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53 Revista Formação@Docente Belo Horizonte vol. 6, n o 2, jul/dez 2014. Musicalização para Surdos: contextualização e possibilidades de abordagem Ivo Vieira Gomes 1 Laysa Maria Akeho 2 Resumo Este artigo busca oferecer ao educador musical uma breve visão sobre a realidade da musicalização de surdos nos dias atuais, seus desafios e especificidades. Sob a ótica da educação inclusiva e das consequências da Lei 11.769, de 18 de Agosto de 2008, que traz a música de volta à grade curricular das escolas, é feito um breve relato sobre o processo de estabelecimento da educação regular para os surdos. Em seguida é apresentado o valor da música para o desenvolvimento do ser humano. A terceira parte do artigo aborda a relação entre o surdo e o processo de educação musical, apresentando alternativas para a compreensão musical, que sejam significativas a ele. Por fim, faz-se uma reflexão sobre a realidade educacional inclusiva e a importância de estabelecermos novas abordagens e metodologias para a educação musical. Palavras-chave: Surdo. Educação musical. Musicalization for the Deaf: background and approach possibilities Abstract This article attempts to provide the music educator a brief insight into the reality of deaf’s music education in our present days, their challenges and specificities. Under the perspective of inclusive education and the consequences of the Law 11769 of August 18, 2008, bringing the music back to the curriculum of schools, is made a brief report on the process of establishment of regular education for the deaf. Then it’s showed the value of music for the human development. The third part of the article addresses the relationship between the deaf and the process of musical education, presenting alternatives to musical understanding, which are significant to him. Finally, there are a reflection over the reality of inclusive education and the importance of establishing new methodologies and approaches to music education. Keywords: Deaf. Music education. Introdução O meu interesse pela educação musical de pessoas surdas surgiu logo ao início do curso de Licenciatura em Música, no início de 2009. Já havia mantido contato com alguns 1 Licenciado em Música pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (CEUNIH). E-mail: [email protected] 2 Mestre Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local pelo Centro Universitário UNA (UNA), especialista em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMINAS) e graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). É professora do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (CEUNIH). E-mail: [email protected]

Musicalização para Surdos: contextualização e

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Revista Formação@Docente – Belo Horizonte – vol. 6, no 2, jul/dez 2014.

Musicalização para Surdos: contextualização e possibilidades de abordagem

Ivo Vieira Gomes1

Laysa Maria Akeho2

Resumo

Este artigo busca oferecer ao educador musical uma breve visão sobre a realidade da musicalização de surdos nos dias atuais, seus desafios e especificidades. Sob a ótica da educação inclusiva e das consequências da Lei 11.769, de 18 de Agosto de 2008, que traz a música de volta à grade curricular das escolas, é feito um breve relato sobre o processo de estabelecimento da educação regular para os surdos. Em seguida é apresentado o valor da música para o desenvolvimento do ser humano. A terceira parte do artigo aborda a relação entre o surdo e o processo de educação musical, apresentando alternativas para a compreensão musical, que sejam significativas a ele. Por fim, faz-se uma reflexão sobre a realidade educacional inclusiva e a importância de estabelecermos novas abordagens e metodologias para a educação musical.

Palavras-chave: Surdo. Educação musical.

Musicalization for the Deaf: background and approach possibilities

Abstract

This article attempts to provide the music educator a brief insight into the reality of deaf’s music education in our present days, their challenges and specificities. Under the perspective of inclusive education and the consequences of the Law 11769 of August 18, 2008, bringing the music back to the curriculum of schools, is made a brief report on the process of establishment of regular education for the deaf. Then it’s showed the value of music for the human development. The third part of the article addresses the relationship between the deaf and the process of musical education, presenting alternatives to musical understanding, which are significant to him. Finally, there are a reflection over the reality of inclusive education and the importance of establishing new methodologies and approaches to music education.

Keywords: Deaf. Music education. Introdução

O meu interesse pela educação musical de pessoas surdas surgiu logo ao início do

curso de Licenciatura em Música, no início de 2009. Já havia mantido contato com alguns

1 Licenciado em Música pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (CEUNIH). E-mail: [email protected] 2 Mestre Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local pelo Centro Universitário UNA (UNA), especialista em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMINAS) e graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). É professora do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (CEUNIH). E-mail: [email protected]

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surdos, tendo aprendido o básico para manter uma comunicação simples e superficial

(alfabeto e alguns sinais mais utilizados no dia a dia), mas foi ao estudar a Língua Brasileira

de Sinais (LIBRAS), no primeiro período do curso, que me deparei com a questão: “seria

possível para uma pessoa com comprometimento auditivo, experimentar a musicalização?”. E

antes mesmo de aprender os conceitos e valores do universo musical, seria possível que eles

usufruíssem de qualquer experiência, passiva ou ativa, com a música? Essas questões, aliadas

ao grande desafio que esta proposta define, motivaram esta pesquisa.

A música está ao nosso redor, nos mais variados ambientes. Mesmo quando estamos

despercebidos ou focados em outro assunto, ela se manifesta através de um som ambiente, um

fundo musical, um comercial, ou até mesmo por meio do contato com elementos físicos do

som presentes em eventos não propriamente musicais: as vibrações sentidas no corpo ao

contato direto com uma fonte sonora, o pulsar do nosso coração e sistema circulatório.

“Somos seres musicais por natureza” (GRANJA, 2006) e precisamos nos expressar, nos

manifestar musicalmente. Gardner (1995) destaca em seu estudo sobre inteligências múltiplas

a existência de uma “inteligência musical”, competência do ser humano capaz de entender e

produzir alguma manifestação musical. Se pensarmos que essa habilidade é inerente a cada

indivíduo, que nascemos com ela, para proporcionarmos uma educação eficiente e abrangente

é preciso proporcionar o contato e o aprendizado também dentro das competências musicais

de nossos alunos.

Ainda pensando no que compete à educação, temos vivido e experimentado a chamada

Educação Inclusiva. Este tipo de educação busca oferecer às pessoas com deficiência a

oportunidade de acesso à educação, mas uma que seja o mais próxima à que têm acesso os

demais indivíduos, uma vez que a verdadeira educação é aquela que é para todos, de acordo

com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Declaração Mundial sobre

Educação para Todos (1990). Para tanto, metodologias, recursos pedagógicos, pesquisas e

produções científicas têm sido desenvolvidos e adaptados para melhor atender esse público

específico.

A educação musical se insere neste contexto, à medida que busca desenvolver a

potencialidade musical não só de um grupo específico de indivíduos, mas explorar esse

potencial em todo e qualquer indivíduo. Por muito tempo, entendeu-se que a realização

musical era privilégio de poucos, dotados de talento, e que os demais podiam apenas ouvi-la,

ainda que sem entendê-la. As pessoas com deficiência eram excluídas de atividades comuns,

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por serem consideradas ineducáveis (HAGUIARA-CERVELLINE, 2003), e em relação à

música, os surdos, especificamente, representavam, e ainda hoje representam para muitos,

uma parcela da população que não pode vivenciá-la. Sua exclusão na educação se devia à

concepção de que somente é “língua” a que possui uma representação e/ou realização

fonética, com sons articulados. Como a maioria dos surdos não consegue conversar falando,

não sendo, portanto oralizados, e não fazem leitura labial, a comunicação através da

vocalização fica comprometida (HAGUIARA-CERVELLINE, 2003). Durante séculos, isto

fez com que essas pessoas ficassem à margem da sociedade.

Até o início do século XVI, os surdos tiveram seus direitos usurpados, sob o pretexto

de não serem “humanos” (HAGUIARA-CERVELLINE, 2003). Durante esse período, o que

se entendia é que somente as pessoas que possuíam os cinco sentidos preservados eram seres

humanos, para quem valia os direitos e privilégios da sociedade. Somente nos meados do

século XVI, a educação para os surdos dá seus primeiros passos. Nomes como Girolamo

Cardano (1501-1576) Pedro Ponce de León (1510-1584), Juan Pablo Bonet (1579-1626) e

Charles-Michel de L’Epée foram os grandes responsáveis pela estruturação e consolidação da

educação para os surdos e pela instituição da Língua de Sinais como a língua destes

indivíduos (HAGUIARA-CERVELLINE, 2003).

Assim, com o passar dos anos, discorrendo mais especificamente na sociedade

moderna, a partir de posicionamentos e reposicionamentos de educadores, lideres e da

comunidade surda, travou-se um longo processo de luta pela garantia dos direitos dos surdos.

E esse processo, que perdura até os dias de hoje, foi responsável por inserir a pessoa surda na

sociedade ouvinte, respeitando a sua diferença, tirando o foco de sua deficiência

(HAGUIARA-CERVELLINE, 2003). Ele passa a ser, perante a lei, um cidadão comum,

reconhecido em sua diferença sem negar sua deficiência, com todas as suas possibilidades e

aptidões, incluindo o direito à educação e à língua própria (HAGUIARA-CERVELLINE,

2003).

No contexto de inserção ou da participação do surdo na sociedade e do respeito aos

seus direitos como cidadão, pode-se também repensar o entendimento geral sobre a música.

Uma vez que estas pessoas têm direito a usufruir dos mesmos recursos e privilégios que os

ouvintes, como eles podem experimentar a música e serem musicalizados, a partir de um

processo que legitime a sua diferença? Será que o que entendemos sobre “música” pode ter

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algum sentido que não aquele estritamente ligado à audição e que faça sentido ao indivíduo

surdo?

O objetivo desta pesquisa não é esgotar as possibilidades ou definir uma metodologia

para a educação musical de surdos, mas proporcionar uma reflexão sobre as formas como

pensamos e entendemos a música, o surdo e a educação. O outro objetivo deste trabalho é

ressaltar as especificidades da educação musical pensada para esses indivíduos, buscando com

isso proporcionar a ambos, ouvintes e surdos, novas possibilidades de viver e fazer música. O

propósito não é buscar uma forma de fazer o surdo “ouvir” a música ou vivenciá-la como se

fosse ouvinte, pois a visão adotada neste trabalho não nega a surdez, ignorando a falta do

sentido auditivo, ou tentando um meio de corrigi-la, tratá-la. O que se deseja é proporcionar

aos alunos novas abordagens e formas de vivenciar e experimentar a música.

Para tanto, foram utilizadas nessa pesquisa as contribuições de educadores musicais

como GRANJA (2006), que lida com os conhecimentos musicais e o aprendizado através da

prática, bem como educadores como Silva (2008), Sá (2008) e Haguiara-Cervellini (2003),

que possuem experiência na educação musical de surdos de todas as idades.

Cabe aqui ainda uma explicação sobre alguns dos termos usados nesse trabalho, como

a palavra “surdo”. Para muitos de nós, a palavra reflete preconceito e discriminação, mas os

indivíduos que possuem algum tipo de deficiência auditiva preferem “surdo” a “deficiente”,

por questões culturais e sociológicas, que serão abordadas nos próximos tópicos do texto.

Além disso, falamos de “musicalização”, como o processo de tornar um indivíduo conhecedor

dos conceitos e valores musicais, permitindo o seu envolvimento ativo com o fazer musical.

Não está focado aqui o “virtuosismo”, o desenvolvimento técnico em instrumentos e

habilidades específicas musicais, como regência ou composição.

O surdo e a educação: breve histórico reflexivo e contextualização crítica

“A surdez sempre esteve presente na história da vida humana” (HAGUIARA-

CERVELLINI, 2003, p.29). Embora tenham sido negligenciados pelos registros históricos,

que sempre trazem uma versão e valor vigente, os surdos sempre participaram da construção

da sociedade. Infere-se que a incidência da surdez adquirida3 tenha sido maior nos primeiros

3 Quanto à procedência ou etiologia da surdez, atualmente ela se divide em duas: a surdez hereditária e a surdez adquirida. A primeira é proveniente de pais ou avós surdos, com problemas auditivos, ou não (é o caso de

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anos da humanidade, uma vez que nos tempos atuais possuímos formas mais avançadas de

diagnóstico e tratamento de enfermidades e distúrbios. Assim também nas primeiras culturas e

sociedades, a surdez era bastante ocorrente, seja por questões hereditárias, muitas delas

causadas por relacionamentos consanguíneos, seja pela precariedade do sistema de saúde e

identificação dos distúrbios e doenças (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).

Na antiguidade, o surdo era considerado um ser não-humano (SILVA, 2008) e não-

educável. Aristóteles acreditava que, uma vez que estes indivíduos eram incapazes de se

comunicar com os ouvintes e entre si, eles eram incapazes de receber qualquer instrução, já

que para aquela sociedade o meio de instrução era a palavra articulada, falada. Nesse período

era comum que tais indivíduos fossem sacrificados em rituais religiosos, abandonados,

vivessem marginalizados, ou simplesmente mortos sem motivos aparentes (HAGUIARA-

CERVELLINI, 2003).

Essa visão do surdo como ser irracional perdurou até a Idade Média, quando os

indivíduos que apresentavam esta deficiência eram privados de direitos civis, sociais e

religiosos. “[O surdo] não tinha direito à herança, sofria restrições religiosas e não podia se

casar, a não ser que obtivesse uma dispensa do papa” (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003,

p.30). A situação só começou a mudar a partir do século XVI, com o médico italiano

Girolamo Cardano (1501-1576). Embora nunca tenha se engajado na educação de algum

surdo, ele foi o responsável pelo rompimento com o pensamento de que estes indivíduos eram

ineducáveis. Pai de um filho surdo, Cardano interessou-se por estudar a forma de

comunicação destas pessoas. Para ele, a surdez e a mudez4 não podiam ser impedimento para

a educação. “É um crime não instruir um surdo” (VELOSO; FILHO, 2009 apud PONCHIO,

2009). Cardano defendia que o surdo precisava aprender a ler e escrever, mas que o uso das

palavras faladas não era indispensável para a comunicação efetiva deles.

casamentos consanguíneos, por exemplo), que transmitem à criança alguma característica genética, algum problema que as impede de ouvir. A segunda ocorre após o nascimento ou durante a gestação, devido a doenças, distúrbios ou acidentes, onde o indivíduo acaba perdendo a sua audição. Estima-se que de 30 a 50% dos casos de surdez são hereditários, sendo que 10% das pessoas surdas possuem pais surdos (COLL; MARCHESI; PALÁCIOS, 2004, apud SILVA, 2008). Mas também é importante observar que em aproximadamente um terço das pessoas surdas não foi possível identificar a origem da surdez (SILVA, 2008). 4 A mudez é aqui citada a fim de promover uma contextualização histórica. Atualmente, sabe-se que esta deficiência não possui relação direta com a surdez. O termo surdo-mudo foi equivocadamente utilizado por anos para definir os surdos, pois se acreditava que, por alguns não serem oralizados, ou seja, não terem aprendido a se comunicar na língua falada, através de sons articulados, estes indivíduos eram também mudos. A mudez é a incapacidade, comprovada clinicamente, de emitir sons, uma deficiência na oralização. O surdo somente será mudo se possuir as duas deficiências distintas, atestadas por especialistas. Assim, muitos surdos podem nunca emitir sons orais, por não terem sido ensinados ou oralizados, mas não serão mudos por este fato (GESSER, 2009).

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Na Idade Moderna, durante o período das reformas humanísticas como o

Renascimento e a Reforma protestante, a educação geral sofreu mudanças, passando a ser

popular, nos idiomas regionais, e tal fato abriu a possibilidade para que o surdo fosse

educado. Pedro Ponce de León (1510-1584), monge beneditino, é considerado o primeiro

professor de surdos da história e Francisco Velasco, herdeiro do Marquesado de Berlanga5,

filho mais velho da Casa de Tudor, seu primeiro aluno. Este último, graças aos esforços de

León, acabou por aprender a falar e escrever, podendo assim recuperar seus direitos legais à

herança. A partir disso, devido aos interesses econômicos da nobreza, a educação dos surdos

sofreu um grande avanço (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).

Outros grandes educadores se dedicaram a educação de surdos em várias regiões do

mundo, fundamentando práticas de ensino que se tornaram marcos importantes na história da

educação. Charles-Michel de L’Epée, um dos grandes nomes a se destacar com esta postura

inovadora, foi responsável pela fundação da primeira escola pública para surdos, em Paris

(1755), o Instituto Nacional de Surdos-Mudos (SILVA, 2008), e por inferir a Língua de Sinais

como a língua natural do surdo (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.32). Embora os surdos

já utilizassem a Língua de Sinais desde a antiguidade, o Oralismo, a “arte de ensinar o surdo a

falar”, como alguns educadores se referiam a ele, era o meio para obter os fins da educação

até então6 (BOTELHO, 1998). Com o trabalho do abade de L’Epée, começa a ganhar

visibilidade uma outra forma de compreender o surdo e sua língua. A sociedade,

gradualmente, passa a perceber o surdo como um indivíduo capaz de adquirir conhecimento,

sem a necessidade da fala. Foi o início da ampla utilização da Língua de Sinais

(HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).

Na segunda metade do século XIX, entretanto, há um retrocesso e a Língua de Sinais

passa a ser questionada. O Congresso de Milão (1880) foi responsável por estabelecer o

Método Oralista como o padrão para a educação dos surdos, recriminando o uso da Língua de

5 Durante este período, como na pré-história, era comum ocorrer casamentos e envolvimentos consanguíneos entre os membros da realeza por interesses econômicos, como a posse de terras. Tais envolvimentos foram responsáveis por um alto índice de indivíduos surdos por hereditariedade na nobreza (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003). 6 Isto se devia à mentalidade de que só podia ser humano e capaz de se comunicar, o indivíduo que possuía a capacidade de fala. O índice da incidência da surdez, apesar de variar bastante conforme o passar da história, sempre foi menor que o índice de pessoas ouvintes. Por serem minoria, entendia-se que os surdos não eram “normais”, devendo se adequar ao mundo dos ouvintes para gozarem algum de seus direitos. Ou seja: o surdo precisava saber falar para se comunicar. Por isso que no início da educação para o surdos, os professores desempenharam grande esforço em ensinar o surdo a falar, sendo esse o principal fim da educação destes indivíduos naquela época.

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Sinais, sob o argumento de que a fala é “incontestavelmente superior” (HAGUIARA-

CERVELLINI, 2003, p.33) aos sinais e que a utilização destes, associado à fala, acabaria

prejudicando o desenvolvimento da fala e da leitura labial, em relação à precisão das ideias

que se poderia expressar. (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.33). Sobre o jogo de poder

que envolve essa questão, Moura et al (1997) afirma:

A supremacia do Oralismo sobre a Língua de Sinais é considerada [...] como uma forma de dominação em que os surdos, pertencendo a uma classe minoritária, têm de se submeter aos desejos da maioria ouvinte e igualar-se a estes a qualquer custo. (MOURA; LODI; HARRISON, 1997 apud HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.34)

No século XX podemos perceber algumas mudanças. A primeira, favorecendo o

Oralismo, foi representada pelos avanços tecnológicos, que promoveram condições melhores

de diagnóstico e mecanismos de amplificação do som, a serem utilizados pelos indivíduos

surdos que possuam “resíduos auditivos7” (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.34). Porém,

a dificuldade em articular o som falado, especialmente para aqueles indivíduos com surdez

pré-linguística, “que não têm lembranças dos parâmetros exatos do som” (SILVA, 2008,

p.13), fez do Oralismo um meio de frustração para os surdos, que acabavam vivendo

marginalizados, em miséria, ou até mesmo considerados mudos e/ou doentes mentais

(SILVA, 2008). Por outro lado, com a eclosão das reformas e revoluções humanísticas, houve

uma crescente preocupação com o respeito aos direitos humanos e a valorização de cada

indivíduo como ser. Neste contexto os surdos passaram a ter seus direitos defendidos e

reivindicados. Nos Estados Unidos, na década de 1980, teve início o movimento conhecido

como Deaf Power (Poder Surdo), que garantiu o “direito a uma língua própria” e reivindicou

o “direito de ser tratado como ‘diferente’, pelo ouvinte, em vez de ‘deficiente’”

(HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.15). Com o fortalecimento do posicionamento da

comunidade surda, desde então, a questão da Língua de Sinais como língua natural do surdo

ganha contornos políticos, manifestos também na esfera da educação.

A educação do surdo hoje é também assunto que gera polêmica dentro da chamada

“educação inclusiva”. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) n. 4.024 de 1961, que tratou de

“garantir a matrícula de crianças ‘excepcionais8’ no sistema geral de educação”, com o intuito

7 Resíduo auditivo é todo nível de som que a pessoa surda ainda consegue ouvir. 8 “Excepcional” era o termo utilizado na Lei. O termo causa polêmica, assim como outros utilizados para definir os indivíduos incluídos na especificidade da educação especial ao decorrer da história. Atualmente têm sido utilizadas expressões como “indivíduos com necessidades educacionais especiais” ou “portadores de necessidades especiais”, mas ainda há bastante discussão quanto à ética na utilização destes também (KASSAR, 2007).

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de “integrá-los na comunidade” (KASSAR, 2007, p.47) contempla também o indivíduo surdo,

devido à especificidade de sua condição de comunicação, por conta do seu comprometimento

auditivo. Antes da lei, há relatos de escolas que acolhiam alunos surdos, a fim de permitir sua

participação na sociedade e garantir sua educação, mas apenas em casos isolados pelo país.

Após a LDB, no entanto, essa modalidade de educação (inclusiva) alcança todo o território

brasileiro. O surdo, como todo educando com necessidade educacional especial, passa a ter

direitos perante a lei, podendo, respaldado por ela, interagir e participar ativamente do seu

dia-a-dia, tendo suas diferenças respeitadas. Porém, o que se percebe na realidade educacional

hoje é uma prática inclusiva longe do ideal proposto pelo MEC9 e que acentua a distância

entre surdos e ouvintes, ao invés de amenizá-las (STUMPF, 2008).

Quando pensamos na exigência dos surdos em serem tratados como “diferentes”, ao

invés de “deficientes”, como foi defendido pelo movimento Deaf Power nos Estados Unidos,

entramos em uma discussão que reflete valores sociais e antropológicos, bem como

paradigmas impostos pela sociedade sobre o conceito de “normalidade”. Por muito tempo,

tendo sido tratado apenas como um deficiente, o surdo viveu à margem da sociedade, incapaz

de usufruir do pleno gozo de sua cidadania. Essa visão, como já abordado acima, está

embasada num “discurso da falta”, onde o indivíduo é denominado e categorizado pelo que

não tem. Nessa linha, está inserida a visão clínica (BOTELHO, 1998), pela qual a surdez é

considerada uma patologia a ser tratada. É sob esse mesmo discurso que a educação para os

surdos teve como objetivo esforços no sentido de “normalização”, ou seja, tornar o surdo um

“ouvinte”, compensando seu déficit por meio de um treino sistemático da audição, da fala, da

leitura labial, do uso de próteses, de implantes, de cirurgias, de audiometrias, de exercícios

respiratórios, dentre outros (LULKIN, 1998 apud SKLIAR, 1998).

A “normalidade”, como foi defendida e imposta por vários séculos desde a

antiguidade, passa inevitavelmente por uma concepção de o que é ser humano. Para muitas

sociedades, humano era aquele que detinha os cinco sentidos (audição, visão, olfato, tato, e

paladar) preservados. Assim entendemos porque os surdos foram demasiadamente rejeitados

pela sociedade ouvinte. E mesmo quando a educação surda começa a se estabelecer, o foco

era fazer a pessoa se adequar à realidade ouvinte, como se fosse possível e necessário corrigir

a surdez. É neste sentido que Skliar comenta que “o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-

se como se fosse ouvinte.” (SKLIAR, 1998, p.15). Os avanços tecnológicos e médicos na área

9 Ministério da Educação (MEC)

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da surdez (aparelhos de surdez, implantes cocleares, etc.) realçam essa concepção que o surdo

é um indivíduo incompleto. De fato lhe falta algo: a audição. Mas só é possível pensar em

uma inclusão, em inseri-lo na sociedade como todo, a partir da correção de seu “problema”?

Tendo em vista este ponto de tensão, entre a realidade fisiológica do surdo e como este

fato interfere em sua visibilidade social, é que se tem buscado uma saída diferente na forma

de enxergar sua representação na sociedade. Numa visão antropológica (BOTELHO, 1998), o

surdo deixa de ser visto pelo seu déficit e passa a ser apenas “diferente”. Ele possui uma

forma de comunicação diferente à dos ouvintes, mas não por isso deixa de ser parte dessa

sociedade. Assim, nesta concepção, os surdos não seriam diferentes unicamente porque não

ouvem, mas porque “desenvolveriam potencialidades psicoculturais diferentes daquelas dos

ouvintes” (ALPENDRE, 2008). Como afirma Wrigley (1996), “a distinção entre surdos e

ouvintes envolve mais que uma questão de audiologia, é uma questão de significado: os

conflitos e diferenças que surgem referem-se a formas de ser” (WRIGLEY, 1996 apud

ALPENDRE, 2008, p.49).

O surdo tem direito a se expressar e ter acesso ao conteúdo curricular pela sua língua,

a Libras, da mesma forma que um ouvinte tem em relação ao português. Ele deve ser

respeitado e valorizado por sua língua, tendo pleno direito ao gozo de seus direitos civis e

acesso à educação, como indivíduo que possui uma forma de comunicação e de se relacionar

diferente à das outras parcelas da sociedade. Ele é um indivíduo de uma comunidade

específica, a comunidade surda, e que convive dentro de uma sociedade geral, com várias

diferenças. O termo “surdo” passa a ser preferido em relação à expressão “deficiente

auditivo”, uma vez que a segunda traz uma grande carga de preconceito e discriminação. Essa

visão condiz mais com a noção que se faz de “educação inclusiva” atualmente: aquela que

deve ser para todos.

Contudo, a realidade das práticas educacionais hoje está longe do ideal. A falta de

estruturas metodológicas e tecnológicas adequadas, de apoio à necessidade do surdo, apenas

tem agravado a distância entre surdos e ouvintes nas salas de aula. O surdo no dia a dia

escolar não é ainda necessariamente visto como uma pessoa de diferença linguística e

cultural. Sobre esta situação, Stumpf afirma:

O que acontece na prática está longe de atender essas indicações [propostas pelo MEC]. As dinâmicas educacionais da sala de aula e da escola estão focalizadas na língua oral e na escrita da mesma. O aluno surdo inserido no espaço educacional de alunos ouvintes, sem suportes adequados, vai tentar se comportar como um deles. Sua Língua de Sinais aparece pouco e desfigurada, de sua cultura não há sinais.

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Como vai esse aluno ter acesso aos conhecimentos se sua questão linguística não está sendo observada e menos ainda seu pertencimento cultural? Como vai desenvolver conhecimentos se a escola apenas faz mínimas concessões e em seu imaginário ainda vê o surdo como deficiente que, por força de lei, está obrigada a receber? As diretrizes para a educação dos surdos apontadas pelo MEC não chegaram na maioria das escolas que recebem surdos. Estas dizem não ter suficientes condições estruturais e o surdo fica mal atendido sem que ninguém se responsabilize. (STUMPF, 2008, p.24-25)

Estudos comprovam que os surdos aprendem melhor o português escrito em escolas

bilíngues, onde os professores se comunicam tanto pelo português falado quanto pela Libras,

do que em escolas comuns, onde a maioria dos professores não dominam a Língua de Sinais

(CAPOVILLA, 2000). Nesse sentindo, os surdos reivindicam hoje uma educação bilíngue,

onde a Libras seja a língua primária, natural do surdo, e a escrita, a secundária, como forma

de proporcionar uma educação de qualidade a eles. No entanto, ainda são poucas as escolas

que oferecem esta modalidade de ensino, embora grande parte delas já possua alunos surdos.

Levando em conta que a educação, desde os primórdios da sociedade, sempre esteve

muito ligada à política e ao poder, sendo até mesmo um mecanismo de ascensão e alienação

social, cabe-nos alguns questionamentos, diante da realidade em que se encontra a educação

dos surdos hoje: estamos realmente favorecendo que estes indivíduos possam integrar a

sociedade de forma plena, através de uma boa educação? Será que essa falta de melhores

condições de aprendizado não continua apenas a forçá-los a se adequarem ao modo de

aprender e se comunicar dos ouvintes?

O foco desta pesquisa partiu do princípio de uma visão ampla de educação, voltada

para a construção de saberes e desenvolvimento de indivíduos plenos, que sejam autônomos e

autênticos na sua forma de lidar com as situações que lhe são apresentadas no cotidiano.

Assim, compreende-se aqui a educação do surdo como aquela que busca legitimar suas

potencialidades e reconhecer sua cultura.

Os movimentos surdos apontam para a construção de outra história para a sua educação, uma história que não a da falta. Temos sugerido caminhos e mostrado que recursos sociais e artefatos culturais podem tornar a surdez aquilo que ela realmente é: uma diferença a ser respeitada. Os surdos não querem que contem sobre eles histórias heroicas de superação, querem que seja colocada sua capacidade virtual para uma educação que não é menos nem mais do que a dos outros, mas é diferente. (STUMPF, 2008, p.25)

O indivíduo surdo é, portanto, um sujeito com identidade própria, embora não

homogênea, sendo esta totalmente diferente àquela associada apenas à falta do sentido

auditivo. Ele é possuidor de uma cultura própria, que interage com as demais culturas e não

está estática, mas em constante crescimento, construção (GESSER, 2008). É uma cultura

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multifacetada, como a cultura ouvinte. Longe de ser representada apenas pela sua língua, a

comunidade surda é composta por:

[...] Mulheres surdas, negros surdos, índios surdos, surdos de áreas rurais, surdos homossexuais, surdos cegos, surdos com deficiências mentais, surdos cadeirantes, ouvintes filhos de pais surdos, e os surdos com diferentes graus de surdez. (GESSER, 2008, p.298)

Estes representam facetas diferentes de um mesmo grupo cultural. Se queremos uma

educação plena capaz de formar verdadeiros cidadãos, é preciso respeitar as diferenças e as

culturas, proporcionando condições para que todo e qualquer indivíduo tenha acesso a ela.

Uma vez que entendemos como se deu o processo de estabelecimento da educação dos

surdos e quais os valores que subjazem diferentes concepções de “surdo” e “educação”, cabe-

nos agora um breve esclarecimento sobre o papel da música no processo educacional em que

estamos inseridos.

A educação musical e o processo de desenvolvimento do ser humano

Atualmente existem diversas definições para música. Mas, de um modo geral, ela é considerada ciência e arte, na medida em que as relações entre os elementos musicais são relações matemáticas e físicas; a arte manifesta-se pela escolha dos arranjos e combinações. (CHIARELLI; BARRETO, 2005, p.2)

No processo de estabelecimento das diretrizes da educação brasileira, temos nos

deparado com um fato cada vez mais concreto: a inserção, ou retorno, da música à grade

curricular das escolas. Em 18 de agosto de 2008, o então presidente da república Luís Inácio

Lula da Silva sancionou a lei que determina que a música “deverá ser conteúdo obrigatório,

mas não exclusivo, do componente curricular” das instituições de ensino regular (BRASIL,

Lei 11.769, de 18 de agosto de 2008). A lei ainda estipulou o prazo de três anos para que estas

instituições se adequem para atender a exigência. Assim, a educação musical, ou

musicalização, passa a existir dentro dos espaços da escola comum.

A musicalização é o processo em que o indivíduo se apropria dos conceitos e

conhecimentos musicais. É a prática educativa que envolve a transmissão destes conceitos

pelo professor e a assimilação pelo aluno. Segundo Bréscia, ela é:

...um processo de construção do conhecimento, que tem como objetivo despertar e desenvolver o gosto musical, favorecendo o desenvolvimento da sensibilidade, criatividade, senso rítmico, do prazer de ouvir música, da imaginação, memória,

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concentração, atenção, auto-disciplina, do respeito ao próximo, da socialização e afetividade, também contribuindo para uma efetiva consciência corporal e de movimentação. (BRÉSCIA, 2003 apud CHIARELLI; BARRETO, 2005, p.3)

Sendo assim, a educação musical não se limita ao ensino instrumental ou a outras

modalidades específicas da música, como composição ou regência. A verdadeira educação

musical é aquela que contempla as múltiplas formas de envolvimento com a música.

Swanwick (2003) resumiu as principais formas de envolvimento na música na sigla C (L) A

(S) P (Composition, Literature, Audition, Skill acquisition e Perfomance), sendo as

experiências mais diretas e comuns no ensino musical, a composição (C), a apreciação (A) e a

performance (P)10. As letras entre parênteses (L e S) referem-se, respectivamente, aos estudos

literários, estudos de estilo e estética, estudos bibliográficos, ao aprendizado teórico

necessário para a leitura de notações musicais, etc., e o treino, ou desenvolvimento técnico,

que, segundo o autor, por não se tratarem de uma prática musical efetiva, onde não estamos

fazendo ou ouvindo música de fato, mas ao mesmo tempo comporem o conjunto de atividades

relacionadas à música, merecem atenção do educador musical que deseja proporcionar um

envolvimento amplo de seus alunos com ela (SWANWICK, 2003).

A preocupação em oferecer aos seus alunos esse envolvimento com a música se deve,

em grande parte, ao trabalho de educadores musicais ao passar dos anos, que construíram as

bases do pensamento musical-cognitivo, e também à teoria de Gardner (1995), sobre as

“inteligências múltiplas”. Segundo conclusões que chegou a partir de sua pesquisa, o ser

humano é formado por uma inteligência multifacetada, que se organiza em sete áreas

distintas. E essas inteligências seriam natas ao ser humano:

Eu considero as inteligências como potenciais puros, biológicos, que podem ser vistos numa forma pura somente nos indivíduos que são, no sentido técnico, excêntricos. Em quase todas as pessoas, as inteligências funcionam juntas para resolver problemas, para produzir vários tipos de estados finais culturais – ocupações, passatempos e assim por diante. (GARDNER, 1995, p.15-16)

Dentre as sete inteligências observadas pela equipe de Gardner, existe a denominada

“inteligência musical”. Para o autor, existe uma independência desta inteligência em relação

às demais áreas e, por isso, é justificável ressaltá-la e evidenciá-la. Sendo assim, todo

indivíduo, que possua suas capacidades cognitivas preservadas11, possui biologicamente

10 A composição envolve atividades de criação e improvisação musical bem como a criação de arranjos para músicas já prontas. A apreciação é o “ouvir atento”, a audição de trechos e peças musicais com comprometimento e engajamento, de modo a explorar e conhecer o máximo que se pode apreender da obra. Já a performance diz respeito à reprodução feita por alguém de alguma obra de outro compositor. 11 Gardner se refere aqui especificamente a pessoas que não possuam danos cerebrais, tais como pacientes que sofreram derrame ou algum tipo de lobotomia. Ele observa que, nestes casos, o indivíduo pode perder alguma

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também uma capacidade musical, uma pré-disposição a se envolver e se expressar através da

música12 (GARDNER, 1995, p.22-23). Sendo assim, ao oferecermos oportunidades para que

os alunos se envolvam com o universo musical, estamos na verdade favorecendo que eles

desenvolvam suas capacidades cognitivas plenamente, em sua diversidade.

O surdo e a música: estigma e superação

Como foi exposto na primeira seção deste tópico, por muito tempo o surdo encarou

grandes barreiras impostas pela sociedade quanto ao que ele é ou deixa de ser e quanto ao que

pode ou não fazer. O conceito de normalidade, como dito anteriormente, perpassa pela

compreensão histórica, social e biológica de “ser humano”. Vivemos e criamos a nossa

definição do normal, baseados na coletividade, na maioria, ou no ideal construído, no objetivo

a ser alcançado. Consequentemente, aquela minoria diferente e que não atende ao esperado

acaba por receber um “estigma”. O estigma, de acordo com HAGUIARA-CERVELLINI

(2003) é “um atributo profundamente depreciativo que atinge um e confirma a normalidade

do outro” (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.59).

Este termo deriva da Grécia Antiga, e era usado pelos gregos se referindo a sinais

corporais que indicavam alguma característica negativa ou diferente na condição moral de um

indivíduo. Estes sinais em geral eram cortes e marcas de fogo, que indicavam que aquela

pessoa era um escravo ou um criminoso e deveria ser evitada (HAGUIARA-CERVELLINI,

2003, p.59). Atualmente, o termo “estigma” é normalmente usado para indicar desordens e

problemas que podem acometer o ser humano: físicos, mentais, morais, etc. Servem, portanto,

para ressaltar que, de alguma forma, alguns indivíduos “não preenchem as expectativas” que

se fazem deles, no que diz respeito à condição estabelecida como natural (HAGUIARA-

CERVELLINI, 2003, p.59). O surdo pode assim ser categorizado pela sociedade, que o vê

como deficiente, devido à falta da audição e de sua dificuldade em se comunicar com os

capacidade relacionada a alguma das inteligências, ou mesmo a maioria, ao passo que outras são preservadas, isoladamente. Sendo assim, todo indivíduo que não tenha sofrido este tipo de dano possuiu todas as inteligências e pode desenvolvê-las (GARDNER, 1995, p.14). Como a grande maioria dos casos de surdez não envolve perda ou dano cerebral, os indivíduos surdos podem ser educados em todas as inteligências. 12 O chamado “talento” ou “dom” musical, que algumas pessoas em particular parecem demonstrar é explicado pelo autor como uma pré-disposição biológica daquele indivíduo para aquela tarefa. Todos os indivíduos possuem capacidade para a música, mas alguns em especial, seja por nascimento (genética) ou por criação, já se encontram preparados para se envolverem e responderem à situação musical mesmo antes de serem instruídos àquele respeito. O autor também demonstra que tal fato ocorre com todas as demais inteligências (GARDNER, 1995).

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demais ouvintes. Ele não atende ao padrão de normalidade estipulado pela sociedade e é, por

tanto, um sujeito estigmatizado.

O estigmatizado é visto como alguém que não é “completamente humano”. Em face disso, ele é, então, discriminado. Não se veem suas possibilidades de ser-no-mundo, de estar em relação e de ser livre. Ele não é visto com respeito, nem com consideração (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.60).

Sob a ótica do estigma, o surdo foi, por muito tempo, também privado do contato com

a música e com a sua própria musicalidade. Por ter a audição comprometida, a sociedade

pressupôs que o surdo nunca poderia entender, fazer e, quanto mais, “ouvir”13 música, e

deixou de proporcionar a estes indivíduos grandes possibilidades de se expressar, explorar e

descobrir o mundo, através dos sons e da música. Como sujeitos estigmatizados, os surdos só

seriam aceitos na sociedade se superassem o “defeito estigmatizante” (HAGUIARA-

CERVELLINI, 2003, p.60) e, pensando musicalmente, precisariam aprender e conseguir

ouvir para poder desfrutar dela. A partir disso que se levanta a seguinte questão: como pode o

surdo ouvir música?

Haguiara-Cervellini (2003) destaca que são dois os meios básicos através dos quais o

surdo pode ter acesso à música: através de aparelhos auditivos amplificadores de som e

através da sua própria percepção corporal. No primeiro caso, aproveitam-se os resíduos

auditivos da pessoa surda e por meio de tecnologias, aumenta-se a intensidade do som que

chega aos ouvidos dos surdos, facilitando a compreensão, ainda que vaga, dependendo de

cada caso, do que se ouviu.

Vários procedimentos têm sido criados a fim de restaurar a audição do surdo ou, ao

menos, minimizar a perda auditiva. Implantes cocleares, aparelhos auditivos mais potentes e

eficazes são apenas alguns dos exemplos de recursos utilizados atualmente. Mas o que se

busca aqui é a conscientização acerca da necessidade da elaboração de uma prática musical

condizente com a realidade dele, que não negue sua diferença e que seja tão significativa e

eficaz quanto às demais práticas dos ouvintes. Não se pretende, no entanto, julgar aqueles que

optam pela escolha deste tipo de procedimento, até porque a escolha deles não determina

necessariamente uma concepção patológica de surdez.

Sendo assim, devemos analisar a percepção corporal como método que mais concorda

com as possibilidades do surdo, de acordo com esta pesquisa. Esta percepção ocorre através

13 A expressão “ouvir” foi aqui apresentada entre aspas, pois o termo será abordado e questionado no decorrer deste tópico.

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da pele e dos ossos. As vibrações chegam ao indivíduo através do contato com objetos, ou até

mesmo pelo ar, e são percebidas primeiramente pela pele. Haguiara-Cervellini (2003) afirma

que é possível viver sem os órgãos responsáveis pelos sentidos da audição, olfato, visão e

paladar, mas não existe vida humana sem a pele. Os sons são percebidos por toda a extensão

pericorpal do indivíduo. Sendo assim, o surdo de fato escuta através do tato, o que possibilita

a expressão de sua musicalidade.

Glennie (2008), citada por Finck (2009) estabelece diferenças significativas entre o

processo de “ouvir” e o de “escutar” um som. Para ela, o ser ouvinte faz uso dos sentidos de

audição, visão e tato para escutar, ao passo que o ato de ouvir engloba apenas o processo

orgânico exercido pelo aparelho auditivo (FINCK, 2009). O surdo, então, faria uso dos dois

sentidos que possui, tato e visão, para de fato escutar o som reproduzido. Dessa forma, a

autora estabelece novas possibilidades e experiências sonoras.

Ouvir é basicamente uma forma especializada de toque. O som é, simplesmente, o ar vibrando que o ouvido colhe e converte em sinais elétricos e que, então, são interpretados pelo cérebro. A sensação do ouvir não é o único sentido que pode fazer isto, o toque pode fazer isto demasiado. Se você estiver em uma estrada e um caminhão grande passar por perto, você ouve ou sente a vibração? A resposta é ambos. Com a vibração de frequências muito graves o ouvido começa a se transformar ineficiente e o resto do sentido de toque do corpo começa a dominar. Por alguma razão nós tendemos a fazer uma distinção entre ouvir um som e o sentir uma vibração, que na realidade são a mesma coisa. É interessante notar que na língua italiana esta distinção não existe. O verbo “sentire” significa ouvir e o mesmo verbo na forma reflexiva “sentirsi” significa sentir. A surdez não significa que você não pode ouvir, apenas que há algo de errado com o ouvido. Mesmo alguém que é totalmente surdo pode ainda ouvir/sentir sons. (GLENNIE, 2008 apud FINCK, 2009, p.60-61)

Estabelece-se ainda outro sentido, além do tato, essencial para a escuta significativa: a

visão (FINCK, 2009). O processo de interpretação dos estímulos elétricos captados pelo corpo

remete-nos a imagens arquivadas em nossa memória. Como músico, Sacks (2007) trabalha a

forte relação existente entre a imagem e o som, ressaltando a importância da visão para o

processo de significação e apreensão, ou armazenamento, da informação sonora.

Vejo meu quarto e minha mobília todos os dias, mas eles não me reaparecem como “imagens na mente”. Tampouco ouço cães imaginários latindo nem o barulho do trânsito em segundo plano na minha mente, não sinto aromas de comidas imaginárias sendo preparadas, apesar de ficar exposto a tais percepções todos os dias. Tenho fragmentos de poemas e frases que me brotam de súbito na mente, porém nada parecido com a riqueza e a variação das minhas imagens mentais musicais espontâneas. Talvez não seja só o sistema nervoso, mas a própria música que contém algo muito singular – seu ritmo, seus contornos melódicos, tão diferentes dos da fala – e sua ligação singularmente direta às emoções. (SACKS, 2007, p.50)

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Assim, segundo o autor, o menor estímulo visual é capaz de desencadear a música ou

a sonoridade associada àquela situação. Finck (2009) concorda com a importância do visual

para a educação musical, especialmente para o surdo. O movimento dos objetos, como a pele

de um tambor vibrando ou a movimentação das folhas de uma árvore por causa do vento, são

capazes de evocar em nossa mente uma sonoridade que corresponda àquela situação

presenciada visualmente (FINCK, 2009). Sendo assim, por processo inverso, a apreensão e

compreensão do som se dá pela cooperação dos sentidos, e não apenas pela audição. No que

diz respeito à educação do surdo, esse conceito se faz extremamente importante, pois, devido

à perda auditiva, ele deve fazer uso destes outros sentidos a fim de escutar algo. Pode-se

proporcionar maior significado e sentido à música e à educação musical para o surdo, quando

estas se mostram acompanhadas de imagens. Estas imagens auxiliam o surdo a entender que a

“música provoca emoções nos ouvintes”, e elas podem ser entendidas e experimentadas

também por eles (SÁ, 2007 apud FINCK, 2009, p.103). Tudo o que é visual e tátil é de

extrema importância, e deve ser explorado durante sua educação (CAMPELLO, 2007).

Abordando a escuta musical sobre esse aspecto, da interação e utilização de sentidos

diferentes, Glennie (2008 apud FINCK, 2009), percussionista, surda bilateral profunda desde

os doze anos de idade (TOUCH, 2004), defende sua própria capacidade de escutar os sons,

afirmando que “não poderia ser musicista se não fosse capaz de escutar” (FINCK, 2009,

p.61). Para ela, as formas de escutar variam de pessoa para pessoa, sendo que alguns sentidos

acabam se tornando mais importantes que outros, conforme variem as especificidades

biológicas, emocionais ou cognitivas das pessoas (GLENNIE, 2008 apud FINCK, 2009,

p.61).

Além das possibilidades delimitadas pela correlação entre a visão e o tato, há a

possibilidade de explorar os resíduos auditivos dos surdos, aliando-os à sensação tátil. Para

tanto, os sons e músicas utilizados nas aulas de música, bem como os aparelhos reprodutores

das mídias devem ser preparados com antecedência para se adequarem à demanda destes

alunos. Aparelhos de som de baixa qualidade ou que não foram projetados e construídos para

tal finalidade, bem como a escolha de um repertório que prejudique a exploração deste

fenômeno, comprometem o entendimento e a percepção deles. Geralmente as músicas são

reproduzidas em intensidades muito fortes e em ambientes onde a acústica favoreça a

propagação do som, como em salas de assoalho de madeira14, onde os alunos possam ficar

14 A escolha dos materiais de que são feitos os objetos e mesmo as estruturas (piso, paredes e teto) do ambiente onde ocorrem as aulas deve ser cuidadosa, pois cada material possui características de absorção, propagação e

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descalços. Assim, a propagação das vibrações do som é mais bem percebida pelos alunos,

mesmo aqueles indivíduos com surdez profunda15 (FINCK, 2009). Tudo isso conflui para que

o surdo tenha suas capacidades musicais exploradas e exercitadas. Contudo, como

questionado por Haguiara-Cervellini (2003), será que a sociedade faz uma imagem do surdo

como um sujeito com potencialidades musicais?

A pesquisadora observou e estudou o envolvimento de quatro indivíduos surdos com a

música, bem como a atuação de seus familiares em todo o processo de crescimento e

educação destes. Todos tiveram contato com a música quando ainda jovens, seja por causa de

parentes músicos ou para desenvolver e melhorar a oralidade destes. O que a autora percebeu

é que, nos casos onde a música era utilizada como ferramenta para promover a

“normalização” do surdo, ou seja, torná-lo um “ouvinte-falante” (HAGUIARA-

CERVELLINI, 2003, p.189), superando sua deficiência, os indivíduos acabavam por rejeitar e

desprezar a música, assumindo a posição de que ela não fazia parte de seu universo. Já nos

casos onde ela era encarada como fonte de prazer e expressão, seja através da exploração da

própria musicalidade, seja através da dança, e não como forma de adequação à realidade

ouvinte, os surdos passaram a demonstrar um envolvimento interessado e ativo com o fazer

musical. As duas visões, no entanto se basearam na concepção de que o surdo possui

capacidade de se expressar musicalmente e de entender a música, ainda que não possa ouvi-la

com os ouvidos. Ainda hoje essa concepção não é encontrada em grande parte das pessoas

que convivem ou se responsabilizam pela educação dos surdos e que eles próprios, muitas

vezes, não enxergam a si mesmos como seres musicais, devido à falta da audição ou de uma

educação musical que lhe faça sentido (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003). Neste sentido, a

pesquisadora defende a potencialidade de todo indivíduo, seja deficiente ou não, de viver e

expressar sua musicalidade:

Expressar a própria musicalidade em sintonia com a música interna ou externa é uma possibilidade do homem. Aqui a audição tem um valioso papel. No entanto, enquanto função íntegra, não se pode afirmar que seja condição sine qua non para que a manifestação da musicalidade possa ocorrer. (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.79)

A musicalidade é uma experiência humana. Não é atributo exclusivo de indivíduos

com talento ou boa percepção auditiva, mas reflete o fluxo interno com que o indivíduo se

reflexão das ondas sonoras diferente. Além disso, estes materiais também reagem diferentemente à ondas de frequências diferentes (mais graves ou agudas), o que deve ser explorado pelo professor durante as aulas. 15 Beethoven, à medida que sua surdez progredia, passou a ouvir as frequências através das vibrações do piano, encostando seus ouvidos nele.

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relaciona com estímulos externos. Essas relações produzem reações de ordem emocional e

cinética em sua natureza expressiva, como por exemplo, a associação intrínseca que existe

entre o movimento corporal e o movimento sonoro. E estas manifestações são observadas

também em pessoas surdas, o que evidencia a musicalidade presente nelas.

Para fundamentar este ponto de vista há que citar a experiência de alguns indivíduos

surdos com a música como evidência de que é possível ao surdo aprender, entender e fazer

música. O primeiro dos casos assinalados pelo autor é o de Helen Keller, que se tornou surdo-

cega logo ainda nos primeiros anos de vida, antes de adquirir linguagem. A jovem Helen, que

por muito tempo viveu em um mundo de escuridão e silêncio, aprendeu com esforço a se

comunicar e a se relacionar com o mundo, o que a tornou insaciável na busca por todo tipo de

conhecimento que pudesse alcançar ao seu redor (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.18).

Tratou, portanto, de buscar experiências com a música, desenvolvendo e aprimorando o tato,

uma vez que não dispunha nem da audição, nem da visão para ajuda-la como canais sensórios

de escuta. Esse processo foi tal que Nella Braddy afirma no prefácio do livro “Minha vida de

mulher”, de Helen Keller:

Sua capacidade de apreciar a música tem sido largamente discutida. Ela tem “ouvido” com os dedos, piano, violino, tendo-se mesmo projetado vários aparelhos para fazê-la apreciar também a orquestra. Ela já conseguiu “ouvir” rádio, pondo os dedos de leve num tampo de ressonância feito de balsa wood. Chega a distinguir quando é o locutor que fala ou quando é música. Chega mesmo a conhecer certa estação pela maneira muito destacada com que o locutor anuncia o prefixo da emissora. Sabe quando é solo ou conjunto instrumental, chegando, por vezes, a determinar que instrumentos atuam no conjunto. Às vezes, confunde o violino com o canto, o violoncelo com a viola; mas nunca se engana no ritmo nem no gênero da composição, mesmo quando se procura atrapalhá-la. (KELLER, 1929, apud HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.20)

No mesmo livro, Keller (1929 apud HAGUIARA-CERVELLINI, 2003) demonstra o

seu conhecimento musical, fazendo referências e inferências a estilos e gostos, tal qual muitos

ouvintes não são capazes de expressar. Nestas citações, a jovem demonstra que nem a falta da

audição ou a falta da visão constituíram impedimento para o desenvolvimento de suas

capacidades.

[...] Em Denver, numa das excursões do teatro de variedades, o violinista Heifetz tocou para mim. Pousei os dedos, de leve, no violino. A princípio, o arco de moveu lentamente sobre as cordas, como se o mestre estivesse interrogando o Espírito da Música sobre o que deveria tocar para essa criatura que não podia ouvi-lo. O arco entrou a agitar-se: do instrumento sensível, começou a vir um trêmulo murmúrio distante. Seria imitação de asas de passarinhos? As notas delicadas vinham pousar-me nos dedos como felpas de sementes de cardo. Tocavam-me nos cabelos e no rosto como beijos. Eram fluídicas e transitórias como os sorrisos, como o suspiro do vento ao entardecer, ou o sopro da brisa nas róseas alvoradas. Seriam pétalas de rosas caídas de mãos de fadas, ou mudos desejos do coração?

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Há uma mudança no estilo. O arco eleva-se às alturas radiosas. A melodia sobe como as cotovias de Shelley, varando os espaços, desafiando a imensidade, com as asas e com o canto. A gente fica triste, sem saber por quê. O canto é alegre; mas a gente sente a solidão daquele pequenino pássaro isolado na vastidão da abóbada luminosa, único ser vivo no momento no universo, apesar de tão minúsculo. Lá vai ele como eco do pensamento, oração fervorosa de fé inquebrantável nas coisas invisíveis. Penso que foi a Canção do Luar de Schumann que Heifetz tocou. [...] (KELLER, 1929 apud HAGUIARA-CERVELLINI, 2003, p.23)

Fica evidenciado aqui, portanto, a potencialidade musical de alguém que foi privado

dos sentidos da audição e da visão, mas não permitiu que este fato a limitasse.

O segundo caso, que já foi citado anteriormente, é da percussionista Evelyn Glennie.

Ela ficou surda após a aquisição da língua vocalizada falada, mas o seu interesse pela

percussão surgiu após a surdez, na escola onde estudou (TOUCH, 2004). Antes desse fato, ela

havia frequentado aulas de piano, que lhe foram bastante prazerosas. Após o diagnóstico de

surdez, o médico tratou de estigmatizá-la, afirmando que não poderia mais se envolver com a

música e que deveria frequentar escolas especiais, além de estabelecer uma lista atividades

que poderia ou não poderia fazer. Tal fato causou-lhe muito impacto, não pela descoberta da

surdez, mas pelas proibições que lhe foram impostas pelo médico. Seu pai, contudo, tratou de

tranquiliza-la, pois nada mudaria em relação às coisas que fazia antes. Ela poderia fazer tudo

o que quisesse, nada seria diferente (TOUCH, 2004).

Na escola onde fez o ensino colegial, ela aprendeu a ouvir com o corpo,

desenvolvendo sua sensibilidade quanto a diferenças de altura, intensidade, timbres (TOUCH,

2004).

Eu gastei muito tempo em minha juventude (com a ajuda de meu professor de percussão na escola Ron Forbes) para refinar minha habilidade de detectar vibrações. Eu colocava minhas mãos de encontro à parede da sala de aula enquanto Ron tocava notas no tímpano (o tímpano produz muitas vibrações). Eventualmente, eu consegui distinguir o conjunto bruto das notas, associando onde em meu corpo eu sentia o som com a sensação perfeita que eu tinha antes de perder minha audição. Os sons graves eu sinto principalmente em minhas pernas e pés e sons agudos podem ser sentidos em partes particulares da minha face, pescoço e caixa toráxica. (GLENNIE, 2008 apud FINCK, 2009, p.178)

Em sua prática musical, Glennie demonstra extrema sensibilidade e compreensão

musical durante suas performances e criações (TOUCH, 2004). Atualmente ela é convidada a

fazer palestras e apresentações musicais pelo mundo e tem trabalhado em gravações de

músicas, auxiliando inclusive em trilhas sonoras de filmes16.

16 Informações retiradas do site oficial de Evelyn Glennie: http://www.evelyn.co.uk/. Acesso em: 16 nov. 2011.

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Estes dois exemplos, associados às pesquisas e práticas educativas realizadas por

Haguiara-Cervelline (2003), Finck (2009) e Silva (2008), consolidam o ponto de vista

defendido por esta pesquisa, de que o aluno surdo pode usufruir da experiência musical de

forma significativa, desde que sejam consideradas e respeitadas as especificidades que a

educação destes indivíduos oferece. Isso dá significado ao desenvolvimento de práticas

educativas que são elaboradas a partir da particularidade de cada aluno e também do grupo,

sejam de ouvintes, sejam de surdos. O que nos distancia de tomar a musicalidade e seu ensino

do sentido de uma superação da surdez, algo que assemelharia a um ouvitismo, mas como

uma forma diferente de experimentar o som, a música, cuja qual, apenas cada ser humano, por

si só, pode relatar o que é.

Considerações finais

A política educacional em que o Brasil se insere atualmente busca atender dois

parâmetros recentes. O primeiro deles diz respeito à inclusão de alunos com necessidades

educacionais especiais no convívio da escola comum, regular. O segundo se refere ao retorno

da educação musical como componente curricular das escolas de educação regular do país.

Estas duas situações, que inevitavelmente se encontrarão, apresentam os desafios que os

educadores musicais terão de enfrentar, em prol do pleno funcionamento da Lei.

Durante a pesquisa dos materiais e das informações colhidas, uma inquietação se fez

presente e mostrou-se séria. A análise das referências utilizadas nesta pesquisa, dos relatos de

outros pesquisadores e da avaliação do autor sobre o contexto educacional contemporâneo,

pode indicar que os atuais e iminentes educadores musicais podem não se encontrar

totalmente preparados para oferecer a educação musical que alunos surdos necessitam. E esta

realidade, observada principalmente por Finck (2009), estende-se também a professores de

outras disciplinas. O quadro é de falta de preparo, seja pela falta de recursos, ou por falta de

conhecimento, para atender a solicitação e proposta da educação inclusiva no país, ou,

principalmente, pela falta de entendimento sobre a possibilidade de se oferecer música e

educação musical também a alunos surdos, como foi o foco adotado neste trabalho.

Isto tem contribuído para que cada vez mais os surdos se distanciem das práticas

musicais. Como observado por Sá (2008), a falta de adaptação dos conteúdos musicais para a

realidade do surdo acaba tornando a música um fator “normalizador”, onde os ouvintes

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insistem que os surdos entendam e reproduzam as informações musicais da forma como eles

entendem. E, pela falta de sentido, essas experiências acabam se tornando traumáticas e

passam a ser evitadas por eles. E no ambiente da escola, onde a educação musical agora volta

a ter espaço pela Lei 11.769, este fato se torna ainda mais grave, pois estes alunos

possivelmente acabarão excluídos das aulas de música. A educação musical dos surdos nas

escolas é muito importante, pois pode ser este o único lugar onde a maioria dos surdos terá

contato com este tipo de educação por toda a sua vida (GLENNIE, 2008 apud FINCK, 2009).

Além disso, torna-se incoerente não musicalizar o surdo, sabendo que este possui

musicalidade e vive em um mundo atravessado por sons e músicas. Diferente do que se

imaginou por muito tempo, a música está presente em muitos eventos e festas frequentados

por surdos, como por exemplo, a Balada Vibração da Alma, que ocorre uma vez por ano e

reúne grande número de surdos no Brasil (YOUTUBE, 2011).

Ao início da pesquisa, haviam apenas questionamentos e hipóteses sobre a realidade

da musicalização para surdos, e, ao longo do processo, algumas destas perguntas e inferências

foram se confirmando, enquanto outras foram negadas. De forma alguma, intentou-se com

esta pesquisa esgotar-se as possibilidades, ou determinar metodologias rígidas, irrevogáveis,

para a educação dos surdos, mas procurou-se abrir novos horizontes para reflexão dos

profissionais da educação musical e proporcionar a conscientização dos atuais educadores

sobre o nosso dever para com uma educação inclusiva ética e efetiva.

Ficaram evidenciadas aqui algumas das capacidades que permitem ao surdo entender e

fazer música. Estas possibilidades não estão disponíveis apenas aos surdos, mas a todo e

qualquer indivíduo. As abordagens demonstradas nesta pesquisa, sob a contribuição de vários

pesquisadores, têm como desejo transformar a concepção que alguns ouvintes e surdos

possam ter a respeito da música, possibilitando uma abertura que proporcione experiências

significativas e profundas, em contextos cada vez mais diversificados.

A música, como experiência inerente a cada ser humano pode se manifestar e ser

entendida de diversas formas. Cabe-nos, como educadores, buscar oferecer a diversidade aos

nossos alunos, permitindo que a experiência musical seja significativa ao maior número de

pessoas, não importando a existência de qualquer diferença. Esta diversidade corrobora para

que todos os indivíduos experimentem a música de formas cada vez mais inovadoras. Como

GLENNIE defende (2008 apud HAGUIARA-CERVELLINI, 2003), escutar é muito mais do

que perceber o som através de nossa audição, mas é um processo que envolve todo o corpo e

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seus sentidos. Como ouvintes, podemos também usufruir de uma escuta significativa, à

medida que nos abrimos a novos conhecimentos e eliminamos preconceitos. Podemos

experimentar a música através do toque, associado ou não à visão, e perceber novas

dimensões sobre a sua vastidão. Através da musicalização, podemos integrar e ampliar o

nosso conhecimento, maximizando as nossas potencialidades.

Como educadores musicais, cabe-nos o papel de permitir que nossos alunos

descubram e façam o seu próprio conceito do que é a música, algo que lhe seja próprio,

carregado de sentido, ao invés de determinar e limitar o alcance e potencial deles. A música é

uma experiência demasiadamente ampla, para ser definida apenas naquilo que é ou deixa de

ser. Também não podemos perpetuar a estigmatização do surdo ou de qualquer outra pessoa

com deficiência, estabelecendo por eles o que podem ou não fazer. Precisamos permitir que

todo indivíduo vivencie a música e construa seu próprio significado, pois não existe um

conceito fechado. O que a música é para alguém, somente ele mesmo pode definir.

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