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Informativo da Rare Brasil n° 5 / junho 2018
Rare avança rumo ao lançamento das campanhas de seu segundo ciclo de atuação no Brasil
Crianças brincando na Resex Mãe Grande de Curuça, Pará. Crédito: Enrico Marone
• História de sucesso do Ciclo 1: protagonismo feminino nos manguezais de Maragogipe (BA)...................pág. 5
• Entrevista com Ricardo Soavinski, ex-presidente do ICMBio ..................................................................... pág. 10
• Fique por dentro: oportunidades de trabalho, conselho consultivo, proposta para edital do Fundo Amazônia, parceria pela proteção dos mangues no norte do país.................................................. pág. 17
• Entrevistas com Coordenadores de Campanha........................................................................................ pág. 19
• Homenagem ao amigo e irmão Waldemar Vergara.................................................................................. pág. 25
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Capacitação técnica e avaliação socioambiental compõem
esforços da Rare para o fomento do manejo pesqueiro
sustentável e participativo em áreas marinhas protegidas
nos Estados do Pará e Pernambuco
O segundo ciclo de trabalho da Rare no Brasil teve início em março do ano passado, quando foi realizada uma reunião de três dias em Belém, na qual os principais parceiros de sua agenda para o período 2017-2019 puderam discutir e alinhar informações. Nesse novo ciclo, com duração de dois anos, a Rare e sua rede de apoiadores estão empreendendo esforços para a promoção da gestão sustentável da pesca artesanal em áreas marinhas protegidas nos Estados do Pará e Pernambuco, por meio da implementação do programa Pesca para Sempre. A iniciativa visa a proteção dos recursos naturais costeiro-marinhos e a melhoria de vida de famílias que têm no pescado a base para sua sobrevivência, atuando em um total de 10 unidades de conservação que incluem Reservas Extrativistas (Resex) Marinhas e Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Dessas áreas, cinco estão situadas no litoral paraense, duas no litoral pernambucano, duas áreas de replicação no Maranhão e uma no Piauí.
As áreas-foco selecionadas pela Rare para sua atuação nesse biênio são as Resex Caeté-Taperaçu, Gurupi-Piriá, Soure, Mãe Grande de Curuçá e São João da Ponta que integram, junto com outras sete áreas, o conjunto intitulado Salgado Paraense, e a APA Estadual de Guadalupe e a APA Federal Costa dos Corais, sendo esta última a terceira maior unidade de conservação (UC) marinha do país, atrás apenas das recém-criadas APA São Pedro e São Paulo e APA Trindade e Martim Vaz. Juntas, as sete UCs deste ciclo cobrem uma área de cerca de 630 mil hectares, dos quais parte dos habitats críticos como zonas de desova e berçários estão na mira da Rare para o fomento do manejo pesqueiro sustentável e participativo. Líderes locais, selecionados pela Rare em cada área, estão à frente
desse trabalho como coordenadores de campanha e vêm sendo treinados para executar as ações na ponta.
Diferentemente da abordagem utilizada pela Rare no primeiro ciclo de trabalho no país – quando atuou em áreas litorâneas distribuídas por cinco Estados com o objetivo de avaliar a potencialidade de sua metodologia em diferentes realidades regionais –, neste segundo momento, a Rare decidiu concentrar a maior parte dos seus esforços em um mesmo território. “O intuito agora é impulsionar o novo modelo de gestão e ganhar escala, demonstrando resultados efetivos no contexto regional e na dimensão sistêmica”, informa Luís Lima, diretor executivo da Rare no Brasil.
Por que o Pará? – O nome do segundo maior Estado brasileiro e o maior da Amazônia significa, em tupi, ‘mar’. Com 200 mil hectares de manguezais exuberantes, o litoral do Pará abriga uma das maiores áreas contínuas desse ecossistema no mundo, que sequestra quatro vezes mais carbono do que qualquer outra floresta tropical. O Estado tem a maior produção oriunda da pesca artesanal no país e ocupa a segunda posição nacional em produção de pescado. O Pará detém a maior quantidade de pescadores artesanais do país – suas Reservas Extrativistas têm mais de 100 mil usuários – e possui uma estratégia de desenvolvimento estadual até 2030 (Programa Pará 2030), que tem a pesca como prioridade. A Rare conta com uma aliança estratégica com o governo do Estado que tem sido fundamental para a construção do programa estadual de Agentes Comunitários da Pesca, que visa capacitar moradores e lideranças locais para atuarem junto aos pescadores
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promovendo a construção de processos participativos de gestão da pesca, o uso sustentável dos recursos pesqueiros e a melhoria da qualidade de vida das comunidades. Por que Pernambuco? – A APA Costa dos Corais, juntamente com a APA de Guadalupe, compõe uma das mais importantes áreas de recifes de coral do país, considerada área prioritária para o governo brasileiro. Ali estão uma das poucas áreas sem pesca em recife de coral no Brasil com série temporal de dados longa e robusta. Além disso, a região é marcada por forte governança e trabalho comunitário e abriga o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Marinha do Nordeste (Cepene/ICMBio). O Estado conta com a presença de respeitados cientistas locais atuantes em áreas marinhas protegidas e pesca há mais de 20 anos, que podem ajudar a adaptar e disseminar o modelo de gestão da pesca do camarão para toda a costa, contribuindo para chamar a atenção nacional e para a obtenção do ganho de escala no programa.
Treinamento, espécies-alvo e oficinas - Até o momento já foram realizados três treinamentos dirigidos aos Coordenadores de Campanha, os quais abordaram detalhes sobre o escopo do Programa Pesca para Sempre e a implementação das Campanhas por Orgulho. “A campanha é uma das ferramentas principais utilizadas pelo programa para atingir seus objetivos nas comunidades. Ela combina elementos de marketing social e ciência da conservação para a resolução de problemas socioambientais locais”, esclarece Enrico Marone, gerente da Rare. Em cada área, a campanha identifica as espécies-alvo da ação e, neste novo ciclo, foram selecionadas a tainha, o caranguejo-uçá e espécies de camarão (regionais - amazônico, piticaia, branco e piré - e rosa, branco e sete-barbas). Natali Piccolo, gerente da Rare, conta que a ideia é fazer o monitoramento e o manejo dessas espécies, implementando medidas reguladoras que estabelecem o tamanho mínimo, o tipo de artefato adequado para a pescaria de cada espécie, dentre outras normas. Evitando a sobrepesca, a meta é estabilizar ou incrementar as populações de espécies-alvo a longo prazo.
Coordenadores de Campanha e equipe da Rare durante 2º treinamento, realizado em Belém, Pará.
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Durante os treinamentos, os coordenadores também definiram as metas das campanhas em suas respectivas áreas e aprenderam sobre como conduzir pesquisas quantitativas e qualitativas. A Rare organizou ainda oficinas de treinamento financeiro, nas quais 56 representantes de 10
organizações locais parceiras tiveram informações sobre técnicas, métodos e processos para melhorar suas operações e a gerência financeira, bem como acerca das obrigações legais das instituições.
Em fevereiro deste ano, foram realizadas as oficinas de remoção de barreiras nas sete áreas. No momento, a Rare está sistematizando e analisando as informações geradas para que, durante o quarto treinamento agendado para junho, possa ser concluído o planejamento das campanhas, cujo lançamento está previsto para julho e agosto. A Rare também acaba de fazer uma avaliação da situação socioambiental em todas as áreas. “Os resultados que obtivemos nessas análises irão balizar atividades necessárias para que as campanhas possam criar as devidas condições e os incentivos para a adoção de práticas mais sustentáveis pelos pescadores”, informa Marone.
Treinamento financeiro realizado em Bragança, Pará.
Facilitação gráfica fruto da Oficina de Remoção de Barreiras que ocorreu na APA Costa dos Corais, com pescadores, pesquisadores, ICMBio e lideranças comunitárias.
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História de sucesso - Ciclo 01
Protagonismo feminino nos manguezais de
Maragogipe (BA) resgata o orgulho do cultivo de
ostras na região
Elizabete Soares, como muitas das marisqueiras
de Maragogipe, no Recôncavo Baiano, aprendeu
cedo, com sua mãe, a coletar ostras no
manguezal. Aos 35 anos, ela ainda realiza a
mesma atividade. Todas as manhãs, de segunda a
sexta-feira, Bete, como é conhecida, vai para o
manguezal sozinha ou acompanhada de um
pequeno grupo de marisqueiras. Ela cobre os pés
com botas feitas a partir de pedaços de calças
jeans usadas e atravessa a lama na escuridão, à
procura de ostras. Embora os métodos
tradicionais de coleta não tenham mudado, a
saúde e a prevalência dos manguezais brancos,
pretos e vermelhos de Maragogipe diminuíram
substancialmente desde que Bete era criança,
assim como a quantidade de ostras.
Bete lembra que sua mãe costumava coletar cerca
de três quilos de ostras. "Hoje, há marés nas quais
eu não consigo coletar nem um quilo, e as ostras
são muito menores do que no tempo dela",
afirma. As marisqueiras, mulheres catadoras de
mariscos responsáveis pela maior parte da coleta
de ostras nativas em Maragogipe, vinculam a
queda das unidades populacionais de ostra ao
desenvolvimento de atividades impactantes e à
extração excessiva de recursos na área.
Seus problemas, entretanto, não param por aí:
durante anos, as mulheres também enfrentaram
condições de trabalho intensas e restrição de
acesso aos mercados locais.
No final de 2014, Daniel
Andrade, um
maragogipano que
trabalha na defesa
dos manguezais da
região desde seus 17
anos, tornou-se
Coordenador de
Campanha da Rare, estabelecendo uma parceria
bem-sucedida que ajudou as marisqueiras a
mudar seu status quo. Daniel implementou a
Campanha por Orgulho nas comunidades de
Capanema e Baixão do Guaí, situadas no
município de Maragogipe, para promover o
manejo sustentável de ostras e lambretas, além
da conservação dos manguezais que abrigam
estas espécies. Ele anteviu nas marisqueiras um
papel-chave para liderar a adoção da gestão Elizabete Soares, marisqueira de Maragogipe, BA. Crédito: Enrico Marone
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sustentável local, encorajando-as a se apropriar
de suas múltiplas identidades como coletoras de
mariscos, mulheres e quilombolas - e a canalizar
esses perfis de forma unificada. Três anos depois,
elas emergiram como lideranças locais, com um
forte sentimento de orgulho em relação à sua
profissão e conseguiram equilibrar a produção de
ostras com a conservação dos manguezais.
Maragogipe é um dos três municípios que
compõem a Reserva Extrativista (Resex) Marinha
Baía de Iguape, localizada no litoral da Bahia,
onde os estuários dos rios Guaí e Paraguaçu se
cruzam. Ao todo, 19 comunidades maragogipanas
obtêm seu sustento no manguezal, tendo a pesca
como modo de vida e fonte de alimento e a ostra
como o fruto do mar mais valioso da região. A
coleta dos mariscos de Capanema e Baixão do
Guaí é realizada por um grupo de cerca de 30
marisqueiras, que trabalham arduamente para
atender a alta demanda de ostras advinda do
consumo crescente do mercado baiano.
Marisqueira no mangue de Maragogipe.
Vânia Pereira, 28 anos, vem de uma família de
pescadores e catadores de mariscos de
Capanema. Ela coleta mariscos com a mãe e as
irmãs e, juntas, aprenderam com as gerações
passadas a realizar o extrativismo sem prejudicar
o meio ambiente marinho, escolhendo as ostras
que amadureceram o suficiente e cuidando para
não coletarem excessivamente. "Eu posso
escolher o tamanho e a quantidade de mariscos
que eu quero ou preciso para sobreviver, e deixar
o restante na natureza para que outras pessoas
também possam coletá-los", diz Vânia. Nem
todos na área compartilham desta filosofia,
sobretudo as pessoas de fora da comunidade que
vêm para pescar ou coletar mariscos e deixam um
rastro de degradação ambiental. Vânia já viu
pescadores entrarem com dinamite, destruindo
partes do ecossistema para conseguir uma
captura rápida. "Eles entram, colocam a bomba,
pegam os peixes que morrem no local e vão
embora", relata.
Grandes empresas localizadas no entorno da
Resex Baía do Iguape também comprometeram
os manguezais e outros ecossistemas marinhos
dos quais os maragogipanos dependem. Os
moradores locais citam exemplos desses
empreendimentos, incluindo o Estaleiro
Paraguaçu, da Enseada Indústria Naval, e a Usina
Hidrelétrica Pedra do Cavalo. Segundo Daniel, o
estaleiro destruiu 10 hectares de manguezais,
alterou o movimento das marés e a qualidade da
água, impactando a biota marinha, afetando os
crustáceos locais com a dragagem e acelerando a
erosão das margens dos rios. E, ainda de acordo
com Daniel, a usina hidrelétrica modificou a
hidrodinâmica do rio Paraguaçu, aumentando a
salinidade da água. Como resultado, diversas
espécies de peixes e mariscos desapareceram e a
usina continua a operar sem permissão das
agências ambientais brasileiras. Bete Soares tem
certeza de que existe uma conexão entre as
atividades das empresas e a deterioração dos
ecossistemas locais. "Eles apenas dizem que o
número de pescadores cresceu, mas depois que
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as empresas se estabeleceram aqui, os peixes e os
mariscos desapareceram", conta. "Estou na maré
todos os dias, eu vejo o que está acontecendo".
A presença do estaleiro, da usina hidrelétrica, da
pesca destrutiva e de outras atividades na baía
tornou irreconhecível algumas áreas do
manguezal. E, mesmo que essas forças
antagônicas venham a desaparecer, as
marisqueiras ainda enfrentarão uma série de
riscos ocupacionais. O trabalho de coleta de
ostras nativas traz problemas para a saúde dessas
mulheres. Expostas aos raios UV, elas atravessam
a água poluída pelo saneamento básico
impróprio, pela água de lastro dos navios e por
pesticidas utilizados em fazendas de eucalipto
próximas, o que pode causar lesões na pele.
Várias partes do corpo ficam marcadas por cortes
feitos pelas conchas que coletam e pelo lixo
deixado ao redor dos manguezais. Além disso,
convivem com dores diárias nas pernas, costas,
na cabeça e nos joelhos por terem que agachar
nos manguezais e atravessar trechos com raízes,
lama e água. De posse das ostras e dos mariscos
coletados, as marisqueiras geralmente têm que
repassá-los aos atravessadores, recebendo pouco
por seu árduo trabalho. "O atravessador chega na
nossa porta para pegar as ostras", informou Bete
em uma conversa com Daniel Andrade pouco
antes do início da campanha. "É muito trabalho, o
negociante compra na minha mão por 15 reais,
mas certamente vende por 20 a 25 reais".
Autonomia, identidade e liderança
Em dezembro de 2014, como membro da
Fundação Vovó do Mangue - instituição parceira
da Rare que ele ajudou a fundar em 1997 junto
com um grupo de amigos -, Daniel Andrade se
tornou o coordenador da Campanha por Orgulho,
aproveitando a metodologia de marketing social
da Rare para promover a missão da Fundação de
proteger os manguezais. Seu objetivo era
despertar nas marisqueiras uma liderança
comunitária que poderia inspirar a população de
Capanema e Baixão do Guaí a adotar o manejo
sustentável das ostras e a promover mudanças
sociais e profissionais positivas em suas próprias
vidas.
As marisqueiras já coletavam as ostras nativas há
muito tempo e a campanha buscou ajudá-las a
melhorar a prática por meio de medidas como o
cumprimento do Acordo de Gestão da Resex, que
estipula que os coletores de marisco devem evitar
coletar e vender ostras menores que cinco
centímetros para proteger o ciclo de reprodução
da espécie. Ao mesmo tempo, Daniel olhou para
além do escopo usual da produção de ostra em
Capanema e Baixão do Guaí e incentivou o cultivo
de ostra nas duas comunidades. A adoção do
cultivo de forma sustentável poderia contribuir
para evitar a sobre-exploração de ostras nativas.
Ao longo da implementação das atividades, Daniel
se concentrou em dar autonomia às marisqueiras,
criando uma campanha "com elas" e não apenas
"para elas". Ele tinha consciência de todas as
facetas da identidade marisqueira, incluindo sua
ancestralidade quilombola. "É uma característica
das comunidades quilombolas serem muito
fechadas e desconfiadas de quem vem de fora,
porque é muito comum ver pessoas e projetos que
prometem mil coisas, usam as comunidades e
depois vão embora", diz Daniel. "Então, a
campanha começou literalmente batendo nas
portas dos líderes comunitários, realizando
encontros e comparecendo às reuniões dos
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Conselhos da Resex e Quilombola. Havia todo um
processo de construção de confiança e,
gradualmente, eles perceberam que era uma
proposta diferente". O slogan da campanha
trouxe à tona as raízes das marisqueiras
quilombolas: "Marisqueira com orgulho,
quilombola para sempre”.
As marisqueiras desenvolveram toda a
campanha, do início ao fim, com o apoio de
Daniel e "nada foi escrito ou colocado em prática
sem suas opiniões e decisões", comenta ele.
Dentre as principais ações, destacam-se um
curso de nove meses ministrado pela Secretaria
de Políticas da Mulher do Estado da Bahia, no
qual todas as mulheres de ambas as
comunidades participaram. Elas também
puderam aprender sobre o cultivo de ostra em
viagens às comunidades de Kaonge e Dendê,
onde o cultivo já ocorre há mais de 15 anos. A
campanha contemplou ainda visitas técnicas de
representantes do Bahia Pesca (agência
estadual) e de pesquisadores e estudantes
universitários que acompanhavam as
marisqueiras mensalmente aos manguezais para
saber mais sobre suas condições.
As marisqueiras decidiram construir uma
associação local para impulsionar ainda mais a
gestão sustentável em Maragogipe. "Estamos
criando a Associação de Marisqueiras e
Quilombolas - Mariquilombo - para que a gestão
do cultivo e novos projetos possa ser monitorada
e gerenciada por elas, que ocupam 100% do
quadro", explica Daniel. Caberá à Associação
cuidar da Fazenda de Ostra implementada
durante a campanha, que desde então tem
gerado frutos além das expectativas de Daniel e
das marisqueiras.
A campanha conseguiu atrair novos parceiros
para agregar recursos financeiros
complementares, necessários para a aquisição
do equipamento de aquicultura de ostra e a
instalação de duas unidades de cultivo de ostra,
uma em Capanema e outra no Baixão do Guaí.
Hoje, 30 famílias de marisqueiras - escolhidas por
critérios definidos por elas próprias - gerenciam
as fazendas de ostra. A estrutura é feita de
bambu, os coletores de sementes são produzidos
com garrafas PET e o gerenciamento é
compartilhado. O empreendimento promove a
autonomia dos produtores de mariscos
enquanto assegura a sustentabilidade: o método
pode ser utilizado por todos os pescadores e o
uso de garrafas no cultivo reduz o impacto dos
resíduos plásticos na comunidade. Em 2017, a
fazenda de ostra foi agraciada com o Prêmio do
Consulado da Mulher, da empresa Cônsul,
ganhando R$ 10 mil que serão utilizados para a
aquisição de uma sede da Associação
Mariquilombo. As marisqueiras ainda esperam
encontrar outros recursos para construir uma
cozinha semi-industrial na sede, onde possam
fazer pães, biscoitos e outros produtos de
mandioca.
À medida que as ostras cultivadas crescem, as
marisqueiras usam seus anos de experiência para
coletá-las. "Elas me chamam e enviam vídeos
felizes de cada nova conquista, como quando
juntaram mais de mil sementes de ostras", conta
Daniel. "Elas já sabem como lidar com o cultivo,
sabem quando e como limpar as ostras, trocar os
travesseiros e remover as sementes. Elas já
dominam todas as etapas e fazem tudo por si
mesmas". Combinados, os cultivos de Capanema
e Baixão do Guaí produziram cerca de 1.400
conjuntos de ostras em dúzia prontas para o
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mercado, e as marisqueiras estão se preparando
para realizar sua primeira comercialização de
ostras cultivadas.
Hoje, quando as marisqueiras se dirigem aos
bancos de manguezais, elas usam bonés, luvas,
óculos, botas de neoprene e camisas de mangas
compridas com proteção UV, itens que
compõem um kit de EPIs (Equipamentos de
Proteção Individual) doados pela campanha para
melhorar as condições de trabalho. Elas
mudaram a forma como negociam suas ostras,
passando a vender a dúzia e não mais a unidade,
lidando agora diretamente com clientes finais ao
invés de atravessadores. E, quando falam
perante a comunidade, elas se expressam como
líderes. "Elas se sentem mais confiantes e
orgulhosas do que fazem", observa Daniel.
"Muitas não têm mais medo ou vergonha de
falar em público ou expor suas opiniões". Se
depender de Daniel, elas vão seguir assim.
"Pretendo continuar a aconselhá-las, mesmo
após a conclusão do projeto de parceria entre a
Rare e a Fundação Vovó do Mangue, até que
possam caminhar sozinhas", revela ele. "Esta é a
minha responsabilidade".
Prêmio Consulado da Mulher
Marisqueiras em ação, com os EPIs
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Entrevista com Ricardo Soavinski
O parananese Ricardo Soavinski é graduado em
oceanografia pela Universidade Federal do Rio
Grande (FURG), no Rio Grande do Sul. Em mais de
30 anos de carreira, trabalhou em várias regiões do
Brasil em projetos de pesquisa, monitoramento e
conservação da natureza. Sempre atuando na área
pública, Soavinski já coordenou setores e
programas no Ibama, no Ministério do Meio
Ambiente (MMA) e no Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio), tendo
ocupado diversos cargos de direção nessas
instituições. Em 2016, deixou a posição de
Secretário de Meio Ambiente do Paraná para
assumir a presidência* do ICMBio, onde é servidor
público da carreira de analista ambiental.
O jovem estudante e o profissional bem-sucedido
guardam em comum o olhar atento para as
espécies e seus habitats, a vontade de trabalhar
pela proteção dos biomas, a preocupação com o
bem-estar das comunidades que residem próximo a
áreas naturais e o respeito à cultura local. Quando
ainda cursava oceanografia, Soavinski participou de
projetos de monitoramento costeiro em Rio Grande
(RS), onde animais como pinguins e lobos marinhos
apareciam mortos ao longo da praia. Ele e seus
colegas salvavam os animais que chegavam cheios
de óleo, eventualmente até levando-os para casa,
caso fosse necessário para sua recuperação.
Fundaram o Núcleo de Educação e Monitoramento
Ambiental (Nema), onde desenvolveram o projeto
“Mentalidade Marítima”, com foco em ações de
educação ambiental na região costeira do Estado. O
intuito era reforçar nas crianças, filhas de
pescadores, o resgate e a importância da questão
marítima e da pesca. Começava ali um forte
interesse por projetos de conservação da
biodiversidade, que o acompanharia em toda sua
trajetória.
Depois de formado, Soavinski mudou-se para a
Paraíba para trabalhar com espécies ameaçadas e
participou da implementação do projeto Peixe-Boi
Marinho no Nordeste, que resultou na criação do
Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de
Mamíferos Aquáticos (CMA), hoje vinculado ao
ICMBio. O plano de ação dessa iniciativa
contemplava, além de esforços específicos voltados
para o peixe boi, estratégias para a conservação do
Ricardo Soavinski Crédito: Bruno Bimbato/ICMBio
11
habitat, a criação de unidades de conservação e um
trabalho amplo com as populações que viviam
naquela região costeira. Ficava cada vez mais claro
para o oceanógrafo o entendimento sobre a
importância de uma visão abrangente para que se
possa obter resultados efetivos no campo em que
decidira atuar.
Integrante de uma geração que mudou a
perspectiva e jogou luz sobre a necessidade de se
atentar para a importância da conservação
costeiro-marinha no Brasil, Soavinski liderou a
estratégia mais bem-sucedida que o país já teve nos
últimos 30 anos para a criação de áreas marinhas
protegidas. Em dois anos, sob sua gestão no
Instituto Chico Mendes, 10 novas unidades de
conservação terrestres e costeiro-marinhas foram
criadas e 03 foram ampliadas. Ainda que seja
consciente dos enormes desafios e das ameaças a
serem enfrentadas, ele, que se declara um eterno
otimista, tem de fato muito o que comemorar.
* Ricardo Soavinski concedeu esta entrevista à Rare
em 19/04/2018, como presidente do ICMBio, cargo
que ocupava desde novembro de 2016. Poucos dias
depois, ele deixou a direção do órgão e assumiu a
presidência da Companhia de Saneamento do
Paraná.
Qual tem sido a estratégia e o principal desafio do
ICMBio no esforço pela consolidação das Unidades
de Conservação no país?
Principalmente nas últimas duas décadas, tivemos
um quadro bastante forte no que se refere às áreas
protegidas, tanto em quantidade quanto em
território, nas diferentes categorias e nos diferentes
biomas. Na Amazônia isso predominou, com muito
apoio externo inclusive, criando o próprio Arpa
(Programa Áreas Protegidas da Amazônia). Mas
houve um esforço muito grande para a criação de
unidades de conservação. Nós do ICMBio
buscamos fortalecer e ampliar a equipe através de
concursos, aumentar a rede de parceiros, ter
recursos de longo prazo e sempre pensar em
estratégias para que a gente continue ampliando,
como aconteceu recentemente na área marinha.
Qualquer recurso e apoio para as unidades é muito
bem-vindo, mas temos como diretriz a busca de
recurso de longo prazo, que ajude a implementar as
unidades e que ajude também a mantê-las . Nesses
últimos meses, conseguimos criar algumas UCs já
na área oceânica e mais três na costa do Maranhão.
Há outras para serem criadas também, na área
costeiro-marinha, que era um bioma onde
tínhamos menor representação, embora na área de
manguezal grande parte já seja unidade de
conservação. Tem muito esforço nisso, muita
dedicação, o trabalho com quem vive nestas áreas
– os extrativistas, no caso da costa, os pescadores,
os catadores – é de extrema importância para a
consolidação da unidade, principalmente nas zonas
mais conservadas. Lógico que passa por plano de
manejo, por proteção e tal, mas o trabalho vai
muito mais longe, organizando e ajudando a sua
própria formação comunitária e depois
fortalecendo-os e trabalhando nas cadeias
produtivas, que envolve vários setores, como na
área de turismo também. No Brasil, a gente tem um
potencial que é enorme, é fantástico, de paisagens,
de costumes, de experiências incríveis nessas áreas,
mas ainda há poucas UCs abertas à visitação. Temos
que fazer um esforço muito grande para estruturá-
las e, no nosso entendimento, nem sempre é
estrutura física. Em muitos casos temos que
capacitar pessoas, efetivamente ‘criar’ o destino,
colocar no mercado, passando também por um
turismo de base comunitária. Hoje temos 332 UCs
terrestres e costeiros marinhas. Ampliamos
fortemente nesses últimos dois anos, 10 UCs foram
criadas, três ampliadas. Foi um ganho significativo.
Temos que estar sempre revendo procedimentos
de gestão, fortalecendo-os, em alguns casos
simplificando, como os planos de manejo, buscando
novas tecnologias.
12
Está em votação na Câmara dos Deputados uma
proposta de lei que cria um fundo privado com os
recursos da compensação ambiental. São recursos
muito significativos, passa de R$ 1 bilhão. Isso está
previsto desde que foi sancionada e aprovada a lei
do SNUC, mas esse recurso foi sendo represado
pela falta de um instrumento de operacionalização
mais ágil e essa medida propõe a criação desse
fundo com um agente financeiro que vai nos ajudar
a operacionalizá-lo. Outra medida que está prevista
nessa proposta de lei é uma flexibilização da
contratação de brigadistas. Durante muitos anos
temos tido uma prática de contratar pessoas locais
nas unidades para nos ajudar na prevenção e no
combate de incêndios florestais, isso é previsto por
lei. Todo ano a
gente contrata
cerca de 1.000 a
1.500 pessoas,
só que a lei
prevê um tempo
máximo de até
três meses e
apenas para essa atividade. Então nós fizemos uma
proposta de estender o tempo para até dois anos e
ampliar o escopo de atuação deles para que possam
trabalhar não só na questão dos incêndios, mas
também na pesquisa, no apoio às ações
socioambientais das unidades, dando um apoio
geral a todo o processo de gestão dessas UCs. A
Medida Provisória foi aprovada na comissão mista
por unanimidade, e isso é raro no nosso
parlamento. Depois da votação na Câmara dos
Deputados vai pro Senado**. Estamos com uma
expectativa muito grande pela sua aprovação,
porque isso vai dar uma dinamizada fantástica nos
processos do ICMBio, principalmente na questão da
regularização fundiária, para a indenizações aos
proprietários de terras privadas dentro de UCs
públicas.
Um desafio enorme que a gente tem é a
comunicação ampla com a população nos nossos
processos, não só de criação de unidades, mas de
participação seja como visitante, voluntário,
pesquisador. Trazer a população para dentro das
UCs e fazer com que ela entenda claramente seus
objetivos. Fazer com que saibam da existência, das
oportunidades que elas trazem, dos serviços que
prestam à sociedade, seja diretamente gerando
renda, emprego, seja indiretamente, por meio da
água que produz, da água que protege, da proteção
da costa contra os efeitos do clima, contra a própria
mudança do clima. Nesse sentido, nós repaginamos
o programa de voluntariado que já tínhamos no
ICMBio há um tempo e nesses últimos três anos o
programa
ganhou
um pulso
muito forte dentro
do país, não só nas
unidades de
conservação, mas
também nos projetos
e nos centros de pesquisa do ICMBio e hoje é um
sucesso. Mais de 100 unidades aderiram ao
programa de voluntariado e só no ano passado
foram mais de 1.500 voluntários participando de
nossas atividades. E isso é muito bacana, não só
porque nos ajuda, ajuda nas respectivas formações,
mas também faz com que essas pessoas – e suas
respectivas redes de relacionamento – passem a
conhecer o dia-a-dia do trabalho nessas unidades.
Isso nos deixa muito feliz. Tem uma série de frentes
de trabalho abertas, com várias instituições, com a
própria Rare e eu creio fortemente – eu
pessoalmente sou sempre otimista ,minha
característica – eu creio que vamos avançar
fortemente na gestão das áreas, não só na criação,
como já estamos criando, mas na gestão e na
disponibilização de todos os serviços que essas
unidades têm a prestar para o país e o planeta.
13
**No dia 08 de maio o senado aprovou a MP que
prevê a criação do fundo com recursos de
compensação ambiental.
Como você vê a questão da pesca no interior de
Unidades de Conservação de Uso Sustentável? O
que pode ser feito para uma gestão mais eficaz e
sustentável destas áreas?
Nosso entendimento é que, ao avançarmos no
processo de gestão e valorização da pesca e
daqueles que pescam nessas unidades, o
ecossistema como um todo tem muito a ganhar.
Pela garantia de proteção a longo prazo, com uma
boa gestão e um bom uso, já que essas áreas são
usadas há muito tempo. Mas há muito a ser feito. A
maioria das unidades que tinham que ser criadas,
eu entendo que foram criadas, isso já é um passo
significativo. Alguns instrumentos de gestão para
boa parte delas já foram feitos também, que são as
chamadas CDRUS (concessão de direito real de uso)
para as associações, para as populações. Os
cadastros das famílias beneficiadas, em sua
maioria, também já foram feitos. Alguns planos de
manejo estão sendo feitos, mas o processo da pesca
em si precisa ser aprimorado, precisa avançar, além
da valorização de toda a cadeia produtiva. Neste
sentido, ainda tem bastante trabalho a fazer. A
legislação mais recente coloca o ICMBio como
responsável por toda a regulamentação da pesca,
inclusive as autorizações da pesca dentro dos
limites das unidades de conservação. Claro que isso
traz um volume de serviço muito maior para a
instituição, mas por outro lado é muito positivo,
porque é o Instituto que tem a gestão, que tem a
relação com as comunidades, com os outros
instrumentos, então isso está correto. O que nós
precisamos fazer é avançar no monitoramento,
ordenamento e também na geração de
conhecimento, numa ótima articulação entre os
usuários. Isso em benefício dos recursos, para o
equilíbrio daquele ecossistema e pela
sustentabilidade das famílias beneficiárias. Cada
linha de ação é um desafio enorme para nós,
considerando a dimensão de cada área, o tamanho
do país e a quantidade de unidades de conservação
e de famílias beneficiárias, mas temos vários
parceiros importantes que estão nos ajudando, e eu
entendo que a gente pode avançar bastante nessa
área. Além das cadeias produtivas, pois é
extremamente importante que elas se
desenvolvam bem para valorizar melhor o produto
e ter uma remuneração mais justa para aqueles que
estão ali e que são os principais beneficiários dessas
unidades.
Fale um pouco da Iniciativa Azul e sobre o impacto
das grandes áreas marinhas protegidas criadas em
março deste ano. Como elas podem ajudar no
processo de consolidação das áreas marinhas
protegidas de forma geral, tanto de uso
sustentável, como de proteção integral no Brasil?
Quando nós começamos esse processo de ampliar
as unidades marinhas, nós fizemos uma proposta
inicialmente denominada Fundo Azul e que agora é
a Iniciativa azul. Já foi objeto de muita reunião, com
várias ONGs, dentro do país, fora do país, dentro do
governo também. Está em via de ser publicado um
documento-base, similar ao que foi feito quando o
país, há uns 20 anos, se comprometeu a ampliar as
áreas protegidas na Amazônia e criou o Arpa. É mais
ou menos parecido, mas agora com outra
modelagem de gestão dos recursos. Ou seja, vamos
buscar ampliar fortemente essas áreas, mas nós
temos que ter os meios, garantidos por longo prazo,
para implantar aquelas que já existem e as novas
que estão sendo criadas. São estratégias de longo
prazo, já que as unidades são criadas com base no
princípio de que são para sempre, então a gente
tem que ter garantias de longo prazo para essas
áreas.
Quanto ao desenho das áreas marinhas que
criamos, nossa estratégia era ter parte como
14
proteção integral – que são os Monumentos
Naturais – nas duas grandes áreas, mais próximo
das áreas emersas e dos montes submarinos, com
uma mega APA (Área de Proteção Ambiental) em
volta – que é de uso sustentável –, voltada mais
para ordenamento da pesca. Nesse caso a gente
colocou a pesca industrial, até pela região em que
elas se encontram. O objetivo foi esse, ter parte
protegido integralmente e parte com ordenamento
do uso. Então é um desafio bastante interessante
também, pois são áreas que, embora a nossa costa
já esteja relativamente bem representada em
termos de unidades de conservação, na parte
oceânica ou de mar aberto, realmente estávamos
bem abaixo do previsto nas metas. Ainda há novas
unidades para serem criadas na costa, em mar
aberto, que estão em estudo.
Sobre o também recente reconhecimento do Sítio
Ramsar nos Manguezais da Amazônia, entre o
Amapá e o Maranhão. Qual a estratégia do ICMBio
para trabalhar na consolidação dessa importante
área?
O objetivo é ter uma valorização maior dessas
áreas, pelo reconhecimento mundial como sítio
Ramsar. Isso dá mais garantias para a conservação
e os usos dessas áreas, até para facilitar a busca de
recursos e o apoio para pesquisa, monitoramento,
para ajudar nas propostas de conectividade entre
essas grandes áreas, os chamados corredores
ecológicos. Para atingir isso precisaremos de uma
estrutura que represente a região como um sítio
Ramsar, então provavelmente faremos nos
próximos meses algumas reuniões na região. A ideia
é ter três comitês estaduais, com população
tradicional e chefes das unidades de conservação e
um comitê ‘nacional’, incluindo a região do Amapá
até o Piauí para podermos fortalecer justamente
esse aspecto de gestão integrada para
conectividade, uso sustentável e busca de recursos.
Do ponto de vista da estratégia, a questão agora é
como nos estruturamos para que haja uma
governança que não se sobreponha à gestão das
UCs. Mas a ideia é falar em nome do Sítio Ramsar e
há três a quatro projetos sendo pensados, inclusive
o da Rare, para essa região.
Quais os próximos passos em relação ao anúncio feito pelo governo do Pará, Rare, ICMBio e Ministério do Meio Ambiente na COP 23, em Bonn, sobre a proteção de uma área de 625 mil ha de mangues no Pará e no Maranhão? Está prevista a criação de novas Resex no Pará? Sim, a gente já tinha feito até a audiência pública no ano passado, antes ainda dessas recém-criadas no Maranhão e tinha um questionamento sobre os limites propostos. Recentemente nós recebemos uma contraproposta do governo do Pará, na qual ele propôs e avaliou os limites. Esse novo desenho, pelo que a gente sabe, foi bastante discutido na região, com as prefeituras. Agora vamos avaliar essa nova proposta e dar andamento ao processo para realmente efetivar a criação dessas unidades. A área diminui um pouco de tamanho, mas é numa região onde já existem várias outras reservas extrativistas e possivelmente será complementada por criações no nível local, tanto pelo Estado ou pelas prefeituras. Isso sai este ano ainda? Aqui no ICMBio, onde nós temos governança,
temos condições de fazer isso andar rápido. Claro
que depois ainda tem um processo de consultas a
vários órgãos, e não é tão simples, até chegar o dia
da assinatura do decreto. Mas vamos nos
empenhar não só nesta como em outras para que a
gente continue o processo de criação. Tomara que
a gente seja bem-sucedido como fomos nessas 11
novas áreas, inclusive ampliando algumas, nestes
últimos dois anos. Espero que continuemos na
mesma toada. Nós vamos continuar empenhados
aqui para isso!
15
Como você vê a parceria com a Rare hoje e quais
são as perspectivas para o futuro?
As parcerias são fundamentais. Temos desde
parcerias para projetos com recursos pontuais até
aquelas maiores, envolvendo mais recursos, às
vezes em área grande, às vezes em temas. E a
parceria com a Rare eu vejo com muito bons olhos,
tanto é que a gente tem se empenhado fortemente.
É uma instituição que tem uma ‘pegada’ muito
interessante, nesse trabalho com a pesca nas
comunidades. O projeto da Rare que busca o apoio
do BNDES, até onde eu tenho acompanhado, está
andando bem, tomara que dê tudo certo! É
importante, muito interessante o arranjo do
projeto. O que está sendo proposto é necessário e
está na linha de toda nossa estratégia institucional
de avançar na implementação das unidades de
conservação. Nesse caso é exatamente o que
precisa ser feito. É um território grande, envolve
muitas famílias e a expectativa é a melhor possível.
A relação entre as instituições é ótima.
Há algo que queira complementar?
Hoje, ao falar em mar, não tem como não abordar
a questão do plástico, do microplástico. Isso é muito
preocupante. A questão do plástico é uma
preocupação global para a qual temos que ficar
muito atentos. E isso envolve principalmente a
gestão ambiental urbana no país, tem muito a ver
com saneamento. Temos que falar de saneamento
de maneira mais ampla, incluindo não só a questão
do esgoto e dos resíduos domésticos, mas também
os resíduos sólidos, a questão da água, a drenagem
urbana, a questão do cuidado com os rios, as bacias,
que vão chegar nos estuários. Criar as unidades de
conservação é extremamente importante, e
implementá-las também. Todas as políticas e os
instrumentos são necessários, mas nós precisamos
de um olhar urgente pro país, e globalmente
falando, para as cidades, onde a maioria da
população reside. E os problemas que acontecem
na cidade vão chegar no meio rural, no meio
natural, via água. Então essas áreas marinhas
costeiras que nós estamos criando precisam de um
olhar para algo que às vezes está a milhares de
quilômetros de distância. É preciso um olhar muito
especial, principalmente para a questão do
saneamento. Temos que envolver mais a sociedade
como um todo, fazer um alerta sobre essas
questões.
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Treinamento Financeiro em Soure, PA
Treinamento Financeiro em Tamandar-e, PE
Treinamento financeiro para organizações locais
Em outubro do ano passado, a Rare organizou sessões de treinamento financeiro voltadas para instituições locais parceiras na implementação de seu segundo ciclo no país. E, graças a um acordo com a Confrem, as organizações de comunidades pesqueiras tradicionais baseadas no entorno das sete áreas protegidas onde a Rare está atuando também participaram da capacitação. No Estado do Pará, foram realizados treinamentos nas cidades de Bragança e Soure e, em Pernambuco, no município de Tamandaré, totalizando 56 participantes que representaram 10 organizações. Cada uma das três sessões realizadas, com duração de dois dias, contou com aulas teóricas ministradas por uma contadora e atividades práticas, tais como elaboração de orçamentos e prestação de contas.
“Na maioria dos casos, as organizações locais têm baixa capacidade administrativa e pouca experiência na gestão de recursos financeiros. Partindo de experiências prévias da Rare com as comunidades, e de sugestões da Confrem, detectamos a necessidade de ofertar um treinamento que visa o fortalecimento dessas instituições, por meio do incremento de suas habilidades gerenciais, de forma que possam gerir de maneira mais eficiente e eficaz os fundos concedidos para a implementação das campanhas”, explica Simone Madalosso, coordenadora executiva da Rare.
O programa contempla aspectos que vão da administração financeira à captação de recursos, passando por questões legais e pela gestão de projetos. Os participantes ficaram satisfeitos com a oportunidade e o aprendizado. “É de grande importância essa assessoria que vocês estão dando para as associações, que estavam querendo até parar, desestimuladas... Nós trabalhamos há 19 anos em um grupo coeso de mulheres, mas a gente não tinha a certeza de como dar o primeiro passo, e agora temos!”, afirmou Marly Lucia da Silva Sousa, da Reserva Extrativista Caeté Taperaçu, no Pará. “Eu sei que a partir de agora nós não vamos mais estar à mercê de políticos mal-intencionados, estaremos a nosso serviço, a serviço das comunidades, populações tradicionais, pescadores artesanais, coletores de caranguejos, mulheres e quilombolas”, comemora. Severino Santos, Coordenador de Campanha na APA Costa dos Corais, também avalia que o curso foi uma contribuição positiva para o desenvolvimento local de sua comunidade: “agora nós estamos aptos a gerenciar melhor a nossa organização”.
Treinamento Financeiro em Bragança, PA.
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Fique por dentro
Oportunidade no edital do
BNDES/Fundo Amazônia
A Rare submeteu uma proposta para o edital “Consolidação e Fortalecimento de Cadeias de Valor Sustentáveis e Inclusivas”, do Fundo Amazônia. A elaboração do projeto proposto pela Rare – “Pesca Sustentável no Pará e Maranhão” – foi fruto de um esforço coletivo entre a organização e outras instituições envolvidas, representando as 14 Resex no Pará e no Maranhão que constituem as áreas-alvo da iniciativa.
A finalidade do projeto é assegurar a conservação dos manguezais, a melhoria da qualidade de vida, a cultura e o modo tradicional das comunidades locais por meio da promoção do manejo integrado e sustentável da pesca e da construção de cadeias de valor sustentáveis de duas das principais espécies-alvo pescadas na costa paraense e no litoral norte do Maranhão (caranguejo e pescada amarela). A área de abrangência da proposta se insere no maior cinturão contínuo e bem preservado de manguezais do mundo, com cerca de 680 km de
extensão costeira, do Amapá ao Maranhão, englobando cerca de 70% dos mangues brasileiros. Estima-se que as áreas dos manguezais amazônicos, proporcionalmente, estoquem duas vezes mais carbono que a mesma área na própria floresta amazônica se considerada a biomassa do solo, acima e abaixo dele. O projeto tem como área focal quase todo o litoral paraense e o norte do Maranhão, perfazendo 740 mil hectares protegidos (dos quais 218 mil ha são mangues).
Protocolo de intenções firmado com o governo do Estado do Pará
Em fevereiro deste ano, a Rare assinou o protocolo de intenções com o governo do Pará, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca (Sedap), estabelecendo uma parceria institucional que visa a execução de ações voltadas à mobilização social para conservação e uso dos recursos naturais (principalmente os pesqueiros) das áreas protegidas, situadas na zona costeira marinha do Estado.
Oficina participativa para construção da proposta do Fundo Amazônia, UFRA - Castanhal, PA.
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Parceria interinstitucional pela proteção de mangues no norte do país
Rare, governo do Pará, ICMBio, Ministério do Meio Ambiente e Confrem anunciaram uma parceria pela proteção de 625 mil hectares de mangues da costa norte do país. O comunicado foi feito durante a 23ª Conferência das Partes (COP 23) focada na implementação do histórico Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas, que aconteceu em Bonn, na Alemanha, em novembro passado. A ideia é proteger um cinturão pristino de mangues por meio das unidades de conservação (UCs) marinhas já existentes e da implementação de novas UCs de uso sustentável associadas a áreas de conservação e recuperação dos estoques pesqueiros. Além disso, a iniciativa visa a promoção do desenvolvimento de cadeias de valor sustentáveis para a pesca. Essas áreas de mangue ao norte do país são de extrema importância para prevenir catástrofes naturais, além de serem berçário de várias espécies de pescado.
Conselho Consultivo
Em outubro do ano passado, a Rare realizou uma reunião de seu Conselho Consultivo, à qual dois novos conselheiros se juntaram: Guilherme Azevedo e Roberto Moura. O conselho é hoje formado por seis conselheiros e pela presidente da
organização, Georgia Pessoa. A convite da presidente, a reunião se deu na sede de sua nova casa, o Instituto Humanize. Foram discutidos, entre outros assuntos, a parceria de seis anos entre a Humanize e a Rare; a iniciativa conjunta da Rare com o governo do Pará, o ICMBio, o Ministério do Meio Ambiente e a Confrem pela proteção de 625 mil hectares de mangues na costa do Pará e do Maranhão; os progressos e desafios do último ano de trabalho da Rare; a idéia de abertura de um pequeno escritório em Belém para estar à frente da execução dos trabalhos no Pará; o cenário difícil da pesca no país; o orçamento dos próximos anos; e novas oportunidades de captação como a do BNDES/Fundo Amazônia.
Oportunidades na Rare A Rare está buscando profissionais qualificados para a vaga de Gerente de Operações. Para informações sobre o perfil do profissional e para submeter candidaturas online, favor acessar https://www.rare.org/en-rare-careers#.Wo8vR4PwbIV. Somente serão considerados aplicações e CVs em inglês.
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Entrevistas com Coordenadores da
Campanha por Orgulho
Liderança do movimento de pescadores artesanais comprometida com
a sustentabilidade e a luta pela garantia dos direitos da categoria
Cícera Estevão Batista, Coordenadora da Campanha na Área de Proteção Ambiental (APA)
de Guadalupe
Natural de Rio Formoso (PE) e moradora da zona
rural, desde menina Cícera Batista trabalhou na
roça e na pescaria para ajudar a família, formada
pelo pai agricultor, a mãe pescadora local e seus
nove filhos. Estudou para tornar-se professora do
ensino fundamental e sempre sonhou em ingressar
na universidade para cursar Serviço Social. Em
2017, finalizou o curso pela Unopar, cujo trabalho
de conclusão foi sobre a sustentabilidade da
comunidade de pescadores de Rio Formoso.
Embora não almejasse dar aulas, em 1998 aceitou o
convite para trabalhar com alfabetização de jovens
e adultos na Colônia de Pescadores Z-07, em Rio
Formoso, e seu envolvimento crescente com a
colônia a levou aos cargos de secretária e
presidente da instituição, sendo que ocupa este
último até hoje. As bandeiras de sua gestão são a
defesa da pesca artesanal, o combate aos impactos
ambientais e a luta pelas garantias dos direitos
previdenciários dos pescadores. O
comprometimento de Cícera com os movimentos
dos pescadores também fez dela a representante
das mulheres no Movimento de Pescadores e
Pescadoras (MPP). Ela participou ainda do
levantamento de dados estatísticos da pesca
realizado pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e Recursos Naturais (Ibama), órgão para
o qual trabalhou no litoral sul de Pernambuco no
início dos anos 2000. Em 2017, iniciou o trabalho de
Coordenadora de Campanha da Rare, com o intuito
de fortalecer cada vez mais a vida dos pescadores
artesanais da Área de Proteção Ambiental (APA) de
Guadalupe (PE).
20
Qual a sua relação com a pesca e sua experiência profissional? Eu sou de uma família tradicional da pesca e agricultura familiar. Aos 9 anos iniciei a minha vida na pesca com meus pais, amigos e vizinhos. Meus pais são analfabetos, mas eu tive a oportunidade de estudar. Formei no ensino médio e fui habilitada a lecionar para o ensino fundamental. Porém, continuei pescando. Em 1998, fui chamada a ser professora do programa de alfabetização de jovens e adultos na Colônia de Pescadores de Rio Formoso. Após um período dando aulas, fui convidada para trabalhar como secretária da instituição. A partir deste momento, me envolvi cada vez mais nas causas pesqueiras, participei de reuniões, seminários, trabalhei com a questão de gênero, doenças e direitos dos pescadores. Participei e participo de diversas organizações do movimento pesqueiro, como o MPP (Movimento de Pescadores e Pescadoras), a ANP (Articulação Nacional das Pescadoras) e tantos outros. Na ANP, fui representante das mulheres pescadoras do Estado de Pernambuco por três anos. Em 2011, concorri à presidência da colônia e fui eleita. Sempre tive o sonho de obter graduação em Serviço Social e, como o tempo, esse sonho só aumentava por conta do meu envolvimento na luta dos direitos dos pescadores, especialmente os previdenciários. Anos depois, consegui realizar o meu grande sonho. Graduei e escrevi o meu trabalho final sobre a pesca. Apesar de ter estudado e ser a representante da colônia, nunca deixei de pescar. Hoje pesco porque gosto e não mais para sobreviver. O que é ser um bom líder comunitário? Um líder comunitário precisa ter força de vontade para trabalhar, estar sempre animado para motivar a comunidade, ter garra e, principalmente, entendimento das questões que envolvem a sua comunidade. É importante estar atualizado para se preparar para as discussões com outros atores. Como liderança, não posso desanimar, preciso estimular a minha comunidade, tenho que ser guerreira de verdade. Quando assumi a presidência da Colônia algumas pessoas não confiavam no meu
trabalho porque sou mulher. Existia um machismo muito forte. No entanto, fui ingressando e trazendo projetos para o coletivo, realizando ações comunitárias e mostrando resultados. Hoje muitas pessoas me conhecem pelo meu trabalho e pela minha liderança na comunidade pesqueira. O que você acha do trabalho que a Rare propõe? A Rare faz um trabalho bonito e diferente. Trabalha pelos direitos das comunidades pesqueiras e em favor da conservação do meio ambiente. Esse trabalho me interessa, pois é o mesmo que sempre realizei e em torno do qual busquei concentrar os meus objetivos de luta. A Rare tem muitas novidades dentro da metodologia da campanha. Os treinamentos dos coordenadores e os planejamentos são cansativos, porém o trabalho é muito satisfatório. Aprendemos muitas coisas, não somente sobre a campanha específica das nossas áreas, mas a teoria da mudança, as estratégias de marketing social, como preparar as atividades, entre outros detalhes que não conhecíamos antes. Além disso, existe todo o trabalho de pesquisa de biologia pesqueira, o relacionamento com as instituições governamentais e da sociedade civil. Tudo em paralelo à preparação da campanha. Quando eu compreendi o que era a campanha, me assustei. Contudo, estou conseguindo acompanhar e preparar as ações para o lançamento da campanha. Espero que, como coordenadora, eu possa alcançar os objetivos propostos e, com isso, proporcionar melhoras na qualidade de vida das comunidades pesqueiras. O que você sonha em deixar como legado da campanha para a APA de Guadalupe? Sonho em criar uma Reserva Extrativista (Resex) dentro da APA, combater a degradação dos recursos naturais, conservar o meio ambiente e implantar o ordenamento de pesca. Quero ver o estuário conservado e sem faltar peixes para as comunidades pesqueiras. Quando a campanha acabar, eu espero que as comunidades estejam inseridas nos processos de discussões da gestão compartilhada e na criação da Resex.
Havia, antes da Campanha, alguma mobilização social na comunidade da APA de Guadalupe em prol da sustentabilidade da pesca? Muitos pescadores das comunidades ribeirinhas não sabem que existe uma APA e nem sequer o que é uma. E não havia nenhuma mobilização social nesse sentido. Na sua opinião, qual é a mudança de comportamento mais difícil de ser alcançada? Por que? E o que tem feito para tentar reverter isso? A mudança do uso das malhas “miúdas” é o nosso maior desafio. Os pescadores já usam a técnica há anos, é uma tradição do local. Vai ser bem difícil. Eu acredito que somente a criação de regras poderia melhorar a pesca artesanal localmente, porque hoje a pesca é feita de forma aleatória com malha de diversos tamanhos, principalmente as bem pequenas e fininhas. Todas as vezes que visito as comunidades participantes da campanha converso sobre o uso desses petrechos e o modo de pesca, mostrando porque o uso de malha miúda é prejudicial e enfatizando os benefícios de mudar para um petrecho mais sustentável. Alguns pescadores devolvem para o mar os alevinos (peixes recém-saídos dos ovos), outros não. Esses não estão preocupados com o amanhã. Então, enquanto não tivermos regras, normas e fiscalização, a pesca insustentável continuará acontecendo. O nosso estuário é muito rico, tem muitos peixes, moluscos e crustáceos. Muitas famílias sobrevivem desses recursos naturais, mas se não cuidarmos a tendência é acabar. Mas é importante destacar que tem crescido a participação dos comunitários e das mulheres nas reuniões e ações da campanha, e isso já é uma mudança de comportamento nas comunidades.
Aprendizado, confiança e orgulho em benefício do fortalecimento das
comunidades
Danilson de Avelar Silva, Coordenador da Campanha na Reserva Extrativista (Resex)
Marinha de Soure
Órfão de pai e caçula de seis irmãos, o biólogo
Danilson de Avelar Silva nasceu em Belém (PA). Foi
criado pelos avós paternos em Soure, na Ilha do
Marajó, onde seu avô era pescador e trabalhava
com o transporte de búfalo. A avó, descendente de
indígenas, era benzedeira. Morador de um local
banhado por rio e mar, desde jovem Dan, como é
conhecido, mantém uma relação muito próxima
com a natureza. Suas brincadeiras na infância
sempre envolveram a pescaria e, curioso, buscava
saber sobre a atividade e acompanhava os
pescadores no desembarque pesqueiro. Ali, ouvia
histórias e ajudava. Em troca, ganhava peixes para
levar para casa. Fã de tecnologia e fotografia,
gostava de registrar os eventos e o cotidiano da ilha.
Em um desses momentos, foi convidado por um
gestor do ICMBio à época para participar como
voluntário em diversos projetos na Resex de Soure.
Profissionalmente, trabalhou no projeto Pesca
Sustentável da Unesco, no levantamento das
famílias da resex e no mapeamento das residências.
Na sua opinião, o que um bom líder tem que ter?
Eu gosto de uma frase de um livro que estou lendo:
“para cada esforço disciplinado há recompensas
múltiplas”. Um bom líder precisa se dedicar à sua
causa junto à comunidade, se preparar e trabalhar
para que a comunidade tenha voz, seja reconhecida
e vista. A liderança necessita estimular os
comunitários a conhecerem e reconhecerem a sua
importância. Precisa fomentar o intercâmbio entre
as pessoas e as comunidades vizinhas, auxiliar e
incentivar a discussão sobre diferentes assuntos
pertinentes à localidade. Também, acho importante
trabalhar no âmbito pessoal e fazer com que
as pessoas se admirem e se respeitem.
De que forma sua trajetória pessoal e profissional te preparou para a posição de coordenador de campanha?
As minhas experiências de vida e relações
interpessoais me auxiliam no trabalho. Sou tímido e
uso estratégias para me adaptar às atividades e ao
ambiente. Trabalhei durante um tempo em um
projeto no quartel da Polícia Militar onde aprendi
sobre organização e disciplina. Em meu trabalho
como camelô nas ruas aprendi a conversar com as
pessoas e a estabelecer laços de amizade e
confiança. Uma das minhas paixões – filmar e
fotografar – me fez conhecer as comunidades
intimamente, a vida dos pescadores, as histórias, as
experiências. A relação com a minha família me
23
tornou maduro e forte para enfrentar os desafios da
vida e do trabalho. Além disso, a relação que meus
avós tinham com a natureza e com a pesca também
contribuiu para os conhecimentos locais e
tradicionais que tenho hoje.
A comunidade da Resex de Soure já tinha um
entendimento e uma ação em prol da
sustentabilidade da pesca?
Os comunitários já tinham entendimento de
práticas sustentáveis. Por exemplo, o caranguejo é
pego à mão e as fêmeas não são coletadas. A prática
já está enraizada, essa relação de respeito à
natureza foi passando de geração em geração. A
Resex de Soure foi criada em 2009, mas
anteriormente já existia uma atuação da
associação-mãe com foco nas questões da
conservação e sustentabilidade. Hoje a nossa
campanha foca nos pescadores de camarão e
principalmente nos comunitários mais jovens para
reduzir a pesca predatória. Na época da safra do
camarão marinho vemos pescadores fazendo
arrasto de camarão com saca de cebola. Pega-se
camarão de todos os tamanhos, dos bem
pequeninos até o tamanho ideal. O uso do matapi
(armadilha) de garrafa PET fora do padrão também
é bem utilizado e é um dos nossos desafios na
campanha. Eu descobri uma experiência que deu
certo na Ilha das Cinzas, do outro lado da Ilha do
Marajó. Lá, estão sendo produzidos e utilizados
matapis mais sustentáveis. Deste modo, estamos
avaliando a possibilidade de realizar um
intercâmbio para observar e experimentar.
Como tem sido a receptividade dos pescadores e
comunidade em geral às ações da Campanha?
Qual é a principal expectativa e o maior temor
deles, após o término da campanha?
Estou sempre na comunidade conversando com os
camaroeiros, no entanto, hoje percebo que até
mesmo os pescadores de peixes estão se
organizando e se envolvendo nas diferentes ações.
A associação-mãe também está auxiliando e
estimulando a participação dos comunitários na
campanha. Estamos iniciando as nossas
mobilizações para o lançamento da Campanha e já
existe um “zum zum” na comunidade, todos estão
ansiosos para o lançamento. O maior temor dos
comunitários é em relação ao entendimento
coletivo das áreas de conservação e recuperação
dos estoques. Todos estão preocupados, querendo
saber como essas áreas serão mantidas após a
finalização da Campanha. Independentemente da
Rare, acho importante que continuemos discutindo
na comunidade sobre o assunto para regulamentar
as áreas. É importante buscarmos outros parceiros
para que possamos continuar esse trabalho de
mudança de comportamento das pessoas novas na
localidade e visitantes.
Como você avalia o potencial da Campanha para
resgatar o orgulho dos pescadores em relação à
profissão? Já vê algum sinal disso?
A campanha valoriza o conhecimento tradicional do
pescador e o empodera. O conhecimento
tradicional agrega e complementa o conhecimento
técnico trazido pelos especialistas da Rare. Os
pescadores participam de todo o processo, tudo é
construído com eles e para eles. Por isso, todos
estão se sentindo mais orgulhosos de serem
pescadores e de participarem da Campanha. Eu já
observo que os pescadores estão conversando cada
vez mais nas ruas sobre os objetivos da campanha e
mudanças de comportamento. No entanto,
acredito que ainda é preciso fortalecer mais as
comunidades, enraizar a discussão proposta na
campanha em toda a população.
O que mais tem aprendido ao longo desse
trabalho, de formatação e implementação da
campanha? Qual a principal lição aprendida até
agora?
Tenho aprendido muitas coisas. No início fiquei
assustado, sempre fui “peão”. Eu executava o
trabalho que alguém me solicitava. Eu chegava para
trabalhar e seguia ordens. Hoje, como coordenador
de campanha, tenho que planejar, elaborar e avaliar
as minhas ações e atividades referentes à
implementação da campanha. Isso é muito
importante para a minha formação pessoal e
profissional. Sempre quis escrever projetos, hoje me
sinto mais capacitado para organizar ideias, buscar
parceiros e desenvolver um projeto. Posso aplicar
tudo que aprendi e continuar trabalhando em prol
da comunidade. A principal lição que aprendi é a
confiança. Somos capazes de aprender coisas novas.
Agora, tenho confiança para desenvolver o trabalho
da melhor maneira possível. Me sinto orgulhoso por
poder me dedicar a assuntos que me propus a
estudar e que sempre fizeram parte da minha vida.
Além disso, sinto orgulho de poder manter
financeiramente a minha família, através de um
trabalho que tem um propósito.
25
NOS MANGUE
(Vergara Filho)
Nós somos metade gente,
outra de caranguejo,
seguindo na corrente de um desejo.
Nas nossas veias flui o sangue
das Santas Ceias vindas dos belos mangues.
Louvada seja a maré
que traz no ventre a flor da fé
da porção semente.
Só é pescador aquele que
traz nas mãos o ofício do pescar,
no coração, o sentido do compartilhar
e na sua cabeça, a razão do conservar.
Homenagem ao amigo e irmão Vergara
Por Luis Henrique de Lima - Diretor da Rare Brasil
Há pouco mais de quatro meses nosso parceiro, companheiro e amigo Waldemar
Londres Vergara Filho ou, simplesmente, Vergara, ou melhor ainda, o “Poeta das
Marés”, foi chamado à nova missão, seguindo assim as correntes do infinito que
sempre o guiaram e inspiraram… Uma vida inteira dedicada, e porque não dizer,
ofertada à conservação da vida marinha e à preservação do saber e do viver dos
povos do mangue brasileiro.
Caboclo arretado, paraibano guerreiro, paraense perspicaz, persistente e
sonhador, tornou sua a luta pelo direito mais que legítimo dos povos da maré de
todo o Brasil, de viver e cuidar do lugar que os acolhe, nutre e forja…
Por décadas abraçou, com força e fé, as dores, os amores e sabores do desafio de gestar, parir e cuidar das
Resexs do Salgado Paraense, um dos maiores paraísos e berçários de vida do planeta Terra. Missão cumprida
com simplicidade, cuidado, carinho, dedicação e singular competência, e que nos deixa, agora, a herança, e
principalmente, a responsabilidade de fazê-la vingar e dar frutos dignos da magnitude do seu empenho e
esforço.
O “Poeta das Marés” teve sempre as palavras como instrumento propulsor de sua embarcação na construção
e solidificação de sua rota e missão, e por isso, fechamos nossa singela homenagem republicando uma de suas
mais lindas pérolas sobre o mangue. Siga seu caminho amigo e irmão, e continue iluminando e inspirando o
universo com sua espontaneidade, alegria e poesia!!! Gratidão eterna!!!