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N° 18 - A necessidade da reforma política

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Em sua edição de n° 18, Política Democrática tem como tema cen¬tral o debate sobre alguns aspectos cruciais da reforma política brasi¬leira. Os textos, alguns de caráter acadêmico, produzidos por especia¬listas, como o do professor da UnB, Caetano Araújo, mas também os produzidos no 'calor da hora', como o do jornalista Luiz Carlos Azedo, buscam levantar os elementos mais relevantes de nosso atual sistema político-partidários, destacando suas evidentes fragilidades e as dificuldades de superarmos a inércia do presente modelo.

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A necessidade da Reforma Política

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Fundação Astrojildo PereiraSDS · Edifício Miguel Badya · Sala 322 · 70394-901 · Brasília-DF

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Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.politicademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorCaetano E.P. AraújoEditor ExecutivoFrancisco Inácio de AlmeidaEditor Executivo AdjuntoCláudio Vitorino de Aguiar

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Copyright © 2007 by Fundação Astrojildo PereiraISSN 1518-7446

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2007.Nº 18, julho de 2007202 p.

1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título.

CDU 32.008.1 (05)

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Ficha Bibliográfica

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

A necessidade da Reforma Política

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Sobre a capa

Participando das comemorações do centenário da xilogra-vura, apresentamos em nossa capa e contracapa algumas criativas obras xilográficas de Francisco (Xico) Carvalho.

Nascido em João Pessoa/PB, em 1949, Xico é gravador e es-cultor, autodidata por excelência, filho de família tradicional de gravadores do município de Itabaiana/PB.

Iniciou-se em xilogravura, ainda criança, quando recebeu influência da chamada gravura popular, por meio de traba-lhos de artistas populares nas capas de folhetos de cordel. Xico faz parte do grupo fundador do Clube de Gravura da Paraíba, em 1984, tendo participado de suas principais expo-sições coletivas.

Suas obras podem ser encontradas nos acervos de galerias, museus e colecionadores de arte, no Brasil e no exterior, sendo alvo de estudo por parte de pesquisadores e artistas brasileiros e estrangeiros.

Além de participar, com suas gravuras, da antologia po-ética do famoso poeta paraibano Leandro Gomes de Barros (Editora Universitária da UFPB, 2001), tem ilustrado livros de poesia, além de criar capas para cordéis de inúmeros autores nordestinos.

Utilizando-se da Oficina Jaguaribe, aí ele tem realizado suas mais recentes experiências em cores, o que o faz integrar-se de-finitivamente à gravura contemporânea brasileira.

Leiam, na página 165, o excelente ensaio quase crônica do seu primo, o cineasta, jornalista e também xilogravador Vla-dimir Carvalho, primeiro presidente da Fundação Astrojildo Pereira.

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Sumário

I. ApresentaçãoCláudio Vitorino de Aguiar ........................................................................................................11

II. Conjuntura – A necessidade da Reforma Política

Perspectivas da reforma políticaCaetano Araujo ........................................................................................................................17

Uma reforma sempre adiada Luiz Carlos Azedo ....................................................................................................................30

Sobre o conteúdo da Reforma Política Rubens Otoni ..........................................................................................................................40

III. Observatório Político

O Estado Novo do PT Luiz Werneck Vianna ...............................................................................................................45

Sobre o aquecimento global Sergio Augusto de Moraes ........................................................................................................54

Um país (um mundo) de sinais trocados Marcos Costa Lima ..................................................................................................................62

IV. No compasso das reformas

Colisão de direitos fundamentais no debate sobre aborto Arryanne Queiroz .....................................................................................................................71

Penas alternativas e política pública Márcia de Alencar ....................................................................................................................75

Feminismo e nova esquerda: um diálogo em construção Almira Rodrigues .....................................................................................................................80

V. Batalha das Idéias

Uma busca inglória Iraci del Nero da Costa .............................................................................................................89

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Considerações acerca de um sistema equivocado (cotas raciais nos vestibulares) Fábio Santa Cruz .....................................................................................................................95

Estado Democrático & Segurança PúblicaOscar d´Alva e Souza Filho ....................................................................................................108

Crime, castigo, determinismo socioeconômico João Manoel Pinho de Mello .................................................................................................. 103

VI. Ensaio

A esquerda italiana e o reformismo no século XX Giuseppe Vacca ....................................................................................................................111

VII. Mundo

Sarkozy segundo a ordem das razões Ruy Fausto ........................................................................................................................... 129

ALCA: negociações, impasses e resistências Marcelo Santos ..................................................................................................................... 138

A governabilidade democrática como espaço idôneo para conciliar as políticas econômicas com as políticas sociais Amália D. García Medina ...................................................................................................... 148

O golpe de Gaza: a islamização está chegando Walid Salem .......................................................................................................................... 154

A paz após a tomada de Gaza pelo Hamas Galia Golan .......................................................................................................................... 159

VIII. Vida Cultural

Folhetim da viagem (xilográfica) ao Reino do Primo Xico Vladimir Carvalho ................................................................................................................. 165

IX. Documento – Ano Caio Prado Jr

A revolução agrária não camponesa no Brasil Caio Prado Jr ........................................................................................................................171

X. Memória

João Saldanha Ivan Alves Filho ....................................................................................................................179

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Gramsci, 70 anos depois Gilvan Cavalcanti de Melo ............................................................................................... 182

XI. Resenha

O pensamento livre Luiz Bernardo Pericás ..................................................................................................... 151

Presente na encruzilhada Francisco Alambert ......................................................................................................... 195

Síntese de ritmos Fernando Marques .......................................................................................................... 197

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I. ApresentaçãoCláudio Vitorino de Aguiar

Pós-graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco, professor de História Moderna

e editor-adjunto da Política Democrática

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Em sua edição de nº 18, Política Democrática tem como tema cen-tral o debate sobre alguns aspectos cruciais da reforma política brasi-leira. Os textos, alguns de caráter acadêmico, produzidos por especia-listas, como o do professor da UnB, Caetano Araújo, mas também os produzidos no ‘calor da hora’, como o do jornalista Luiz Carlos Azedo, buscam levantar os elementos mais relevantes de nosso atual sistema político-partidário, destacando suas evidentes fragilidades e as dificul-dades de superarmos a inércia do presente modelo.

Importante destacar que as diversas contribuições referentes à re-forma política, aqui publicadas, foram escritas antes que o plenário da Câmara sepultasse, mais uma vez, nova possibilidade de efetivas mudanças em nosso sistema político-eleitoral. De todo modo, PD não se furtou a destacar, por meio dos ensaios reunidos, os elementos centrais que a reforma política representa para o aprofundamento e ampliação de nosso processo democrático, e os riscos envolvidos em sua não realização.

Na seção Observatório Político, chamamos especial atenção ao agu-do ensaio do professor Luiz Werneck Vianna que trata do ‘Estado Novo do PT’ e seu “projeto pluriclassista” de controle do Estado, ancorado nos movimentos sociais, mormente MST e CUT, transformados em acessórios do poder realizado pelo PT no governo federal. Destaque-se que a visão crítica do Governo Lula revela os profundos aspectos de uma certa concepção de esquerda que se acomodou ao papel de gerente do condomínio estatal, relevando as necessárias mudanças político-sociais em função de seu projeto de poder.

Um outro artigo muito importante apresentado, na mesma seção, trata da cruciante questão ambiental. O engenheiro Sérgio Augusto de Moraes faz um pequeno levantamento histórico da questão em seu ensaio “Sobre o aquecimento global” destacando o impacto represen-tado pelo desenvolvimento do capitalismo, a partir do século XIX, e as profundas transformações havidas na relação homem-natureza e a exacerbação dos aspectos negativos dessa relação que hoje colocam em questão a própria existência da humanidade.

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I. Apresentação

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De suma importância reveste-se o artigo da socióloga e feminista Almira Rodrigues sobre “Feminismo e nova esquerda: um diálogo em construção”, na seção No compasso das reformas, espaço que dedica-mos às questões e temas que necessitam de novas abordagens e/ou práxis, buscando superar os impasses que persistem no plural campo da esquerda.

Outro ensaio muito importante, que trazemos ao conhecimento de nossos leitores, é de autoria do professor Ruy Fausto, um dos mais importantes estudiosos do marxismo, no Brasil, autor de obras que se tornaram referência sobre o tema. Escrito originalmente em francês, o artigo comenta a vitória de Nicolas Sarkozy, nas eleições presidenciais francesas, e analisa o discurso do candidato conserva-dor quando de sua posse. Centrando suas considerações na ‘apro-priação’ de temas e referências clássicas da esquerda por parte dos conservadores, aponta para as implicações teórico-políticas de tal atitude, para a compreensão dos aspectos ideológicos implícitos na luta política contemporânea.

O presente número, além de conter outros artigos instigantes na seção Batalha das idéias, de que são exemplos “Uma busca inglória”, do pensador paulista Iraci del Nero da Costa e “Estado Democrático & Segurança Pública” do professor Oscar d’Alva e Souza Filho, traz, em uma nova seção, Ensaio, excepcional texto do italiano Giuseppe Vacca, intelectual que preside Gramsci e é dirigente dos Democra-tici de la Sinistra, no qual analisa o longo processo de discussão da esquerda reformista italiana em busca de melhor adequar-se à con-temporaneidade.

Destaque-se, por fim, a homenagem ao político e intelectual italia-no Antonio Gramsci, maior referência teórica da esquerda democrá-tica, nos setenta anos de sua morte, em artigo assinado por Gilvan Cavalcanti. A PD também homenageia dois brasileiros militantes, que dignificaram a política como exercício de discussão e conhecimento da realidade, bem como de transformação das condições da vida em sociedade. Comprometidos, ambos, com a luta pelo socialismo, dedi-caram suas vidas, cada um à sua maneira, ao desafio de transformar uma nação marcada pelo mandonismo de suas classes dirigentes em uma nação de todo o povo, sem privilégios nem preconceitos. Referi-mo-nos a Caio Prado Jr. e João Saldanha.

De Caio Prado relembramos, sobretudo para as novas gerações, uma curta passagem de seu livro A revolução brasileira, publicado em 1966, pela Editora Brasiliense, que trata da ‘questão campone-sa’ discutindo a singularidade do capitalismo brasileiro, enfrentan-

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Apresentação

do a questão teórica, e equivocada, do feudalismo e antiimperialismo sustentada então por largas parcelas do PCB. Adotando uma outra perspectiva, Caio Prado não só inovava a questão do papel do mundo agrário e sua importância no desenvolvimento do capitalismo brasilei-ro, como acentuava uma nova abordagem da própria reforma agrária, tida então como elemento fundamental de transformação das relações sociais no campo e de uma nova relação do mundo urbano e rural, na definição de uma nova correlação de forças políticas.

Quanto a João Saldanha, em um carinhoso artigo do historiador e escritor Ivan Alves Filho, é lembrado seu percurso de formação e mili-tância no PCB, desde sua pequena Alegrete, no interior do Rio Grande do Sul, até o Rio de Janeiro, então capital da República. Jornalista esportivo que marcou época, destacou-se como técnico de futebol por imprimir nos clubes em que atuou, inclusive na própria seleção brasi-leira, nas eliminatórias da Copa de 1970, um estilo marcado por uma técnica sofisticada e vigor físico, que se celebrizou como ‘as feras de Saldanha’. Como afirma o autor, “pode-se dizer que poucos jornalistas estiveram em tão profunda sintonia com a alma popular” como ele.

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II. ConjunturaA necessidade da reforma política

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Autores

Caetano AraujoProfessor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e consultor legislativo do Senado Federal.

Luiz Carlos AzedoJornalista, observador e comentarista político.

Rubens OtoniDeputado federal pelo PT-GO e membro da Comissão Especial de Reforma Política que existe na Câmara Federal, desde 1995.

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Perspectivas da reforma política

Caetano Araujo

HistóricoA discussão sobre reforma política no país é repleta de singula-

ridades. Primeiro, teve início com a Constituição de 1988. De certa maneira a nova Carta – ao invés de estipular um sistema de regras acabado – impôs a continuidade da discussão ao prever o plebiscito sobre regime e sistema de governo. Passado o plebiscito, a experiência com o funcionamento das regras, acumulada a cada eleição, estimu-lou o surgimento de propostas de reforma e sua discussão.

Em segundo lugar, acontece em duas arenas diferentes, embora em permanente comunicação: o Congresso Nacional e a comunidade acadêmica.

Em terceiro lugar, desenvolveu uma dinâmica regular. Depois de cada eleição, no início de cada governo, o tema volta à discussão. O Legislativo despende um esforço significativo na formulação e tramita-ção de propostas, mas a votação final em plenário é sempre obstruída. A coligação reformista, mesmo com o apoio do Executivo, não conse-gue aprovar a reforma. Os conservadores, por sua vez, não conseguem impedir o retorno da questão à pauta. O equilíbrio de forças que pro-voca esse vai-vem perdura há pelo menos 12 anos.

Finalmente, o debate caracteriza-se por acumular enormes disso-nâncias cognitivas e valorativas. Partidários e opositores da reforma divergem radicalmente não apenas sobre benefícios e custos das re-

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II. Conjuntura

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gras em discussão, na perspectiva da democracia, mas sobre questões de fato. Problemas que são importantes para uns, simplesmente não existem para outros.

Mas afinal, qual o cerne da controvérsia? Quais os argumentos em jogo? Um bom começo de resposta é o exame da trajetória da discus-são no Congresso Nacional.

Na Legislatura 1995-1999, por inspiração da bancada governista, foram criadas comissões especiais para analisar a matéria e propor alternativas, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. A Co-missão da Câmara não concluiu seus trabalhos. A do Senado, após inúmeros debates, nos quais foram ouvidos representantes do Poder Executivo, da Justiça Eleitoral e de partidos políticos, concluiu, em 1998, pela apresentação de uma série de sugestões, na forma de Pro-postas de Emendas à Constituição e Projetos de Lei do Senado1.

As alterações mais importantes propostas pela Comissão eram: a substituição do sistema de voto proporcional em listas abertas pelo sistema conhecido como distrital misto; a proibição de coligações nas eleições proporcionais; a instituição da fidelidade partidária, ou seja, a previsão de perda de mandato para o parlamentar que mudasse de partido ou incorresse em falta disciplinar grave; o estabelecimen-to de prazos mais dilatados para a filiação e o domicílio eleitoral de candidatos; o voto facultativo; o financiamento público exclusivo de campanha; e a cláusula de barreira, regra que estipulava a exclusão dos partidos, que não atingissem o desempenho mínimo, do rateio do tempo de propaganda no rádio e na televisão.

O diagnóstico da Comissão, que fundamentava esse conjunto de propostas, tinha como foco a constatação da “fragilidade da vida par-tidária brasileira”, fruto de uma legislação que enfraqueceria os par-tidos, de um lado, e, de outro, reforçaria a atuação individual de per-sonalidades, as quais tenderiam a uma situação de independência frente aos partidos.

O exame do conjunto de propostas revela três problemas distintos – cuja solução era procurada –, todos eles derivados da fraqueza dos par-tidos e da excessiva personalização das eleições. Em primeiro lugar, a regra produziria, na avaliação da Comissão, um problema de represen-tatividade. Haveria uma separação radical entre o período de campanha

1 Importa lembrar que além dos projetos de reforma amplos, resultado dos traba-lhos dessas comissões, deputados e senadores apresentaram, constantemente, um número expressivo de propostas pontuais de alteração das regras eleitorais e par-tidárias ao longo do período. Em 2004, Santos (2004) localizou 266 proposições em tramitação sobre reforma política.

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Perspectivas da reforma política

e eleição e o período posterior à posse dos eleitos, ao ponto de as ações dos representantes ganharem autonomia absoluta frente às intenções dos representados. Em outras palavras, os votos dos eleitores teriam conseqüências por ele não previstas e até mesmo indesejadas.

O exemplo mais claro de distorção da vontade do eleitor é a migra-ção de cerca de um terço dos deputados para outras legendas no de-correr de seus mandatos. O movimento ocorre, basicamente, de parti-dos da oposição para partidos da situação e ganha em intensidade nos meses posteriores à eleição de um novo presidente. Esse fato ganha em significação quando constatamos que muito poucos deputados conseguem sua eleição exclusivamente com os próprios votos. Quase todos dependem dos votos dados a seus partidos e coligações. A mu-dança de partido afeta, portanto, não apenas os eleitores do deputado migrante, mas todos os eleitores do seu partido. Todos contribuíram para a eleição do deputado, numa campanha articulada com as siglas e candidaturas identificadas com a oposição e todos serão representa-dos nos quatro anos seguintes por um deputado da situação.

A liberdade de coligação no sistema de voto proporcional com listas abertas é vista como um mecanismo adicional de distorção da vontade do eleitor. Nesse sistema, o cidadão sabe em quem vota, mas não sabe a quem elegerá. Pode ser outro candidato menos votado do mesmo partido, mas a liberdade de coligação permite que seja um candidato de outro partido, até mesmo de um partido situado em campo oposto na política nacional, embora coligado no plano local. Para citar um exemplo extremo: votos dados a uma campanha “pacifista”, centrada no controle da circulação e do uso de armas de fogo, podem, a de-pender do arranjo da coligação local, eleger um candidato “belicista”, defensor do direito irrestrito ao porte de armas, da redução da maiori-dade penal, da pena de morte.

Para enfrentar o problema da representatividade, a Comissão pro-pôs a mudança do sistema eleitoral, a proibição de coligações nas eleições proporcionais e a instituição da fidelidade partidária, para impedir a mobilidade de parlamentares entre os partidos.

Em segundo lugar, a regra teria o efeito de criar condições de com-petição desigual entre os candidatos. No ambiente de eleições por ela criado, o peso do poder econômico estaria livre para atuar e influir decisivamente no resultado das eleições. Haveria necessidade de uma nova regra que assegurasse, ao mesmo tempo, eqüidade e transpa-rência no financiamento das campanhas. A Comissão terminou, como vimos, por propor o financiamento público exclusivo de campanha.

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II. Conjuntura

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O terceiro problema alvo das propostas da Comissão refere-se à go-vernabilidade, ou seja, às possibilidades de o Executivo construir uma sólida maioria no Congresso, capaz de garantir o apoio indispensável à consecução de sua agenda. Na situação presente, a governabilidade seria ameaçada, simultaneamente, pelo excesso de partidos e por sua fraqueza. Muitos partidos tornam complicadas as negociações para a formação da maioria. Partidos fracos tornam-nas insuficientes, uma vez que frações e grupos intrapartidários têm a capacidade de reivin-dicar uma negociação adicional em separado. Na visão da Comissão, a redução do número de partidos seria obtida com a cláusula de bar-reira, e seu fortalecimento, com a mudança do sistema eleitoral e com a fidelidade partidária.

Ao final da legislatura, em 31 de janeiro de 1999, todas as proposi-ções originadas da Comissão foram arquivadas. Na legislatura seguin-te, as lideranças dos partidos da base governista decidiram alterar sua estratégia. Como a mudança radical, em bloco, havia-se revelado de difícil aceitação, o caminho adequado seria a mudança paulatina, com ênfase nas mudanças passíveis de serem apresentadas na forma de projeto de lei. Como resultado dessa estratégia, diversos projetos foram aprovados pelo Senado Federal e encaminhados à Câmara dos Deputados. Os mais importantes foram: a proibição de coligações nas eleições proporcionais, a cláusula de barreira, a criação da federação de partidos, o voto proporcional em listas fechadas e o financiamento público exclusivo de campanhas.

No início de 2002, a reforma política voltou à pauta do Congresso Nacional, mais uma vez por inspiração dos partidos governistas. Nova Comissão com essa finalidade foi formada na Câmara dos Deputados, e seu relatório foi apresentado pela Comissão ao final do ano. Os pro-jetos aprovados pelo Senado na legislatura anterior tiveram influência significativa nas conclusões da Comissão.

O diagnóstico, de início, foi em tudo semelhante. Os problemas cruciais do sistema eleitoral brasileiro foram assim apresentados no relatório: “a deturpação do sistema eleitoral causada pelas coligações partidárias nas eleições proporcionais; a extrema personalização do voto nas eleições proporcionais, da qual resulta o enfraquecimento das agremiações partidárias; os crescentes custos das campanhas eleitorais, que tornam seu financiamento dependente do poder eco-nômico; a excessiva fragmentação do quadro partidário; e as intensas migrações entre as legendas, cujas bancadas no Legislativo oscilam substancialmente ao longo das legislaturas”.

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Perspectivas da reforma política

As principais propostas de mudança contemplavam a instituição do voto em listas partidárias pré-ordenadas, a criação das federações partidárias, o financiamento público exclusivo de campanha e a cláu-sula de barreira. As principais diferenças em relação à proposta origi-nal do Senado foram a opção pelo voto em listas fechadas e a criação da figura da federação partidária, como meio de atenuar a proibição de coligações nas eleições proporcionais. Com a federação, a coligação eleitoral deve ser mantida após as eleições por um período mínimo de três anos. Mesmo essas diferenças, no entanto, constavam de projetos encaminhados anteriormente pelo Senado.

O projeto da Comissão enfrentou forte resistência, principalmen-te entre partidos da base governista. Pronto para ir a plenário, foi encaminhado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, cuja manifestação foi solicitada por requerimento assinado pelos líderes do PTB, PP, PL e PMDB, aos quais se somou, no último momento, o líder do PT. A manobra protelatória foi resultado evidente da pressão dos demais partidos sobre o governo. Nessa situação, a opção foi sacrificar os esperados benefícios futuros da reforma em prol da manutenção da base de apoio presente na Câmara e no Senado.

Na última década, portanto, a discussão da reforma política nas duas Casas do Congresso Nacional apresentou uma linha de conti-nuidade clara, em termos de diagnóstico, argumentos e propostas de mudança. Apesar disso, as propostas não prosperaram. É preciso, portanto, qualificar os campos políticos separados pelas propostas de reforma. Quem apoiou a reforma, reiteradamente, na década que pas-sou? Quem a ela se opôs?

Parece claro, de início, o interesse do Poder Executivo na promo-ção das mudanças. Vimos que essa foi uma preocupação constante das lideranças do governo Fernando Henrique Cardoso, assim como do Presidente Lula, no primeiro ano de seu governo. Em segundo lu-gar, parece igualmente claro que as iniciativas reformistas conseguem aprovação nas Comissões criadas para esse fim e fracassam na tenta-tiva de chegar ao plenário. Ou seja, as forças da conservação da regra fazem-se ouvir no momento da decisão final.

Qual o critério a dividir os partidos nessa questão? A dicotomia situação/oposição não parece útil, uma vez que, no atual governo e no anterior, havia situacionistas e oposicionistas nos dois lados da questão. Uma suposta polarização ideológica tampouco parece eficiente para compreender a situação, pois partidos e parlamen-tares de direita e de esquerda, qualquer que seja a definição utili-

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II. Conjuntura

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zada, encontram-se igualmente entre os apoiadores e os oposito-res da reforma.

A posição dos partidos no episódio do requerimento que evitou a votação em plenário do projeto de reforma da Câmara é um bom in-dicador da divisão que vigora nessa questão2. No primeiro momento, fora do requerimento, ou seja, favoráveis à reforma, estavam PSDB, PT, PFL, PSB, PDT e PPS. Assinavam o requerimento, ou seja, preten-diam obstruir a reforma, PMDB, PTB, PP e PL. Qual o traço comum a esses partidos em cada um dos campos? A meu ver, a relação com o Poder Executivo. Partidos favoráveis à reforma haviam apresenta-do ou trabalhado, nas eleições anteriores, candidaturas a Presidente da República. Partidos contrários à reforma não haviam cogitado em candidatos próprios a presidente. No máximo ofereceram candidatu-ras a vice-presidente. Um grupo de partidos, portanto, argumentava a partir da perspectiva de Executivo, ou seja, da posição de quem de-manda apoio no Legislativo. Outro grupo descartava essa perspectiva e encarava a questão do ponto de vista de quem oferta esse apoio. As mesmas propostas eram vistas por um grupo como fortalecimento dos partidos e avanços democráticos; para outros, como a ditadura ilegítima de burocracias partidárias sobre mulheres e homens “bons de voto”.

Argumentos, contra-argumentos e vazios no debateUma segunda questão diz respeito ao peso dos argumentos que

cada lado levanta. É digno de nota o fato de diagnóstico, argumen-tos e propostas de mudança, tal como formulados no âmbito do Con-gresso Nacional, serem objeto de polêmica também acirrada fora dele. Cientistas políticos, assim como outros acadêmicos e analistas, têm-se manifestado repetidamente sobre o tema, como mostra a série de coletâneas publicadas nos últimos anos especificamente sobre refor-ma política (FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER, 2003; BENEVIDES, VANUCHI e KERCHE, 2003; SOARES e RENNÓ, 2006; ANASTÁSIA e AVRITZER, 2006), sua temática geral (AVELAR e CINTRA, 2004), as-sim como artigos isolados (COELHO, 2006). A divergência sobre todas as propostas aqui relatadas é profunda e não se restringem à oportu-nidade das medidas ou ao caminho da transição para elas: diverge-se sobre o diagnóstico dos problemas, a necessidade das medidas e até sobre seu caráter democrático ou autoritário. Antes de recapitular su-

2 Coelho (2006) discute o histórico do projeto de reforma da Câmara dos Deputados e a posição dos diferentes partidos sobre ele.

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Perspectivas da reforma política

cintamente os argumentos de cada parte, vale assinalar uma primeira lacuna no debate.

Lacuna 1: a posição dos atores políticos a respeito da reforma, posição que, como vimos, mantém uma relativa regularidade nos últi-mos 12 anos, tende a não ser considerada.

Diversos autores tendem, em medida diversa, a subestimar as razões desses partidos e parlamentares, ao invés de considerá-las parte do problema, um dado a ser incluído na pesquisa. Assim, os defensores do predomínio completo do Executivo sobre o Legislativo, da Mesa e das lideranças sobre os parlamentares têm dificuldade em lidar com o evidente interesse do Executivo nas reformas. Esse interesse precisa, nessa perspectiva, ser ignorado ou desqualificado como uma espécie de ambição ditatorial de presidentes que já detém todo o poder possível.

Do outro lado, autores que partilham das críticas comuns ao siste-ma e encampam propostas de reforma não refletem sobre o caráter da resistência conservadora, assimilada implicitamente à sobrevivência de padrões arcaicos da política brasileira.

Em ambos os casos, o problema parece estar na tendência à in-serção do cientista no debate no mesmo plano que os demais atores. A questão de quem defende qual ponto perde importância face à com-paração entre as propostas apresentadas e os modelos normativos de democracia implícitos nas considerações de cada autor.

Retornemos aos argumentos. Os três grandes problemas do sistema, tal como apontados pelos reformistas, valem como roteiro dessa discus-são, uma vez que todas as propostas partem desse diagnóstico: represen-tatividade, eqüidade na competição eleitoral e governabilidade.

Há um problema de representatividade no sistema político brasilei-ro? A migração partidária ao sabor da conveniência eleitoral de cada parlamentar resulta, como visto, numa Câmara dos Deputados muito diferente daquela que saiu das urnas (Santos, 2006). Na prática, a in-tenção de voto oposicionista de milhões de eleitores é convertida, sem consentimento ou aviso prévio, em apoio ao governo. Defensores da regra, por sua vez, podem argumentar que a troca de partidos é feita às claras, sob as vistas dos eleitores, que, ao cabo de quatro anos, irão avaliar esses parlamentares e punir com a recusa do voto aqueles que não tenham correspondido a suas expectativas.

Na verdade, mais importante que discutir as opiniões e posições favoráveis e contrárias seria tentar verificar o que pensam os próprios eleitores acerca do sistema. Poucas pesquisas de opinião perguntam

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II. Conjuntura

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especificamente sobre a troca de partidos e a questão do pertencimen-to do mandato. Muitas, inclusive aquelas produzidas e divulgadas pelo Latinobarómetro, registram, ano a ano, a avaliação desfavorável dos eleitores brasileiros sobre a política e seus representantes. De modo geral, a política é mal-vista e, no seu mundo, a visão sobre Legislativo, partidos e parlamentares é ainda mais negativa que aquela sobre o Executivo. É difícil deixar de levantar a hipótese de que essa percep-ção amplamente majoritária tem forte relação com as evidências coti-dianas de inconseqüência do voto dado.

Lacuna 2: a literatura discute a massa de dados acumulada sobre descrédito da política e dos políticos a partir da hipótese de insatis-fação com a democracia, sem testar a hipótese de insatisfação com a regra da representação.

A linha predominante, desde o trabalho de Moisés (1995), aponta para a fragilidade da cultura democrática no Brasil3. O trabalho com a hipótese alternativa permitiria separar o que nos dados se deve a um suposto déficit em cultura democrática do que poderia ser uma demanda reprimida por reforma política.

Há um problema de eqüidade nas condições de competição eleito-ral? Em outras palavras, o peso do poder econômico seria, entre nós, muito superior ao verificado em outros países? Há evidência forte nes-se sentido. O cientista político David Samuels (2003 a e b) comparou os gastos eleitorais declarados no Brasil e nos Estados Unidos, na década de 1990. A soma dos gastos de todos os candidatos foi igual ou superior no Brasil, em torno dos U$ 3,5 bilhões. A leitura desse dado exige algumas considerações. Em primeiro lugar, vivia-se na época uma quase paridade entre as moedas real e dólar, paridade que pode ter inflacionado os gastos brasileiros. No entanto, é preciso ver que os gastos americanos incorporavam a compra de tempo de televisão, assegurado gratuitamente no Brasil, além da campanha nas prévias, mecanismo que não existe entre nós. O desconto desses dois fatores nos gastos americanos faria aumentar em muito a diferença em favor do Brasil. Finalmente, se o gasto for relacionado à população, ao nú-mero de eleitores ou ao montante do PIB, muito menores no Brasil, nossa vantagem aumentaria ainda mais.

Tudo isso com relação aos gastos declarados. Sabemos, no entan-to, que a prática da subnotificação de gastos é comum nas eleições brasileiras, onde é conhecida como caixa 2. Variam muito as estima-tivas dos gastos não declarados no Brasil, entre duas e oito vezes o

3 Santos (2000) e Araújo (2000) discutem as características da cultura política brasi-leira a partir de pesquisa realizada no Distrito Federal.

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Perspectivas da reforma política

montante dos gastos declarados. Os poucos indícios que vêm a pú-blico apontam em favor da diferença maior. Vimos recentemente a divulgação na imprensa de gravações telefônicas em que um deputado recém-eleito declarava gastos de R$ 5 milhões, apenas 8% da quantia oficialmente assumida. Em todo caso, é razoável supor que o caixa 2 no Brasil seja superior ao norte-americano, o que faria pender a com-paração dos gastos ainda mais a nosso favor.

Quais as razões de as eleições no Brasil serem tão caras? A primei-ra delas deriva diretamente da regra eleitoral. No sistema de voto pro-porcional em listas abertas, cada candidato torna-se o centro de uma campanha autônoma, em competição aberta com candidatos de parti-dos adversários e, principalmente, com candidatos do próprio partido, com quem disputa o voto na mesma faixa de opinião. Cada candidato, portanto, é um centro de arrecadação de recursos e gastos de campa-nha. Os partidos, por sua vez, são estimulados pela regra a lançarem o maior número de candidatos possível, para aumentar o percentual de votos a conseguir e, com ele, o número de cadeiras. Temos cerca de 20 partidos registrados, e cada qual pode apresentar um número de candidatos igual a 1,5 vezes o número de vagas em disputa. As coliga-ções diminuem esse número, mas, em compensação podem apresen-tar ainda mais candidatos. Para simplificar, vamos supor que não se formem coligações. O número total máximo de candidatos à Câmara dos Deputados seria, nessa situação de 513 x 1,5 x 20, ou seja, de 15.390 candidatos.

A segunda razão é o tamanho das circunscrições eleitorais. Um nú-mero grande de candidatos compete em circunscrições (as unidades da Federação) extensas e populosas. Qualquer unidade adicional de recur-sos de campanha permite a ampliação da campanha para um municí-pio novo e pode produzir os votos determinantes para a vitória.

Sistemas eleitorais alternativos, por comparação, tendem a produ-zir eleições mais baratas. No voto proporcional com listas fechadas, a unidade da campanha, de arrecadação de recursos, portanto, é o partido, não o candidato. No nosso caso teríamos, no máximo, 20 lis-tas por estado. No voto distrital, as circunscrições são menores e há, também, apenas um candidato por partido.

A relação entre custos de campanha e sistema eleitoral levou as Comissões da Câmara e do Senado a proporem o financiamento pú-blico com a mudança da regra eleitoral. Na vigência da regra atual, o financiamento público seria insuficiente e tenderiam a ser eleitos aqueles candidatos que aceitassem o expediente do caixa 2.

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Lacuna 3: o esforço de pesquisa tem ignorado a questão da lógica dos gastos eleitorais.

É verdade que há boas razões para tanto. Candidatos e partidos não falam sobre caixa 2 e poucos países exigem o registro de doações e gastos eleitorais. O foco da discussão, portanto, tem sido o financia-mento e não o custo das campanhas. Apesar disso, contudo, pesqui-sas podem ser realizadas. Um exemplo de especulações antagônicas: Samuels sugere que o sistema distrital produziria campanhas mais caras, uma vez que a restrição do universo de eleitores e a competição acirrada estimulariam o investimento eleitoral sem limites. Alternati-vamente, poder-se-ia argumentar que a restrição do universo de elei-tores faria decair o patamar a partir do qual a unidade de investimento passaria a produzir resultados eleitorais decrescentes. No distrito, ao contrário do que ocorre no Brasil, o candidato que produzir 20 peças de propaganda por eleitor não terá condições maiores de vitória que aquele que, por exemplo, produzir 5.

Finalmente, vamos ao problema da governabilidade. Neste ponto, a polêmica é ainda mais acirrada. Afinal, o presidente da República encontra ou não problemas na formação e manutenção de sua base de apoio no Congresso Nacional?

Há todo um leque de respostas a essa pergunta. Nos pólos, os argumentos extremos que afirmam, de um lado, a virtual impossi-bilidade de formação de maioria a um custo aceitável, na linha das conclusões das diversas Comissões encarregadas da questão da refor-ma política, e, de outro, a eficiência do sistema, do ponto de vista da formação da maioria governista, em função dos poderes do presidente da República combinados com as regras de funcionamento das Casas do Congresso Nacional.

No meio acadêmico, Barry Ames representaria a posição de críti-ca mais contundente ao sistema político brasileiro, sob esse aspec-to (apud RENNÓ, 2006). Na sua visão, Poder Executivo e líderes dos partidos governistas encontram-se na posição de procurar, constan-temente, o apoio dos parlamentares para a agenda do governo. Esse apoio é obtido pontualmente, muitas vezes caso a caso, em troca de liberação de emendas orçamentárias e de cargos no governo. O sis-tema consumiria um esforço significativo para apresentar resultados pífios em termos de mudança. O grande exemplo seria o governo de Fernando Henrique Cardoso que, a despeito de contar com uma base de apoio formal de até 70 % da Câmara dos Deputados, teve enorme dificuldade na aprovação de sua agenda de reformas.

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No outro extremo encontra-se a posição de diversos cientistas po-líticos brasileiros de peso (LIMONGI, 2006). Para eles, os dados dis-poníveis mostram que o Congresso Nacional não constitui empecilho algum para a aprovação da agenda do governo. A grande maioria da legislação aprovada é de iniciativa do Executivo e cerca de 70 % de suas propostas são aprovadas. Raros são os casos de rejeição pelo legislativo de propostas do Executivo. Conclusão: as coalizões parti-dárias de apoio ao governo existem e funcionam; os parlamentares seguem disciplinadamente as orientações de seus líderes; o siste-ma assemelha-se ao parlamentarismo e funciona tão bem quanto os melhores de seus exemplos; a reforma política, portanto, não é necessária.

As duas posições dão ênfase, como assinala Rennó, a elementos diferentes do sistema político. Os críticos assinalam os elementos des-centralizadores, a multiplicação de atores dotados de capacidade de veto, o custo do apoio conseguido, a necessidade de renovar esse apoio em diferentes momentos, o poder dos parlamentares de direcionar o conteúdo das propostas originadas do Executivo e de impor sobre ele seu poder de veto. Aqueles que afirmam o bom funcionamento do pre-sidencialismo no Brasil, por sua vez, enfatizam seus elementos cen-tralizadores, os poderes do presidente, a centralização na organização dos trabalhos das Casas do Congresso, ou seja, o poder da Mesa e dos líderes na formação da pauta. Observam o resultado e não questio-nam os meios utilizados para chegar a eles. Nas palavras de Limongi (2006): “A aprovação dos projetos presidenciais é fruto do apoio siste-mático e disciplinado de uma coalizão partidária”, uma vez que “par-lamentares seguem as orientações de seus líderes”.

Outras lacunas aparecem nessa discussão. Do ponto de vista da-queles que enfatizam as dificuldades da formação da coalizão gover-namental, seu custo político, que levam a sério, portanto, o discurso reformista do Poder Executivo, o ponto a ser explicado é a situação pré-1964.

Lacuna 4: dada a mesma regra eleitoral, como explicar a passagem da situação de indisciplina partidária para a de disciplina atual?

Ou seja, se a alegada concentração de poderes nos líderes, de-corrente de mudanças no funcionamento interno do Legislativo não explica a mudança, que outro fator a explicaria?

Uma possibilidade de investigação reside em outra mudança, posta pela Constituição de 1988: o voto do analfabeto. Lembro que em 1945 participaram da eleição 6 milhões de eleitores, 13% da população. Em 1960, foram 15,5 milhões de eleitores ou 22% do total. Hoje temos

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120 milhões de eleitores sobre 188 milhões de habitantes, ou seja 63% do total. No interregno democrático anterior a 1964, a maioria do eleitorado vivia no campo e tinha seu voto sujeito às redes de clientela locais. O eleitorado urbano era pequeno e exigia pouco investimen-to eleitoral relativo dos candidatos ao Legislativo vencedores. Hoje, a maioria do eleitorado é urbana e pode escolher o objeto de seu voto ou engajamento4. Em síntese, para se elegerem, deputados não precisa-vam, antes de 1964, de controle sobre cargos, liberação de emendas, acesso a verbas outras, ou seja da benevolência do Executivo, com a premência de hoje.

Se essa perspectiva demonstrar algum fundamento nos dados, teríamos uma situação interessante: avanços democráticos inegá-veis, como o fim da imposição do bipartidarismo e o sufrágio univer-sal, revelam vulnerabilidades do sistema eleitoral não percebidas na situação anterior.

Por outro lado, na perspectiva dos que defendem a facilidade do Executivo, os pontos a explicar são outros.

Lacuna 5: como é possível que os líderes consigam controlar os votos dos liderados e simultaneamente não consigam controlar a per-manência desses liderados no partido?

Qual a força desses partidos que age seletivamente e deixa es-capar o principal, ou seja, a manutenção dos deputados na sigla? A hipótese alternativa seria a força de gravidade do governo, que acio-naria o remanejamento partidário e alocaria os novos apoiadores em partidos do governo. Nessa linha, deputados não apóiam o governo porque recebem incentivos de seus líderes, mas recebem incentivos do governo para deslocar-se para aquela sigla ou nela permanecer e votar com os líderes.

Lacuna 6: qual a importância dos incentivos nas mãos dos líderes, tais como participação em comissões e relatorias de projetos, num quadro de amnésia eleitoral comprovada do brasileiro?

Ou seja, quando o eleitor não se recorda do nome do seu candidato (ALMEIDA, 2006), como iria se lembrar de projetos por ele apresenta-dos, relatados ou de sua participação em comissões?

4 A título de ilustração: Marco Antônio Coelho, militante desconhecido do PCB, ele-geu-se deputado federal pela Guanabara, em 1962, pelo PST, em coligação com o PSD. A campanha durou apenas 15 dias e foram usados 300 mil exemplares de um único panfleto. Marco Antônio conseguiu 22 mil votos e conquistou a segunda vaga da coligação. O ponto é este: se o patamar de votos necessários à eleição é esse, candidatos que não contam com meios de campanha adicionais fornecidos pelo executivo permanecem competitivos.

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Perspectivas da reforma política

Este artigo procurou mapear a discussão sobre reforma política, num momento em que a questão ganha atualidade, com a votação na Câmara dos Deputados das propostas apresentadas pela Comissão Especial. Mais uma vez, as propostas caminham para a derrota. Uma vez que os problemas do sistema não dão sinal algum de solução, é de se prever o reinício do ciclo, com a discussão e votação no médio prazo de uma nova leva de propostas, talvez com foco na linha que aparenta encontrar menor resistência entre deputados e senadores: ao invés das listas fechadas, alguma forma de voto distrital misto.

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Uma reforma sempre adiada1

Luiz Carlos Azedo

Deputados e senadores da República devem uma resposta à so-ciedade. Por que os escândalos envolvendo desvio de recursos da União, dos estados e municípios quase sempre são prota-

gonizados por parlamentares? É uma pergunta que se repete a cada legislatura e nunca é respondida. E arrasta para a lama os políticos, os partidos e a política propriamente dita.

É óbvio que isso não é bom para a democracia. Quem mais perde com a desmoralização do Congresso e o desgaste do Judi-ciário – obrigado a desagradar à opinião pública para assegurar o princípio da presunção da inocência – é a própria sociedade. Nada garante também que o Executivo funcionará melhor com a desmoralização da política. Acabará tutelado pelo Ministério Pú-blico, devassado pela Polícia Federal. O “guardião”, moderno sis-tema digital de espionagem eletrônica, é capaz de grampear si-multaneamente centenas de ligações telefônicas e mensagens pela internet, mas não substitui o sistema político representativo. O velho patrimonialismo brasileiro, descrito por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, por mais arraigado que esteja no comportamento dos políticos, tem dias contatos. Não só pelo fato de que vivemos numa sociedade mais moderna, sob uma ordem política democrática. Mas também pela conjugação de outros três fatores: os novos meios de comunicação, que desnudam a atuação dos políticos em tempo real; os recursos tecnológicos disponíveis para o controle financeiro e fiscal, que fazem a arqueologia dos des-vios de recursos públicos; e o surgimento de instituições capazes de defender o Estado com certa eficácia, como a Controladoria Geral da União, a Receita Federal, a Polícia Federal e, sobretudo, o Minis-tério Público.

Por que, então, o velho patrimonialismo é tão atual, com sua le-gião de “homens cordiais”, que perambulam pelo Congresso, finan-

1 Colagem de artigos publicados no jornal Correio Braziliense, com expressa permis-são do seu autor. Em dois momentos em que se eliminam algumas palavras a edito-ria utiliza (...) já que se referem a fatos datados.

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Uma reforma sempre adiada

ciam campanhas e mimam os políticos? A cultura política brasileira do pós-guerra, cujo ápice foi o glamour do governo “bossa nova” de Juscelino Kubitschek, foi resultado de um jogo de oposições e con-trastes, que parecia impedir o dogmatismo e promover soluções mais dialéticas. Mas desaguou na crise de 1964, no regime militar. Agora, mais de vinte anos depois da eleição de Tancredo Neves, esse legado exige uma apreciação crítica para separar o joio do trigo. Porque a cul-tura política brasileira ainda hoje busca sua identidade naqueles anos 1950. É o flerte com o populismo, o desenvolvimentismo e o transfor-mismo patrimonialista, a partir da simbiose entre negócios, atividade parlamentar e gestão administrativa. Não há a menor chance de isso dar certo, pois se trata de um padrão esgotado, que prende o país ao passado e ao atraso.

É por isso que a atual legislatura (...) está na berlinda. Outro es-cândalo envolve os políticos com desvio de recursos públicos, super-faturamento e fraudes. As investigações se assemelham à pesca com tarrafa. É só esperar o cardume e jogar a rede, que vem de tudo, do badejão ao peroá. Agora, para o cidadão, quase todos os políticos são suspeitos, até que se prove o contrário. A culpa é deles mesmos, que construíram um sistema de financiamento de campanha eleitoral vi-ciado, onde a eleição depende de “estruturas”, de contratos e obras. É legítimo que parlamentares disputem posições de mando no Executivo e fatias dos orçamentos da União, dos estados e dos municípios para beneficiar seus eleitores. Mas não é legítimo que o façam para apare-lhar e o serviço público financiar suas campanhas, pagar as velhas dívidas eleitorais. Muito menos para formar patrimônio e enriquecer.

Para sair momentaneamente da berlinda, os políticos costumam cortar na própria carne. Basta escolher o colega com mais cara de mau para a degola. Mas isso não resolve o problema. Outros escândalos surgirão, enquanto outros esquemas existirem. É só jogar a tarrafa, que eles aparecem. A resposta a ser dada à sociedade é uma reforma política que fortaleça os partidos, melhore a qualidade da representa-ção e garanta o financiamento público das campanhas mais baratas. A outra alternativa seria a solução americana: quem quiser misturar negócios com a política tem que fazer tudo às claras e, depois, enfren-tar as conseqüências eleitorais de servir a determinadas empresas e não ao bem comum dos cidadãos.

É a luta pelo poderPor que a reforma política, (...) não começa logo a ser votada? A

resposta é simples: porque mexe com as estruturas de poder, ou me-

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lhor, com a forma pela qual se estrutura nossa ordem democrática. E esse é um problema complexo, ainda mais no Brasil, onde a vida repu-blicana teve pelo menos duas grandes interrupções (a revolução de 30, que gerou o Estado Novo; e o golpe de 1964, que manteve os militares no poder por duas décadas). No caso atual, a reforma política tem dois aspectos complicados, um aberto e outro velado.

A questão mais transparente em discussão na Câmara é o sistema eleitoral. Fidelidade partidária, financiamento público de campanha e fim das coligações são temas relativamente simples, mas que perdem qualquer sentido estruturante sem a alteração do nosso sistema de eleições proporcionais com votação nominal. É uma mudança difícil por causa da tradição eleitoral brasileira, que vem do Império. As mu-danças nas eleições proporcionais, gradativas ao longo do tempo, não alteraram o fundamental: o voto é no candidato; o voto das legendas serve apenas para a distribuição das vagas entre os partidos.

A introdução do voto distrital é uma revolução na política brasi-leira porque radicaliza o voto no candidato, pelo sistema majoritário, como uma eleição de senador num colégio eleitoral menor. Mas poderá colocar em xeque a eleição da maioria dos atuais deputados. Por isso, votar a reforma é mais ou menos como chamar o peru para a ceia de Natal. Hoje, funciona a lei de Murici: cada um cuida de si. A escolha do partido e do cargo a ser disputado é um cálculo eleitoral. Por isso, é tão comum um deputado federal disputar a eleição de prefeito saben-do que vai perder, para ter chance de se reeleger; ou senador concor-rer ao governo do estado e pagar mico com o mesmo objetivo. O troca-troca de partido também é determinado pelo problema eleitoral, muito mais do que por nomeações no governo (mesmo quando o sujeito deixa a oposição para ser governista). O voto em lista mantendo o sistema proporcional não mudaria muita coisa, embora reforce a burocracia partidária. O que pode realmente mudar tudo é a criação dos distritos eleitorais, o que exige uma emenda à Constituição.

O aspecto mais obscuro dessa discussão é aquele que verdadeira-mente move a reforma: o fim da reeleição, com mudança do calendário eleitoral. Por trás dessa questão estão as forças que disputam o poder político no Brasil, o PT e o PSDB, e seus principais aliados. O presi-dente Luiz Inácio Lula da Silva tem reiterado que não pretende dispu-tar um terceiro mandato, até porque sempre foi contra a reeleição. E defende mandatos de cinco anos para os cargos executivos. A mudan-ça no calendário eleitoral, teoricamente, viria para ajustá-lo aos novos mandatos. Com estas hipóteses: 1) separação das eleições legislativas das de prefeitos, governadores e do presidente, com eleições gerais a cada 20 anos; ou 2) ampliação dos mandatos parlamentares para

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cinco anos, com exceção dos senadores, cujos mandatos passariam de oito para dez anos; ou 3) prorrogação dos mandatos de prefeitos e vereadores, para coincidência geral das eleições.

Do ponto de vista da qualidade da representação política, a pro-posta não muda nada. Só interessa aos políticos. Facilitaria um acor-do entre os dois possíveis candidatos do PSDB, os governadores de São Paulo, José Serra, e de Minas, Aécio Neves. E criaria um cenário mais favorável à volta de Lula ao poder, sem ter que enfrentar um pre-sidente candidato à reeleição, situação que ele hoje conhece dos dois lados do balcão.

Mas a luta pelo poder é o centro da reforma. Não se pode des-cartar a possibilidade de a reforma política permitir que o pre-sidente Lula concorra ao novo mandato, já agora de cinco anos. Se os políticos têm dúvidas, basta fazer um plebiscito para sa-ber se o povo gosta da idéia. Afinal, uma das propostas avança-das da reforma política é ampliar a democracia com a participa-ção direta do povo nas decisões polêmicas, por meio de referendos.

O Congresso está acuadoO Congresso Nacional não sabe o que fazer para evitar a desmo-

ralização que sofre com os sucessivos escândalos protagonizados por seus integrantes. Depois do desgaste com os casos dos “mensaleiros” e das “sanguessugas”, o escândalo da empreiteira Gautama – que para a maioria ainda é uma caixa-preta – mantém na berlinda depu-tados e senadores. Sabe-se que é apenas a ponta de um iceberg que envolve a relação de empreiteiras com o Executivo e o Legislativo, por causa do atual padrão de financiamento eleitoral. Por isso, há um certo consenso de que uma reforma política é cada vez mais neces-sária, porém não há acordo com relação ao conteúdo das propostas. Cada cabeça é uma sentença na hora de discutir o sistema eleitoral e o funcionamento dos partidos.

Um grupo de cardeais do Senado – Tião Viana (AC) e Aloizio Mer-cadante (SP), do PT; Tasso Jereissati (CE), Sérgio Guerra (PE) e Ar-thur Virgílio (AM), do PSDB; José Sarney (AP) e Jarbas Vasconcelos (PE), do PMDB; e Antonio Carlos Magalhães (BA), Heráclito Fortes (PI) e José Agripino (RN), do PFL, dentre outros – chegou a fazer um pacto para tentar uma reação. A idéia era articular as cúpulas dos grandes partidos para promover a reforma política e enfrentar os problemas que viciam o sistema eleitoral, o regime partidário e o fi-nanciamento das campanhas.

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O caso Gautama é encarado como um aviso de que o Congresso pode ser desmoralizado ainda mais, caso a relação existente entre os políticos e as empreiteiras continue a ser devassada pelo Ministério Público e a Polícia Federal. A avaliação corrente é de que as emendas parlamentares são café pequeno diante do que acontece com a exe-cução do Orçamento da União, dos estados, dos municípios e até das estatais. O volume de recursos a ser movimentado pelas empreiteiras só tende a aumentar com o crescimento da economia e a execução das obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Os caciques do Senado, entretanto, foram imobilizados pela re-presentação do pequeno PSol contra o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), que virou o centro das preocupações da Casa. Houve um acordo para protegê-lo, mas o preço a ser pago está ficando alto demais. E arrasar a liderança política dos senadores, com a perda de autoridade junto à sociedade para pressionar a Câmara a aprovar a reforma política.

A proposta de reforma política esboçada na Câmara trombou com as propostas aprovadas no Senado, sob inspiração do senador Marco Maciel (PFL-PE), que defende a redução do número de partidos, o voto distrital e a fidelidade partidária. O presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), no vácuo político criado pelo desgaste de Renan Calheiros, patrocinou o arquivamento das propostas aprovadas no Senado. Mas não conseguiu colocar nada no lugar. Chegou a articu-lar um projeto de mudanças, com o vice-líder do governo Henrique Fontana (PT-SP), mas houve uma rebelião – com adesão em massa do baixo clero – contra o voto em lista, o financiamento público, a fi-delidade partidária, a cláusula de barreira e o fim das coligações. Até agora nada foi votado. A única possibilidade de avançar com a reforma é uma roleta russa: colocar a proposta em votação ponto a ponto e aprovar por maioria cada mudança, sem saber o que vai dar. O mais provável é a geração de um monstrengo, um modelo político-eleitoral pior ainda do que o atual. É por isso que a reforma política empacou na Câmara, cujos integrantes vivem a angústia de não saber avaliar as conseqüências da situação que eles mesmos criaram: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. É a crise.

O problema é que vem mais uma eleição aí pela frente: a escolha de vereadores e prefeitos, em 2008. Todos sabem que algo precisa ser fei-to antes disso. O pleito municipal poderia ser uma oportunidade para a reestruturação na vida política do país, de baixo para cima, com os partidos testando as novas regras. Haveria tempo ainda para corrigi-las e melhorá-las em caso de defeito de fabricação. É óbvio que essa vi-são mais otimista, que aposta na reação do Congresso, não tem ainda

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massa crítica no Congresso, nem lideranças capazes de construí-la. A tendência atual é a adoção de mudanças meramente cosméticas, mes-mo com o surgimento de novos escândalos, que enfraquecerão ainda mais o Congresso.

A política em desconstruçãoUm dos temas atuais da antropologia é a desconstrução do sujeito

moderno, sociológico, acelerada pela globalização, mas não somente em sua conseqüência. Seria um processo semelhante ao que ocorreu com o sujeito iluminista – “penso, logo existo” -, diante da emergência da sociedade industrial, marcada pela estruturação de classes sociais definidas a partir das relações de produção capitalistas, que arrasou com a idéia de que os poderosos tinham sangue azul. No mundo de hoje, os políticos não estão à margem desse processo, no qual as idéias pautadas pelo Estado-nação e pela luta de classes estão em xeque. Talvez por isso invoquem com tanta freqüência o “espírito republica-no”, palavra mágica que serviria para separar as boas ações dos maus costumes políticos.

A política do século passado foi marcada por um formidável em-bate entre as idéias liberais e socialistas, que ainda hoje impregnam a atuação dos políticos profissionais. No campo das idéias liberais, um dos textos mais célebres é do sociólogo Max Weber, numa conferência famosa intitulada A política como vocação. Nele, afirma que há duas formas de fazer da política uma vocação: “Ou se vive para a política, ou se vive da política”. Para ele, “quem vive para a política a torna o fim da sua existência por prazer ou por uma causa”. Já aquele que vê na política uma forma permanente de rendas, “vive da política como vocação”. Na ordem capitalista, esses seriam os dois tipos de políticos, com maior ou menor refinamento.

“Em condições normais, deve o homem político ser economicamen-te independente das rendas que a ação política lhe possa proporcio-nar. Isso significa que o político deve ser rico ou contar com uma fonte de rendas independentemente de sua qualidade de político”, adverte Weber. Em condições anormais, o jogo seria outro: vivem de saques, roubos, confiscos, emissão de bônus sem lastro etc.

Um outro conceito, radicalmente diferente, é o do político revolu-cionário que exerce uma ação de vanguarda para subverter a ordem e transformar a sociedade. É a idéia do militante a serviço das clas-ses subalternas. O russo Vladimir Lênin, líder da Revolução de 1917 (O que fazer?), e italiano Antônio Gramsci (Maquiavel, a política e o

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Estado moderno), que morreu na prisão, levaram às últimas conseqü-ências a tese marxista de que a classe operária, ao se libertar, liber-taria todas as demais classes exploradas e oprimidas da sociedade. A missão seria orientar e organizar essa ação. O partido revolucionário seria a parte consciente da classe, organizado de cima para baixo, por homens unidos por fortes laços de camaradagem (Lênin). O novo “príncipe” seria um “ser coletivo”, integrado por “intelectuais orgâni-cos”, capazes de unir os trabalhadores e edificar um novo consenso na sociedade (GRAMSCI).

A terceira revolução industrial liquidou com a idéia de “classe ge-ral”, calcada no “ser operário!” como protagonista da construção da sociedade nova. A grande produção industrial, que serviu de alavanca da economia estatal, foi substituída por sistemas de produção flexí-veis, que tornaram obsoletas as economias do chamado “socialismo real”. Foi a dêbacle dos partidos comunistas e operários.

Mas o que tem a ver os dois conceitos com a crise que se aba-te sobre o Congresso brasileiro. Muita coisa. Não só políticos tradi-cionais foram ultrapassados pela desconstrução do sujeito moderno, os militantes revolucionários também. Os conceitos e as práticas que orientaram suas ações estão sendo rejeitados pela sociedade da infor-mação. Ficaram fora de moda, embora sirvam ao status quo social e ao establishment porque não existe democracia sem partidos políticos. A política desnudada revela todas as inconformidades e deformações. Os que as simbolizam, ao terem sua imagem desconstruída, perdem a representação da sociedade. Isso vale tanto para o ex-deputado José Dirceu (PT-SP), que pautou sua vida por objetivos revolucionários e foi cassado no auge do prestígio, como também vale para o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), cuja opção foi ser um político moderado e ascender por vias tradicionais.

Identidades perdidasA desconstrução da identidade dos partidos, em primeiro lugar, é

uma crise de imagem provocada por escândalos sucessivos. Os exem-plos são quase diários. Ao ser apresentado o relatório do senador Epi-tácio Cafeteira (PTB-MA) sobre o caso do presidente do Congresso, Renan Calheiros, no Conselho de Ética do Senado, tivemos um bom exemplo de como esse desgaste ocorre. Porém, tais fatos – que estão na esfera da pequena política – decorrem de causas mais profundas. Não é só a velha política brasileira, patrimonialista e clientelista, que se reproduz pelo nepotismo, que está esgotada. Também estão em xeque os paradigmas que distinguiam os liberais e os conservadores,

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os reformistas e os revolucionários, a direita e a esquerda. Os partidos são vistos por prismas em pedaços, como espelhos quebrados, o que complica ainda mais a reconstrução dos valores e projetos políticos.

Os partidos políticos no Brasil nunca tiveram a força de seus con-gêneres europeus ou norte-americanos. Nunca tiveram muito compro-misso com os respectivos programas, pois seus políticos são prisionei-ros dos interesses imediatos que representam. No Império, liberais e conservadores eram escravocratas em sua maioria e se uniram contra as reformas, com sua política de conciliação. Os republicanos surgi-ram como a incipiente classe média, mas na República Velha repre-sentaram as oligarquias. Contra elas quem se insurgiu foi o movimen-to tenentista, que desaguou na Revolução de 30.

A política partidária propriamente dita renasceu das cinzas em 1945 sob o signo da guerra fria. Foi com esse paradigma que os prin-cipais partidos políticos atuaram no Brasil até o golpe de 1964, que marcou o esgotamento de um ciclo político. O populismo havia assina-lado a entrada em cena política dos trabalhadores assalariados, muito mais do que a fundação do Partido Comunista em 1922. Curiosamen-te, a aliança entre pessedistas, trabalhistas e comunistas na eleição de Juscelino Kubitschek proporcionou o melhor momento da Segunda República e um contraponto à influência póstuma de Getúlio Vargas.

A tentativa de implantar o bipartidarismo na marra, durante o re-gime militar, fracassou por dois motivos. O primeiro era óbvio: não havia liberdade. O segundo, perdura até hoje: a influência européia na política brasileira sempre foi maior do que a norte-americana, apesar da falta de assimetria com as nossas relações econômicas. Com o fim da guerra fria, a crise dos partidos brasileiros se aprofundou. Muito mais em conseqüência das mudanças que ocorrem no mundo do que por causa do ambiente político interno. Em tese, a democratização da vida nacional, com o restabelecimento das eleições diretas em todos os níveis, seria um fator de fortalecimento dos partidos junto à socie-dade. Está acontecendo exatamente o contrário.

Na verdade, a globalização dos mercados mudou o nexo das políti-cas nacionais em todo o mundo. O fim da União Soviética, a formação da União Européia, a emergência das potências asiáticas e o enfra-quecimento da hegemonia econômica norte-americana, em que pese sua ação militar, contribuíram decisivamente para isso. Além disso, a terceira revolução industrial e as reformas econômicas que provocou contribuíram para romper a identificação das massas trabalhadoras dos países industrializados com seus partidos tradicionais, o que ge-rou uma nova direita na Europa, populista e nacionalista.

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II. Conjuntura

Política Democrática · Nº 18

O impacto dessas mudanças no Brasil ainda não foi suficiente-mente analisado, mas atinge em cheio os partidos. Ocorre, sobretudo, na esfera da grande política. O efeito mais evidente é a blindagem da política econômica, que a rigor foi iniciada pelo ex-presidente Fer-nando Collor de Mello com a abertura da economia. Essa política se consolidou com o Plano Real no governo Itamar Franco e ganhou for-ça hegemônica nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, com um caráter social-liberal. Ao ser encampada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atraiu para sua esfera o PT, a força política que poderia levar adiante um vigoroso reformismo democrático e social. Da mesma forma como antes a política econômica havia assimilado o projeto social-democrata do PSDB. O preço pago é a obstrução da renovação dos costumes políticos, o enfraquecimento e a descaracte-rização dos partidos.

Ensaio de uma reforma de mentirinhaNão há, na história política do Ocidente, nenhuma crise políti-

ca que não tenha como estopim uma crise parlamentar, daquelas que somente os políticos, com a sua criatividade, são capazes de aprontar. A mais famosa foi o golpe de Estado de dezembro de 1851 na França, conhecido como o 18 Brumário de Luís Bonaparte, que restaurou a monarquia. Não passou de uma grande farsa da aristo-cracia francesa, pois o capitalismo já estava consolidado e a ordem burguesa se tornara indispensável. Porém, serviu para revelar como um parlamento é capaz de se descolar dos interesses que deveria representar e virar fumaça.

No Brasil, podemos colecionar mais de uma dezena de crises po-líticas, todas com a formidável colaboração do parlamento. A mais trágica teve como estopim a atitude de um único parlamentar, Már-cio Moreira Alves, cujo discurso contra os militares precipitou o en-durecimento do regime militar, com o famigerado Ato Institucional nº 5. O episódio, porém, foi o desfecho de um processo iniciado bem antes, por ocasião da renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, vista por muitos como uma manobra golpista que deu errado. À época, o vice-presidente João Goulart, que deveria assumir a Pre-sidência, estava em viagem diplomática na China. Setores políticos e militares conservadores tentaram impedir a sua posse. Para viabilizá-la, se fez um acordo político no Congresso, que adotou o regime par-lamentarista, sendo João Goulart empossado como chefe de Estado. Em 1963, por meio de plebiscito, o povo brasileiro votou pela volta do regime presidencialista. Jango finalmente assumiu a presidência com

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Uma reforma sempre adiada

amplos poderes, mas estava criado o cenário para o golpe de 1964 e para a implantação progressiva do regime militar que durou até 1985. Os caminhos de uma crise política são complexos, tortuosos e inespe-rados. Os nexos de uma crise parlamentar com a sociedade quase sem-pre precisam de um fio para serem encontrados, no labirinto da luta política. Mas eles sempre existem, porque o poder político é expressão direta da força social real dos grupos e classes em pugna. Em deter-minados momentos, nesse embate, os partidos políticos se descolam completamente dos interesses que originalmente representavam.

Luís Bonaparte, sobrinho ambicioso do ex-imperador, foi mais feliz ao identificar os interesses das elites francesas do que os repre-sentantes populares no parlamento, autismo que Marx chamou de “cretinismo parlamentar”. Os políticos viviam num mundo imaginá-rio e haviam perdido “todo sentido, toda recordação, toda compreen-são do rude mundo exterior”. É um pouco o que está acontecendo no Congresso brasileiro, diante da desmoralização provocada pela su-cessão de escândalos envolvendo os partidos e os políticos. Agora, os grandes partidos ensaiam uma reforma política de mentirinha, que, na verdade, é um esquema para garantir a reeleição quase vitalí-cia da maioria dos congressistas. Listas fechadas encabeçadas pelos atuais detentores de mandato, financiamento público que favorece os grandes partidos e fidelidade partidária subordinam os mandatos à vontade de governadores e prefeitos, sem falar na do presiden-te da República. É a gestação de uma nova casta a serviço do po-der, cuja existência é incompatível com uma sociedade democrática. A proposta que poderia realmente aproximar o Congresso dos seus representados, o voto distrital puro ou misto, está fora de conside-ração na reforma. O mais grave, porém, é que a pseudoreforma cria condições favoráveis para projetos continuístas no Executivo – basta surgir um novo “queremismo” –, mantido o ambiente de bonança econômica internacional. Em outro contexto econômico, porém, pode provocar uma crise institucional com sinal trocado, como costuma acontecer no Brasil.

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II. Conjuntura

Política Democrática · Nº 18

Sobre o conteúdo da Reforma Política

Rubens Otoni

A necessidade da reforma política não decorre de um impulso colonial de transplantar para o Brasil fórmulas utilizadas nos países desenvolvidos. Nosso sistema político eleitoral é, sob

muitos aspectos, melhor que os sistemas adotados na Europa e nos Estados Unidos.

Tendo claro que não há um sistema perfeito, salta às vistas que o sistema eletrônico brasileiro de votação e a apuração das eleições é invejável por sua agilidade e eficácia. Alguns, os mais pessimistas, dirão que ele pode permitir fraudes. A esses, cabe lembrar que não existe obra humana que não seja sujeita a fraude. Mas cabe também acrescentar que ele é de longe o menos vulnerável.

O sistema brasileiro de repartição proporcional dos tempos de cada partido na televisão e no rádio é igualmente exemplar. Assegura de forma justa o acesso dos partidos ao conjunto da população.

Também o sistema de eleições proporcionais para os cargos do Legislativo, embora contendo imperfeições pontuais, é mais justo e democrático do que o sistema distrital adotado em alguns países da Europa e nos Estados Unidos.

O sistema proporcional assegura a representação das minorias, na medida em que as vagas do Legislativo são preenchidas propor-cionalmente à votação de cada partido. Infelizmente, aqui no Brasil, esta proporcionalidade não é absoluta, mas pode e deve ser aperfei-çoada. É democrático lutar pela adoção do princípio de que a cada eleitor corresponde um voto, independentemente do lugar onde vive no território nacional.

Mesmo assim, nosso sistema proporcional é muito mais justo que o claramente antidemocrático sistema de voto distrital. A título de ilustração vamos tomar o caso da Inglaterra, pátria-mãe do sistema distrital. Lá, na última eleição para o Parlamento, setembro de 2005, os trabalhistas obtiveram 35,3% dos votos e levaram 356 cadeiras, os conservadores obtiveram 32,3% dos votos e levaram 198 cadeiras.

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Sobre o conteúdo da Reforma Política

A discrepância é muito grande. 35,3% dos votos elegeram 62% das vagas, enquanto 32,3% elegeram 34% das cadeiras. Estes números falam por si, o sistema é injusto e antidemocrático. Tony Blair pro-meteu reformá-lo. Ainda não o fez, talvez porque o sistema interessa a trabalhistas e conservadores. Mas certamente não deve interessar aos liberais.

Ainda a título de ilustração, registro a informação de Jairo Nico-lau, em Sistemas Eleitorais: “O Partido Liberal do Reino Unido tem sido freqüentemente prejudicado, pois o percentual de cadeiras que recebe é sempre inferior ao seu percentual de votos. O partido foi sub-representado em todas as eleições para a Câmara dos Comuns no pós-1945: com uma média de 12,4% dos votos obteve uma média de 1,9% das cadeiras. A diferença mais acentuada ocorreu em 1983, quando recebeu 25,04 % dos votos e elegeu apenas 3,5% dos representantes”. Não há exagero em afirmar que este sistema é aberrante.

Aliás, o sistema inglês é tão ruim que recentemente a imprensa anunciou que a composição da Casa dos Lordes, o Senado deles, vai deixar de ser feita pelo critério da hereditariedade. Os senadores, que lá têm também poderes judiciários, passarão a ser eleitos. Convenha-mos, para o começo do século XXI, está um pouco tarde. O sistema americano também padece dos defeitos do voto distrital, herdado da Inglaterra. Além disso, os americanos conseguiram organizar uma perfeita bagunça em suas eleições. As duas últimas eleições presiden-ciais tiveram seus resultados contestados na Justiça.

Na Alemanha, para atenuar as deformações produzidas pelo sis-tema distrital, foi adotado o sistema de listas para eleger a metade do parlamento. A outra metade é eleita pelo antidemocrático sistema distrital. Dir-se-ia que a elite alemã, consciente de seu passado nada exemplar em matéria de democracia, resolveu permitir que pelo menos metade de seu parlamento fosse eleita de forma democrática.

Explicar outros defeitos do sistema distrital demandaria muito es-paço. Vou apenas enumerar alguns: ele paroquializa o debate, favorece o abuso do poder econômico, serve para perpetuar caciques, bloqueia a renovação das bancadas parlamentares, não fortalece os partidos e cria um problema insolúvel sobre a redefinição periódica do mapa dos distritos; o que provocaria uma guerra permanente entre partidos, personalidades e caciques em busca de uma demarcação ideal do dis-trito, aquela que mais se aproximasse de seu interesse eleitoral. Ou seja, qualquer sistema de voto distrital seria um retrocesso.

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II. Conjuntura

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Os principais problemas do sistema eleitoral brasileiro foram diag-nosticados pela Comissão Especial que tratou da matéria e podem ser resumidos nos seguintes pontos:

a) a distorção da vontade do eleitor causada pela permissão de co-ligações nas eleições para o Legislativo;

b) a extrema personalização do voto nas eleições legislativas, da qual decorre o enfraquecimento dos partidos;

c) os crescentes custos da campanhas eleitorais, que tornam o seu financiamento refém do poder econômico;

d) a excessiva fragmentação do quadro partidário, que fragiliza os partidos;

e) as intensas migrações entre legendas, cujas bancadas no Legis-lativo oscilam substancialmente ao longo das legislaturas.

Para enfrentar estes problemas reais, a Comissão Especial antes referida, aprovou, por maioria significativa, uma proposta mais tarde referendada pela Comissão de Constituição de Justiça, que contém alguns pontos importantes:

• A adoção do voto em lista, para equacionar o problema da exces-siva personalização do voto e dar racionalidade ao debate eleitoral.

• A introdução do financiamento público exclusivo de campanha para superar o abuso do poder econômico e a proibição de coligações proporcionais.

Aos que temem o sistema de lista, argumentando que ele favorece-rá a oligarquização e o caciquismo dentro dos partidos, cabe explicar que atualmente a maioria dos partidos já padece destes males. A so-lução para estes males está na aprovação de uma legislação que esta-beleça regras democráticas para a confecção das listas e no estímulo a uma cultura democrática no interior de cada agremiação. Aliás, o mais provável é que os partidos que adotem métodos autoritários para a confecção de suas listas não consigam sobreviver.

Aos que argumentam que o financiamento público exclusivo não bloqueia totalmente a intervenção do financiamento privado, cabe lembrar que ele pelo menos o inibe, e cria mecanismos de punição. Com relação à fidelidade partidária, parece que existe quase uma una-nimidade sobre sua necessidade. Resta apenas discutir os termos.

Caso venhamos a aprovar a Reforma Política, estaremos dando um grande passo no sentido de aperfeiçoar o sistema eleitoral brasileiro, sem prejuízo de outras matérias igualmente importantes.

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III. Observatório Político

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Autores

Luiz Werneck ViannaSociólogo e professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), é autor de várias obras, dentre elas Esquerda brasileira e Tradição republicana.

Sergio Augusto de MoraesEngenheiro, diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro.

Marcos Costa LimaProfessor e atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE. Pós-Doutorado na Université Paris XIII/Villetaneuse; Doutor em Ciências Sociais, Unicamp/São Paulo.

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O Estado Novo do PT

Luiz Werneck Vianna

A crer nos indicadores dos dois períodos presidenciais de Fernan-do Henrique, mas, sobretudo a partir do mandato de Lula, o capitalismo brasileiro encontrou um caminho de expansão e de

intensificação da sua experiência. Contudo, tem sido agora que se vê conduzido por um projeto pluriclassista e com a definida intenção de favorecer uma reconciliação política com a história do país, contraria-mente à administração anterior, mais homogênea em sua composição de interesses e decididamente refratária ao que entendia ser o legado patrimonial da nossa herança republicana.

Com efeito, estão aí, neste governo Lula, guindadas a Ministérios estratégicos, as lideranças das múltiplas frações da burguesia brasi-leira – a industrial, a comercial, a financeira, a agrária, inclusive os cúlaques que começaram sua história nas pequena e média proprie-dades, e que, com a cultura da soja, atingiram o reino do grande ca-pital –, lado a lado com o sindicalismo das grandes centrais sindicais e com a representação dos intelectuais do Movimento dos Trabalha-dores Sem Terra (MST). De outra parte, estão aí a revalorização da questão nacional, do Estado como agente indutor do desenvolvimento, o tema do planejamento na economia, a retomada do papel político da representação funcional, da qual é ícone institucional a criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).

Se, antes, a ruptura com o passado fazia parte de um bordão co-mum ao PSDB e ao PT – o fim da Era Vargas –, sob o governo Lula, que converteu Celso Furtado em um dos seus principais ícones, e

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III. Observatório Político

em que ressoam linguagens e temas do chamado período nacional-desenvolvimentista em personagens destacados da sua administra-ção, como José de Alencar, Dilma Roussef e Luciano Coutinho, todos em posições-chave, menos que de ruptura o passado é mais objeto de negociação. Assim, o governo que, no seu cerne, representa as forças expansivas no mercado, naturalmente avessas à primazia do públi-co, em especial no que se refere à dimensão da economia – marca da tradição republicana brasileira –, adquire, com sua interpelação positiva do passado, uma certa autonomia quanto a elas, das quais não provém e não lhe asseguram escoras políticas e sociais confiáveis. Pois, para um governo originário da esquerda, a autonomia diante do núcleo duro das elites políticas e sociais que nele se acham presen-tes, respaldadas pelas poderosas agências da sociedade civil a elas vinculadas, somente pode existir, se o Estado traz para si grupos de interesses com outra orientação.

A composição pluriclassista do governo se traduz, portanto, em uma forma de Estado de compromisso, abrigando forças sociais con-traditórias entre si – em boa parte estranhas ou independentes dos partidos políticos –, cujas pretensões são arbitradas no seu interior, e decididas, em ultima instância, pelo chefe do poder executivo. Capi-talistas do agronegócio, MST, empresários e sindicalistas, portadores de concepções e interesses opostos em disputas abertas na sociedade civil, encontram no Estado, onde todos se fazem representar, um ou-tro lugar para a expressão do seu dissídio. Longe do caso clássico em que o Estado, diante da abdicação política das classes dominantes, se erige em “patrão” delas para melhor realizar os seus interesses, a forma particular desse Estado de compromisso se exprime na cria-ção, no interior das suas agências, de um parlamento paralelo onde classes, frações de classes, segmentos sociais, têm voz e oportunidade no processo de deliberação das políticas que diretamente os afetam. Nesse parlamento, delibera-se sobre políticas e se decide sobre sua execução. À falta de consenso, o presidente arbitra e decide.

Contorna-se, pois, o parlamento real e o sistema de partidos na composição dos interesses em litígio, que somente irão examinar da sua conveniência, em fase legislativa, quando couber. Com essa ope-ração, a formação da vontade na esfera pública não tem como conhe-cer, salvo por meios indiretos, a opinião que se forma na sociedade civil, e as decisões tendem a se conformar por razões tecnocráticas. A criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, agên-cia criada nos começos do primeiro mandato, no curso do qual não desempenhou papel relevante, mas que, agora, parece destinada a cumprir de fato as funções de câmara corporativa a mediar as relações

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O Estado Novo do PT

entre o Estado e a sociedade civil organizada, reforçam ainda mais as possibilidades de ultrapassagem da representação política. A afirma-ção da representação funcional como forma de articulação de interes-ses, sob a arbitragem do Estado, é mais um indicador da intenção de se despolitizar a resolução dos conflitos em favor da negociação entre grupos de interesses.

Com esse movimento, o Estado avoca a sociedade civil para si, inclusive movimentos sociais como os de gênero e os de etnias. Tudo que é vivo gira e gravita em torno dele. Boa parte das organizações não-governamentais (ONGs) são dele dependentes e sequer lhe esca-pam os setores excluídos, difusamente distribuídos no território do país, os quais incorpora por meio de programas de assistência social, como o bolsa-família, com o que se mantém capilarmente articulado à sua sociedade.

O governo, que acolhe representantes das principais corporações da sociedade civil, ainda se vincula formalmente a elas pelo CDES. A representação funcional lhe é, pois, constitutiva. A ela se agrega, nos postos de comando na máquina governamental, os quadros ex-traídos da representação política. Contudo, uma vez que, pela lógica vigente de presidencialismo de coalizão, a formação de uma vontade majoritária no Congresso é dependente da partilha entre os aliados de posições ministeriais, os partidos políticos no governo passam a viver uma dinâmica que afrouxa seus nexos orgânicos com a sociedade ci-vil, distantes das demandas que nela se originam. Tornam-se partidos de Estado, gravitando em torno dele e contando com seus recursos de poder para sua reprodução nas competições eleitorais.

A dupla representação – a política e a funcional –, operando ambas à base de movimentos de cooptação realizados pelo Executivo, não so-mente amplia a autonomia do governo quanto às partes heterogêneas que o compõe, ademais reforçada por sua capacidade constitucional de legislar por meio de medidas provisórias, como criam condições para o seu insulamento político quanto à esfera pública. As múltiplas correias de transmissão entre Estado e sociedade funcionam em um único sentido: de cima para baixo. Nesse ambiente fechado à circula-ção da política, a sua prática se limita ao exercício solitário do vértice do presidencialismo de coalizão, o chefe do Estado.

Tal couraça de que se reveste o Executivo se acha qualificada pelos notórios avanços da centralização administrativa nos marcos institu-cionais do país, em que pese a Carta de 1988, de espírito federativo e descentralizador. Com razão, a bibliografia brasileira, desde o publi-cista Tavares Bastos no Império, associa a opção pela centralização

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III. Observatório Político

administrativa à natureza autoritária do nosso sistema político, justi-ficada à época pela necessidade de preservar a unidade nacional, tida como ameaçada pelos impulsos separatistas do poder local no período da Regência. Essa associação foi confirmada pelos dois longos perío-dos ditatoriais do regime republicano – o de 1937-45 e o de 1964-85 –, que, em nome da busca dos fins da modernização econômica, extre-maram a centralização administrativa e a prevalência da União sobre a Federação. A reação ao autoritarismo político, que culminou com a democratização do país, atualizou as demandas pela descentralização e pela afirmação do poder local, que se fizeram presentes, como é sa-bido, no texto constitucional de 1988.

Desde aí se vem confirmando o diagnóstico clássico de que a cen-tralização administrativa também pode ser filha da democracia. As crescentes demandas por políticas públicas orientadas por critérios de justiça social, como as da agenda da saúde, educação e segurança, têm conduzido, na busca da eficácia e da racionalização das suas ações, à centralização do seu planejamento e ao controle da sua execução. De outra parte, a política tributária, nessa última década, tem privilegia-do a União sobre a Federação, sobretudo os estados, que, em nome da racionalização, foram obstados de emitir dívidas, privatizados os seus antigos e poderosos bancos, e a Polícia Federal cada vez mais se comporta como a suprema guardiã de todo o aparato civil de seguran-ça. Centralização que, nessa estrita dimensão, ainda se reforça com a recente criação de uma força de segurança nacional, subordinada ao Ministério da Justiça e com sede operacional na capital federal.

Registro forte a confirmar a intensidade e a abrangência do atual processo de centralização está indicado na criação do Conselho Na-cional de Justiça, presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Fe-deral, assim elevado à posição, até então desconhecida entre nós, de vértice do Poder Judiciário, destinando-se esse Conselho, dotado do poder de estabelecer sanções sobre tribunais e juízes, federais e esta-duais, ao controle da administração do sistema da Justiça. Na mesma direção, consagrou-se, com a introdução da súmula com efeito vin-culante, o princípio da primazia das decisões dos vértices do Poder Judiciário sobre os juízes singulares, em sua maioria, originários das justiças estaduais. A ação do Ministério Público participa do mesmo movimento, em especial no controle que exerce, pela via das ações di-retas de inconstitucionalidade, sobre as leis estaduais.

Tem-se daí que o novo curso da centralização, ao contrário de perí-odos anteriores, está associado à crescente democratização social e às necessidades de racionalização da administração, inclusive a do Judiciá-rio e do sistema de segurança pública, que dela derivam. Mas esse movi-

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O Estado Novo do PT

mento, por sua própria natureza – atua de cima para baixo –, prescinde da participação dos cidadãos, uma vez que decorre da ação das elites ilustradas, selecionadas à margem dos interesses sistêmicos e das cor-porações que os representam, elites que encontram no governo a oportu-nidade de realização das suas agendas de democratização social, móvel normativo que presidiu sua formação nos movimentos de resistência ao regime militar. Se o Estado pretendeu, nos idos do Estado Novo, sob a iniciativa das suas elites intelectuais, como Gustavo Capanema, Francis-co Campos, Agamenon Magalhães, entre tantos, ser mais moderno que sua sociedade, as elites desse novo Estado, que toma corpo com a vitória do PT, pretendem que ele se torne mais justo que ela.

Sob essa formatação, em que elites dirigentes de corporações inte-gram o comando da política econômica, em que as centrais sindicais tomam assento no governo, em que se valoriza a representação fun-cional – caso conspícuo o ministro do Trabalho, alçado a essa posição na condição de presidente da CUT – em que se faz uso instrumental das instituições da democracia representativa, em que se reforçam os meios da centralização administrativa, e, sobretudo, em que se quer apresentar o Estado como agência não só mais moderna que sua so-ciedade, como também mais justa que ela, o que se tem é uma gros-sa linha de continuidade com a política da tradição brasileira. Aí, os ecos da Era Vargas e do Estado Novo, decerto que ajustados à nova circunstância da democracia brasileira. Também aí um presidente da República carismático, acima das classes e dos seus interesses ime-diatos, cujos antagonismos harmoniza, detendo sobre eles poder de arbitragem, cada vez mais apartidário, único ponto de equilíbrio em um sistema de governo que encontrou sua forma de ser na reunião de contrários, e em que somente ele merece a confiança da população.

Nada, portanto, do discurso dos tempos de origem e de confirmação do PT como partido relevante na cena contemporânea. Elo perdido a sistemática denúncia do populismo e das alianças políticas entre parti-dos representativos de trabalhadores com os de outra extração, assim como desvanecidos os outrora fortes vínculos com a obra de interpreta-ção do país que se aplicava em assinalar a necessidade de uma ruptura com aquela tradição – Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes e Raimundo Faoro eram, então, as principais referências.

Se, no começo da sua trajetória, o PT se apresentava como portador da proposta de um novo começo para história do país, na pretensão de conformá-la a partir de baixo em torno dos interesses e valores dos trabalhadores – a parte recriando uma nova totalidade à sua imagem e semelhança –, a reconciliação com ela, levada a efeito pelo partido às vésperas de assumir o poder, conduziu-o aos trilhos comuns da

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III. Observatório Político

política brasileira. A totalidade adquire precedência sobre os interes-ses das partes, ponto enunciado claramente pelo próprio presidente da República, nos seus primeiros dias de governo, em marcante dis-curso às lideranças sindicais, quando reclamou delas que, em suas reivindicações, levassem em conta o interesse nacional. Nessa chave, conceitua-se o próprio desenvolvimento do capitalismo no país e sua inscrição no chamado processo de globalização como processos a se-rem subsumidos ao interesse nacional, cuja representação tem sede no seu Estado. De fato, para uma orientação desse tipo, o melhor re-pertório se encontra em nossa tradição republicana.

Mas essa opção não foi feita a frio. O programa do PT era, com suas variações, o de uma esquerda brasileira clássica, e, como tal, se orien-tava no sentido de preconizar reformas estruturais que permitissem dirigir os rumos da economia para as necessidades da sua população e a favorecer um desenvolvimento auto-sustentado das forças produtivas nacionais. Ainda no período eleitoral, a reação a esse programa veio sob a forma de uma rebelião do mercado, de que o descontrole no preço do dólar foi apenas um indicador. Nesse sentido, tentar realizá-lo, depois de oito anos de governo FHC, que não só levara o país a debelar a crô-nica inflação brasileira e rebaixara dramaticamente, sob consenso geral das elites econômicas, a presença do Estado na economia, em clara inclinação favorável às forças de mercado, continha in nuce as possibi-lidades de se inscrever o país na lógica das revoluções.

A opção do governo recém-eleito, como se sabe, foi a de ceder à con-tingência, abdicar do seu programa e das veleidades revolucionárias de amplos setores do seu partido e de se por em linha de continuidade com a política econômico-financeira do governo anterior. A inovação viria da política. Em primeiro lugar, instituindo o Estado como um lugar de condomínio aberto a todas as classes e principais grupos de interesses. Em segundo, pela recusa a um modelo de simplificação do Estado, que preponderava no governo anterior, o que importou uma aproximação, mais clara à medida que o governo aprofundava sua experiência, com temas da agenda da tradição republicana – o nacio-nal-desenvolvimentismo de Dilma Roussef e de Luciano Coutinho, por exemplo – e com seu estilo de fazer política.

O caráter do governo como condomínio entre contrários encontra sua expressão paradigmática nas relações entre o capitalismo agrário e os trabalhadores do campo, aí incluído o MST, ambos ocupando, pelas suas representações, posições fortes na Administração. Os du-ros e constantes conflitos que os envolvem, no terreno da sociedade civil, em torno de questões que vão da propriedade da terra ao uso de transgênicos na agricultura, não têm impedido a permanência dos

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O Estado Novo do PT

seus representantes no governo. Prevalece a política, salvo em maté-rias tópicas, de procurar conciliar pragmaticamente as controvérsias que os opõe, legitimando, ao menos no plano simbólico – isso mais no caso do MST –, a validade das suas pretensões. A mesma relação com idênticas conseqüências, se reitera no caso das lideranças empresa-riais e sindicais com assento em ministérios, em litígio aberto na so-ciedade civil no que se refere a questões previdenciárias, da legislação trabalhista e da sindical.

Esse Estado não quer se apresentar como o lugar da representação de um interesse em detrimento de outro, mas de todos os interesses. Essa a razão de fundo porque o governo evita a fórmula de poder de-cisionista e também se abstém de propor mudanças legislativas em matérias estratégicas, como a tributária, a da reforma política e a da legislação sindical e trabalhista, que, com sua carga potencialmen-te conflitiva, poderiam ameaçar a unidade de contrários que intenta administrar. Pragmático, desde a primeira vitória eleitoral, negocia e compõe com os interesses heterogêneos que convoca para seu inte-rior, manobra com que se evadiu do caminho de rupturas continuadas aberto à sua frente.

A forma benigna com que a esquerda chegou ao poder – a via elei-toral – não tinha como escamotear, até com independência da consci-ência dos atores sobre sua circunstância, de que se estava no limiar de uma revolução. Começadas as grandes mudanças estruturais, seguir-se-ia o momento da mobilização popular e da sua contínua in-tensificação. Nesse contexto hipotético, o front dos conflitos agrários, sem dúvida, comporia o cenário mais dramático para o seu desdobra-mento. A rigor, as forças da antítese não quiseram assumir os riscos da sua vitória, reencontrando-se com o adversário que acabara de derrotar. São as forças da antítese que se apropriam do programa das forças da tese, contra as quais tinham construído sua identidade. Não havia contradição a ser superada. A dialética sem síntese da tradição política brasileira, mais uma vez, restaura o seu andamento.

Invertem-se, porém os termos da revolução passiva clássica: é o elemento de extração jacobina quem, no governo, aciona os freios a fim de deter o movimento das forças da revolução, decapita o seu an-tagonista, comprometendo-se a realizar, sob seu controle, o programa dele, e coopta muitos dos seus quadros, aos quais destina a direção dos rumos sistêmicos em matéria econômico-financeira. Mas será dele o controle da máquina governamental e o comando sobre as transfor-mações moleculares constitutivas à fórmula do conservar-mudando, direcionadas, fundamentalmente, para a área das políticas públicas

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III. Observatório Político

aplicadas ao social. Decididamente, o desenlace de 2002 não foi o de uma contra-revolução.

Os setores subalternos não são mobilizados, e se fazem objetos passivos das políticas públicas, que, em muitos casos, incorporam à malha governamental lideranças de movimentos sociais, apartando-as de suas bases. Os partidos de esquerda e os movimentos sociais ins-titucionalizados, quase todos os presentes no governo, retidos nessas suas posições, aderem ao andamento passivo e se deixam estatalizar, abdicando de apresentarem rumos alternativos para o desenvolvimen-to, demonstrando, nessa dimensão, anuência tácita com a herança recebida dos neoliberais da administração econômica do governo FHC. O ator definha, e os protagonistas são, por assim dizer, os fatos.

Mas, a inversão da lógica da revolução passiva não obedece à mes-ma pauta da sua forma canônica. Nessa sua forma bizarra, não são as forças da conservação que se encontram na posição de mando político legítimo, não contando, pois, com plenos recursos para administra-rem a fórmula do conservar-mudando. Exemplar disso o fato de que a agenda de reformas – a tributária, a da previdência e a da legislação sindical e trabalhista –, que essas forças compreendem como neces-sárias à estabilização e ao aprofundamento do capitalismo brasileiro, não venha encontrando passagem para sua implementação, barradas, ao menos até agora, pela ação combinada dos movimentos sociais com a sua representação no governo.

Assim, mesmo sob o império dos fatos, persistem papéis para um ator que, presente na coalizão governamental, invista na mudança, em particular na ação de resistência a políticas publicas que lhe sejam adversas e na democratização da dimensão do social, desde que não atinja a região estratégica do mundo sistêmico, blindado às interven-ções originárias de territórios estranhos aos seus. Eventualmente, e na margem, pode-se mais mudar que conservar. Com os antagonis-mos sociais importados da sociedade para o seu interior, o Estado de compromisso que procura equilibrá-los é um lugar de permanente tensão, cuja coesão depende unicamente do prestígio popular do seu chefe. Daí que, contraditoriamente, a política em curso, cujo programa parece limitar-se à adaptação à sua circunstância, dependa tanto da intervenção carismática do ator, que é, afinal, o cimento dessa, além de bizarra, frágil construção.

A sua fragilidade conspira contra a sua permanência. Cada classe, fração de classe ou grupamento de interesse, nesses cinco anos de governo em condomínio, aprendeu, por lição vivida, nos seus litígios no interior da máquina governamental, que a melhor forma de vencer

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O Estado Novo do PT

– ou de não perder tudo – está em sua capacidade de arregimentar for-ças na sociedade civil. Tal arregimentação, por sua vez, repercute no interior do governo e dificulta o processo de composição dos interes-ses contraditórios em que se acha empenhado permanentemente. A esquerda tem como alvo principal a administração do Banco Central, caixa-preta da política econômico-financeira do país, a direita encon-trou o seu na presença do PMDB na coalizão política que sustenta o governo, sem a qual ele perde força no Congresso e na sociedade.

E mais, a construção tem prazo de validade: o fim do mandato pre-sidencial em 2010. Os antagonismos, à medida que essa data já se põe no horizonte, começam a procurar formas próprias de expressão, em um cenário com partidos em ruínas e instituições políticas, como o Par-lamento, desacreditadas pela população. Tal tendência, ameaça virtual ao Estado Novo do PT, deverá se confirmar quando as campanhas elei-torais – a primeira, em 2008 – vierem a reanimar a agenda contenciosa das reformas institucionais (a da previdência à frente). Mas, já se faz sentir, entre tantos sinais, no mundo sindical, com o anúncio de rom-pimento do PCdoB, um partido integrante do governo, com a CUT, em nome de uma ação sindical mais reivindicadora, e, no mundo agrário, com a contestação do MST à política do agronegócio do etanol.

De qualquer sorte, da perspectiva de hoje, já visível o marco de 2010, não se pode deixar de cogitar sobre as possibilidades de que o condomínio pluriclassista que nos governa venha a encontrar crescen-tes dificuldades para sua reprodução, em particular quando se tornar inevitável, na hora da sucessão presidencial, a perda da ação caris-mática do seu principal fiador e artífice. Na eventualidade, no contexto de uma sociedade civil desorganizada, em particular nos seus setores subalternos, e do atual desprestígio de nossas instituições democráti-cas, a política pode se tornar um lugar vazio, nostálgico do seu homem providencial, ou vulnerável à emergência eleitoral da direita, brandin-do seu programa de reformas institucionais, entre as quais a de sim-plificar ao máximo o papel do Estado, a ser denunciado como agência patrimonial, fonte originária da corrupção no país. Impedir isso é a tarefa atual da esquerda. Mas, ela somente reunirá credenciais para tanto, se, rompendo com o estatuto condominial vigente, for capaz de reanimar seus partidos, aí compreendido o PT, e de estabelecer vínculos concretos com os movimentos sociais, sempre na defesa da sua autonomia, em torno de suas reivindicações. E, sem preconceitos, favorecer alianças, nas eleições e fora delas, com todos os partidos, associações e personalidades de adesão democrática, em favor de um programa centrado no objetivo de destravar os entraves ao crescimen-to econômico e de promover a justiça social.

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II. Conjuntura

Política Democrática · Nº 18

Sobre o aquecimento global

Sergio Augusto de Moraes

A relação homem-natureza na pré-históriaHouve um tempo em que grupamentos humanos se preocupavam

com os efeitos, para as próximas gerações, de sua relação com a natu-reza. Por exemplo, os índios sioux, que viviam numa parte do território dos atuais EEUU antes do descobrimento, caçavam búfalos pensando em preservar essa fonte de proteína até a futura sétima geração. Cla-ro, os sioux trabalhavam com um modelo primitivo que manejava al-gumas poucas variáveis (taxa de reprodução da população sioux, idem dos búfalos etc.) e não conheciam a propriedade privada.

Os homens do paleolítico (período que vai, aproximadamente, do ano 265.000 a.C a 10.000 a.C) tinham, ao mesmo tempo, relações de temor, de respeito e de aprendizado com a natureza. Ela dominava tanto o seu presente quanto seu futuro. Mas também lhes aportava preciosos ensinamentos: apagar o fogo com água foi um dos primei-ros recursos aprendidos com ela. Nesse período, de mais ou menos 255.000 anos, a população humana cresceu de 125.000 a aproxima-damente 5 milhões de pessoas.

A revolução neolítica (entre 10 e 5.000 a.C) muda radicalmente a relação do homem com a natureza. O homem domestica os animais e as plantas o que lhe permite passar da fase de coleta ao sedentarismo. Da fase de penúria de alimentos à produção de um excedente, o que per-mite o surgimento da propriedade privada. O homem passa a ter uma relação com a natureza intermediada pelo proprietário da terra, surge a divisão social de classe entre amos e escravos, e o escravo vê também no seu amo um outro dono de sua vida e morte, além da natureza.

A população humana passa de 5 milhões a 90 milhões.

A revolução industrial e o capitalismoCom o passar dos anos aumenta o domínio do homem sobre a

natureza. Mas isso não significa uma “aproximação amigável”. Marx aponta nos Grundrisse:

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Sobre o aquecimento global

(...) não é a UNIDADE (grifo meu, SAM) da humanidade viva e ativa com as condições naturais, inorgânicas, da sua troca me-tabólica com a natureza e daí sua apropriação da natureza, que requer explicação ou é um resultado de um processo histórico, mas a SEPARAÇÃO (grifo meu, SAM) entre essas condições inor-gânicas da existência humana e esta existência ativa, uma sepa-ração que só é completamente postulada na relação do trabalho assalariado com o capital.1

A questão mais difícil é portanto:

(...) a compreensão da evolução das inter-relações materiais (o que Marx chamava de “relações metabólicas”) entre os seres humanos e a natureza ...” ; assim “... de um ponto de vista ma-terialista consistente a questão não é antropocentrismo VER-SUS ecocentrismo – a rigor tais dualismos pouco nos ajudam a entender as condições materiais reais, em perene mudança, da existência humana no interior da biosfera- mas uma questão de CO-EVOLUÇÃO.2

Em O Capital, Marx usa o conceito de METABOLISMO para defi-nir o processo de trabalho “... como um processo entre o homem e a natureza , um processo pelo qual o homem, através de suas próprias ações, MEDEIA, REGULA E CONTROLA o metabolismo entre ele e a natureza”. Mas uma falha irreparável surgiu nesse metabolismo em decorrência das relações de produção capitalistas e da separação antagonista entre cidade e campo. Daí ser necessário, na sociedade de produtores associados, quer dizer, na sociedade comunista “... go-vernar o metabolismo humano com a natureza de modo racional”, o que excede completamente as capacitações da sociedade burguesa.3

No capitalismo o que governa a relação entre o homem e a nature-za, entre o capital e o trabalho, é a obtenção de lucro máximo o que, em última instância, exclui aquele “governo racional”.

Quando se inicia a revolução industrial, nos meados do século XIX, essa separação da natureza, essa irracionalidade, não repre-sentava ainda uma ameaça às condições de vida no planeta. Ao con-trário, era um fator de progresso, comparado com as condições de

1 Citado por John Bellamy Foster em A Ecologia de Marx, Ed.Civilização Brasileira, RJ, 2005, p. 13

2 Idem, p. 233 Idem, p. 201.

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III. Observatório Político

Política Democrática · Nº 18

servidão que existiam antes. Mas o modo de produção capitalista não podia avançar sem criar novos mercados, sem revolucionar perma-nentemente as forças produtivas atrás de maiores lucros.

Para a população então existente, algo em torno de 800 milhões de pessoas, a natureza parecia inesgotável, o “progresso” não a ame-açava. Hoje, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe que não é bem assim.

População e meio ambiente Em 1850 a população mundial passou de 1 bilhão, em 1950 atin-

giu 2,5 bilhões, em 2000 alcançou 6 bilhões, em 2005 chegou a 6,4 bilhões. O campo se esvaziou e as cidades cresceram exponencial-mente: o homem se afasta mais e mais da natureza.

As causas deste crescimento exponencial da população mundial tem várias fontes, desde o declínio da mortalidade infantil até à pro-dução de antibióticos. A principal, porém, é o modo de produção capitalista, que concentra capital, amplia permanentemente o mer-cado, aumenta e concentra o número de trabalhadores, amplia as desigualdades, cria as megalópolis. É isso que está na origem da agressão ao meio ambiente que presenciamos hoje.

A degradação ambiental vem de há muito sendo objeto de preocu-pação e denuncia por parte de cientistas, organizações e personali-dades no mundo inteiro. Na década de 1980, Jacques Cousteau e um grupo de estudiosos das universidades norte-americanas já haviam anunciado que os recursos do planeta não seriam suficientes para sustentar o padrão de consumo dos EEUU se ele fosse estendido a todo o mundo. Não haveria petróleo, aço, alumínio e outros materiais para satisfazer a demanda que seria criada.

No limiar do século XXI, a situação se agravou. Diz a revista The Economist:

O principal impacto da China no mercado mundial é a mudança dos preços relativos. Os produtos exportados pela China em-purram os preços para baixo e os produtos importados por ela puxam os preços para cima, nomeadamente petróleo e matérias primas. A China é hoje o maior consumidor de alumínio, aço, cobre e carvão, e o segundo em petróleo... como o consumo per capita de petróleo na China é ainda 1/15 daquele dos EEUU é

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Sobre o aquecimento global

inevitável que a demanda de energia cresça no futuro, junta-mente com o aumento da renda.4

O que se descortina hoje é que com base nos recursos naturais conhecidos e prospectados no mundo e com a atual tecnologia nem a China poderia alcançar o nível de consumo dos EEUU sem provo-car um desastre ecológico.

A questão do aquecimento globalEm 1992, representantes de quase todos os países do mundo

reuniram-se no Rio de Janeiro para elaborar a “Carta da Terra”, assinada por 175 países, que abarcava três convenções: Biodiver-sidade, Desertificação e Mudanças Climáticas, uma Declaração de Princípios e a Agenda 21, base para que cada país elaborasse seu plano de conservação do meio ambiente.

O Protocolo de Kioto (1997) foi mais adiante: estabeleceu metas para a emissão de gases poluentes, dentre os quais o dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH4), que, além de outros gases, contri-buem para aumentar o “efeito estufa”. Este protocolo conta com a participação de 163 nações e prevê que até 2012 seus signatários reduzam as emissões combinadas a níveis 5% abaixo dos índices de 1990. A eficácia do acordo, contudo, é limitada, pois até o momento os Estados Unidos, maior emissor mundial de dióxido de carbono, não ratificaram o pacto. Especialistas acreditam que as resoluções de Kioto apenas combatem a camada mais superficial do problema do aquecimento.

O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), promovido pela ONU, realizado em Paris, em abril deste ano (2007), com a participação de 2.500 cientistas e estudiosos, acendeu o si-nal vermelho. Segundo o “Quarto Relatório de Avaliação do GT1:

(...) a concentração atmosférica global de dióxido de carbono aumentou de um valor pré-industrial (1750) de cerca de 280 ppm para 379 ppm em 2005.5

4 “The Economist”, 30/07/05, p. 62,63.5 ppm, partes por milhão, é a razão do número de moléculas de gases de efeito estufa

em relação ao número total de moléculas de ar seco; ppb, idem, idem, bilhão.

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A concentração atmosférica de dióxido de carbono em 2005 ul-trapassa em muito a faixa natural dos últimos 650.000 anos (180 a 300 ppm) como determinado a partir de testemunhos de gelo. A taxa de aumento de concentração anual de dióxido de carbono foi mais elevada durante os últimos dez anos (média de 1995 a 2005: 1,9 ppm por ano) do que desde o início das medições atmosféricas contínuas (média de 1960 a 2005: 1,4 ppm por ano) embora haja variações de um ano a outro nas taxas”. E acrescenta, adiante:

(...) a principal fonte de aumento da concentração atmosférica de dióxido de carbono desde o período pré-industrial se deve ao uso de combustíveis fósseis, com a mudança do uso da terra contri-buindo com uma parcela significativa, porém menor.6

Sabe-se que o efeito estufa é indispensável à vida na Terra. Entre-tanto, a partir de um certo valor da concentração dos gases, a tempe-ratura na Terra aumentaria a ponto de produzir catástrofes ecológicas como amplamente divulgado pelos jornais após a publicação do rela-tório do IPCC.

A matriz do aquecimentoAs principais fontes de gases do aquecimento global são (em %):Transportes .......................................................................... 13,5 Eletricidade .......................................................................... 24,6Outras formas de queima de combustível ............................... 9,0Indústria .............................................................................. 10,4Emissões acidentais ............................................................... 3,9Processos industriais .............................................................. 3,4Uso da terra ......................................................................... 18,2Agricultura ........................................................................... 13,5Lixo e rejeitos ......................................................................... 3,6Desse total, 77% corresponde ao CO2, 14% ao metano (CH4), 8%

ao óxido nitroso (N2O) e 1% a outros.7

Daqui é fácil concluir que o maior contribuinte desses gases é a indústria petrolífera. Não é por acaso que o American Enterprise Insti-tute (AEI), um instituto financiado pela gigante petrolífera ExxonMobil

6 Quarto Relatório de Avaliação do GT1 do IPCC, Sumário Para os Formuladores de Política (em português), p. 5

7 “O Globo” de 3/02/07, p. 42.

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Sobre o aquecimento global

com “ligações estreitas com o governo Bush” – ofereceu US$ 10 mil para que cientistas e economistas publicassem artigos que duvidas-sem das constatações do relatório do IPCC.8

Quem são os responsáveis?Mas a discussão sobre os responsáveis não para aqui. Alguns

estudiosos vêm concentrando a discussão na quantificação da par-cela desse aumento dos gases do efeito estufa. Afinal, dizem eles, qual seria a contribuição do homem e qual a da natureza, aqui in-cluídos fatores do planeta e do sistema solar, nesse aumento?

O que os cientistas que elaboraram o relatório do IPCC dizem é que há 90% de chance de que o aumento observado após a revolu-ção industrial cabe ao homem. Outros argumentam que seria pre-potência dos seres humanos atribuírem às suas atividades o poder de mudar o clima do planeta.

Há que notar que a humanidade vem influindo sobre o meio am-biente há milênios. A destruição da floresta que havia na Zona da Mata alterou o clima do nordeste brasileiro e no mundo os exemplos de tal interferência são inúmeros. Mas, diriam aqueles, uma coisa é alterar o clima em regiões localizadas outra é alterar as condições da atmosfera que afetam o planeta.

Até o fim da guerra fria, nos últimos anos da década de 80 do século passado, uma guerra nuclear entre os EEUU e a União Sovi-ética era uma possibilidade real. Se isso tivesse acontecido, diziam os cientistas, seria criado um “inverno nuclear” com efeitos seme-lhantes àquele criado pela queda de um meteoro que há milhões de anos destruiu os dinossauros.

O buraco na camada de ozônio é um exemplo instrutivo: na medida em que os países ricos reduziram ou eliminaram a emissão dos CFCs (gases que destroem aquela camada) o buraco reduziu-se significativamente.

Os principais responsáveis pelo aquecimento global são os paí-ses ricos que, com uma população de 20% da humanidade, conso-mem hoje 80% do que é produzido no planeta (aqui incluído a ener-gia), enquanto os outros 80% ficam apenas com 20% .O desafio não é fazer com que esses 80% mais pobres consumam (e desperdicem) a mesma coisa que os ricos, mas sim que haja uma redistribuição de renda aliada a um desenvolvimento ecologicamente correto para

8 Idem , idem, p. 40.

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Política Democrática · Nº 18

que possamos chegar a uma co-evolução, a uma relação racional com a natureza. Esse é talvez o maior e mais urgente desafio para a democracia.

Gente, tecnologia e tempoA humanidade levou mais ou menos 120.000 anos para chegar

ao primeiro bilhão de seres humanos (em torno de 1800 d.C). E, a partir daqui, somente 200 anos para chegar a 6 bilhões. Entretan-to, se olharmos mais de perto esse número não cresceu e não cresce igualmente em todos os períodos nem nos diversos continentes. Na Europa, a taxa de crescimento populacional foi de 1,7 entre 1750 e 1850, passou para 1,98 deste ano até 1950, decresce para 1,32 desta data até 2000 e daqui passa a ser menor que 1, decrescendo de 727,9 milhões em 2000 para 724,7 milhões(mi), em 2005. Na Ásia, só entre 1950 e 2000 a população passa de 1,39 bilhões (bi) para 3,67 bi, uma taxa de reprodução de 2,63 em 50 anos. E lá a taxa continua a ser maior que 1.9

O que se nota é que enquanto o capitalismo industrial e as técni-cas fordistas e tayloristas dominaram a Europa o crescimento de sua população foi acentuado. A partir da década de 60 do século passado os trabalhadores europeus atingem um alto grau de organização e de luta, a competição com o sistema socialista ganha novas cores, come-ça a revolução técnico-científica e as atividades industriais intensivas em mão de obra passam a ser transferidas para os países subdesen-volvidos, como foi o caso da indústria automobilística no Brasil.

Os métodos anticoncepcionais se desenvolvem e a pílula passa a jogar um papel decisivo na taxa de reprodução da população. As po-pulações da Europa e dos EEUU passam a concentrar a produção de conhecimentos, a taxa de reprodução pode cair.

Como dissemos acima, mesmo com a atual população mundial e se alguma fada fizesse com que as relações de dominação mudassem os recursos do planeta não seriam suficientes para atender um consu-mo do padrão dos norte-americanos para toda a população mundial. Entretanto, o esgotamento progressivo dos recursos não significaria um limite físico para o capitalismo, para o crescimento da sua pro-dutividade social. Porque as mudanças tecnológicas permitiriam sua sobrevida nas novas condições: a General Motors já desenvolveu pro-

9 “Crescimento Populacional”, Wikipédia em http//t.wikipedia.org/wiki/Crescimen-to_populacional

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Sobre o aquecimento global

tótipos de carros elétricos, idem de hidrogênio etc. E o sistema solar mal começou a ser explorado. Claro, as reservas de petróleo que a natureza levou milhões de anos para produzir seriam esgotadas e o aquecimento global já teria derretido a calota polar. Já existem no-tícias de que o preço do metro quadrado no Alaska está subindo. As regiões frias do norte se transformariam em temperadas e as tropicais em desertos.

Isso não será assim, dizem alguns, porque a próxima glaciação vai mudar tudo. Mas o que se sabe é que não há indícios desse fenômeno. Os mais de cinqüenta modelos matemáticos construídos para explicar esses ciclos ainda não permitem prever o tempo em que tal fenômeno se dará.

Nessas circunstâncias, as relações de exploração e desigualdade continuariam e se expandiriam para outras fronteiras porque isso é inerente ao capitalismo.

Os desafios e limites para os que querem estabelecer uma relação racional com a natureza não são físicos, são políticos.

*

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Um país (um mundo) de sinais trocados

Marcos Costa Lima

Chame o ladrão, chame o ladrão!

Chico Buarque de Holanda

O trecho antológico do samba Acorda, amor de Chico Buarque é expressão da ironia, da astúcia e da atualidade desse grande músico e poeta brasileiro. Evidencia um país de sinais troca-

dos, onde a lei é excludente, rigorosa, madrasta, sobretudo para os mais fracos, os destituídos de poder.

Vive-se numa sociedade em que a impunidade do colarinho branco é a regra, em que é raro o relacionamento de igual para igual, em que a esfera pública é marcada por privilégios de toda natureza. Ampliam-se, ano a ano, a espacialização das classes sociais e os guetos, seja no sentido dos condomínios luxuosos das altas rendas, dos shopping centers reluzentes, seja das palafitas e favelas dos trabalhadores in-formais. Privatiza-se boa parte do Estado e declara-se, sem maiores discussões, a eficiência do mercado. Ou, como diria em tom de ironia o historiador Perry Anderson (2004), o aprofundamento das “assime-trias entre a rua e o palácio”.

O padrão de conduta dominante é o individualismo, é o salve-se quem puder, pois vigora um sistemático darwinismo social a cada dia mais generalizado, que impregna pouco a pouco todo o imaginário e o tecido social.

No cotidiano urbano, privilegiam-se os automóveis, e não as pes-soas, com avenidas a permitirem a celeridade dos carros, que des-configuram edificações de valor histórico. Asfaltam-se antigas áreas verdes, impedindo ou dificultando o caminhar dos pedestres, sujeitos a ruas sem calçadas, barulhentas, com os esgotos estourados aten-tando contra a saúde pública. E raros são os espaços públicos de convivência, de sociabilidade, uma vez que a pobreza desloca-se a pé ou de ônibus, jamais de automóveis de passeio de uso das classes médias, que vão de uma “ilha urbana” à outra, rumo a espaços cli-

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Um país (um mundo) de sinais trocados

matizados e de conforto. Em muitas metrópoles brasileiras, até o pão cotidiano compra-se de automóvel, por medo de assaltos, e nos meios abastados, quando é procurado a pé, o é por intermédio das domés-ticas. Evidentemente anula-se, pela residência em altos edifícios, o sentido da vizinhança, para não dizer o de compartilhar.

Viver exclusivamente para si e os familiares mais próximos é, prin-cipalmente, ignorar os outros, é pensar nos prazeres e nas facilidades individuais, custe o que custar. Se o objetivo é chegar mais cedo à casa ou ao trabalho, jamais se cede a vez, jamais se pratica um gesto cordial, considerado atitude de “otário”, que não sabe levar vantagem, que desconhece que o homem é o lobo do homem. Portanto, quem não se adapta, quem não é “forte”, quem não decide, quem não é eficiente é um perdedor, talvez a palavra mais ofensiva na língua dos norte-americanos, o loser.

Já na filosofia de Platão encontrava-se a crítica social, pois seu idealismo não podia admitir um mundo material onde os homens e as coisas se defrontassem como mercadorias. A ordem justa da alma se-ria destruída pela cobiça da riqueza, que controla os homens a ponto de não terem mais tempo para nada além da preocupação com suas propriedades. O cidadão se empenha nisso com toda a sua alma, de modo que não tem tempo para pensar em nada mais do que no ganho diário, no acúmulo de riquezas.

Segundo Herbert Marcuse (2001), na época burguesa, a teoria da relação entre o necessário e o belo, entre o mundo dos sentidos e o mundo das idéias, entre o trabalho e o prazer experimentou mudan-ças substantivas. Em primeiro lugar, desapareceu a idéia de que a preocupação com os valores supremos seria apropriada como profis-são por determinados setores sociais. Em seguida, surge a tese da universalidade geral da “cultura”. No entanto, mantém-se e afirma-se a dicotomia entre cultura e civilização; quer dizer, de um lado um mundo espiritual melhor, essencialmente diferente da res extensa, da luta cotidiana pela existência. Os grupos da burguesia fundavam sua exigência de uma nova liberdade social mediante a razão humana uni-versal, mas ela logo se revelava excludente:

[...] numa sociedade que se reproduz pela concorrência econômica, a simples exigência de uma existência feliz do todo já representava uma rebelião [...] A exigência de felici-dade contém um tom perigoso em uma ordem que resulta em opressão, carência e sacrifício para a maioria. (MAR-CUSE, 2001)

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III. Observatório Político

Política Democrática · Nº 18

Uma sociabilidade unidimensional, como diria nosso filósofo, é re-sultante de uma sociedade em ruptura, em que a cultura foi engolida pela civilização, em que a perda da percepção dos outros, o alhea-mento individual é uma exigência pragmática de sobrevivência. Mas é também uma perda de sentido mais geral – vive-se apenas para a conquista de bens materiais, mesmo à custa da perda de convivência com filhos, amigos, parentes. Aí reside o fetichismo da mercadoria. Vive-se como um moto-contínuo, sem questionamentos, sem se per-guntar para que, por que, para quem. O outro, nessa perspectiva, é sempre percebido como um adversário, jamais como alguém com quem se possa dialogar, trocar, aprender e, menos ainda, como uma parceria criativa. Perde-se a dimensão de projeto, de objetivos comuns e instaura-se a fragmentação, o curto-prazo, o imediatismo.

O conjunto desses comportamentos, analisados com acuidade por Lasch (1970; 1995), foi por ele intitulado de “ética da sobrevivência narcísica”, em que o sentido do que é coletivo e público esfuma-se, para dar lugar a uma privatização acentuada das esferas da saúde, da educação, da segurança. Lasch, imunizado contra o culto da eco-nomia, do progresso, da modernização, põe em questão o movimento tido como inelutável, que submete ao “reino da economia” todas as sociedades e o processo de emancipação efetiva dos indivíduos e dos povos.

No mesmo sentido, Jean-Claude Michéa (2003) afirma que o “pre-tendido realismo da ciência econômica repousa sobre uma representa-ção metafísica do homem, cuja aplicação prática e irrefletida é terrivel-mente destrutiva para a humanidade real”. Na cultura da indiferença, conforme a lúcida reflexão de Jurandir Freire da Costa, a guerra é de todos contra todos e, nesse embate, morte e vida se equivalem.

Não foi justamente Adam Smith quem entronizou a idéia segundo a qual o bem-estar material de “toda a sociedade” é garantido quando todos podem seguir o seu próprio interesse particular? Albert Hirs-chman (2002) ressalta que o autor de A Riqueza das Nações torna sinônimos os termos “interesses” e “paixões”, que tinham significados antagônicos na literatura até a elaboração de sua opus magna.

Quais são os grandes problemas que têm acometido a sociedade contemporânea e os indivíduos? Observando o mundo contemporâneo a partir da interpretação freudiana, que trata o processo civilizatório como um confronto entre o instinto de vida (Eros) e o instinto de morte (Thanatos), no entendimento dos fluxos simbólicos, das pulsões pro-dutivas da atualidade, Thanatos estaria momentaneamente vitorioso, e não é difícil perceber quatro dimensões articuladas daquilo que re-

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Um país (um mundo) de sinais trocados

presenta esse mal-estar civilizatório, dimensões que ressaltam a falên-cia do paradigma atual e a necessidade de construirmos alternativas à crise vigente.

A primeira delas é a dimensão global, que tem como características mais salientes um sistema financeiro dominante, que exige retornos predatórios à dinâmica do setor produtivo, estimulando uma acentua-da “oligopolização” do poder das grandes corporações transnacionais; a utilização privativa, mercantil e exclusiva da ciência; a obsolescência programada da produção de artefatos; a ampliação da dominação so-bre a periferia do capitalismo; uma sociedade de consumo excludente: o incremento da pobreza mundial; uma crise ambiental generalizada; uma ideologia da Via Única; a vertigem da velocidade e o excesso de informação.

A segunda é a dimensão doméstica, dos costumes e da cultura, na qual o individualismo prevalece sobre o coletivo; a mudança no in-terior da família; o consumo conspícuo e ostensivo; o excessivo poder da imagem; o narcisismo e o exibicionismo; o voyeurismo e a “espeta-cularização”; a solidão dos indivíduos e das massas; a predominância do curto prazo e do hedonismo; a falta de compromisso; a falta de ética nas relações; a falta de perspectivas; as drogas enquanto “paraísos artificiais”; a perda da auto-estima pela fragilidade dos princípios; o sexo como mercadoria; a intolerância. Não é por nada que boa parte da ciência política contemporânea assume, derrisoriamente, as premissas do individualismo metodológico ou da intitulada “escolha racional”.

A terceira dimensão é aquela da produção: a crise e a precarização do trabalho; a insegurança quanto ao futuro; o desemprego estrutural e a robótica; o trabalhador descartável; a quebra dos padrões legais de proteção vigentes; o risco e o medo do fracasso.

Finalmente, a dimensão da cidadania: a crise do Estado; o Esta-do autoritário; o Estado mínimo privatizado; o retorno das questões e conflitos religiosos e étnicos; a descrença generalizada na política; a formalização dos direitos e a impunidade; a explosão da violência con-creta e simbólica; o “humanismo militar”1.

Jurandir Freire da Costa (1977) diz que “[...] através do imaginário social, podemos entender a construção da subjetividade historicamen-te contingente e socialmente determinada”. E esse imaginário está condicionado pela exploração econômica e física da classe trabalhado-ra, pela concentração de renda, pela brutalidade e violência cotidiana,

1 Expressão utilizada por Perry Anderson para designar a violência expressa nas hege-monias dos países centrais, notadamente aquela dos Estados Unidos da América.

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III. Observatório Político

Política Democrática · Nº 18

em que os políticos sinalizam para um descompromisso com o interes-se coletivo; em que a polícia, enquanto agente público da segurança, comete todo tipo de arbitrariedade – da corrupção ao extermínio –, em que os pobres e miseráveis não são percebidos enquanto sujeitos, en-quanto pessoas morais, enquanto cidadãos, e essa desqualificação do sujeito como ser moral provoca a indiferença e anula o outro em sua humanidade, como nos lembra Hannah Arendt. Se as elites ignoram os pobres, ou fazem semblante, estes, por sua vez, negam seu perten-cimento a um povo, classe ou nação (COSTA, 1994); e o banditismo incruento das Cidades de Deus, dos Jardineiros Fiéis é extrapolado para os espaços luminosos e refrigerados das cidades maravilhosas, daqui e d’além mar.

É grave o crescente problema da violação dos direitos humanos coletivos e individuais no cotidiano, numa sociedade em que as ins-tituições mediadoras estão, se não ausentes, omissas ou coniventes com a produção da violência, ao não reconhecerem os direitos da “gente miúda”, das camadas populares que não são aceitas como sujeitos sociais e políticos. Desta forma há que se trabalhar o papel emancipatório da educação e da aprendizagem conjunta na elabora-ção de uma educação para os direitos humanos, levando em conta as determinações materiais necessárias à vida social como condição para o avanço dos espaços alternativos de construção de outros sa-beres, indispensáveis para que uma nova prática seja implantada, a começar pela recuperação da democracia. Este não é um processo simples e pode exigir a desobediência civil, a exemplo do que têm demonstrado os “sem terra”.

Os gregos na antiguidade atribuíam à paidéia o sentido da forma-ção e educação de seu povo, pois:

“[...] estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem arte formal ou uma teoria abstrata, dis-tinta da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação. [...] Os gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de construção consciente [...] e só a este tipo de educação se pode aplicar com propriedade a palavra formação, tal qual a usou Pla-tão em sentido metafórico, aplicando-a à ação educadora [...]” (JAEGER, 1975).

Com as devidas mediações, isso está em sintonia com a educação para a liberdade, de Paulo Freire, que implica descolonizar saberes estabelecidos, respeitar o saber do educando, rejeitar qualquer forma

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Um país (um mundo) de sinais trocados

de discriminação, aceitar o novo, tomar o conhecimento como uma construção de pontes, uma dialógica entre o ir e o vir, com padrões de respeito à dignidade do próximo.

Uma educação transformadora para uma população majoritaria-mente desprovida de direitos, porque desprovida de poder, nos re-porta à significativa obra de Amartya Sen (1997) sobre a pobreza. O economista indiano introduz um conceito de alta relevância, que é o conceito de efetivação2. Os elementos constitutivos da vida são en-tendidos como combinações de várias efetivações. A relação das efe-tivações será tanto maior quanto maiores forem as possibilidades de um sistema social. Existem efetivações elementares, como evitar a morte precoce, alimentar-se adequadamente, o direito de transitar, ou até efetivações mais complexas, como desenvolver o auto-respeito, a auto-estima, participar da vida comunitária de forma ampla (COSTA LIMA; LEITE, 2001).

Comentando a assertiva de Montesquieu segundo a qual a vida dos povos era governada por leis e costumes, Hannah Arendt nos alerta que “a falência das nações tem início com a destruição gradual da le-galidade, seja porque o governo no poder abusa das leis, seja porque as leis nascem de uma autoridade que se torna questionável”. Como resultado, a nação acaba por perder, além da crença em suas próprias leis, sua capacidade de ação política responsável: “As pessoas deixam de ser cidadãs no sentido estrito do termo. [...] Só se pode confiar na tradição para impedir o pior durante um período limitado de tempo”.

Em nossa tradição autoritária e oligárquica, a fragilidade de nosso Estado democrático de Direito é cotidianamente exposta, é uma quase figura de retórica.

Ao concluir estas reflexões sobre este país (mundo) de ponta-ca-beça, onde é próprio do capitalismo mundializado aprofundar as desi-gualdades e as injustiças (GADREY, 2000; PLIHON, 2003), uma refle-xão do jurista Fábio Konder Comparato (2004) chama a atenção para o fato de que no Brasil o sistema democrático tem funcionado em sen-tido inverso, pois a soberania tem pertencido de fato aos governantes “que vivem numa espécie de estratosfera ou círculo celeste”, região ou domínio onde só são admitidos os que detêm poder econômico ou, no máximo, aqueles carismáticos que possuem poder simbólico, que se

2 Também conhecido como enfoque da habilitação (entitlement). Para participar da distribuição de renda social, é necessário estar habilitado por títulos outros, seja de propriedade, seja pela inserção qualificada no sistema produtivo, pelo comércio, pelo trabalho por conta própria, pela herança. Cada elo na cadeia das relações de efetivação legitima um conjunto de propriedades (títulos) em relação a outros.

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III. Observatório Político

Política Democrática · Nº 18

transfigura em votos junto à opinião pública; de fato são expressões de poder que caminham juntas. Por quanto tempo mais? A democracia, muito ao contrário, “pressupõe a atribuição efetiva (e não apenas sim-bólica) da soberania ao povo, devendo os órgãos estatais atuar como meros executores da vontade popular”.

ReferênciasANDERSON, Perry. “A batalha das idéias na construção das alternativas”. In: Atílio Borón. Nova Hegemonia Mundial. Buenos Aires: Clacso, p. 46, 2004.

ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

COSTA, Jurandir Freire da. “Ética e democrática e seus inimigos: o lado privado da violência pública”. In: Nascimento, Elimar Pinheiro (org.). Ética. Rio de Janeiro; Brasília, DF: Garamond/Codeplan. (Coleção Brasília, Capital do debate: o Século XXI), 1997.

COSTA LIMA, Marcos; LEITE, Maria de Jesus de Britto. “O conceito de pobreza e a sua mensuração: uma pluralidade de abordagens”. Política Hoje, ano 7, n. 11, jul., Recife, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GADREY, Jean. Nouvelle Économie, nouveau mythe? Paris: Flammarion, 2000.

HIRSCHMAN, Albert O. As paixões e os interesses. Rio de Janeiro: Record, 2002.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, p. 2, 13, 1975.

LASCH, Christopher. A rebelião das elites e a traição da democracia. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995.

MARCUSE, Herbert. Cultura e psicanálise. São Paulo: Paz e Terra, p. 7-77, 2001.

MICHÈA, Jean-Claude. Impasse Adam Smith: brèves remarques sur lº impossibilité de dépasser le capitalisme sur la gauche. Paris: Climats, p. 40, 2002.

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IV. No compasso das reformas

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Autores

Arryanne QueirozAnalista Judiciário do Tribunal Superior Eleitoral, pesquisadora da Anis: Instituto de Boética, Direitos Humanos e Gênero

Márcia de AlencarPsicóloga com pós-graduação em Sociologia, consultora em Penas Alternativas, especialista em Gestão Pública e membro da diretoria executiva do Instituto Brasileiro de Execução Penal (Ibep).

Almira RodriguesDoutora em Sociologia pela UnB e feminista.

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Colisão de direitos fundamentais no debate sobre aborto

Arryanne Queiroz1*

A discussão sobre o aborto provoca os limites da tolerância moral, ética e religiosa das pessoas. Infelizmente, boa parcela da hu-manidade ainda se vale da religião como justificativa absoluta

para praticar atos truculentos contra seus estranhos morais, optando pelo fanatismo religioso em detrimento da lucidez religiosa; assumin-do o compromisso missionário de fazer valer uma única verdade, como se a pluralidade de pensamentos não fizesse parte da essência do ser humano.

No Brasil, o debate público sobre o aborto tem sido marcado pela intolerância religiosa de congregações radicais, que, amparados pelo direito fundamental à liberdade de expressão, e em nome da causa antiaborto, se valem da violência à imagem e à honorabilidade alheios para tentar impor silêncio. O mecanismo eleito para desqualificar, se-gregar e intimidar quem ousa divergir é a imputação da palavra ‘abor-tista’ contra quem promove o dissenso ético e democrático no debate sobre o aborto.

É preciso descascar as várias camadas de significado do termo ‘abortista’. A expressão é pejorativa e grosseira, além de estar associa-da a figuras depreciativas como caveiras ou a morte. Não faz parte do léxico corrente da língua portuguesa, a tal ponto que não foi inserida

1 Analista Judiciário do Tribunal Superior Eleitoral, pesquisadora da Anis: Instituto de Boética, Direitos Humanos e Gênero.

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IV. No compasso das reformas

nos dicionários oficiais do idioma. Não é conceito moralmente neutro, sendo que, dentro das comunidades onde adquire reconhecimento, validade, eficácia e aplicabilidade, constitui ofensa gravíssima. Nenhu-ma pessoa adepta da bandeira ‘pró-vida’ – absolutamente contrária a toda justificativa para o aborto – toleraria ser taxada como ‘abortista’, certamente porque essa tipificação atingiria sua honra e sua imagem, com conclusões nefastas sobre sua índole e seu caráter. A palavra é usada tanto como adjetivo quanto como substantivo, sempre impli-cando, nas duas acepções, insulto, com pesos negativos similares na perspectiva do ofendido e do ofensor.

O emprego da palavra estimula um sentimento de aversão e de repugnância, principalmente, porque o tema ainda não deixou de ser tabu na sociedade brasileira. Tem conotação torpe e infame, não se prestando simplesmente a evidenciar a adoção partidária de corrente ideológica sobre o aborto. É a tradução panfletária de ‘assassino de bebês’: um slogan religioso de impacto político criado para angariar forças para o front de uma luta ‘santa’ (imaginária) contra qualquer convite público de reflexão sobre a eticidade e a humanidade da abre-viação terapêutica da gestação, desde a perspectiva da saúde emocio-nal, mental, psíquica e física da gestante.

Afora isso, enseja uma visão distorcida e caricata do indivíduo, induzindo à conclusão equivocada de que sua discordância quanto à posição oponente ao aborto compromete a idoneidade de sua conduta. O uso da expressão serve a um propósito demarcatório simplificado de identidades, em que, de um lado, são postas as pessoas más (‘abor-tistas’) e, de outro, as pessoas boas (não ‘abortistas’), contrapostas, respectivamente, entre o satânico e o divino, valores espirituais impor-tantes para a sociedade.

A ligação do nome, da imagem e da profissão de uma pessoa ao vocábulo tem por fim enfraquecer e escarnecer seu discurso e pôr em cheque a seriedade de sua linha de pesquisa, desviando, de forma ras-teira, o foco de atenção, da atividade intelectual, para a personalidade do indivíduo. As pessoas que não reconhecem no aborto um pecado contra Deus nem uma transgressão de preceitos religiosos ou dogmas de fé, mesmo sem serem agnósticas ou descrentes, são etiquetadas como ‘abortistas’, tornando-se vítimas de um reducionismo perverso sobre sua efetiva compreensão acerca da moralidade do aborto.

A associação de uma pessoa ao termo ‘abortista’, que traz implí-cito em seu sentido uma acepção vil, expõe os predicados inerentes à personalidade humana a uma situação de vulnerabilidade incom-patível com o ordenamento constitucional, que tem por fio condu-

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Colisão de direitos fundamentais no debate sobre aborto

tor o princípio da dignidade da pessoa humana. A imputação iso-lada do termo ‘abortista’ não denota o exercício honesto do direito de crítica assegurado pela liberdade de expressão, porque ignora o postulado da máxima transparência próprio das relações de boa-fé. Assim como todas as palavras ofensivas e ultrajantes da língua por-tuguesa, a palavra ‘abortista’ sempre estará disponível para quem dela quiser lançar mão. Não faz sentido proibir a pronúncia e o uso de qualquer palavra pelas pessoas. Isso seria dar espaço para lógica do impossível. Contudo, a certeza de que a censura prévia é incompatível com a democracia e a vida civilizada não significa que a livre expressão não possa e não deva ser judicialmente punida quando infringe valo-res individuais, difusos e coletivos de respeito mútuo vigentes nestas sociedades, com a incitação ao ódio, ao apartheid e ao preconceito. Ne-nhuma palavra é proibida, mas toda palavra pode ser alvo de repreen-são judicial quando servir como instrumento para atingir a felicidade e o bem-estar alheio, causando constrangimento, angústia, sofrimento e dissabor significativos ao ofendido.

Se, por um lado, o preceito fundamental de liberdade de expressão permite a qualquer pessoa, religiosa ou não religiosa, defender publi-camente a abreviação de gestação como uma extensão dos direitos à dignidade humana, à autonomia da vontade e à saúde em sua acep-ção mais ampla, por outro, também autoriza outras pessoas a expo-rem seu repúdio ao aborto com base na premissa da santidade e da intocabilidade da vida humana. Todos têm resguardado, em princípio, o direito à liberdade de opinião. Em qualquer caso, porém, o direito à livre expressão não se coaduna com violência, que funciona senão como um fator de descaracterização desse direito.

O uso da palavra ‘abortista’ fomenta a marginalização social, constituindo um neologismo perigoso para a coexistência pacífica entre estranhos morais, porque alimenta a falsa premissa de que as pessoas não adeptas da razão ‘pró-vida’ são nocivas ao bem-estar da humanidade.

As liberdades públicas não são incondicionais, e, portanto, nin-guém pode exceder os limites impostos pela boa-fé e pelos bons cos-tumes no gozo de quaisquer direitos. O abuso que coloque em risco direito alheio, de mesma natureza ou não, faz surgir a responsabilida-de civil para o autor dos danos, como expõe o Código Civil, motivo pelo qual, inclusive, a Constituição Federal veda o anonimato. Segundo precedentes do STF, os direitos fundamentais pressupõem uso har-mônico por parte de seus titulares, sob pena de grave lesão à ordem jurídica.

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IV. No compasso das reformas

Nenhuma religião pode servir como escudo protetor para a prática de atos ilícitos ou de desrespeito aos sentimentos alheios. O diálogo pacífico entre oponentes ideológicos é possível, desde que, no exercício da liberdade de opinião, o princípio do respeito mútuo seja observado como virtude fundamental, o que não requer renúncia nem abandono de convicções pessoais nem institucionais, mas, apenas, tolerância ao próximo. A liberdade de expressão não garante liberdade para insul-tar, até porque é direito que não se orienta pelo princípio feyeraban-diano do tudo vale.

*

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Penas alternativas e política pública

Penas alternativas e política pública

Márcia de Alencar

A contextualização da execução penal alternativaA execução penal alternativa aproxima o Direito das Ciências Hu-

manas e Sociais. Trata-se de um processo de execução penal dinâmi-co, onde o mundo jurídico composto da lei como fonte formal básica interage necessariamente com o mundo social, a partir dos fatos ocor-ridos durante a execução da pena ou medida alternativa. Esses fatos se apresentam como fonte material permanente.

Demanda da execução penal alternativa é indiscutivelmente jurídi-ca e fundamentada no discurso legal. O processo dessa execução, por sua vez, guarda muita especificidade, uma vez que ele acontece na are-na social, no seio da comunidade e recebe um tratamento psicossocial e psiquiátrico especializado. O corpo técnico estabelece uma relação interdisciplinar, simultaneamente, com o juízo e a comunidade para viabilizar as condições e garantir os procedimentos técnicos e jurídicos suficientemente indicados e necessários para aquele caso concreto.

Resulta, desta feita, um produto de natureza jurídico-social com o objetivo de assegurar o controle social pelo Estado e pela sociedade.

Essa interdisciplinaridade representa, portanto, a base de sustenta-ção dessa prática jurídica, onde o discurso legal e o discurso técnico durante a execução das alternativas penais estabelecem uma relação de complementaridade, através de conceitos correspondentes e não concor-rentes, entre o mundo jurídico e o mundo social. Dentre eles, destacam-se: conduta/comportamento; fiscalização/acompanhamento; coercitivi-dade/volição; cumprimento da sanção/reinserção ou inclusão social.

O método aplicado tanto pelo discurso legal como pelo discurso téc-nico recorrem ao mesmo recurso: a hermenêutica. O primeiro interpreta a realidade objetiva através da prova e o segundo interpreta a realidade subjetiva através da personalidade. E ambos constroem uma lingua-gem singular que viabiliza a efetividade da execução penal alternativa.

Nas penas alternativas, o discurso legal busca caracterizar o fato jurídico, através da incidência sobre as leis 7.210/84, 9.009/84, 9.714/98, 10.259/01 e as Regras de Tóquio com base na Resolução

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IV. No compasso das reformas

da ONU/1990; enquanto o discurso técnico busca compreender o fato social, identificando o perfil individual, a dinâmica familiar e o contex-to social daquele sujeito implicado com o delito.

O monitoramento das alternativas penaisEnquanto nas varas criminais e nos juizados especiais criminais

são aplicadas penas e medidas alternativas pelos operadores do Direi-to seja no processo de condenação e/ou na transação penal; a equipe de apoio técnico capta, cadastra e capacita entidades parceiras para que os órgãos da execução (juiz e Ministério Público) credenciem a rede de apoio local, pública e/ou de interesse social.

Quando o processo criminal entra na fase de execução propria-mente dita, há a intimação, através de uma audiência. No caso das varas de execução, após a audiência é realizada a avaliação psicos-social pela equipe de apoio técnico. No caso dos juizados especiais, criminais, a avaliação ocorre durante a audiência.

Quando se trata de avaliação de situações de baixa e média com-plexidade não necessita de avaliação psiquiátrica. Quando se trata de situação de alta complexidade, o assistente social e o psicólogo sugerem uma avaliação psiquiátrica aos órgãos da execução. Em geral, os casos de alta complexidade envolvem o tratamento da dependência química ou uma manifestação aguda de uma psicose durante a execução.

Concluída a avaliação e resguardados os sigilos profissionais da área de saúde mental, a equipe registra um sumário psicossocial como uma súmula ou parecer nos autos do processo, com a indica-ção da entidade parceira mais adequada para receber aquele bene-ficiário da pena ou medida alternativa determinada. Essa entidade, por sua vez, é consultada previamente pelo corpo técnico para o de-vido registro.

O juiz da vara de execução homologa a decisão com base no sumá-rio psicossocial. No juizado especial criminal, o promotor propõe a tran-sação penal que, uma vez aceita, é também homologada pelo juiz.

A homologação consta dos condicionantes da pena ou medida al-ternativa imposta: o local de cumprimento da pena ou medida alterna-tiva, o volume de horas para prestar serviço à comunidade, ou o tempo da limitação de fim de semana, a freqüência do tratamento de Justiça Terapêutica se assim tiver sido determinado, além do comparecimento em juízo nos casos de prestação pecuniária.

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Penas alternativas e política pública

Uma vez encaminhado o beneficiário da pena ou medida alternati-va, inicia-se a fiscalização do cumprimento da sanção penal e o acom-panhamento da execução.

Durante o acompanhamento, a equipe de apoio técnico monitora as situações vividas pelo beneficiário, estabelecendo um contato perma-nente entre o juízo e a entidade parceira, através de visitas, reuniões, entrevistas, grupos de discussão, seminários e oficinas de trabalho com os próprios beneficiários e os responsáveis daquela instituição.

As entidades parceiras emitem relatórios e preenchem fichas de controle e freqüência, através de instrumentos de trabalhos repassa-dos pelo juízo desde o momento do credenciamento daquela institui-ção com a vara de execução ou juizado especial criminal. Concluído o tempo determinado para cumprimento da pena, é extinta a punibili-dade e arquivado o processo.

Caso se caracterize uma situação de incidente, a equipe de apoio técnico registra nos autos do processo ou dialoga, diretamente, com os órgãos da execução para que possa ser realizada uma audiência de advertência, onde nela se confirme ou se caracterize o descumprimen-to da pena ou medida.

Esse procedimento jurídico pode implicar em um novo encaminha-mento ou, no caso das varas de execução em uma conversão de pena alternativa para pena privativa de liberdade.

Em síntese, o sistema de monitoramento das alternativas penais envolve quatro procedimentos técnicos1 fundamentais:

• a captação, cadastramento e capacitação das entidades parcerias para formação da rede social de apoio;

• a avaliação psicossocial e psiquiátrica, em casos de alta comple-xidade;

• o encaminhamento do beneficiário para cumprimento da sanção penal determinada; e

• o acompanhamento da execução penal alternativa.

Durante a execução penal alternativa, o juízo e a comunidade re-alizam o monitoramento da administração do sistema de justiça cri-

1 Estes procedimentos técnicos encontram-se descritos na Metodologia de Apoio Téc-nico elaborada pela consultora Márcia de Alencar Araújo Mattos, através do convênio 068/2002 do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) com o Ministério da Justiça; e adotada no Manual de Monitoramento das Penas Alternati-vas editado pela Secretaria Nacional de Justiça, Cenapa, em novembro de 2002.

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IV. No compasso das reformas

minal, através da fiscalização do cumprimento da sanção penal e do desenvolvimento de programas de reinserção e inclusão social.

E, desta forma, Estado e sociedade civil exercem seus respectivos papéis institucionais no controle social dessa política pública criminal e diante do combate à impunidade e à violência.

As penas alternativas e a prevenção criminalAs práticas criminosas de baixo e médio potencial ofensivo guar-

dam características específicas e necessitam de um manejo diferen-ciado e especializado do Estado e da sociedade civil organizada para o efetivo exercício do controle social. Para tais condutas, o Estado impõe um tratamento penal alternativo onde o autor do fato ou condenado não sofre reclusão, permanece na comunidade por não representar, em princípio, risco ou perigo à comunidade.

No Brasil, as penas alternativas vêm se materializando nos últi-mos 15 anos, junto com a reforma do Estado, onde a passagem de um Estado burocrático para um Estado gerencial gerou ações públicas baseadas em contratos de gestão. O Estado passa a executar a política pública e a sociedade a monitorar seus resultados, de acordo com os princípios do Estado Democrático de Direito.

É necessário frisar que a sanção penal de baixa e média crimina-lidade, no momento da aplicação, baseia-se nos princípios da propor-cionalidade e razoabilidade da pena e que, no momento da execução, o princípio da punibilidade se apresenta com o cumprimento da pena ou medida alternativa imposta.

A impressão de que as penas alternativas punem menos são enga-nosas, elas punem melhor e hierarquizam o grau da sanção diante da tipologia do crime, gerando coerência na administração do sistema de justiça criminal. A ação criminosa de alta periculosidade guarda outra lógica dentro do campo da criminologia. O Estado e a sociedade não podem, portanto, oferecer a mesma resposta penal.

Para além do mundo jurídico, as alternativas penais pertencem ao campo das políticas públicas criminais e sua conceituação, por-tanto, envolve o tema da responsabilização da esfera pública. Espaço onde o Estado e sociedade civil organizada estabelecem diálogo e acordo sobre as garantias dos direitos civis, sociais, econômicos e culturais; e sobre o modo particular como o direito penal está sendo processado, frente ao acelerado quadro de impunidade e violência do

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Penas alternativas e política pública

país; e qual o seu grau de convergência com as políticas públicas em execução no país.

Quase 60% dos beneficiários desse instituto penal são pobres e mais de 50% têm ensino fundamental incompleto2 e cometeram uma infração que justifica uma pena restritiva de direitos e não uma pena privativa de liberdade.

Para reprimir esse crime o juízo e a comunidade interagem no mo-mento da execução penal para assegurar o fiel cumprimento da sanção penal, através de uma relação interdisciplinar previamente legitimada com procedimentos técnicos e jurídicos que envolvem a avaliação, o encaminhamento à entidade parceira, o acompanhamento e a fiscali-zação do beneficiário daquela pena ou medida alternativa determina-da de forma individualizada.

Diante desse tipo de crime, e visando prevenir a violência, o juízo e a comunidade passam a formar uma rede de apoio local, seja pú-blica ou de interesse social, para assegurar programas de inclusão social de tratamento, escolarização, profissionalização e geração de emprego e renda.

Para promover o bem-estar social, o Estado e a sociedade civil or-ganizada estabelecem pactos no âmbito da esfera pública para que os agentes públicos e sociais daquela comunidade assegurem o controle social, através do resgate e exercício da justiça, democracia, cidadania e paz social.

A incapacidade do Estado em promover bem-estar social e prevenir a violência tem gerado uma necessidade exagerada de reprimir o cri-me, esvaziando o papel das instituições que compõem o Poder Execu-tivo e colocando o Poder Judiciário em xeque com a responsabilidade de eliminar o mal com os remédios previstos e revistos no ordenamen-to jurídico. Como se a justiça do caso concreto, individualizada, que reflete factualmente apenas aquele delito, pudesse dar conta do des-compasso entre a realidade jurídica e o real social brasileiro.

A sociedade é chamada para participar como primo pobre e, com-pulsoriamente, recebe os riscos e as responsabilidades transferidas pelo estado, onde seus fracassos são punidos pelo próprio Estado, que se omitiu na origem; e seus sucessos são credenciados ao governo ou ao mandato que permitiu essa engenhosa gestão.

2 Fonte: Central Nacional de Apoio às Penas e Medidas Alternativas (Cenapa) da Se-cretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, Brasília, novembro de 2003.

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IV. No compasso das reformas

Feminismo e nova esquerda: um diálogo em construção

Almira Rodrigues

Este texto analisa algumas contribuições dos movimentos fe-minista e de mulheres para a construção da democracia no Brasil; reflete sobre a sua interlocução com outros sujeitos e

instâncias políticas; e desenvolve mediações entre o ideário feminista e a perspectiva de construção de nova(s) esquerda(s).

O feminismo da segunda metade do século XX trouxe contribuições teórico-práticas para o avanço da democracia, entre as quais destaca-mos especialmente duas. A perspectiva feminista coloca que a situa-ção das mulheres, bem como as representações e relações de gênero constituem um eixo estruturante das desigualdades e discriminações sociais. Entende que este eixo não corre em paralelo aos demais, mas se articula com outras bases que sustentam essas desigualdades e discriminações, como as relações de produção e de trabalho e as re-lações interétnicas e raciais. Nessa medida, distende as noções de conflito e opressão social para aquém e para além da relação capital-trabalho, ainda considerada por muitos como a categoria central ou exclusiva na compreensão e luta por mudança social, particularmente nas sociedades capitalistas.

Outra contribuição substantiva se traduz nas bandeiras de luta “o pessoal é político” e “democracia na rua e em casa”. O feminismo faz o resgate das relações na esfera privada – relações sociais e de poder tanto quanto as relações de trabalho e as relações políticas institucio-nalizadas – promovendo a sua politização, publicização e construção enquanto objeto de legislação, de políticas públicas e de aprofunda-mento da cidadania. Com esta visão, o movimento alerta para a cone-xão das esferas pública e privada: em ambas circulam relações de po-der que variam de relações mais simétricas, de diálogo e negociação, a relações de opressão, autoritarismo e abusos de todas as formas; as práticas democráticas e de dominação que circulam nessas esferas se reforçam mutuamente. Ao resgatar o cotidiano e as relações de repro-dução social, o movimento trouxe para a agenda política as dimensões de subjetividade, de auto-estima e empoderamento das mulheres, e o

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Feminismo e nova esquerda:

cenário de possibilidade de construção de relações igualitárias e fra-ternas entre homens e mulheres.

Desde os anos setenta no Brasil, os movimentos feminista e de mulheres vêm construindo uma das experiências mais ricas de diá-logo interno, isto é, no âmbito do próprio movimento. Há trinta anos era comum se falar “a mulher brasileira”, hoje não. Nessas três úl-timas décadas o ideário feminista de superação da discriminação, marginalização, exploração e opressão vivenciadas pelas mulheres e de construção de relações igualitárias difundiu-se para segmentos di-versificados: mulheres brancas, negras, índias e orientais; mulheres jovens, adultas e idosas; mulheres analfabetas e com distintos graus de instrução; mulheres solteiras, casadas e em coabitação; mulheres mães e não-mães; mulheres com deficiência ou não; mulheres traba-lhadoras urbanas e rurais, empregadas domésticas, donas de casa e empresárias; mulheres hetero, homo e bissexuais; mulheres travestis e transsexuais; mulheres prestadoras de serviços sexuais; mulheres religiosas e agnósticas/atéias.

Nesse processo de acolhimento e transmissão do ideário feminista, as mulheres se organizaram em grupos os mais diferenciados: desde aqueles que congregam mulheres em condições similares até outros que reúnem mulheres vinculadas a problemáticas específicas como educação, saúde, trabalho, moradia, violência, desenvolvimento sus-tentável e política. Estas organizações também apresentam diversas naturezas: muitas são autônomas e se articulam em redes e fóruns locais, regionais, nacionais e internacionais; outras se vinculam a ins-tituições abrangentes como associações de bairro, profissionais, sin-dicatos, centrais sindicais, universidades e partidos políticos. Estes agrupamentos realizaram suas próprias sínteses, e não sem tensões, afirmaram e afirmam sua singularidade, juntamente com a possibi-lidade de diálogo e articulação a partir de toda essa diversidade. Os movimentos têm conseguido gerir os conflitos e as desigualdades que recaem sobre as próprias mulheres sem submergir às clivagens de classe, culturais, sexuais, étnicas, raciais, religiosas e político-ideo-lógicas. Têm enfrentado duros embates, entre os quais se destacam aqueles em torno dos direitos sexuais e direitos reprodutivos – parti-cularmente pelas propostas de regulamentação da educação sexual nas escolas, da livre expressão sexual, da parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, dos serviços sexuais, da cirurgia para mudança de sexo, do aborto e da reprodução humana assistida – e do aumento de recursos para as políticas sociais.

No âmbito do movimento social, 1975 foi um marco na segun-da onda do feminismo, declarado como Ano Internacional da Mulher

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IV. No compasso das reformas

pela ONU, o que desencadeou comemorações em todo o mundo. Outro marco especialmente para o movimento no Brasil foi o ano de 1995, pela realização da IV Conferência Mundial sobre Mulher, Desenvolvi-mento e Paz, em Beijing, também convocada pela ONU, motivando um processo de preparação e articulação das mulheres brasileiras.

Mas não só o diálogo consigo próprio tem sido produtivo e enrique-cedor. Também tem sido profícuo o diálogo com o Estado brasileiro e com outros movimentos sociais, tendo em vista o caráter fortemente propositivo dos movimentos feminista e de mulheres e a receptivida-de e a disposição políticas dessas instituições. No âmbito do Estado brasileiro, um marco substantivo foi o ano de 1985 com a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão governamental e pa-ritário, expressando o reconhecimento da necessidade e importância da formulação de políticas públicas para mulheres, no contexto da redemocratização brasileira. A este instrumento inicial, reproduzido em muitos estados e municípios, seguiu-se, por reivindicação dos mo-vimentos e mais recentemente, a criação de órgãos executores dessa política (secretarias e coordenações). Estes órgãos, em âmbitos nacio-nal, estadual e municipal, têm a função de coordenação e implemen-tação de programas e projetos em diversas frentes e de forma cada vez mais transversal à estrutura e gestão governamental. Nesse processo de interlocução, merecem registro: a criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, vinculada à Presidência da República, com status de Ministério, em 2003; a realização da I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, em 2004, que originou o Plano Nacional de Políticas para Mulheres; e a preparação da II Conferência Nacional, a ser realizada em agosto deste ano, precedida por conferências estadu-ais e municipais já em curso.

A Constituição Federal de 1988 é outra conquista expressiva à medida que assegurou a igualdade jurídica entre homens e mulheres em direitos e deveres, além de inúmeras outras conquistas. No âmbito do Legislativo federal, desde 1986, com a eleição pela primeira vez de uma Bancada Feminina mais numerosa (26 parlamentares, sendo que em 2006 foram eleitas 45 deputadas), desenvolve-se a experiência de reunião das parlamentares de diferentes partidos em torno de uma plataforma dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero. A Ban-cada Feminina vem desenvolvendo um bom diálogo com os movimen-tos feminista e de mulheres o que tem propiciado avanços legislativos e iniciativas de controle e monitoramento das políticas públicas.

Apesar de muitas propostas apresentadas pelos movimentos terem sido incorporadas por legisladores/as, governantes e gestores públi-cos, este diálogo e negociação apresentam embates, entre os quais

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Feminismo e nova esquerda:

destacamos a dificuldade de inserção da perspectiva de gênero no Pla-no Plurianual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentá-ria Anual, que, de fato, garantem e concretizam direitos conquistados na lei, ao sustentar a implementação de políticas públicas mediante a implantação de programas de variados tipos e alcance social.

No que tange ao diálogo dos movimentos feminista e de mulheres com outros movimentos – a exemplo dos movimentos de direitos hu-manos, ambientalista e de desenvolvimento sustentado, de igualdade racial, de livre expressão sexual, entre outros –, este tem sido aprofun-dado gerando caminhos convergentes e solidários na luta por inclusão social, contra as desigualdades e todas as formas de discriminação social. Cada vez mais estes movimentos estabelecem alianças e reci-procidades entre si no apoio a agendas de luta pela construção de um novo mundo. Apontam para projetos de curto e longo prazo, defenden-do condições de existência digna para as atuais e futuras gerações.

Os movimentos feministas e de mulheres têm provocado o Estado e a sociedade civil organizada para a necessidade de que as instituições elaborem políticas de gênero em um chamamento para que conside-rem: a história e o cotidiano diferenciado de homens e mulheres com seus desdobramentos objetivos e simbólicos; os efeitos e impactos das ações públicas segundo o gênero; a importância de atuação no sentido de minorar e superar as desigualdades de gênero, expressas em rela-ções, condições e representações sociais, em geral constrangedoras, adversas e restritivas ao desenvolvimento e realização das capacida-des e potencialidades das mulheres.

A interlocução dos movimentos feminista e de mulheres nas duas frentes mencionadas – Estado e demais movimentos sociais – tem sido mais satisfatória comparativamente à interlocução com os partidos políticos. Dos 29 partidos registrados no TSE são poucos os que têm demonstrado uma sensibilidade para a questão e menos ainda os que adotaram uma política de gênero, ainda que tímida. Como elementos integrantes dessa política podemos mencionar: a definição de uma plataforma pela igualdade de gênero e cidadania das mulheres; a cria-ção de instâncias partidárias específicas para dinamizar esta políti-ca (Secretaria, Departamento, Coordenação de Mulheres/Gênero); a destinação de recursos financeiros para a realização do trabalho de promoção da participação feminina e das plataformas feministas; a destinação de tempo de propaganda partidária na mídia para difundir a importância da participação política das mulheres; e a adoção de cotas por sexo para a composição de instâncias de direção partidária, além da indicação das mulheres para atividades e funções expressivas de representação partidária.

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Nessa medida, cabe o questionamento do por quê ocorre a dificul-dade generalizada dos partidos (de esquerda, de centro, de direita) no que tange à formulação e implementação de uma política de gênero, em âmbito partidário, e de sua defesa junto ao Estado e à sociedade. Alguns partidos até acolhem uma plataforma feminista, mas apresen-tam fortes resistências a desenvolver iniciativas que efetivamente pro-movam e ampliem a participação das mulheres em âmbito partidário e de representação política. Os partidos políticos são historicamente instituições masculinas e funcionam a partir de uma lógica que acaba por restringir e/ou excluir a participação das mulheres. A adoção de uma política de gênero, particularmente em âmbito partidário, aponta para o compromisso, em alguma medida, de superar esta concentra-ção de poder; e significa, também, se comprometer com a divisão e o compartilhamento de responsabilidades e decisões sobre os rumos de desenvolvimento do país, e de construção da cidadania. Este é um horizonte promissor em termos de ampliação e democratização da po-lítica representativa que, no entanto, ainda não foi devidamente vis-lumbrado por militantes e dirigentes partidários.

Consideramos que a crise da política, dos políticos e dos partidos têm muito a ver com este fechamento e quase exclusividade da parti-cipação masculina. Esta situação é mais grave ainda, considerando-se que os partidos detêm o monopólio da representação política no Brasil como na quase totalidade dos países. A participação política das mu-lheres enfrenta adversidades decorrentes da cultura patriarcal, que naturaliza a vinculação deste segmento à esfera privada e dos homens à esfera pública. Outra adversidade refere-se a uma condição muito objetiva, a restrição do tempo das mulheres para a ação política à me-dida que as responsabilidades pelas tarefas domésticas e pelo cuidado das crianças, das pessoas idosas, doentes e com deficiências físicas e transtornos mentais recaem sobre elas. Estas funções não são divi-didas com os parceiros que coabitam com mulheres (embora já cerca de 30% das famílias sejam monoparentais femininas), tampouco são assumidas pelo Estado mediante a implementação de políticas públi-cas expressivas de educação infantil e de assistência à saúde voltadas para as pessoas que se encontram em situações de vulnerabilidade fí-sica e mental. A estas dificuldades mencionadas, somam-se outras no âmbito da política representativa, entre as quais se destaca a situação de imensa dificuldade das mulheres de dispor e reunir recursos para o financiamento de campanhas eleitorais, que no Brasil é privado. O sistema político brasileiro é excludente, viciado e perverso, benefician-do explicitamente as candidaturas com poder político e econômico e com influência para a arrecadação de fundos, que ocorre em grande

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Feminismo e nova esquerda:

parte por meio de mecanismos ilícitos, de tráfico de influência e de apropriação de recursos públicos.

Os movimentos feminista e de mulheres vêm colocando que a saí-da para esta crise implica um conjunto de mudanças em várias fren-tes. Entre elas, são essenciais: ampliar a compreensão da ação política para todas as relações e tempos da existência humana; reconstruir os partidos como instituições que considerem o cotidiano de sujeitos concretos, como espaços de enriquecimento humano e canais de cons-trução de “novos cenários de futuro”, cooperadamente com outros; fortalecer todos os espaços de expressão da cidadania e promover o engajamento de segmentos sub-representados na política institucio-nalizada, a exemplo das mulheres, da população negra e dos jovens; realizar mudanças no sistema político brasileiro mediante uma refor-ma política ampla e democrática.

Especificamente no que se refere à formação de uma nova esquer-da, ou de novas esquerdas, sintonizadas com os novos tempos, é mis-ter considerar que sua construção e desenvolvimento não podem ser uma prerrogativa de certos partidos políticos que se auto-nomeiam como tal. Uma perspectiva e prática de esquerda é fruto: do desenvol-vimento de determinadas compreensões sobre a existência e o viver em sociedade; da realização de formas de inserção social, alinhadas com determinados afetos, valores e práticas; do estabelecimento de compromissos com certas mudanças no status quo. Nessa medida, podem ocorrer em múltiplos espaços e relações.

Tais perspectivas e práticas exigem a constante formação e de-senvolvimento de seres humanos que possam afirmar relações éti-cas, de reciprocidade e respeito às diferenças. Exigem o enfrenta-mento constante de práticas perversas, narcísicas, de retaliação e de aniquilamento do “Outro”. Exigem a distinção entre espaço público e espaço privado; o respeito à coisa pública, de todas/todos, portanto um Estado com suas políticas, instâncias e recursos de caráter efe-tivamente público.

A partir dessas reflexões, entendemos que a construção de um projeto democrático e de esquerda para o Brasil exige a incorporação de uma perspectiva feminista e de gênero, sem o quê está fadado, a priori, ao fracasso, por uma desconexão com os tempos em que vive-mos e que buscamos transformar. Que a experiência de diálogo dos movimentos feminista e de mulheres em seu próprio âmbito possa contribuir e reforçar a importância do diálogo entre as esquerdas nesse processo de renovação e atualização histórica. Que a experiên-cia de diálogo dos movimentos feminista e de mulheres com o Estado

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IV. No compasso das reformas

e com os demais movimentos sociais possa ser aprofundada pelas forças de esquerda no país.

Que as forças de esquerda não sucumbam frente a clivagens parti-dárias e a projetos de poder excludentes e comprometedores da plurali-dade político-ideológica e da união de forças democráticas necessárias para o efetivo enfrentamento das desigualdades e exclusões sociais. Que as esquerdas no Brasil e no mundo se fortaleçam, se ampliem e se articulem. Que tenham vida nova e vida longa. Este é o nosso desejo, nossa luta e esperança.

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Autores

Iraci del Nero da CostaEconomista e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP.

Fábio Santa CruzMestre em História pela Universidade de Brasília (UnB) e professor de História na Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Oscar d´Alva e Souza FilhoProcurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Ceará. Diretor da Escola Superior do MP do Ceará. Professor de Ética e de Filosofia do Direito, na Unifor. Livre Docente em Filosofia do Direito. Email: [email protected]

João Manoel Pinho de MelloPh.D. em economia por Stanford, é professor-assistente do Departamento de Economia da PUC-Rio.

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Uma busca inglória

Iraci del Nero da Costa

A nosso ver, alguns pensadores marxistas ainda se prendem fer-renhamente à idéia de que uma eventual mudança socioeconô-mica radical dependerá, necessariamente, da liderança ideoló-

gica e da condução política de uma classe social revolucionária.

Dadas as transformações ocorridas no seio do velho proletariado, alguns buscam um novo “sujeito revolucionário” no seio de segmen-tos mais bem preparados do ponto de vista intelectual e profissional; integrantes de tais segmentos, aptos a chegarem a um refinamento ideológico mais sofisticado, aglutinar-se-iam numa elite politicamente atuante a qual viria a comandar as esperadas mudanças radicais. Já outros, procuram esse “indivíduo universal” nos estratos menos abo-nados da sociedade, entre os que “não têm nada a perder, a não ser as correntes que os agrilhoam”.

De toda sorte, estejam onde estiverem, tais elementos terão de es-tar em algum lugar de nossa complexa sociedade de inícios do século XXI. Tudo se passa como se o momento tido como “objetivo” tivesse preeminência absoluta sobre o elemento considerado de ordem “sub-jetiva”. A nosso juízo, a permanência de tal visão cediça, que já se mostrava limitada e ultrapassada no passado, é muito perniciosa e impede que se “limpe o terreno do pensamento marxista” a fim de que possamos formular novas formas de encarar a realidade atual e de atuar sobre ela; realidade essa fundamente marcada e alterada, tanto objetiva como subjetivamente, pela derrocada do assim chamado “so-cialismo real”.

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Uma das mudanças significativas decorrentes da experiência histórica acumulada no correr dos últimos cento e cinqüenta anos talvez tenha sido a de liberar uma eventual revolução social futu-ra das amarras que, como se supunha, a prendiam a uma dada classe social.

Segundo pensamos, o papel ativo e historicamente significati-vo do proletariado culmina e se esgota com a formulação da crítica do capital efetuada por Marx. Pode-se dizer que a classe operária desempenhou papel fundamental para indicar à humanidade (aqui personalizada em Marx), de uma parte, a possibilidade de se sub-verter a sociedade burguesa, e, de outra, a de evidenciar a direção básica dessa mudança: a supressão da propriedade privada sobre os meios de produção.

A contar da obra de Marx, a revolução deixa de ser uma tarefa desta ou daquela classe e se torna um programa de mudanças que se impõe a toda a humanidade. Tal alteração no caráter de uma eventual revolução futura não é aleatório, pois resulta tanto de causas de or-dem objetiva como de razões de ordem subjetiva. Vejamos, inda que superficialmente, alguns desses condicionantes.

A concepção de um descolamento da mudança revolucionária de corte socialista com respeito à classe operária, ou a uma dada classe social, parece-nos muito incipiente e está a demandar uma sistematização teórica de largo fôlego; embora saibamos que não estamos pessoalmente preparados para efetuá-la, sentimos que podemos intuir sua necessidade e cremos que elementos teóricos embrionários de tal descolamento já se encontram presentes no pensamento de Marx, Engels e Lukács. Assim, lê-se no Manifesto Comunista:

Todas as classes dominantes anteriores procuraram garantir sua posição submetendo a sociedade às suas condições de apropria-ção. Os proletários só podem se apoderar das forças produtivas sociais se abolirem o modo de apropriação típico destas e, por conseguinte, todo o modo de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu para salvaguardar; eles têm que des-truir todas as seguranças e todas as garantias da propriedade privada até aqui existentes. (MARX & ENGELS, 1998, p. 18-19)

Coube a Georg Lukács lançar luz sobre essa observação de Marx e Engels, destarte, em Historia y consciencia de clase, encontramos, cal-cada na citação acima posta, uma longa explanação sobre as tarefas de novo tipo que se imporiam ao proletariado:

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Um busca inglória

Pues las clases que en anteriores sociedades se vieron llamadas al dominio y, por lo tanto, fueron capaces de realizar revolucio-nes victoriosas, se encontraron subjetivamente ante una tarea mucho más fácil, a causa precisamente de la inadecuación de su consciencia de clase respecto de la estructura económica objetiva, o sea, a causa de su inconsciencia respecto de su pro-pia función en el proceso del desarrollo social. Les bastó con imponer sus intereses inmediatos mediante la fuerza de que disponían, y el sentido social de sus acciones les quedó siem-pre oculto, entregado a la ‘astucia de la razón’ en el proceso social determinado. Pero como el proletariado se encuentra en la historia con la tarea de una transformación consciente de la sociedad, tiene que producirse en su consciencia de clase la contradicción dialéctica entre el interés inmediato y la meta úl-tima, entre el momento singular y el todo. Pues el momento sin-gular del proceso, la situación concreta con sus concretas exi-gencias, es por su naturaleza inmanente a la actual sociedad, a la sociedad capitalista, se encuentra sometida a sus leyes y a su estructura económica. Y no se hace revolucionaria más que se inserta en la concepción total del proceso, cuando se introduce con referencia al objetivo último, remitiendo concreta y conscientemente más allá de la sociedad capitalista. Pero eso significa, subjetivamente considerado, para la consciencia de clase del proletariado, que la relación dialéctica entre él interés inmediato y la acción objetiva orientada al todo de la sociedad queda situada en la consciencia del proletariado mismo, en vez de desarrollarse, como ocurrió con todas las clases anteriores, más allá de la consciencia (atribuible), como proceso puramente objetivo. La victoria revolucionaria del proletariado no es pues, como para las demás clases anteriores, la realización inmediata del ser socialmente dado de la clase, sino – como ya lo vio y for-muló agudamente el joven Marx – la autosuperación de la clase. El Manifiesto Comunista formula esa diferencia del siguiente modo: ‘Todas las clases anteriores que conquistaron para sí el dominio intentaron asegurar la posición que ja havian logrado en la vida sometiendo la sociedad entera a las condiciones de su logro. Los proletarios no pueden conquistar para sí las fuerzas sociales de producción más que suprimiendo su propio anterior modo de apropiación y, con ello, todo modo de apropiación exis-tido hasta ahora.’ (LUKÁCS, 1975, p. 77-78).

Como se vê imediatamente, o cerne da questão repousa no cará-ter totalmente original das transformações a serem implementadas. Não se trata mais da subordinação de uma ou mais classes sociais

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aos interesses imediatos de um segmento social dominante, mas da própria superação das classes sociais; não se trata de impor uma nova forma de expropriação, mas de eliminar a possibilidade de que a exploração possa ocorrer. Este elemento de ordem objetiva empres-ta um conteúdo novo à própria idéia de revolução, tornando-a uma tarefa aberta à participação de todas as classes e segmentos sociais, enfim de toda a parcela da Humanidade favorável à emergência de uma sociedade mais equânime, ademais, confere um novo status ao momento subjetivo.

Encontramo-nos, de fato, em face de uma situação limite na qual o elemento de ordem objetiva deixa de ter um caráter transformador per se e o elemento subjetivo assume papel determinante, pois o pas-so transformador definitivo depende agora, necessariamente, da ação consciente dos homens.

Para nós, como apontado em trabalhos anteriores realizados junta-mente com José Flávio Motta, o desenvolvimento das formas mercado-ria, dinheiro e capital conhece seu ponto culminante com a emergên-cia da mercadoria força de trabalho, ou seja, com o estabelecimento do capitalismo, no âmbito do qual se dá o pleno amadurecimento de tais formas. Estabelecido em espaço geográfico considerável passou ele a operar de maneira a subordinar e recriar, à sua feição, todo o espaço social, econômico e físico com o qual entrava em contato. Observa-se, assim, não só a emergência da história universal, mas, também, de uma mudança qualitativa na própria história da humanidade; a partir de então só persiste o modo de produção capitalista – que a tudo ilu-mina, como se diria em termos clássicos – tudo subordinando, condi-cionando e determinando.

De outra parte, justamente por ter ocorrido o desenvolvimento superior daquelas formas, chega-se à derradeira forma de sociabi-lidade natural da humanidade; a partir de então – e à medida que o capital industrial traz implícitas as condições de sua reprodução, de sua reposição – apenas um movimento do espírito, da ação cons-cientemente, poderá conduzir à superação das condições dadas, vale dizer, do capitalismo, o qual, caso contrário, repor-se-á indefinida-mente. O primeiro passo necessário à sua superação estará, pois, no estabelecimento da crítica teórica das condições dadas, estudo este que deverá fundamentar a ação consciente no sentido da negação do status quo; assim, a crítica da lógica de funcionamento do capital in-dustrial e do capitalismo define-se como pressuposto imprescindível à aludida superação.

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Um busca inglória

A nosso ver, as análises cujo apogeu atingiu-se com a elaboração e a publicação de O Capital representaram o primeiro momento do referido movimento do espírito indispensável à criação das condições subjetivas para que a humanidade pudesse propor-se a negação do capitalismo e, portanto, passar a empenhar-se nessa tarefa.

Do exposto, infere-se a existência de dois elementos que estão a condicionar a possibilidade de se superar o modo de produção ca-pitalista. Um primeiro, óbvio, de ordem objetiva: a constituição e a universalização do próprio capitalismo. Outro de ordem subjetiva: a crítica do sistema (da lógica de funcionamento do capital industrial) e a formulação, ainda que num mero bosquejo, de uma nova forma de sociabilidade, a primeira a se assentar inteiramente no espírito e que, portanto, terá de ser por ele sustentada (isto é, terá como suporte a ação consciente de homens livremente associados).

Como afirmado, a história natural do homem esgotou-se, chegou à sua forma superior com a existência do modo de produção capita-lista; impõe-se, agora, sua história “cultural”, uma história propria-mente humana uma vez que posta pelo “espírito” e não uma simples decorrência da acomodação do homem à situação objetiva que, em-bora sendo fruto de sua ação, lhe aparece como algo dado, como uma criação que lhe é exterior; não como um fato social, mas como um fato natural.

Já não basta aos homens perseguirem seus interesses imediatos para dar-se a transformação revolucionária, é preciso que eles trans-cendam seus eventuais interesses “egoísticos”, para usar uma lingua-gem própria de Antonio Gramsci; o “político” sobrepõe-se ao “econô-mico”, o “subjetivo” sobrepuja o “objetivo”. Quais elementos deveriam, afinal, estar presentes no bosquejo acima referido? Sem pretendermos sequer arranhar a resposta definitiva a esta questão, não nos furta-mos a tecer os breves comentários que se seguem com o intuito de encaminhar a discussão. Em primeiro lugar, considerando que terá de haver livre assentimento com respeito à nova forma de sociabili-dade, é indispensável uma ambiência democrática, vale dizer, a de-mocracia e os direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer, absoluta e irrestritamente, e a ambos, obviamente, há de estar aliado o maior grau possível de liberdade pessoal e coletiva. Em segundo, tal sociedade terá de se erigir com base na negação da propriedade privada sobre os meios de produção, uma vez que não pode haver, por hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços e sua distribuição consoante às necessidades dos indivíduos. Em tercei-ro, para a gestão da vida econômica dessa sociedade “pós-capitalista” precisar-se-á de uma engenharia econômica que não se confunde com

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a(s) engenharia(s) de hoje, nem com a administração como a conhe-cemos, nem com a economia como a praticamos nos dias correntes; a essa nova engenharia cumprirá estabelecer as relações que vincularão a produção física com os recursos e as técnicas disponíveis e com as demandas de caráter individual e social.

Em suma, temos, no capitalismo, um sistema “natural” integrado, auto-regulado, no qual até mesmo as formas de pensar (a seu favor) encontram-se “naturalmente” delineadas. De outra parte, deparamo-nos com o embrionário pensamento da esquerda, ainda incapaz de compor um quadro coerente e articulado do que deverá vir a ser, em idéia, o sistema pelo qual almejam os críticos radicais do capitalismo. Pensamento este que nos parecerá muito mais rudimentar se tiver-mos presente o quanto lhe resta por avançar, pois, por se tratar de algo “antinatural”, tudo, ou quase tudo, ainda está por ser elaborado. Pensamento que, por esta mesma causa, defronta-se com o fato de que não há nenhuma razão de ordem natural conducente ao estabele-cimento e à persistência no tempo de uma nova forma de sociabilidade humana (as questões aqui sumariadas, como avançado, são tratadas mais detidamente nos seguintes trabalhos: MOTTA & COSTA, 2000 e MOTTA & COSTA, 2004).

Talvez seja oportuno lembrar a esta altura desta nota que o empu-xo transformador de caráter objetivo devido à ação da classe operária e do campesinato é bastante para colocar o capitalismo em xeque, mas, na ausência do elemento subjetivo aqui referido, o movimento revolucionário passa a “patinar” e sua direção pode ser empolgada por grupos políticos que conduzem o corpo social a situações em que domina o elemento repressivo ou totalitário e nas quais podem vir a predominar aparelhos burocráticos corruptos e/ou em que a inefici-ência se mostra generalizada. Exemplos de casos como tais encontra-mos na URSS, nos países do leste Europeu, na China e em nossa tão desventurada Cuba.

Se as opiniões acima reportadas estiverem corretas é forçoso re-conhecer que a tarefa colocada ao pensamento de esquerda não é a de encontrar uma “nova classe redentora”, mas a de mobilizar cons-ciências para a execução de um projeto político-ideológico consistente e abrangente, projeto este que nos cabe formular, pois ele ainda nem sequer foi esboçado em todas as suas dimensões.

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Considerações acerca de um sistema equivocado

Considerações acerca de um sistema equivocado

(cotas raciais nos vestibulares)

Fábio Santa Cruz

No vestibular da Universidade de Brasília, parte das vagas disponí-veis se destina a estudantes negros. E há uma comissão que deci-de, analisando as fotos dos vestibulandos, quem pode e quem não

pode concorrer a estas vagas. Trata-se, então, de uma comissão que tem a atribuição de decidir quem é e quem não é negro. É, sem dúvida, uma atribuição polêmica. Mas um caso impressionante e absurdo aumentou ainda mais as dúvidas em relação à legitimidade das decisões tomadas por tal comissão. Após inscreverem-se no mesmo vestibular da Universi-dade de Brasília, dois irmãos solicitaram a sua inclusão no grupo de can-didatos que deveria concorrer àquelas vagas reservadas aos estudantes negros. Embora os dois irmãos sejam gêmeos idênticos, apenas um deles teve a sua solicitação atendida.

Pode-se tentar entender o que aconteceu neste caso. Talvez um examinador (ou um grupo de examinadores) tenha analisado a foto de um dos irmãos gêmeos e outro examinador (ou outro grupo de examinadores) tenha analisado a foto do outro irmão, chegando cada um destes dois examinadores (ou cada um destes dois grupos de exa-minadores) a conclusões diferentes acerca das fotos de duas pessoas idênticas. Caso tenha sido isso o que aconteceu, percebe-se como pode variar de examinador para examinador (ou de grupo de examinadores para grupo de examinadores) a conclusão acerca da condição racial de um estudante. O procedimento, assim, mostra-se claramente inexato, defeituoso e injusto.

Caso as fotos dos dois irmãos gêmeos tenham sido analisadas pelo mesmo examinador (ou pelo mesmo grupo de examinadores), a situa-ção é ainda mais problemática. Significa que uma mesma pessoa (ou um mesmo grupo de pessoas) pode achar que um sujeito é negro e que, por outro lado, alguém idêntico a este mesmo sujeito não é. Neste caso, sobressai ainda mais a inexatidão, a defeituosidade e a injustiça do que está sendo feito na Universidade de Brasília.

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O caso é grave, pois demonstra que um sistema visivelmen-te equivocado e, portanto, acintosamente injusto está influencian-do de forma decisiva o processo de admissão de novos alunos em uma das mais importantes universidades públicas do Brasil. Ten-do em vista o que aconteceu no caso destes irmãos gêmeos idênti-cos, é provável que, em outros vestibulares, jovens que não foram vítimas de racismo ao longo de suas vidas tenham sido considera-dos estudantes negros pela Universidade de Brasília. E é provável que tenha ocorrido o inverso também. Enfim, este sistema de análise de fotos, que já era duvidoso e controverso, caiu em total descrédito após a divulgação deste escandaloso caso de duas pessoas fisicamente iguais que foram consideradas diferentes do ponto de vista racial.

Qualquer outro procedimento que tente dividir a popula-ção brasileira em grupos raciais diferentes também terá proble-mas sérios para se sustentar. É muito difícil (talvez seja impossí-vel) estabelecer critérios justos e exatos para definir qual a raça das pessoas, ainda mais em um país de tamanha miscigenação como o Brasil. Melhor seria pensar em um país em que todos pudessem ser cidadãos com direitos iguais, tenha cada um a estrutura gené-tica que tiver. Este, aliás, era um dos principais anseios de grandes anti-segregacionistas que entraram para a história, como Martin Lu-ther King. Sua luta foi para que cada pessoa pudesse ser tratada pelo Estado sem que se levasse em consideração a cor de sua pele, o seu tipo de cabelo ou qualquer outra característica de sua aparência ex-terna. O que a Universidade de Brasília está fazendo, vestibular após vestibular, é justamente o contrário.

No Brasil, o sistema de cotas raciais no processo de admissão a algu-mas instituições públicas de ensino superior foi proposto e, depois, ofi-cialmente instituído sem que houvesse grande resistência por parte da sociedade. As manifestações contrárias a tal sistema foram reduzidas e tímidas. Por seu caráter notavelmente polêmico e complexo, o assunto deveria ser tratado de forma bem mais detida, mas parecia que havia algo dificultando a realização de um debate mais amplo e franco, que ava-liasse atenciosamente o que estava sendo proposto e qual seria, sob diversos aspectos, o seu impacto. O que estava dificultando este de-bate era o temor de que qualquer palavra dita contra este sistema de cotas raciais fosse tratada como uma imprecação contra a raça negra. Segmentos progressistas da sociedade brasileira não tinham coragem de se opor a esta proposta porque temiam ser chamados de racistas, reacionários e antipopulares. Parte dos brasileiros foi tomada por um certo sentimento de culpa coletiva pelo nosso passado escravista e,

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portanto, achava reprovável opor-se às reivindicações dos movimentos de defesa da raça negra.

Passados alguns anos, há cada vez mais resistência ao sistema de co-tas raciais nos vestibulares. Não é difícil entender porque isto está acon-tecendo. Depois de instaurado este sistema, a injustiça e a defeituosida-de que o caracteriza vem se mostrando indisfarçável. Tão indisfarçável que há cada vez mais descontentamento e indignação contra tal siste-ma. Descontentamento e indignação que, lamentavelmente, podem dar origem a um aguçamento da rivalidade entre pessoas que têm a pele mais clara e mais escura (este, aliás, é outro problema decorrente da descabida tentativa de dividir os brasileiros entre negros e brancos).

Já se sabe o que precisa ser feito para que jovens advindos de segmentos marginalizados da sociedade passem a ingressar com maior freqüência no ensino superior público e se dê início, destarte, a uma grande mudança de caráter popular e democrático em nosso país. O que pode promover tamanha mudança (que seria uma verda-deira revolução silenciosa) é o melhoramento amplo e contínuo das escolas públicas de nível fundamental e médio, onde estuda grande parte dos injustiçados do Brasil. O sistema de cotas raciais nos ves-tibulares, ao contrário, promove mudanças pífias, pois não faz mais do que criar um atalho para que alguns jovens de pele mais escura (mas, em sua maioria, de classe média) ingressem com maior facilidade no ensino superior público. Além disso, pode-se dizer que este sistema possui aspectos simbólico-emocionais (uns se sentem vingados, outros aliviam a culpa que sentem por terem ascendentes escravistas) e tam-bém pode ser uma ótima oportunidade para se satisfazer intentos de-magógico-populistas. Não são, certamente, argumentos que justifiquem a adoção deste sistema. Trata-se, afinal, de um sistema evidentemente equivocado e injusto, do qual podem surgir casos tão bisonhos e ridícu-los como este dos irmãos gêmeos idênticos revelado pela imprensa.

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Estado Democrático & Segurança Pública

Oscar d´Alva e Souza Filho

Introdução ao temaO Estado de Direito é uma construção do idealismo alemão, de

fonte kantiana, preconizadora da necessidade de uma ordem jurídica coercitiva que garantisse tudo aquilo que a lei moral indicava como bem comum, mas não podia realizar, à míngua de força impositiva.

O Direito seria, pois, o império da razão legisladora do Estado, normatizando e disciplinando as relações sociais, com imparcialidade e generalidade, de modo a conseguir uma ordem comunitária eficaz e plena.

Ocorreu, contudo, que a “ratio” ou lógica jurídica editada pelo po-der político do Estado se viu trombando com os muros da realidade social, esta, contraditória e dialética, trazendo em seu bojo classes sociais antagônicas e com interesses concretamente inconciliáveis, burguesia e proletariado.

O Direito perdeu, de logo, sua feição racionalista e ideal de agente produtor de legislação disciplinadora e pacificadora. Assumiu a pos-tura de ordenação, de comando e de mandamento legalista, traduzin-do, sem rodeios, uma vontade política dominante. Vontade da classe dominante, pois.

A partir de então, com acentuado sentido classista, o Direto Positi-vo deixou de ser uma “ratio” e aceitou de bom grado ser uma vontade, uma “voluntas”. Ao invés de se basear numa idéia de dever, baseou-se na realidade de seu poder policial, de sua capacidade de constranger. Mas não renunciou a nenhuma explicação ideológica legitimadora de seu papel: manter a ordem, a paz e a felicidade dos homens. Essa a cantilena ideológica do Estado Moderno e do seu Direito Positivo. Nenhum sistema positivo ousa dizer com clareza que sua base origi-nal é a força política real, impositiva, sua capacidade de constranger. O limite jurídico do poder político é a força do grupo ou da classe go-vernante. Tal como ensinaram Maquiavel, Hobbes, Spinoza e Marx.

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Estado Democrático & Segurança Pública

A partir do Estado moderno já se evidencia que a violência gerada pelos problemas sociais que consumaram o episódio da Comuna de Paris (1870) seria respondida pela violência legal do próprio Estado, através de seu poder de polícia.

Alguns estados especializam seu aparelho policial repressivo como solução formal e material de manter a ordem e a paz políticas. Cria-se a concepção segundo a qual a questão social deve ser resolvida com medidas policiais adequadas.

Nos países europeus surgem elogios ao modo investigador da po-lícia inglesa e à objetividade prática da polícia francesa. Depois na Itália, também em 1870, César Lombroso explica a criminalidade a partir das características inatas de alguns indivíduos que nasceriam destinados ao crime...

É a fase áurea do chamado jus-positivismo ou positivismo jurídico, doutrina do Direito que o identifica e o restringe ao espectro normati-vo. Lei e Direito significariam a mesma coisa.

A experiência brasileiraNo Brasil, a tendência prática-objetiva da polícia francesa (que

desvendava o crime no primeiro ato do inquérito, o interrogatório) predominou no Rio de Janeiro, em São Paulo e depois em todas as capitais federadas. A capacidade de “conseguir confissões” mediante instrumentos de tortura física e psicológica marcou e ainda hoje mar-ca a identidade de nossa polícia. Tudo conforme a ideologia e a prática autoritária de nossas elites.

Nos dias atuais, verificamos uma mudança considerável na estru-tura geral do Estado e do poder da sociedade civil. Temos uma propos-ta legislativa ideologicamente democrática, baseada na idéia grega de isonomia formal, ou seja, a igualdade abstrata de todos os cidadãos de nossa República.

A Carta constituinte de 1988 foi publicada num instante político de grande aspiração de liberdade e ainda sob suspiros de um intenso sofrimento advindo da experiência dos governos militares de 1964 a 1985. Por isso nossa Carta Magna foi desenhada com ideologizações humanistas e progressistas que se assentaram em nossa Carta Maior como uma Intenção principiológica, eis que, na prática, nada mais se permitia ao povo que essa faculdade ingênua de sonhar, de aspirar.

Devolvido o poder à sociedade civil, iniciamos uma fase nova cha-mada de Nova República, onde mais uma vez o povo republicano foi

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substituído por “representantes” que se haviam credenciado na luta democrática de resistência ao militarismo. PMDB & Cia. PDT, PTB, PCdoB, PSDB, PT et caterva. Todos seguindo o ensinamento maquia-vélico segundo o qual “o Partido deve lutar pelo poder”, o “governo deve lutar para mantê-lo”...

Deu no que deu. Revelaram-se “farinha do mesmo saco”. Diferen-tes na expressão do discurso dialógico e iguais nas atitudes intestinas em prol da posse do poder político e econômico.

A decepção com a Nova República e a falência do governo civil

A Nova República revelou-se tão velha como a anterior. De Sar-ney a Collor de Melo. De Fernando Henrique a FHC. De Lula da Silva conciliador das elites e do FMI ao Lula que não sabe de nada, que desconhece o que fazem seus ministros e assessores diretos. O Lula do mensalão, dos sanguessugas e das promessas de PACs e outras matreirices...

A constatação objetiva é que o Estado brasileiro ruiu. Faliu, não cumpriu com sua finalidade institucional e foi substituído nos maio-res estados federados por outra trupe de corruptos que, pelo menos, não enganam. Não se dizem representantes do nosso povo. Tão bandi-dos como os nossos 300 picaretas, mas bem armados, com uma infra-estrutura econômica e financeira alimentada pelo mercado internacio-nal de drogas e de contrabando de armas. E de sobra com capacidade financeira para comprar deputados estaduais, federais, e pagar a toda uma corporação da Polícia Militar, como se viu no Rio de Janeiro.

O poder paralelo, de um Estado-bandido, não-representativo e contra a lei positiva instituída, se afirma a cada dia, de dentro dos Pre-sídios ou nas favelas, através de organizações complexas e eficientes em seus propósitos, como o CV (Comando Vermelho) e o PCC (Primeiro Comando da Capital).

De um lado, a corrupção absoluta dos poderes políticos e das ins-tituições do Estado republicano. Registremos o esforço indigente de alguns setores do DPF, do MPF e dos juízes pela democracia. De outro lado, a falta de assistência à sociedade. O primeiro emprego é dado pelo tráfico de drogas. O Estado civil não cumpre seu papel. Faltam escolas, falta habitação, falta emprego, falta saúde. Sobra dinheiro de uma tributação selvagem e imoral que é desviado, dia a dia para a corrupção demagógica dos poderes instituídos. O que fazer?

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Estado Democrático & Segurança Pública

A Nova República repete o discurso do início da época moderna e das nossas primeiras experiências republicanas: “polícia na rua”, mais viaturas, mais tanques, mais armamentos. Ou de outro modo: leis mais severas etc. Como se a questão fosse policial ou legislativa.

A solução democrática para a Segurança PúblicaSó um choque de democracia pode salvar o nosso pretenso Estado

Democrático.

A Segurança Pública é uma questão da sociedade brasileira e do nosso Estado. É necessário que haja um diálogo entre as instituições do Estado responsáveis pela Segurança Pública (delegados de polícia civil e federal, polícias militares, ministérios públicos: federal dos Es-tados e territórios, juízes federais e estaduais e defensores públicos). Todas essas autoridades deverão calçar as “sandálias da humildade” e conversar com a sociedade civil, que é a destinatária da Segurança Pública. É imperativo que as associações comunitárias, os sindicatos, os clubes sociais de serviços, a juventude, as mulheres, as lideranças de bairro, políticos, religiosos, gregos e troianos, todos enfim se irma-nem nesse esforço social de paz e de construção solidária.

Será que ninguém entendeu uma coisa tão óbvia? Que se criem Centros Integrados de Defesa Social (que podem ser edificados com dinheiro dos municípios ou com verbas retiradas da corrupção) onde ali funcionem diariamente juizados cíveis e criminais, junto a promo-torias cíveis e criminais, ao lado de defensorias públicas, de delegacias civis, de polícias militares, todos fiscalizados pela comunidade, pela imprensa democrática, por rádios comunitárias. Com controle social e democrático dos poderes públicos.

E nada impede que ao lado desses Centros funcionem escolas com dois turnos de funcionamento para nossa infância e juventude, clubes de serviços etc. Hospitais, centros de artesanato, programas munici-pais e estaduais de qualificação de mão-de-obra etc.

Observe-se que o mais difícil e mais caro já existe dentro da es-trutura do Estado: polícias, promotores, juízes e defensores públicos. Só que estão afastados e separados da sociedade civil a que deveriam servir. Falta apenas um plano democrático, uma vontade política, para mudar, revolucionar, transformar. Mas tem que ser com o povo participando... Esse é o grande problema, nossos partidos, nossa esquerda, nossos políticos consideram-se auto-suficientes como re-presentantes do povo, e nessa condição descartam a necessidade de ouvir a população.

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Nossa República representativa se basta na representação legisla-tiva e nos partidos autoritários e corruptos que temos. Não há solução democrática sem a participação popular. Ou estamos cometendo uma heresia?

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Crime, castigo, determinismo socioeconômico

Crime, castigo, determinismo socioeconômico

João Manoel Pinho de Mello

O assassinato do garoto João Hélio Fernandes causou indignada reação da sociedade civil, clamando por ações enérgicas. Tal-vez esse crime chocante possa ensejar, finalmente, um debate

sério sobre segurança pública no Brasil. Que a emoção do momento sirva de propulsor da ação, impedindo que a última de muitas atroci-dades não caia no esquecimento, algo infelizmente provável. Mas que prevaleça a racionalidade. Necessitamos de soluções que sejam viáveis e que funcionem.

Ao apresentar parte da evidência científica produzida na literatu-ra econômica a respeito dos determinantes da criminalidade, espero que este artigo contribua para o debate. É importante enfatizar o caráter científico da evidência. Criminalidade é assunto sério, que também merece o rigor e o distanciamento da ciência.

Separemos os crimes em dois grandes grupos: os racionais e os emocionais. Comecemos pelos últimos, com um exemplo ilustrativo da importância do rigor científico: a relação entre consumo de ál-cool em bares e crime. A revista Veja, de 11/2/2007 reporta, com a chancela de “especialistas ouvidos”, uma queda de 68% na taxa de homicídio em Diadema, município da Grande São Paulo, supos-tamente devida à adoção de restrições ao funcionamento de bares e restaurantes em determinados períodos do dia (“lei seca”). De fato, se compararmos as taxas de homicídio de Diadema antes e depois des-sa providência, chegaremos a algo próximo daquele número. Há, no entanto, duas complicações. Diadema adotou simultaneamente vá-rias outras medidas de contenção da criminalidade. E nesse período os homicídios estavam em queda livre na Grande São Paulo em geral. Olhando somente para Diadema, é praticamente impossível saber se a queda alardeada se deve à “lei seca”, às demais medidas, ou ao fato de que os homicídios já estavam em queda na Grande São Paulo e, portanto, cairiam com ou sem a “lei seca”.

Há, no entanto, outras cidades da Grande São Paulo que adota-ram a “lei seca” e, mais importante, outras tantas que não adotaram.

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Comparando a dinâmica da taxa de homicídio entre cidades que ado-taram e que não adotaram a “lei seca”, Ciro Biderman, Alexandre Schneider e eu contornamos os problemas descritos e chegamos a um número menor, mas ainda impressionante: a “lei seca” causa uma queda de 15% nos homicídios. Ora, se a conclusão é a mesma, a discussão não é meramente acadêmica? Não, porque, além de ter certeza, é importante saber a magnitude da queda.

Se é de 68%, então temos uma panacéia: fechar os bares e - por que não, por extensão? - ilegalizar o consumo de álcool. Assim, no mínimo 68% do problema estaria resolvido. Fácil, não? Aí, adota-mos a lei e alguma outra coisa que aumenta os homicídios ocorre simultaneamente. Se o efeito é de somente 15%, essa força contrária pode muito bem anular o benefício da “lei seca”. Desapontamo-nos e voltamos atrás. Resultado: por imaginar que tínhamos a solução mágica, deixamos de colocar em prática uma política pública que funcionaria.

As declarações públicas sugerem que há dois grupos de opinião, aparentemente antagônicos. O primeiro é o “lei-e-ordem”, associado à “direita”, para quem a solução é reprimir com penas cada vez mais duras. O segundo é o “razões-de-fundo”, geralmente “esquerdista”, segundo o qual a questão criminal é eminentemente social, ou seja, falta de renda, educação, perspectiva de modo geral. Esse debate so-mente se aplica aos crimes cometidos por razões racionais. Contudo, tal conflito de opiniões é tão artificial quanto a dicotomia esquerda/direita.

Lei e ordem e razões de fundo são faces de uma mesma moeda: determinam o “lucro” com atos criminosos. Lei e ordem determinam o custo de cometer atos ilegais. Mais policiamento ostensivo aumenta a chance de a pessoa ser presa - o que sai mais caro se as chances de condenação são altas e longas as penas. As razões de fundo afetam o benefício líquido do crime, ou seja, quanto o criminoso recebe na atividade criminosa, descontado o que ele ganharia se não estivesse na criminalidade. Por exemplo, se a pessoa é mais educada, seu salá-rio tende a ser maior na atividade legal e, conseqüentemente, menor seu ganho líquido da atividade criminal, supondo que educação não ajuda na “profissão” marginal. Esse arcabouço ajuda a organizar o raciocínio. Mais interessante ainda, porém, é a evidência empírica.

Primeiro, os temas referentes a lei e ordem. Para não perder tem-po com debates já resolvidos, coloquemos um ponto final na polê-mica sobre se policiamento diminui ou não a criminalidade. O bom senso diz que sim e há vasta evidência empírica a esse respeito. A

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dificuldade em verificar empiricamente essa relação vinha do fato de que há mais polícia em lugares onde há mais crime. Ou seja, polícia causa queda no crime, mas crime causa aumento do policiamento. Nesse caso, não é claro como fica a relação crua entre as duas variá-veis. Uma contribuição importante dos economistas para compreen-são dos determinantes da criminalidade foi trazer uma metodologia empírica poderosa para “separar” efeitos contrários, como é o caso polícia-crime.

Se não me crêem, lembrem-se do pandemônio, em Nova Orleans, que se seguiu ao Katrina, quando a autoridade pública desapare-ceu. Um alerta: como seria de esperar, policiamento afeta de manei-ra mais relevante os delitos mais “racionais”, como furto e roubo. Homicídio, que muitas vezes ocorre por razões emocionais (veja-se o exemplo da “lei seca”), não é muito afetado por policiamento. O efeito é praticamente nulo sobre estupro, crime cuja motivação é basica-mente emocional. Mas tragédias como a de João Hélio Fernandes, um latrocínio, seriam menos prováveis.

Além da possibilidade de o criminoso ser pego, o “custo” do crime aumenta quando a probabilidade de condenação e a pena são maio-res. Fato amplamente documentado: maiores penas estão fortemente associadas com menor criminalidade. Há dúvida, no entanto, se o efeito é o “desestímulo” ou a “incapacitação”. O primeiro é auto-evi-dente. O segundo pode ser entendido como “um delinqüente a mais na cadeia é um bandido a menos na rua”. Em dois exemplos de boa ciência, o economista americano Steven Levitt mostrou que ambos os efeitos são relevantes, mas o efeito “desestímulo” é mais importante.

Para separar os dois efeitos, dois procedimentos engenhosos fo-ram usados. Em um dos trabalhos (em co-autoria com Daniel Kes-sler), Levitt usou o aumento no tempo de sentenças para estimar o efeito “desestímulo”: no curto prazo, o aumento da sentença não produziria o efeito “incapacitação”, que somente seria sentido lá na frente, nos anos adicionais.

Em outro trabalho, Levitt usou o fato de que, se o efeito “incapa-citação” é o relevante, aumentos de sentença para um tipo de crime diminuiriam os outros tipos de crime. Se o relevante é o efeito “de-sestímulo”, mais dureza em um tipo de crime aumenta os outros tipos de crime, porque seria de esperar que os marginais trocassem o caro pelo barato. Novamente, o interesse em distinguir os dois efeitos não é uma curiosidade intelectual. Se o efeito “desestímulo” é mais importante, como foi documentado, é preciso aumentar todas as sen-tenças uniformemente.

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O efeito “desestímulo” tende a ser mais importante para os níveis baixos de pena. Por exemplo, aumentar a pena de 5 para 20 anos desencoraja mais do que aumentar de 30 para 45. Por quê? Talvez porque 30 anos já seja um horizonte tão longínquo para a maioria das pessoas que a adição de outros 15 não faz grande diferença. Por exemplo, não há documentação para um efeito “desestímulo” da pena de morte nos EUA. Não chega a surpreender, porque o efeito é provavelmente nulo.

Crimes para os quais se aplicaria a pena de morte seriam puni-dos, de outro modo, com 30 anos de encarceramento ou com prisão perpétua. O custo adicional é baixo. Outra razão é que os crimes para os quais a sociedade americana está disposta a usar a pena de morte têm, na maioria esmagadora das vezes, uma forte raiz irracional. No nosso caso, não sabemos muito bem se a prisão perpétua terá algum efeito além do que se verificaria com 30 anos de prisão. Se eu tivesse que apostar diria que não, pela mesma razão de que pena de morte, aparentemente, não detém a criminalidade.

Isso indica que, apesar de o aumento das penas funcionar, está longe de ser o cura-tudo. Mais importante é fazer valer as punições atuais, de modo que se cumpram as penas já estabelecidas e se aca-bem com os subterfúgios - 1/6 da pena, apelação em liberdade, pro-gressões para regime semi-aberto e outros artifícios que fazem com que as punições sejam, em média, muito brandas.

Como o efeito “desestímulo” é forte para penas relativamente bai-xas, e praticamente não há pena para uma faixa etária especialmen-te problemática, entre 15 e 18 anos, a antecipação da maioridade penal provavelmente diminuiria a criminalidade. Mas, novamente, isso não deve ser visto como panacéia. A assimetria na punição de maiores e menores tem dois efeitos: “substituição” e “geral”. O pri-meiro ocorre quando os criminosos colocam os menores para come-ter atrocidades.

Se a maioridade penal fosse diminuída, parte desses atos con-tinuaria a ser cometida, mas agora pelos mais brutais e não pelos legalmente menores. A outra parte se refere ao efeito “geral”, advin-do do fato de que, tudo o mais permanecendo constante, a punição média aumentou. Pode-se argumentar, no entanto, que, mesmo que somente houvesse o efeito “substituição”, ainda assim seria desejável diminuir a maioridade penal, pois os mais velhos passariam a come-ter os crimes, o que por si só seria “bom”.

Passemos às “razões de fundo”. Surpreendentemente, a relação entre crime e desemprego é ambígua. Enquanto há alguma evidên-

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Crime, castigo, determinismo socioeconômico

cia de que altíssimos níveis de desemprego estão empiricamente as-sociados à maior ocorrência de crimes, essa relação não sobrevive em níveis de emprego mais mundanos. Também surpreendente é a dificuldade de documentar uma relação incontestável entre educa-ção e crime. Usando dados individuais, alguns estudos chegam à relação, mais esperada, de que os criminosos são, em média, menos educados. Com dados agregados, no entanto, encontrou-se a relação contrária.

Desigualdade de renda causa crime, mesmo levando-se em conta que, para um mesmo nível de renda média, desigualdade maior sig-nifica mais gente abaixo da linha de pobreza. Das “razões de fundo”, demografia talvez seja aquela mais fortemente ligada à criminalida-de. Quanto maior a proporção de jovens do sexo masculino entre 15 e 25 anos, maior será a criminalidade.

Nos grandes centros urbanos brasileiros, é difícil dissociar cri-minalidade do tráfico de entorpecentes. Nesse caso, a própria ilega-lidade provoca ainda mais ilegalidade. Uma razão é a falta de meios legais para resolução de conflitos. Como o vendedor não pode pro-cessar o cliente ou distribuidor inadimplente, reputação se torna a alma do negócio. A ameaça de assassinato, que às vezes tem que ser cumprida, torna-se instrumento de cobrança. Além disso, não há comprovação de que a proibição diminui o consumo de psicotrópi-cos. Apesar de não conclusivo, o fato de que, ao que tudo indica, o consumo de álcool não caiu na década de 1920 nos EUA é bastante sugestivo de que a proibição pouco ajuda.

Em resumo, com base na evidência empírica da literatura eco-nômica, parece que, de fato, nos faltam lei e ordem: investir em po-liciamento ostensivo, discutir a questão da maioridade penal, au-mentar as penas (principalmente aquelas atualmente muito baixas) e, sobretudo, rever o processo penal, para que as punições atuais sejam cumpridas (por todos, ricos e pobres). Melhorar a distribuição de renda também diminuiria a criminalidade, mas demoraria a sur-tir efeito. Esperar que as mudanças demográficas nos salvem seria suicídio. Legalizar as drogas não parece ser o caminho mais prático, politicamente.

É importante lembrar que prevenção não é a única razão que de-veria nortear a decisão a respeito da severidade da pena. Pode haver, por exemplo, razões normativas de justiça para aumentar as penas, inclusive para evitar que a justiça seja feita à revelia do Estado; ou razões sociais, para proteger as crianças e os adolescentes. Essas outras dimensões devem ser levadas em conta, naturalmente.

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Finalmente, enquanto as “razões de fundo” são pouco flexíveis no curto prazo, as variáveis que afetam o “custo” da atividade criminal podem ser ajustadas rapidamente. Mesmo que concluíssemos que as “razões de fundo” são mais importantes, vem à mente a analogia do médico de plantão. O paciente chega com enfarte, ele opera. Nesse momento, há que salvar o paciente, e não perguntar sobre sua dieta. O Brasil está tendo um enfarte na segurança pública.

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VI. Ensaio

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Autores

Giuseppe VaccaPresidente da Fundação Intituto Gramsci, em Roma.

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A esquerda italiana e o reformismo no século XX1

Giuseppe Vacca

Na segunda metade dos anos 1990, uma singular sincronia eleitoral fez com que, em treze dos quinzes países da União Européia, partidos socialistas ou coalizões de centro-esquer-

da se encontrassem pela primeira vez no governo ao mesmo tempo. O acontecimento era de alcance extraordinário: nos anos oitenta, em todos os países europeus o reformismo socialista havia registra-do uma crise de consenso e, em 1989, fora desafiado pela orgia em torno da “morte do comunismo”, de que a opinião pública mundial parecia ter se convencido. Para compreender como teve origem tal acontecimento, pode ser útil fazer uma comparação entre o “velho” reformismo, que travou suas batalhas no horizonte da política na-cional, e o “novo” reformismo, que enfrenta os desafios da supra-nacionalidade. A comparação terá uma inflexão particular, uma vez que o foco do discurso recai sobre a Itália, que, como se sabe, não conheceu e ainda não conhece a existência de um partido reformis-ta de nível europeu.

1 Este texto é o prólogo do livro Il riformismo italiano — dalla fine della guerra fredda alle sfide future (2006) e foi também publicado em La Insignia. Por razões estritas de espaço, a editoria foi obrigada a eliminar as notas referenciais de obras em italiano. O texto original está em Gramsci e o Brasil – www.gramsci.org.

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VI. Ensaio

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A crise dos anos trinta e as primeiras experiências de governos reformistas

Os sujeitos políticos se definem através dos desafios a que tentam responder com base nos valores, nas visões e nos interesses que os ca-racterizam. Em outras palavras, definem-se reciprocamente com base nos diferentes modos pelos quais se referem aos processos históricos gerais. Portanto, devemos estabelecer preliminarmente qual é o termo de comparação do reformismo e o gênero próximo a que se refere. O tema não é banal, antes de mais nada porque nos anos mais recentes o termo “reformismo” sofreu uma dilatação semântica despropositada, de modo que, especialmente na linguagem jornalística, ele é emprega-do para indicar qualquer tipo de governo – de esquerda, de centro ou de direita – que implemente reformas. No entanto, em sentido próprio, a “questão do reformismo” diz respeito à história do socialismo. Mas, para focalizar o problema, esta delimitação do campo não basta. Ainda se deve ajustar contas com a idéia muito difundida de que os movi-mentos políticos distinguem-se com base na sua identidade, definida de uma vez por todas; de tal sorte, é opinião corrente que o socialis-mo encarne a idéia de igualdade, de conteúdos variáveis, mas sempre igual a si mesma como valor. Na “eterna” contraposição entre direita e esquerda, ela identificaria a esquerda e, portanto, o reformismo, que é uma parte essencial desta esquerda. Na realidade, as coisas não são assim: direita e esquerda redefinem-se reciprocamente no tempo e no espaço com base na mudança de critérios de realinhamento das forças sociais e políticas determinados pelas vicissitudes nacionais e mun-diais. Mas, mesmo depois desta especificação, o conceito ainda não está inteiramente esclarecido. Com efeito, na Itália ainda prevalece a idéia de que reformismo seja sinônimo de “gradualismo”: os reformis-tas representariam aquela parte da esquerda que aceita subordinar seus fins aos ritmos e compatibilidades do “jogo democrático”: seu oposto seriam os “revolucionários”, que, ao contrário, não aceitariam tais condições. Esta definição é patentemente anacrônica: está presa ao grande debate do final do século XIX, no qual o socialismo europeu se dividiu entre “reformistas” e “revolucionários” com base em dois mo-dos diferentes de conceber o fim último (a “superação do capitalismo”). Como se sabe, a divisão se tornou dilaceradora com o nascimento do movimento comunista e o abandono do “fim último” por parte dos re-formistas. Mas, de um ponto de vista histórico, já no curso dos anos vinte o movimento comunista pôs de lado a perspectiva da “revolução mundial”, e não se pode negar que desde então, na Europa, também tenha sido “gradualista”. A divisão, pois, ficou limitada aos meios.

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A esquerda italiana e o reformismo no século XX

Apesar disso, permaneceu uma contraposição radical, uma vez que passava pelo reconhecimento ou pelo desconhecimento da demo-cracia como regra absoluta do jogo. Sua aceitação por parte da social-democracia não era só uma “escolha de valor”, mas também decor-ria de uma visão da “estabilização capitalista”: ela a percebia não só como a hipótese mais provável (depois da catástrofe da guerra), mas também a mais desejável, e a punha como base de uma “estratégia de compromisso”, destinada a favorecer a estabilidade, em troca da democracia e do Welfare. Ao contrário, para o movimento comunista, a estabilização capitalista não interrompia a “crise geral do capita-lismo” e tornava inteiramente transitórias (além de circunscritas aos países capitalistas mais desenvolvidos) as “situações democráticas”. De todo modo, desde os anos trinta do século XX, a distinção entre “reformistas” e “revolucionários” torna-se anacrônica. Por outro lado, a disputa sobre o “fim último” baseava-se num equívoco. A idéia da “superação do capitalismo” nascia da contraposição entre capitalismo e socialismo, que é histórica e conceitualmente infundada. Capitalis-mo e socialismo referem-se a dois planos diversos da realidade e não são comparáveis: o capitalismo é um modo de produção, o socialismo é um critério de regulação do desenvolvimento econômico, que, por-tanto, não se contrapõe ao primeiro, mas propõe-se orientá-lo. Para superar este falso dilema, foi necessário elaborar o conceito de regula-ção, e, naturalmente, não estamos falando de elaboração puramente intelectual, mas de experiência histórica concreta. Aproximamo-nos, assim, do ato de nascimento do reformismo: a crise dos anos trinta e a invenção de um “modo de regulação” do desenvolvimento alternativo ao do velho liberalismo, que entra em colapso.

Portanto, o termo de comparação do reformismo foi e ainda é o maximalismo. O reformismo é programa e ação de governo; o maxi-malismo, diferentemente daquilo que geralmente se considera, não é tanto radicalismo social ou antagonismo “de classe” (até Turati era “classista”), quanto, sobretudo, indiferença em relação à responsabi-lidade de governo. Mas, para um partido, desenvolver capacidade de governo não é só questão de vontade. Seu ponto de amadurecimento é o alcance da capacidade de interpretar o interesse nacional, que, por natureza, está em disputa. De reformismo socialista só podemos falar, de modo circunstanciado, a partir de quando, elaborando programas representativos do “interesse nacional”, alguns partidos socialistas chegaram ao governo nos seus países. Isto aconteceu pela primeira vez na Grã-Bretanha, na Suécia e na Bélgica, entre o fim dos anos vinte e o início dos anos trinta, numa passagem crucial da história do século XX. Diante dos efeitos explosivos da crise de 1929-1932, fo-ram aqueles partidos operários que elaboraram soluções mais válidas

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VI. Ensaio

Política Democrática · Nº 18

do que as propostas pelos partidos liberais ou conservadores para os problemas do próprio país e conquistaram seu governo. Na verdade, não foi a primeira experiência de governo em termos absolutos: tinha havido a República de Weimar; mas os socialistas que governaram a Alemanha nos anos vinte fracassaram precisamente na capacidade de enfrentar a Grande Depressão, abrindo assim caminho para a vitória de Hitler. Ao contrário, nos três casos que lembrei, os socialistas ven-ceram o desafio porque ocorreu uma mudança fundamental da sua cultura política: uma mudança de paradigma, que constitui o verda-deiro ato de nascimento do reformismo.

O salto de qualidade consistia no fato de que aqueles partidos mostravam-se capazes de agir pela primeira vez não só em nome da classe, mas também em nome da nação. Foram assim lançadas as bases do reformismo nacional. Em outras palavras, de uma cultura de governo dos socialistas que, ao evoluir ainda mais, seria capaz de pro-mover, depois da Segunda Guerra Mundial, um consenso reformista majoritário num número crescente de países europeus.

Entre os elementos que deram origem a esta evolução, deve-se sa-lientar, antes de mais nada, a nova capacidade de análise do capita-lismo, emancipada da visão catastrófica das suas crises. Nos anos trinta, as três socialdemocracias que recordei mostram consciência de que as crises são o processo natural do desenvolvimento capitalista e, portanto, trata-se de aprender a governá-las. No caso específico, elas interpretaram a Grande Depressão como uma crise de subconsumo e elaboraram respostas eficazes que a cultura liberal então refutava: políticas de sustentação da demanda efetiva, desenvolvimento da eco-nomia mista, compromisso entre as organizações sindicais dos traba-lhadores e das empresas, reconhecendo a legitimidade do comando capitalista na fábrica mas contratando suas modalidades, acordo so-bre a relação entre salários e produtividade, forte impulso às políticas sociais. São os elementos básicos daquilo que muitos anos depois se chamaria de “compromisso keynesiano” ou “regulação fordista”.

As frentes populares. Os Cadernos do cárcereA importância histórica daquelas experiências também residia na

demonstração de que, diante da dissolução da civilização liberal, a al-ternativa entre bolchevismo e fascismo não era inexorável. Depois da vitória de Hitler na Alemanha, este parecia ser o destino da Europa. No entanto, aquelas experiências começaram a alimentar o antifas-cismo com propostas positivas e concretas. Este foi o quadro em que, também no movimento comunista, abriu-se um espaço para a conci-

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liação entre classe e nação. Para tanto, foi decisiva a experiência da Frente Popular na França, nascida da colaboração entre comunistas e socialistas. Na Itália, deve-se recordar o pacto de unidade e ação de 1934, que também nascia da revisão de análises e programas que ani-maram a investigação socialista depois da derrota de 1919-1922, bem como da elaboração do PCI sobre o fascismo. Ainda que de modo li-mitado à necessidade de combater o fascismo, também os comunistas resolviam o problema da participação em governos de coalizão para enfrentar os perigos da guerra, defender a democracia e renovar seus conteúdos através da realização de reformas econômicas e sociais. A “virada” foi aprovada no VII Congresso da Internacional, que retificou a equação entre socialdemocracia e fascismo. Restava o limite insupe-rável da subordinação dos partidos comunistas à política da URSS, de modo que o que deveria ter sido uma virada estratégica foi só uma vi-rada tática, logo sepultada pelo desencadeamento do Grande Terror e pelo pacto Molotov–Ribbentrop. Mas era de grande importância o fato de que, através da elaboração de um programa concreto de luta contra o fascismo, também os comunistas enfrentassem o nó das relações entre classe e nação, e isso contribuiria de modo significativo para va-lorizar seu papel na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial.

Na Itália, o problema de conciliar classe e nação fora formulado por Antonio Gramsci desde 1924. A solução do problema, pois, inscrevia-se numa perspectiva revolucionária e não na reformista. Mas deve-se chamar a atenção para a revisão dos fundamentos teóricos do bol-chevismo que Gramsci elaborou nos Cadernos do cárcere. Partindo da análise da crise de 1929, ele chegava a uma verdadeira teoria geral das crises, que continha também a explicação das origens da Grande Guerra. A partir das últimas décadas do século XIX, com a formação de uma “economia mundial”, crises e guerras tinham origem no con-traste cada vez mais gritante entre o “cosmopolitismo” da economia e o “nacionalismo” da política. O primeiro não podia difundir seus influxos benéficos porque se via obstaculizado pela existência de uma ordem internacional baseada nos Estados-nação, que, com suas prerroga-tivas (o princípio de soberania, a decisão exclusiva sobre a guerra e a paz), monopolizavam a política. Mas o princípio de soberania fora definitivamente abalado pelos eventos da Primeira Guerra Mundial, que deflagrou uma crise irreversível do Estado-nação. A virada isola-cionista da política soviética (a opção de “construir o socialismo num só país”) pôs fora de jogo o movimento comunista, uma vez que ele identificava o socialismo com o destino da URSS. Mas nos Estados Unidos se estava desenvolvendo um novo tipo de industrialismo, des-tinado a expandir-se em nível mundial e a mudar os espaços da polí-tica. Neste processo Gramsci entrevia a possibilidade de encaminhar

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a solução daquela antinomia, orientando nacionalmente a aliança en-tre operários e camponeses para um “novo cosmopolitismo”, voltado para a “reconstrução da economia segundo um plano mundial”. Etapa intermediária da nova ordem mundial, a criação de “agrupamentos” econômicos supranacionais.

Gramsci escrevia num cárcere fascista, mas não há quem não veja como sua elaboração atinja em cheio os fundamentos do bolchevismo: a teoria da “crise geral do capitalismo”, a consideração do imperialis-mo como “fase suprema do capitalismo” e, portanto, a idéia da inevi-tabilidade da guerra. Depois da queda do fascismo, sua investigação influenciaria de modo determinante a política do PCI, inspirada na perspectiva do antifascismo.

A guerra antifascista e a redefinição do reformismoAs primeiras três décadas do segundo pós-guerra registraram a

ascensão do “reformismo nacional” e, na Itália, único país da Europa Ocidental, o crescimento constante do peso eleitoral e do papel do PCI. Para analisar esta “anomalia”, é necessário que nos detenhamos brevemente nas características da Segunda Guerra Mundial a partir de 1941, isto é, a partir de quando, com a intervenção dos Estados Unidos e o surgimento da Grande Aliança, ela se tornou a guerra anti-fascista. Devemos, pois, considerar as mudanças por ela produzidas.

Deve-se chamar a atenção para o universalismo rooseveltiano e a visão que a elite do New Deal tinha da nova ordem internacional a ser construída depois da derrota do nazismo. Ela propugnava uma reorganização do mercado mundial que também incluísse a URSS, um ordenamento das relações internacionais baseado na cooperação entre as potências antifascistas, uma abordagem multilateral dos pro-blemas internacionais, a criação de espaços econômicos supranacio-nais abertos, a construção de novos organismos internacionais para o governo da economia, o nascimento das Nações Unidas como embrião de um governo mundial. Não foi possível realizar este projeto não só por causa da morte de Roosevelt e da mudança do bloco de poder que o sucede à frente dos Estados Unidos, mas também, e talvez sobre-tudo, por causa da indisponibilidade da URSS a aceitar este desafio. Na elite staliniana, dominava a percepção da insegurança da URSS, e isso fazia com que buscasse novas garantias territoriais. Era a proje-ção da “política de segurança” que Stalin havia começado na segunda metade dos anos trinta e que, logo depois do parêntese da “guerra pa-

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triótica”, induziu-o a restaurar o “Estado de segurança total”. Aquela visão leva a impor aos países da Europa Central e do Leste, libertados pelas forças soviéticas, um regime de ocupação permanente voltado para estender as fronteiras da URSS até as fronteiras desses países e a neles instaurar o sistema político e econômico da própria URSS. Era a criação de uma esfera de influência totalitária baseada em critérios militares e na divisão da Europa, com o erguimento do que Churchill batizou como “cortina de ferro”.

Portanto, caminhavam pari passu a ruptura da aliança antifas-cista e o nascimento da guerra fria. Mas as mudanças originadas da Segunda Guerra Mundial tiveram igualmente uma relevância epocal. Para ficar nas que se referem ao nosso tema, recordo a criação, por parte dos Estados Unidos, de um espaço econômico supranacional que se estendia a todo o Ocidente, o lançamento de “políticas de pro-dutividade” voltadas para estabilizá-lo, favorecendo a reconstrução da Europa Ocidental, a divisão do mundo em dois campos contrapostos dominados pelas duas maiores potências, o início da integração eu-ropéia. Nascia assim uma nova “estrutura do mundo”, na qual inter-dependência econômica e interdependência política caminhavam para-lelamente. Criava-se um sistema de relações internacionais, no qual o Estado-nação não era mais o único protagonista. As duas maiores potências alcançaram rapidamente uma capacidade de destruição re-cíproca que limitava sua própria soberania, uma vez que a decisão da guerra não era mais prerrogativa unilateral de uma ou de outra. Em medida bem maior, este elemento constitutivo da soberania do Estado moderno desaparecia em todos os demais países. No plano econômico, em todo o Ocidente se instaurava uma ordem dúplice, que, para reto-mar a feliz metáfora de Robert Gilpin, baseava-se num “compromisso entre Smith e Keynes”, isto é, na predominância da regulação de mer-cado na economia internacional e da regulação política na economia nacional. Isso favorecia o que Alan Milward chama de “renascimen-to do Estado-nação na Europa”, uma vez que os mercados nacionais eram os centros propulsores da difusão internacional do novo indus-trialismo e da “economia dos consumos”, que constituíam a base da hegemonia americana mas também do desenvolvimento dos países aliados, e a regulação política do mercado interno era a alavanca do “desenvolvimento nacional”. Sua promoção, somada à construção do Welfare State, tornou-se o principal objetivo das esquerdas em todas as democracias ocidentais. Esta combinação virtuosa de fatores políti-cos nacionais e internacionais iria durar até a crise dos anos setenta.

Mas, voltando à Segunda Guerra Mundial e à Itália, a Grande Aliança antifascista permitiu ao Partido Comunista assumir um papel

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eminente na Resistência e na guerra de Libertação, e tornar-se o prin-cipal partido do movimento operário italiano. Tomava forma assim um reformismo nacional comunista, que, caso único na Europa, demons-trou uma capacidade de resistência e de evolução destinada a incidir profundamente na vida política e civil do país até os anos setenta. Baseava-se, precisamente, na conciliação entre classe e nação, a par-tir da missão que coube à classe operária na Resistência e na guerra de Libertação; graças a ela, o PCI conseguiu ter um papel relevante na fundação da República, na elaboração do pacto constitucional e na construção do sistema político, e, do ponto de vista programático, desempenhou um papel comparável àquele que, nos outros países eu-ropeus, tiveram as grandes socialdemocracias. Pode-se dizer que, caso talvez único entre os partidos comunistas europeus, o PCI jamais se afastou do antifascismo como fundamento de uma política nacional reformista. A Constituição republicana tornou-se seu “programa fun-damental”. No entanto, tratava-se de um tipo de reformismo nacional incompleto, que, sob a roupagem de um partido comunista, não podia ser levado a cabo.

O “partido novo” de Togliatti era concebido como “partido de go-verno da classe operária”, e seu programa, resumido na fórmula da “democracia progressiva” (se levarmos em conta as particularidades de um país derrotado, que havia vivido a experiência do fascismo e, com o colapso deste último, também o colapso do Estado; e, além dis-so, havia experimentado uma guerra civil sangrenta, a divisão entre a República Social e o Reino do Sul, o risco de ruptura da unidade na-cional), não estava em nível inferior ao dos programas de reconstrução sustentados pelos partidos socialistas nos outros países da Europa Ocidental. Mas, terminada a Grande Aliança, o pertencimento ao mo-vimento comunista internacional e a fidelidade à URSS privavam o PCI da legitimação para governar. Esta não lhe era vedada pela força, mas pela falta de consenso, uma vez que, enquanto a Democracia Cristã dispunha de um nexo internacional virtuoso no qual inserir o desen-volvimento do país, a “dupla lealdade” do PCI não lhe permitia fazer o mesmo. No mundo do pós-guerra, a política nacional era o resultado de determinadas “combinações” de forças nacionais e de condiciona-mentos internacionais. Na esfera ocidental, em que a Itália estava so-lidamente inserida, não estava dada ao PCI a possibilidade de elaborar uma própria “combinação” daqueles fatores que o pusesse em condi-ções de desafiar a DC (e seu sistema de alianças) quanto ao governo do país. Em outros termos, no nexo entre política interna e política internacional, o PCI estava bloqueado por uma contradição insanável, derivada da sua lealdade a uma coalizão internacional contraposta àquela em que estava inserida a Itália, que impedia o desdobramento

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do núcleo reformista do seu projeto. Isto também bloqueou a evolu-ção da sua cultura política, privando-o de recursos fundamentais na gestão do “compromisso keynesiano” — sobretudo na concepção das “relações industriais” — e atribuindo-lhe um papel inferior ao que, em outros países europeus, tinham as socialdemocracias. Finalmente, a emergência da guerra fria cristalizou as divisões existentes no refor-mismo italiano, uma parte do qual - os dossettianos, os republicanos e Saragat - se colocava no governo, enquanto a outra - socialistas e comunistas - estava na oposição, reduzindo-lhe drasticamente o papel e a eficácia. No sistema da guerra fria, identificavam-se a “democracia bloqueada” e a impossibilidade de unir num só partido de governo as correntes do reformismo italiano: e isso, na Itália do segundo pós-guerra, iria marcar toda a experiência do “reformismo nacional”.

O fim do sistema de Bretton Woods e o “conflito econô-mico mundial”. Surgimento do europeísmo socialista

Os arranjos internacionais originados da Segunda Guerra Mun-dial entraram em crise no final dos anos sessenta. Para ter um qua-dro exaustivo dos fatores de mudança e dos processos que tiveram início nos anos setenta, também deveríamos considerar a evolução das relações Norte-Sul. Mas, para os fins do nosso argumento, pode-mos deixá-las de lado, mesmo porque estavam condicionadas pelas relações Leste-Oeste e pelas dinâmicas da guerra fria. Vamos consi-derar, pois, em primeiro lugar, a crise do sistema de Bretton Woods. No final dos anos sessenta, a economia americana não era mais ca-paz de desempenhar um papel hegemônico na economia ocidental. A convertibilidade do dólar e o regime de câmbio fixo tinham garan-tido a reconstrução européia e a ascensão de duas outras potências econômicas capazes de cooperar, mas também de competir com a economia americana: o Japão e a República Federal da Alemanha. Os Estados Unidos, que no final da guerra representavam 53% da riqueza mundial, por volta de 1970 representavam cerca de um ter-ço desta riqueza. Não podiam mais arcar com o peso das despesas militares decorrentes do papel de “gendarme” internacional do Oci-dente e perdiam competitividade também por causa do peso social alcançado pelas classes trabalhadoras. Este aspecto dizia respeito, em modos diferentes, a todas as democracias industriais, que ha-viam atingido a maturidade do “ciclo fordista”. Os Estados Unidos decidiram pôr fim à convertibilidade do dólar (1971) e ao regime de câmbio fixo (1973), destruindo o sistema de Bretton Woods. O sig-nificado desta decisão resume-se ao objetivo de tirar das mãos dos governos o controle dos fluxos financeiros internacionais e entregá-

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lo a mãos privadas. Assim, da velha ordem econômica internacional passava-se a um regime que só na aparência era de “desordem”: na realidade, ocorria a passagem de um sistema hegemônico, vantajoso também para os aliados dos Estados Unidos, para um conflito econô-mico mundial regulado pela lei do mais forte. Entre os motivos daque-la escolha, deve-se recordar a vontade de valer-se da senhoriagem do dólar para financiar o desenvolvimento da “economia da infor-mação”, apoiando-se no complexo militar-industrial com o objetivo de reconquistar a competitividade perdida em benefício da economia alemã e da japonesa. Objetivo não secundário era o de favorecer, também em nível nacional, o predomínio da regulação de mercado para facilitar a difusão da “economia da informação”. Em síntese, soava a hora final do “compromisso entre Smith e Keynes” e iniciava-se um novo ciclo de globalização assimétrica da economia mundial, entregue à regulação de mercado. Por outra parte, nos anos setenta também entra em crise o bipolarismo, e se a URSS, pensando apro-veitar a derrota americana no Vietnã, tentou relançar o próprio papel internacional com uma agressiva política expansionista no Terceiro Mundo, os EUA responderam com o lançamento de uma “nova guer-ra fria”, voltada para excluir a União Soviética da terceira revolução industrial. A passagem de um bipolarismo baseado na estabilidade das esferas de influência, bem como no domínio de cada superpo-tência no interior destas esferas, para um bipolarismo antagonista provocou o colapso da URSS, uma vez que ao seu poderio militar não correspondia um igual poderio industrial e tecnológico, que lhe per-mitisse resistir ao desafio americano.

Mas, voltando aos anos setenta, o fim de Bretton Woods, o início de um “conflito econômico mundial”, o lançamento de uma “nova guerra fria” mudaram radicalmente a natureza do vínculo externo. Antes de mais nada, desaparecia a autonomia relativa das econo-mias nacionais; em segundo lugar, a estas economias se apresen-tavam problemas agudos de reconversão industrial e de especiali-zação competitiva; em terceiro lugar, a passagem do industrialismo mecânico ao neo-industrialismo informático mudava rapidamente a composição demográfica dos países mais desenvolvidos. Estas mu-danças faziam desaparecer as vantagens da regulação política das economias nacionais e reduziam sensivelmente os recursos finan-ceiros necessários para sustentar as redes de proteção social cons-truídas nas décadas precedentes (a “crise fiscal do Estado”); além disso, diferenciavam cada vez mais as demandas de Welfare e enfra-queciam o parceiro sindical do “compromisso neocorporativo”. Era o início do fim da identificação entre movimento operário e socialismo, e fechava-se o ciclo do “reformismo nacional”. Como recordamos no

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início, nos anos oitenta se registrou uma crise generalizada do “con-senso reformista”.

Mas a Europa Ocidental não sofreu passivamente as conseqüên-cias do unilateralismo econômico americano. Fracassada, por causa da oposição dos Estados Unidos, a primeira tentativa de criar uma moeda única, os governos europeus aceleraram o processo de in-tegração, criando (1979) o Sistema Monetário Europeu (SME). Por seu turno, os dirigentes mais lúcidos do socialismo europeu (Brandt, Palme, Kreisky) haviam empreendido uma busca destinada a renovar profundamente a cultura política dos respectivos partidos. Protago-nistas da construção européia no pós-guerra foram a cultura política católica e a liberal. Os partidos operários, tanto as socialdemocracias quanto os partidos comunistas, restaram por muito tempo vincula-dos ao nacionalismo econômico. Isto se explica com o fato de que a regulação política do mercado nacional e o “compromisso neocorpo-rativo” eram seus principais recursos políticos. Ao contrário, não é justificável sua dificuldade para compreender o valor progressista do regionalismo econômico e da integração supranacional. Quanto aos comunistas, em particular, deve-se salientar a incapacidade de compreender que a integração européia não era apenas um pilar da guerra fria, mas também um processo que, iniciado neste contexto, tendia a superar a lógica bipolar e a criar um ator político que po-deria contribuir para sua superação. Mas já nos anos sessenta os principais partidos operários da Europa Ocidental começaram uma revisão das suas posições em relação ao Mercado Comum Europeu. Nos anos oitenta, a busca de novas respostas à crise do consenso reformista levou ao surgimento de um europeísmo socialista. Entre os partidos comunistas, o mais avançado era o PCI, que, no que se refere a estes temas, seguiu uma parábola análoga à das socialde-mocracias, apesar dos limites derivados do caráter contraditório das suas ligações internacionais. E eles foram muito rapidamente evi-denciados pelo rápido esgotamento do período do “eurocomunismo”.

No curso dos anos oitenta, a resposta européia ao desafio ame-ricano aprofundou-se e, com o Ato Único (1986), começou a tomar forma o projeto de uma União política. O tema se tornaria plena-mente atual depois de 1989, quando, com o fim da guerra fria, a incorporação da Alemanha Oriental pela Ocidental e o colapso da URSS, surgiram novos problemas acerca da “globalização de merca-do” da economia mundial e se apresentou concretamente o problema de unificar o velho continente.

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Fim da guerra fria e “globalização assimétrica”. O ciclo político dos anos noventa

Voltamos assim ao ponto de partida das nossas reflexões: o ciclo político dos anos noventa, que, depois da vitória de Clinton nas elei-ções presidenciais de 1992, registrou a vitória das esquerdas não só na maioria dos países europeus, mas também em países importantes da América Latina. Gostaria de tentar dar uma interpretação deste ciclo que, na Europa, teve como protagonista um novo reformismo.

À explosão da globalização dos mercados e ao fim da URSS a Eu-ropa Ocidental reagiu com o Tratado de Maastricht (1991) e a decisão de “ampliar” a União aos países da Europa Central e Oriental (e, numa perspectiva a mais longo prazo, também aos Bálcãs, à Turquia e a ou-tros países mediterrâneos). Teve início assim a construção da União política européia e se lançaram as primeiras bases da unificação do velho continente. O objetivo prioritário era criar, com o surgimento de uma moeda única, o espaço econômico indispensável para enfrentar os desafios da “competição global”. Mas a meta da União política é muito mais ambiciosa: com efeito, visa a transformar a Europa num novo ator político global. Nos países europeus, a globalização dos mer-cados e o processo de Maastricht mudaram o nexo internacional das políticas nacionais e deram origem a novos critérios de agrupamento de forças. O problema que se apresenta às elites nacionais é fazer frente aos novos condicionamentos da economia e da política mundial. A alternativa de fundo refere-se aos modos pelos quais cada país pode participar do processo de integração supranacional e, portanto, à re-partição dos custos e dos benefícios entre os diferentes grupos sociais. A visão do interesse nacional torna-se parte integrante da percepção do interesse comum europeu. E tanto um quanto outro são determinados em modos diversos segundo as diferenças de interesses, de culturas e de valores que atravessam a sociedade.

Para tornar mais acessível a argumentação, limitar-me-ei à Itália. O primeiro problema que, no início dos anos noventa, se apresentou era honrar ou não os compromissos assumidos com a assinatura do Tratado de Maastricht. Para isto acontecer, a Itália devia mudar o rumo. Nos quinze anos anteriores, ela fora governada com critérios divergentes daqueles seguidos nas outras grandes democracias euro-péias. Dívida pública, déficit orçamentário, altas taxas de juros, dife-rencial de inflação, política de gastos, protecionismo econômico, mo-delo televisivo, atraso dos sistemas de rede e “democracia bloqueada” impediam nosso país de desempenhar o papel que dele se esperava. Logo em seguida à assinatura do Tratado de Maastricht, começaram pressões significativas das instituições européias para que a Itália

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mudasse as orientações de governo. Além disso, na década anterior, tais orientações produziram uma crescente discrepância entre Norte e Sul do país até o ponto de solapar sua unidade.

Em 1992, quem quer que vencesse as eleições se veria diante da necessidade de dar início à convergência com os parâmetros de Ma-astricht e de propor aos cidadãos “grandes sacrifícios” para sanear a economia. O saneamento podia ser buscado mediante escolhas unila-terais, impostas pelo núcleo exportador dos grupos econômicos mui-to mais amplos que haviam sustentado a coalizão pentapartidária2*, ou então mediante a promoção de políticas de concertação que redis-tribuíssem seus custos de modo equânime. Nem as forças de governo nem as de oposição percebiam a questão em jogo. Mas a velha alian-ça de governo chegara ao fim da linha, uma vez que as forças que a sustentaram estavam divididas pelos novos desafios da integração européia. Depois das eleições, o crescimento da Liga Norte, a explo-são de Tangentopoli e as vicissitudes dos movimentos referendários propiciaram um rápido processo de deslegitimação da classe política de governo. Ao mesmo tempo, a Itália foi alcançada por uma crise da moeda que impôs uma pesada desvalorização da lira e o abandono do SME. Enquanto o sistema de partidos se desfazia, formava-se uma nova coalizão de forças e de interesses decididos a guiar o país até a “Europa de Maastricht”. Fato de absoluta relevância, tanto com o governo Amato (1992), quanto com o governo Ciampi (1993), aque-las forças buscaram um entendimento com o movimento sindical e com a oposição de esquerda, pondo fim a uma orientação histórica das classes dirigentes italianas, que jamais haviam reconhecido à esquerda a legitimação para governar. Formava-se, pois, uma coali-zão europeísta, que pretendia incluir a esquerda no governo do país. Mas ela não era majoritária e se via combatida por um amplo alinha-mento anti-Maastricht, cujo denominador comum era o nacionalismo econômico e cujas orientações ideais também se alimentavam de uma difusa aversão aos valores da modernidade. Por causa dos erros da esquerda, entre 1993 e 1994, estas forças coagularam-se rapida-mente e, favorecidas pelos humores “antipolíticos” propagados pelos grupos do establishment que manipularam a “revolução” das Mãos

2 No período final da “Primeira República”, entre 1980 e 1992, os governos italianos compunham-se de uma coalizão de cinco partidos: a DC, o PSI e três agremiações menores, que reuniam socialdemocratas, republicanos e liberais (PSDI, PRI e PLI). O “pentapartido” conclui-se com o conjunto de investigações e procedimentos judiciais conhecido como Operação Mãos Limpas, que desvenda a Tangentopoli, gigantesco sistema de corrupção incrustado no sistema de poder democrata-cristão e socialis-ta. [N. do T.]

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Limpas, recolheram-se em torno de Silvio Berlusconi, sob a bandeira do novo partido por ele fundado no início de 1994. Assim, enquan-to a esquerda buscava confusamente uma nova identidade, nascia uma nova direita, populista, plebiscitária, xenófoba e antieuropéia. Ela era heterogênea em termos de interesses e programas; mas, fato único na Europa, revelou uma capacidade extraordinária de agregar um amplo consenso majoritário e venceu as eleições de 1994.

Interesse nacional e interesse comum europeuCom esta realidade teve de haver-se o PDS [Partido Democrático

de Esquerda], nascido em 1991 a partir da dissolução do PCI. Em 1992-1993, ele representava quase tudo o que restava da esquerda reformista e foi obrigado, antes de mais nada, a ajustar contas consigo mesmo, uma vez que as bases programáticas sobre as quais surgira eram exíguas e a cultura política da qual se nutria era subalterna e ambígua. Não dispunha de uma análise apropriada das mudanças dos últimos vinte anos e estava permeado de humores maximalistas. Ambos os elementos tornavam-no antes o continuador do PCI dos anos oitenta do que uma força do novo reformismo europeu. Todavia, com a “virada” da Bolognina fora dado o passo decisivo: a parte mais consistente do PCI saíra do estado de menoridade a que a ligação com a URSS o havia condenado e, com a entrada na Internacional Socialis-ta, dispunha pela primeira vez de conexões internacionais mais úteis. Além disso, a dissolução do PCI liberalizara o mercado político, e o PDS estava desafiado a completar sua evolução reformista para poder as-pirar ao governo. Com a mudança do seu líder, em 1994, produziu-se uma significativa mudança de estratégia.

A primeira inovação foi introduzida no plano da análise. Tratava-se, antes de tudo, de compreender as razões da derrota. Estas foram sintetizadas na incapacidade de propor um novo “pacto social” que substituísse a velha “aliança dos produtores”, na qual se baseara o consenso da esquerda nos anos do ciclo fordista e da construção do Welfare. Apontou-se como conteúdo deste pacto uma articulação en-tre as reformas do sistema econômico e a reforma do Estado social, tendo em vista a modernização do país e sua reinserção entre os pro-tagonistas da integração européia. Isto significava dar uma perspecti-va política à coalizão de forças europeístas que, a partir de 1992, havia dirigido o país abalado pela crise do velho modelo de desenvolvimento e pelo colapso do sistema de partidos, bem como precisar as alianças que permitissem ao PDS assumir um papel de governo. Aos conteú-dos econômico-sociais do “novo pacto” correspondia uma aliança da

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esquerda reformista com o centro católico-democrático. Por outra par-te, um capítulo fundamental da europeização do país era constituído pela reforma do sistema político e pela realização de uma democracia da alternância. Diante de uma direita que assumia as características sumariamente descritas, deviam se unir as forças cujas raízes resi-diam nas culturas políticas que marcaram a história da República. Em terceiro lugar, o panorama das forças políticas que emergiam deli-neava o cenário de um bipolarismo de coalizões, e o centro-esquerda, em particular, não podia ser concebido como uma aliança eleitoral entre partidos, mas devia assumir os traços de uma coalizão não pas-sageira, protagonista do desafio em torno do governo. Lançavam-se, assim, as premissas de um “novo reformismo”, uma vez que o modo pelo qual se interpretava o interesse nacional estava estreitamente ligado à perspectiva de um papel destacado da Itália na definição do interesse comum europeu. Por motivos históricos que remontam a to-das as vicissitudes do século XX, na última década o intérprete deste reformismo não foi um novo partido, mas uma coalizão não ainda bem definida: a Oliveira. Investigar suas origens, seguir seu percurso e tentar perscrutar seu futuro é o tema que pusemos no centro das páginas que se seguem.

(Tradução: Luiz Sérgio Henriques)

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Autores

Ruy FaustoDoutor em Filosofia pela Université de Paris 1 (1981), e graduado em Filosofia (1956) e em Direito (1960) pela Universidade de São Paulo. Dentre suas obras destaca-se Marx: lógica e política.

Marcelo SantosProfessor de Ciência Política da Unesp, Campus de Araraquara/SP.

Amália D. García MedinaGovernadora do Estado de Zacatecas, México. Foi deputada e senadora e Presidente Nacional do Partido de la Revolución Democrática.

Walid SalemDiretor do “Panorama”, Centro Palestino para Disseminação da Democracia e Desenvolvimento Comunitário, ONG baseada em Jerusalém Oriental. É autor de vários livros e artigos sobre democracia, sociedade civil, juventude, refugiados e estudos sobre a paz. Foi jornalista e membro do Conselho Nacional Palestino.

Galia GolanProfessora emérita da Universidade Hebraica de Jerusalém e da Escola de Governo do Centro Interdisciplinar de Herzlia. É uma das principais líderes do Movimento PAZ AGORA.

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Sarkozy segundo a ordem das razões1

Ruy Fausto

O discurso pronunciado por Nicolas Sarkozy no dia 14 de janeiro de 2007, por ocasião da sua investidura como candidato às eleições presidenciais foi objeto de numerosas alusões, prin-

cipalmente por parte dos seus adversários, mas, de um modo sur-preendente, ele não foi examinado até aqui de maneira pelo menos um pouco sistemática. E, entretanto, a candidata socialista Ségolène

1 O presente texto foi escrito originalmente em francês em março desse ano, e de-veria ser publicado na França, o que acabou não acontecendo. Como Política De-mocrática se interessou, em princípio, por ele, eu o traduzi, e o ponho aqui à disposição do público brasileiro. Acho que o artigo pode ter certo interesse, porque as questões envolvendo as últimas eleições presidenciais francesas têm em parte alcance universal. O artigo comenta o discurso de investidura de Nicolas Sarkozy como candidato da UMP (União por um Movimento Popular) – partido gaulista na origem –, candidato que se elegeu presidente, no segundo turno, com uma maioria de 53%, contra 47% da candidata socialista. A campanha de Sarkozy se caracteri-zou por dois traços aparentemente contraditórios. Por um lado, ele se apresentou como candidato de uma direita que se afirma como tal, sem complexos, mas de outro, como alguém que não hesita em evocar nomes – e também temas, ou temas supostos – da tradição da esquerda. Tento fazer uma “explicação de texto” do dis-curso de investidura de Sarkozy, discurso que não foi escrito por ele, mas que o candidato assumiu, e que foi objeto de muitos comentários, não muito profundos, entretanto. Se o leitor quiser mais algumas informações sobre as eleições presi-denciais francesas, permito-me indicar os artigos que publiquei na Folha de São Paulo, nos dias 7 de abril e 20 de maio de 2007. A versão do texto, que ofereço aqui, com alguns adendos e modificações, é a maior delas. Optei por ela, porque as outras freqüentemente omitiam as implicações de caráter mais universal que, precisamente, nos interessam mais de perto.

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VII. Mundo

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Royal, disse recentemente, a propósito do discurso, que “seria preciso pô-lo a nu (décortiquer)...”.

Como se sabe, trata-se de um documento curioso, em que um can-didato de direita invoca o nome de alguns ícones da esquerda, como Léon Blum e Jean Jaurès. Como isso foi possível? Quais são as ope-rações que tornaram possível esse seqüestro? Em que medida o do-cumento é rigoroso e, à sua maneira pelo menos, conseqüente? São questões importantes que nos levam bem longe, para além de uma simples avaliação da “sinceridade“ ou da “honestidade“ do candidato.

A que título, e com que justificações, o candidato Sarkozy reivindi-ca figuras tutelares da esquerda? Por que não invoca homens políticos de direita, do século XX ou do XIX? Sem dúvida, o texto nos fornece uma justificação. É que “durante muito tempo, a direita ignorou o trabalhador” (p. 8). A esquerda de outrora representaria, assim, uma referência melhor. Mas a esquerda de hoje não seria ela a herdeira natural desse passado? De jeito algum: “a esquerda, que outrora se identificava” com o trabalhador, “acabou traindo” (id), e com isso, per-deu o direito à herança. O principal exemplo dessa traição seria a lei que limita o tempo de trabalho regular semanal a 35 horas.

A esquerda teria traído “o trabalhador”.“Trair” é um termo pesado que valeria a pena explicitar. Se tentarmos reconstituir como o texto desenvolve essa tese e a justifica, perceberemos, em primeiro lugar, que ele fala tanto do “trabalhador” como do “trabalho”. Ou, mais exa-tamente, que fala antes do trabalho – é o seu leitmotiv – do que do tra-balhador. A “... esquerda imóvel não respeita mais o trabalho” (p. 4). “O objetivo da República é o reconhecimento do trabalho como fonte da propriedade, e [o reconhecimento da] propriedade como represen-tação do trabalho” (p. 5). “[A república virtual] é aquela que proclama que o trabalho é um valor, mas que faz tudo para desencorajá-lo” (p. 6).2 “Com a crise do valor trabalho, é a esperança que desaparece” (p. 7). “Quero propor aos franceses uma política cuja finalidade será a revalorização do trabalho” (p. 8). “O trabalho é uma emancipação, é o desemprego que é uma alienação” (id). “É o trabalho que cria o trabalho” (id) etc.3 Sem dúvida, fala-se também de “trabalhador”, mas muito menos : é como se houvesse um deslizamento da significação “trabalhador” para a significação “trabalho”. Por isso, para tentar re-velar o conteúdo da suposta “traição” por parte da esquerda, conviria

2 O trabalho é a liberdade, é a igualdade de oportunidades, é a promoção social” (p. 7). “O trabalho é o respeito, é a dignidade, é a cidadania real” (id).

3 Como indiquei no segundo dos meus artigos para a Folha, onde faço uma crítica da campanha de Ségolène Royal, a noção ambígua de “valor trabalho” fora enunciada originalmente pela candidata socialista, e constava do seu programa.

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(e é legítimo) substituir “trabalhador” por “trabalho”, e escrever que, segundo Sarkozy, a esquerda traiu o trabalho. Mas há na realidade um jogo entre as duas significações, que seria preciso desmontar, e que constitui o segredo desse discurso.

A dificuldade remete principalmente a duas questões. Por um lado, é preciso se perguntar qual foi a atitude da esquerda, no passado e qual é a sua atitude hoje, tanto em relação ao trabalho como em re-lação ao trabalhador. Por outro lado, já que quase ninguém poria em dúvida que o trabalhador é um “valor” – no sentido de que ele merece pelo menos o respeito que merecem todos os humanos – seria neces-sário se perguntar (o que não é a mesma coisa), em que medida o pró-prio “trabalho” é um valor.

Tomando as duas questões num mesmo movimento, observar-se-á que se, hoje como ontem, a esquerda se apresentou como defensora dos trabalhadores, e se essa defesa incluía, de um modo ou de outro, “a garantia de emprego (ou de um emprego) ao trabalhador”, tal atitu-de não implicou no passado, nem implica hoje, numa idealização do “trabalho”. De fato, seria possível afirmar de um modo geral, e sem precisões de ordem quantitativa e qualitativa, que o próprio trabalho é um valor? A defesa do trabalhador implicou freqüentemente na exi-gência de redução quantitativa do tempo de trabalho, e a condenação de certas formas de trabalho.

A luta histórica da esquerda, que foi, em medida considerável, pa-ralela à luta dos trabalhadores, visava, entre outras coisas, limitar a jornada de trabalho, e, nesse sentido, a esquerda nunca foi “favorável ao trabalho” se isto significar “maximização do tempo de trabalho”. Tratava-se antes de uma defesa do trabalhador diante do trabalho, atitude que se traduzia, de modo só aparentemente paradoxal, na exi-gência de menos trabalho. A mesma coisa no plano qualitativo: o tra-balho em “cadeia de produção”, e outras formas brutais, consideradas normais pelo sistema, foram combatidas pela esquerda.

Dir-se-á que se tratava de trabalho excessivo, ou de formas violen-tas, mas a noção de trabalho excessivo, ou inumano, se desloca con-tinuamente. Primeiro se lutou pela jornada de 10 horas, isto na época em que a direita pregava a jornada “normal” de 12 horas; depois lutou-se pela jornada de 8 horas, que, segundo os ideólogos da época, seria incompatível com o lucro. Depois houve a introdução das 40 horas se-manais (Blum, o inimigo do trabalho!) e, mais recentemente, votou-se a lei das 35 horas semanais. No plano qualitativo, o trabalho em “cadeia de produção”, por exemplo, que seria o máximo em matéria de moder-nidade e de progresso, acabou sendo proscrito, em muitos casos.

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Claro que se pode discutir – limitando-nos ao problema da quan-tidade – se as condições atuais permitem ou não que se introduzam, com vantagem, as 35 horas. Todo argumento visando mostrar que, nas condições atuais, não é conveniente introduzir aquela redução, é um argumento que, verdadeiro ou falso é em si mesmo, honesto. A mesma coisa não pode ser dita, entretanto, desse jogo sofístico entre “trabalho” e “trabalhador”, que se fundamenta na lenda de uma trai-ção ao “trabalho” praticada pela esquerda. Porque, resumindo, “traba-lho” se diz em dois sentidos, e a confusão entre eles é o segredo do jogo de linguagem sarkoziano : o termo pode significar “trabalhador” (em geral, em oposição a “capital”), mas pode significar também “tempo de trabalho”. Na primeira acepção, a esquerda sempre apoiou o “traba-lho” e, nem ontem nem hoje, o traiu; na segunda, pelo contrário, ela nunca lhe foi “favorável”, isto é, nunca foi, nem poderia ser, partidária da maximização do tempo de trabalho.4

O texto se refere certo número de vezes à “democracia”, várias ve-zes à “República”, mas é bastante discreto em relação às denomina-ções que conviriam à organização econômica atual. Entretanto, há uma passagem, à qual voltarei mais adiante, em que ele fala em “ca-pitalismo”. E há uma temática constante (que, como se verá, poderia ter uma relação com aquela a que acabo de me referir), a da diferença entre “república virtual” e “república real” (ver p. 6),

A diferença entre “república virtual” e “república real” também pa-rece ter alguma coisa a ver com o discurso da esquerda, e lhe ter sido tomada de empréstimo. Mesmo se o marxismo, e pior ainda, o totali-tarismo leninista e depois stalinista, utilizaram mal a distinção entre uma “democracia formal” e uma democracia real (ou mais exatamente “efetiva” ou “efetivamente real”), infletindo-a no sentido de uma desva-lorização da democracia (“formal” se tornou sinônimo de “irreal”, com as conseqüências que se sabe) – a oposição entre democracia formal e democracia real guarda uma importância considerável.

4 Trabalho“, no segundo sentido, “tempo de trabalho”, se opõe a “tempo livre”, que constitui a verdadeira riqueza, como dizia um anônimo genial citado por Marx. De fato, se o trabalho é uma exigência social, e se certos trabalhos produzem prazer, na maioria dos casos, na sua forma atual, ele representa uma “pena”, o que significa que ele é, em geral “trabalho alienado”, razão pela qual não há por que idealizá-lo. Observe-se en passant, como sugeri anteriormente, que “emprego” – cujo oposto é “desemprego”, um oposto negativo – é uma noção cujo uso com sinal positivo oferece muito menos risco do que a imprudente idealização do “trabalho”. Mas o documento rejeita explicitamente (p. 8) a defesa do emprego, sob pretexto de que quer defender não o emprego mas o trabalhador...

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Vivemos numa sociedade que não podemos caracterizar nem sim-plesmente como “capitalista”, nem simplesmente como “democrática”. Trata-se de uma “democracia capitalista”, de uma democracia, mas... capitalista. Porém exatamente porque a democracia, mesmo nos li-mites do capitalismo, é o contrário de uma ilusão, a democracia está sempre em tensão, no que se refere às suas relações com o capitalis-mo. A democracia afirma valores de igualdade e de liberdade, que são mais ou menos postos em cheque (ou “virtualizados”) pelo capitalis-mo. O que não significa que se possa liquidar o capitalismo por um movimento de varinha mágica revolucionária. Aquilo de que se trata hoje é, antes, de obter controle sobre o capital, neutralizar seus efeitos negativos, o que, ao contrário do que se supunha, se revelou no fundo menos utópico e principalmente muito menos perigoso do que o cami-nho revolucionário.

A distinção sarkozista entre “república virtual” e “república real” remeteria à oposição utilizada pela esquerda entre “democracia for-mal” e “democracia real”, e desembocaria, no mesmo sentido, numa exigência de luta pela neutralização dos efeitos negativos do capita-lismo? Em primeira aproximação, isto seria pensável, seja por cau-sa da proximidade que existe entre os dois pares de expressões, seja também a partir da leitura de uma passagem, já indicada, em que se fala do capitalismo e da necessidade de “moralizá-lo”: “Eu quero ser o presidente que se esforçará por moralizar o capitalismo, porque não acredito na sobrevivência de um capitalismo sem moral e sem ética...” (p. 8). Nicolas Sarkozy parece de novo enveredar na direção de um dis-curso crítico. Mas assim como a defesa dos trabalhadores se revelou de fato uma justificação do “trabalho alienado”, os temas da realização efetiva da democracia e da moralização do capitalismo se invertem em elogio da realização “plena” do capitalismo, o que significa recuo da democracia, pelo menos no campo econômico. Para mostrar isto, seria preciso examinar algumas das medidas econômicas e sociais que ele propõe. Há na realidade dois tipos de questões a analisar. Na primeira série, temos uma defesa praticamente aberta do capitalismo, na sua forma mais inegalitária. Na outra, há um fundo de problemas reais, mas tratados de tal modo (tomando o secundário como principal ou propondo remédios perigosos), que, de novo, é o sistema econômico sob a sua forma mais dura e injusta que sai reforçado.

Moralizar o capitalismo só poderia significar, por um lado, reduzir as desigualdades, as quais, na França, sem atingir dimensões estra-tosféricas de certos paises do terceiro mundo, são, de qualquer modo, importantes. Ora, qual seria o efeito de medidas como a redução de 60% a 50% do chamado “escudo fiscal” (o máximo de imposto global

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que cada contribuinte poderia ser obrigado a pagar), “escudo” que afe-ta essencialmente os mais ricos? Qual poderia ser o sentido da quase liquidação dos impostos sobre sucessões e doações, a qual, de novo, beneficiaria essencialmente as grandes fortunas? (Nota: a acrescentar o custo, para o Estado, dessas medidas. Só a redução do imposto so-bre sucessões e doações implicaria numa sangria da ordem de uns 5 bilhões de euros...). Para justificar essas medidas, o texto apela para uma tese simplista sobre a relação entre trabalho e propriedade, por trás da qual há uma leitura mistificada da relação entre trabalho e capital. Assim, o esvaziamento dos impostos de sucessão e doação é justificado, através da exigência, feita em nome da justiça, de poder transmitir à sua descendência “os frutos de uma vida de trabalho” (p. 8). Ora, não é verdade que as grandes fortunas sejam produto do tra-balho. No melhor dos casos, há um trabalho de organização da produ-ção, mas a riqueza apropriada é incomensurável com o que se pagaria por ele, por muito que se pagasse, se fosse retribuído enquanto tal. E esse é o melhor dos casos. As grandes fortunas não provêm apenas de trabalho de outrem diretamente apropriado pelo capitalista. Elas vêm das operações especulativas, dos “investimentos” nas bolsas etc. Sob esse aspecto, a relação da riqueza com o trabalho é ainda mais remota. A riqueza, “a grande riqueza”, tem mais a ver com o jogo do que com o trabalho.

Há uma segunda série de questões, nas quais problemas reais são utilizados de forma transfigurada, de maneira a servir à ideologia do candidato. Assim, o documento critica os grevistas por causa dos efei-tos negativos que teriam as greves sobre o bem-estar dos usuários, os dos meios de transporte, principalmente. O candidato propõe que uma lei imponha um voto secreto por parte de todos os membros de uma empresa, administração ou universidade, aos oito dias da deflagração de uma greve, para decidir da continuação ou não do movimento. Sem dúvida, as greves dos transportes públicos são às vezes muito duras para os usuários, embora a sua freqüência não seja a que sugere a direita. De qualquer modo, retomando uma opinião expressa há al-gum tempo por Daniel Cohn-Bendit, acho que seria desejável que, no momento de deflagrar um movimento, se ouvisse sempre um repre-sentante dos usuários. Quanto ao voto secreto, ele não é em princípio inadmissível, mas se deveria recorrer a ele nas assembléias, onde o problema é discutido. Mas o que é inadmissível no projeto do candi-dato é que tudo isso seria imposto por uma lei, lei que, além de tudo, fixaria prazos imperativos. O caráter de domesticação do movimento sindical que têm as propostas é evidente, e tanto mais, se pensarmos que elas se inserem num programa que não revela nenhum empenho em melhorar a condição dos pequenos e médios assalariados.

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Sarkozy segundo a ordem das razões

O texto critica aqueles que “não querem fazer nada” (p. 5), e diz que só os que ajudam a si mesmos merecem ser ajudados. Que existam aqui e ali abusos no uso das alocações do Estado – único caso em que o texto poderia ter alguma verdade –, gente que recebe indevidamente indenizações desta ou daquela espécie, é inegável. Mas, o fenômeno é certamente secundário. O essencial são as enormes dificuldades, criadas pelo novo capitalismo, no interior do qual, o assalariado está submetido às exigências leoninas dos acionistas, às imposições do capitalismo financeiro propriamente dito, e à concorrência internacio-nal. Ora, no documento, esses problemas desaparecem, ou passam para o segundo plano, diante do mote culpabilizante do “assistencia-lismo generalizado” (p. 6, cf p. 8), ou do “trabalhador que vê aquele que é objeto de assistência (l’assisté) se sair melhor do que ele ao acertar as contas no final do mês” (p. 7). Esta última argumentação é propria-mente indigna. Ela joga aqueles que têm um emprego contra os que não o têm, estigmatizando esses últimos e, naturalmente, absolvendo e idealizando o sistema. Aí aparece a verdadeira figura do documento e do candidato.

Assim, o grande texto de entronização do candidato da UMP se revela, sem exagero, um tecido de “anfibologias”. Uma pequena obra prima ideológica da direita francesa dos nossos dias. O pano de fundo é a velha fábula ideológica, segundo a qual, o trabalho seria a “fonte da propriedade” e a propriedade a “representação” do trabalho (p. 5). Os que ousam duvidar dessa fábula seriam os cultores da “França imó-vel” (p. 4). Como outros assinalaram, o menor dos paradoxos dessa ideologia não é o de chamar de “reforma” o que representa uma con-tra-reforma, ou de falar de movimento a propósito de um movimento de regressão. Sem dúvida, a marcha à ré também é um movimento. A acrescentar alguns toques de cinismo puro e simples, como o de se apresentar como defensor do pleno emprego (p. 6), incongruência gri-tante, no interior de um discurso cuja preocupação central não é essa, e cujas medidas propostas não vão certamente nessa direção.

O apelo aos nomes de Blum e de Jaurès convida a uma reflexão final. Trata-se de uma demagogia eleitoral sem-vergonha. Poderíamos nos perguntar se tal evocação é tão absurda como seria a invocação, por parte da candidata da esquerda, dos nomes de Poincaré, de Tar-dieu, de Thiers ou de Guizot. Sim e não. Por um lado, teríamos nesse último caso um absurdo análogo, pois se reivindicaria simetricamen-te figuras tutelares que não encarnaram no passado nem podem en-carnar, hoje, os valores (de esquerda), assumidos. Mas subsiste um problema. Se, embora ao preço de chicanas retóricas, o candidato de

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direita pode se servir, sem escrúpulos, da galeria dos homens políticos de esquerda, é improvável, com muito poucas exceções, que a candi-data de esquerda, venha a fazer apelo ao Panteão dos homens políticos de direita. Por quê?

A utilização dos grandes ícones da esquerda pela direita não deve ser considerada propriamente como um motivo de alegria para a es-querda, como alguns assumiram um pouco rapidamente. A confusão não é inocente e, por grosseira que seja, representa, diante de certo público, um sério perigo. Mas ela mostra certamente que é a esquerda e não a direita que encarna o progresso social (não falo do totalitaris-mo de esquerda, que como o de direita é sempre regressivo, mas da esquerda democrática diante da direita “republicana”). A despeito de tudo – das regressões sempre possíveis, como a que a direita prepara agora – há uma linha de progresso social. E, mesmo se em certos ca-sos, por razões de interesse político, a direita se associou à esquerda e mesmo a precedeu (cf. a legislação social de Bismarck, por exemplo), na maioria deles, foi a esquerda (continuo me referindo só à esquerda democrática), que encarnou claramente esse movimento. Ora, a direi-ta atual não pode deixar de reivindicar o progresso social no que se refere ao passado, mesmo se ela apresenta um projeto para o futuro que vai à contramão do progresso. As referências de Sarkozy a Blum e a Jaurès são assim um pouco a homenagem do vício à virtude. Na realidade, para qualquer homem político do século XXI – menos da extrema-direita – é muito difícil invocar as grandes figuras da direita. Fora algumas exceções, a história da direita e principalmente a his-tória da direita européia do século XIX e do início do século XX não é suscetível de plena apropriação, mesmo por parte de seus descen-dentes naturais. É preciso renegar os seus ancestrais e buscar outros, de extração diferente. O que não quer dizer que não haja afinidade, entre a direita dos séculos XIX e XX, e a direita de hoje. É como se, no plano pontual das medidas, a direita de hoje fosse obrigada a invocar a esquerda do passado. (A direita de hoje concorda com a esquerda de 1936; a direita de 1936 estava de acordo com as principais pro-postas dos revolucionários de 1848, e assim por diante...). Mas, no plano dos princípios, o acordo é profundo. Sobre o que se faz silêncio. Na realidade, os ideólogos do século XIX idealizavam o “trabalho” e naturalizavam o sistema como fazem os seus herdeiros, só que de um modo que é, sem dúvida, excessivamente brutal e grosseiro para as exigências da direita de hoje. Vejamos, por exemplo, como soava, no ano da graça de 1849, a tese da unidade indissolúvel entre o esforço individual e a constituição de capital, tese cujo corolário é a culpabili-zação dos vencidos na luta econômica: “Uns, através da inteligência e da boa conduta, criam um capital e entram na via de uma vida cômo-

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Sarkozy segundo a ordem das razões

da (aisance) e do progresso. Os outros, limitados ou preguiçosos, ou desregrados, permanecem na condição estreita e precária das existên-cias que se baseiam unicamente no salário” (GUIZOT, Da Democracia francesa, 1849, p. 76). Estaríamos tão longe da distinção sarkozista entre “aquele que quer progredir” e “aquele que não quer fazer nada”? Tudo somado, tem-se a impressão de que esses verdadeiros ancestrais da direita francesa de hoje, cuja sombra permanece ausente-presente na fala dos seus herdeiros, nela reconheceriam, apesar de tudo, a sua própria mensagem. Quem não é preguiçoso nem desregrado cria um capital; trabalhe mais se quiser ganhar mais. De Guizot a Sarkozy, a letra variou um pouco, mas a melodia é a mesma. Infelizmente, só uma parte dos milhões de franceses que vivem do seu trabalho se deu conta isto.

Boulogne-Billancourt (França), 3 de junho de 2007

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ALCA: negociações, impasses e resistências

Marcelo Santos

A interrupção das negociações do projeto norte-americano da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), desde novembro de 2005, deve-se sobretudo à atuação da diplomacia brasileira

na defesa dos interesses nacionais e regionais. Ao contrário da política externa do governo FHC, que privilegiou as relações com os EUA, a atual política externa brasileira apostou na articulação dos países do sul para enfrentar as políticas comerciais preconizadas pelas grandes potências mundiais, tal como ocorreu no surgimento do Grupo dos 20, na reunião da OMC em Cancún, e nas tentativas de estreitar os laços de integração com os países latino-americanos. Porém, do lado norte-americano, a paralisação das negociações da Alca não significa que esse país tenha desistido desse projeto. Sob outras siglas e acordos bilaterais, o governo Bush vem tentando avançar nesse plano. Nesse sentido, esclarecer as questões que estão em jogo nesse projeto torna-se uma tarefa fundamental, principalmente para os que se empenham pela construção de um mundo multipolar e mais soberano para os países do sul. Também deve servir para manter o debate político e in-telectual com os partidários de uma integração mais subordinada às políticas de Washington.

O projeto norte-americano da AlcaO primeiro passo para a criação do projeto norte-americano da Alca

foi dado em 27 de junho de 1990, quando o governo de George Bush anunciou oficialmente a “Iniciativa para as Américas”, que previa a formação de uma área de livre comércio no continente. Tal projeto concentrava-se em três áreas fundamentais: comércio, dívida externa e investimento. Na questão comercial, o objetivo era a eliminação das barreiras comerciais entre os países signatários e a adoção de uma legislação que envolvia, entre outros aspectos, a garantia total para a livre circulação de bens, serviços e capitais e a proteção da proprieda-de intelectual. Em relação à dívida externa, a proposta dos EUA era de

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ALCA: negociações, impasses e resistências

um abatimento pequeno da dívida e a garantia de novos empréstimos para os países latino-americanos, desde que esses estados se compro-metessem com os programas de ajustes estruturais ditados pelo FMI e o Bird. E no que se refere aos investimentos, os EUA propuseram a criação de um fundo de investimentos para a região que deveria ser administrado pelo BID e pelo Bird (VIGEVANI e MARIANO, 2003). Dois anos depois do lançamento da “Iniciativa para as Américas”, o governo Bush assinou juntamente com o Canadá e o México, o tratado do Naf-ta, que serviu de modelo para as futuras negociações da Alca.

Em dezembro de 1994, o presidente Bill Clinton conseguiu reunir, na Primeira Cúpula das Américas, em Miami, 33 chefes de Estados das Américas, com exceção de Cuba, para firmar o compromisso da região com a construção de uma área de livre comércio que deveria se estender do “Alasca à Terra do Fogo” – a Alca. Depois de Miami segui-ram-se as reuniões ministeriais de comércio de Denver (1995), Carta-gena (1996), Belo Horizonte (1997), San José (1998), Toronto (1999), Buenos Aires (2001), Quito (2002), Miami (2003), Puebla (2004) e as reuniões de Cúpula das Américas de Santiago (1998), Quebec (2001), Monterrey (2004) e Mar del Plata (2005) nas quais foram se estabele-cendo a estrutura institucional, as diretrizes, o cronograma e as nego-ciações da Alca. Ao longo desse processo foram criados nove Grupos Negociadores, envolvendo os seguintes temas: acesso a mercados; in-vestimentos; serviços; compras governamentais; solução de controvér-sias; agricultura; direitos de propriedade intelectual; subsídios, anti-dumping e direitos compensatórios; e política de concorrência. Esses grupos passaram a receber apoio administrativo de um secretariado e o apoio técnico de um Comitê Tripartite, formado pela OEA, pelo BID e pela Cepal. No Plano de Ação ficou estabelecido que as negociações para a criação da área de livre comércio hemisférica deveriam estar concluídas até 2005.

O projeto de integração previsto pelos EUA não é simplesmente a formação de uma área de livre comércio tradicional com a eliminação dos entraves ao trânsito de bens, mas, mais do que isso, ele prevê também a institucionalização de regras comuns para temas como ser-viços, investimentos, compras governamentais, propriedade intelec-tual, etc. Note-se que a liberalização proposta pelos norte-americanos possui uma série de ressalvas e exceções que preservam os instru-mentos de defesa comercial dos EUA como sua legislação antidumping e sua política de proteção à agricultura. Ao mesmo tempo, as negocia-ções não incluem temas como a unificação monetária e criação de um banco central comum, programas de financiamento para os países e regiões mais atrasadas e a livre circulação de trabalhadores (BATISTA

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JR., 2002). Para tornar mais evidente o tipo de integração econômica que os EUA propõem à região, vale a pena, nesse momento, destacar algumas de suas propostas nessas negociações.

Na questão da propriedade intelectual, a diplomacia norte-ameri-cana, a serviço de suas grandes corporações do setor farmacêutico e de alta tecnologia, já havia conseguido incluir no documento final da Rodada Uruguai do GATT o acordo sobre TRIPs (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights – Aspectos Comerciais dos Direitos da Propriedade Intelectual). Nesse acordo foi ampliada significativamente a proteção às patentes em âmbito mundial. Através de instrumentos jurídicos internacionais garantiram-se às corporações transnacionais a proteção de suas tecnologias privadas, suas invenções, suas posi-ções monopolistas e a extração rentista de royalties. O TRIPs inclu-ído no GATT-OMC limitou significativamente o acesso à tecnologia, ao conhecimento e ao progresso técnico para os países periféricos. Não plenamente satisfeitos com o TRIPs, as pretensões norte-ameri-canas na Alca nessa área vão além dos compromissos assumidos na OMC, ampliando ainda mais a proteção sobre o copyright, os segre-dos comerciais, as patentes, as marcas comerciais e as indicações geográficas. De acordo com Rubens Ricupero (2003, p. 56), dentre os aspectos em que os EUA querem avançar mais do que no atual acor-do do TRIPs, incluem-se: ... a possibilidade de patentear organismos vivos, com implicações negativas e dispendiosas para a agropecuária; e a limitação ao máximo do recurso à “licença compulsória”, no caso de medicamentos. Direito reconhecido por todas as convenções sobre propriedade intelectual e pelo Acordo TRIPs, a licença compulsória é a possibilidade de romper a patente, quando existe abuso do titular, que se recusa a manufaturar o medicamento no país ou cobra por ele preço abusivo. O país-vítima pode também utilizar a “importação paralela”, isto é, em caso de necessidade, importar de fabricante não-autorizado. Foi graças à possibilidade de recorrer a tais mecanismos que o Ministério da Saúde conseguiu no Brasil que os laboratórios reduzissem em até 70% o preço dos remédios do coquetel anti-Aids. Se estivesse em vigor o capítulo proposto pela Alca, o governo brasileiro não teria obtido tal vitória.

Nas propostas sobre investimentos, as pretensões dos EUA no âm-bito da Alca são as mesmas do Acordo Multilateral de Investimen-tos (AMI). Esse acordo, que os norte-americanos e alguns aliados não conseguiram aprovar nas negociações da OCDE devido à resistência da França e dos movimentos sociais, pretendia liberalizar os inves-timentos mundiais, oferecendo inúmeros direitos e nulas obrigações às corporações transnacionais e, ao mesmo tempo, impor duríssimas

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ALCA: negociações, impasses e resistências

restrições aos Estados nacionais para regulamentar minimamente o movimento dos investidores e seus capitais. Estava previsto inclusive o direito dos investidores estrangeiros acionarem a arbitragem inter-nacional contra os Estados nacionais para serem ressarcidos de preju-ízos supostamente ocorridos devido a medidas tomadas pelos poderes públicos. Ao retomar a legislação do fracassado Acordo Multilateral de Investimentos, o projeto da Alca pretendido pelos EUA prevê: a proibi-ção dos governos praticarem políticas que favoreçam os investidores nacionais em detrimento dos investidores externos; a garantia de livre transferência de capitais de um país ao outro a uma taxa de câmbio de mercado, impedindo os governos de controlarem os fluxos de capitais; a impossibilidade dos governos estabelecerem metas ou requisitos de desempenho a serem cumpridos pelos investidores externos; a obriga-ção dos Estados-membros a indenizarem os investidores estrangeiros em situações nas quais as decisões soberanas das autoridades nacio-nais sejam consideradas “equivalentes a uma expropriação” etc.

Nas negociações do setor de serviços, novamente os EUA reto-maram a agenda que tem enfrentado resistências na OMC e demais fóruns econômicos multilaterais, para tentar impô-la aos países da região. Os EUA, que são os maiores exportadores de serviços do pla-neta, pretendem incluir na Alca a liberalização completa de todos os tipos de serviços, tais como financeiros, telecomunicações, previdên-cia, seguros, turismo, indústria editorial, postais, transportes, água, energia, assistência médica, etc. Também estão incluídas na proposta norte-americana todas as garantias previstas aos investidores exter-nos que estão colocadas no capítulo sobre investimentos. Além disso, pretende-se proibir os estados de oferecerem serviços não sujeitos a uma rigorosa lógica econômica, a menos que sejam gratuitos e não compitam com os do setor privado. O processo de negociação do Acor-do Geral Sobre Comércio de Serviços (Gats) criado em 1994 durante a conclusão da Rodada Uruguai do GATT já havia deixado claro que a pretensão dos países centrais era a completa liberalização do setor de serviços e a restrição à atuação dos governos nessa área, porém, a resistência dos países periféricos levou a um acordo que optou pela liberalização gradual do setor. Ficou acordado que a liberalização dos serviços ocorreria mediante “listas positivas”, nas quais os países des-tacavam as áreas que queriam liberalizar, embora o acordo já tivesse garantido a abertura das áreas de serviços financeiros e serviços bási-cos de telecomunicação. Pois bem, na ALCA os EUA retomam a agen-da da liberalização ampla dos serviços, com poucas exceções, como já acontece no Nafta.

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No que se refere às compras governamentais ou contratos públicos de governo, a proposta norte-americana para a Alca é evitar que os go-vernos dêem tratamento preferencial às empresas nacionais devendo oferecer o mesmo tratamento para as empresas fornecedoras de bens e serviços de todos os países pertencentes a área.

Sob esses aspectos, pode-se dizer que o projeto norte-americano da Alca pretende institucionalizar normas que garantam a liberali-zação comercial, financeira e dos investimentos de acordo com os in-teresses de seus capitalistas, impedindo os demais países da região de modificarem suas políticas econômicas nacionais. Nesse sentido, o projeto Alca é a complementação e a consolidação jurídica do processo de reformas liberalizantes promovidas na região nas últimas décadas sob monitoramento de Washington. Em conjunto, a maior parte das políticas, das reformas e das instituições recomendadas pelos EUA significa negar aos países da região a possibilidade de utilizarem ins-trumentos de política econômica que os próprios norte-americanos e os demais países centrais usaram durante seus respectivos processos de desenvolvimento.

Negociações, impasses e resistênciasAs negociações para a constituição da Alca, a despeito das diver-

gências envolvendo alguns países, cumpriram até novembro de 2002 todo o cronograma estabelecido na Quarta Reunião Ministerial de San José em março de 1998, sobretudo no que diz respeito à questão pro-cessual como a montagem da estrutura institucional. A partir da Sé-tima Reunião Ministerial, realizada em Quito, em novembro de 2002, na qual a presidência das negociações foi transferida do Equador para a co-presidência de Brasil e EUA, a Alca entrou na fase de definição das regras de seu funcionamento em que o embate passou a ser em torno das propostas para o acesso ao mercado nas áreas de agricultu-ra, indústria, investimentos, serviços e compras governamentais. Foi nesse momento que a ALCA entrou num ritmo mais lento marcado pela discordância de propostas entre os EUA e o Mercosul, o que leva-ria a um impasse nas futuras negociações de tal forma que a previsão oficial de inaugurar a área de livre comércio até dezembro de 2005 não se cumpriu.

O Brasil, respaldado principalmente pela Argentina no Mercosul, passou a defender aquilo que ficou conhecido como “Alca light”, na qual temas de maior importância seriam discutidos no esquema “4+1” (bloco do Mercosul e os EUA) e os temas sensíveis como propriedade intelectual, serviços, investimentos e compras governamentais deve-

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riam ser tratados na OMC. Ao contrário, a posição norte-americana foi a de defesa da “Alca abrangente” que deveria envolver todos os assun-tos, inclusive os relacionados a investimentos, propriedade intelectual e compras governamentais, porém, assuntos como política antidum-ping e apoio interno aos produtores agrícolas são considerados pelos EUA como temas sistêmicos que devem ser tratados na OMC e não na Alca. Em fevereiro de 2003, novamente Mercosul e EUA entraram em rota de colisão quando os norte-americanos apresentaram suas pro-postas de redução de tarifas em produtos industriais e agrícolas sob a forma de quatro listas diferentes dividindo os 34 países do hemisfério ocidental em Caribe, América Central, Grupo Andino, Mercosul. Em tese, todos os produtos foram incluídos nas quatro listas, mas os itens e os prazos para a liberalização total, isto é, para eliminar a totalidade das tarifas até chegar a zero, variaram de acordo com os interesses de grupos internos norte-americanos. Por exemplo, para os países do Mercosul, os EUA propuseram a supressão total das barreiras para 58% das manufaturas e 50% dos bens agrícolas, não contemplando itens agrícolas de interesse do bloco, principalmente do Brasil.

Uma outra divergência envolvendo brasileiros e norte-americanos aconteceu durante a Quinta Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio, realizada em Cancún em setembro de 2003, quando a diplomacia brasileira liderou um bloco de países (G-21) que inviabilizou a rodada de negociações devido à agenda do encontro con-templar apenas os interesses dos EUA e da União Européia, que recu-savam discutir os subsídios agrícolas oferecidos aos seus produtores agrícolas. Depois de o representante do comércio exterior dos EUA (USTR), Robert Zoellick responsabilizar o Brasil pelo fracasso das ne-gociações em Cancún, os norte-americanos acabaram concordando a contragosto em formular um acordo mais flexível para a ALCA, na Oitava Reunião Ministerial de Comércio em Miami, em novembro de 2003. Na declaração de Miami ficou decidido que os países poderiam assumir níveis de compromissos distintos na Alca prevendo dois ní-veis de negociação. Enquanto no primeiro nível ficaria estabelecido um conjunto comum e equilibrado de direitos e obrigações, aplicáveis a todos os países, no segundo, era facultativo aos países definirem obrigações e benefícios adicionais no âmbito da Alca por meio de ne-gociações plurilaterais.1 Evitando os temas mais polêmicos, que pode-riam ser negociados com o tempo, a declaração de Miami procurava impedir um novo choque entre as posições do Mercosul e as dos EUA

1 Ver Declaração Ministerial de Miami, 18 de novembro de 2003. Em: http//www.ftaa-alca.org.

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na medida em que tornava facultativa a participação dos países em áreas consideradas por eles problemáticas.

É importante destacar que os EUA, o Canadá, o México, o Chile e outros países não se contentaram com o acordo “light” estabelecido em Miami. Dessa forma, as divergências não demoram em reaparecer nas negociações, como ocorreu na Reunião do Comitê de Negociação Comercial, principal órgão técnico da ALCA, em Puebla, fevereiro de 2004. Nas negociações, para se chegar a um formato final para a cons-tituição da Alca, ocorreram novas divergências e a reunião fracassou nos seus propósitos. Novamente as questões ligadas aos subsídios norte-americanos à agricultura, aos temas da propriedade intelectual, políticas de concorrência, antidumping e direitos compensatórios e o debate entre Alca “light” ou abrangente levaram a reunião a um im-passe. Note-se que, nessa reunião, os EUA, Canadá, Chile e México articularam o G14, grupo de países sintonizados com as propostas norte-americanas da Alca.

Um mês depois do fracasso da reunião de Puebla, em 4 de março de 2004, o USTr, em documento enviado ao Congresso dos EUA, dei-xou clara a intenção de insistir nas negociações da Alca abrangente. Como relata o documento:

Algumas delegações que negociam a Alca vêm questionando es-ses princípios e objetivos, propondo que a Alca fique concentrada apenas no acesso a mercados... A Alca deve ser abrangente e incluir um conjunto comum de direitos e obrigações a ser apli-cado para todos os países em todas as áreas que estão sendo negociadas.2

Com a interrupção das negociações da Alca em Puebla devido às divergências com o Mercosul, o governo Bush, valendo-se do Trade Promotion Authority ou fast track passou a privilegiar acordos bilate-rais e plurilaterais com os demais países do continente nos mesmos termos da Alca abrangente. Pode-se dizer que, com essa ofensiva, os EUA pretendem minar a resistência do Mercosul à Alca e, ao mesmo tempo, bloquear avanços de integração regional latino-americana fora da sua liderança. Nos últimos dois anos os EUA fecharam o acordo do Cafta-DR com a América Central e a República Dominicana, inicia-ram as negociações de um acordo bilateral com o Panamá, tentaram iniciar uma discussão com o Paraguai e o Uruguai e, de certa forma, conseguiram desestruturar a Comunidade Andina de Nações com as

2 Fragmento publicado no jornal Folha de S.Paulo em 5 de março de 2004.

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negociações do Tratado de Livre Comércio Andino com a Colômbia, o Equador e o Peru (a Bolívia chegou a participar como observadora).

Desses países andinos, Peru e Colômbia já assinaram o TLC com os EUA, faltando apenas a ratificação dos Congressos nacionais, en-quanto que as negociações com o Equador estão suspensas e a Bolívia passou a se opor ao TLC Andino.

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 8 de janeiro de 2006, o subsecretário de Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado nor-te-americano, Thomas Shannon fez uma avaliação dessa estratégia:

Enquanto a Alca vem nesse caminho mais longo, temos pres-sionado fortemente essa agenda que resultou em acordos com o Chile, a Cafta-DR (Área de Livre Comércio da América Cen-tral e República Dominicana), o Peru e, esperamos, num futuro próximo, com Equador, países andinos, Colômbia e Panamá. Quando se combinam todos os países com os quais já firmamos acordo mais os que estamos negociando seriamente, isso cobre cerca de dois terços do PIB do hemisfério, o que é significativo.

Vale lembrar mais uma vez que, nesses acordos, os EUA utilizam a sedução da oferta de acesso a seu mercado, a fragilidade econômi-ca e a dependência dos demais países para impor somente as cláusu-las de seu próprio interesse. Também cabe reafirmar que a estratégia de acordos bilaterais e plurilaterais adotada pelos EUA não significa que esse país tenha desistido da Alca. Tanto que na Quarta Reunião de Cúpula das Américas, realizada em novembro de 2005 em Mar del Plata, os EUA queriam incluir no documento final o compromisso dos demais países para retomar as discussões da Alca a partir de abril de 2006. O Mercosul e a Venezuela se opuseram à inclusão de qualquer menção que implicasse prazos para negociar a Alca. Dian-te do impasse para retomar as negociações, a Colômbia chegou a cogitar uma proposta, que foi logo apoiada pelo México, de criar a Alca para os 29 países que não se opõem ao acordo. Essas contra-dições também demonstram a divisão dos países latino-americanos em relação ao projeto Alca. Deve-se notar ainda que, embora muitos governos estejam negociando com os EUA, isso não implica que em suas sociedades não existam resistências, como vem ocorrendo em quase toda a região andina.

Quando se observam as razões que levaram a um impasse na Alca, torna-se necessário recuar no tempo e refletir sobre a seguinte questão. A Alca foi lançada durante um período de euforia das elites dominantes e governantes latino-americanas com as reformas disseminadas pelos

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EUA, acreditando que liberalizando, privatizando e estabilizando esses países teriam uma melhor inserção num mundo em que se anuncia-va como “um novo século americano” com uma nova ordem mundial pós-guerra fria, baseada nos princípios e valores norte-americanos da democracia de mercado e na força convergente da globalização. Ocorre que as crises econômicas e os resultados extremamente desiguais da globalização foram deixando mais claro para os movimentos sociais e alguns governantes da região os verdadeiros significados da adesão incondicional às diretrizes dos EUA. Mais do que isso, nessas nego-ciações da Alca ficou evidente a histórica visão Pan-americanista dos EUA, na qual a soberania dos países latino-americanos é duramente violentada. Baseado na idéia de unidade das Américas e buscando receptividade aos seus projetos, os EUA mais uma vez partiram do pressuposto da existência de uma comunidade e unidade de objetivos e interesses econômicos, políticos, culturais e militares de todos os países do hemisfério ocidental. Porém, paradoxalmente, divulgando os princípios de igualdade, cooperação, solidariedade e parceria, os EUA foram deixando claro durante as negociações que o acordo deveria ocorrer fundamentalmente em conformidade com os seus interesses geoeconômicos, o que para a América Latina significaria restringir ain-da mais sua capacidade de traçar políticas autônomas de desenvolvi-mento, como, por exemplo, praticar políticas industriais ativas.

Tudo isso acabou gerando resistências de determinados governos e movimentos sociais à Alca, que, em alguns casos, passaram a exi-gir uma reformulação das propostas dos EUA e, em outros, iniciaram campanhas pelo fim das negociações do acordo. Daí decorrem algumas iniciativas tais como a tentativa de fortalecer o Mercosul; a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa) com a aproximação dos países sul-americanos com alguns países da Comunidade Andina; a entrada da Venezuela no Mercosul; a Campanha Continental contra a Alca, envolvendo vários movimento sociais de diversos países, inclusive dos EUA; e o projeto da Alternativa Bolivariana das Américas (Alba), lan-çado por Hugo Chávez da Venezuela e Fidel Castro de Cuba em dezem-bro de 2004, que propõe uma integração regional alternativa à Alca.

Ao mesmo tempo em que essas iniciativas têm procurado demons-trar que a Alca não é inevitável, não é a melhor opção para a América Latina e que existe vontade e disposição para uma outra integração, elas padecem ainda das dificuldades que estiveram presentes em to-das as tentativas de integração regional latino-americana, que, como indica o processo histórico, mantiveram-se aprisionadas a modelos, a instrumentos e as formas de mobilização que não conseguiram colo-car o desenvolvimento econômico a serviço dos povos da região.

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ReferênciasBATISTA JR, P. N. A Alca e o Brasil. Estudos Avançados, Universidade de São Paulo. Instituto de Estudos Avançados. São Paulo: IEA. v. 17. n. 48. p. 267-293, 2002.

CHANG, HA-J. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

DUPAS, G. A América Latina e o novo jogo global. In: DUPAS, G. (Coord.) América Latina no início do século XXI: perspectivas econômicas, sociais e políticas. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer; São Paulo: Editora Unesp, 2005.

RICUPERO, R. A Alca. São Paulo: Publifolha, 2003.

SHIVA, V. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

VIGEVANI, T., MARIANO, M. P. Alca: O gigante e os anões. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.

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A governabilidade democrática como espaço idôneo para conciliar as

políticas econômicas com as políticas sociais

Amália D. García Medina

Os países da América Latina estão insatisfeitos com os resulta-dos das políticas econômicas aplicadas nos últimos anos. Sob múltiplos âmbitos tem se questionado as conseqüências do

programa para o desenvolvimento que, em 1990, o economista John Williamson denominou o “Consenso de Washington”. O mesmo Willia-mson1 não duvida em qualificar como “decepcionantes” os resultados destes últimos anos, referindo-se aos resultados das reformas para o desenvolvimento – predominantemente econômicas – promovidas e aplicadas na América Latina desde os finais dos anos oitenta.

O fracasso do Consenso de Washington Colocadas em marcha as chamadas “reformas de primeira geração”

– como o denominam os economistas – deveriam ser o remédio para que os países em desenvolvimento pudessem enfrentar seus compromissos de pagamento da dívida externa – no marco da reestruturação da mes-ma com os organismos internacionais – e evitar, conjunturalmente, a potencial instabilidade e quebra do sistema financeiro internacional. Em sua recapitulação pública do ano 2003 John Williamson resumiu em dez proposições as medidas de política econômica que estavam sen-do aplicadas nos países latinos americanos e que acabaram configu-rando seu já famoso “Consenso de Washington”. Ao continuar, enume-rou dez reformas: “Disciplina fiscal; reordenamento das prioridades do gasto público; reforma tributária; liberalização das taxas de juros; tipo de câmbio competitivo; liberalização do comércio; liberação dos investi-mentos estrangeiros diretos; privatização; desregulamentação e direitos

1 1 John Williamson. No hay consenso em el significado. Reseña sobre el Consenso de Washington y sugerencias sobre los pasos a dar. Finanzas & Desarrollo, p. 12; setiembre de 2003.

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A governabilidade democrática como espaço idôneo para conciliar as políticas econômicas com as políticas sociais

de propriedade”.2 Ao aplicar estas reformas o desemprego aumentou em muitos países, a pobreza se estendeu e a ênfase na abertura fez com que os países se tornassem vulneráveis aos efeitos mais negativos da globalização; os economistas questionaram o ritmo e a seqüência das reformas. 3 Nos desenlaces deste período se destaca a unanimidade em uma conclusão que resume o atual panorama desolador da América Latina: nenhum país pode reduzir a pobreza ou a desigualdade, nem melhorar a qualidade e o nível de vida da população.4

As crises políticas, sociais e financeiras que estalaram nos distin-tos países latinos americanos durante a segunda parte da década de 1990, o aumento no número de pobres e o colapso argentino no fim de 2001 (país considerado pelos atores de Washington como exemplo a seguir) foram fatos que ajudaram a confirmar a sensação de fracasso que deixou a implementação destas políticas na maioria dos países da região. O mesmo Williamson, no documento já aludido, – se bem que ainda defende com certo dogmatismo, o programa do Consenso de Washington – não deixa de reconhecer que, no que se refere à renda, “América Latina ... possui as distribuições mais desiguais do mundo” e, em sua quarta recomendação advoga para que “os pobres tenham acesso aos meios que lhes permitam sair da pobreza”.5

No entanto, já desde meados da década de 90, na literatura so-bre a economia do desenvolvimento, se reconhecia a importância das instituições para permitir que uma economia funcione com eficácia e equidade. “As reformas de segunda geração desenvolvidas por Moisés Naím (1995), são as que por meio do fortalecimento das instituições do Estado, tem propiciado um crescimento econômico maior e uma distribuição mais eqüitativa deste crescimento entre a população. De acordo com esta visão o fortalecimento institucional é a base para so-lucionar os problemas das políticas públicas e o desenvolvimento”. 6

Também, neste conjunto de reformas se ressalta que um dos obje-tivos é conseguir que o crescimento econômico beneficie a todos. Nas chamadas reformas de primeira geração nem sequer se colocavam a redução da desigualdade e da pobreza como objetivos explícitos, já que se supunha que o crescimento econômico seria suficiente para diminuí-las. A discussão chegou a um ponto em que extrapolou o âm-bito dos especialistas para irromper no debate político: trata-se de conseguir um enfoque de longo prazo para por em prática as reformas

2 Ídem, p. 10-11.3 Gemma Cairó u Céspedes. FMI, reforma y desarrollo. Publicado em COSTAS, A. y

CAIRO, G. (2003) Cooperación y Desarrollo. Hacia una Agenda compreensiva para el desarrollo. Pirámide, Madrid.

4 Jorge G. Castañeda. Es la política. Diario Reforma, 03 de febrero de 2003.5 John Williamsonm. Ibíd., p. 13.6 José Luis Hernández Nuñez. Boletín económico, p. 21, BCR. El Salvador, 2004.

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sociais postergadas. É um tema pertinente para o espaço da política, pois, – como o assinalam os especialistas –, para a criação e fortaleci-mento de instituições, não existem teorias desenvolvidas, testadas e estabelecidas, portanto é um campo novo e aberto à criatividade.

Na atualidade, com distintas posturas e interpretações, o debate das reformas está presente em quase toda a região. A urgência do cres-cimento é assumida, e vários governos se interrogam como fazê-lo com maior equidade levando em conta que os que sustentam o Consenso de Washington, finalmente, acabaram por admitir: as reformas econô-mica tem implicado altos custos sociais que ameaçam a governabilida-de democrática. Neste contexto, entendemos a governabilidade como a capacidade dos governos para exercer o poder político democrático de forma continuada, em condições de legitimidade, especialmente em circunstâncias de crise.

A governabilidade democráticaA recuperação democrática dos anos noventa na América Latina é

muito ilustrativa.

Na democracia adquirem visibilidade e liberdade de expressão as demandas cidadãs que, como sistematicamente mostram todas as pesquisas de opinião, priorizam os problemas de pobreza, de emprego, educação, saúde e segurança cidadã. Não existe pro-grama de candidato que dispute democraticamente os votos que não inclua propostas para tais demandas. Esse é o espaço da legitimidade das políticas destinadas ao desenvolvimento social. Da mesma maneira, a frustração destas demandas, quer dizer, políticas destinadas a dar soluções às demandas sociais da cida-dania que sejam insuficientes, débeis, inadequadas ou ineficien-tes, põem em questão, por sua vez, a governabilidade democrática e geram crises institucionais. E, uma vez eleitos os governantes, a cidadania se converte em avalista de suas propostas, se as ins-tituições democráticas funcionam e se, além das desigualdades econômicas dos cidadãos ou dos pesos corporativos de interes-ses em jogo, prima a representação de maiorias e minorias, com parlamentos efetivos que permitam dirimir entre estes interesses particulares em função dos mais coletivos. Em suma, a capaci-dade dos sistemas democráticos para processar as demandas e dar espaço aos diversos interesses é o que faz a diferença na qua-lidade das políticas econômicas e sociais a que pode obrigar, em maior ou menor medida, a sua necessária articulação. Impostos, legislações trabalhistas, reformas sociais, políticas de igualdade de gênero e territoriais, entre outras, devem passar pela prova do

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A governabilidade democrática como espaço idôneo para conciliar as políticas econômicas com as políticas sociais

escrutínio público e ser parte da deliberação política. Mas, igual-mente importante é entender que para articular adequadamente políticas econômicas e sociais orientadas a políticas ativas de inclusão e maior equidade social, se requer um aprofundamen-to da democracia que permita atribuir um maior peso ao valor da cidadania que ao valor econômico, bem como à estabilidade e legitimidade de suas instituições políticas que permitam que tal cidadania exerça efetivamente seus direitos. Instituições que funcionem além dos processos eleitorais, como são os parlamen-tos e os partidos; com uma sociedade civil forte e constituída; com transparência informativa, liberdade de expressão e plura-lismo nos media; e com um sistema judicial independente, probo e expedito capaz de processar as muitas demandas sociais que crescentemente canalizam a população para a justiça.7

A crescente revalorização do local redefine o papel exercido pelas instituições econômicas, políticas e sociais nos governos demo-cráticos locais para dar resposta ao incremento das demandas sociais. As instituições se constituem nas instâncias mediado-ras que vinculam as políticas macroeconômicas com os agentes econômicos e sociais bo âmbito do desenvolvimento local que se relaciona com a esfera pública, particularmente na dotação dos bens e serviços públicos requeridos. A participação dos diferen-tes atores políticos, sociais e os agentes econômicos mediante processos de distribuição de poder para solucionar os conflitos de interesses, incide na formação dos arranjos institucionais.8

A América Latina tem patrocinado o aprendizado recente nas re-lações entre economia, sociedade e democracia: hoje é visível que não existe uma relação automática e unidirecional entre crescimento eco-nômico e geração de emprego e tampouco existe uma relação mecânica e vertical entre crescimento econômico e superação da pobreza e que crescimento econômico não é garantia de maior desenvolvimento, en-tendido este desde uma perspectiva mais ampla e multidimensional; por fim, temos aprendido que a democracia pode ser um grande espa-ço para combinar as políticas econômicas com as políticas sociais.

7 Clarisa Ardí. Algunas reflexiones sobre la relación entre políticas económicas y so-ciales. Colección Ideas. Año 5, n. 39., enero 2004. Presentación preparada para el encuentro “La Articulación de las Políticas Económicas y las Políticas Sociales: de-safío para el crecimiento sostenible e incluyente”, organizado por el Instituto Intera-mericano para el Desarrollo Social (INDES), del Banco Interamericano de Desarrollo. BID. 1 y 2 de Diciembre 2003. Washington D.C.

8 José Guadalupe Vargas Hernández. Implicaciones de los procesos de globalización económica en las reformas de las economías locales. Centro Universitario del Sur. Universidad de Guadalajara. Prol. Colón SN. Cd. Guzmán, Jalisco, 49000, México.

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A estratégia do desenvolvimento humanoA inexistência de automatismos, crescimento econômico-desen-volvimento humano tem sido bem explicitada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) quando afirma que, apesar do crescimento econômico ampliar a base material para a satisfação das necessidades básicas, o grau em que estas são satisfeitas depende da distribuição dos recursos e o aprovei-tamento e a distribuição das oportunidades. A seqüência desejá-vel de política econômica, para que o vínculo crescimento-desen-volvimento seja virtuoso, é priorizar primeiro o desenvolvimento humano – fundamentalmente educação primária e melhoria do saneamento básico – para posteriormente investir em cresci-mento econômico. Neste caso tratar-se-ia de ampliar a noção de desenvolvimento à esfera política – o papel da democracia e as instituições –, no âmbito social – a preocupação pela equidade e o nível de bem estar das pessoas – e a dimensão ecológica – a incorporação da sustentabilidade ambiental; enfatizando a ne-cessidade de incluir no projeto a experiência e o conhecimento dos agentes locais, para assim lograr uma participação mais con-sensuada sobre os objetivos e os instrumentos das políticas.9

Esta é, justamente, a visão que temos escolhido para impulsionar o desenvolvimento no Estado de Zacatecas, no México.

Nossa estratégia coincide, parcialmente, com a perspectiva explí-cita da Declaração de Nuevo Leon, de 2002. No preâmbulo daquele documento destacam-se os seguintes propósitos dos signatários:

(...) afirmamos que o bem-estar de nossos povos requer sucesso em três objetivos estreitamente vinculados e interdependentes: crescimento econômico com equidade para reduzir a pobreza, de-senvolvimento social e governabilidade democrática”.10

Trata-se do enriquecimento da vida e das liberdades das pessoas, quer dizer, o desenvolvimento humano. Só uma visão compartilhada do Estado, a economia e a sociedade que se deseja alcançar pode per-mitir saídas progressistas para todos os homens e mulheres.

9 Gemma Cairó i Céspedes. FMI, reforma y desarrollo. P. 17-21. Publicado em COS-TAS, A. y CAIRO, G. (2003) Cooperación y desarrollo. Hacia una agendacompreensi-va para el desarrollo. Pirámide, Madrid.

10 Declaración de Nuevo León”. Monterrey, 2002.

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A governabilidade democrática como espaço idôneo para conciliar as políticas econômicas com as políticas sociais

Entretanto, há, pelo menos, duas críticas que se formulam contra o conceito geral do desenvolvimento humano sustentável: uma postura que desde uma “perspectiva crítica, se entende que, sem superar as limitações da forma de desenvolvimento capitalista, sem considerar a estrutura econômica onde este desenvolvimento deve realizar-se, é im-possível “construir uma síntese entre globalidade e humanidade” já que é impossível que esta ocorra sob “condições capitalistas de produção, distribuição e consumo” e a segunda sublinha “a semelhança dos para-digmas do desenvolvimento humano com o do Consenso de Washington e os identifica como dois paradigmas aparentemente alternativos”.11

Sobre a primeira crítica desejo insistir que, justamente, trata-se de encontrar um caminho alternativo e divergente – que beneficie as pessoas – dentro das condições definidas pelo capitalismo; a questão é que não existe outro cenário.

Sobre a segunda crítica é quase ocioso estabelecer algo que, talvez, psicologicamente se assume: não existe a originalidade radical; insis-to: escolhemos a democracia – a governabilidade democrática – como o espaço idôneo para conciliar a política econômica com as políticas sociais. Esse é nosso programa.

Se me permitem, terminarei com duas citações que me parece, descrevem com perfeição a filosofia que nos anima. Diz Aung San Suu Kyi – Prêmio Nobel da Paz, 1991 – que:

(...) o respeito à dignidade humana implica um compromisso para criar condições nas quais os indivíduos possam desenvolver um sentido de autoestima e de segurança. A verdadeira digni-dade provém da capacidade de colocar-se à altura dos desafios inerentes à condição humana.12

Por desgraça, durante o século XX a dignidade humana foi asso-lada sem misericórdia; por isso quero concluir com quatro versos do poema Fim de século13 do poeta mexicano José Emilio Pacheco:

Não quero nada para mim.Só anseioo possível impossível:um mundo sem vítimas.

11 Gemma Cairó i Céspedes. FMI, reformas y desarrollo. Hacia una agenda compreensi-va para el desarrollo. Pirámide, Madrid.

12 Aung San Suu Kyi. Premio Nóbel da Paz 199113 José Emilio Pacheco. Fin de siglo. P. 90. Lecturas mexicanas. Fondo de cultura eco-

nómica. México, 1984.

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A crise no Oriente Médio

O golpe de Gaza: a islamização está chegando1

Walid Salem

Em resposta aos recentes eventos em Gaza, o dr. Sa’eb Erekat, chefe do Departamento de Negociações da Organização para a Libertação da Palestina, disse, no dia 14 de junho, que “este

é o pior fato assistido pela Palestina, desde a derrota na guerra de 1967”. Do outro lado, Sami Abu Zuhri, porta-voz do Hamas, em Gaza, declarou candidamente numa emissão da Rádio Hamas, no dia se-guinte, que havia ocorrido a segunda libertação da Faixa de Gaza: “A primeira libertação foi das hordas dos colonos israelenses, e esta segunda é das hordas dos colaboradores de Israel”.

Outros líderes do Hamas costumavam chamar aqueles que fo-ram derrotados como os “Lahdis” (referindo-se a Antoin Lahd, chefe do antigo Exército do Sul do Líbano, que era ligado a Israel), e até diferenciavam entre esses “Lahdis” e a Fatah, dizendo que as lutas se deram apenas contra os “Lahdis”, e de nenhuma maneira com a Fatah.

Erekat e todas as facções da OLP expressaram reações muito pes-simistas sobre os eventos em Gaza, enquanto o Hamas festejou e até organizou marchas e encontros públicos para celebrar a segunda libertação de Gaza...

A OLP e a era do programa nacional palestino estão em declínio, enquanto a nova era da islamização está em ascensão. Esta nova era começou com a vitória do Hamas nas eleições de 2006, e ganhou maior impulso com o controle unilateral do Hamas sobre Gaza desde o dia 15 de junho último.

1 O original deste artigo (inglês) foi publicado em 20/06/2007 pelo MEW (Mid EastWeb for Coexistence) www.mideastweb.org, e traduzido por Moisés Storch para o Paz Agora|BR (www.pazagora.org) e a Revista Espaço Acadêmico.

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O golpe de Gaza: a islamização está chegando

A questão agora é se isso será ou não um primeiro passo para a tomada da Cisjordânia (ou possivelmente do Egito) pelo Hamas ou a Irmandade Muçulmana. Os fatos futuros responderão.

Islamização versus nacionalismoNa era do nacionalismo palestino, a agenda nacional palestina

era a prioridade, e o trabalho em função dessa agenda para chegar a um Estado Palestino tomava praticamente todos os esforços da OLP e suas facções.

Hoje isso mudou. A questão nacional palestina é apenas um pon-to da agenda do Hamas. Como parte dos grupos da Irmandade Mu-çulmana, seu principal tema é a criação de um sistema de califado islâmico. Assim o que deverá se seguir à sua tomada de Gaza não é necessariamente uma tomada da Cisjordânia, se a situação lá não for tão favorável. Poderá, por exemplo, ser o Egito, se este já esti-ver mais maduro que a Cisjordânia para a islamização. Os grupos da Irmandade Muçulmana, incluindo o Hamas, irão trabalhar pela islamização, onde ela for primeiramente possível, sem restringir-se a uma certa agenda nacional, pois acreditam que sua agenda trans-cende o nacionalismo.

É por isso que o Hamas não está assustado com questões como a separação de Gaza da Cisjordânia e o impedimento da criação de um Estado Palestino, como as facções da OLP o acusam de estar fazendo. Simplesmente esses temas não são parte de sua agenda principal. Entretanto, o Hamas como o ramo da Irmandade Muçul-mana em Gaza, e também na Cisjordânia, também irá trabalhar para tomar a Cisjordânia após Gaza para evitar separar uma da outra.

Isso posto, deve-se acrescentar que a Irmandade Muçulmana foi fundada em 1928 para recriar o sistema de califado islâmico. Des-de aquele tempo, foram incapazes de consegui-lo em qualquer dos países islâmicos. Portanto, eles não hesitarão em fazê-lo em Gaza, estabelecendo lá um semi-califado na forma de um emirado islâmico. A destruição das casas de Yasser Arafat (e de Abu Mazen), em Gaza, como maiores símbolos do nacionalismo palestino, são sinais nesta direção, e o que virá será bem maior.

O processo de islamizaçãoComo irá se realizar o processo de islamização da Faixa de

Gaza?

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Será importante acompanhá-lo, pois será a primeira vez que um gru-po da Irmandade Muçulmana estará no poder, e será um ensaio para o que eles farão em outros países quando os tomarem futuramente.

Ainda não existe uma resposta completa para esta questão, mas algumas declarações feitas por alguns líderes do Hamas, em Gaza, estão sinalizando sobre a disposição dessa liderança em impor leis islâmicas em Gaza. No dia 15/6, o sheikh Ismail Hannieh pediu em discurso às Brigadas Al-Qassam para tratar seus reféns das forças de segurança derrotadas da AP de acordo com as normas de “tole-rância islâmica”, que obviamente toleram aqueles que não mataram membros do Hamas antes, mas que também ditam que devem ser executados aqueles que mataram ou atacaram membros do Hamas.

Em outro exemplo, o sheikh Nizar Rayyan, um líder do Hamas, disse que o que aconteceu em Gaza foi um conflito entre o Islã e a apostasia, que estava concluindo com o fechamento da era do secu-larismo e ateísmo naquela faixa. Acrescentou que irá transformar o quartel-general das forças de segurança da AP em Gaza numa mes-quita, e que faria uma pregação especial na Muntada (o complexo presidencial de Abbas, em Gaza).

Se adicionarmos a essas declarações as crescentes atividades de vários grupos salafitas em Gaza, apoiados por algumas alas do Ha-mas, e que agem contra os Internet Cafés e mulheres que não co-brem suas cabeças com véus e contra cristãos, então a tendência para se impor o Islã sobre todos os gazanos, incluindo aqueles que não crêem nele, ficará mais clara. O que se dará depois é uma medi-da do tipo de islamização que será implementada com base nas dife-renças de posições de diversas alas do Hamas. Mas este é um mero detalhe, que não influenciará a direção principal que é no rumo da islamização.

A resposta direta a esse processo de islamização não foi apenas que algumas pessoas do Fatah estejam tentando sair de Gaza, mas também que os seculares, os intelectuais, os empresários do setor privado, os líderes de ONGs e a maior parte dos democratas progres-sistas estão saindo por causa das ameaças às suas vidas. Lamenta-velmente, por outro lado, isso irá acelerar o processo de imposição das normas do Hamas, em Gaza.

A vida do povo em GazaAlém do processo de islamização que será acelerado em Gaza, a

outra questão é: Como irá o povo viver em Gaza de agora em diante?

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O golpe de Gaza: a islamização está chegando

a. Segurança: A ironia aqui é que as pessoas irão agora se sentir mais seguras nas ruas com o controle unilateral do Hamas sobre Gaza, mas ao mesmo tempo a violência irá continuar, incluindo as-sassinatos extra-judiciais por vingança e contra-vingança, e execu-ções daqueles que forem considerados como apóstatas ou “colabora-dores”. A palavra “colaborador” na linguagem do Hamas não se refere apenas aos que passam informações a Israel. Para eles, existem ou-tros tipos de colaboradores, como colaboradores políticos, culturais, econômicos e o colaborador por desvio de comportamento, como de-talhado num trabalho escrito pelo dr. Saleh Abdel, em 1988.

Outra questão que influenciará a segurança será a contradição entre as forças de segurança do Hamas e aquelas que receberão or-dens de Ramalá. Esta é uma contradição futura porque no curto prazo o Hamas terá total autoridade sobre Gaza.

b. O mapa político interno de Gaza mudará. O próprio Hamas assistirá a uma crescente influência de suas alas extremistas e ide-ológicas que desejam islamizar a sociedade, enquanto a Fatah, em Gaza, já perdeu (ao menos temporariamente) sua ala disposta a es-magar o Hamas (esta tendência foi derrotada nos eventos da semana passada). Duas outras facções da Fatah crescerão agora em Gaza. Uma é liderada por Ahmad Hilles, ex-secretário-geral da Fatah, em Gaza, que evitou que seus apoiadores combatessem o Hamas, apoia-do por Ibrahim Abu Naja. Eles tentarão chegar a um compromisso com o Hamas sobre assuntos da vida diária, levando em conside-ração o novo contexto. A outra tendência na Fatah irá se adaptar completamente à nova estrutura de poder em Gaza, tentando encon-trar soluções para problemas pessoais e individuais dentro da nova estrutura de poder.

A nova oposição ao Hamas em Gaza será agora a Jihad Islâmi-ca, com sua agenda nacional pela contínua resistência à ocupação israelense, sem respeito ao cessar-fogo que o Hamas propôs várias vezes. Porém mais perigosas são as novas organizações do tipo da Al-Qa’eda, como Suyuf Al-Alhaq (Espadas dos Justos), Jaish Al-Islam (Exército do Islã) e Kata’eb Al-Jihad Al-Muqaddas (Brigadas da Jihad Santa), as quais também são apoiadas pelas alas mais extremistas do Hamas.

O Hamas, por si, será dividido entre aqueles que são mais ideo-lógicos (Mohamad Zahar e Nizar Rayan) e os que são mais políticos (como Ghazi Hamad, porta-voz do governo, que silenciou totalmente durante as recentes semanas de ataques). Hanieh está liderando as-sumindo a posição intermediária entre essas duas correntes, porque

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precisa de ambas. Ele precisa da posição ideológica para islamizar a sociedade, e também da política para poder falar com o mundo mais amplo.

Finalmente, a ala da Fatah que foi derrotada deve continuar suas tentativas de reagir, mas isto será refletido em incidentes menores, aqui e ali, após terem perdido suas bases e suas armas para o Hamas.

c. Economia e sustento: na ausência de uma economia real em Gaza após a eleição do Hamas em janeiro de 2006, e as sanções in-ternacionais que se seguiram, o contrabando tornou-se a economia e a forma de muitos garantirem sua sobrevivência ali. Agora, com o fechamento de todas as passagens de fronteiras com Gaza após a to-mada do Hamas, o contrabando aumentará, incluindo armas e todos os bens, a não ser que o lado egípcio seja autorizado por Israel (con-tradizendo o acordo de Camp David) a alocar massivamente forças no lado egípcio para impedir esse contrabando.

Por outro lado, os empregados da AP em Gaza continuarão rece-bendo seus salários. Ou do novo governo de emergência de Salam Fayyad (o novo primeiro-ministro) composto no dia 17 de junho, ou (caso seja nomeado por Hanieh após a decisão de Abu Mazen de demiti-lo de sua posição, com a qual não concorda) do Hamas, que continuará a receber fundos dos ramos da Irmandade Muçulmana em todos os países islâmicos, e também do Irã, e provavelmente indi-retamente de alguns países árabes como provavelmente o Qatar.

Contudo, os problemas mais sérios serão aqueles relacionados à subsistência diária da população, e serão exacerbados principal-mente se Israel continuar fechando as passagens de fronteiras, o que significaria não apenas desconectar completamente Gaza da Cisjor-dânia, mas também impedir que a assistência humanitária das or-ganizações da ONU e outras cheguem ao povo necessitado de Gaza. Mais ainda, se Israel impedir a importação de bens para Gaza por intermédio dos portos israelenses.

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A paz após a tomada de Gaza pelo Hamas

A paz após a tomada de Gaza pelo Hamas1

Galia Golan

Não é muito difícil enxergar como chegamos onde estamos hoje com respeito aos palestinos. Sucessivos governos israelenses sistematicamente destruíram ou enfraqueceram lideranças pa-

lestinas moderadas. Desde a destruição da Frente Nacional Palestina (os primeiros promotores nos territórios da solução de Dois Estados) em meados dos anos 70, até a total ausência de quaisquer medidas que pudessem ter fortalecido Abu Mazen (Mahmoud Abbas) como pri-meiro-ministro ou presidente aos olhos do seu povo, e incluindo a recente prisão dos poucos líderes do Hamas dispostos a falar com Israel.

Acrescente-se a isto o exitoso esforço do premier Ariel Sharon em enfraquecer e dispersar a Autoridade Palestina, assim como a política não-declarada de Israel para separar Gaza da Cisjordânia, e chegamos à situação que hoje enfrentamos.

A Fatah obviamente tem também sua parte de responsabilidade pela situação, por causa de suas próprias divisões internas, corrup-ção e indecisões. Não esqueçamos, porém, do assunto mais crítico subjacente: o fato de Israel não ter acabado a ocupação que, por todos esses 40 anos, vem aumentando o sofrimento, a pobreza, a frustração, a perda de terras e vidas e a desesperança das populações pela qual o Hamas e a Fatah competem.

A questão é: podem esses (e muitos mais) erros do passado pro-porcionar algumas dicas para que possamos proceder melhor no fu-turo? Com um “governo” dissolvido oficialmente pelo presidente da Autoridade Palestina, mas ainda reinando sobre Gaza, um novo gover-no de emergência nomeado por Abu Mazen, um Conselho Legislativo dominado pelo Hamas - mas possivelmente também dissolvido sob regulamentos de emergência (se existirem) -, uma força de segurança em Gaza e uma outra aparentemente mantendo sua supremacia na

1 Publicado na www.bitterlemons.org em 12/06/2007 a traduzido por Moisés Storch para o Paz Agora|BR (www.pazagora.org) e a Revista Espaço Acadêmico.

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Cisjordânia, e as opiniões políticas visivelmente divididas mesmo den-tro do Hamas e da Fatah - é difícil ter respostas precisas.

Mas, teoricamente ao menos, existe uma série de opções para Israel (e para os EUA e a comunidade internacional). Entre elas estão:

a. introdução de uma força internacional em Gaza (alguns adi-cionariam também na Cisjordânia - algo que ofereceria estabilidade para todos os territórios e se daria concomitantemente com a reti-rada israelense para linhas temporárias);

b. relacionamento exclusivo com Abu Mazen, e seu fortaleci-mento, acompanhado do total isolamento do Hamas com boicote e pressão sobre Gaza;

c. apoio a esforços para reconstrução do governo de união na-cional, incluindo o levantamento do boicote ao Hamas, sujeito à demonstração do seu controle sobre as várias milícias islâmicas em Gaza e concomitante com o fortalecimento de Abu Mazen; e

d. abertura de negociações para um acordo abrangente por meio da intermediação da Liga Árabe.

Intervenção internacional? A primeira opção, de uma força internacional, aparece como a

mais atraente, aliviando tanto Israel quanto os palestinos da res-ponsabilidade pela população palestina. Se isso incluísse a Cisjor-dânia, significaria o fim da ocupação. Israel, claro, jamais mostrou qualquer interesse nesse tipo de arranjo, mas poderia levar a uma saída também para a Cisjordânia.

A força internacional foi uma alternativa aberta por Israel como opção para Gaza, agora que o Hamas detém o controle da Faixa. Mas exatamente por isso, ela também não funcionaria: o Hamas não concordaria com tal limitação ao seu poder, e nenhum órgão internacional estaria disposto a assumir tal tarefa sob essas condi-ções. Seria razoável que os egípcios concordariam com o fortaleci-mento internacional dos seus contingentes na fronteira (travessia de Rafah, etc.), mas sem um acordo com o Hamas ou outro órgão com controle sobre Gaza, a comunidade internacional possivelmen-te temeria arriscar uma presença física.

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A paz após a tomada de Gaza pelo Hamas

Isolar o Hamas? A opção já adotada por Israel e os Estados Unidos (que possivel-

mente será logo acompanhada pelo resto do Quarteto) é fortalecer Abu Mazen e isolar Haniyeh. A idéia é fornecer os meios (principalmente financeiros, mas possivelmente também materiais) para que a Fatah demonstre seu valor para a população palestina em comparação com o Hamas. Isto seria feito pelo levantamento dos bloqueios sobre a Au-toridade Palestina e a liberação de fundos palestinos retidos, assim permitindo o pagamento desesperadamente necessário para os fun-cionários públicos (embora não seja claro se isso incluiria os servido-res em Gaza).

Mas para ganhar a simpatia da população, mais medidas seriam necessárias. Fala-se de abrir alguns checkpoints e aliviar um pouco a ocupação para os palestinos da Cisjordânia. Mas a medida de “cons-trução de confiança” mais eficaz para valorizar a Fatah perante a po-pulação seria uma ampla soltura de prisioneiros (obviamente excluin-do prisioneiros do Hamas). Tal medida poderia demonstrar que Abu Mazen pode “trazer resultados” - mitigando, talvez, as acusações de “colaboração” de Fatah com Israel (e os EUA).

Um grande risco nesta política, porém, é o reconhecimento e pos-sível institucionalização da separação da Cisjordânia de Gaza, ou seja a idéia de Três Estados que na verdade iria sabotar a criação de um Estado Palestino e a solução do conflito com Israel.

O jogo seria que Abu Mazen deveria encontrar um jeito de trazer benefícios para a população de Gaza (salários para servidores civis, por exemplo) sem que isto fosse creditado ao Hamas ou facilitasse o domínio do Hamas. A Fatah precisa contar com a incapacidade do Hamas para governar (como fez após as eleições de 2006), mas o isola-mento e sofrimento do povo de Gaza já se provaram mais benéficos do que prejudiciais ao Hamas vis-à-vis a Fatah entre os gazanos.

Fatah + Hamas? Por essa razão, a terceira opção - ressuscitar o governo de união

nacional e tratar também com o Hamas - pode ser necessária. Clara-mente não é uma solução ideal para Israel. Na verdade é a que o gover-no israelense menos apoiaria. Mas é uma opção que alguns na Fatah (e no mundo árabe) ainda acreditam ser razoável. Seria uma idéia promissora se fosse alcançada após um significativo fortalecimento de Abu Mazen e/ou a emergência de uma liderança da Fatah unida e

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forte. Caso contrário, iria simplesmente repetir a luta pelo poder que acabamos de presenciar em Gaza.

Assumindo que ambas as opções deverão no final dar lugar a no-vas eleições na Autoridade Palestina, a escolha deveria ser a que pu-desse proporcionar uma melhor chance de enfraquecer o Hamas.

Iniciativa árabe de paz A última opção traz a questão de um domínio dividido dentro dos

territórios ocupados e está baseada na hipótese de que o fim da ocu-pação poderia mudar todo o cenário político.

Os palestinos, na forma da OLP, são parte da Liga Árabe (listados como o “Estado da Palestina”) onde são representados por Abu Ma-zen. Caso Israel concordasse em entabular negociações com base na Iniciativa Árabe de Paz, e se fosse alcançado um acordo de paz, pode-ríamos esperar uma série de coisas.

Primeiro, o Hamas teria dificuldade em ganhar uma maioria contra um acordo que pusesse um fim à ocupação com base na solução de Dois Estados.

Segundo, uma força internacional de manutenção de paz nas fron-teiras seria muito mais viável no contexto de um acordo de paz.

Terceiro, seria muito difícil - se não impossível - que uma minoria que rejeita a proposta persistisse significativamente enquanto os pa-íses de todo o mundo árabe estivessem apoiando a normalização, os arranjos de segurança e a paz com Israel.

É evidente que esta opção já poderia ter sido escolhida bem antes, e sem a vitória do Hamas em Gaza.

Mas ela ainda existe.

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VIII. Vida Cultural

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Autores

Vladimir CarvalhoJornalista e cineasta, primeiro presidente da Fundação Astrojildo Pereira.

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Folhetim da viagem (xilográfica) ao Reino do Primo Xico

Vladimir Carvalho

Contemplo uma gravura e – estranhamente – é como se ouvisse vozes: e num passe de mágica sou obduzido pela força de seu corte, de sua textura e de sua cor. A imaginação entra pelos

sulcos da madeira adentro e, de fato, o que escuto, meio ao longe, são vozes ancestrais, ecos de mitos adormecidos, numa remota cantilena, e o que se segue cada vez mais audível é todo um rumor e burburinho de uma imensa feira nordestina, o grande palco semanal das gen-tes sertanejas de antigamente. Uma feira (de Itabaiana, de Campina Grande, de Caruaru ou do Juazeiro do Padre Cícero?) que não existe mais, a não ser na lembrança de meu mundo infantil e que era quase como um circo repleto de atrações, embalado numa música forrozeira de sanfona, zabumba e ganzá, no ritmo do triângulo.

Esse é um cenário a céu aberto, fervilhante de vida, encharcado de pregões, cantorias de cegos, de repentistas e camelôs, passando pelas barracas onde se vendiam os folhetos de feira (o cordel de hoje), com o chão coberto de bonecos de barro e de montes de mané gostosos feitos de pau; com as árvores enfeitadas de gaiolas de passarinhos. À noite, aqueles que pernoitassem por ali poderiam assistir e até participar de uma espécie de prolongamento do espetáculo da feira, em alguma ponta de rua: era a vez da brincadeira do cavalo marinho, do pastoril na zona de mulheres e do mamulengo também chamado de babau, e a coisa podia avançar até madrugada alta.

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VIII. Vida Cultural

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É justamente na visão das figuras por vezes fesceninas e debo-chadas desses folguedos que me detenho e volto á tona desse sonho remissivo, dessa viagem a um reino encantado que fiz ao embarcar na contemplação das xilogravuras de Xico Carvalho. E retomo nas mãos sua nova série, na qual as suas criaturas emergem do forte colorido do fundo, de amarelos quentes como labaredas de fogo, suavizando em cor de rosa somente vez por outra nas cenas mais “líricas”, e por essa via descubro de novo o profundo parentesco de sua arte com a imaginação popular que domina aqueles folguedos tão meus conhe-cidos. Tão conhecidos que sonho até hoje com “mateus”, “biricos” e “catirinas” do cavalo marinho, com o palhaço Bedegueba dos pastoris da rua do Carretel.

E nesse lance está todo o gosto do povo pelo deboche e a irreverência, com seu tanto de picaresco como estão também a sua doçura e inocên-cia. Aliás, em termos de picaresco, esse muitas vezes beira o grotesco nas pequenas e saborosas obscenidades de que o povo é capaz na sua verve criadora. Tudo isso perpassa essa galeria de tipos e de criaturas estra-nhas nessas cenas que Xico vai buscar com a maestria de sua goiva no fundo de suas tábuas de umburana e cedro nativos. Basta enumerar os títulos com que batizou algumas dessas criações para se sentir o espírito gaiato das feiras e das ruas. “O Mestre Língua”, “A Mulher Cobra”, “O Homem Cobra Chic”, “O Padre e a Moça”, entre outros.

E por falar em “língua”, esse é o elemento que é “trabalhado” e vi-sualizado intensamente nessa coletânea insólita da gravura brasileira. À primeira vista, ela – a língua – deixa de ser parte do órgão fonador e ultrapassa em muito aquilo que o vulgo chama de língua ferina, ferramenta do desaforo, e não do diálogo, e toma forma semelhante a um chicote ou flecha que parece servir mais a uma espécie de justa em que cavalheiros se engalfinham como cobras, gritando eloqüências escatológicas ou malcriações que o povo não quer calar.

Pinta aqui então um clima de espetáculo do mamulengo/babau – e esse é o ponto máximo revelador das relações dessas xilos com a po-ética popular – em que surgem as movimentadas arengas e os dispa-rates do negro Benedito e da Catirina, na pequena boca de cena e na cadência do som roufenho da rabeca. Mas pode também não ser nada disso, que o Xico é homem de boa paz: o que se vê talvez seja conversa branda e coloquial, algumas até muito persuasivas e amorosas, com a língua soltando beijos e se alongando até quase acariciar o interlocu-tor, como é o caso desses estranhos “Gêmeos” ou desse Padre e dessa Moça, da mesma natureza e talhe do que se vê nas capas de folhetos românticos (vide a história de Coco Verde e Melancia, por exemplo) vendidos até hoje por aí.

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Folhetim da viagem (xilográfica) ao Reino do Primo Xico

Enfim, essa remessa do Xico que agora sai da prensa é preciosa e, para nós, sinaliza o auge de um artista que no seu oficio vem produzin-do uma arte que se pretende ingênua – no conceito conhecido – de corte propositalmente primitivo, bebido na fonte pura do inconsciente coleti-vo e sugere pelo estranhamento de alguns temas (bichos, aves, peixes e serpentes dialogando com seres humanos) um tipo de “surrealismo” popular com tudo que essa expressão tenha de impróprio neste caso. Uma arte que não é indiferente ao encantamento com o mundo de sua infância trazido de novo à luz, mas como se o visse pela primeira vez, um pouco coincidente com a visão do homem da caverna.

Agora, a bem da verdade, devo dizer que jamais fui apresentado a Xico Carvalho, misterioso e invisível personagem que vem maneiro e sutil espalhando seu rastro e seus fluidos pelo bairro de Jaguaribe, em João Pessoa, sem jamais ter sido visto, e que diz pertencer ao clã do velho Martim Caco, meu avô, dos Carvalho de Itabaiana. Isto é o que dizem afiançar Unhandeijara Lisboa, esse, sim, meu primo legí-timo na linhagem, inclusive, de meu tio Floripes Carvalho, ourives e gravador de talhe doce em ouro, estabelecido na Barão do Triunfo com sua joalheria. Mas o primo Nandi, como é conhecido, sempre descon-versa toda vez que o interpelo a esse respeito. “O Xico anda pelo meio do mundo”, diz dando de ombros e mudando de assunto. Manuel Cle-mente, que é seu discípulo e comparsa no ateliê do Clube da Gravura, não arreda o pé de seu proverbial mutismo (a última vez que se fez ouvir foi em sala de aula, assim mesmo por obrigação acadêmica), e da última vez que o intimei a esclarecer o caso, riu um risinho maroto, engasgou-se, correu ao banheiro e não mais voltou. Saiu por alguma porta falsa, talvez a mesma que oculta as fugas convenientes do Xico. Martinho Campos, um dos mentores do Clube e iminência parda do fabuloso movimento da xilogravura na Paraíba, abordado, me fez uma verdadeira conferência, na verdade longa conversa “de cerca Louren-ço” para me despistar. Resultado é que me deixou na mesma, nada sabendo do paradeiro do ensombrecido xilógrafo...

De minha parte, resta-me o consolo de uma conclusão, talvez apressada, mas conseqüência natural e até certo ponto inconsciente de uma comparação que, aos poucos, venho fazendo entre a lavra visí-vel do Xico com a do primo Nandi. Uma, perdoem-me, é quase um de-calque da outra. Principalmente nos últimos anos em que na medida que Xico se torna mais “presente” Nandi vem se esquivando cada vez mais de produzir e se retira de cena. É uma coincidência muito grande e ninguém me convence de que esse Xico Carvalho não é uma arti-manha, uma “ficção” do neto de Floriano Rodrigues Carvalho. “Uma bolação Unhandeijara”, como ele próprio dizia antigamente.

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IX. Documento – Ano Caio Prado Jr.

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Autores

Caio Prado Jr (1907-1990)Historiador, filósofo e geógrafo que formou, ao lado de Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre, a corrente renovadora dos estudos sobre a sociedade brasileira a partir dos anos 1930. Autor de 16 livros, fundou a editora Brasiliense em 1943, mesmo ano em que publicou sua obra capital, Formação do Brasil Contemporâneo. Em 1931, entra no Partido Comunista, e inicia seus estudos de Marx e de Engels. Em 1945, foi eleito Constituinte estadual pelo PCB. Teve seu mandato cassado em 1948. Em 1966 é agraciado com o Prêmio Juca Pato. Recebeu em 1968 o título de professor livre-docente na USP, sendo cassado no mesmo ano pelo governo militar.

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A revolução agrária não camponesa no Brasil1

Caio Prado Jr.

A caracterização do sistema econômico dominante na agrope-cuária brasileira, conforme se faça ou não no sentido de sua assimilação ao agrarismo feudal, leva respectivamente num e

noutro caso a conclusões de ordem prática essencialmente distintas e da maior significação. Não é por simples luxo teórico e preocupação acadêmica que estamos aqui insistindo nesse ponto e procurando mostrar o desacerto que consiste em interpretar a nossa economia agrária e as relações de produção e trabalho nela presentes como derivações ou remanescentes de obsoletas e anacrônicas formas e

1 O título acima foi usado em Raimundo Santos. Política e agrarismo sindical no PCB. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2002. Reproduzimos aqui um trecho de A re-volução brasileira, no qual Caio Prado Jr. apresenta o sentido político-prático do seu agrarismo, marco na consolidação da práxis agrária dos comunistas brasileiros, em-penhados desde meados dos anos 1950 na construção da rede sindical nacional que se afirmaria na Contag, fundada em 1963. Publicado originariamente em 1966, o livro A revolução brasileira foi lido como uma desconstrução das teses da feudalidade e do antiimperialismo. Caio Prado Jr. radicava sua reflexão na debilidade do nosso ca-pitalismo pouco incorporador dos grandes contingentes populares. A fórmula caiopra-diana de uma revolução nacional e agrária sugeria um processo ao modo americano no sentido de um Oeste-mercado interno (mundo rural) complementar de um Leste-industrial. Caio Prado Jr. pensava em um renovamento do mundo rural assentado na proteção de direitos na “generalidade do país”. A lei trabalhista – à época, o Estatuto do Trabalhador Rural – viria universalizar processos sociais por meio dos sindicatos à frente de reivindicações salariais e do emprego nos grandes setores da agropecuária, onde estava o núcleo estratégico capaz de difundir impulsos transformadores susten-táveis: os empregados agrícolas. (RAIMUNDO SANTOS)

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IX. Documento – Ano Caio Prado Jr.

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estruturas feudais. Uma interpretação como essa leva naturalmente à conclusão – e é realmente o que se tem verificado no caso da de-feituosa teoria da revolução brasileira até hoje consagrada – que a luta dos trabalhadores rurais brasileiros teria essencialmente por objetivo (como seria o caso se se tratasse de fato de camponeses) a livre ocupação e utilização da terra que hoje trabalham a título de empregados da grande exploração. E se dirigiria assim no sentido da reivindicação dessa terra. [...]

Ora, isso vai frontalmente de encontro aos fatos mais evidentes da realidade brasileira; e mostra como essa errônea interpretação teóri-ca pode conduzir, como de fato tem conduzido no Brasil, à desorien-tação na prática. As aspirações e reivindicações essenciais da grande e principal parte da massa trabalhadora rural do país não têm aquele sentido apontado. Refiro-me naturalmente à parcela maior e mais expressiva dos trabalhadores rurais brasileiros que se concentram nas grandes explorações agrárias do país – da cana-de-açúcar, do café, do algodão, do cacau e outras da mesma categoria. Não é pela ocupação e utilização individual e parcelária dessa terra onde hoje trabalham coletivamente entrosados no sistema da grande explora-ção, que aqueles trabalhadores procuram solucionar seus problemas de vida e superar as miseráveis condições de existência que são as suas. Nos maiores e principais setores da agropecuária brasileira, naqueles que constituem em conjunto o cerne da economia agrária do país e onde se concentra a maior parcela da população rural, os trabalhadores, como empregados que são da grande exploração, sim-ples vendedores de força de trabalho, portanto, e não “camponeses”, no sentido próprio, aquilo pelo que aspiram e o que reivindicam, o sentido principal de sua luta é a obtenção de melhores condições de trabalho e emprego. [...]

A reivindicação da terra e utilização dela pelo próprio trabalha-dor, manifestando-se de maneira apreciável e não apenas através de vagas aspirações desacompanhadas de qualquer ação e pressão efetivas, isso se circunscreve no Brasil praticamente a três setores apenas, todos eles de importância relativa e secundária. E o que é mais, assumindo em dois deles pelo menos (para não dizer todos três) formas e aspectos particulares e específicos que nada têm a ver nem podem ter com sistemas agrários feudais ou derivados, e even-tuais restos e remanescentes de tais sistemas.2 [...]

2 O autor se refere a: 1) áreas intermediárias entre a zona da mata e o agreste, onde a propriedade se acha relativamente subdividida e se desenrolavam as atividades das Ligas Camponesas; 2) áreas de ocupação de terras virgens em zonas pioneiras, particularmente Oeste paranaense e Centro-Norte de Goiás; trata-se de regiões de

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A revolução agrária não camponesa no Brasil

Esgotam-se, com essas situações de conflitos sociais no campo brasileiro que acabamos de enumerar, praticamente todos os casos expressivos em que se propõe a questão da terra, e onde a reivin-dicação dessa terra pelos trabalhadores e produtores se apresen-ta com potencialidade revolucionária. Mas potencialidade essa que nada tem a ver, como notamos, com a “eliminação de restos feudais”, ou que diga respeito a uma presumida revolução agrária antifeudal em germinação no processo histórico-social da atualidade brasileira. A reivindicação pela terra se liga entre nós, quando ocorre, a circuns-tâncias muito particulares e específicas de lugar e momento. E tem sua solução, por isso, em reformas ou transformações também de natureza muito particular e específica. Não se pode, portanto, legi-timamente generalizá-la para o conjunto da economia agrária brasi-leira, como expressão de contradição essencial e básica. E numa in-terpretação dessas fundamentar toda a teoria e prática da revolução brasileira no campo. Isso é tanto menos legítimo que a reivindicação pela terra está longe, muito longe de ter a expressão quantitativa e, sobretudo, qualitativa de outras pressões e tensões no campo brasi-leiro que dizem respeito a condições de trabalho e emprego na grande exploração rural — fazenda, engenho, usina, estância... É aí que se situa o ponto nevrálgico das contradições no campo brasileiro. Isso já vem de longa data, desde sempre, pode-se dizer. [...]

Numa revolução democrático-burguesa e antifeudal, o centro ne-vrálgico do impulso revolucionário se encontra na questão da posse da terra reivindicada por camponeses submetidos a jugo feudal ou semifeudal. É o que ensina o figurino europeu, e da Rússia czarista em particular. Assim, portanto, havia de ser no Brasil também. E essa conclusão apriorística faz subestimar, se não muitas vezes até mesmo oblitera por completo o que realmente se apresenta na reali-dade do campo brasileiro. A saber, a profundidade e extensão da luta reinvidicatória da massa trabalhadora rural por melhores condições de trabalho e emprego.

Os documentos oficiais do Partido Comunista do Brasil são a esse respeito, entre outros, altamente ilustrativos. Veja-se, por exemplo, o Programa de 1954, particularmente importante porque é o primeiro, na fase mais recente do pós-guerra, aprovado em Congresso. [...] As relações de emprego na agropecuária brasileira acham-se colocadas nesse Programa em segundo e apagado plano. E trata-se aí de uma questão única: a do salário. Os autores do Programa achavam-se,

conflitos entre “posseiros” e “grileiros”; e 3) o “alto interior do país” (os sertões do Nordeste, da Bahia e de Minas Gerais, onde o avanço da pecuária gerava conflitos com os pequenos agricultores).

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IX. Documento – Ano Caio Prado Jr.

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aliás, tão alheados da realidade brasileira que inscrevem no Ponto 40 uma reivindicação já na época, e havia muito, incorporada à legis-lação brasileira que, na Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 (onze anos antes, portanto), assegurava ao trabalhador rural o salá-rio mínimo. A questão, pois, não estava mais em legalizar o mínimo salarial, e sim torná-lo efetivo. [...]

Que dizer então de outras questões relativas à extensão da le-gislação social-trabalhista ao campo? Também disso não se cogita no Congresso e no Programa de 1954. Como se sabe, o trabalhador rural foi excluído da incidência da legislação social-trabalhista até o advento do Estatuto do Trabalhador Rural (Lei nº 4.214 de 2 de mar-ço de 1963), salvo no caso de uns poucos dispositivos que, devido em parte a essa mesma excepcionalidade, permaneceram letra mor-ta. Era assim o caso, evidentemente, de lhes dar vida. E sobretudo de ampliar a extensão da legislação trabalhista em geral ao campo. Abriam-se aí, portanto, largas perspectivas de ação. [...] Os fatos se incumbiriam de comprovar aquela importância e fecundidade das reivindicações trabalhistas no campo brasileiro com as ocorrências verificadas, particularmente no Nordeste, em 1963, e até o golpe de abril do ano seguinte, quando na base da luta pela aplicação do Es-tatuto do Trabalhador Rural se desencadeou uma das maiores ba-talhas, se não a maior delas, jamais verificada no campo brasileiro. Sobreleva-a unicamente a campanha abolicionista. [...]

Abre-se, nessa insistência no erro, uma pequena exceção, infeliz-mente sem maiores conseqüências, como logo veremos. Trata-se da Resolução Política aprovada em Convenção Nacional do PCB realizada em 1960. Embora mantendo a tradicional e falseada posição teórica do Partido acerca da natureza da revolução brasileira, a Resolução Política de 1960 introduz uma réstia de bom senso no capítulo das normas de ação prática. É assim que, na primeira parte de seu item 25, é estabelecido o seguinte: “A fim de impulsionar a organização das massas do campo é necessário dar atenção principal aos assala-riados e semi-assalariados agrícolas. Sua organização em sindicatos deve constituir a base para a mobilização das massas camponesas”. Note-se bem que a Resolução de 1960 aconselha nesse texto “atenção principal” aos assalariados e semi-assalariados, e considera como base e principal fator de mobilização das massas do campo a organi-zação e, pois, a luta daqueles trabalhadores. Isso constitui reconhe-cimento implícito, mas sem dúvida bem caracterizado, de que a re-volução no campo brasileiro não tem sua mola mestra em nenhuma luta antifeudal e não se dirige contra nenhum resto semifeudal.

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A revolução agrária não camponesa no Brasil

Talvez por isso mesmo a tese inscrita no citado texto do item 25 da Resolução não tenha passado de um cochilo dos seus redatores. Não se encaixa coerentemente no conjunto da Resolução e está em completo desacordo com o restante de seu texto; e naturalmente, em particular, com as suas premissas teóricas. [...] Tanto que logo em continuação imediata a ele, sempre no mesmo item, e sem ao menos abrir um novo parágrafo, passa a Resolução, em flagrante incoerência e inconsistência, a assunto distinto, não cogitando mais de questões ligadas à relação de emprego que constitui o tema do trecho anterior. Esse texto é o seguinte: “A organização dos campo-neses deve partir das reivindicações mais imediatas e viáveis como a baixa das taxas de arrendamento, a prorrogação dos contratos, a garantia contra os despejos, a permanência dos posseiros na terra e a legitimação das posses, etc.” De uma frase para outra, esquecem-se por completo os autores da Resolução de 1960 que, segundo eles próprios acabavam de declarar, “a base da mobilização das massas camponesas se deveria constituir da organização dos assalariados e semi-assalariados”, cujas reivindicações, é claro, nada têm a ver com aquelas inscritas na segunda passagem citada. [...] Interessante observar que, para enquadrar as contradições e conflitos derivados das relações de emprego na teoria da reforma agrária antifeudal, os defensores dessa teoria, não podendo mais ignorá-la, como antes faziam, e sendo obrigados pela prática a reconhecer sua importância decisiva, pois é na base dessas contradições que se processa a parte substancial e mais significativa das lutas no campo brasileiro, os te-óricos do antifeudalismo introduziram a esdrúxula concepção de que as reivindicações dos trabalhadores naquela luta (a saber, pela me-lhoria das condições de trabalho e emprego) seriam “reivindicações imediatas”, que precederiam e preparariam a reforma “radical” desti-nada a superar os restos semifeudais presentes na economia agrária brasileira. “Reforma radical” essa que consistiria fundamentalmente na eliminação do latifúndio “feudal”. [...]

A ação revolucionária se torna vacilante e insegura, não se fixan-do em objetivos precisos e bem definidos. Daí a ausência de suficien-te acentuação e estímulo daquelas forças e situações em que se loca-lizam as contradições essenciais e fundamentais presentes no campo brasileiro, e onde, portanto, se encontram os pontos nevrálgicos do processo revolucionário em curso. A saber, a luta reivindicatória dos trabalhadores rurais por melhores condições de trabalho e emprego. Embora se reconheça, diante da evidência dos fatos, a necessidade dessa luta, não se apanha o seu alcance e significação profundos, porque isso é embaraçado por concepções teóricas em que ela não se ajusta convenientemente e tem de ser incluída através de artifícios e

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IX. Documento – Ano Caio Prado Jr.

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ajeitamentos mais ou menos arbitrários. Ou então se deixa simples-mente ao acaso das improvisações.

De uma ou de outra forma, perde-se o impulso e a força neces-sários para uma ação fecunda e uma mobilização eficiente da massa trabalhadora rural. E isso precisamente naquele terreno de maior conteúdo e potencialidade revolucionários. Temos a prova cabal dis-so nestes vinte e tantos anos decorridos desde quando a Consolida-ção da Legislação Trabalhista de 1943 assegurou alguns direitos e vantagens aos trabalhadores, entre outros o salário mínimo, sem que nada se fizesse, a não ser muito recentemente, e assim mesmo, salvo em Pernambuco, muito pouco para tornar efetivas aquelas disposi-ções legais. Nenhum passo foi dado, nenhuma medida foi tomada para esclarecer a massa trabalhadora rural de seus direitos, para lhe abrir perspectivas, estimulá-la em sua luta. E essa inércia não se explica unicamente nem principalmente pelas dificuldades, sem dúvida consideráveis, mas longe de insuperáveis, de acesso ao cam-po, nem tampouco, também, pela subestimação da questão agrária, que também existiu. A razão principal por que não se mobilizou ou pelo menos tentou seriamente mobilizar a massa trabalhadora rural na base de reivindicações por melhores condições de trabalho e em-prego, se deveu ao fato de essas reivindicações não se considerarem essenciais, nem mesmo suficientemente importantes no processo re-volucionário do campo brasileiro, que deveria obedecer, segundo a teoria oficial consagrada e indiscutivelmente aceita, ao esquema da revolução antifeudal: supressão das relações semifeudais de produ-ção, em particular e diretamente pela destruição do latifúndio. Num esquema como esse, a luta por reivindicações imediatas, que dizem respeito a relações de emprego, essa luta tem papel quando muito secundário. Chegou-se mesmo, muitas vezes, a tachar seus propug-nadores de “reformistas” (no sentido pejorativo e anti-revolucionário que esse termo tem no vocabulário marxista), pois a insistência deles numa reivindicação considerada de expressão revolucionária míni-ma, se não inexistente, podia obscurecer e, pois, embaraçar a propo-sição e o progresso da verdadeira luta do “camponês”, a saber, pela terra e contra a opressão “feudal”.

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X. Memória

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Autores

Ivan Alves FilhoHistoriador, autor, dentre outros, do clássico Memorial de Palmares.

Gilvan Cavalcanti de MeloCientista político, ensaísta e membro do conselho editorial da Revista Política Democrática.

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João Saldanha

Ivan Alves Filho

Se vivo fosse, João Saldanha teria completado, no dia 3 de julho, 90 anos de idade. Nascido em Alegrete, no Rio Grande do Sul, em 1917 – ano da Revolução Russa – e morto em Roma, em

1990, em plena Copa do Mundo, foi um homem combativo politica-mente e respeitado em sua condição de jornalista e escritor.

Aderiu ao Partido Comunista Brasileiro ainda no Estado Novo, no início dos anos 40, muito provavelmente, sendo um dos responsáveis, na clandestinidade, pela Juventude Comunista. Isso, no Rio de Janei-ro, então capital da República e cidade para a qual se mudou ainda na adolescência. Após a anistia política e a redemocratização do país, em 1945, no fim da ditadura Vargas, Saldanha assumiu a secretaria geral da Juventude Comunista, trabalhando em estreita ligação com Apolônio de Carvalho, Marcos Jaimovitch, Zuleika Alambert e outras lideranças do movimento estudantil e juvenil do Partido. Desde essa fase, ele já cuidava de arregimentar jovens para o PCB com base na organização de grupos esportivos, sobretudo equipes de futebol. Para Saldanha, o esporte possuía uma carga agregadora tremenda.

Conforme testemunho do líder camponês comunista Hilário Pinho à série documental Brasileiros e Militantes, uma iniciativa da Fundação Astrojildo Pereira, João Saldanha participou das lutas de autodefesa camponesa de Porecatu, no norte do Paraná, entre o final da década de 40 e o início da de 50. Nessa região, por 22 meses ininterruptos, os camponeses em armas, com o auxílio do PCB, forçaram as autori-dades governamentais do Paraná a negociar a implementação de uma ampla política de distribuição de terras, a qual resultou na primeira –

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X. Memória

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e, até aqui, única – luta vitoriosa pela reforma agrária no Brasil. João Saldanha dirigia então, com outros companheiros, o Comitê Regional do Partido no estado. Dessa luta vitoriosa também participaram líde-res respeitados do PCB, como Agliberto Vieira de Azevedo e Gregório Bezerra, ambos oriundos do levante militar-aliancista de 1935, mais exatamente no Rio de Janeiro e no Recife.

Com o recrudescimento da repressão aos comunistas no governo Dutra (1946-1950), que sucedera àquele de Getúlio Vargas, João Sal-danha chegou a ser baleado nos pulmões, no Rio de Janeiro. Conse-guiu fugir de forma espetacular de um hospital carioca, pulando pela janela do quarto em que se encontrava convalescendo, antes que a polícia política o prendesse. Isso, apenas 24 horas após a cirurgia para a extração da bala...

Eleito em seguida para o Comitê Central do PCB, João Saldanha pe-diu afastamento do cargo no IV Congresso, realizado clandestinamente em 1954, por divergir da forma como determinados dirigentes estavam conduzindo a política partidária. Ao que tudo indica, sua divergência tinha que ver com o mandonismo já presente no Partido nessa ocasião. Eram os duros tempos dos desvios stalinistas, diga-se de passagem.

No entanto, Saldanha não deixaria de militar no Partido. Apenas passou a dividir mais seu tempo entre o PCB e o futebol, outra grande paixão sua. Jogador e depois técnico do Botafogo, no ano de 1957, João dedicou-se ainda, com extraordinário afinco e sucesso, ao jor-nalismo esportivo, como comentarista de rádio e cronista do Jornal do Brasil, então o órgão de imprensa de maior prestígio no país. Seus comentários, que começavam invariavelmente pelo bordão “Meus ami-gos...” marcaram época no rádio brasileiro. Pode-se dizer que poucos jornalistas estiveram em tão profunda sintonia com a alma popular como Saldanha. Aquela era uma época em que o Brasil iniciava uma espetacular arrancada para a conquista do seu primeiro título mun-dial de futebol, o que se daria na Suécia, no ano seguinte, em 1958. Os bons tempos de Pelé, Garrincha, Didi, Gilmar e Nilton Santos.

E, nesse mesmo ano de 1958, o PCB também dava início a uma política transformadora, materializada na Declaração de Março, que propunha a superação do capitalismo no terreno da própria demo-cracia e não mais pela via armada, conforme ditava o Manifesto de Agosto de 1950, corroborado ainda pelas propostas do IV Congresso de 1954. João Saldanha se alinhava entre aqueles que aceitaram as teses democráticas da Declaração de Março, apesar de não ter mais responsabilidades na direção partidária.

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João Saldanha

Durante os governos JK (1956-1960) e Jango (1961-1964), sobre-tudo neste último, bem mais conturbado, Saldanha atuou sempre no sentido de aplicar a linha política de massas do PCB. Em 1964, opôs-se resolutamente ao golpe militar, integrando-se à ampla luta de resis-tência que o Partido, desde a clandestinidade, começava a coordenar com o propósito de isolar o novo regime. E, paralelamente, prosseguia com seu trabalho profissional, comentando jogos, escrevendo crônicas e livros. Temperamento altivo, por vezes até mesmo “estourado”, como se diz, Saldanha era conhecido pela população como João sem Medo.

Em 1969, em plena vigência do Ato Institucional n.5, João Sal-danha passou a dirigir a Seleção Brasileira, da qual se afastaria no ano seguinte, por imposição da ditadura militar: ele teria declarado na ocasião “que o presidente (o ditador Médici, no caso) escala o seu ministério; eu escalo a minha equipe...” Foi o suficiente para seu afas-tamento da Seleção. Mas o Brasil ganhou a Copa de 70 com as chama-das “feras do Saldanha”. Isso, ninguém retiraria dele.

Durante a ditadura militar, mesmo em seus períodos mais terrí-veis, João Saldanha sempre colaborou com o PCB, inclusive financei-ramente, ajudando vários companheiros perseguidos, em dificulda-des. Melhor: doou ao Partido boa parte de uma herança que recebera dos pais. Seu desprendimento assombrava os amigos mais próximos, que conheciam sua generosidade.

Com a volta de Luiz Carlos Prestes do exílio, em 1979, Saldanha cedeu seu apartamento ao líder comunista, secretário-geral do PCB desde a Conferência da Mantiqueira, em 1943. Apesar de sua ligação pessoal com Prestes, João Saldanha nunca se afastou do Partido, con-correndo, inclusive, à prefeitura do Rio de Janeiro, em 1985, ao lado de outra figura muito respeitada da resistência democrática, o advo-gado Marcello Cerqueira.

João Saldanha era um extraordinário contador de histórias. Cos-tumava dizer que havia no céu três bilhões de estrelas e que se alguém porventura duvidasse, que contasse, pois ele o fizera... Homem culto – falava diversos idiomas, inclusive –, Saldanha era, acima de tudo, amigo dos seus amigos. Foram seus companheiros de jornada Oscar Niemeyer e Nelson Werneck Sodré, entre outras personalidades da vida brasileira. Querido por todos, um verdadeiro mito nacional, João Saldanha foi o que se poderia chamar de um cidadão exemplar.

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X. Memória

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Gramsci, 70 anos depois1

Gilvan Cavalcanti de Melo2

Seremos marxistas? Existirão marxistas?

Tolice, só tu és imortal.(Gramsci)

Em 27 de abril de 1937, morria aos 46 anos, Antonio Grams-ci, o mais importante, talvez o maior pensador da tradição marxista-ocidental do século passado. A morte o derrotou no

instante em que conseguira a liberdade: dois dias antes recebera o documento com a declaração de que não havia mais qualquer me-dida de segurança em relação a ele, assinado pelo Juiz do Tribunal Especial de Roma. Foi preso por ordem de Mussolini, em 8 de no-vembro de 1926. No processo farsa, montado pelo Estado Fascista, o acusador pediu aos juizes sua condenação e diante de Gramsci, sentenciou: ‘é preciso impedir este cérebro de funcionar’. Condena-ram-no é verdade mas, não conseguiram impedir que, de dentro da prisão, fosse escrita uma obra monumental.

Encarcerado fez com que sua inteligência penetrasse na densi-dade sombria da realidade. Recusou a vaidade demagógica de uns e o dogmatismo degenerado de outros. Não pensou em formular uma nova e original concepção da práxis. Só mais tarde manifestou a consciência do valor de sua produção intelectual. Ousou, de dentro do cárcere, na solidão e solitário politicamente, desafiar a ignorância e as banalidades stalinistas. Foi, também, por muito tempo negli-genciado e desconsiderado, inclusive, por muitos companheiros os quais, deveriam tê-lo valorizado e amado mais intensamente. Em primeiro lugar se comovido por aquele homem frágil, sofredor e per-seguido. Em segundo, admiração por sua coragem e combatividade. Em terceiro, por seu pensamento denso, profundo. Finalmente, por seus ensinamentos e visão inovadora sobre a filosofia de Marx.

1 Gramsci se referia a Marx. Citado no artigo “A reforma Gramsciana da Política de Valentino Gerratana”, revista Presença n. 17 – nov.1991/mar. 1992, Rio de Janeiro.

2 Membro efetivo dos Diretórios Nacional e Regional/RJ do PPS e do Conselho Edito-rial da revista Política Democrática.

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Gramsci, 70 anos depois

Nada mais justo ao se completar 70 anos de sua morte recordar algu-mas contribuições daquele pensamento inovador na tradição de Marx.

Há uma controvérsia sobre o porquê da recusa de Gramsci em usar o termo materialismo ou marxismo. Parte de estudiosos lhe atri-buem o fato como uma maneira de ultrapassar a rigidez da censura. Entretanto, é preciso ressaltar que aqueles termos estavam relacio-nados a uma leitura economicista, dogmática e ortodoxa de Marx. O símbolo mais conhecido era o Manual Ensaio Popular de Nicolau Bukarin. Em defesa do novo conceito foi buscar o exemplo de Marx no prefácio de O Capital. Ali estava explicitado ‘dialética racional’ e ‘dialética mística’ em vez de dialética materialista e dialética idealis-ta. O próprio Marx se recusava a se identificar com o materialismo vulgar.

Há outra convicção: o uso do termo filosofia da praxis foi conscien-te no sentido da revalorização da atividade cultural e da dimensão ético-política. Ao mesmo tempo em que travava uma batalha contra os dogmáticos, não deixou de considerar, também, que a ‘filosofia da praxis’ deveria reconquistar a força criadora da qual se apoderara o pensamento moderno, preconceituoso e desfavorável a priori, em relação a Marx: Bérgson, Sorel, Croce, Weber, Veblen, Freud, Wiliam James e através de Spengler, também, Nietzsche.

Seria interessante relacionar a crítica que ele fez às duas corren-tes filosóficas existentes: uma chamada ortodoxa e outra eclética. A primeira tendência era representada por Plekhanov, cujo ensaio mais conhecido era Os problemas fundamentais do marxismo. A obra não foi poupada por Gramsci, chamado-a de materialismo vulgar e típica do método positivista. A segunda queria ligar a “filosofia da práxis” ao kantismo ou outras correntes não positivistas e não materialistas, representada por Otto Bauer o qual chegou a afirmar que o marxis-mo poderia ser fundamentado e integrado por qualquer filosofia. Daí a sua preocupação em colocar em circulação o pensamento de outro italiano: Antonio Labriola. Era o contraponto ao grupo intelectual alemão que exercia uma forte influência em determinada leitura de Marx, na Rússia. Por isso, Gramsci valorizava a idéia de Labriola de que a filosofia da práxis era independente de qualquer outra filosofia, sendo auto-suficiente.

Qual o núcleo central do pensamento gramsciano? A palavra cha-ve era o homem como bloco histórico, categoria que ele adquiriu de Sorel e deu-lhe outra dimensão. Discutiu o tema e se contrapôs à teoria da dualidade, inclusive, com George Lukács. E, assim se ex-pressou: “Deve-se estudar a posição do professor Lukács em face da

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filosofia da práxis. Lukács, ao que parece, afirma que só se pode falar de dialética para a história dos homens, não para a natureza. Pode estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um dualismo entre a natureza e o homem, ele está equivocado porque cai em uma concepção da natureza própria da religião e da filosofia greco-cristã, bem como do idealismo, que realmente não consegue unificar e relacionar o homem e natureza mais do que verbalmente. Mas se a história humana deve ser concebida também como história da natureza (através também da história da ciência), como então a dialética pode ser destacada da natureza? Lukács, talvez, por reação às teorias barrocas do Ensaio Popular, caiu no erro oposto, em uma forma de idealismo”.3

Reafirmou sua concepção unitária do homem, quando escreveu: “É possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de rela-ções do qual ele é o ponto central. Neste sentido o verdadeiro filó-sofo é – e não pode deixar de ser – nada mais do que o político, isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte. Se a própria individualidade é o conjunto destas relações, conquistar uma per-sonalidade significa adquirir consciência destas relações, modifi-car a própria personalidade significa modificar o conjunto destas relações”.4 Ai, também, está presente uma leitura antipragmática, uma reelaboração inovadora da teoria do conhecimento expressa por Marx na tese onze sobre Feuerbach: “Os filósofos de limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”.5 Isto é, o conceito unitário: conhecer a realidade e transformá-la.

O bloco histórico está presente na relação entre intelectuais e não intelectuais, através dos conceitos senso-comum/bom senso. Gramsci evidenciou que todos homens são filósofos, de forma in-consciente e definiu os limites e as características dessa peculiari-dade. Esta singularidade está contida, em primeiro lugar, na pró-pria linguagem, isto é, um conjunto de conceitos com conteúdos, ou seja, em qualquer simples manifestação intelectual fica explicita uma concepção de mundo. Em segundo lugar, a religião popular, com todo o sistema de crenças, superstições, etc. E, encontrou a chave para unificar, criticamente, esse conjunto de filosofia. Resol-

3 Gramsci, Antonio - Concepção Dialética da História , pág. 173 , 3ª edição 1978 - Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.

4 Idem, pág.405 Marx, Karl - Tese sobre Feuerbach - Os Pensadores , pág. 53 , 2ª edição. 1978 - Abril

Cultural

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veu a questão de maneira muito original. Estabeleceu uma relação entre a passagem do saber ao compreender, ao sentir e vice-versa. E, simultaneamente, do sentir ao compreender, ao saber. Destacou que o popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe. O in-telectual sabe, mas nem sempre compreende e, em especial, sente. É indispensável, portanto, reconciliar senso-comum e bom-senso. Sem essa conexão entre intelectuais e a grande maioria da popula-ção não se faz política.

Essa relação unitária perpassa todo o trabalho e formação de ou-tros conceitos e categorias. Está presente, também, no estudo da es-trutura e superestrutura. Outro exemplo claro é quando ele se refere às “ondas” dos movimentos históricos: de um lado, chamou a atenção para o exagero do economicismo ou do doutrinarismo pedante e, de outro lado, o limite extremo de ideologismo. Essa separação poderia levar a graves erros na arte política de construir a história presente e futura e daria lugar a fórmulas infantis de otimismo e bobagens.

Outra contribuição importante: estabeleceu uma distinção me-todológica de dois momentos para a análise de uma situação con-creta, circunstância ou conjuntura: a) um momento unido à estru-tura, objetiva, o grau de desenvolvimento das forças materiais de produção. A formação dos agrupamentos sociais, suas funções e posição na produção. Essa realidade permite investigar se em uma determinada sociedade já existe as condições indispensáveis e sufi-cientes para sua transformação; b) outro momento é a relação das forças política, avaliação do grau de homogeneidade, autoconsciên-cia e de organização adquiridas pelos diferentes grupos sociais. Na vida real, entretanto, considerou que estes momentos se confun-diam reciprocamente.

E com base na análise de conjuntura procurou resolver duas questões apresentadas por Marx no prefácio à Crítica da Economia Política: a) “uma formação social nunca perece antes que estejam de-senvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficiente-mente desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de exis-tência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade”; b) é por isso que a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou, pelo menos, captadas no processo do seu

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devir”.6 Na sua enorme pesquisa fragmentada apresentou e desen-volveu a categoria de revolução passiva. Inferiu-a dos dois princípios estabelecidos por Marx, no prefácio de 1859. Reportando-o à descri-ção daqueles dois momentos que podiam distinguir a situação con-creta e o equilíbrio das forças com a máxima valorização do segundo momento.7

A chave bloco histórico serviu-lhe para resolver um falso proble-ma da separação entre Estado/Sociedade Civil, separação que só existe metodologicamente. Mas, deixou muito bem explicitado que esta relação dialética exigia um reconhecimento do terreno nacional. Entretanto, ao analisar as formações sociais pouco desenvolvidas e comparando com as mais desenvolvidas chegou a uma conclusão im-portante: nas primeiras, o Estado é tudo, a sociedade civil é primiti-va, gelatinosa, sem consistência; nas segundas, há entre o Estado e a sociedade civil uma relação de disputa, pendência e qualquer tremor ou oscilação do Estado, imediatamente, descobre-se uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado é apenas um posto avançado, por trás do qual se situa uma poderosa rede de proteção blindada.

Dessa leitura reexaminou o conceito leniniano de hegemonia. E, entre os elementos força e consenso, deu ênfase aos ordenadores do sistema de hegemonia: a) as organizações e instituições políticas e culturais, nas quais esse sistema se materializou; b) os sujeitos, forças sociais e instituições que o construiram e se reproduziram. Mas, demonstrou, também, que os sistemas hegemônicos não eram eternos, mas históricos. Bem como, salientou os processos e possibi-lidades de se construir novas hegemonias político-morais.

Através de uma série de problemas examinados por Gramsci dentro do pensamento filosófico, no início da década 30, foi possí-vel antecipar as novas contradições das sociedades modernas, suas complicações, crises econômicas e morais e a passagem do velho individualismo econômico para a economia programática, uma nova hegemonia. Vislumbrou as grandes transformações capitalistas. Com Americanismo e Fordismo, ele demonstrou sua enorme capacidade de olhar o mundo além do seu tempo.

A mesma coerência unitária esteve presente na sua visão de par-tido político. Recusou um tipo de organização oriental, burocrática. Iniciou sua análise partindo do questionamento da necessidade his-

6 MARX, Karl. Para a Critica da Economia Polícia. Prefácio – Os Pensadores, p. 130, 2. edição, 1978. Abril Cultural

7 VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva – Iberismo e americanismo no Brasil, p. 28-88. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997.

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tórica da sua existência e propôs algumas condições, entre elas a possibilidade de seu triunfo ou, pelo menos, em vias de alcançá-lo. Mas, para isso era necessária a unidade de três grupos de elementos: a) um elemento de homens comuns, cuja participação seja oferecida pela disciplina e fidelidade; b) o elemento principal de coesão, que unifique o campo nacional, torne eficiente e poderoso um conjun-to de forças. Este grupo é dotado de determinadas premissas como criatividade, perspectiva e unido; c) um elemento médio, que articule o primeiro grupo com o segundo, os colocando em sólido contato in-telectual e moral.

Seu pensamento avançava por fragmentos, abandonados logo em seguida e em outros casos aperfeiçoava-o por outros. Não era uma obra sistemática. Por isso, há estudiosos e especialistas de sua obra que tentam diversidades de interpretações: uns com matizes, for-mas e graus diferentes colocam-na no campo exclusivo do leninismo; outros interessados, fundamentalmente, nas inovações que ele in-troduziu nas análises das superestruturas; os terceiros que o prefe-rem como o filósofo da sociedade industrial. A controvérsia é natural numa obra inconclusa.

O que é o homem? Era a grande questão para Gramsci. E desta-cou que esta é a primeira e principal pergunta da filosofia. E questio-nou: como respondê-la? Sua conclusão foi resumida em ritmo de no-vas perguntas, mais ou menos assim: o que o homem pode se tornar, se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode se fazer, se ele pode criar sua própria vida? E, concluiu, portanto, o homem é um processo, exatamente, o processo de seus atos. Em suma, a humanidade se reflete em cada individualidade e é composta de dis-tintos elementos: a) o individuo; b) os outros homens; c) a natureza.8 Isto é, em outras palavras, o bloco histórico. Só metodologicamente é possível fragmentá-lo.

Não deixou de polemizar com o pensamento mais rigoroso e mais fecundo que formavam grandes correntes de opinião. Assim o faz quando estudou o conceito de classe política de Gaetano Mosca, e relacionando-o com o conceito elite de Vilfredo Pareto. Foi Benedetto Croce seu principal interlocutor. O conjunto dos Cadernos do Cárce-re, na verdade, é um combate em duas frentes: contra o pensamento especulativo e idealista (Croce) e a chamada ortodoxia vulgar e posi-tivista do marxismo.

8 GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História, p. 39, 3. ed., 1978, Rio de Ja-neiro: Civilização Brasileira.

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E, hoje, as categorias gramscianas são reconhecidas e estudadas, nos meios acadêmicos e políticos como instrumentos de análise da mo-dernização conservadora brasileira e suas complexas superestruturas.

Sua vida pelo modo, lugar e tempo de sua concretização, poderia ser designada como a de um homem derrotado. Na ignorância de uma época fez iluminar a extraordinária força moral e o rigor intelectual do homem que, sem se deixar abater, fez de suas derrotas, novas fontes de energia para recomeçar e avançar. Suportou o seu destino, com coragem e sobriedade intelectual, sem concessões ao vulgar e patético, conservando sempre o controle racional dos sentimentos.

Diante disso como resistir à tentação de falar sobre Gramsci e sua obra tão rica, fecunda, dando-lhe, ao mesmo tempo, o papel de herói, no mundo cheio de vilões teóricos? Referindo-se a Marx, Noberto Bob-bio dizia que para garantir um lugar entre os clássicos, um pensador deve obter reconhecimento nestas três qualidades: a) deve ser consi-derado como tal intérprete da época em que viveu que não se possa prescindir de sua obra para conhecer o “espírito do tempo”; b) deve ser sempre atual, no sentido de que cada geração sinta necessidade de relê-lo e, relendo-o, de dedicar-lhe uma nova interpretação; c) deve ter elaborado categorias gerais de compreensão histórica das quais não se possa prescindir para interpretar uma realidade mesmo distinta daquela a partir da qual derivou essas categorias e à qual as aplicou.9 Esta afirmação caberia, também para Gramsci?

Ninguém, hoje, duvida que deva ser considerado um clássico na história do pensamento.

Finalmente, nessa pequena homenagem, não poderia faltar um trecho de sua carta de 10 de maio de 1928, enviada para a mãe:

(...) Querida mamãe, gostaria muito de lhe abraçar bem apertado para que sentisse o quanto eu gosto de você e como gostaria de lhe consolar por esse desgosto que lhe dei, mas não podia agir de outro modo.A vida é assim, muito dura, e os filhos algumas vezes têm de dar grandes desgostos às suas mães, se querem conser-var a sua honra e a sua dignidade de homens.10

9 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política – A filosofia Política e as Lições dos Clás-sicos, p. 114. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.

10 FIORI, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci, p. 360, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979.

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XI. Resenhas

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Autores

Luiz Bernardo PericásEscritor e historiador, autor de Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba, entre outros.

Francisco AlambertProfessor de história social da arte e história contemporânea na USP.

Fernando MarquesJornalista e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília

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Luiz Bernardo Pericás

No apêndice da segunda edição de Sociologia do Materialismo, pu-blicada em 1959, Leôncio Basbaum afirmava que “a tarefa que se levanta para nós, marxis tas de hoje, consiste em libertar o

marxis mo dos dogmatismos, para que o atraso que ele apresenta em re-lação ao desenvol vimento histórico possa ser superado. Es sa tarefa soa: dialetizar o marxismo... A re visão do marxismo precisa ser executada diariamente, referindo-o aos fatos, aos novos conhecimentos científicos, às mu danças da realidade social. Talvez seja precisamente essa tarefa a herança mais importante de Marx. Precisa mos tentar alcançar para nós, mar xistas, o direito de criticar o marxis mo, especialmente o mar-xismo ho je em voga, sem sermos, por isso, excluídos ou expurgados”.

Esse trecho significativo de Bas baum (importante teórico, político marxista, militante do PCB) ilus tra bem a reação de alguns intelec-tuais de esquerda de nosso país às normas doutrinárias e esquematis-mos teóricos propugnados pelo marxismo ortodoxo oficial soviético, divulgados e copiados pelos dirigentes comunistas de outros paí ses, inclusive os brasileiros.

Entre aqueles que mais se destacaram na tentativa de romper com essa tradição ne fasta e se empenharam em “nacionalizar” o marxis-mo no Brasil (até mesmo, déca das antes), figura o exímio historiador paulista Caio Prado Júnior (1907/1990). É bom lembrar que gerações de militantes eram formadas pelos antigos “manuais” de economia

1 Publicado originariamente na revista semanal Cartacapital, edição de 21 de feverei-ro de 2007, p. 58 e 59)

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política da Academia de Ciências da União Soviética, importa dos dire-tamente de Moscou.

Textos pouco sofisticados, como os de Afanassiev ou Strumilin, eram lidos e dis cutidos em reuniões acaloradas: represen tavam, na prática. a versão oficial do “ver dadeiro” marxismo que o PCUS queria ex portar para o resto do mundo. Mas a im posição daqueles “funda-mentos” dogmá ticos e mecanicistas (que deveriam servir para todas as realidades, obrigando a en quadrar os processos históricos regionais, inclusive o brasileiro, dentro de seus mo delos pré-fabricados), teve como conse qüência, em última instância, a falta de uma avaliação correta do desenvolvimen to histórico nacional e derrotas sucessivas na luta política ao longo de várias décadas.

O autor de Evolução Política do Brasil (1933), Formação do Brasil Contemporâ neo (1942), História Econômica do Brasil (1945), Dialética do Conhecimento (1952) e Esboços dos Fundamentos da Teoria Eco-nômica (1957), ainda que membro do PCB, por seu lado, nunca se submeteu às normas rígidas impostas pelo stalinismo latente no par-tido. Junto de Daniel De León (o primeiro teórico marxista origi nal do Hemisfério Ocidental) e do jorna lista peruano José Carlos Mariátegui, Prado Júnior pode ser considerado, cer tamente, um dos mais impor-tantes e pro fundos teóricos marxistas de nosso con tinente. Outros, no Brasil e no resto das Américas, deram importantes contribui ções para o estudo das diferentes reali dades nacionais, mas poucos chegaram tão longe quanto ele.

Caio foi um homem complexo: mem bro do PCB, dirigente da ANL, fun dador da Revista Brasiliense e da Edi tora Brasiliense, publisher, fotógrafo amador, geógrafo, filósofo, deputa do estadual por São Paulo (eleito em 1947 e cassado em 1948), mem bro do Clube de Artistas Mo-dernos (CAM), ensaísta, articulista, pales trante, ganhador do Prêmio Juca Pa to, da União Brasileira de Escritores (1966), historiador de primeira. Mesmo sendo notoria mente um personagem multiface tado e de altíssimo nível intelectual, esse verdadeiro outsider também teve todas as portas do meio acadêmico fechadas para ele. Ainda hoje, é visto com restrição por alguns historiadores “profissionais”...

Apesar dos críticos, Prado Júnior foi um dos autores que “fizeram a cabeça” de vários estudantes e ativistas de esquerda “heterodoxos”, prin-cipalmente a partir da década de 1960, estimulando, ao mesmo tempo, por meio de seus livros, intelectuais importantes como Jacob Gorender, Nelson Werneck Sodré, Fernando Novais, João José Reis e tantos outros, a “dialo gar”, direta ou indiretamente, com sua obra, e fazer avançar os estudos sobre o processo de formação histórica do Brasil.

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Ao contrário de politiqueiros profis sionais “oportunistas” (que sempre prio rizaram a disputa por cargos e posições de destaque nas cúpulas partidárias), Caio, filho de uma tradicional e aristo crática fa-mília paulista, preferiu atuar de maneira distinta e construiu, gra-dualmente, o monumento que foi sua vasta obra bibliográfica. Mas não sem sofrer críticas intensas, tanto da direita (que o considerava um traidor de clas se), como da própria esquerda, que o via, muitas vezes, como um herege. Flexível, eclético e aberto a diferentes idéias, CPJ bebia de diversas fontes. É possível en contrar distintas influên-cias em seus li vros. Talvez por isso mesmo sem pre houvesse aqueles que se recusa ram a considerá-la marxista...

Ele integrava um grupo de homens notáveis, de diversos matizes ideológicos, que pensavam e acreditavam em nosso país (homens de uma estirpe ética, e .moral cada vez mais rara no Brasil), como Cel-so Furtado, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Antônio Houaiss, Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer, entre tantos outros. Sua contribuição foi verdadeiramente estimulante.

Viajante inveterado, Pra do Júnior conheceu di versos países (in-clusive, vários do mundo socialista) e os recantos mais profundos do Brasil. Ia pessoalmente, em seu velho Fusca, para o in terior do país, para, o sertão, para os vilarejos em cada canto da na ção: fotografava, conversava com o po vo local, levantava documentos, anali sava dados estatísticos e depois dedi cava horas e horas por dia a colocar no pa-pel os resultados de suas pesquisas. Não era apenas um historiador de ga binete. Mesmo assim, entre os mais proeminentes “intérpretes” do Brasil, como Gilberto Freyre ou Sérgio Buar que de Holanda, Caio foi, durante bastante tempo, o que teve menos visibilidade dentro das universidades.

As comemorações dos cem anos de seu nascimento podem ser um bom motivo para trazer de volta o debate em torno desse grande teóri-co. E, principalmente, têm potencial para criar um interesse renovado em sua obra no público jovem. Diversas exposições, palestras, con-ferências e a publicação de livros sobre CPJ estão pro gramadas para este ano.

O destaque fica para Uma Trajetória Intelectual: Caio Prado Júnior, de Paulo Teixeira Iumatti (a ser lançada pela Editora Brasiliense), uma interessante biografia intelectual do autor de A Revolução Brasileira. Originalmente parte de uma tese de doutorado defendida no Departa-mento de História da USP em 2001, essa obra deixa de lado qualquer viés hagio gráfico ou laudatório, e percorre os cami nhos trilhados por Caio em todas as suas diferentes formas de atuação.

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Assim, é possível acompanhar o per curso de Prado Júnior da déca-da de 1920 ao fim dos anos 1970, e ver como o am biente político-cul-tural interno e externo, assim como suas leituras, contribuiram para a produção científica; entender a atuação como militante e teórico mar-xista; e, finalmente, compreender também o lado pessoal e familiar. Dessa for ma, Iumatti (que já havia sido o responsá vel pela publicação, anos atrás, dos diários políticos de CPJ pela mesma. editora); tenta apresentar o personagem da ma neira mais completa possível, entrela-çando a dimensão humana com a política e a intelectual. Para isso, o autor re correu a entrevistas, a arquivos de fami liares e de universida-des, assim como a cartas e livros do próprio Prado Júnior.

No deserto intelectual em que se encon tra o Brasil, país que pare-ce patinar no mesmo lugar, sem grandes ambições nem perspectivas nítidas de crescimento econômico ou justiça social, o centenário de Caio Prado Júnior pode ser uma boa provocação e um excelente mo-tivo para repensar e reavaliar nossas prioridades, nos sa visão de nós mesmos e nosso futuro como nação. Escrito numa linguagem leve, direta e sem academicismos, o livro de Iu matti certamente ajudará nessa tarefa.

Sobre a obra: Uma trajetória intelectual: Caio Prado Junior, de Paulo Teixeira Inmatti, São Paulo: Brasiliense, 280 p., 2007.

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Presente na encruzilhada

Presente na encruzilhada

Francisco Alambert

Desde a crise da invasão da reitoria da USP, o movimento es-tudantil voltou, até segunda ordem, ao centro do problema brasileiro. Depois das crises, do neoliberalismo do governo

Fernando Henrique Cardoso/e da mudança do PT rumo ao centro político e à direita econômica, isso era inevitável.

Pensar o papel dos estudantes e os impasses na educação tra-zidos pelo fim de um projeto nacional orgânico é o assunto de duas coletâneas lançadas à beira da crise atual. Uma delas, Movimento Estudantil Brasileiro e a Educação Superior, trata sobretudo do pas-sado do movimento, enquanto que a outra, Política Pública de Edu-cação no Brasil, trata dos impasses do presente.

Em ambos os casos, a maioria dos autores vem do Norte e do Nordeste do Brasil. Movimento Estudantil Brasileiro traz diversos pesquisadores e intelectuais que analisam e dão depoimentos sobre o movimento a partir dos anos 1950.

Nos diversos textos, muitos temas são tratados, sobretudo a par-tir do forte movimento político pernambucano, no contexto do gover-no de Miguel Arraes e da militância de Paulo Freire.

Aprendemos que, desde pelo menos 1958 até 1968, as questões centrais da busca de um ensino superior público esbarravam em problemas de toda ordem: a questão da autonomia, a insuficiência de recursos, a busca por aumento de vagas, a necessidade de criar, em âmbito federal, uma universidade orgânica partindo de uma base precária – as escolas superiores isoladas.

O novo movimento estudantil nasceu de uma necessária tomada de posição diante dessas questões. No final da década de 50, como mostra o texto de Maria de Lourdes Favero, o debate em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional colocou os intelectuais e os estudantes à frente da defesa da escola pública, sobretudo no contexto das “reformas de base” que antecederam o golpe militar.

Como explica Lauro Morhy, a questão hoje é que, depois do pe-ríodo militar, esse debate não voltou. No seu lugar veio a crise eco-

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nômica, em torno da qual os debates sobre a questão encontravam seu limite.

Entre os depoimentos recolhidos e editados, destacam-se os de Luiz Costa Lima e Jurandir Freire Costa, apontando a influência das propostas de Paulo Freire em suas vidas estudantis. Ambos notam que a militância recifense se dava intelectualmente contra as idéias e a influência de Gilberto Freyre – a quem Costa Lima acusa de o haver delatado como “marxista”, coisa que o levou a sua primeira prisão pela ditadura.

Entretanto Freire Costa, que estudava medicina, afirma que, mais ou menos, todos se inspiravam nas idéias marxistas.

O ensaio Análise do Discurso do Novo Movimento Estudantil tenta trazer as discussões para o presente. Escrito por três estudantes, analisa o “discurso” de uma chapa estudantil, buscando entender o que é o “jovem” estudante atual.

Sua conclusão, após volteios um tanto confusos, é que o estu-dantado de hoje “une” parte do ideário da esquerda dos anos 60 e 70 com reivindicações de “atuações mais individualizadas”. Diante de certos procedimentos dos estudantes que ocuparam a reitoria da USP, defendendo a autonomia universitária com as armas da orga-nização coletiva, sem que partidos políticos tivessem a hegemonia no processo, essa conclusão pode ser problematizada. Política Pública traz o problema para o centro da crise aberta pelo neoliberalismo da última década e seus impasses estruturais.

Em diferentes campos do saber educacional (desde as dificul-dades de gestão até os impactos do neoliberalismo no ensino de educação física), os textos nos mostram as ressignificações ditadas pela lógica neoliberal e sua estratégia de privatização do conheci-mento e de produção da educação (e dos alunos) como mercadoria. Embora boa parte dos artigos se preocupe em apresentar os proble-mas dessa situação, não se furtam também a procurar alternativas, na busca de uma nova significação para a idéia de ensino público, constantemente dinamitada pelos governos e que, parece, só está sendo defendida na prática pelos estudantes, custe o que custar.

Sobre as obras: Movimento Estudantil Brasileiro e a Educação Superior, Michel Zaidan Filho e Otávio Luiz Machado (org.), Editora Universitária UFPE, 260 p.

Política Pública de Educação no Brasil, Antônio Cabral Neto, Ilma Vieira do Nascimento e Rosângela Novaes Lima (org.), Editora Sulina, Porto Alegre, 350 p.

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Síntese de ritmos

Síntese de ritmos

Fernando Marques

Há mais semelhanças entre o Brasil e os Estados Unidos do que em geral se supõe. Por exemplo: o samba e o jazz têm afi-nidades históricas. De saída, ambos os estilos tomam forma

em cenários urbanos. O samba nasce no coração do Rio de Janeiro, nos bairros onde se concentram os baianos vindos do Recôncavo, nas décadas seguintes à Abolição. Nos Estados Unidos, o jazz surge na região boêmia de Nova Orleans, extremo Sul do país.

Ao longe, podem-se ver as raízes rurais dessas populações, as do cacau no Brasil, as do algodão nos EUA. Ressalta a herança africana, aqui ou lá, com os ritmos que entortam os desenhos mais lineares da métrica européia, enriquecendo-a. Samba e jazz são gêneros de síntese.

Veja-se ainda que Rio de Janeiro e Nova Orleans, por serem cida-des portuárias, favorecem o trânsito de pessoas e produtos que ani-ma a vida noturna, estimulando a oferta de cultura e entretenimento. Por fim, samba e jazz nascem com o século 20 e emplacam, ambos, seu primeiro registro em disco no mesmo ano de 1917. É pouco?

Muito. No entanto, faz-se necessário o zelo inteligente de um grande estudioso desses dois estilos musicais para reuni-los num único livro, caso de Samba, jazz e outras notas, coletânea de artigos do crítico e historiador carioca Lúcio Rangel (1914-1979). Organiza-do pelo jornalista Sérgio Augusto, que também responde por amplo e ótimo prefácio, o livro ganha em ser lido ao lado da Coleção Revista da Música Popular, outro lançamento recente, que reproduz os 14 números da revista que o mesmo Lúcio Rangel editou, à frente de co-laboradores ilustres, nos anos 1950. De fato, estamos redescobrindo Lúcio que, além de cronista musical, foi um sujeito singular, bem-humorado, sarcástico, idiossincrático.

É paradoxal que o jornalista, freqüentador de inúmeros veículos (do Jornal de Letras ao Correio da Manhã, de A Cigarra a Senhor), tenha deixado um único livro. O volume se chama Sambistas e cho-rões e é de 1962; acha-se (“acha-se” é força de expressão) esgotado há tempos. Também por isso, o contato com as pesquisas rigorosas

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e o estilo transparente do autor, propiciado pela coletânea recém-lançada, revela-se oportuno. Os artistas que destacam sua intran-sigência purista (em ambos os gêneros), seu amor ao detalhe soam como lições a serem meditadas pelo apressado jornalismo nosso de cada dia.

Para tentar descrever o método crítico de Lúcio Rangel, digamos que ele costumava analisar a obra e a trajetória dos artistas relacionando-as ao desenvolvimento do gênero que esses artistas ajudavam a criar, ou de que eram expoentes. Lúcio percebe, com razão, que a evolução dos estilos é duplamente motivada: desdobra-se conforme razões históri-cas, mas também decorre, claro, de imponderáveis méritos individuais. A noção materialista, em princípio certeira, de que a história é que faz os indivíduos, e não o contrário, desmente-se em parte pela ob-servação do real, no setor ultra-sensível da música. Ou seja: a histó-ria dirige as pessoas; mas os fatos históricos dependem também de decisões particulares, de acasos, de encontros e desencontros im-previstos. E dependem um bocado das parcerias, previsíveis ou não. Nesse sentido, exemplo tirado da primeira seção do livro, dedicada ao samba, envolve acaso que não foi bem acaso: o encontro entre Sinhô e Mário Reis, a que Lúcio atribui enorme importância.

Antes de contar o episódio, o crítico lembrava que a técnica e os tre-jeitos da ópera, sobretudo italiana, haviam influído sobre o canto dos artistas populares brasileiros. Estes procuravam transpor a estética da grande voz – que implica o grande personagem, o grande drama – para a interpretação de gêneros como o maxixe, música buliçosa, sensual, dirigida mais ao corpo do que à cabeça. Não podia dar certo. Por isso, Rangel bendiz o dia em que Mário Reis, jovem grã-fino que gostava de cantar, procurou Sinhô, para ter aulas de violão com o compositor famoso. Escreve Lúcio, relatando o encontro: “O jovem declarou admirar extraordinariamente os sambas de Sinhô. Só co-nhecia alguns, disse. E depois de alguma relutância cantou, a pedido do mestre, que o acompanhava ao violão”, um dos sucessos da hora. A música era “Que vale a nota sem o carinho da mulher?” e, quando Mário “acabou de cantar o samba então em grande voga, Sinhô esta-va deslumbrado”. O compositor descobria “o intérprete ideal para os seus sambas”. O rapaz estrearia em disco na semana seguinte, com duas músicas de Sinhô. O ano era o de 1928.

As qualidades de Mário Reis têm parte com a espontaneidade, sem dispensar perícia e precisão: o intérprete, ao pronunciar “admi-ravelmente as palavras do samba, com extraordinária noção de ritmo e uma personalidade marcante, deu lição de mestre aos cantores da

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época, todos mais ou menos influenciados pelos tenores italianos”. Para Lúcio, o gênero achava a sua voz coloquial.

“Nenhum cantor popular brasileiro deixou, desde então, de so-frer, direta ou indiretamente, a influência de Mário Reis”, afirma o crítico. Mesmo Chico Alves, que tinha imenso cartaz e era de fato grande cantor, “aprimorou sua dicção e refreou suas tendências para a ópera”. O próprio Lúcio viria a promover outro encontro essencial na história da música popular: o de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, parceiros pela primeira vez nas canções da peça Orfeu da Conceição, escrita pelo poeta em meados dos anos 50.

Lúcio Rangel era também apaixonado por música instrumental. Não tocava, mas, depois de tomar uns goles, encantava e divertia os amigos com seu trombone imaginário (tinha boa voz e talvez fizesse carreira como cantor, se o pai não brecasse as suas pretensões artísticas). De fato, as matérias destinam bom espaço ao choro e ao jazz instrumentais. Ao falar da figura de Pixinguinha, Rangel descreve com certa minúcia a situação familiar do jovem, esboçando o quadro social onde o ar-tista evolui. O menino era filho de violonista, tendo sido incentivado pelo pai, que lhe confiou uma das duas flautas que havia em casa; aos 15 anos, fazia sua estréia profissional, numa choperia do bairro da Lapa, no Rio.

Pixinguinha cresceu em sobrado amplo, movimentado e musi-cal, residência nada modesta, mas dotada de “oito quartos e quatro salas”. O lugar chamava-se “Pensão Viana”, pela hospitalidade que dispensava aos amigos (não custa reparar que, se o samba nasce nessas casas amplas e festivas, ele não nasce da pobreza, mas da fartura). O perfil do grande artista se encerra pela resposta encabu-lada, quando lhe perguntaram se preferia tocar, compor ou escrever arranjos: “Gosto mesmo é de fazer minha musiquinha”, disse o líder dos Oito Batutas.

Outra grande admiração do crítico dedicava-se ao compositor Noel Rosa, que o menino Lúcio chegou a ver e ouvir em espetáculos na década de 30. Noel morreu há exatos 70 anos (que se completaram a 4 de maio), e uma parcela de sua obra cai em domínio público a partir do ano que vem – é o caso das canções que fez sozinho ou com parceiros também desaparecidos há mais de sete décadas (segundo lembra o professor Wellington Diniz, da Escola de Música).

O crítico se enganou ao atribuir ao compositor a autoria “de 180 a 190 peças”, refutando pesquisador que chegara a relacionar 300 canções feitas por Noel, só ou com parceiros. Lúcio imaginava que o exagero se devesse, em parte, ao fato de várias músicas terem rece-

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bido dois títulos (artifício de que Noel se valia, às vezes, para atender à demanda por canções inéditas). Os biógrafos João Máximo e Carlos Didier afinal recensearam cerca de 250 músicas assinadas por Noel, só ou acompanhado.

Seja como for, é interessante ler a lista, preparada por Lúcio, das canções que Noel fez sem parceiros (o mais importante deles foi Va-dico, com quem escreveu os definitivos Feitio de oração e Feitiço da Vila). Sozinho, o garoto de Vila Isabel compôs Com que roupa?, João Ninguém, Gago apaixonado, Não tem tradução e Último desejo, entre outras, transitando do humor de Com que roupa? à ironia triste desta última.

Importante ainda, além dos dados factuais diligentemente rela-cionados pelo crítico, é a visão que dá de Noel, poeta e músico sofisti-cado, mas intuitivo: “Houve quem visse em Noel Rosa a influência da moderna poesia que a Semana de Arte de São Paulo começa a espa-lhar por todo o Brasil. Não acredito nisso, Noel não era um livresco, certamente ignorava os versos dos dois andrades, de Bandeira e de Guilherme de Almeida”. Pouco adiante, define: “Sua poesia buscava-a na vida cotidiana, nas situações criadas pelos seus íntimos e por ele mesmo, nas ruas, nos cafés populares, em contato com o povo. Nem por isso deixou de ser grande”.

Menos extensa que a primeira, a segunda seção do livro trata de música norte-americana, com ênfase na figura do trompetista, cantor e líder de banda Louis Armstrong, representante do estilo tradicio-nal. A “orquestra ideal” de jazz soma “um trompete, um trombone e uma clarineta, com o apoio da seção rítmica, composta de piano, gui-tarra, contrabaixo (ou tuba) e bateria”. A improvisação é a tônica dos grupos desse gênero, “sem arranjos preestabelecidos ou partituras”, tudo correndo por conta do “talento inventivo dos executantes”.

Lúcio descrê das “grandes orquestras pretendendo fazer mú-sica de jazz” e, mais ainda, abomina o be-bop de Charlie Parker e Dizzy Gillespie (embora admire Parker), tendência que não se cansa de ironizar, presumivelmente pela atitude cerebral que o bop vem impor a um estilo espontâneo. O oportunismo de músi-cos ou empresários brancos que se apropriam do trabalho de ar-tistas negros recebe, mais que a ironia, o desprezo de Lúcio. O leitor não especialmente interessado nos detalhes da história da música popular, no Brasil e nos EUA, talvez se canse diante de al-guns textos, pródigos em dados de catálogo – Lúcio era um obsessivo da informação, no que foi beneficiado pelo amor a seus assuntos e pela boa memória, apoiada em biblioteca e discoteca fartas. Esse

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traço não cancela a qualidade e mesmo a delícia dos perfis que faz de Pixinguinha, Noel ou Armstrong, para citar alguns dos melhores textos.

É engraçado, afinal de contas, que sujeito intelectualmente tão organizado, metódico e produtivo fosse também um boêmio, piadista e pândego. Mostrava-se capaz de tiradas agudas, devidas à inteligên-cia ágil ou ao efeito do uísque, ou a ambos (nem sempre contraditó-rios), como se percebe nos episódios seguintes, colhidos no prefácio.

O primeiro deles: Lúcio e um amigo sentam-se à mesa de um botequim, e o companheiro sugere que peçam algo para beliscar. Lúcio, de cara limpa, retruca: “Você tem razão. Mas primeiro va-mos beber alguma coisa, porque eu não como de estômago vazio”. Outra tirada deve ter sido dita em pleno porre e é nonsense puro, genuíno, escocês. A seleção brasileira de futebol acabara de vencer o campeonato mundial na Suécia, em 1958, e havia patrícios amon-toados num bar em Ipanema (como por todo o Rio). O clima era de alegria, naturalmente, mas algo atrapalhava a festa: as moscas inu-meráveis que se multiplicavam em torno dos copos.

Um patriota impaciente dobrou o jornal do dia e saiu caçando os insetos, esmagando alguns deles. Lúcio, tomado de bíblica piedade, subiu na cadeira e, com os olhos fixos no assassino de insetos, gri-tou: “Deixe as mosquinhas em paz! Elas também são campeãs do mundo!”. Além de boêmio, Lúcio Rangel foi um de nossos melhores e mais férteis cronistas de música popular.

Sobre a obra: Samba, Jazz e outras notas – Coletânea de artigos do crí-tico e historiador Lúcio Rangel. Organização e prefácio de Sérgio Augusto. Agir. 240 p.

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