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Antônio Torres Sobre Pessoas

Na cidade do invisível Dalton Trevisan - ...:: Antonio … Antonio... · Web view“Eu esnobo a técnica: não sei mexer em moviola, não manjo nada de som. E acho que câmera tem

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Na cidade do invisvel Dalton Trevisan

Antnio Torres

Sobre Pessoas

ndice

Para comear4

Dois encontros com Glauber7

A entrevista de Glauber Rocha, aos 25 anos14

Um modo de ser campeo do mundo19

Relaes transatlnticas22

Enquanto Nova Orleans agonizava40

Idias de Jeca Tatu43

Vencedores e vencidos: histrias da nossa Histria53

O carnaval dos canibais54

So Sebastio, o rei e o Rio58

A bela Susana do vice-rei60

Quando o Rio teve um governador chamado Vaca62

Pequeno perfil de um grande homem64

Exerccios leves sobre pesos-pesados66

Blues para Cortzar67

Vincius e o seu poema preferido69

A bela Tnia e o velho Braga71

Rubem Fonseca aos 8074

Tirando o pai de letra76

Convidada a continuar78

O palhao e o poeta80

Othon Bastos enquanto vivo82

Juan Rulfo no Rio84

Cames na Bahia e outras histrias86

O lado infame do genial Borges89

Roteiro sentimental de um leitor de Jorge Amado92

Na hora de dizer adeus a estas pessoas107

Foi um prazer te ouvir, Joo108

O discreto Rubio111

Uivo em surdina113

Feito de azul, bonito demais115

Ipanema em 1968116

Algum que anda por a118

Em Madureira, com um guia francs119

Na cidade do invisvel Dalton Trevisan121

Com Loyola em Araraquara123

Na Praa dos Parabas, onde Joo Antnio viveu128

Com Mrcio Souza em Manaus130

Viagem com Baudelaire e Brigitte133

Crnicas de gente sem nome nas ruas135

Tributo a um comunista136

A concesso do evanglico138

Os dois ladres140

A me, as professoras e os dias de um escritor142

Para terminar144

Quando o Natal no tinha Papai Noel145

Para comear

(E para Ziraldo e Lus Pimentel por falar em pessoas)

Quereria um comeo com a delicadeza de Fernando Sabino, em A ltima crnica, que cada vez que releio mais me encanta. E agora a ela retorno, em busca de ensinamentos. Algo assim como fez Henry Miller, quando decidiu tornar-se um escritor. Sem saber como comear, ele passou a andar pelas ruas de Nova York, indo parar diante da esttua de Shakespeare. Persignou-se diante dela, igual a um penitente que roga salvao para sua alma. Repetiu a peregrinao por dias e dias. Martrios do ofcio, nas voltas tortuosas at se chegar primeira frase. O que faz pensar na angstia do goleiro diante do pnalti. Ou na do seu batedor.

Foi em tais circunstncias, a confabular consigo mesmo pelas ruas do Rio, que Fernando Sabino acabou por nos legar uma pequena obra-prima. Comea assim:

A caminho de casa, entro num botequim da Gvea, para tomar um caf junto do balco. Na realidade, estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com xito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisrio, no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diria algo de seu disperso contedo humano, fruto da convivncia, que a faz mais digna de ser vivida. E por a vai ele, at sair de suas ruminaes e bater os olhos num casal de negros e sua filhinha com um lao de fita na cabea, ao fundo do boteco. Esse olhar o fez captar uma jia de rara beleza, ainda a servir de espelho para principiantes.

Este aqui de vez em quando batia perna ao lado do mestre, nos calades beira-mar, Copacabana-Ipanema-Leblon. Numa dessas vezes, ele perguntou:

- Voc j leu o meu livro sobre a Zlia?

Por essa eu no esperava. Uma pedra no meio do caminho. Sinuca de bico. Cul-de-sac.

Persignando-me mentalmente diante da imagem de Nossa Senhora do Amparo, a padroeira do Junco, onde nasci, e dizendo-me Nas horas de Deus e da Virgem Maria, amm, criei coragem e respondi que Zlia, uma paixo era o nico livro dele que eu jamais leria.

- Por qu? Por preconceito?

O papo foi longe. Voltei para casa contrariado, achando que o havia deixado com mais uma pedrinha no tnis. Sabia que, depois do linchamento que ele recebera na imprensa por causa daquele livro, passara a evitar a exposio pblica, temendo ter de responder a perguntas maliciosas ou a se desvencilhar de ofensas, como a de mercenrio, por t-lo escrito apenas para faturar uma fortuna. Nada mais injusto. Fernando Sabino doara os direitos autorais do seu polmico best-seller a uma instituio assistencial de menores carentes, sem se vangloriar disso.

Como bom mineiro, ficou em silncio, remoendo a sua falha trgica ao declarar: Zlia sou eu. No calor da hora, a sua brincadeira no teve graa. Levaram-na a srio demais. Como se ele acreditasse, verdadeiramente, que a personagem que causara um terremoto na economia dos cidados, na era Collor, tivesse o mesmo status literrio da herona de Gustave Flaubert, Madame Bovary.

Mas por que, e para que o chatear ainda mais, quando privava de sua camaradagem, durante uma caminhada para desenferrujar as pernas, desanuviar a mente, e suar todas as tristezas? eu me perguntava. Ora, ora, quem mandou Fernando Sabino tocar no assunto? Pensei que ele ia ficar zangado, a ponto de cortar a nossa relao, para sempre.

Numa manh de domingo o telefone tocou e era o prprio, de viva voz. Disse:

- Acordei hoje com vontade de ligar para o Mrio de Andrade, o Rubem Braga, o Paulo Mendes Campos, o Otto Lara Resende e o Hlio Pellegrino. Como nenhum deles pode atender...

Foi um comeo de conversa e tanto. Ao final, convidou-me para um drinque em sua casa.

- Que tal amanh? perguntei-lhe.

- Ih! Amanh no d. Ao descobrirem que fiz oitenta anos, me empurraram para os exames mdicos. Assim que me livrar dessas chateaes, telefono para combinar.

No telefonou mais. S iria voltar a v-lo j embalado para a ltima viagem, no cemitrio So Joo Batista.

Ah, Fernando. Para comear, que falta que voc faz.

Dois encontros com Glauber

Gnio ou doido? Agora que o transformaram em personagem mitolgico, recordo que o vi de perto (e por duas vezes) e ele se comportou como uma pessoa normal. Foi em So Paulo, no lanamento l de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ano: 1964.

Confesso, porm, que quando o ator Geraldo Del Rey me disse que Glauber Rocha havia marcado a entrevista para as 8 da manh (e de um sbado!), achei que a sua fama de doido tinha algum fundamento. Madruguei para chegar pontualmente casa do Geraldo, onde ele estava hospedado. Nem acreditava que Glauber, a figura mais discutida daquele momento (um crtico carioca chegara a escrever 25 dias seguidos sobre o seu filme), to endeusado quanto detratado, e assim atingindo todas as colunas da glria, fosse receber um dos editores (o outro era o Franco Paulino) de uma revisteca chamada Finesse, que lembrava uma marca de papel higinico. E que ainda por cima fora herdada de um colunista social falido, pelo gerente do hotel em que ele morava, como pagamento da sua hospedagem.

Uma sucesso de acasos fez com que fssemos convocados por um reprter - de O Cruzeiro -, e poeta que admirvamos, o gacho de Rosrio do Sul Carlos de Freitas, para toc-la adiante. O nome da revista era ruim, ele disse, mas podamos fazer do legado do mosquito de bunda de gr-fino uma folha de rosto da cidade. O hotel garantia os custos da grfica, pelo direito a um anncio permanente na quarta capa. O resto era conosco. Mas sem salrio. Tudo pela arte.

Topamos.

E fizemos com que a Finesse passasse a circular no eixo bomio entre o Teatro Oficina, de Jos Celso Martinez Correia, ao Arena, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri estendendo-se um pouco mais dali at o Juo Sebastio Bar, de Paulo Cotrim, que comprava uma centena de cada edio, para oferecer a seus clientes mais ilustrados. A tiragem, porm, era modestssima: mil exemplares. O que isso poderia interessar a um Glauber Rocha, cuja carreira subia como um rojo de So Joo, em todas as pginas?

Pois acredite. Glauber j estava de p s 8 horas da manh daquele sbado. E, pelo visto, era a nica pessoa acordada naquele prdio da Rua Santo Antnio, logo ao final, direita, do Viaduto Maria Paula, e bem prximo do Ferros Bar, onde Geraldo Del Rey e sua bela Tnia deviam ter varado a madrugada. Com certeza ainda estavam em sono profundo. Eles e toda a vizinhana. Sinais de gente ali s os das minhas pisadas ao deixar o elevador e me encaminhar porta do apartamento. E os passos de Glauber Rocha atrs dela. O silncio permitia perceber que ele rondava na sala, espera do toque da campainha. Recebeu-me com um formal aperto de mo. E no fez qualquer meno para nos sentarmos. Vai ver uma conversa ali iria acordar os donos da casa, pensei. Ento puxei do bolso duas laudas com as perguntas que pretendia lhe fazer.

- Posso deixar isto, para voc responder depois? perguntei-lhe, falando baixo. Ele tinha 25 anos, apenas um a mais do que eu. Da no cham-lo de senhor.

Com um gesto de assentimento, acompanhado de um Hum-hum, deu uma olhada rpida no questionrio datilografado, colocou-o sobre um mvel ao nosso lado, logo entrada do apartamento, e me convidou para tomar um caf com po e manteiga, no botequim da esquina. Seu mal era a fome, voltei a pensar. Se no, o que havia sido feito da voz daquele cabra que tinha fama de ser falador como o co? s 8 horas da manh, Glauber Rocha no combinava com a lenda noturna a seu respeito, que circulava nos bares de So Paulo. Nem parecia o autor de um texto exuberante Memrias de Deus e do Diabo em terras de Monte Santo e Cocorob , que me provocara um impacto to forte quanto um conto de Joo Antnio, o Malagueta, Perus e Bacanao, publicado na mesma revista, a Senhor, que era editada no Rio, e que todo paulistano por dentro lia. Hoje, traduz-se esse por dentro como cult, ai! Meus sais!

Mas ora! Ele ia se dar ao luxo de sentar-se diante de uma mquina de escrever para trabalhar de graa para uma revista nanica! E ainda tendo de pagar do prprio bolso o desjejum do seu entrevistador! Era pouco ou queria mais?

Sim, ia ter mais.

De p, mal-ajambrado nas vestes matinais, a barba por fazer, o cabelo desgrenhado e o umbigo no balco do botequim, j matando quem o matava, Glauber soltou o verbo. E disse que havia lido todo o ltimo nmero da tal revistinha. Elogiou o projeto grfico (tambm, era de Valdi Ercolani, um diretor de arte top meus sais de novo! de linha). Quanto ao contedo editorial, tinha crticas a fazer, com um pedido de desculpa por estar se metendo em meu trabalho. Tenho alguma experincia em jornalismo, ele disse, modestamente. Editei cadernos culturais na imprensa baiana e agora colaboro regularmente com a revista Senhor, que muito bem feita, como voc deve saber. Sim, sabia. Agradeci-lhe pelo interesse, leitura de tudo, comentrios que quisesse fazer. A ele se sentiu vontade para criticar os textos da revista, deixando-me embasbacado com sua capacidade de citar de memria trechos e mais trechos deles, no poupando os que considerava bobos.

- Veja se isso l uma boa maneira de comear uma frase: Em s conscincia... Voc devia ter copidescado essa bobagem!

Expliquei-lhe que o autor era uma estrela da imprensa paulista, assim como os demais, todos grandes nomes do jornalismo, das letras e do teatro, que escreviam de graa. A revista era apenas uma curtio, para quem escrevia nela. Ns, os editores, Franco Paulino e eu, no nos sentamos no direito de mexer nos textos de uma turma com tanto esprito de colaborao.

Foi a que ele disse:

- Sendo assim, o negcio fica complicado. Mas como paulista escreve mal, hein? Voc no acha?

No. No achava. Mas o jeito que ele falou isso foi engraado. Encerramos o nosso caf da manh com po e manteiga e uma boa risada. De p. Ser que ele nunca se sentava?

Na despedida, Glauber prometeu entregar a entrevista na segunda-feira seguinte, noite, na porta do cinema, onde me enfiaria para a estria paulistana de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

O segundo encontro

Cheguei l hora combinada. E l estava ele, de barba feita, banhado, escovado e vestido com um palet azul. E a entrevista num bolso. Fez a entrega dela, em mos. E me empurrou para dentro do cinema.

Vi o seu filme com os ps em suspenso, sem conseguir mant-los no cho. Grande filho da me. Como havia chegado a tanto, mais ou menos na minha idade? Quando os aplausos cessaram, um homem comeou a discursar, com a voz inflamada, no mais altissonante estilo revolucionrio. Saio. E reencontro o Glauber, andando de um lado para o outro, na ante-sala do cinema. Parece que ele nunca se cansa de ficar de p, pensei.

Ao me ver, parou. E perguntou:

- O que voc achou?

- o seu filme definitivo.

- No diga isso. Ainda vou fazer muitos.

Ali fora, dava para se ouvir uma nova saraivada de palmas, em meio a assovios e apupos. Glauber balanou a cabea de um lado para outro, visivelmente contrariado. Disse:

- Estou preocupado com essa assemblia a dentro. Pode dar encrenca com os militares.

Ento me contou que, naquele ano do golpe militar, ele fora obrigado a exibir o Deus e o Diabo na Terra do Sol para um grupo de oficiais do Exrcito, para obter a liberao da fita. Numa fala do capito Corisco, interpretada por Othon Bastos Homem, nessa terra, s tem validade quando pega nas armas para mudar o destino. No com rosrio, no, Satans! no rifle e no punhal! -, ele sentiu uma mo bater-lhe no ombro. Apavorado, olhou para trs. E viu um major alagoano, que lhe disse: Pode botar esse filme nos cinemas, cabra. um filme de macho!

Nunca mais o vi, em pessoa. Nunca mais ele teve 25 anos e eu 24. Nunca mais foi to fcil chegar perto de um homem to talentoso, j a caminho de tornar-se uma celebridade internacional, com tanta ateno para um qualquer, que tomava o seu tempo a troco de nada, sem que ele se sentisse assim. Glauber Rocha me entregou, numa segunda-feira, as respostas ao questionrio que lhe passei, no sbado anterior. E isso num momento em que ele estava envolvido com o lanamento do seu clebre filme, ou seja, em que estava no centro das atenes. Visto isso agora, em retrospectiva, me impressiona tanto a disposio dele em responder a todas as minhas perguntas, quanto a epgrafe que escreveu para a entrevista, que vai abaixo, do jeito que ele fez, entre parntesis e em letras minsculas:

(se eu morr nasce outro,

porque ningum nunca pode

matar so jorge, santo do

povo capito corisco, plano

265, seqncia 446, de um fil-

me rodado em monte santo

e cocorob, serto brabo)

Eplogo

A entrevista de Glauber foi endeusada e detratada, como era previsvel. Um sucesso! Mas, depois da sua publicao, a revisteca iria ficar com os seus dias contados. S teve mais uma edio, com destaque para uma reportagem de Eurico Andrade, intitulada Chapu de Couro, o Cangaceiro Bossa Nova.

A ltima reunio com o patrocinador:

Um leitor da revista esteve aqui e me fez muitas perguntas - disse o gerente do hotel que bancava as faturas da grfica. E nenhum elogio ao trabalho de vocs.

Era um coronel.

Mesmo tendo o seu nome no expediente como diretor-proprietrio, aquele gerente (chamava-se Pio) nunca se metera no que estvamos fazendo ou deixando de fazer. Agora estava se metendo, de uma vez por todas. Por medo, o mais humano dos sentimentos, j o disse o sbio Millr Fernandes.

E assunto encerrado.

A entrevista de Glauber Rocha, aos 25 anos

(Com os devidos agradecimentos ao cineasta Eduardo Escorel, que a guardou, e a Anabela Paiva, que selecionou os trechos que vo aqui, republicados por ela e Regina Zappa, na capa do Caderno B do Jornal do Brasil, em 27 de dezembro de 1997. No menos: a Franco Paulino).

Eu esnobo a tcnica: no sei mexer em moviola, no manjo nada de som. E acho que cmera tem alma.

Sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol:

No tem nada de novo. Desde a criao do mundo que Deus anda de mos dadas com o diabo. Apenas o velho fica sempre esquecido e por isso quando redescoberto aparece com ar de novidade. O filme to novo como as baladas romanescas da Idade Mdia, como o Apocalipse, como a tragdia, como o latifndio que s novidade (mesmo) no nosso serto.

Tcnica

Segundo Alberto Cavalcanti, a tcnica esconde o lixo. Eu esnobo a tcnica. Pra seu governo, no sei pegar em fotmetro, no sei mexer em moviola, conheo mal o jogo de lentes, no manjo nada de som. Mas sei que a melhor tcnica aquela que expe aquilo que a gente quer dizer. Assim, eu e o meu parceiro de fotografia, Waldemar Lima, estamos sempre em expectativa, observando os atores, a paisagem, a luz, buscando o clima. O clima vem quando a cmera fica mgica. Cmera tem alma. O negcio fazer mandinga e esperar o santo descer. A ento a gente bem capaz de fazer um take de quatro minutos, na mo, entre luz e sombra, entre foco e fora de foco, balanando ou no. Ser possvel ir aos infernos de outra maneira?

Repercusso no exterior

Esse negcio de repercusso na Europa conversa tpica de gente subdesenvolvida e colonizada. Pra mim, fama na Europa no significa nada. verdade, falando srio. A crtica francesa, falando bem ou mal, no muda nada. Eu no topo aqueles caras dos Cahiers - um bando de literatos, que vive na superestrutura, falando bobagem. Os italianos so melhores, mas so radicais, historicistas demais. Os ingleses so quadrados e frios. Assim, pouco me interessa o que me digam. Falaram bem de Deus e o diabo mas se tivessem falado mal eu juro que no me abalaria. A nica opinio vlida para mim a da juventude e do pblico. A juventude gostou pra valer, e o pblico gostou e desgostou. Assim eu acho que vinguei 75% e isto j muito, e isto me enche de vontade pra jogar pra frente e botar pra jambrar na prxima fita.

O que Glauber quer?

Fazer onda. Abrir bate-papo sobre assuntos sagrados. Demolir os figures, os produtores boais, os diretores comerciais, os exibidores ladres. Discutir e achar que o cinema novo, o cinema de autor, o que vale. Tudo o que digo pode no ter importncia um ms depois, mas na hora funciona. Sempre. por isso que eu tenho muitos inimigos. Mas tem colegas que compreendem e continuam meus amigos. Veja o (Walter Hugo) Khoury, por exemplo. um autor, um artista srio, pesquisador, firme nos seus propsitos. Eu discordo do cinema dele, mas apenas no plano das idias. E no fundo admiro a obsesso de um cineasta que procura um objeto difcil mas que, hoje acredito, ser alcanado. Digo isso para esclarecer a quem pensa que eu combato o Khoury.

Arte brasileira

No existe ainda a verdadeira arte brasileira. Estamos procurando. O Tom (Jobim) na msica, o (Jorge) Mautner no romance, o (Lindolf) Bell na poesia, o (Gianfrancesco) Guarnieri no teatro e muitos outros todo mundo procurando, cavando a terra e a angstia, cavando a alma e o sistema social, cavando a esttica e a linguagem. Todo mundo est atrs, trabalhando em vrias veredas como no serto. Acho que a arte brasileira est nascendo desde o teatro de Anchieta um processo que vai levar mais 600 anos. A raa, a terra, a natureza o nacionalismo vem desde aquele horroroso Baslio da Gama. Jos de Alencar, Lima Barreto, os poetas romnticos, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Raul Pompia, Nepomuceno, Mrio de Andrade, Portinari, Volpi, Villa-Lobos, Niemeyer, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, o poeta Vinicius, Nelson Pereira dos Santos e Z Kti esto todos na jogada. preciso ter abertura, abertura mesmo, porque todo grande artista um revolucionrio. Arte e liberdade um corpo s, cangaceiro de duas cabeas, como dizia o capito Cristino, vulgo Corisco.

O serto

Eu sou do serto. No serto tem muitas veredas, como diz o mestre Guima. No serto, afinal de contas, a gente bebe uma selvagem metafsica. Alis, sou do serto, modstia parte, como tambm o mestre Villa-Lobos. Esta a mistura o resto coisa do co, do demo, do sol, do amor. Est por dentro?

Pblico

O povo entende na medida do possvel. No entendo direito de pblico. Acho que o negcio no ser quadrado, isto , dar chance para todos pensarem. Ser intelectual ou no ser besteira. Intelectual, pra mim, um camarada que fica falando em mesa de bar e pichando todo mundo.

Influncias

Faulkner, Buuel, Einstein e Joyce, Graciliano Ramos e bate-papo de esquina, a Bblia e sobretudo Villa-Lobos, Kurosawa e os westerns americanos, Rosselini e Paulo Saraceni, a Bahia e a luz atlntica, o amor, o meu poeta Vincius, Guimares Rosa e msica do Nordeste e Carlos Drummond, So Jorge, Sebastio, Parsifal, Visconti, Romeu e Julieta, Aquiles e Salomo, Didi, Pel e Garrincha sem os quais difcil fazer com classe, eficincia dramtica e malcia improvisadora que destri os esquemas e transforma a tela em projeo da vida. Eu sou produto da minha vida mesmo e da minha razo que tenta emergir do caos, caos com K, se que o Mautner aceita.

Resistncia cultural

Acho que o melhor negcio agora resistncia cultural. O povo precisa de resistncia cultural. Muita coisa est errada, os artistas pensavam mas no estavam com o povo. S deve existir a estrutura pessoal, libertria, rebelde, incomodativa, revolucionria e transformadora do artista falando numa linguagem to profundamente humana que todos entendam. Se no tivermos resistncia intelectual vamos cair na mais negra misria, vamos cair no fascismo, vamos ver a democracia ser apenas um rtulo demaggico. Quando um povo comea a ser amordaado, o artista deve abrir a boca bem alto e falar tudo, denunciar. O inimigo da poltica a Arte. Voc veja na Espanha, veja na Rssia, veja nos Estados Unidos. Quando os caras engrossam de um lado, os artistas engrossam do outro.

Gnio ou doido?

No sou nada disso. Talvez eu seja apenas inconseqente. Deixa a maturidade chegar para eu ver direito. O que eu acho, como diz o poeta Vincius, meu irmo mais velho, que quem de dentro de si no sai entra direto pelos canos. O negcio cmara na mo e idia na cabea.

Entrevistas

A gente deve falar pouco, porm firme. Agora, se para falar mesmo, tem que ser como mestre Villa: os violoncelos tudo doido, as trompas tudo alucinada, os tambores tudo correndo, os travelling, tudo montado sem continuidade. Geraldo Del Rey e (Antnio) Pitanga gritando, Waldemar no rodopio, o mar atlntico rebolando de uma forma que quando a razo recusa o corao aceita e perdoa. No assim no amor?

Um modo de ser campeo do mundo

Tudo voltou ao normal na redao da ltima Hora de So Paulo, assim que, naquele ano de 1962, a sua tropa de reprteres e fotgrafos regressou do Chile, bafejada pela glria de ter sido testemunha ocular da segunda conquista brasileira em uma Copa do Mundo. Na retaguarda, ficaram os que de fato iam fazer o jornal circular, at em edies extras, que esgotavam rapidamente nas bancas. Trs deles entre os quais se inclua o autor destas linhas ganharam um prmio de consolao. Uma viagem ao Rio de Janeiro, aonde chegariam ao amanhecer de um dia em que as musas deviam estar despertando para inspirar poetas como Antnio Maria, o de Manh de Carnaval e Valsa de uma cidade.

Bem, c estava eu, crente que ia ter tempo para pegar um bronze em Copacabana. E para perder a respirao no Corcovado e no Po de Acar, que s conhecia de cinema ou atravs dos cartes postais. Para descobrir os templos da bossa nova e do samba do morro. Para cair na gandaia. E eis que, de repente, uma notinha do Jornal dos Sports, o cor-de-rosa, fez cessar tudo que a antiga musa cantava. No era que Man Garrincha ia dar uma festa? E sabe onde? Em Pau Grande, l na Raiz da Serra, em que havia nascido e ainda vivia.

Corri para a Praa da Bandeira, pois a redao da ltima Hora carioca ficava naquelas bandas. E, ofegante, cheguei sala do seu editor de Esportes, um francs gordo e afvel um modo de ser gordo ser bonacho -, chamado Albert Laurent. Esperava que ele j soubesse que o anjo das pernas tortas, bicampeo mundial, o Demasiado Garrincha que tanto fascinava o mundo, a alegria do povo etc, agora ia combater sombra, longe dos holofotes e do glamour do Rio. No, ele, o chefe Albert, no sabia de nada. Mas tratou logo de escalar carro e fotgrafo (um outro iria participar da expedio, voluntariamente), para a cobertura do evento, no dia seguinte, um domingo.

Ento ns fomos, atingindo o nosso objetivo por volta das 11 horas da manh, quando descemos de uma kombi na praa principal de uma vila operria, que gravitava entre um morro e uma indstria de tecidos, a Amrica Fabril. Garrincha morava numa casinha daquela praa, igual a todas as outras. No foi difcil descobri-la. Era a de maior entra-e-sai da vizinhana, ajudando nas providncias do almoo, a ser servido num abrigo, o ponto de encontro da comunidade.

Entregue ao af de carregar engradados de cerveja e refrigerantes, enquanto as mulheres se encarregavam de copos, pratos e talheres, de vez em quando ele embocava pela casa adentro, para dar uma olhada no leito que estava assando em sua cozinha, e cujo cheiro sentia-se da porta. Concentrado numa lida que ia do seu espao privado ao pblico, ele dava a impresso de no querer perder tempo com conversa, muito menos com quem nem estava convidado. Para todos os efeitos, o gape fora planejado apenas para os ntimos, ou seja, os da sua tribo e ningum mais. Apesar disso, ele no se recusou a posar para uma foto, ao lado da mulher, dona Nair, e tendo as sete filhas do casal formando uma espcie de escadinha, da mais velha ltima, bem pequenininha. Claro est que bastava esta para pagar a viagem. Na manh seguinte, tal foto dominaria a primeira pgina do jornal, tanto na edio de So Paulo quanto na do Rio.

No tardou a chegar mais um carro, este do Jornal do Brasil, trazendo o Oldemrio Toguinh - um reprter que fez escola e histria -, tambm com um fotgrafo a tiracolo. Concorrncia na parada. E mais estranhos no ninho do Garrincha, que continuava de bico calado. At ver que a mesona posta no abrigo estava totalmente preparada. Ento ele olhou em volta e disse: Chegou a hora. No, no era a de avanar sobre o leito assado. Mas a de subir o morro e bater uma bola, para abrir o apetite. L em cima havia um campinho de futebol, onde ele fora descoberto por um olheiro do Botafogo. Era l que Man Garrincha ia fazer a sua primeira partida, depois da Copa do Mundo, no Chile. E no mesmo time de outros tempos - com os seus inseparveis amigos Sungue e Pincel -, que perdeu de 1 x 0 para o outro, de todos os outros do lugar. E este resultado virou manchete, que a UH noticiou como furo nacional, pois naquele tempo o JB no circulava s segundas-feiras.

E assim se conta tambm, e por tabela, um modo de ser reprter brasileiro.

Ele era a alegria do povo, o anjo torto, a cujos ps o mundo se curvava. O mundo em duas Copas. A da Sucia, em 1958, e a do Chile, em 1962.

Relaes transatlnticas

(Em homenagem a Alexandre ONeill, um poeta bestial, p,

neto de irlands e parente de Santo Antnio)

AUTO-RETRATO

ONeill (Alexandre), moreno portugus,

Cabelo asa de corvo; da angstia da cara,

Nariguete que sobrepuja de travs

A ferida desdenhosa e no cicatrizada.

Se a visagem de tal sujeito o que vs

(omita-se o olho triste e a testa iluminada)

o retrato moral tambm tem os seus qus

(aqui uma frase censurada...)

No amor? No amor cr (ou no fosse ele ONeill)

e tem a veleidade de o saber fazer

(pois amor no h feito) das maneiras mil

que so a somovente esttua do prazer.

Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se

Do que neste soneto sobre si mesmo disse...

Lisboa, 25 de junho de 1965.

Ontem desembarcou aqui um brasileiro sem passagem de volta. E com apenas 600 dlares no bolso. Ele tem 24 anos, nasceu na Bahia, mas veio de So Paulo. Viera na classe turstica de um navio italiano bonito, o Augustus que fazia a linha Buenos Aires-Gnova no qual embarcara no porto de Santos, ao anoitecer de um dia cinzento. Chegou a Lisboa nesse domingo, num fim de tarde ensolarado, oito dias depois.

primeira vista, a cidade de casario senhorial, coberto de telhas, a admirar-se no espelho das guas do Tejo, era mesmo cheia de encanto e beleza, como a cantavam, nos dois lados do Atlntico. Se o que vs no apenas um monte de casas velhas, tu a mereces, ele se disse. Bela porta de entrada Europa! Mas haja expectativa, ansiedade, incerteza diante de seu novo mundo, dali por diante.

De mala mo, desceu do navio, despachou-se na alfndega sem problemas, recebeu e leu um telegrama, assinado por um desconhecido, que lhe desejava boas vindas e se desculpava por no poder recepcion-lo, em virtude de um compromisso de ltima hora, intransfervel. Grata surpresa. Sentiu-se a adentrar um territrio hospitaleiro. E pegou um txi, que o levou para uma penso na Praceta Joo do Rio. Precisava ficar perto da Praa de Londres, onde havia um emprego sua espera, numa agncia de publicidade, garantido pelo prprio dono dela o senhor Coelho -, numa carta que ele portava e qual respondera informando o ms e o dia em que chegaria, da o telegrama que lhe entregaram, ao desembarcar.

Instalou-se na penso, onde a mesa era farta e o quarto confortvel. Respirou os ares da praceta frondosamente arborizada, mergulhou numa banheira de gua quente e dormiu o sono dos viajantes. Hoje acordou cedo, bem dormido, mas ansioso para apresentar-se empresa que, logo descobrir, fica num belo endereo. Marinheiro de primeira viagem, ele se regozija pelo mar de almirante em que navega at agora. Aguardemos, porm, a sua primeira tormenta, logo ao chegar ao que julgava o seu porto seguro, e ser recebido por um gerente que, do alto da sua franqueza gerencial, disse-lhe, de cara, na lata, sem mais delongas, que ele, o brasileiro, no devia ter vindo. Sua mudana para Portugal havia sido um equvoco: Pensvamos que o senhor fosse um desenhador e no redactor.

Imagine o pnico. Os seus 600 dlares mal dariam para uma passagem de volta. Irredutvel, o gerente esclarecia-lhe que Portugal no precisava importar redactores publicitrios brasileiros, pois os tinha de sobra, a maioria romancistas e poetas famosos, como Jos Cardoso Pires e Alexandre ONeill, j os havia lido?

Nada a fazer. S lhe restava (a ele, o senhor gerente), desculpar-se pelo mal-entendido e... Passar bem.

O brasileiro no se deu por vencido: Quer dizer que a assinatura do seu patro no significa nada para o senhor? A pergunta desestabilizou toda a convico com que o at ento empedernido gerente o despachava. Percebeu isso pelos seus visveis sinais de hesitao, ao v-lo pegar um leno e pass-lo na testa, a dizer:

- Deixemos que ele prprio decida.

E telefonou para o senhor Coelho, que se encontrava em casa, a cuidar de assuntos pessoais, informou. O patro no hesitou em honrar o compromisso assumido atravs de uma carta transatlntica. E pediu ao gerente para passar o telefone ao redactor brasileiro. Para lhe dar as boas-vindas, desta vez de viva voz. Ufa!

Comear amanh. Portanto, hoje ter tempo para flanar pela cidade. Desceu e engraxou os sapatos em frente ao Caf de Londres, enquanto se refazia do transe vivido nas primeiras horas do dia. Aquela situao embaraosa poderia ter sido evitada, se o tal gerente, ao agir como um co de guarda patronal, tivesse raciocinado com rapidez, e consultado o patro, antes de atac-lo (a ele, o recm-chegado), com todas as unhas e dentes. Que cara, quer dizer, gajo, de raciocnio lento! Seriam todos os portugueses assim, e cheios de m vontade com um brasileiro? Mas no. Pela diligncia e simpatia do senhor Coelho no podia bot-los num mesmo saco.

Ficou um tempo observando os homens que iam e vinham pela calada, todos muito velhos, tristes, cabisbaixos, pesades, um passo hoje, outro anteontem, a dar voltas em torno de si mesmos, num crculo de desesperana. Como se carregassem nas costas e na alma o fardo de quatro dcadas de totalitarismo - na era de Antnio de Oliveira Salazar -, trs sculos de inquisies, dois mil anos de cristianismo. Parecia no haver nesta cidade uma s vivalma da sua idade. Os jovens estavam na guerra na frica ou haviam fugido Europa adentro. Perguntou-se o que tinha vindo fazer aqui. Da a pouco perceberia que a viagem havia comeado a valer a pena.

Foi assim:

No Caf de Londres, ainda a remoer um resto de angstia, pelo impasse que o tal gerente criara, lembrou-se de que precisava telefonar para um certo Galveias Rodrigues, diretor da Telecine-Moro, a maior produtora de filmes publicitrios de Portugal. O motivo da ligao era um presentinho que ele trazia do Brasil um boizinho de barro do mestre Vitalino -, enviado por um diretor de arte de So Paulo chamado Laerte Agnelli, que havia trabalhado seis meses em Lisboa. Desenhador podia, claro!

Apressou-se em comprar ficha e se valer de um telefone pblico. Galveias Rodrigues o atendeu prontamente. Em menos de uma hora j estava em seu gabinete. E dele sendo levado a conhecer os estdios de filmagem, sala de projeo, filmes produzidos, story-boards de comerciais em produo e, por fim, a ala dos criativos. Foi a que o nome de Alexandre ONeill lhe foi mencionado pela segunda vez, nessa manh. Logo, quase que o conhecia, antes de a ele ser apresentado.

O poderoso Galveias Rodrigues despediu-se, deixando-o aos cuidados do seu prprio redactor, um poeta bestial, p, que adorava o Brasil, sem nunca l ter ido. Deu para notar isso logo entrada da sua sala, que tinha uma das paredes decorada com crnicas de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Vincius de Moraes e Rachel de Queiroz.

Com que ento s brasileiro! ele exclamou. Nasceste num pas grande e por isso andas pelo mundo como se estivesses atravessando um quintal.

- E o que dizer dos portugueses, que nasceram num pas pequeno e se meteram em quase todos os cantos do planeta?

- p! Agora me destes uma volta.

Ato contnuo, Alexandre ONeill levou sua inesperada visita parede, na qual colara tambm poemas de Joo Cabral de Melo Neto. Ao mostr-los, disse ter sido o organizador da primeira antologia de Joo Cabral publicada pela Portuglia Editora, em 1963. E que era amigo dele. Costumava visit-lo em Sevilha, onde o poeta brasileiro da sua maior admirao diplomaciava, como cnsul do Brasil. Encerrando esse captulo, comentou o rigor de Joo Cabral com as palavras, que lhe parecia obsessivo:

- Ele afia tanto a ponta do lpis que ainda vai acabar cortando os dedos.

Antes de partirem para almoar, ele pegou o seu palet, que estava pendurado nas costas de uma cadeira. Enquanto o vestia, surpreendeu o brasileiro com uma observao prosaica:

- bonito este teu casaco.

- O teu tambm bacana.

- Mas no tem o corte e o caimento deste teu.

- Foi feito sob medida, para a viagem. No entanto, no tem l essas diferenas do teu. A no ser na cor.

- Queres trocar?

Ento o brasileiro passou-lhe o seu palet azul e vestiu um marrom. Os dois encaminharam-se para um espelho. E concordaram que a permuta havia cado bem em cada um. Alm de selar o comeo de uma amizade, que atravessaria os tempos. Foi na casa de Alexandre ONeill que o brasileiro encontrou guarida, ao ficar desempregado em Lisboa e por quatro meses! , sendo assim recebido, Rua da Saudade, 23:

- No precisas de emprego, mas escrever. Vou te tratar a po e gua, para que escrevas.

- E por que achas que tenho que escrever.

- Porque um dia, logo ao chegares, recitastes para mim, de memria, trechos e mais trechos de Scott Fitzgerald. Ento eu pensei: Tenho que levar esse gajo a srio.

Amigo

Mal nos conhecemos

Inauguramos a palavra amigo

Amigo um sorriso

De boca em boca,

Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,

Um corao pronto a pulsar

Na nossa mo!

Amigo (recordam-se, vocs a,

Escrupulosos detritos?)

Amigo o contrrio de inimigo!

Amigo o erro corrigido,

No o erro perseguido, explorado,

a verdade partilhada, praticada.

Amigo a solido derrotada!

Amigo uma grande tarefa,

Um trabalho sem fim,

Um espao til, um tempo frtil,

Amigo vai ser, j uma grande festa!

Claro est que aquele brasileiro ainda no havia lido isto. E que, at o dia 25 de junho de 1965, no fazia a menor idia de quem era Alexandre Manuel Vahia de Castro ONeill de Bulhes por um lado, neto de um irlands, e, por outro, parente de Santo Antnio, que tambm era um Bulhes. Portanto, no sabia que ele, aos 40 anos, era um dos maiores nomes das letras portuguesas do sculo 20, s quais legou pginas memorveis, sobretudo em versos, como os de Um adeus portugus, A pluma caprichosa, O poema pouco original do medo, O pas relativo, Portugal.

Sua obra potica est toda reunida num s volume, de mais de 500 pginas. Publicou livros de crnicas, com ttulos curiosos, como As horas j de nmeros vestidas e Uma coisa em forma de assim. Amou muitas mulheres (o brasileiro desta histria conheceu algumas delas: Nomia, a me de seu filho Xaninha, Pmela e Teresa, com quem teve outro filho). Mudou de endereo uma vez, para a Rua da Escola Politcnica, 48. Teve um programa de TV, coluna em jornal, e muitos patres, at no achar mais quem lhe desse emprego. Entre os altos e baixos, viveu rasca, ou seja, com problemas de dinheiro. Viajou ao Brasil em 1983, quando conheceu o Rio, So Paulo, Salvador e Fortaleza, fazendo parte de uma delegao de escritores, que inclua Jos Saramago, Ldia Jorge, Jos Cardoso Pires e Lobo Antunes. (Ao embarcar de volta a Lisboa, no Galeo, disse: - Quem chega por este aeroporto pela primeira vez, fica a achar que est a chegar num dos pases mais ricos do mundo.).

Alexandre ONeill bebeu e fumou demais. Sofreu o primeiro enfarto aos 52 anos. Morreu no dia 21 de agosto de 1986, aos 62.

Em 6 de julho de 82, ele havia publicado no Jornal de Letras, de Lisboa, a seguinte crnica:

Quando se est com pane cardaca o universo mngua e um sujeito desliga. Passa para a categoria de bom doente para ver se salva o canastro, mas no tem propriamente medo. S tem medo que se enganem nos remdios e lhe enfiem os que so para algum vizinho... De resto, nada mais, a no ser que, quando se volta para casa, se sente tudo fora do stio e no se acredita que o canastro volte normalidade. Nem com um jornal na mo se pode andar. Nem se pode caminhar contra o vento. Nem... Nem... Nem... At que um dia um sujeito se sente de repente melhor que novo e recomea a fazer asneiras...

*

Lisboa, 6 de novembro de 1995.

Numa noite escura da alma so sempre trs horas da manh.

Alexandre ONeill: esta frase a de Scott Fitzgerald (lembra?) e serve perfeio para revestir as horas j de nmeros vestidas, sem que eu consiga pegar no sono. Vem um motorista me buscar aqui no hotel, s sete, para me levar ao aeroporto, onde devo embarcar para Roma, se sobreviver at l. Que coisa estranha: rodei, rodei, rodei para, afinal, vir morrer em Lisboa. Estou com medo. E achando que desta noite no escapo. No adianta mudar de posio na cama, deitar de lado at o ombro doer, esperando que o sono chegue. J fui ao banheiro vrias vezes, me olhei no espelho, pra ver se h algum sinal de morte na minha cara, que parece normal. J bebi potes de gua, e nada do sono baixar. estranho mesmo. Muito estranho. Para piorar as coisas, vm-me memria uns versos da sua lavra:

Eu estava bom pra morrer

nesse dia.

No tinha fome nem sede,

nem alarme ou agonia.

Comigo me desavenho nas horas que vo se vestindo de branco.

Estou no Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade. Ainda h pouco cheguei janela e vi as rvores negras, peladas, desvestidas de folhas, como em todos os outonos de Lisboa. E pensei: Provavelmente um dia eu j tenha vivido aqui. Mas isso faz muito tempo. Foi no tempo de Alexandre ONeill. O que escreveu:

Subamos e desamos a Avenida,

Enquanto esperamos por uma outra

(ou pela outra) vida.

Estou aqui como jurado do Prmio Cames, ora veja. E vim com o romancista Mrcio Souza e o poeta Affonso Romano de SantAnna. O prmio saiu para Jos Saramago, aquele que me deu uma carona da casa do nosso amigo Fernando Santos para a sua, numa noite de fevereiro de 1984, em que fui seu hspede (outra vez!), por cinco dias.

quela altura, voc estava passando a po e gua, eu me recordo. A ponto de catar tostes para uma refeio por dia, como me contou. E remoia-se em atribulaes pelo fracasso de um casamento; um filho com problemas (parece que veio a se suicidar); nenhuma perspectiva de trabalho. Ainda assim, voc se contorcia em dvidas: se devia ou no aceitar uma bolsa mensal do Instituto Portugus do Livro, oferecida pelo presidente daquela instituio, Antnio Alada Baptista, seu amigo de todas as horas, at a ltima. (Foi ele quem me telefonou um dia, para me dizer, desolado, que voc havia entrado em coma).

- No achas que essa bolsa uma espcie de esmola? voc me perguntou, num daqueles cinco dias em que me oferecia a sua casa, pela ltima vez.

- Aceite-a como um direito. Autoral. Como um pagamento do que os editores lhe devem. E isso est vindo em boa hora, no ? foi o que lhe respondi, incitando-o a no vacilar mais, para no continuar se martirizando com a falta de dinheiro, at para o po de cada dia.

Fui encontr-lo no Instituto, depois dos seus acertos burocrticos com o Alada Baptista, conforme o combinado. Quando cheguei l, vocs dois conversavam animadamente. Voc sorria. Gostei de rev-lo de novo nimo, de uma hora para outra. O Alada levou-me a um passeio entre ruas de livros. Estava orgulhoso do trabalho que vinha fazendo ali. E eu dele, pelo bem que lhe fizera. A voc, Alexandre ONeill, que por um momento voltava a sorrir.

Dali fomos almoar com o bom Irineu Garcia, o brasileiro dos discos de poesia, amigo de toda a gente do meio literrio nos dois lados do Atlntico, e que j havia se tornado um lisboeta. No entanto, confessou-nos estar em dvida se deveria ou no voltar para o Brasil. No teve muito tempo para se decidir. Acabou sendo encontrado sem vida, pelo Cardoso Pires, num dia em que marcara um almoo com ele.

Ainda h pouco o Jos Carlos de Vasconcelos, o do JL, em que voc tanto colaborou, veio buscar o Affonso Romano de SantAnna e eu para um jantar de lordes. No caminho para o restaurante, o carro em que nos levava cruzou a Rua da Escola Politcnica. Olhei direita tentando localizar o prdio onde voc morava, mas no deu para v-lo. Depois a jornalista brasileira Norma Couri me levou ao teatro, para assistirmos a uma pea de Hlder Costa.

Findo o espetculo, o Hlder me deu uma carona para o Procpio, onde a atriz (e que atriz!) Maria do Cu Guerra nos aguardava. E, como sempre, para cobrar as minhas memrias de voc, que so as do meu tempo de Lisboa, de Portugal, quele tempo definido pelo Fernando Santos como um doce pas fascista, ento a atravessar uma das ditaduras mais longevas do mundo. E esse o pas que est ao fundo de seus poemas.

Agora, Lisboa j no parece a cidade de homens dos ps redondos, a dar voltas em torno de si mesmos, tal qual parecia ao meu primeiro olhar, naquela manh em que engraxei os sapatos na calada do Caf de Londres, no dia 25 de junho de 1965. Agora a cidade est chiquezinha, engraadinha, internetadazinha, globalizadazinha. Agora, sim, que ela desfila no luxo blindado dos seus automveis. Importados, pois, pois! Percebe-se uma nova classe nesse desfile. Resta saber de onde veio, o que faz e para aonde vai.

Hoje tarde parei diante de uma vitrine aqui ao lado do hotel, atrado por um palet bacanrrimo. Recordei-me do nosso primeiro encontro, na Telecine-Moro. Entrei na loja e perguntei o preo. 500 dlares! Ora, viva: Lisboa no era a cidade mais barata da Europa? Pensei: esse no vou poder permutar com o ONeill. Desta vez fico-lhe devendo um novo palet.

No Procpio, a Maria do Cu estava cercada de amigos, como o Raul Solnado, o comediante lendrio. De repente me chamam ao telefone. Era a Leonor Xavier, que amanh estar lanando um livro muito bem editado sobre Maria Barroso, a senhora Mrio Soares. Falando nisso, me contaram uma histria... engraada? V l. Consta por aqui que, quando voc agonizava na cama de um hospital, disse que queria a presena, ao p dela, do presidente da Repblica, que no era outro seno Mrio Soares. Ao saber disso, ele foi visit-lo. Mas deixou o hospital sem entender nada. Voc o teria enxotado, aos berros: Tirem esse homem daqui! Quem o chamou? No quero falar com ele!

Feita essa digresso (para voc rir a um pouquinho de si mesmo), volto ao telefonema da Leonor Xavier: Tu aqui e o ONeill c j no est. Desligou e veio correndo, no sei se para me ver ou ao Raul Solnado, com quem andava estremecida, mas pelo pude perceber acabaram voltando s boas.

Seja como for, gostei de rev-la. A ltima vez que a havia visto foi numa festa no Rio de Janeiro, patrocinada por ela, h muitos anos para Jos Saramago! O que acaba de levar o Prmio Cames. A propsito, estranhei um cidado que me interpelou no Procpio. Ele havia me visto na televiso, a dizer bem do premiado. Disse-me, na lata, ao jeito lusitano sem peias, que no entendia o fascnio brasileiro pelo Saramago.

- Esse gajo um chatarrudo, um antiptico, que vive a dizer mal de Portugal e continuou desatando uma data de improprios nada glorificantes a respeito do velho Z, que est famoso como um corno, e com toda pinta de Prmio Nobel. Mas aqui lhe sovam. Imagine os estilhaos verbais que sobraram para mim, por ter participado do jri e dito na televiso que o prmio era justo etc. Chia! Tudo como dantes. Dizer mal de toda a gente uma tradio portuguesa, com certeza.

Tambm diziam muito mal de voc, eu me lembro. Quando voc fazia um programa na televiso e tinha uma coluna no Dirio de Lisboa. Deviam pensar que voc estava de tripa forra, com dinheiro saindo pelo ladro. Sem terem antes o cuidado de verificar o seu saldo bancrio. A vida assim. Ou ser uma coisa em forma de assim?

Se sobreviver a esta madrugada que avana com as horas cada vez mais se vestindo de nmeros, escreverei umas linhas a seu respeito, nem que seja apenas para dizer que voc foi um amigo como poucos.

E no foi?

*

Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 2007.

Pois, pois. C estou, sobrevivendo s minhas prprias ms de baixo. E ainda condenado ao seu auto-de-f:

Folha de terra ou papel,

Tudo viver, escrever...

Um clebre poema de ONeill,

e mais dois poemas em que ele celebra poetas brasileiros

UM ADEUS PORTUGUS

Nos teus olhos altamente perigosos

vigora ainda o mais rigoroso amor

a luz de ombros puros e a sombra

de uma angstia j purificada

No tu no podias ficar presa comigo

roda em que apodreo

apodrecemos

a esta pata ensanguentada que vacila

quase medita

e avana mugindo pelo tnel

de uma velha dor

No podias ficar nesta cadeira

onde passo o dia burocrtico

o dia-a-dia da misria

que sobe aos olhos vem s mos

aos sorrisos

ao amor mal soletrado

estupidez ao desespero sem boca

ao medo perfilado

alegria sonmbula virgula manaca

do modo funcionrio de viver

No podias ficar nesta cama comigo

em trnsito mortal at ao dia srdido

canino

policial

at ao dia que no vem da promessa

purssima da madrugada

mas da misria de uma noite gerada

por um dia igual

No podias ficar presa comigo

pequena dor que cada um de ns

traz docemente pela mo

a esta pequena dor portuguesa

to mansa quase vegetal

No tu no mereces esta cidade no mereces

esta roda de nusea em que giramos

at idiotia

esta pequena morte

e o seu minucioso e porco ritual

esta nossa razo absurda de ser

No tu s da cidade aventureira

da cidade onde o amor encontra as suas ruas

e o cemitrio ardente

da sua morte

tu s da cidade onde vives por um fio

de puro acaso

onde morres ou vives no de asfixia

mas s mos de uma aventura de um comrcio puro

sem a moeda falsa do bem e do mal

*

Nesta curva to terna e lancinante

que vai ser que j o teu desaparecimento

digo-te adeus

e como um adolescente

tropeo de ternura

por ti.

................................

SAUDAO A JOO CABRAL DE MELO NETO

Joo Cabral de Melo Neto,

Voc no se pode imitar,

mas incita a ver mais de perto,

com mais ateno e vagar,

o que est como que em aberto,

ainda por vistoriar,

o que vive entre pedra e terra

e o que entre muro e cal,

o que tem vocao de bagao

e o que resiste no osso ou no ao

do osso, mais essencial.

Tateamos matria pobre

com sua mo que nada encobre

e ouvimos assoviar

versos (sem pssaro) de cobre.

De prosaico h-de ser chamado

pelos do estilo doutor,

cabeleireiros da palavra,

pirotcnicos do estupor,

que do tudo por uma ria

de alambicado tenor,

que encaixilham a dourado

morceaux choisis de orador,

mas de prosaico no foi chamado

o nosso Cesrio Verde?

O lugar-comum se repete

aqui ou do outro lado...

*

Porm adoptemos prosaico

num sentido que ao bacharel

escapar, matemtico.

Prosaico mas no aquele

que em verso incapaz de verso

por estar sempre a pr em verso,

uma sorte de tradutor

para poesia

e s vezes at um guia

do poltico amador.

Exemplo: Pablo Neruda.

Prosaico, mas sem literatura,

sem o discursivo, sem a mistura

de panfleto, notcia, ladainha.

Prosaico: o no enftico,

o que no mente a si mesmo,

o que no escreve a esmo,

o que no quer ser simptico,

o que a palo seco,

o que no toma por outro

mais fcil trajecto

quando est diante do pouco,

nem que seja um insecto.

J se deixa ver que prosaico,

assim, mal definido,

no uma atitude

que se arvore ou um laivo,

uma tinta de virtude:

um modo de ser,

mesmo antes do verso,

mesmo fora do verso,

mesmo sem dizer.

Ser neste sentido,

prosaico Melo Neto,

que no poema O Rio

cita Berceo: Quiero

que compongamos io e t uma prosa?

Ser no mesmo sentido

de Pessoa-Alberto Caeiro

(outro prosaico, mas desiludido...):

...escrevo a prosa dos meus versos

e fico contente?

Quanto a mim, ainda o bonito

me pe nervoso, o meu canito

ainda tem plumas e lindas!

e o meu verso deita-se muito,

no sobre a terra, mas em sumamas,

j com bastante falta de ar...

Poeta,

no motivo para no o saudar!

.................................................

AL, VOV!

A Manuel Bandeira,

nos seus 80 anos.

Esperei v-lo por aqui um dia, seu dentuas,

travar-lhe do brao e contar-lhe como o Maximiliano do Mxico foi parar ao [Rossio

(toda a gente julga que Pedro IV o pedestalizado),

apontar-lhe o frustrneo cotovelo lusitano

no mrmore dos cafs,

comer com Voc joaquinzinhos inteirinhos e duma s vez,

fazer boca ou boqueiro com o vinho (que era) de tosto,

mostrar-lhe como eu e o Cinatti caprichamos nas saladas

(aqui no pem coentro na salada, calcule Voc!)

saladas de alface, agrio,

coentro,

rabanete, tomate,

mais coentro,

mas cebola, no!...

Chbola, non!

...que no sai nem com o desodorizante que chamam de halazon.

Um pulo casa onde nasceu o Pessoa, sim?

(Ns no somos pessoas assim toa, no!)

E em minha casa, Rua da Saudade, a cavaleiro do rio,

Voc podia fumar escondido dos adultos

como na outra Saudade do seu Recife de menino.

Depois: broto, ou brisa

com Anarina, mas sem Adalgisa...

Ateno, Poeta: re-cepo!

Iramos deix-lo porta da recepo,

da sesso de autgrafos,

de antropgrafos,

s mos dos vestibulantes to (p)restantes.

sada l estaramos pra lev-lo ao hotel

e, esquecida a poesia, a literatura,

num repente de ternura pegar-lhe na mo:

Sua bno, Vov Manuel!

Remessa

Drinka, trinca

connosco, Manuel,

sem autgrafo nem cquetel,

que ns no podemos ter os teus oitenta,

nem com usque, nem com gua de Juventa,

Manuel!

Enquanto Nova Orleans agonizava

Esta uma viagem de volta ao ano de 1924, com uma escala em Nova York ou, mais precisamente, na livraria de Elizabeth Prall, a sra. de Sherwood Anderson, o clebre autor de Winesburg, Ohio. Trabalhava com ela um rapaz do Sul chamado William Faulkner. Ele est doido para conhecer aquele de quem acabara de ler um livro de contos - Cavalos e homens -, achando que um deles, intitulado Eu sou um louco, juntamente com o Corao nas trevas, de Conrad, eram as duas melhores narrativas curtas que j tinha lido. E definia Anderson assim: Um milharal com uma histria a contar e uma lngua com a qual faz-lo.

Elizabeth Prall deu-lhe o mapa do tesouro: seu marido estava em Nova Orleans. No ano seguinte os dois iriam passar uns dias juntos, caminhando pelo French Quarter e ao longo do Mississipi, sentando-se em cafs e no Jackson Park, passeando de barco pelo rio e fazendo excurses de iate no lago Pontchartrain.

O resultado dessa convivncia: por recomendao de Sherwood Anderson, o ainda aprendiz de feiticeiro chamado William Faulkner teria o seu primeiro romance, Soldiers pay, publicado pela editora Boni & Liveright, o que lhe abriria o caminho para uma vasta e poderosa produo. Ele viria a legar ao mundo ttulos memorveis como Enquanto agonizo, O som e a fria, Luz em agosto e Palmeiras selvagens, que lhe deram o passaporte para o Prmio Nobel.

Faulkner ficou seis meses na capital da Louisinia. Nesse perodo, escreveu 16 textos para o caderno dominical do Times-Picayune, que teve sua circulao suspensa quando Nova Orleans agonizava, sob os efeitos de um furaco.

Essa sua incurso jornalstica est no livro Esquetes de Nova Orleans, que saiu aqui em 2002, pela Editora Jos Olympio, em traduo de Leonardo Fres, no qual captei umas linhas encantadoras (O turista Nova Orleans) daquele que sempre foi um dos meus santos de cabeceira:

Uma cortes, nem velha porm nem mais to nova, que evita a luz do sol para que a iluso de sua glria passada se preserve. Os espelhos de sua casa so baos e as molduras esto bem desbotadas; toda a sua casa fosca e bela com o tempo. Graciosamente ela se reclina numa espreguiadeira opaca de brocado, h um cheiro de incenso que a rodeia, e suas vestimentas se dispem em dobras formais. Ela vive numa atmosfera de um tempo morto e mais atraente.

A pouca gente ela recebe, e atravs de um eterno lusco-fusco que eles vm visit-la. Ela mesma no fala muito, no entanto parece dominar a conversa, que em voz baixa mas nunca inspida, artificial mas no brilhante. E os que esto entre os eleitos devem ficar para sempre fora de seus portais.

Nova Orleans... uma cortes cujo poder sobre os maduros forte e a cujo charme os jovens tm de se mostrar sensveis. Todos que a deixam, em busca dos cabelos nem castanhos nem dourados da virgem e de seu peito descorado e glido onde jamais algum amante morreu, vm-lhe de volta assim que ela sorri pelo seu leque lnguido...

Esta era Nova Orleans: a me do blues e o pai do jazz. A festeira cidade do Mardi Grass, fundada em 1718 por um certo Le Moyne de Bienville. E que conheceu o apogeu entre o ano de 1803, quando foi comprada dos franceses pelos Estados Unidos, e a Guerra da Secesso, entre 1861 e 1865, que ps o Sul escravocrata na linha de fogo contra o Norte industrializado. E que, ao mergulhar num horror apocalptico, exps os grandes contrastes da maior potncia do mundo ocidental, mais competente para interferir em quintais alheios do que para cuidar dos seus.

J ter ela, a grande potncia, sido capaz de recuperar o leque lnguido de Nova Orleans? Ou a fruio da vida, no encanto que se encontrava nas suas partes mais antigas, que Sherwood Anderson, o pai de William Faulkner, desejava para todas as cidades americanas?

Por enquanto, resta a memria de seus melhores dias.

Idias de Jeca Tatu

Primeiro, vejamos qual a origem etimolgica do seu nome. E o que simboliza. Personagem criado por Monteiro Lobato em 1918, Jeca Tatu seria dicionarizado como substantivo comum, significando o habitante do interior brasileiro, especialmente o caipira da regio Centro-Sul. da que surge o popularssimo jeca. Tanto serve para definir o matuto bronco quanto qualquer pessoa sem refinamento. Em outras palavras: cafona, brega, ridcula.

Para o autor de Urups, Jeca Tatu era um piraquara do Paraba, maravilhoso eptome de carne onde se resumem todas as caractersticas da espcie. Eis o prottipo criado por ele: modorrento, a vegetar de ccoras, incapaz de evoluo, impenetrvel ao progresso; soturno, fatalista, sem noes de ptria, de civismo, nem do pas em que vive; e com um suculento recheio de supersties. Todos os volumes do Larousse no bastariam para catalogar-lhe as crendices, e como no h linhas divisrias entre estas e a religio, confundem-se ambas em maranhada teia, no havendo distinguir onde pra uma e comea outra.

Na verdade, tal tipo nada herico contrapunha-se galeria de heris da vertente literria que Lobato chamava de caboclismo. Ou seja, a que recorria, extemporaneamente, a um romantismo tardio, gerador de subprodutos do indianismo de Jos de Alencar, com suas incomparveis idealizaes do homem natural como sonhava Rousseau - de tantas perfeies humanas que sobrelevava aos ditos civilizados, em beleza de alma e corpo. A seduo do imaginoso romancista criou forte corrente. Todo o cl plumitivo deu de forjar seu indiozinho refegado de Peri...

Monteiro Lobato se interps nas encruzilhadas entre esses cultuadores dos Peris de segunda ou de terceira gerao, e os modernistas de 1922. Se no chegou a exclamar, como Flaubert a respeito de sua mais famosa personagem Madame Bovary sou eu! -, pelo menos imaginou que criador e criatura tivessem a mesma viso do Brasil daquele tempo. Ao reunir em livro uma srie de artigos publicados no jornal O Estado de S. Paulo, e em outros, intitulou-o Idias de Jeca Tatu, justificando o ttulo desta maneira: o coitado, se pensasse, pensaria assim.

Assim como? Em prol da nossa personalidade. E contra os macaqueadores do dernier cri dos homens e das coisas de Paris, incapazes de uma atitude prpria na vida e nas artes. Convenhamos: a imitao , de feito, a maior das foras criadoras. Mas imita quem assimila processos. Quem decalca no imita, furta.

Ao entrar na pele do bronco Jeca Tatu, e emprestar-lhe a sua prpria conscincia, Monteiro Lobato mais parecia um tribuno indignado contra os imitadores de toda espcie, que ele chamava de macaquitos e macaces. A edio do livro que tenho, da Brasiliense, a 13, publicada em 1969. E abre com a seguinte nota dos editores:

Temos aqui um bem estranho livro. Monteiro Lobato fala de arte, e revolucionariamente, como de costume. Sua rebeldia mais acentuada ns mal a compreendemos hoje: contra o francesismo, a francesia, a nossa completa emulao de personalidade diante da Frana. Hoje est tudo mudado. As idias de Monteiro Lobato venceram em toda a linha. No s desapareceu a unicidade da influncia francesa, como o que Lobato queria, a arte nacional, a coragem das coisas nacionais e at dum estilo arquitetnico nacional, fizeram-se lugares comuns. Abrimos o rdio e ouvimos dez nmeros de arte roceira ao passo que naquele tempo, quando pela primeira vez apareceu Pernambuco a cantar o Luar do Serto de Catulo, o acontecimento foi de tal monta que provocou um artigo seu.

curioso ler-se isso agora, quer dizer, em plena era globalizada, quando o nacional parece ir aos poucos sumindo do nosso horizonte. E quando chamar algum de nacionalista, dependendo do tom de voz, pode parecer uma grave ofensa. Mas continuemos com a leitura da nota dos editores de Lobato, a propsito do livro Idias de Jeca Tatu:

Em numerosas pginas deste volume a terra aparece em suas onmodas expresses o interior, a roa, a gente da roa, os costumes e comidas da roa. E Lobato atrevidamente antepe tudo isso chinfrineira do litoral essa civilizaozinha de arremedo e de emprstimo onde tudo so mentiras terra. Em resumo, segundo aqueles editores, ali estava um Lobato em mangas de camisa, integralmente ele prprio no pensamento e no modo de express-lo vivo, alegre, brincalho e com uma ironia s vezes levada at a crueldade.

A primeira cipoada dele na imprensa: Anda para cinco meses que abrir um jornal vale tanto quanto abrir um porco de cerva, tal o bafio de sangue que escapa dos telegramas, das crnicas, de tudo. Ora, isto afinal engulha, e sugere passeios por veredas afastadas do matadouro, onde os ps no chapinhem em lama de sangue nem se raspem os nossos olhos na rs humana carneada a estilhaos de obus. O que diria Lobato da imprensa, hoje, tanto quanto do noticirio televisivo?

Bem, tudo o que sabemos sobre o que ele pensava ento e no sobre o que ele poderia vir a pensar no futuro, que, afinal, o nosso presente. Melhor dizendo: se, de fato, pensasse, Jeca Tatu teria pensando por vezes de forma politicamente incorreta, ou jocosa, no que concerne sua viso da Histria do Brasil, por exemplo:

Enquanto colnia, era o Brasil uma espcie de ilha da Sapucaia de Portugal. Despejavam c quanto elemento anti-social punha-se l a infringir as Ordenaes do Reino. E como o escravo indgena emperrava no eito, para c foi canalizada de frica uma pretalhada inextinguvel. At a vinda de D. Joo, o Brasil no passava de ndio e mataru no interior e senhores, feitores e escravos nos ncleos de povoamento da costa, muito afastados entre si e rarefeitos. Em toda essa fase o Brasil no d de si nenhum bruxoleio de arte.

E assim vai at que um tranco de Napoleo d com o rei de Portugal para cima do Rio de Janeiro. Apesar da pressa com que arrumou as malas, D. Joo VI trouxe todos os ingredientes para uma boa implantao aqui: fidalgos de orgulhosa prospia, nobres matronas, almotacs, estribeiros-mores, aafatas da rainha, vcios de bom tom, pitadas de arte e cincia e mais ingredientes bsicos de uma monarquia preposta a pegar de galho.

Ele v a fuga da corte de D. Joo VI, quando da invaso napolenica, de modo bem irnico, beirando o sarcasmo:

Na lufa-lufa do embarque em Lisboa muita pea se quebrou, outras caram ao mar, outras ficaram esquecidas l no palcio. Perderam-se sobretudo muitos parafusos e porcas, e disso veio que, ao armar-se novamente, o Estado ficou meio bambo, frouxo de mancais e ferro.

Entre as coisas avariadas pela gua do mar apareceu a Urna a Urna das Eleies! Remendaram-na como puderam, mas nunca funcionou a contento nas terras do Brasil. Algo essencial se perdeu na travessia.

Dois frasquinhos de drogas homeopticas ningum descobriu onde paravam: um com a Noo do Dever, e outro com a Noo da Responsabilidade.

As idias de Jeca Tatu sobre a criao do estilo:

No vem dos grandes mestres das artes plsticas a feio esttica duma cidade. Vem antes de humildes artistas sem nome do marceneiro que lhe moblia a casa, do serralheiro que lhe bate o ferro dos portes e grades, do entalhador de guarnies e molduras, do fundidor, do estofador, do ceramista, de quantos direta ou indiretamente afeioam o interior da casa urbana. Como tais obreiros so numerosssimos, dilata-se-lhes a zona de influncia. Sai-lhes inteirinha das mos a casa popular como ainda a burguesa, e em boa parte o palacete rico. Ele segue dizendo que era preciso cuidar da educao artstica do operrio, ensinando-lhe o bom gosto, desabrochando-lhe o senso da arte, norteando-lhe o impulso da criatividade, para dar moldes indeterminados, mas individualssimos, cidade futura.

Para ele, era assim que se criava estilo: como feio peculiar das coisas, um modo de ser inconfundvel, a fisionomia, a cara da obra de arte. Em sntese, Jeca Lobato ou Monteiro Tatu definia toda a arte como produto conjugado do homem, do meio e do momento, mas que s adquire carter pelo estilo. E a vem uma cacetada em quem no o tem, a comear pela arquitetura:

No ter cara um mal tamanho que as cidades receosas de cri-la prpria importam mscaras alheias para fingir que tm uma.

Ele conta que quando Anatole France esteve no Brasil, mostraram-lhe nossos monumentos, crentes de que ele iria esboar uma exclamao diante deles. Mas que nada. O requintado artista s torceu o nariz:

- J vi isto mil vezes ele disse.

- Onde?

- Em toda parte. Europa, Bombaim, Port-Said.

De quanto viu s lhe interessaram velhas igrejas. Descobriu nelas uma arte ingnua, porm mais eloqente que o esperanto arquitetnico da Avenida Paulista.

E tome diatribe. Contra as nossas casas, que mentem terra, ao passado, raa, alma, ao corao. Mentem em cal, areia e gesso, e agora, para maior durao da mentira, comeam a mentir em cimento armado.

O indignado Jeca Tatu no via sequer um trinco de porta que lembrasse coisa nossa. E desancava:

Dentro de um salo Luis XV somos uma mentira com o rabo de fora. Porque por mais que nos falsifiquemos e nos estilizemos francesa, Tom de Souza e os 400 degredados berram ao nosso sangue; Ferno Dias geme; Tibiri pinoteia...

acerba a sua crtica maneira como o brasileiro mobliava-se:

Nosso mobilirio dedilha a gama inteira dos estilos exticos, dos rococs luizescos s japonezices de bambu laado. O interior das nossas casas um perfeito prato de frios dum hotel de segunda. A sala de visitas s pede azeite, sal, vinagre para virar salada completa. Cadeiras Luis 15 ou 16, mesinha central Imprio, jardineiras de Limoges, tapetes da Prsia, perdes da Bretanha, gessos napolitanos, porcelanas de Copenhague, ventarolas do Japo, dragezinhos de alabastro chins tudo quanto o comerciante de missanga importa a granel para impingir ao comprador boquiaberto.

Ento ele se admirava dos povos capazes de individualidade. E ensinava:

Na casa holandesa o estigma local comea no telhado e desce aos mais humildes utenslios da cozinha. Tudo nela cheira raa; o jardim com sua tulipa, os mveis esculpidos, os ornatos, os quadros tudo emanao de terra, criao lgica do ambiente.

Para Jeca Lobato Tatu o que nos faltava em estilo sobrava aos outros:

No lar britnico o ingls est dentro de uma moldura natural; nada destoa da sua psquica fleumtica de pirata enriquecido.

Na casa nipnica, que maravilhosa harmonia entre a gaiolinha incapaz na aparncia de resistir s brisas mas que agenta terremotos, e o japons de aspecto frgil mas que derrancou o russo!

E de casa em casa pelo mundo ele conclui que a China tem estilo e o americano (do Norte!) impe o seu, filho do big, do ferro e do milionarismo, que resulta num estilo missionrio, haurido nas velhas igrejas e conventos da era espanhola da Califrnia e do Texas. Monteiro Tatu via nisso uma forma superior de arte.

A nossa falta de estilo era uma simples questo de incultura ele avaliava. Como no nos educam o gosto e no nos ensinam a ver, no temos a bela coragem do gosto pessoal. Da porque o nosso homem culto, quando endinheirado, e bem situado no mundo poltico, quando ia comprar um objeto de arte olhava ansioso para o nome do autor, e s por ele se guiava.

Em resumo, no limiar da dcada de vinte do sculo passado tnhamos o seguinte quadro: incultura nos incultos; meia-cultura nos cultos; esnobismo nos entendidos e cubice paranica nos paredros supremos. E dentro dele evolua a feio esttica da cidade.

E qual, afinal, seria o estilo que devamos buscar?

Jeca Bento Monteiro Lobato Tatu achava que este devia ser decorrente do que os avs nos dotaram, coando-se a alma colonial atravs dum temperamento profundamente esttico, filho da terra, produto do ambiente, alma aberta compreenso da nossa natureza: e a arte colonial surgiria modernssima, bela, fidalga e gentil e modernssima de um verso de Olavo Bilac.

Ele prossegue:

Seja assim a nossa arquitetura: modernssima, elegantssima, como moderna e elegante a lngua do poeta; mas, como ela, filha legtima de seus pais, pura do plgio, da cpia servil, do pastiche deletrio.

De acordo com as idias de Jeca Tatu, a obra de arte, alm dos elementos que lhe so intrnsecos - e que so permanentes, tais como os regidos pelas leis eternas das propores e do equilbrio -, no pode prescindir desse outro, mais sutil, por vezes abstrato ou indefinvel, digo eu, mas visvel, chamado estilo. ele que revela a personalidade do artista, e o vnculo forte do seu temperamento emotivo. E as artes mais suscetveis de se impregnarem desse coeficiente pessoal seriam a poesia, a pintura e a escultura. J na arquitetura, no seria apenas o homem, e sim o meio, que imprime estilo obra. Neste caso, mesmo que o elemento individual d algo de seu, quem d tudo a coletividade.

Eis a um rascunho do Idias de Jeca Tatu, que foi o quarto livro de Lobato, conforme a cronologia de suas obras completas. E o consagrou como crtico, na opinio pblica. Homem de mltiplos interesses, Lobato, muito antes de celebrizar-se como o nosso incomparvel autor de histrias para crianas, imprimiu a sua marca de contista e ganhou notoriedade como polemista. No perdoava So Paulo, do ponto de vista arquitetnico, a seu ver um puro jogo internacional de disparates.

Homem de mltiplos interesses, envolveu-se em temerrias causas. Uma delas, foi a sua campanha contra os modernistas, seus conterrneos: Arte moderna: eis o escudo, a suprema justificao de qualquer borracheira [...], como se no fosse moderna, modernssima, toda a legio atual de incomparveis artistas do pincel, da pena... que fazem da nossa poca uma das mais fecundas em obras-primas de quantas deixaram marcas de luz na histria da humanidade.

Mas a sua luta insana mesmo foi a que chamaria no ttulo de um de seus livros de O escndalo do petrleo. Hoje, pareceria at improvvel que um dia um brasileiro tenha ido parar na cadeia por querer provar de todos os modos a existncia de petrleo em nosso pas, quando todo o aparelho do Estado, em conluio com uma empresa norte-americana chamada Standard Oil, fazia de tudo para neg-la. Por ironia do destino, o primeiro poo de petrleo aberto no Brasil surgiu no Lobato, aqui na Bahia. Aconteceu isto em 1939. O curioso que, menos de dois anos antes, em 1937, na primeira edio de O Poo do Visconde, o livro em que Monteiro Lobato ensina a geologia do petrleo s crianas, h um captulo com os pontos onde ele deveria jorrar. Vejamos o quo proftico se tornaria este trecho: A Bahia perfurou na zona dos camamus e encheu-se de petrleo; e at na zona do Lobato, nos subrbios da capital, abriram-se poos de excelente petrleo.

Jos Bento Monteiro Lobato deu dez anos da sua vida a essa campanha, da qual saiu esgotado, esmagado, mas podendo proclamar-se um vencedor. No tardou ao pas passar a colher o que ele semeou. Sim, ns temos petrleo. Por proclamar isso, com convico, Lobato acabou sendo condenado pelo Tribunal de Segurana da ditadura de Getlio Vargas, o mesmo que quando presidente democraticamente eleito, criaria a Petrobras.

Terminemos com uma avaliao feita pela sua prpria filha Ruth:

Misto de filsofo, homem de ao e artista, sofria conflitos entre a razo e o sentimento. Tolerante por princpio, no o era por temperamento. Equnime por filosofia, perdia a cabea quando se lhe antepunha obstculos. Blaguer e irritadio, calmo nas horas de tumulto e inquieto nas horas de paz, era todo um conjunto de qualidades aparentemente paradoxais mas bastante compreensveis para quem o conhecia bem.

Para ela, o maior legado que Lobato deixou foi sua coerncia de carter. Nela residia sua fora e tambm sua coragem, num mundo de hesitaes e canalhices.

E no que estamos necessitados de homens pblicos com o carter, as idias, a coragem para defend-las, de um Jeca Tatu?

Vencedores e vencidos:

histrias da nossa Histria

O carnaval dos canibais

Em priscas eras, vivia no Rio de Janeiro um povo festeiro, mas tambm chegado a uma guerra. Acabou sendo varrido do mapa nas batalhas de 1565 e 1567, que resultaram na fundao da cidade e na sua conquista definitiva pelos portugueses, quando no sobrou uma nica cabea de ndio para contar a histria.

No entanto, devemos a esse velho povo o gentlico carioca, pronunciado pela primeira vez num dia qualquer do ano de 1531, quase trs dcadas depois de o navegador Gonalo Coelho, a servio do rei de Portugal, D. Manuel I, o Venturoso, e com o florentino Amrico Vespcio a bordo aquele que deu o nome ao continente americano -, haver feito a descoberta do Rio.

Os primeiros europeus a darem com os seus costados nestas guas de sonho, som e fria, no viram a cor do que procuravam: o ouro. S avistaram ndio, papagaio e pimenta, o que j estavam fartos de ver, desde o Rio Grande do Norte, onde batizaram o primeiro acidente geogrfico em que encostaram com o nome de Cabo de So Roque, porque era o dia desse santo. Arribaram para o Sul, indo at a Patagnia. Vinte e nove anos frente, um certo capito Martim Afonso de Souza desembarcou a sua tropa na praia do Flamengo, que ento se chamava Uruumirim. As mulheres da aldeia esfregaram as mos e lamberam os beios:

- Oba! A nossa comida vem andando at ns!

Os seus homens ficaram atentos a todos os movimentos dos recm-chegados. Mas no foi logo de cara que o tacape cantou na moleira deles. Deram-lhes um tempo. Os navegantes lusos souberam aproveit-lo. E construram uma ferraria para conserto de navios. Os indgenas acharam a construo muito engraada. Carioca, carioca!, exclamaram, s gargalhadas. O que significava isto? Casa de branco. Mais tarde, carioca passaria a designar um rio que vinha do Cosme Velho e desaguava por ali onde hoje as confluncias das ruas Paissandu e Baro do Flamengo - e tambm os habitantes da cidade.

Ao levantar acampamento para ir fundar o povoado de So Vicente, no litoral de So Paulo, Martim Afonso deixou alguns de seus comandados, em misso exploratria. Mal sabiam eles que estavam sendo entregues, de mo beijada, aos temveis canibais, que iriam lhes dar combate, para impedi-los de adentrar a vida ardente da imensa mata. Foram aprisionados e devorados.

Como marinheiros de primeira viagem, aqueles portugueses desconheciam as convenes de guerra nessas terras ignotas. Perd-la, significava ir para o sacrifcio. E este se fazia em festa, numa comemorao espetacular de uma vitria no campo de batalha, que durava muitas horas. Cantava-se, danava-se, comia-se tripa forra e enchia-se a cara com uma birita extrada do milho, que se chamava cauim.

Todas as tribos amigas, das aldeias prximas s mais distantes, eram convidadas. Assim, a festana atraa um pblico de mais de quatro mil participantes. Os folguedos terminavam com um banquete. De carne humana.

Os rituais canibalsticos eram a celebrao da coragem do inimigo vencido. Ao devor-lo, os vencedores estariam recuperando as energias despendidas nos combates. Os prisioneiros deixavam-se sacrificar de crista erguida. Questo de honra. Todos se sujeitavam ao tacape corajosamente, dizendo:

- Os meus me vingaro!

Isso dava sentido execuo e valor carne do executado.

Os tupinambs, o velho povo do Rio de Janeiro desde milnios antes de os brancos chegarem, costumavam tratar as suas vtimas com algumas formalidades. Primeiro, os vencidos capturados passavam por um perodo de engorda e cuidados especiais, como o oferecimento de mulheres. Depois, eram colocados no centro de um crculo, para participarem dos ensaios das cantorias para a grande cerimnia j em preparao. Em seguida, eram interrogados, respondendo s perguntas com altivez. Exemplo:

- Sim, como convm a homens corajosos, partimos com o fim de aprisionar e comer vocs. Agora, conseguiram vencer o nos aprisionar, mas isso pouco importa. Homens valorosos morrem na terra de seus inimigos.

Quando chegava o grande dia, os prisioneiros enfeitavam-se de plumas como os outros, bebiam, cantavam, danavam e, amarrados ao meio por uma corda, desfilavam por toda a aldeia, jactando-se de suas proezas no passado. As mulheres ofereciam-lhes pedras, exclamando:

- Vinguem-se!

Eles atiravam as pedras sobre a multido. Isso fazia parte do programa da festa, da qual o carrasco no participava. Ficava concentrado, longe da fuzarca, aguardando o momento de ser chamado para cumprir a sua tarefa de justiceiro, com uma porretada de tacape na cabea dos sacrificados.

Para os portugueses, os cdigos de honra indgenas significavam apenas selvageria. E tremiam nas bases quando eram apanhados. Por isso os guerreiros tupinambs os chamavam de covardes. Mas no dispensavam a carne deles em seus repastos. Cunhambebe, o mais temido de todos os caciques, ficava triste quando no tinha um brao ou os dedos das mos de um portugus para degustar.

A ironia da histria (se tivesse sobrado ndio para cont-la) que foram os que eles achavam covardes os que acabaram vencendo a guerra, a ferro e fogo, no histrico (e abominvel) genocdio de 1567, quando se apoderaram definitivamente de um territrio que lhes deu muito trabalho para conquistar. E o fizeram coalhando o mar de sangue da o nome da Praia Vermelha -, cortando as cabeas dos cadveres e enfiando-as em estacas, num outeiro que batizaram como da Glria, exultantes pela vitria, conseguida graas ao poder dos seus canhes, muito maior do que os das flechas e tacapes dos nativos.

Eis o destino do Rio: em festa ou em guerra. Desde o tempo do carnaval dos canibais.

So Sebastio, o rei e o Rio

No sem motivo que o nome dele est associado ao do Rio de Janeiro. Antes de cont-lo aqui, recordemos a noite em que o padre Anchieta sonhou com So Sebastio, enquanto dormia atrs das barricadas de Mem de S, o comandante da conquista definitiva do Rio para os portugueses, ento sditos de um rei homnimo do santo perpetuado pelas estampas religiosas, em reprodues imaginrias de seu corpo crivado de flechas.

Tal imagem tornou-se emblemtica da intolerncia, a simbolizar o martrio dos cristos no Imprio Romano, e no s na era de Pilatos. Basta lembrar que Diocleciano (Caius Aurelius Velerius Diocles Diocletianus), proclamado imperador em 284 depois de Cristo, viria a declarar o cristianismo incompatvel com o poder do Estado, desencadeando a grande perseguio que fez mrtires na Itlia, na frica e no Oriente, at o reinado de Constantino I - de 306 a 337 -, o convertedor de Roma cristandade.

A histria do padroeiro do Rio de Janeiro comea pelo fim. Oficial romano do sculo 3, ao ser denunciado como cristo foi condenado s flechadas, das quais sobreviveu. Mas no resistiu a outras torturas. Morreu flagelado no fogo. No Brasil, tornou-se um santo popular, identificado a Oxssi nos cultos afro-brasileiros, quer a Igreja Catlica considere (melhor dizendo, tolere) a nossa diversidade cultural ou no.

Foi Estcio de S quem acrescentou o nome de So Sebastio ao do Rio, ao fundar a cidade, no dia 1. de maro de 1565. E o fez em honra a outro Sebastio, nascido em Lisboa em 1554, e rei desde os 3 anos de idade, j chamado de O Desejado, por ter vindo ao mundo depois da morte do seu pai, D. Joo. Ele s assumiria o poder em 1568, ou seja, trs anos depois de ser homenageado distncia, no sop do morro Cara de Co, vizinho do Po de Acar, por um capito do exrcito da sua me, a regente D. Catarina, incumbido de expulsar os franceses, e liquidar a Confederao dos Tamoios, os maiores entraves ocupao lusitana nestas paragens.

Dom Sebastio acabou tendo um trgico destino. Sua obstinao pelas conquistas de territrios africanos, e de entrar pessoalmente em combate, o levou a desaparecer em Alccer-Quibir, no ano de 1578. Portugal viveu sculos espera da sua volta. A expectativa desse impossvel retorno gerou um estado de esprito passadista, o sebastianismo, de longa durao e alcance, pois chegou a este lado do Atlntico, influenciando o movimento insurrecional anti-republicano que provocou a Guerra de Canudos, entre 1894 e 1897.

Os historiadores tambm fizeram de Dom Sebastio um tipo inesquecvel. um dos reis portugueses mais estudados. E o poeta Fernando Pessoa no lhe negou verso, no papel de conquistador falhado, a desfazer a eterna iluso do seu regresso:

Louco, sim, louco porque quis grandeza.

Qual a sorte a no d.

No coube em mim minha certeza;

Porisso onde o areal est

Ficou meu ser que houve, no o que h.

Voltemos a So Sebastio. Na noite de 18 de janeiro de 1567, Jos de Anchieta sonhou com ele, a bordo de um dos navios comandados por Mem de S, que, ao amanhecer do dia seguinte, iria atacar junto com seu sobrinho Estcio -, os redutos do cacique Aimber, na aldeia de Uruumirim, hoje o bairro do Flamengo. No sonho de Anchieta, So Sebastio aparecia no meio da tropa, matando um ndio atrs do outro. Como em dois dias de batalha dos cristos no sobrou um nico canibal, o apstolo do Brasil exultou com a premonio.

Barbaridade, meu santo.

A bela Susana do vice-rei

Devo-a a outra bela, Vera Barroso, a apresentadora dos Cadernos de cinema, da TVE, com quem partilho o fascnio pelas estrias da histria do Rio. Esta aqui, contada por ela nos bastidores do seu programa, encantou o maestro Joo Guilherme Ripper, a ponto de ele prometer transform-la numa pera. Trata-se de uma lenda romntica, que pode ser conferida pgina 97 do livro Rio de Janeiro em seus quatrocentos anos, publicado pela Record em 1965, no captulo Sculo XVIII, escrito por Cludio Bardy.

Comea com a chegada aqui vindo de Lisboa -, do vice-rei Lus de Vasconcelos e Souza, no ano de 1779, para dar incio ao governo mais celebrado pelos historiadores, antes de D. Joo VI elevar a capital da colnia do reino unido do Brasil, Portugal e Algarves, tornando-a o centro do poder imperial lusitano. Logo de cara, ele se deslumbrou com o quadro maravilhoso da natureza, a lhe oferecer um painel de sonho.

Mas se horrorizou com a mancha brutal na paisagem radiosa, no dizer de outro Lus, o Edmundo. As casas eram feias. As ruas, sujas. As guas, ftidas. O conjunto exasperava. Para piorar, Lus de Vasconcelos constatou que os colonos portugueses no tinham vindo para fazer um pas, mas para se enriquecerem rapidamente, nem que para isso tivessem de arrasar a terra.

A situao deplorvel do Rio no o levou a tapar o nariz e dar-lhe as costas. Ps-se a andar, j com planos de embelezamento do espao urbano, abertura de avenidas e saneamento de suas condies insalubres. Jovem, galante, dinmico e humanitrio, condoeu-se com a sorte dos escravos, que eram castigados pelos seus senhores, com exagerado rigor. Ele proibiu a aplicao da justia a domiclio, passando-a alada do Estado.

Suas andanas o levaram pestilenta lagoa do Boqueiro da Ajuda, uma verdadeira chaga encravada na cidade, tendo nas cercanias apenas casebres miserveis. Para espanto geral, o vice-rei era freqentemente visto caminhando a p pelas margens infectas da lagoa, acompanhado de Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim.

No imaginrio popular, a assiduidade de Lus de Vasconcelos e Souza quelas bandas tinha razes que s o seu corao podia explicar. Ele estava perdido de amor por uma moa bonita chamada Susana, que vivia na mais pobre choupana beira do Boqueiro, com um coqueiro solitrio porta.

Escondendo-se por trs de uma moita, o vice-rei a contemplava distncia, adorando-a platonicamente. Esse amor secreto o teria levado deciso de aterrar a lagoa.

O aterro foi confiado ao Mestre Valentim, que arborizou toda a rea. Tambm fez um jardim, no qual colocou pavilhes fechados, com murais e muitas obras de arte, entre elas a Fonte dos Amores. Para esta, ele fundiu dois jacars de bronze entrelaados. Por ordens do apaixonado vice-rei, Valentim ps nessa fonte um coqueiro de ferro. Era uma reproduo daquele que havia porta da bela Susana, a musa inspiradora da construo do Passeio Pblico, que em tempos menos perigosos deve ter sido um lugar tranqilo para os namorados.

Resta-nos imaginar se a histria da beldade plebia teve ou no um final de um conto de fadas.

Quando o Rio teve um governador chamado Vaca

Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1711. A cidade amanheceu encoberta. Ajudada pelo nevoeiro e fortes ventos, uma esquadra de 18 navios, 700 canhes e cerca de 6 mil homens, comandada pelo general Ren Duguay-Trouin, corsrio do rei Lus XIV, iria forar a barra e escapar do poder de fogo das fortalezas de Santa Cruz e de So Joo. Em poucas horas, fundeava cara a cara com o seu alvo, mandando-lhe bala, para desespero da populao. No suportando a superioridade blica dos franceses, e a destreza de suas manobras, o Rio se rendeu. O governador Francisco de Castro Morais fugiu. A sua fuga foi seguida pelas milcias e a populao.

Duguay-Trouin tomou e assaltou uma cidade vazia, ento a mais rica do imprio colonial portugus, graas sua condio de entreposto do ouro das Minas Gerias, que aqui era embarcado para Lisboa. Ele a fez de refm durante os 50 dias em que aguardou o pagamento do resgate, para devolv-la a seus habitantes, ameaando reduzi-la a cinzas, caso no fosse atendido. Houve de tudo nesse dramtico episdio: tergiversaes, pusilanimidade, herosmo e covardia. No faltou quem tirasse proveito da situao, em negociaes particulares com os invasores. Do seu esconderijo, o governador mimava-os com presentes. E deles recebia, em agradecimento, preciosas garrafas de vinho. Um padre os regalava com carruagens de mulheres.

Quando foram embora, com os seus navios abarrotados de ouro e prata, deixaram a cidade bombardeada, destruda, dilapidada. E de moral no chinelo. Logo instaurou-se uma revolta popular sem precedentes. Apelidado de Vaca, Francisco de Castro Morais por pouco no foi trucidado. Acusado de traio, e de entregar covardemente os bens pblicos e privados aos invasores, sem lhes oferecer resistncia, no escapou da condenao ao degredo na ndia, nem do confisco de seus bens. E ele era mesmo muito rico, pois era pago a peso de ouro pelo seu cargo, fora as malversaes imaginveis.

A invaso francesa teve como conseqncia uma outra: a dos juizes togados de Lisboa, enviados por D. Joo V. Em meio agitao dos militares, do Senado da Cmara, da nobreza e dos sditos em geral do reino, instalou-se o Tribunal da Devassa, com uma alada de sete ministros. Os trabalhos se arrastaram infinitamente. Mas no acabaram em pizza ou seus equivalentes poca. As sentenas daqueles sete homens no pouparam nenhum dos acusados. De nada adiantaram os argumentos do governador. Em sua prpria defesa, alegou ter sido abandonado por todos. E que havia entregado o ouro aos bandidos para evitar a destruio de tudo que estava sob a mira dos canhes deles.

Todas as punies foram severas. Do desterro pena de morte. E assim conseguiu-se aplacar a indignao de um povo em estado de descrena total em relao s autoridades.

Enquanto o mundo girou e a Lusitana rodou, Devassa virou marca de cerveja e as vacas voltaram a pastar numa boa.

Passo a passo com D. Joo VI, de Lisboa

a um bairro carioca chamado Pacincia

H reis que fazem os momentos histricos; mas, na maioria

das vezes, so os momentos histricos que fazem os reis.

Viriato Corra - Um rei na intimidade, em Terras de Santa Cruz

(Livraria Castilho, Rio de Janeiro, 1921).

A histria da vinda da Corte portuguesa para o Brasil comea quando os ingleses e os franceses ambicionaram repartir o mundo entre si, nos primrdios do sculo 19. Como cada lado pretendia mais capital e mais mercado, as disputas os empurraram para a guerra. A Inglaterra imps um bloqueio martimo Frana, e esta revidou com o bloqueio continental que deixava o Reino Unido isolado e proibido de comerciar com a Europa dominada pelo imperador francs, Napoleo Bonaparte. Ilhado, o comrcio ingls s podia se expandir atravs de Portugal, dono de um caminho martimo para o continente americano. Naquele grave momento europeu, o prncipe regente Dom Joo VI (que governava Portugal desde 1792, em virtude da enfermidade mental de sua me, a rainha D. Maria I), tentava uma neutralidade impossvel no conflito das duas potncias.

Unida Espanha, a Frana tinha as mesmas ambies da Inglaterra. E invadiu Portugal em fins de novembro de 1807. Sem condies de enfrentar as tropas napolenicas, D. Joo VI no teve outra sada seno se valer do plano ingls de transferir a sede da monarquia portuguesa para o Brasil, numa esquadra escoltada pela marinha britnica. Em troca, Portugal se comprometia a dar plena liberdade comercial aos ingleses, bem longe dos canhes de Napoleo, ou seja, no territrio brasileiro. Essa negociao levaria abertura dos portos do Brasil s naes amigas, o que D. Joo VI decretou no dia 28 de janeiro de 1808, seis dias depois de haver desembarcado em Salvador da Bahia, com sua numerosa Corte de 15 mil nobres. O plural empregado por Dom Joo - Naes amigas - era uma figura de retrica, pois o seu decreto beneficiava unicamente a singularssima Inglaterra. Questo de honra de um compromisso.

Um caso tpico de rendio do mais fraco diante do mais forte. Ainda assim, registre-se que em todo o episdio D. Joo VI desempenhou-se com habilidade, salvando o seu reino sem derramamento de sangue. Quando, ao amanhecer do dia 30 de novembro daquele ano de 1807, o exrcito napolenico, comandado pelo general Andoche Junot, chegou ao cais de Lisboa, s avistou as ltimas velas dos barcos portugueses a sumirem na linha do horizonte.

A fuga da nobreza lusitana foi feita s pressas, mas cronometrada perfeio. Os fidalgos saquearam os cofres em poucas horas. E embarcaram com milhes de cruzados em ouro e diamantes e mais da metade do di