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Na Ilha de Circe Novo Acordo - A l f a r r á b i oalfarrabio.di.uminho.pt/vercial/ebooks/na-ilha-de-circe_sample.pdf · que o quartel está rodeado de uma maravilhosa paisagem marítima

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Na Ilha de Circe

Ficha Técnica

Título: Na Ilha de Circe2.ª edição revista© Copyright José Leon Machado, 2010-2012Todos os direitos reservados.Edições Vercial, BragaInternet: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/evercialISBN-13: 978-1475081817 ISBN-10: 1475081812

Os nomes e as ações narradas nesta obra são produto da imaginação do autor e qualquer semelhança com pessoas e acontecimentos reais é pura coincidência.

José Leon Machado

VercialEdições

Na Ilha de Circe

Romance

PARTE I

Naquele convento agora reduzido a quartel ao alto da cidade, defronte do Pico arroxeado das nuvens do mar ao entardecer, sentia-se na posse de uma força que vinha do fundo dos tempos.

Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal

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O JANTAR DE DESPEDIDA

O avião aterrara na pista da Praia da Vitória. A aguardá-los ti-nham uma carrinha Mercedes verde escuro do Exército. Recolheram as malas, instalaram-se e foram desaguados na velha fortaleza espa-nhola, aproveitada agora como aquartelamento do Regimento de Infantaria de Angra do Heroísmo. Assim se salvava o monumento fi lipino, dando-lhe uma utilidade necessária ao serviço do país e da ilha. Um ofi cial de chibata e botas de cano ordenou uma fi leira, cada qual com a bagagem ao lado. Dois mastins enormes, à trela de dois sargentos curvados e barrigudos, farejaram em busca de droga. Era o início da praxadela aos maçaricos. Alguns, após a preliminar busca de estupefacientes, foram entrevistados pela televisão local: o camaraman, um furriel de cabelo rapado vestido à paisana; o jor-nalista, um aspirante de calças de ganga e botas de tropa. A câmara de vídeo não tinha cassete. E alguns parvos não viram.

Os primeiros dias preenchera-os António Brasinha, furriel miliciano acabado de chegar, preguiçando e dormindo nas horas de expediente, bebendo nos bares e passeando pelas redondezas nas horas livres. Era novo o ar que respirava, o mar sempre presente para qualquer lado que se voltasse, de um azul intenso as águas e o céu. Verdes as colinas, brancas as casas, algumas ainda em ruínas do último terramoto.

No segundo dia resolveu escrever à namorada. Pegou num bloco de papel que tinha guardado no armário de ferro, saiu da caserna para o ar livre, sentou-se na muralha, procurou no bolso do dólmen uma esferográfi ca e começou:

Querida Beatriz

Ontem cheguei ao novo poiso com uma grande angústia. Claro que não chorei, porque os homens não choram. Os meus camaradas também estavam mal, mas fomo-nos animando, a sorrir como quem

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chora. Não quero falar-te da ilha porque o primeiro sentimento foi de repugnância. E tal sentimento pode não ser autêntico. A primeira ideia que se faz de alguma coisa nova é, em geral, provisória. Digo-te apenas que o quartel está rodeado de uma maravilhosa paisagem marítima. O sono que não tive de ontem para hoje deixou-me indisposto. Após a praxadela da chegada pelos graduados mais antigos, caímos todos no gim e no uísque. Não apanhei borracheira, mas fi quei com um peso na consciência. A viagem de avião foi muito agradável. Como sabes, era a primeira vez que eu andava em aviões de tal envergadura. Só uma coisa me incomodou o espírito: os meus companheiros tinham alguém a dizer--lhes adeus. Eu não. Esperamos todos não sabemos o quê. Os graduados mais velhos passam por nós e deitam-nos olhares desconfi ados. Adivinho confl itos. Talvez eu esteja errado, e eles olhem como toda a gente perante um intruso. Porque nós, os novos, somos ainda uns intrusos. Quando a crise do impacto for ultrapassada, falar-te-ei mais demoradamente do quartel e de tudo o que eu achar digno de interesse. Vim para a espla-nada, uma muralha em pedra vulcânica, e vejo que o céu se embrulhou em nuvens e o mar é cinzento como elas. Três gaivotas brincam no alto. Uma sozinha mais longe plana com o vento. Vai chover e penso em ti e na forma como és perante os meus olhos. Sentimo-nos menos abandona-dos quando pensamos nalguma coisa boa. Agora chove e tenho o papel molhado. Volto à caserna e despeço-me. Um abraço forte do homem, rapaz, soldado, bicho, barco, terra que te ama, ou talvez faça por isso.

António.

Ao outro dia, depois do almoço e da formatura das duas horas, como na arrecadação de material de transmissões, sua especialidade, não houvesse movimento, desceu ao quarto e estendeu-se na cama de ferro. O calor de julho infundia-lhe uma sonolência inquieta. Quando acordou, já a corneta tinha tocado, pondo fi m ao serviço. Ergueu-se pesaroso, despiu a farda e meteu-se no chuveiro. Faltavam alguns minutos para o jantar. Era suspeito o silêncio no edifício. Onde se teriam metido todos?

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A messe dos sargentos estava fechada. O Brasinha estranhou. Se era costume a messe abrir às dezoito e trinta para o jantar, não via a razão de estar fechada. Confuso e esfomeado, sentou-se nas poltronas do bar com uma manada de outros sargentos. Faltara a energia durante a tarde, o gelo derretera. Bebia-se uísque e gim sem gelo. A Rádio Horizonte fazia-se ouvir nas colunas Pionnier sob uns Pink Floyd cansados. Tirando daqui e dali enquanto lia distraído um jornal do dia anterior, o Brasinha descobriu, na conversa da sala, que o jantar seria na Casa do Regalo. Parece que haveria um jantar de despedida dos ofi ciais e sargentos que partiam ao terminarem o serviço naquela unidade do Exército. Alegrou-se com a notícia e tratou logo de saber onde fi cava essa tal Casa do Regalo. Estava esfomeado. Passara a tarde a dormir, o almoço magro e salgado deixara-o no prato. Comia-se tão mal naquela messe!...

A uma distância de quinhentos metros das casernas, a Casa do Regalo maravilhava os visitantes com o seu plano de vista. Por trás a mata do Monte Brasil; à frente o mar e a cidade branca. Uma mesa ao longo da esplanada recoberta de pão e talheres prateados, o cheiro a frango de churrasco e a visão do vinho cintilante nas canecas transparentes acicataram mais o apetite do Brasinha. Rondavam já por ali alguns ofi ciais e sargentos à paisana com as esposas e os fi lhinhos pendurados.

Além da fome, o Brasinha estava indisposto. Tivera sonhos estranhos durante a sesta, um pesadelo acordara-o de repelão.

Fora destacado do continente para esta ilha. Cumpriria aí o tempo de serviço militar obrigatório que ainda lhe restava. Mas não se adaptou ainda. As saudades dos amigos, de casa, abrasavam-no. Principalmente da miúda, uma morena gira que para lá fi cou a suspirar sabe-se lá nos braços de quem... Ele detestava a tropa. Desatinava com a disciplina, deveres, superiores, subalternos. Coisas que, para si, eram absurdas no raiar do século XXI, o século da liberdade total, conforme opiniões conceituadas. Por isso sofria o peso da sujeição, o ter de aguentar um ano e tanto a ausência dos seus e a presença de estranhos.

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– Ainda vais meter contrato – dizia-lhe o Simões quando o via lamentar-se da sorte.

Contrato? Só um doido meteria o chico para continuar na tropa a aturar recos e superiores que, por necessidade ou sadismo, gastavam a vida fardados.

Antes de se ter aberto o jantar, pediu-se encarecidamente que todos os senhores e senhoras se reunissem. Iria ser feita a despedida fraternal dos antigos graduados com a distribuição de lembranças e cumprimentos pelo excelentíssimo comandante daquela unidade. Eram doze, compareceram três.

– E os outros? – perguntou o coronel ao tenente-coronel.– Foram comer fora; jantar de despedida.O excelentíssimo comandante torceu o nariz. Faziam-lhe

uma desfeita. Respirou fundo, tossiu delicado e lá saíram umas palavrinhas a agradecer o incansável esforço e dedicado trabalho daqueles que partiam, melhores sortes para o futuro e, sempre que precisassem, ali estaria disponível para ajudar no que estivesse ao seu alcance. Todos fi caram sensibilizados com tão comoventes palavras de solidariedade, colmatando o seu sentir com palmas calorosas.

O Brasinha notava que o comandante não era querido. Tudo hipocrisia. Soldados, graduados achavam-no antipático e deveras brutal nas suas resoluções. Ele também partiria e os que fi cavam não teriam saudades. A classe dos sargentos não o podia ver. Nos dois anos que exerceu o comando no aquartelamento, foram-lhes tiradas regalias em proveito dos ofi ciais, essa cãozada de trampa que tudo gozava e pouco fazia. Os sargentos eram os escravos do serviço, parolos do continente. Daí terem comparecido apenas três ao jantar de despedida, os sabujos, lacaios de sua excelência o comandante, nas palavras do Simões.

Então foi dada ordem para todos se dirigirem à mesa. Houve uma correria apressada aos pratos e talheres, não fosse o frango ou o arroz de gambas faltarem e alguém estrebuchar de barriga vazia. Duas enormes travessas de frango a estralejar metamorfosearam-se de repente num monturo de ossos. A fome era canina, mas

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as carcaças ninguém as queria. Pobre coronel! Os pratos não chegaram: ou comia a asa de frango que lhe restara à manada, ou esperava que alguém cortesmente lhe cedesse um, sujo que fosse. Nada aconteceu. As pessoas estavam por demais imbuídas na sua refeiçãozinha para repararem que o comandante não tinha prato.

Um grupinho alegre destacava-se. Eram as fi lhas do coronel, as primas, as amigas e os senhores aspirantes maçaricos. Os furriéis, maçaricos também, olhavam invejosos o grupo. Que pena os sargentos casados não terem fi lhas boas! Assim, chupavam no dedo, ou num osso de frango, que estava mais à mão. Doía-lhes o cotovelo, no que resultavam comentários escarninhos sobre os senhores aspirantes, colegas do mesmo barco, mas à proa. A diferença era que uns tinham galões nos ombros; outros meras divisas. E as meninas só gostavam de galões.

O Brasinha também olhava com uma ponta de inveja, apesar da sua indisposição psíquica. Consolava-se dizendo para consigo que eram feiosas, atarracadamente desprezíveis. E eram. Mas como tinham por pai uma alta patente, os aspirantes tapavam os olhos e viam-nas... interessantes. Numa ilha, quando se está só, até o esguicho de pombo é caviar.

Aqueles miseráveis arranharam connosco, sofreram a difi culdade da recruta na mesma caserna, na mesma lama, e agora não nos conhecem, os imbecis!, grunhia o Brasinha por dentro de si, traçando faminto uma coxa loira de um frango. Para não refl etir mais no caso, ou fi caria com indigestão, chegou-se perto do sargento Matias, o barrigudo, que conferenciava estrepitoso com dois furriéis maçaricos.

– O que vocês veem é fachada. Muitos sorrisos, continências, cumprimentos e tal, mas há um mal-estar, ódios antigos, cobiças. Neste quartel, os senhores graduados do quadro parecem alcoviteiras. Cuidado, vos recomendo a vós, que sois novos cá: os melhores amigos são os piores inimigos. Se, em vez de churrasco e batatas fritas, me apresentassem uma feijoada bem quente, cairia no céu!

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O Brasinha afastou-se e foi sentar-se no muro da esplanada. Viera ali para comer, não para tomar conhecimento de tramoias, ouvir conversas suspeitas. Quando se come não se fala, muito menos quando é mal dos outros. E ali todos primavam por cochichos e palavras ao ouvido. Que estaria a dizer aquele aspirante à orelha da sobrinha do coronel?

Corria um vento lasso e três gaivotas planavam absortas. Talvez chova no dia seguinte. Quando escurecesse, viriam as cagarras achincalhar o espaço com os seus gritos sarcásticos. O Brasinha olhava tudo numa mastigação tranquila. Bem fi zeram os outros não ter comparecido ao jantar. Os três sabujos, bajuladores do comandante, devem querer qualquer benesse. Que chova à vontade, a ver se limpa a estrumeira da ilha e do exército! Viu no caminho poeirento os colegas maçaricos dirigirem-se para a cidade. Meter-se-iam num café e depois numa discoteca para matar a noite. Deixavam os restos do jantar aos aspirantes: que acabassem com as ossadas do frango e se saciassem no sorriso das meninas. Viu ainda o olhar equívoco do comandante sobre o caminho. Já não tinha importância. O coronel também partiria, aquelas gentes já não lhe diziam nada. Não haveria saudades, não haveria tristeza. Haveria sim um ténue suspiro pelo churrasco do jantar de despedida.

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GOLPE DE KARATÉ

Há algum tempo que o Neves andava a pedi-las. O Brasinha de tal modo se fartou das suas bocas que teve de lhe enfi ar na cara um resplandecente tabefe diante dos colegas.

Saíam após o jantar para a cidade ou então iam dar um passeio até à Silveira, o local mais agradável nas redondezas para passar o serão. Aí se encontrava juventude interessante bebendo cerveja na esplanada ao pé do cais, a conversar, a trocar olhares comprometedores. Os tropas, porém, faziam um grupo à parte e era raro imiscuírem-se com a malta da ilha. Nunca foram muito queridos senão de uma ou outra miúda com a idade de casar mais ou menos ultrapassada. Eram as primeiras e as únicas que eles, durante a comissão, conheciam mais de perto nas surtidas civis.

Naquela noite, ingerido o jantar de peixe-espada e as batatas com cebola, os graduados maçaricos desceram à Silveira. Por aí fi cariam bebendo cerveja até que o tédio os invadisse e voltassem ao forte. Alguns, mais adinheirados, remetiam-se à Twin’s, a melhor discoteca da Europa, se fosse a crer-se em anúncios publicitários hiperbólicos pendurados nos muros.

O Brasinha partiu só do quartel e deambulou meia hora pelas ruas fragosas da cidade húmida. Desde que chegara, apetecia-lhe amiúde a solidão. O afastamento dos colegas tomava-o como uma tática de reatar conversa com possíveis gentes da ilha, mais propriamente do sexo feminino. Gostava de fazer as incursões desacompanhado. Os camaradas estragavam quase sempre as oportunidades. Estava há quinze dias na ilha e não tivera ainda resultados palpáveis. O problema da infi delidade a quem lá tinha no continente preocupava-o pouco. Era fi el no coração, bastava. Um homem também não é de pedra! Ela estava longe, ele estava só, rodeado de água por todos os pontos cardeais.

Não simpatizava com a maior parte dos camaradas de situação. Tinha-os por inferiores a si em quase todos os aspetos. Não era ele o

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furriel maçarico mais classifi cado pela Escola de Mafra? E isso criava certa tensão, uma crescente antipatia pela sua forma de agir. Os mais abertamente hostis eram três madeirenses um tanto ou quanto selvagens na forma como tratavam os demais e principalmente o Brasinha. Detestava-os. Como soubessem disso, arranjavam mil situações para criar confl ito. O pior era o Neves, que em Mafra fora castigado por ter sido apanhado a mijar nos balneários. Na presença do Brasinha fazia as maiores matraquices para o pôr a ridículo. Este aguentava calado e fi rme de punhos serrados.

A noite estava límpida e viam-se as estrelas. Como a cidade adormecesse deserta, o Brasinha encaminhou-se para a Silveira. Talvez se metesse na discoteca. De certeza que lá não encontraria os madeirenses, tão parcos em dinheiro. Desde que partira do continente que não entrara em nenhuma. Precisava divertir-se, largar a angústia, arrefecer as saudades de casa, se é que as tinha, ou não seria apenas uma melancolia inerente à sua personalidade um tanto ou quanto megalómana. Poderia até encontrar alguma coisa interessante que lhe roubasse o tédio.

Dirigiu-se cordialmente ao grupo de militares que estava na Silveira a discutir futebol. Teve azar, pois os três madeirenses faziam parte e o Neves era o de maior celeuma ao defender o Benfi ca. O Brasinha perdeu logo o sorriso prazenteiro e recuou dois passos discretamente forçados. Mas já o Nogueira o chamava para a roda e obrigou-o a integrar-se. O Neves, vendo-o receoso, atirou-lhe uma palmada às costelas rangentes com uma gargalhada cínica:

– Quem havíamos de aqui ter! O furriel de transmissões!A resposta do Brasinha foi o tabefe sonoro que fez rodar o

madeirense boquiaberto da surpresa. Encetou-se uma confusão tre-menda com os restantes madeirenses: queriam, à moda dos ciganos, vingar o conterrâneo. O Nogueira, indivíduo sensato e equilibrado, obrigou o Brasinha a pôr-se a monte, não fosse acontecer o pior, que para selvagens já tinham os madeirenses que chegasse. O mínimo que poderia suceder a todos seria uns dias de detenção na pildra do Regimento. E ninguém queria problemas com o coronel.

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Como era ainda cedo para a discoteca, o Brasinha foi postar-se junto ao mar sobre os rochedos negros, remoendo o embaraçoso incidente. Batera no homem, atitude bastante grave saída de um graduado do Exército. Sentia vergonha de si. Aquela atitude não condizia com a sua maneira de ser. Detestava a violência e, por mais que a evitasse, havia de andar sempre a rondá-lo. Por outro lado, numa perspetiva menos altruísta, pensava ter feito bem. O tipo abusava constantemente da paciência, dava-se ares de arrogante, um bardamerda quase analfabeto! Não gostava de tais abusos, muito menos daqueles que não tinham tacões para os cometerem. Caía no erro de nem desconfi ar que o mais arrogante era ele próprio.

As ondas batiam a alguns metros abaixo, fazendo saltar pequenos borrifos de água. Era bom sentir a frescura das águas no rosto barbeado. Esteve assim, sem pensar em mais nada, a olhar para coisa nenhuma, pressentindo a espessura da noite e a luminosidade das estrelas. Até que se fatigou da posição e abriu caminho direito à discoteca. Pagou mil escudos de entrada e dirigiu-se ao balcão a pedir um hamburger e uma cerveja fresca. As emoções do serão deixaram-lhe fome. Regalou o ódio e o estômago passeando ao mesmo tempo o olhar por quem estava e por quem entrava. Juntou-se ao Simões, furriel como ele no desencontro do mundo. Este perguntou-lhe logo pela zaragata da esplanada, vieram-lhe contar, o outro de carão inchado, um pavor.

– Então agora andas por aí a dar golpes de karaté?– Foi um beijo.– O Neves quer vingar-se.– Na guerra dá-se e leva-se.– Para a próxima dá-lhe outra por mim. A ver se endireitamos

aqueles imbecis e lhes mostramos de que lado é que está o bom senso, se do recato e discrição, se do paleio moinante e de feira.

Enquanto o Simões demandava um gole de uísque, o Brasinha desatou uma dentada forte no hamburger. Sabia-lhe a cebola crua e não iria gostar nada do mau hálito. Chamou-lhe a atenção o porte de uma mulata gira a entrar. Havia mulheres

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bonitas. Mas aquela... Ingerida a cerveja sobre o hamburger, foi dançar uma música de plástico que detestava. A pista apinhava-se de juventude e do que já não era juventude. A um canto descortinou o coronel com as sobrinhas, as fi lhas e os aspirantes à roda. Saberia ele também da zaragata? A estas horas já lhe teria chegado ao ouvido qualquer rumor. Que lhe importava? Não fi caria naquele quartel por muito mais tempo. O seu pouso era a cidade da Horta, daí a alguns dias. Pelo sim, pelo não, o Brasinha afastou-se da zona.

Os êxitos de um ano atrás ensurdeciam num delírio o espírito. O furriel batia o pé e micava discreto os rostos e as pernas mais interessantes da ambiência. Defrontou-se-lhe um percalço gravoso: de hora em hora o disk-jockey punha um espaço de slow, mas ele não arranjava par. Primeiro convidara uma miúda bonita, mas esta não aceitara. Depois uma trintona que por ali andava a exibir as ancas, que se rira na cara dele. Por fi m uma gorda, que recusou muito ofendida, como se ele a convidasse para a cama e coisas que tais. Isto levou-o a pensar que as mulheres da ilha, ou não gostavam de homens, ou tinham-se por demasiado boas. Sentou-se desgostoso e foi quando enxergou a mulata solitária num sofá à sua esquerda. Deu-lhe a mão e foram dançar.

O que mais o fascinou foram os seus olhos negros e grandes que o olhavam brilhantes como que a interrogarem-se porquê ela e não outra. O Brasinha, apesar de saber que no dia seguinte seria ridicularizado pelos colegas, sentia-se orgulhoso, pois a pretinha punha-se acima de qualquer uma. Subia-lhe um calor bom, encostou a face barbeada ao cabelo carapinhoso e perfumado. Não era difícil entrar no ritmo lento da música suave. Tinha saudades da namorada. Agora não havia namorada, as linhas perfeitas da negrita confundiam-lhe os sentidos. Já a apertava com força ao peito e ela acariciava-lhe o pescoço com os dedos tostado pelo sol das paradas e do verão.

Marcavam sete da manhã quando o Brasinha entrou feliz no quartel.

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A PRAXADELA

O Brasinha fora transferido com mais sete camaradas para o Faial. O Regimento de Infantaria tinha aí uma ramifi cação, espécie de sucursal com foros de independência face à casa-mãe.

Tocava à alvorada quando o grupo saiu do forte em direção ao aeroporto da Praia da Vitória. O arrumo da bagagem, a burocracia do bilhete e depois a espera impaciente pela chegada e partida do avião entreteve-lhes as primeiras horas da manhã sensivelmente quente. O Brasinha estava satisfeito. Precisava de mudança. Fartou-se daquele quartel e da vida estupidifi cante que o regia, apesar de não ter sido longa a sua permanência aí. A cidade não lhe dizia nada e os camaradas que deixava não eram os mais camaradas, em especial os três madeirenses... Toda a ilha lhe dava uma sensação de isolamento arrepiante, uma temível frieza afetiva. Partia entusiasmado porque almejava encontrar algo diferente para lá do mar, numa ilha que ainda não conhecesse. E, não menos importante, queria livrar-se do grosso da hierarquia militar. No novo quartel a patente máxima era a de capitão, um apenas que servia de comandante, e mais umas tantas medianas de pouca preocupação. Não gostava de dar satisfações a este e àquele.

O Sol permanecia no ponto mais alto quando o avião aterrou na nova paragem, a ilha do Faial. Foram de imediato abordados por um aspirante da Companhia e por uma confortável Berliet. Ia começar a segunda praxadela à maçaricada. A primeira foi logo ao pisarem terra açoriana, com a busca de droga às bagagens e um marcor monte acima, monte abaixo coroado com um jantar tipo salinas de Aveiro. O Brasinha começou a tremer de descontentamento e a respiração a alterar-se-lhe. Era contra toda a espécie de praxes, não praxava nem gostava que lho fi zessem. Não bastara a receção que lhe fi zeram quando entrou na universidade, tinha agora que aguentar as macaquices da tropa.

– Têm cinco minutos para se fardarem! – gritou-lhes o aspirante todo cheio de si quando os viu à civil.

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Alguns protestaram:– Que coisa mais ridícula! Nós temos autorização para entrar

nos quartéis sem farda. Somos graduados.– Isso é cagativo! Entram como eu quero, cumprem as

minhas ordens!Arranjou-se uma casa de banho no aeroporto como vestiário

e, meia hora depois, estavam todos de botas de sebo e fardados de verde sobre o camião.

– Condutor, arranca! – ordenou o aspirante.A Berliet roncou gravemente na parte traseira, rodou o parque

de estacionamento e entrou na estrada. O Brasinha, malgrado os solavancos e a dureza do assento, considerava em si a beleza da ilha. Era realmente superior à outra donde provinha.

Num clima pesado, penetraram nos muros do aquartelamento, espécie de estufa mortífera frente a um bombardeamento. Também este fora aproveitado de um velho convento de frades. Ao lado erguia-se a igreja, votada ao abandono.

A primeira ação a executar: levar as malas ao quarto, dirigir--se à arrecadação e apetrechar-se com o que aí lhes fosse indicado: material de guerra ao lombo, incluindo metralhadoras ligeiras HK21, lança-morteiros, laws, rádio PRC425 de quatrocentos ca-nais, carregadores e fi tas com munições, acessórios, como sacos de dormir, paus de tenda e lonas. Cada um carregava o próprio peso em material. Depois, nova subida para a Berliet e uma tarde passada sobre o Monte da Guia sem almoço e totalmente isolados. A fome só a puderam enganar com a pouca água que levaram nos cantis. O Brasinha não tomou o pequeno-almoço, não comia desde o dia anterior. Recrudescia-lhe um vazio quase infi nito. Se a hortelã fosse comestível tal como a alface, atirava-se com certeza a algum arbusto ali perto. Continha-se e aguentava irremediavelmente a fome e a sede de um bom uísque, embora não fosse muito dado a bebidas brancas. Como era o rádio-telefonista, atreveu-se a contactar com o quartel e pedir rações de combate e umas garrafi tas de tinto. Respondeu-lhe o aspirante, dizendo que era impossível, pois a

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corveta com os mantimentos ainda não tinha chegado. Tentou por fi m dormir à sombra da tenda montada, tal como os companheiros. A paisagem nascia-lhe sublime: o mar a terra, o céu numa união perfeita de cor e de sonoridades. Não fosse a falta de alimento e passaria o resto da vida de papo para o ar naquele sítio incrivelmen-te isolado dos homens e do mundo que eles construíram. Para o lado da Horta vislumbravam-se no azul das águas velas brancas de estrangeiros ricos que vinham gozar a Semana do Mar. Era o único sinal da civilização, exceto a própria presença.

Antes de se deitar, o Brasinha encheu o colchão ao sopro. Gastou as últimas energias a bufar para dentro o ar necessário. Agora podia regalar-se da moleza. Invadiu-o um torpor intenso de chaparrice. Encantava-o a certeza de vir a gostar da ilha. Quem sabe, uma nova fase da sua vida se iniciava naquele dia que, apesar de magro, se espraiava luminoso e vasto.

A Berliet voltou ao Convento do Carmo antes do Sol pôr e com a viagem de regresso fi nalizava a tarde de campo entrincheirados à espera de um inimigo que não era mais do que a fome. Outro martírio os esperava no aquartelamento: o teste à sida. Foi cada um por sua vez urinar num recipiente que em seguida era analisado pelo médico, um pseudo-doutor formado na Faculdade de Medicina das Ilhas. Este verifi cava a urina de olho e nariz espetados e fazia o diagnóstico: tu precisas de beber menos, tu precisas de beber mais; cuidado com o sexo, come menos que estás gordo, come mais que estás magro; tu tens hepatite. Ninguém fi cava preocupado com o diagnóstico e com os conselhos profi láticos. Porém, quando a vez do Brasinha chegou, a natureza não quis colaborar e o mijo no frasco cobriu pouco mais que o fundo. Parco achou o médico o fruto e atirou-lhe logo às ventas o diagnóstico desencorajante: anemia.

O Brasinha levou a brincadeira a sério. Olhava-se ao espelho e sentia-se anémico em último grau, se é que a anemia tem graus. Abria e revirava os olhos, espreitava as veias, a córnea e a retina, apalpava o peito, respirava fundo, media o pulso. Estava doente,

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irremediavelmente perdido. Fraquejavam-lhe as pernas, os joelhos quase dobravam de fraqueza. A anemia era uma doença do sangue difi cilmente curável. Um pensamento hipocondríaco abalava-lhe as entranhas. Apetecia-lhe morrer, já! Pelo menos não tinha mais que aturar o sadismo dos militares.

– O teu mal é fome! – atirou-lhe o Nogueira ao passar, vendo-o tão ensimesmado.

À noite, porém, depois do jantar muito bem apetrechado na messe que ali servia ofi ciais e sargentos – igualdade de louvar, sim senhor –, quase se embebedara no bar com cerveja de exportação. Só se convenceu de que a sua doença não passava de patranha quando viu as divisas que o pretenso médico trazia no ombro: primeiro furriel enfermeiro. O teste da sida não passara de um complemento à praxe. A desconfi ança e a dúvida acerca da sua doença desapareceram e no seu espírito cresceu o desejo de conhecer a nova cidade.

Saiu só, pois confi ança não tinha nenhuma com os camaradas que vieram consigo de Angra. Cabeça atordoada pelo lúpulo doirado, foi deambulando na multidão em festa, a Semana do Mar. O vento trazia da praça o dedilhar do santouri e um cheiro a música ática. No centro, sobre um palco improvisado, dançava um grupo de gregos com alguns velhos pescadores de boca aberta a admirar-lhes as piruetas e a dança de braços ombro a ombro. Mais à frente, noutro recinto, ouviu enorme alarido à volta de um grande palco. Em cima tocava um grupo de música que lhe não era estranho. Um Efetivamente sem moralizar trouxe-lhe à memória o nome do grupo.

Já fatigado, sentou-se um pouco no paredão da marina, àquela hora muito concorrido. Pairava um ar de festa, notava-se certa alegria nos rostos, o calor da noite ajudava a descontrair. Via-se por todo o lado gente loira, os tripulantes dos veleiros e dos iates atracados perto. Algumas mulheres altas e brancas chamaram-lhe a atenção num desconforto de pessoa que não fora convidada para o banquete. O clima internacional da cidade fê-lo desenhar um sorriso amargo.

– Merda de tropa!

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A TOPOGRÁFICA

A semana que se seguiu teve os dias repletos de atividades do mais variado calibre. Os novos graduados não podiam integrar-se ainda nos seus pelotões, pois a ordem do Quartel General a informá-los da sua promoção a nível ofi cial ainda não tinha sido enviada. Saíam de manhã à frente do aspirante Carvalho, encarregado de os guardar e fornecer instrução, num rapel ou marcor, conforme o previamente estipulado numa lista de atividades. Depois tinham lições de socorrismo pelo primeiro furriel enfermeiro Lázaro, moral cívica e militar pelo senhor alferes Florindo, transmissões pelo cabo Américo, manutenção e fi nanças pelo alferes Correia e lavagens ao cérebro, várias, pelo comandante da Companhia, o excelentíssimo senhor capitão Grave, ofi cial miliciano com o curso de Comandos e várias comissões em África a matar pretos. Para coroar os conhecimentos dos novos graduados acerca da geografi a da ilha, o comandante teve a feliz ideia de planear uma prova topográfi ca.

De material de guerra às costas, cada um esperou a vez num corredor de tábuas enceradas com uma passadeira vermelha manchada da humidade. No gabinete estava o sargento-ajudante Pimenta, barrigudo e meloso, a distribuir os mapas e as coordenadas, condescendendo numa ou noutra informação a algum graduado mais duvidoso daquilo que se pretendia. Partiam espaçadamente, um para cada lado da ilha, com dez minutos de intervalo, para não haver mistura e não se poderem entreajudar.

O Brasinha viu-se no meio da cidade com um mapa fotocopiado a negro na mão livre, o capacete a cair-lhe para os olhos, a G3 a fazer-lhe peso no ombro e a mochila às costas carregada de inutilidades. As pessoas olhavam-no curiosas. Teria começado a guerra? Que anda este por aqui a fazer? Terá havido um levantamento militar, ou espera-se a invasão dos russos?

Para que lado? Enquanto não se orientou, não conseguiu avançar mais do que alguns metros nas ruas. Poisou o mapa num

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banco de jardim, pegou no escalímetro e calculou as coordenadas do ponto A para onde teria de dirigir-se em primeiro lugar. Viu o Monte da Guia à sua direita e, pelos cálculos, imaginou que seria esse o ponto A. E lançou-se a caminho. Atravessou a cidade, passou ao lado da Pousada de Santa Cruz e em frente do Peter e rodeou a pequena baía por cima do paredão que servia de cais aos barcos de pesca. Ouvia aqui e ali comentários de transeuntes, uns de chiste, outros como lamento da triste sorte de um soldado. Cortou pela estrada por detrás dos depósitos da Galp e iniciou a subida do monte. Não fossem os duros treinos nos campos enlameados de Mafra e teria perdido o fôlego, atirando-se para um canto da estrada a resfolegar de cansaço.

Em quinze minutos pôs-se no cimo, já seu conhecido quando da praxadela no seu primeiro dia naquela ilha. Receberam-no o Macedo, furriel da peluda, que lhe forneceu as coordenadas do ponto B, e um soldado de transmissões com um emissor-recetor a estralejar. Como o Brasinha seria oportunamente o chefe de serviço do soldado, pediu que este lhe guardasse a marmita de alumínio e os paus de tenda, que lhe vinham a pesar demasiado na mochila. Depois tirou o capacete da cabeça e encheu com ele a mochila para disfarçar o vazio.

O ponto B, pelos seus cálculos rápidos e por uma ajuda simpática do furriel Macedo, seu conterrâneo, situava-se na Espalamaca, numa subida exatamente do outro lado da cidade. Um belo percurso, sim, senhor!, pensou o Brasinha. Foi feito só para complicar a vida do pobre soldado! Agora teria de atravessar novamente a cidade, ouvir mais piropos, suspiros de afl ição das mães pelos seus fi lhinhos e futuros soldados. Na subida parou algumas vezes para respirar fundo e beber um gole do cantil. Na cabeça levava agora o quico, muito mais leve e arejado. O céu, embora azul, cobria-se nalguns pontos de nuvens escuras. A frescura do ar ajudava à caminhada. Nas extremidades dos campos verdes moviam-se canaviais secos e restos das hortênsias de julho em grandes cachos arroxeados, enquanto algumas vacas listadas de

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branco e negro pastavam a refeição da manhã. Em baixo a cidade e a baía formavam um espetáculo que o fez esquecer a fadiga. A majestade e as alturas do Pico em frente, com um extenso e, ao mesmo tempo, estreito espaço de água, excediam-lhe a vista.

Na Espalamaca encontrou uma fortifi cação com grandes buracos recobertos de betão, que presumiu terem servido como base de baterias antiaéreas durante a Segunda Guerra Mundial. No meio do pasto, mesmo por cima do paiol, descobriu o ponto B: uma bandeirinha vermelha triangular com um soldado de transmissões e o furriel Esteves acompanhado de algumas garrafas de cerveja vazias a servirem de receção. Como não ganhara grande afeição àquele graduado, limitou-se a pedir-lhe as novas coordenadas e partir para o ponto C. Logo no segundo dia, não gostou da atitude que tomara ao sujar-lhe a cama com pó-talco, champô, creme de barbear e açúcar, depois de ter rebentado à patada a porta do quarto. Agora o Esteves não se lembrava do sucedido, ou porque na altura estava bêbado, ou porque era mais conveniente fi ngir que nada acontecera, não fosse o comandante perguntar pelo bárbaro que andava a destruir as instalações do quartel.

Não foi difícil descobrir a posição do ponto C. No mapa apareciam desenhadas algumas linhas de água quase impercetíveis que identifi cavam uma grande elevação. Essa elevação completaria um triângulo conjuntamente com a Espalamaca e o Monte da Guia. O ponto C só poderia situar-se no Monte Carneiro. Já lá estivera no dia anterior, a fazer uma G.A.M.1 com o aspirante Carvalho e os outros. Desceu por onde subira e, a meio do caminho para a cidade, que teria de atravessar novamente, pressentiu um automóvel na sua direção e estacou a pedir boleia. Era uma Renault 4L azul com o símbolo dos CTT pintado na porta. O condutor parou e convidou-o a entrar.

– Para onde vai? – perguntou o condutor, um tipo barbudo de oculinhos redondos à John Lennon, mais com aparência de artista do que de funcionário dos Correios.

1 Ginástica de Aplicação Militar.

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– Para o Monte Carneiro – respondeu-lhe o Brasinha aconchegando-se da melhor maneira no acento. A mochila e a espingarda revelavam-se um incómodo.

– Deixo-o ao pé do cemitério.– Para mim está muito bem. Evito atravessar mais uma vez

a cidade.– Manobras?– Não. Apenas uma prova de resistência física com um teste

ao que aprendemos de topografi a.– Sim, também lá estive. E o traste do capitão Grave, ainda

é o comandante? – É. Ao que parece, não tem por cá muitas simpatias...– E quando partir não deixará grandes saudades.No Monte Carneiro, ao lado da agropecuária, encontrou

um jipe estacionado entre a erva. Uma bandeirinha também vermelha marcava o ponto C. A alguns metros, uma vedação de madeira em forma redonda evitava que um cavalo andasse a correr e a pastar pelos prados a seu bel-prazer. O animal estava rodeado de tábuas por todos os lados e a situação de homem e animal não eram muito diversas.

Atendeu-o o alferes Correia, sentado na parte traseira do veículo, e passou-lhe as coordenadas do ponto D. O Brasinha encostou a espingarda à viatura e, sobre a parte do motor, estendeu os papéis e calculou o local provável. Pareceu-lhe terreno desconhecido. Tentou averiguar a localização aproximada junto do alferes, mas este não se descaiu.

– Em Mafra não lhe ensinaram a ver cartas e a calcular coordenadas?

– Ensinaram. O que não me ensinaram foi a interpretar rascunhos fotocopiados e ilegíveis como o que tenho na mão.

Pegou na espingarda, meteu-a à bandoleira e partiu não sabia bem para onde. O alferes, ao vê-lo tomar uma direção errada e por descargo de consciência, pois fora ele que fotocopiara as cartas topográfi cas, ainda lhe gritou:

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– Por esse caminho não. Volte antes à sua esquerda.Sempre foi uma ajuda e o Brasinha agradeceu com um aceno.

A partir dali estaria por sua conta e risco até ao interior da ilha, por caminhos secundários e quase desertos. O azul do céu fi cara momentaneamente coberto por grossas nuvens escuras. Estava-se em agosto, o Brasinha pressupôs que não choveria, malgrado a aparência da atmosfera.

Viu-se num estreito e longo caminho rodeado de canaviais e hortênsias. Uma ou outra vaca ainda se vislumbrava a pequenos intervalos nos prados longínquos. Subitamente, pressentiu o roncar de uma viatura por trás de si. Afastou-se para a berma e descobriu um jipe a aproximar-se aos trambolhões pelo caminho esburacado. Ao passar por si não parou e o Brasinha reconhecera no condutor o capitão Grave, no seu carão severo e esquálido. Que andará por aqui a fazer este sacana?, pensou. Andará a supervisionar a prova topográfi ca? Porque não teria parado, ao menos para perguntar se tudo estava bem, se era necessário alguma coisa, informá-lo se ia no caminho certo? Nada. O capitão ignorou-o simplesmente. Ao Brasinha veio-lhe um repentino desejo de apontar-lhe a espingarda às costas e disparar um tiro à queima-roupa, pô-lo ali estendido como um coelho. É pena a G3 estar descarregada e eu não ter aqui munições...

Esta ideia absurda e maligna desapareceu-lhe com o cansaço que lhe ia tomando as pernas e os braços. Apeteceu-lhe atirar com a espingarda para um monte de silvas, deitar-se na erva e adormecer. Não o fez por achar que estaria perto do ponto D. Todavia, sentou-se num muro baixo de pedra negra e consultou o mapa. Pela confi guração do terreno, pareceu-lhe que o ponto D se situava numa espécie de aeródromo. Será o aeroporto? O aeroporto não podia ser, pois não estava marcada a torre de controlo e, além disso, este fi cava na costa, como tivera oportunidade de verifi car no dia em que desembarcara na ilha. Mas nada impede que não haja por aí um aeródromo para pequenos aviões. E foi com esta ideia que retomou a marcha.

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Não demorou muito a sentir sobre a cara as primeiras pingas grossas de chuva. E, num instante, desabou-lhe o céu em cima, encharcando-o até à medula.

– Puta de vida! – gritou.Não havia nem uma árvore para se abrigar. Apanhou-a toda

pelas orelhas e, quando caíram os últimos pingantes, torceu o quico encharcado e voltou a enfi á-lo na cabeça rapada. Sentia-se infi nitamente pesado. Agora não era apenas o material de guerra; tinha também de carregar com o peso da água nas roupas.

Quinze minutos à frente, no cruzamento de vários caminhos, encontrou um faialense que vinha em sentido contrário com um cachorro a roçar-lhe as pernas. O homem, intimidado com a estranha aparição ali de um soldado armado até aos dentes e molhado como um pisco, afastou-se para o lado. O Brasinha abriu um sorriso forçado para o tirar de cuidados e demandou-lhe pelo tal aeródromo.

– Aero quê? – perguntou-lhe o homem.– Aeródromo! Não me saberá dizer a que distância fi ca daqui?– Não conheço nada com esse nome. Aqui são os Flamengos.– Então não conhece por esta zona um campo bastante

comprido onde aterram os aviões?– O aeroporto? mas esse fi ca do outro lado da ilha, ao pé

do mar.– E não há outro?– Não, não há.– Curioso. O mapa que me deram marca, mais ou menos

por aqui, um campo bastante comprido que, se não me engano, pertence ao Exército...

– Ao Exército? Só se for a carreira de tiro.– A carreira de tiro? É isso!Perguntou-lhe para que lado fi cava, agradeceu e retomou o

caminho. Que parvo que eu sou!, disse para consigo. Confundir uma carreira de tiro com um aeródromo! Só mesmo de um cego! Esse ao menos ouviria claramente as ressoadas de espingarda que só agora é que se me tornam percetíveis. Não estarei longe.

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Noutro cruzamento encontrou o furriel Dias, seu colega de Mafra que também fazia a prova. Resolveram caminhar juntos, visto que o ponto era o mesmo. Avistaram uma casa e uma senhora a tratar de uma plantação de inhames no quintal. Perguntaram-lhe se sabia onde fi cava a entrada para a carreira de tiro e ela, a simpatizar com os jovens militares, num gesto altruísta convidou-os a entrar pela cancela, guiou-os pelo interior da cozinha da casa, «por aqui é mais perto», e deixou-os exatamente à entrada do ponto D. Eles agradeceram com muitas vénias de cabeça àquela senhora tão amiga de militares e penetraram no longo corredor coberto de arvoredos de ambos os lados. Ao fundo, viram um Unimog e um grupo de soldados. O aspirante Carvalho, com um impermeável pelos ombros, ordenou-lhes que se deitassem no chão enlameado e apontassem a G3 aos alvos. Depois deu sinal para abrirem fogo.

E o Brasinha disparou vinte tiros, limpando o carregador. Só então se lembrou do desejo que tivera momentos antes de disparar contra o capitão e um calafrio fê-lo estremecer. Os sacanas meteram-me um carregador cheio na arma e não me avisaram! Teria matado um homem, se tivesse dado ao gatilho. Não o fez, mas podia tê-lo feito imaginando a arma descarregada. E então seria uma morte desejada pela vontade, contrariada pelo bom senso e causada pela incompetência dos militares que assim lhe metiam nas mãos uma arma pronta a disparar.

Não acertou nenhuma vez no alvo e o aspirante Carvalho deu-lhe os parabéns. Fora o único que não fi zera um ponto sequer. E, para o papel de controlo não fi car em branco, escreveu dois impactos no dez, três no oito e cinco no quatro. O Brasinha agradeceu a atenção e sentou-se um pouco na terra molhada ao lado do Dias. Um soldado distribuiu por ambos sandes de queijo e fi ambre e um pacote de leite chocolatado. Era o que havia para almoço. Restaurados pela magra ração, ergueram-se e o aspirante deu-lhes as coordenadas do último ponto. Não foi difícil de descobrir que eram as mesmas para ambos.

– Pela lógica, o último ponto deveria ser o quartel – aventou o Dias mesmo sem olhar para o mapa.

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– Ou as coordenadas estão mal tiradas, ou aqui pelo mapa o último ponto não é o quartel – contestou o Brasinha.

De facto, ao medir pelo escalímetro, o ponto de interceção do valor da longitude com o da latitude não estava sobre o aquartelamento, nitidamente desenhado no mapa, mas algures nos Capelinhos. O Dias confi rmou com o próprio mapa e não quis acreditar. Decidiram inquirir o aspirante.

– Também vocês?! – exclamou irritado. – Todos os que passaram até agora por aqui vêm com essa cantiga. Quem tirou as coordenadas foi o básico do alferes Correia.

– A culpa não é nossa. Se as coordenadas estivessem corretas, não teríamos andado por aí perdidos até agora – retorquiu-lhe o Dias.

Isto é tudo uma palhaçada!, disse o Brasinha para consigo. O aspirante Carvalho lá se resolveu a colaborar e informou-os de que o último ponto era realmente o quartel.

Uma hora depois entravam pela porta de armas do Convento do Carmo e terminavam a prova no gabinete do ajudante Pimenta. Dos oito, eram, em simultâneo, os quartos a chegar. Desaparecidos andavam ainda três pelas veredas esconsas da ilha. À noite, com a chegada dos restantes, fez-se um grande banquete com leitão assado e queijo fresco a comemorar o feito e para tirar a barriga das misérias do dia. Houve discurso de agradecimento e exaltação de feito tão glorioso para a Companhia de Infantaria pelo capitão, a coçar o bigode negro com os olhos brilhantes do uísque pago pelos maçaricos, e bebedeira rija no bar. Na manhã seguinte passariam a ser graduados de pleno direito, com as bênçãos do Quartel General de Ponta Delgada.

O Brasinha dormira tresloucado num sonhar entrecruzado e confuso de soadas de tiros, sangue em rio, jipes em despiste, chuva e bigodes, imensos bigodes negros e farfalhudos.