como aconteceu, certa vez, em Ubatã, na Bahia. Um fã, que depois tornou-se meu querido amigo, Lincoln, empresário, com o apoio da prefeitura e outros empresários, doou-me um terreno no perímetro urbano da cidade, para construir ali o que eu quisesse.

A televisão não lhe atraiu?

− Não tanto quanto o rádio. Convites não me faltaram. O meu amigo Chacrinha, de quem gravei algumas músicas de carnaval, cansou de me chamar para me apresentar nos programas dele na televisão. A propósito, o amigo Chacrinha usou muitas brincadeiras, que eu bolei, em seus programas. Eu era metido a engraçado, entre amigos e nos estúdios da Atlântida, nos intervalos das filmagens. Se contar ninguém acredita, mas meu amigo Oscarito também usou algumas das minhas brincadeiras em seus espetáculos, depois de me consultar. Oscarito era uma pessoa demasiadamente tímida fora do palco. No palco, contudo, transformava-se, era insuperável. Inúmeras vezes as filmagens com ele na Atlântida foram interrompidas, por causa de suas atuações cômicas magistrais, matando de rir colegas em cena e o pessoal por trás das câmeras.

Francisco Carlos, quem é você?

− Eu sou um romântico, um sonhador, que acredita profundamente na vida. O importante é não perder a criança que carregamos dentro do peito. Quem agir assim, será sempre jovem. Não invejo a cigarra, embora reconheça que ela canta mais do que eu, porque, em compensação, enquanto a cigarra só consegue cantar, eu canto, desenho, pinto meus quadros e tive o privilégio de trabalhar com extraordinários artistas, como Oscarito, Grande Otelo, Cyll Farney, Anselmo Duarte, Eliana, Adelaide Chiozzo, Fada Santoro, Miriam Teresa, Inalda de Carvalho, Sônia Mamede, Zezé Macedo, Coleneh Costa, Watson Macedo, Carlos Manga, José Carlos Burle, Watson Macedo e Carlos Manga, no cinema; Orlando Silva, Sílvio Caldas, Francisco Alves, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Dolores Duran, Emilinha Borba, Marlene, Gilberto Milfont, Jairo Aguiar, Núbia Lafaiete, Humberto Teixeira, Luís Gonzaga, que me chamava de meu afilhado, entre tantos nomes, além de inúmeros amigos.

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− Poderia acrescentar nomes estrangeiros, como Carlos Ramirez, de quem fui cicerone em sua visita ao Rio, Gregorio Barrios, Pedro Vargas, Lucho Gatica, Consuelo Velasquez, a quem ofereci um jantar na minha casa, e Jean Sablon. Em suma, percorri uma estrada de luz. Só sei andar no caminho da luz.

Pintura Francisco Carlos

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J a n g o e a V e d e t eNão foram nada amistosas − pelo contrário − as relações entre Francisco Carlos e o ex-ministro e, mais tarde, vice-presidente e presidente da República, João Goulart, o Jango, que se lançou na cena política nacional, vindo do Rio Grande do Sul, apadrinhado por Getúlio Vargas e apontado como seu herdeiro político.

De certa forma, os governos de Getúlio (segundo período, de 1951 a 1954) e Jango (1962 – 1964) tiveram desfecho semelhante, por terem sido ambos

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alvo de ruidosa campanha de descrédito, que culminaram na morte por suicídio do primeiro, em 24 de agosto de 1954, abortando um golpe de estado liderado por Carlos Lacerda, e em real golpe de estado (também liderado por Lacerda), o segundo, no dia 1º de abril de 1964, acrescido de exílio e posterior morte no Uruguai.

Uma noite, o violonista Luís Bonfá convidou Francisco Carlos para irem juntos à Boate Casablanca, na Praia Vermelha, onde o empresário Carlos Machado promovia requintados shows cujo destaque era um selecionado grupo de belas mulheres, as vedetes de Carlos Machado. Bonfá namorava uma das moças do grupo e convenceu FC a lhe fazer companhia, com o poderoso argumento de apresentá-lo a outras colegas de sua amada.

− Depois do show, a namoradinha do Bonfá veio sentar-se na nossa mesa. Com ela, veio outro mulheraço conhecido, na época, pelo curioso apelido de Joãozinho Boa Pinta, na verdade, Aída Campos, que se transformou em atriz de cinema, tendo participado de uma série de filmes, vários deles com a Dercy Gonçalves. Iniciamos, ali mesmo, um caso que me custou algumas preocupações.

− Jango, então ministro do Trabalho, era metido a mulherengo, cortejando principalmente vedetes. Acontece que ele era apaixonado pela moça, indo muitas vezes ao seu encontro na boate. Aliás, ela também foi cortejada por Juscelino Kubitschek, entre outros políticos. Quando soube que Aída e eu estávamos ligadíssimos, passou a fazer ameaças veladas. Um dia, ele me procurou para tomar satisfações e tivemos dura discussão.

− Ele deixou-me indignado, de pronto, ao perguntar-me: O que depende a tua felicidade com essa moça? Respondi que cuidasse de sua vida e ataquei: Olha, ministro, o que é seu é seu, o que é meu é meu. Se tiver algum samba, alguma música para mim, eu gravo. Fora isso, nada temos para conversar. Mas o homem estava inconformado e fez ameaças. Retruquei que não tinha medo e que se alguma coisa me acontecesse ele seria responsabilizado criminalmente. Preveni que havia escrito uma carta relatando a questão, carta essa com cópia entregue a alguns amigos de confiança para repassá-la à imprensa, e desafiei-o a indagar a Aída com quem ela preferia ficar.

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− Ela estava comigo num apartamento onde morava, dado por ele, no Edifício Biarritz, em Copacabana, quando Jango ligou. Ouvi claramente, colando o ouvido no telefone, quando ele cobrou de Aída o fim da nossa relação: Não me diga que você vai me trocar por esse cantorzinho, repetiu. Trocou. Mas não teve problema. Aluguei um apartamento para Aída e o caso encerrou-se. Não preciso acrescentar que andei longe da Presidência da República duran-te o período em que Jango foi presidente, o que não aconteceu com outros chefes de Estado.

L a m a r t i n e B a b oFrancisco Carlos aponta, orgulhosamente, a gravação da valsa-canção Alma dos violinos, de Lamartine Babo e Alcir Pires Vermelho, como o momento mais expressivo de sua carreira de cantor. De fato, é uma gravação antológica, elogiada por todos os críticos, e que ganhou a sua voz por um descuido de Orlando Silva. Era Orlando quem cantava, no seu programa na Rádio Nacional, quando passou a substituir Francisco Alves, após a morte trágica do Rei da Voz.

− Quem me chamou a atenção para essa canção foi o Paulo Tapajós, diretor artístico da Nacional. Eu estava para gravar um disco e procurava repertório, quando ele cantou para mim Alma dos violinos. Adorei e entrei em contato com o Lamartine, que tinha uma cantina na Rua das Laranjeiras, vizinha à Hebraica. Fui lá com o Humberto Teixeira, sendo recebido com festa pelo Lalá. No dia seguinte, fiz a gravação, arranjo de Lyrio Panicalli, com o Lalá presente, comentando comigo: Escuta, Carlos, o Orlando costuma dar uma nota alta neste final. Que tal transformar essa nota alta num falsete? Lamartine sabia das coisas. Cantei como ele sugeriu e a gravação ficou um primor. Ele não cabia de contentamento quando ouviu o acetato. Chegou a bater palmas. Grande Lalá!

Quadro a óleo de Francisco Carlos

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Í d o l oFrancisco Carlos foi, seguramente, o artista mais popular dos anos 1950, no Brasil, se compararmos o êxito de sua carreira com a de outros ídolos também venerados pelo povo naquela década: Cyll Farney, Anselmo Duarte, Oscarito, Grande Otelo, Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, Luís Gonzaga, se considerarmos que Cyll, Anselmo, Oscarito e Otelo brilharam intensamente, mas somente no cinema; Cauby, Nelson e Gonzaga, no rádio e no disco; enquanto Francisco Carlos foi atração no rádio, no cinema (como cantor e ator) e no disco.

Foram, sem dúvida, três formidáveis vitrinas habilmente exploradas por ele, por força, evidentemente, do seu talento, em primeiro lugar, e da sorte, fator indispensável para alavancar e manter radiosa a carreira de todo artista. O ponto de partida foi a marchinha Meu Brotinho, gravada para o carnaval de 1950, que caiu no gosto do público e abriu de imediato para o jovem cantor, então com 22 anos, as portas do rádio (a poderosa Rádio Nacional) e do cinema (a Atlântida), na época os maiores canhões de promoção do mundo artístico brasileiro.

De pronto, ele figurou em dois filmes rodados pela Atlântida no final de 1949 e lançados em 1950, as produções Não é nada disso e Carnaval no fogo. O estouro foi Carnaval no fogo, filme onde Francisco Carlos apresentou-se cantando Meu brotinho e Mulher me deixa em paz, composições de Humberto Teixeira e Luís Gonzaga, oriundas do disco em 78 rotações, gravadas para o carnaval de 1950. Dúvida: foi Meu brotinho que transformou Carnaval no fogo em grande sucesso de bilheteria ou foi o filme que alavancou sua fulminante carreira? É impraticável e desnecessário responder, mas o registro (a pergunta) se impõe.

Revista da época

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O fato é que Francisco Carlos estava lã, na ponta dos dois, do disco e do filme. Astro da Rádio Nacional, Francisco Carlos assumiu também a ponta dos galãs mais festejados do cinema brasileiro, como foi o caso de Colégio dos Brotos, de 1956, onde ele aparece à frente de um desfile de 200 lambretas, moto italiana estilizada de muita popularidade logo que foi introduzida e comercia-lizada no País na metade dos anos 1950.

Os galãs vestiam ternos caprichosamente cortados por renomados alfaiates, calçavam sapatos de verniz e, no cabelo, fixando, permanentemente, o pentea-do, bastante brilhantina, ou melhor, a popularíssima brilhantina Glostora, que largava uma fragrância particular e era de uso quase obrigatório da maioria esmagadora dos homens, sobretudo rapazes.

Embora tenha passado pelos microfones das Rádios Mayrink e Tamoio, entre os anos de 1948 e 1949, a carreira de Francisco Carlos começa, de fato e de direito em 1950, ano repleto de grandes novidades no Brasil e no mundo. No Brasil, Getúlio Vargas, apeado do poder em 1945, foi eleito presidente da República com larga margem de votos, após derrotar o brigadeiro Eduardo Gomes, da UDN, e Cristiano Machado, candidato do PSD, tomando posse em março no ano seguinte.

Admirador de Getúlio Vargas, Francisco Carlos, claro, estava entre os eleitores do histórico presidente: − Votei nele com o maior prazer e o destino reservou-me inesquecível alegria. No ano seguinte, 1951, quando ele tomou posse, a Revista do Rádio promoveu um concurso para eleger os melhores do rádio. Eu fui escolhido o melhor cantor. Os eleitos foram levados pelo diretor da Nacional, Vítor Costa, ao Palácio do Catete, para serem recebidos pelo presidente Vargas.

− Foi uma dupla emoção, pois além de ser cumprimentado por ele, Getúlio, para minha surpresa, dirigiu-se a mim, dizendo: Francisco, então és tu El Broto das meninas do meu Brasil? Quase caí para trás. O presidente estava a par da minha carreira e me cumprimentava como se fosse um fã. Cantei para ele, em retribuição, a canção Zé Ponte, do gaúcho Lupicínio Rodrigues, gravada em 1946 pelo Orlando Silva, e Rio de Janeiro, do Ari Barroso, que eu acabara de lançar. Na passagem do ano, tornei a encontrá-lo, na Pedra da Gávea, residência do então prefeito do Distrito Federal, em show particular feito para ele, na compa-nhia do Trio de Ouro e Grande Otelo.

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A c o n t e c i m e n t o sComeçam, no Brasil, as primeiras transmissões de televisão, com a TV Tupi de São Paulo, inaugurada no dia 18 de setembro de 1950, por iniciativa do jornalista Assis Chateaubriand, o todo poderoso presidente fundador dos Diários e Rádios Associados. Era a PRF 3 Difusora de São Paulo. No ano seguinte, ele inaugurava a primeira emissora de televisão do Rio de Janeiro, a TV Tupi Canal 6, com sede na Urca.

Em pouco tempo, a imensa rede de comunicação do genial jornalista aumentou para 18 canais de TV em todo o Brasil, juntando-se aos 34 jornais, 36 emissoras de rádio, uma agência de notícias, revistas, entre elas, a lendária O Cruzeiro (semanal) e uma editora. O império incluía laboratórios farmacêuticos e fazendas agropecuárias.

Francisco Carlos, entretanto, somente estreou na televisão quatro anos depois, em 1955, à frente de um grupo de artistas da Rádio Nacional, especialmente convidado, com a inauguração de uma nova emissora no Rio de Janeiro, a TV Rio, Canal 13.

É substancioso salientar que a televisão levou tempo para se popularizar no Brasil. Embora inaugurada no País nos dois principais centros da nação, São Paulo e Rio de Janeiro, em 1950/1951, a sua massificação e transformação em veículo maior de comunicação só ocorreram na década seguinte, perma-necendo o rádio, o cinema e o futebol como as diversões preferidas do povo. Os programas televisivos dos anos 1950 eram praticamente programas de rádio com imagens, variando entre shows, peças de teatro, noticiários e, a partir de 1958, com transmissões de partidas de futebol.

De mais a mais, os poucos canais em operação (Tupi, Rio e, ao final da década, a TV Continental, Canal 9), não permaneciam o tempo todo no ar. Os programas ocupavam uma parte da tarde, entrando pela noite, para encerrar a programação por volta das 22, 23 horas. E essa programação atingia um público mais ou menos reduzido, porque os aparelhos de televisão custavam caro e não estavam ao alcance da maioria da população.

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Ainda em 1950, no dia 6 de junho, tropas da Coréia do Norte invadiram a Coréia do Sul, iniciando-se a primeira guerra localizada no mundo depois da Segunda Guerra Mundial, encerrada em 1945. Essa guerra envolveu a China, Estados Unidos e União Soviética, e durou três anos. O armistício foi assinado com intermediação da ONU.

Francisco Carlos brilhou no carnaval de 1950 com Meu brotinho, enfrentando outros grandes êxitos carnavalescos, como Balzaquiana, gravada por Jorge Goulart, de Antônio Nássara e Wilson Batista, General da banda, com Blecaute, de Sátiro de Melo, Tancredo Silva e José Alcides, Nega maluca, gravação de Linda Batista, de Fernando Lobo e Evaldo Rui, Daqui não saio, Vocalistas Tropicais, de Paquito e Romeu Gentil, e Marcha do gago, com Oscarito, de Armando Cavalcante e Klecius Caldas.

Quadro Francisco Carlos

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Outras composições, chamadas de meio de ano, foram destaque em 1950: Cadeira vazia, de Lupicínio Rodrigues, Qui nem jiló e Paraíba, de Luís Gonzaga e Humberto Teixeira, Cintura fina, Luís Gonzaga e Zé Dantas, Boneca de pano, de Assis Valente, Errei sim, de Ataulfo Alves, Nana, de Rui Rei e Rutinaldo, Rio de Janeiro, de Ari Barroso, e Olhos verdes, de Vicente Paiva. Entre as músicas estrangeiras, Again, Ay de mi, Frio en el Alma, Hipócrita, I´m in the Mood for Love, Mona Lisa, La Strada Del Bosco e My Foolish Heart.

Quando se examina o repertório musical dos anos 1950, avulta a constatação de que aquela foi uma década plena de belas composições esmagadoramente românticas e rica de gêneros musicais. Eram sambas, destacadamente, o samba-canção, a marchinha, a marcha de rancho, o baião, o choro e o frevo, ritmos nacionais, a valsa; gêneros estrangeiros: a rumba, o bolero, o fox (foxtrot), o swing, a balada, o tango, depois o mambo e o cha cha cha, todos eles dançantes, e, para ouvir e curtir, o jazz.

Todos eles começaram a ser atropelados pelo surgimento do rock (rock and roll), em meados da década, com o fenômeno de massas norte-americano, cantor Elvis Presley, e o sucesso mundial da composição Rock around the clock, com Bill Haley e seus Cometas. A rumba, o mambo, o cha cha cha, o fox, o swing, a valsa, a marchinha, e a marcha de rancho não resistiram à massificação do rock e pereceram ao longo dos anos 1960, sobretudo após o aparecimento dos Beatles.

A música popular brasileira resistiu com o velho samba e o baião, e, de quebra, ergueu mais uma barricada para enfrentar o rock: lançou a bossa nova, ao final da década de 1950, tendo como garoto propaganda o cantor João Gilberto e como compositor Antônio Carlos Jobim. A iniciativa, com o tempo, mostrou-se vitoriosa, pois a bossa nova terminou por despertar o interesse do público dos Estados Unidos, em especial a cumplicidade de influentes músicos e cantores norte-americanos, além da Europa e o resto do mundo.

Para encerrar os mais destacados acontecimentos que marcaram o ano de 1950, registremos que a Escola de Samba Império Serrano sagrou-se campeã do carnaval, o Vasco foi o campeão carioca de futebol, e lamentemos o fracasso da Seleção Brasileira na Copa do Mundo realizada naquele ano no Brasil, ao perder do Uruguai, por 2 a 1. O jogo teve como palco o recém inaugurado Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, no dia 16 de julho, diante de uma torcida extraordinária estimada em 200 mil pessoas.

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A v i s o a o s N a v e g a n t e sO êxito arrasador do filme Carnaval no Fogo deu à Companhia Cinematográfica Atlântida a fórmula mágica para um faturamento progressivo, durante quase toda a década de 1950, sem igual na história do cinema brasileiro, nem antes e nem depois. As produções sucediam-se, atraindo milhões de espectado-res em todo o País, batendo recordes de bilheteria, sendo que, no caso de Colégio de Brotos, em 1956, superou inclusive o lendário E o vento levou, permanecendo em cartaz no Cine Rian, no Rio, por três semanas, com sessões de manhã, à tarde e à noite.

Carnaval no Fogo foi rodado ao final de 1949, entrando em circuito no início de 1950, trazendo sucessos carnavalescos e canções de sucesso na época, destacadamente, Meu Brotinho. A direção foi de Watson Macedo e reuniu o seguinte elenco: Anselmo Duarte, Oscarito, José Lewgoy, Grande Otelo, Modesto de Sousa, Rocir Silveira, Jorge Goulart, Rui Rei, Francisco Carlos, Eliana Macedo, Adelaide Chiozzo, Marion, Elvira Pagã, Ruy Rey e Cuquita Carballo.

O título carnaval passou, então, a ser chamariz para outras produções, como, Carnaval Atlântida, 1952, Carnaval em Caxias, Flama-Atlântida, 1954, Carnaval em La Maior, filme produzido pela Maristela, de São Paulo, 1955, e Carnaval em Marte, no mesmo ano, produzido por Watson Macedo, numa clara demons-tração de alto prestígio da música carnavalesca brasileira, ao contrário da década de 1960, quando ela entrou em declínio, até sumir da mídia, nos anos 1970.

O elenco era basicamente o mesmo, seguindo, provavelmente, uma diretriz bastante respeitada no futebol, segundo a qual, em time que está ganhando não se mexe. Em Aviso aos navegantes, outro estouro de bilheteria, produzi-do em 1950 e lançado em 51, Watson Macedo permaneceu na direção, com os seguintes astros: Anselmo Duarte, Oscarito, Grande Otelo, José Lewgoy, Sérgio de Oliveira, Jorge Goulart, Francisco Carlos, Eliana, Adelaide, e mais: Ivon Curi, Quatro Ases e um Coringa, Emilinha Borba, Juliana Yanakiewa e seu Corpo de Baile, Bené Nunes e sua Orquestra, Iara Isabel e Nara Rios. Nele, Francisco Carlos canta o samba de Haroldo Lobo, Não vivo bem, e encerra o filme com o samba de Ari Barroso, Rio de Janeiro.

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Francisco Carlos, Carmen Costa, Marion, Heloisa Helena

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A fórmula do sucesso engendrada pela Atlântida para os seus históricos filmes era simples: uma história de amor açucarada, cercada de vilões, humor e música por todos os lados, reunindo, ao mesmo tempo, um pouco dos vários modelos de produções da poderosa indústria cinematográfica norte-americana, com sede em Hollywood: o romantismo, a comédia e os musicais, que dominavam o mundo.

Os críticos e a intelectualidade, surpreendidos pela nova forma de produzir filmes do cinema nacional, torceram o nariz para o gênero, ao qual deram uma classificação irônica e rebarbativa de chanchada, sinônimo de cafona, brega, sem arte e expressividade, contrariando toda a realidade.

O passar do tempo desmentiu os críticos e, pelo contrário, deu às chanchadas não apenas um carimbo heróico de resistência do cinema nacional ao cinema estrangeiro, notadamente o império cinematográfico norte-americano, como também outorgou um selo de qualidade ao figurino Atlântida de filmes. Tornaram-se filmes cult.

Aviso aos navegantes dobrou a bilheteria de Carnaval no fogo no ano de 1951, cujos meses serviram ainda para consagrar uma das maiores cantoras brasilei-ras, Elizeth Cardoso, até então em luta desesperada por um lugar ao sol na MPB. A composição que abriu as portas para que o público e a crítica abrissem os ouvidos para escutar sua bela voz e interpretação, foi Canção de amor, de Chocolate (Dorival Silva) e Elano de Paula, pela gravadora Todamérica, que também estreava no mercado fonográfico brasileiro.

Francisco Carlos recorda sua amizade com Elizeth com muito carinho, declarando que a relação artística entre os dois começou bem antes dela se tornar estrela da MPB, após a gravação de Canção de amor: − Ela frequentava a Nacional em busca de espaço e sempre que nos víamos trocávamos abraços. Elizeth dizia-se minha fã e, muitos anos depois, em sua casa, no bairro do Flamengo, ao oferecer-me um jantar, deu-me de presente preciosa imagem de um santo barroco, que exponho na minha sala de visitas. O filho dela, Paulo Valdez, compositor e médico, era meu admirador ardoroso. Repetia, espontaneamente, aonde ia, que eu era o maior cantor brasileiro. Vibrei com a ascensão de Elizeth, amada amiga e colega, que reputo, junto com Ângela Maria e Dalva de Oliveira, as três maiores cantoras brasileiras.

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O ano de 1951 consagrou outro expoente da MPB e a própria música instru-mental brasileira, o cavaquinista e compositor Waldir Azevedo, com o baião Delicado, música que bateu recordes de vendagens no Brasil e conquistou o exterior, entrando para o hit parade da Cash Box, por meio de uma gravação da orquestra de Percy Feith, feita em 1952, e apontada como uma das maiores vendagens de todos os tempos nos Estados Unidos.

No mesmo disco 78 rotações, Waldir lançou outro clássico, Pedacinhos do céu, choro, cuja abertura, com o seu cavaquinho, é uma obra prima de criatividade e técnica de execução.

Reportagem Revista Manchete – O pintor Francisco Carlos em sua casa no Cosme Velho

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 n g e l a M a r i aFoi um ano rico de lançamentos de novos grandes talentos. Em 1951, despon-tou para o sucesso a cantora Ângela Maria (Abelim Maria da Cunha). Ângela iniciou carreira na Rádio Mayrink Veiga, em 1950, mas o estouro deu-se no ano seguinte, quando ela gravou seu primeiro disco, com as músicas de Augusto Mesquita e Ari Monteiro, Sou feliz, e Quando alguém vai embora, de Ciro Monteiro e Dias da Cruz. Em 1952, sua gravação do samba Não tenho você, de Paulo Marquês e Ari Monteiro, bateu recordes de venda.

Francisco Carlos não confirma, mas também não desmente, que rolou entre os dois um breve affair, por iniciativa de Ângela, com quem ele realizou excur-são por 26 cidades do interior de São Paulo, e mais o cantor Nuno Roland e a dupla Alvarenga e Ranchinho. Era a Caravana Vigoreli, atraindo multidões.

− Ângela queria me controlar e eu pulei fora. Censurava-me porque eu conversava com o motorista do carro que nos conduzia, dizendo: Não tem que conversar com chaufer, Francisco. Você é o Francisco Carlos. Precisa manter a distância. Insistia para que eu a chamasse de Abelim, seu verdadeiro nome, porque eu era o único que poderia chamá-la assim. Restou somente a amizade de colega entre nós. Conheci a Ângela quando ela ainda era uma desconhe-cida e foi à RCA Victor gravar seu primeiro disco, levada pelo Othon Russo. Fomos apresentados na ocasião.

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N e l s o n G o n ç a lv e sEmbora já estivesse fazendo sucesso desde a década passada, quando surgiu, em 1941, imitando Orlando Silva, o cantor Nelson Gonçalves consa-grou-se na década de 1950, tirando partido de um repertório assinado, preferencialmente, por três compositores: Herivelto Martins, David Nasser e Adelino Moreira.

As relações entre Francisco Carlos e Nelson Gonçalves foram sempre superficiais e, em algumas ocasiões, pouco amistosas, por pouco não chegan-do às vias de fato: − Ele dizia, na minha frente, que me reverenciava, mas não dava para acreditar. Uma vez, no bar do Cardoso, na Rádio Nacional, a cantora Dora Lopes, com um gravador na mão, disse ao Nelson, apontando para mim: Já viu o sucesso do Broto, Nelson? Você que se cuide, que esse garoto vai longe. Nelson sorriu amarelo e respondeu que também era meu fã. Não acreditei.

− Ele tinha a mania de provocar as pessoas, caçoando, mas se deu mal comigo, nos bastidores no Teatro João Caetano, antes de um programa carnavalesco da Rádio Nacional. Eu gostava de usar sapatos com salto reforçado e ele apon--tava para os meus pés, chamando a atenção dos outros colegas, a insinuar que era salto alto e bobagens. Parti pra ele e adverti: Olha, Nelson, não estou gostando da brincadeira. Se continuar, dou-lhe uma porrada. Ele gaguejou, desconversou e não me amolou mais. Eu era abusado. Dava mesmo.

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B a r n a b é , Tu é s M e uNão está plenamente correto o registro do vocábulo barnabé no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira,

o Aurélio. Diz ele: Barnabé, nome imaginário de modesto funcionário público, letra E, ao qual se refere um samba de 1947, de Haroldo Barbosa e Antônio Almeida; funcionário público de categoria modesta.

Não era samba, era uma marchinha, gravada pela cantora Emilinha Borba, para o carnaval de 1948. É a primeira citação de barnabé no repertório da MPB. Nome próprio (inclusive personagem de um dos livros de Monteiro Lobato, o Tio Barnabé), o substantivo barnabé transformou-se em sinônimo de modesto funcionário público − aqueles que atuam nas funções menos remuneradas, tais como, contínuos, auxiliares de portaria, servidores de lanches (café), que correspondiam à letra E e recebendo, portanto, baixos salários.

O oposto do modesto barnabé era o funcionário classificado na letra O, o mais bem pago, que também inspirou os compositores Armando Cavalcanti e Klécius Caldas a lançarem a marchinha carnavalesca Maria Candelária, de 1952, com o cantor Blecaute, e que gozava de todas as regalias: Maria Candelária/ é alta funcionária/ Saltou de pára-quedas/ Caiu na letra Oóóóó/ Começa ao meio-dia/ Coitada da Maria/ Trabalha, trabalha/ trabalha de fazer doóóóó.

Maria Candelária tem uma explicação para a sua origem. Os seus compositores teriam se inspirado numa linha de ônibus que partia da Praça Pio X, onde está a Igreja da Candelária, para os subúrbios do Rio. Nessa linha, a maioria dos passageiros era de funcionárias públicas. Daí, Maria Candelária.

Uma explicação segura para a origem de barnabé como sinônimo de funcionário público, designando a maioria do funcionalismo, não tem fonte segura. O seu nascedouro poderia ter sido nas repartições públicas do Rio de Janeiro, na época capital federal, e a maior cidade com concentração de funcionários públicos do País. Entretanto, o pesquisador e produtor Jairo Severiano é de opinião que a expressão foi criada pelo gênio do produtor-compositor Haroldo Barbosa, para um dos seus programas de humor na Rádio Nacional, e rapida-mente o termo popularizou-se.

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Albino Pinheiro, Adelaide Chiozzo e Francisco Carlos

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Faz sentido, porque a letra da marchinha Barnabé, de sua autoria, na maior parte das rimas dos seus versos, está apoiada na letra E. Barnabé é uma obra prima de objetividade, saborosa crítica social, que dá prazer ser recordada (até pela sua atualidade): Barnabé um funcionário/Quadro extra numerário/ Ganha só o necessário/ pro cigarro e pro café/ Quando acaba o seu dinheiro/ ele apela pro bicheiro/ Joga no grupo carneiro/ dá de tarde o jacaré/ O dinheiro adiantado/ todo mês é descontado/ vive sempre pendurado/ não sai desse tereré.

A referência pegou e, mais tarde, em 1952, inspirou o filme, Barnabé tu és meu, e, no ano seguinte, o samba de Ubirajara Mendes, Barnabé, gravado pela vedete Virgínia Lane.

Produção da Atlântida, distribuição UCB (União Cinematográfica Brasileira), Barnabé, tu és meu, direção de José Carlos Burle, direção musical dos maes-tros Léo Perachi e Lírio Panicalli, reuniu o seguinte elenco: Oscarito, Grande Otelo, Fada Santoro, Cyll Farney, José Lewgoy, Renato Restier, Adelaide Chiozzo, Emilinha Borba, Pagano Sobrinho. Nele, Francisco Carlos, com a participação de Marion, canta o belo samba Ana Maria, de Luís Soberano e Anísio Bichara.

Dick Farney brilhou, em 1952, com o samba-canção de José Maria de Abreu e Jair Amorim, Alguém como tu. Outros sucessos: Baião caçula, de Mário Genári Filho, com o autor; Kalu, de Humberto Teixeira, com Dalva de Oliveira, gravação feita em Londres, com a orquestra de Roberto Inglês; Lata d´água, de Luís Antônio e Jota Júnior, com Marlene, Maria Candelária, Ninguém me ama, de Antônio Maria e Fernando Lobo, que alavancou a carreira da cantora Nora Nei; e Sassaricando, de Luís Antônio, Jota Júnior e Oldemar Magalhães, com a vedete Virgínia Lane, dando origem ao neologismo sassaricar, de sentido malicioso. Entre os lançamentos estrangeiros, At Sundown, Be my Love, Coimbra, Dominó, Jezebel e Índia.

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G a r o t a s e Sa m b aCarnaval Atlântida também é de 1952, para lançamento em 53, com direção de José Carlos Burle, direção musical de Carlos Manga, e basicamente o mesmo elenco de Barnabé tu és meu: Oscarito, Grande Otelo, Cyll Farney, Eliana Macedo, José Lewgoy, Cole Santana, Iracema Vitória, Renato Restier, Maria Antonieta Pons (uma rumbeira), Wilson Grey, Dick Farney, Cuquita Carballo, Carlos Alberto, Nora Ney e Francisco Carlos.

Em 1954, Francisco Carlos não figurou em nenhum dos filmes da Atlântida produzido naquele ano − um ano de grande agitação política, que culminou na morte (suicídio) do presidente Getúlio Vargas, dia 24 de agosto, alvo de dura campanha liderada contra o seu governo pelo antigo partido UDN, comandado pelo deputado Carlos Lacerda. A morte de Vargas comoveu o País, assumindo a presidência o vice-presidente, João Café Filho.

Em 1955, El Broto volta ao cinema em grande estilo, no filme Guerra ao samba, já então sob a direção de Carlos Manga, e com um elenco apresentando novidades: Oscarito, Eliana, Cyll Farney, Renato Restier, Renata Fronzi, Margot Louro, Dircinha Batista, Ítala Ferreira, Emilinha Borba, Ivon Cury, Trio de Ouro, Nora Ney, Jorge Goulart, Vocalistas Tropicais, Bené Nunes e Blecaute.

Guerra ao samba precede o grande sucesso da Atlântida lançado naquele mesmo ano. Francisco Carlos canta, nesse filme, Ladeira do amor, de Graça Batista. O copião dessa fita, lamentavelmente, pereceu no incêndio que destruiu parte do acervo da Atlântida. O filme bateu o recorde de público, permanecendo seis semanas em cartaz no Cinema Rian, no Rio, superando E o vento levou, um dos filmes de maior bilheteria da história do cinema.

O título do filme tinha tudo a ver com o ambiente musical brasileiro da época. Era poderosa a presença da música estrangeira no Brasil, por intermédio de diversos gêneros, à frente o − seguido do bolero, rumba, tango, o início do rock e do mambo. A música francesa brilhava, sobretudo com as canções de Charles Trenet, que veio ao Brasil, em 1953, para uma série de apresentações. Em Porto Alegre, ele deu bolo aos gaúchos, não apenas deixando de cumprir compromissos, mas aprontando escândalos. Foi parar na polícia.

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Guerra ao samba figurou como uma espécie de ato de resistência e de denúncia contra o cerco à música brasileira, em especial o samba, e, pela alta receptividade do filme, deduz-se que o povo aplaudia a iniciativa. A TV Rio era inaugurada.

Paralelamente à ascensão do cinema brasileiro, em particular, a Atlântida, e a continuação do êxito do rádio, sobretudo a Rádio Nacional, outras duas ondas passaram a envolver a preferência do grande público. Uma primeira era o desfile de misses, para a escolha da candidata do Brasil (no Estádio do Maracanazinho) ao Concurso Miss Universo, nos Estados Unidos da América. A segunda, o noticiário da imprensa dedicado às camadas mais altas da sociedade, o chamado colunismo social, com dois expoentes do gênero, no Rio, os cronistas Jacinto de Thormes e Ibrahim Sued.

A introdução e a repercussão do colunismo social na imprensa brasileira foi de tal vulto, que deu margem, de imediato, a uma polêmica generalizada sobre a importância ou não desse gênero de jornalismo, considerado, pelos seus críticos, como uma exaltação ao supérfluo, ao ócio vitorioso, à pompa e circunstância dos mais abastados e privilegiados.

Um samba de Luís Gustavo, cantado por Jorge Veiga, ironizando o céu das altas rodas cariocas, citando personagens e expressões do chamado café soçaite e do colunismo social, foi o maior sucesso musical dos anos 1955, demonstran-do que o assunto era, de fato, um dos preferidos da nação brasileira na época.

O samba, repleto de humor, diz: Doutor de anedota e de champanhota/ estou acontecendo no café soçaite/ Só digo enchantée muito mercy all right/ Troquei a luz do dia pela luz da Light/ Agora estou somente contra a dama de preto/ nos dez mais elegantes, eu estou também/ Adoro Riverside, só pesco em Cabo Frio/ Decididamente eu sou gente bem.

Novas vozes, como Nora Ney, Lúcio Alves, Doris Monteiro, Luís Vieira e Luís Cláudio despontaram no rádio e no disco, ao mesmo tempo em que Abelardo Barbosa, o Chacrinha, começava a firmar-se como comunicador (ainda no rádio). Foi no seu programa, patrocinado, entre outros, pela UFE, fabricante do Sabão

Francisco Carlos com Haroldo Eiras

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Português, o lançamento do primeiro sucesso da cantora Doris Monteiro, o samba-canção de Fernando César, Dó-ré-mi. Ainda de 1955, registremos o sucesso de Duas contas, de Garoto, O menino da porteira, de Luisinho e Teddy Vieira, com Luisinho Pois é, de Ataulfo Alves, com o autor, Saudosa maloca, de Adoniran Barbosa, popularizada pelo conjunto paulista Os Demônios da Garoa, e Tiradentes, samba-enredo de Mano Décio da Viola, Estanislau Silva e Penteado, lançado pela Escola de Samba Império Serrano, em 1949, com alterações na letra.

E mais: Amendoim Torradinho, de Henrique Beltrão, Canção da volta, Ismael Neto e Antônio Maria, Escurinho, de Geraldo Pereira, Farinhada, Zé Dantas, Hoje quem paga sou eu, Herivelto Martins e David Nasser, Império do samba, Zé da Zilda e Zilda do Zé, Lábios de mel, Maria Escandalosa, Ressaca, Zé da Zilda e Zilda do Zé, e Manias, Flávio Cavalcanti e Celso Cavalcanti. Estrangeiros: Cerejeira Rosa, Contigo en la Distancia, Hernando´s Hideaway, The High and the Mighty, Piano Alemão, Sinceridad e Stranger in Paradise.

Juscelino Kubitschek era eleito presidente da República, em meio a prolongada agitação política (tentativa de golpe contra a sua posse, abortado pelo general Teixeira Lott, ministro da Guerra), até assumir o Governo, em março de 1956, precedendo o lançamento, pela Atlântida, de Colégio de Brotos, direção de Carlos Manga, e grande elenco: Oscarito, Cyll Farney, Inalda de Carvalho, Francisco Carlos, Miriam Teresa (filha de Oscarito), Avany Maura, Badaró, Crijó Sobrinho, Margot Louro, Afonso Stuart, Renato Restier, Augusto César, Waleska Schuvis, Celeneh Costa, Aracy Bom Tempo, Nazareth Mendes, Evelyn Rios, Elisabeth Gasper, Margarida Ramos, Dalvirene Carvalho, Antônio Val, Eduardo Lincoln, Arly Roncato, Moacyr Deriquem, Daniel Filho, Fernando Azevedo, Walter Matesko, Francisco Cecil Braga, Paulo Marcos e Álvaro Domingues.

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1 9 5 8Esse milhão é meu é uma produção da Atlântida de 1958, direção de Carlos Manga, em que Francisco Carlos, mais uma vez, contracena com Oscarito, Sônia Mamede, Miriam Teresa, Afonso Stuart, Margot Louro, Zezé Macedo, Ribeiro Fortes, Armando Nascimento, Augusto César e Derek Wheatley.

No ano seguinte, Francisco Carlos encerra sua carreira na Atlântida, com dois filmes: Samba em Brasília e Bom mesmo é carnaval. No primeiro, ele canta um dos seus sucessos, Não quero mais amar, de Johnny Ray, versão de Ramalho Neto, e, no segundo, trabalha, pela primeira vez, com o comediante Zé Trindade, outro grande nome da comicidade do rádio e do cinema brasileiro.

O ano de 1958 é um marco na história da MPB. Ele marca o lançamento da bossa-nova, um movimento musical carioca, que projetou o cantor João Gilberto e dois compositores: o maestro Antônio Carlos Jobim e o poeta Vinicius de Morais. Tanto um como o outro já haviam assinado músicas até o surgimento da bossa nova, mas ainda não eram nomes consagrados.

Tom despontou em 1954, com o samba-canção Teresa da praia, em parceria com Billy Blanco, e, em 1956, colheu um primeiro êxito, com novo samba-canção, Foi à noite, iniciando sua histórica parceria com Newton Mendonça. Sílvia Teles, uma das numerosas gratas novidades da MPB dos anos 1950, foi a intérprete. Silvinha, posteriormente, foi a única profissional a tomar parte no primeiro espetáculo de bossa-nova, realizado por vários amadores no Grupo Universitário Hebraico do Brasil, no bairro do Flamengo.

A cantora Marlene colheu um grande sucesso em 1958, com o samba de Luís Bandeira e Luís Antônio, com O apito no samba; Ângela Maria não ficou atrás de Marlene, lançando Balada triste, de Dalton Vogler e Esdras Silva; Paulo Borges estourou com Cabecinha no ombro; Dolores Duran registrou seu primeiro sucesso como compositora, com o samba-canção Castigo, gravado por Marisa; Adelino Moreira e Nelson Gonçalves, que haviam firmado parceria, lançaram Escultura; Miguel Gustavo voltou a fazer sucesso com a marchinha Fanzoca de rádio, gravada pelo palhaço Carequinha, e, sobretudo, Chega de saudade, Eu chorarei amanha, de Raul Sampaio e Benil Santos, com Orlando

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Silva, Madureira chorou, de Carvalhinho e Júlio Monteiro, com Joel de Almeida, e Os Rouxinóis, de Lamartine Babo, foram, por assim dizer, o canto do cisne da música carnavalesca, após três décadas de esplendor.

A partir daí, conta-se nos dedos as composições que conseguiram, de verdade, empolgar os foliões. A agonia durou até o ano de 1972, de acordo com Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, enquanto a bossa-nova, que despertou interesse no Brasil e no exterior, murchou por volta de 1962, com lendário espetáculo promovido no Carnegie Hall, em Nova York, nos Estados Unidos.

Não se pode recordar a década de 1950 sem mencionar também o apareci-mento da cantora Maysa, fazendo sucesso com a sua primeira gravação, o samba-canção Meu mundo caiu, e exaltar cantores como Jackson do Pandeiro, Tito Madi, Anísio Silva, Agostinho dos Santos, Miltinho, os Trios Irakitan e Nagô, e os músicos Waldir Azevedo, Garoto, Baden Powell e Jacob do Bandolim.

O repertório de 1959 fecha a década com chave de ouro: Desafinado, de Tom e Newton Mendonça, Dindi, Tom e Aloísio de Oliveira, Eu sei que vou te amar, Tom e Vinícius, A felicidade, Tom e Vinícius, Manhã de carnaval, Luis Bonfá e Antônio Maria, A noite do meu bem, de Dolores Duran, com a autora, Recado, de Djalma Ferreira e Luís Antônio, com Miltinho, Lobo Bobo, Carlos Lira e Ronaldo Bôscoli, marcando o início da carreira de outro expoente da bossa nova, a cantora Nara Leão, e Chiclete com banana, de Gordurinha e Almira Castilho, com Jackson do Pandeiro.

Foi, certamente, uma década rica e criativa da música popular brasileira, com centenas de marcantes composições, magníficos cantores, músicos e com-positores; brilho do cinema, do rádio brasileiro e, por que não consignar, do futebol verde e amarelo, campeão do mundo, pela primeira vez, em título conquistado na Suécia, no bendito ano de 1958, o ano que não devia terminar, como propõe o jornalista e escritor Joaquim Ferreira dos Santos. Ele dedicou bem-humorado e documentado livro de reminiscência ao glorioso ano.

Quadro de Francisco Carlos

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R á d i o N a c i o n a l A década de 1950 foi uma espécie de divisor de águas do século 20, ou seja, o mundo foi uma coisa antes dos anos 1950 e, a partir de então, passou por radicais transformações. As mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais foram extraordinárias, atingindo o comportamento geral de homens e mulheres, pela imposição do american way of life.

O Brasil foi um dos países que mais se deixaram influenciar pela nova maneira (americana) de viver, ditada pelo cinema, pela música e pelos produtos fabricados nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que a língua inglesa substituía o francês como idioma estrangeiro mais estudado e falado no país, principalmente pelos jovens.

Paris dava lugar a Nova York aos que viajavam para o exterior, o automóvel tinha que ser preferencialmente o americano (Bel Air, Hudson, Packard, Cadillac, De Soto, Dodge, Studbaker, Pontiac, Plymouth), aviões Douglas, Curtis Comander, Constelation, caneta Parker 51, geladeiras Frigidaire eram nomes na ponta da língua da maioria da população, assim como nomes de artistas, como Clark Gable, Errol Flynn, Rita Hayworth, Ava Gardner, entre tantos astros e estrelas do cinema, ao lado de cantores como Bing Crosby, Frank Sinatra, Nat King Cole, Doris Day e dezenas de outros.

Houve resistências, fortes resistências, porém, à invasão americana. Uma delas foi a lendária Rádio Nacional do Rio de Janeiro, com sede na Praça Mauá, 7, com a sua programação levada a todo o país através de suas ondas curtas e médias, a PRE-8, fundada em 12 de setembro de 1936 e incorporada ao Governo Federal no dia 8 de março de 1940, através do Decreto-Lei nº 2.073, assinado pelo presidente Getúlio Vargas.

Com essa incorporação, a ascensão da emissora foi imediata. Em 1943, a Rádio Nacional passou a receber cartas de todas as partes do mundo: Alaska, Inglaterra, África do Sul, Índia, Nova Zelândia, Suíça, Japão, África Francesa, com pedidos de discos de artistas brasileiros e de cartões-postais com a sede da emissora, graças à inauguração, dois anos antes, das emissoras de ondas curtas, PRL 7, PRL 8 e PRL 9, que transmitiam programas diários de música e de produtos brasileiros, irradiados em quatro idiomas.

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Entrar para o glorioso elenco de locutores, produtores, cantores, radioatores e músicos da RNRJ era o mesmo que prestar um vestibular. Os candidatos eram submetidos a uma audição interna por uma espécie de junta seletiva e só então contratados. Tal determinação perdurou por muitos anos, até meados dos anos 1950 (esta era, certamente, a chave do êxito da querida estação), quando então o apadrinhamento, por parte de políticos, passou a interferir nas contratações e a projetar, anos mais tarde, a sua decadência.

Conta-se um caso precioso: uma cantora procurou o diretor Vítor Costa, indicada por influente político, para ser contratada. A candidata não foi aprovada pela junta de seleção, mas Vítor, como não podia deixar de atender o pedido, espertamente colocou a moça na programação de ondas curtas, preservando a programação de ondas médias, que era o forte da PRE-8.

Em 1956, a RNRJ comemorou seu vigésimo aniversário e a liderança entre as emissoras brasileiras. A rádio estava no auge. O seu faturamento era extraor-dinário e chegava a 100 milhões de cruzeiros. O Departamento Musical tinha sob contrato 16 maestros. A correspondência atingia a média mensal de 110 mil cartas. A emissora empregava em torno de 670 funcionários.

Foi nesse colosso que Francisco Carlos atuou e rapidamente tornou-se o principal ídolo masculino, rivalizando-se com antigos cartazes como Francisco Alves, Orlando Silva, Dick Farney, Sílvio Caldas, Carlos Galhardo, Ciro Monteiro, e constituindo, portanto, uma das principais atrações da outrora poderosa emissora. Chegou ao estrelato por méritos próprios e deu-se ao luxo de abandonar a carreira quando estava no apogeu, a fim de dedicar-se a uma outra faceta do seu talento, a pintura.

Francisco Carlos faz um apanágio da sua carreira de cantor com versos de músicas que ajudou a consagrar. São fragmentos de versos de 33 canções, entre as centenas que gravou para a RCA Victor, assinadas por renomados compositores da MPB.

Lamartine Babo, Alcir Pires Vermelho, Haroldo Eiras, Ciro Vieira da Cunha, Giuseppe Ghiaroni, Haroldo Barbosa, Fernando César, Ari Barroso, Humberto Teixeira, Catulo da Paixão Cearense, Joaquim Calado, Aderaldo Monteiro,

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Vicente Amar, Lupicínio Rodrigues, Capiba, Paulo Legey, Edmundo de Sousa, Roberto Faissal, J. Júnior, Luís Antônio, Armando Cavalcante, Klécius Caldas, Gomes Cardim, Dorival Caymmi, Carlos Guinle, Haroldo Lobo, Luís Soberano, Paquito, Romeu Gentil, José Roy, Luís Gonzaga, Graça Batista, Fernando Lobo, Adelino Moreira, Geraldo Alves, Geraldo Pereira e Arnaldo Passos.

Alma dos violinos (Valsa − Lamartine Babo/Alcir Pires Vermelho − 1954)

Sinto n`alma um violino

um violino que acompanha

o meu triste adeus que vai

por trás de uma montanha

montanha pequenina

diante os olhos meus

meus olhos são imensos

oh pergunte aos lenços

quando dizem adeus

Minha prece (Samba-Canção − Haroldo Eiras/ Cyro vieira da Cunha − 1953)

Eu pedi a Deus numa prece

pedi a Deus que me desse

uma alegria qualquer

e Deus que é todo bondade

me trouxe a felicidade

num coração de mulher

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Eu tive que te beijar (Canção − Brondsky Robin/ Ghiaroni − 1955)

Assim que eu te avistei

desejei beijar-te a boca

Por mais que fosse louca

minha ideia, eu arrisquei

Aventureira (Tango − G.Villoldo/ E.Discépolo/ M. catan versão Haroldo Barbosa − 1953)

Já não te vejo deslumbrante como outrora

Já não te sinto luz do meu encantamento

com a cerimônia que te chamo de senhora

tu podes ver que já mudou meu sentimento

Porque brilham os teus Olhos (Bolero − Fernando César − 1957)

Passo o tempo a meditar

Ansioso por saber

Quantos peixes tem o mar

Se a luz do teu olhar

é sinal de bem querer

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Rio de Janeiro (Samba − Ary Barroso − 1950)

Oh ! Nossas flores são tão raras

Nossas noites são tão claras

isso é o meu Brasil

Ô Esses montes estas ilhas e matas

Estas fontes, estas lindas cascatas

Isso é o meu Brasil! Ô Ô Ô

Confissão (Tango − E. S. Discípulo/ L. C. Amadori/ Versão Lourival Faissal − 1954)

Foi consciente

que perdi

o teu amor

Se assim fiz

foi para chorar-te

Tu me odeias

e infeliz

eu me escondo

para salvar-te

Girassol (Baião – Humberto Teixeira – 1951)

Girassol Ai Ai que acompanha a luz do dia

Eu também Ai Ai sigo os olhos de Maria

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Flor amorosa (Maxixe − Catulo da Paixão Cearense/ Antônio Callado − 1958)

Flor amorosa

compassiva, sensitiva

oh! vem

porque uma rosa

orgulhosa

Presunçosa

Tão Vaidosa

Funcionária (Samba – Aderaldo Monteiro/Vicente Amar – 1959)

Eu sempre a vejo passar

Vaidosa sem me ligar

indo pra repartição

Vai andando bem faceira

querendo ser a primeira

a marcar o seu cartão

Eu não sou de reclamar (Canção − Lupicínio Rodrigues − 1952)

Eu não sou de reclamar

Mas o que estou sofrendo

é demais

Nos lugares aonde eu vou

quem conhece quem eu sou

Diz que eu sou o mais

covarde dos mortais

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Conto das lágrimas (Samba-Canção − Lupícinio Rodrigues − 1959)

Se é que Deus fez o homem

para ser rei a vida inteira

Mandou criar o seu lar

que é para ter o seu reinado

Então por que nos deu

uma mulher por companheira

Por que não pôs um ente mais

sincero ao nosso lado

Nos cabelos de Rosinha (Frevo − Capiba − 1952)

Rosa, Rosa, Rosa

por que você murchou?

Nos cabelos de Rosinha

rosa nunca amarelou

quem visse as duas juntas

de manhãzinha

era difícil dizer quem

era a Rosa e a Rosinha

Adorável como um sonho (Fox − Canção − Haroldo Eiras / Cyro Vieira da Cunha − 1951)

Adorável como um sonho

foi a noite de luar

Em que teus lábios vermelhos

deste a mim para beijar

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Viver sem você (Samba-Canção − Paulo Menezes/ Milton Legey − 1954)

Eu vivo feliz

porque sei

que tenho você

você totalmente me fez

o passado esquecer

Última taça (Tango − Vicente Amar/ J. Vieira − 1955)

Companheiros talvez

até achem graça

Mas esta é a última taça

que com vocês vou tomar

Ao lado da mulher querida

Vou ter uma outra vida

pois vou agora casar

Olhos de gato (Samba-Canção − Carlos Brandão/ Edmundo de Souza − 1951)

Teus olhos verdes de gato

oh morena brasileira

De amores são desacato

linda morena faceira

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Você faz que não sabe (Frevo − Capiba − 1958)

Eu tive na vida muitos amores

que me fizeram sofrer

Porém de todos eu esqueci

Só um não pude esquecer

Sabe quem é esse amor?

É você

Eu não devia dizer

você faz que não sabe

para me fazer sofrer

Vá embora (Samba Canção − Roberto Faissal − 1952)

Vai embora

Deixa que eu

Fique em paz

Vá embora

Não me atormente mais

Vá embora

Não quero vê-la mais

Vá embora

Sem se voltar pra trás

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Tudo me lembra você (Luiz Antônio/ J.Junior/ Paulo Gesta − 1950)

Nosso rancho é você

nosso barco é você

toda marca de pé mindinho

na areia me lembra você

Anjo da noite (Samba-Canção − Klésius Caldas/ Armando Cavalcanti − 1950)

Anjo da noite

Linda boneca sem alma

sempre fria sempre calma

na agitação dos cabarés

Seremos felizes (Valsa − Gomes Cardim/Lêla/ Ayrton Amorin− 1951)

A vida é linda assim

seremos felizes depois

você viverá para mim

e o mundo será de nós dois

Ladeira do amor (Corrido − Graça Batista/ Amado Regis − 1954)

Já vou, meu bem, já vou

pois a saudade me apertou

prepare o aluá que o seu

amor já vai chegar

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Você não sabe amar (Canção − Dorival Caymmi/ Carlos Guinle/ Hugo Lima − 1950)

Você não sabe amar

meu bem

Não sabe o que é o amor

Nunca sofreu nunca viveu

querer saber mais que eu

Não vivo bem (Samba Carnavalesco − Aroldo Lobo − 1950)

Eu não vivo bem

sem teu amor

O meu viver sem você

não é viver

É um rosário de dor

Quem dá aos pobres (Marcha Carnavalesca − Klésius Caldas/ Armando Cavalcante − 1952)

Quem dá aos pobres

empresta a Deus

Me dá uma esmolinha

dos carinhos teus

uma esmolinha

pelo amor de Deus

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Me deixa em paz (Samba − Humberto Teixeira/ Luiz Gonzaga − 1950)

Mulher me deixa em paz

o que você fez comigo

francamente não se faz

Meu brotinho (Marcha Carnavalesca − Humberto Teixeira/ Luiz Gonzaga − 1950)

Ai, ai brotinho

Não cresça meu brotinho

e nem murche como a flor

Ai, ai brotinho

eu sou um galho velho

mas quero o teu amor

Ana Maria (Samba − Luiz Soberano/ Anísio Bichara − 1951)

Eu encontrei Ana Maria

com pesar chorei

ao ver tanta agonia

O que Deus me deu (Marcha Carnavalesca − Paquito/ Romeu Gentil/ Airton Amorin − 1956)

O que Deus me deu

ninguém pode tirar

ta com mágoa bebe água

vê-se você se ajeita

todo corcunda sabe como se deita

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Manolo (Marcha Carnavalesca − José Roy/ Orlando Monello/ Luiz Costa − 1952)

Encontrei Manolo

chorando de dor

só porque Chiquita Bonita

não quer o seu amor

Ela Hoje é Diferente (Canção − Adelino Moreira/ Getúlio Alves − 1957)

Era sublime ouvir

bem de manhãzinha

lá na torre da igrejinha

o bater do carrilhão

ela passava com a fita

e o seu rosário

direção ao santuário

pra fazer sua oração

eu a seguia enquanto o sino tocava

e feliz imaginava vê-la comigo no altar

mas o destino muda tudo num repente

ela hoje é diferente da santa que vi rezar

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Promessa de um caboclo (Samba − Geraldo Pereira/ Arnaldo Passos − 1952)

Oh meu Deus que crueldade

desta gente da cidade

a cabocla me levar

hoje eu vivo apaixonado

no meu rancho abandonado

mas se um dia ela voltar

à capela irei depressa

para pagar uma promessa

e rezar uma oração

e rezar uma oração

vou cortar muita madeira

e acender uma fogueira

em louvor a São João.

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F r a n c i s c o C a r l o s E t e r n a m e n t eEste depoimento que o cantor Francisco Carlos forneceu-me (a seu pedido, para um livro que ele próprio já acertara para publicação com uma editora carioca) ficou pronto cerca de dez dias antes de seu falecimento, ocorrido no dia 19 de agosto de 2003, às 16h30, no Hospital do Inca, no Rio de Janeiro, onde fora internado, às pressas, dias antes, acometido de forte pneumonia, decorrente de um linfoma.

Carlos confiava tanto no êxito do tratamento a que vinha se submetendo, nos últimos seis anos, contra a doença que até fez planos para divulgar o sonhado livro recorrendo a amigos no rádio, nos jornais e na televisão. Chegou mesmo a idealizar um lançamento festivo por meio de um show dele próprio e canja de antigos colegas de rádio de sua época, em meio a uma exposição de novos quadros.

Foi surpreendido, porém, pelo agravamento da doença e a morte quase imediata. Francisco Carlos nesta fase de tratamento teve a assistência e a grande dedicação de seu médico e querido amigo, o Doutor Luiz Eduardo Prata. Motivo pelo qual a família do mesmo ressalta seu nome em agradeci-mento. Portanto, este é um livro póstumo, em homenagem à sua gloriosa memória construída em muitos anos de apurado trabalho de artista altamente qualificado, como demonstra a obra que legou à MPB, ao cinema e às artes plásticas nacionais.

O velório de Francisco Carlos teve lugar no Cemitério do Caju, Zona Norte do Rio de Janeiro, com a presença de velhos colegas do rádio e fãs. A seu pedido, o corpo foi cremado no dia seguinte.

Fui amigo (quase vizinho, ele morando no Cosme Velho e eu nas Laranjeiras) de Francisco Carlos durante muitos anos. Essa amizade fluiu por intermédio de encontros pessoais e de incontáveis telefonemas para falarmos de coisas do rádio, da música popular brasileira ou então a simples troca de informações.

Francisco Carlos Eternamente, capa do último CD lançado

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Tratava-se de pessoa extremamente cordial e merecidamente orgulhoso de sua carreira no rádio, no disco, no cinema e na pintura, outra faceta do seu talento. São centenas de gravações de discos, dezenas de históricas produções da antiga Atlântida Cinematográfica, ao lado de astros consagrados como Cyll Farney, Eliana, Oscarito e Grande Otelo, e, mais ainda, na condição de autor de inúmeras telas que genuinamente pintou.

A lamentar que Francisco Carlos tenha abandonado a carreira de cantor para dedicar-se, quase que exclusivamente, à pintura, que era, no fundo, a sua maior paixão, privando a música popular brasileira de um grande intérprete (salvo aparições em esporádicos shows pelo Brasil, ou realizando gravações de uns poucos LPs, mas tudo isso agindo não de forma sistemática, como gostariam seus milhares de fãs).

Resta agora o agradável consolo, aos fãs e amigos (como eu) de Francisco Carlos não resignados com o seu pranteado desaparecimento, enquadrar sua memória nos cerebrais versos esculpidos por outro grande artista de sua época, o imortal compositor Ataulfo Alves (Na cadência do samba), que asseguram: morre o homem fica a fama.

O autor

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F r a n c i s c o C a r l o s J áMais do que De Gaulle, quem tem razão é Jorge Amado: O Brasil é um país surrealista.

Pois, do contrário, como se poderia explicar que ele se dá ao luxo de prescindir de um dos maiores cantores brasileiros de todos os tempos, ou seja, de Francisco Carlos?

Será que, com a inundação de maus cantores − muitos valendo-se do álibi de que são os compositores das músicas que tão mal apresentam −, submergiu definitivamente nosso bom-gosto? Teríamos chegado ao ponto de, entre um cantor que canta e outro que grasna, passarmos a preferir o último?

Avaliem bem o estado a que chegamos: para nos fazermos entender, temos de nos referir a cantor que canta, o que − e isso não faz tanto tempo assim − era uma redundância, enquanto hoje (época em que os cantores não can-tam, mas urram, cacarejam, uivam) é uma raridade a ser enfatizada: quase um pterodáctilo ou arquioptérix.

Francisco Carlos pertence, assim, a uma categoria de cantores em vias de extinção: os de belíssima voz. São de nossos dias alguns deles, a começar pelo chamados quatro grandes: Francisco Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Sílvio Caldas. À mesma fase de ouro em que atuaram, pertence outra voz privilegiada, a de João Petra de Barros, que ganhou, aliás, um slogan condigno: A voz de 18 quilátes. E a de Paulo Tapajós − modinheiro esplêndido.

Mas a lista desses cantores que têm voz é, por definição, restrita, pois se trata de um dom raro, que Deus concede a alguns escolhidos ou − e isso vai satisfazer os ateus... − um capricho da Natureza. A esse clube, bem mais fechado que o Country, pertencem Nélson Gonçalves, Cauby Peixoto, João Dias, Francisco Petrônio, Gilberto Milfont, Carlos José, Francisco Carlos e pouquíssimos mais. São vozes que deveriam, no mínimo, ser tombadas pelo Patrimônio Histórico.

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E é aqui que entra nosso surrealismo, tão bem percebido por Jorge Amado. Temos à mão um cantor para concorrer – a meu ver com vantagem – com alguns dos mais famosos do mundo, a começar por Julio Iglésias – e não o utilizamos. Vamos ser assim orgulhosos (ou avaros ) no inferno – passando fome, mas deixando as moedas azinhavrar no fundo do colchão...

Descobrir o desconhecido é dose, mas descobrir o conhecido é tarefa pra lá de Hércules. Quem se habilita a descobrir Francisco Carlos, hoje, um artista que ainda jovem era considerado um fenômeno vocal, lotando auditórios, sendo rasgado pelas fãs, elegendo-se o maior cantor de 1953. Era um sucesso que parecia não ter fim: solicitação para lançar músicas de carnaval (a marcha Meu Brotinho, de Luís Gonzaga e Humberto Teixeira, sacudiu o país) para participar de filme (Aviso aos Navegantes, Não é Nada Disso, Carnaval Atlântida, Colégio de Brotos), para gravar discos na RCA Victor, quando foi acompanhado por alguns dos maiores músicos brasileiros como Jacob do Bandolim (Ela Hoje é Diferente), Valdir Azevedo (Não Pode Ser Adeus) etc.

Sua correspondência na Rádio Nacional − a maior já recebida por um artista dessa emissora − certamente daria a volta à Terra. Ídolo absoluto na juventude, era o Cantor Namorado do Brasil, elegendo-se, em 1958, O Rei do Rádio.

Quem se candidata, assim, a descobrir o descoberto, o óbvio mais que ululante, de que Francisco Carlos é um dos maiores artistas deste Patropi? É mina que tem um mapa: basta escutar suas gravações. E depois, acordar do letargo, reconhecer que o surrealismo tem hora, aplaudindo de pé este cantor mara-vilhoso que é Francisco Carlos.

Ary Vasconcelos.

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N.A. − Este precioso texto foi assinado pelo jornalista Ary Vasconcelos, um dos mais conceituados pesquisadores da música brasileira, em outubro de 1985, na contracapa de um LP lançado naquele ano pela gravadora RCA Victor, con-tendo antigos sucessos de Francisco Carlos na década de 1950, época áurea do cantor, tais como, Alma dos Violinos, de Lamartine Babo e Alcir Pires Vermelho; Funcionária, Aderaldo Monteiro e Vicente Amar; Ela Hoje é Diferente, Adelino Moreira e Getúlio Alves; Flor Amorosa, Catulo da Paixão Cearense e Callado; Promessa de um Caboclo, Geraldo Pereira e Arnaldo Passos; O Sol Nasceu pra Todos, Lamartine Babo; Meu Romance, Aldacir Louro e Laércio Alves; Não Pode Ser Adeus, Humberto Teixeira e Waldir Azevedo; Alucinado, Alberto Roy e Domingos Paulo; Não quero mais amar, Johnny Ray, versão de Ramalho Neto; Mestiça, Paulo Serpa; Por Que Brilham os Teus Olhos?, Fernando César; Aventureira (El Choclo), A. G. Villoldo, E. S. Discepolo, M. Catan, versão de Haroldo Barbosa; Adorável Como Um Sonho, Haroldo Eiras e Ciro Vieira da Cunha.

Anos mais tarde, em 1991, Francisco Carlos voltou a gravar, o que não fazia desde o final dos anos 1950, quando abandonou a carreira de cantor para se dedicar à pintura. E lançou um elepê, com obras de Lamartine Babo, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Braguinha, Alberto Ribeiro e Luiz Peixoto, com arranjos e regência do maestro Orlando Silveira, tendo sido lançado em concorrido show no auditório do Arquivo da Cidade.

Na contracapa do disco (Francisco Carlos, clássicos da música popular brasileira, tais como, Aquarela do Brasil, Serra da Boa Esperança, João Valentão, na Baixa do Sapateiro, no Rancho Fundo e Brasil Moreno), as seguintes e honrosas opiniões.

Consuelo Velásquez: Seria para mim uma satisfação ver a minha música Besame mucho em sua voz.

Paulo Tapajós: Cantar, qualquer um pode cantar. Aqui nesta noite no Arquivo da Cidade, coloco Francisco Carlos no mesmo pedestal de Orlando Silva.

Mariuza Barroso (filha de Ary Barroso): Voz e coração fizeram de Francisco Carlos esse cantor magistral. Meu pai, em suas interpretações tem uma conotação especial. − É maravilhoso!

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Silvinho: Ao mito Francisco Carlos, meu ídolo. Bato palmas para ele.

Grande Otelo: Perseverança – Arte – e voz fazem de Francisco Carlos um representante eterno da juventude.

Afonso Arinos de Melo Franco: Francisco Carlos, de cuja voz sinto saudade.

Haroldo de Andrade: A fase de ouro da música popular brasileira... com belas vozes, ela hoje... já não existe mais, lamentavelmente, está muito difícil encontrar num cantor de voz tão bonita quanto a de Francisco Carlos.

José Lima Ribeiro: Sou seu admirador − conhecendo todos os seus discos. Na pintura tenho um quadro que não vendo por preço nenhum.

Carlos Drummond de Andrade: A sua atração artística influiu na popularidade da expressão brotinho. O abraço do velho admirador.

Paulo Gracindo: Acompanhei de perto o seu sucesso. É um cantor; de ontem, de hoje e de sempre. Confiem nessa recente gravação. É gratificante ouvi-lo cantar.

Milton Varela: É, ao meu ver, o maior intérprete no momento da MPB. Ouçam com atenção esse LP e certifiquem-se.

José Maria Manzo: Eu dei a maior força para a feitura deste LP. Quem vai ganhar são seus admiradores.

Contracapa de LP

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A g r a d e c i m e n t o sNa conclusão deste trabalho não se poderia esquecer da figura de uma grande amiga de Francisco Carlos, fã e ex-secretária, desde os anos 1950 até seus últimos momentos. Trata-se de Beni Dias, grande amiga da família que se dedicou com fidelidade em prol de sua carreira.

Agradecimento a todos que colaboraram:

Adelaide Chiozzo – Cantora Agência Literária Riff LtdaAngela da Silva Peixoto – Museu do RádioAntonio Maria Filho – Jornalista Beni Dias Billi Blanco – Compositor Carlos Manga – Cineasta Célio Berrondo – Rádio Rio de JaneiroCláudio Nogueira – Jornal O Globo (2º caderno Esporte)Gerdal José de Paula – Publicitário – Revisor GramaticalIracema Maria Nascimento – Funjor João Máximo – JornalistaJosé Maria Ribeiro – Jornalista Luiz Lula Dias – ProdutorMaria Eugênia Acher de Castilho – Museu do Rádio Marilene Alves de Moura Rodrigues – Viúva de Francisco Carlos Norah Rodrigues – Filha de Francisco Carlos Osmar Frazão – Rádio Nacional Patricia Rodrigues – Jornalista e Escritora Pery Ribeiro – CantorRuth Vinhas Vasconcelos – Viúva de Ary Vasconcelos Tainá de Campos Garcia Pacheco – Museu do Rádio

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C r é d i t o d a s f o t o g r a f i a s

A Editora agradece quaisquer informações sobre os detentores dos direitos das imagens não creditadas neste livro, bem como de pessoas não identificadas nas fotografias, apesar dos esforços envidados para obtê-las.

Acervo pessoal de Francisco Carlos

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Coleção Aplauso Série Música

Coordenador geralRubens Ewald Filho

Projeto gráficoVia Impressa Design Gráfico

Direção de arteClayton Policarpo Paulo Otavio

Editoração Douglas Germano Emerson Brito

Tratamento de imagensJosé Carlos da Silva

Revisão José Vieira de Aquino

CTP, impressão e acabamentoImprensa Oficial do Estado de São Paulo

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Vieira, Jonas

Francisco Carlos : o maior ídolo dos anos dourados / Jonas Vieira – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012.

152p. : il. – (Coleção aplauso. Série música / Coordenador geral Rubens Ewald Filho)

ISBN: 978-85-401-0022-0

1. Cantores – Brasil - Biografia 2. Cantores populares brasileiros 3. Francisco Carlos, 1928-2003 I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série.

CDD 780.092

Índice para catálogo sistemático:

1. Cantores : Brasil : Biografia 780.092

Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia do organizador e dos editores

Direitos reservados e protegidos(lei no 9.610, de 19.02.1998)

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei no 10.994, de 14.12.2004)

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009

Impresso no Brasil 2012

Imprensa Oficial do Estado de Sao Paulo Rua da Mooca, 1.921 Mooca 03103-902 Sao Paulo SP Brasil sac 0800 01234 01 [email protected] [email protected] www.imprensaoficial.com.br

© Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012

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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

GovernadorGeraldo Alckmin

Secretário Chefe da Casa CivilSidney Beraldo

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Diretor-presidenteMarcos Antonio Monteiro

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Formato 21 x 26cmTipologia Chalet Comprime e UniversPapel capa triplex 250g/m2

Papel miolo offset 120g/m2

Número de páginas 152

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Jonas Vieira

Jonas Vieira, jornalista e radialista, biógrafo, brasileiro, natural de Fortaleza, Ceará, nascido no dia 25 de dezembro de 1934, iniciou sua carreira como jornalista na condição de revisor dos jornais Gazeta de Notícias e O Povo, ambos da capital cearense, com a idade de 16 anos.

Fez o curso secundário no Liceu do Ceará, ao mesmo tempo em que comple-tava outro curso, de inglês, no Instituto Brasil Estados Unidos (IBEU), onde passou a lecionar, a partir de 1955, aos 21 anos de idade. Ainda em 1955, empregou-se na Ceará Rádio Clube, como assistente de produção.

Deixou o IBEU em 1958, filiando-se, integralmente, ao jornalismo, na condição de repórter do jornal Correio do Ceará, pertencente à cadeia de emissoras de rádio e jornais, Diários e Rádios Associados. Colunista da seção de rádio do jornal Unitário, sob pseudônimo de J. Júnior.

Viaja para o Rio, em 1959, dando prosseguimento à carreira jornalística. Primeiramente, como tradutor da antiga Editora Cruzeiro, que publicava inúme-ras revistas. Repórter dos jornais O Dia e A Notícia, durante o ano de 1959, e, no ano seguinte, do Diário da Noite e O Jornal. Ainda em 1960, foi contratado pela agência de notícias norte-americana Associated Press, como repórter.

Em 1962, foi admitido como repórter do jornal Última Hora, onde permaneceu até o ano de 1969, retornando, então, aos jornais O Dia e A Notícia. Na época, anos setenta, criou e editou os house organs do Club de Regatas Vasco da Gama, da Associação dos Profissionais da Caixa Econômica do Rio de Janeiro (APCE) e da cadeia de supermercados, Casas Sendas. Redator da agência de notícias Reuters.

Em 1978 e 1979, trabalhou como redator e subeditor da agência de notícias Jornal do Brasil, saindo em 1980 para ingressar na agência de notícias O Globo, também como redator e subeditor. No mesmo período, atuou como produtor e apresentador de programas na Rádio Roquette Pinto AM, do Rio de Janeiro, e, posteriormente, transferiu-se para a Rádio Nacional do RJ, a fim de exercer idênticas funções, além de redator de jornais falados da emissora.

Passagem, como redator, pelo Jornal dos Sports e pauteiro do jornal O Povo do Rio de Janeiro. No começo dos anos 90, foi contratado como pauteiro e redator das rádios CBN e O Globo, e, em 1996, como redator e editor de jornais falados da Rádio Tupi.

Autor de três biografias: Orlando Silva, o cantor das multidões, premiada pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), recentemente lançada em terceira edição; Herivelto Martins, uma escola de samba, em parceria com o jornalista Natalício Norberto; e César de Alencar, a voz que abalou o rádio. Por publicar, Francisco Carlos, ídolo do rádio e do cinema nos anos dourados, e Gonzagão e Gonzaguinha, duas vidas.

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