249

Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso
Page 2: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

NNaaddaa ddee EEssppeecciiaall

Vivendo Zen

Charlotte Joko Beck

Editora Saraiva 1ª edição, 1994

Page 3: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ORELHAS: 4 PREFÁCIO 5 I. LUTA 7

RODAMOINHOS E ÁGUAS PARADAS 7 O CASULO DA DOR 14 SÍSIFO E O FARDO DA VIDA 20 RESPONDENDO ÀS PRESSÕES 27 A BASE DE APOIO 33

II. SACRIFÍCIO 41 SACRIFÍCIO E VÍTIMAS 41 A PROMESSA QUE NUNCA É CUMPRIDA 45 JUSTIÇA 52 PERDÃO 53 A FALA QUE NINGUÉM DESEJA OUVIR 54 O OLHO DO FURACÃO 64

III. SEPARAÇÃO E VÍNCULOS 68 PODE ALGUMA COISA NOS FERIR? 68 O PROBLEMA SUJEITO-OBJETO 77 INTEGRAÇÃO 85 OS TOMATEIROS RIVAIS 89 NÃO JULGAR 95

IV. MUDANÇA 102 PREPARO DO TERRENO 102 EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS 106 O DIVÃ DE GELO 110 DERRETENDO OS CUBOS DE GELO 120 O CASTELO E O FOSSO 126

V. PERCEPÇÃO CONSCIENTE 134 O PARADOXO DA PERCEPÇÃO CONSCIENTE 134 RECOBRANDO O JUÍZO 143 ATENÇÃO SIGNIFICA ATENÇÃO 152 FALSAS GENERALIZAÇÕES 158 OUVINDO O CORPO 165

VI. LIBERDADE 169 OS SEIS ESTÁGIOS DA PRÁTICA 169 CURIOSIDADE E OBSESSÃO 175 TRANSFORMAÇÃO 184 O HOMEM NATURAL 190

VII. DESLUMBRAMENTO 201 A QUEDA 201 O SOM DE UM POMBO E UMA VOZ CRÍTICA 207 CONTENTAMENTO 211 CAOS E DESLUMBRAMENTO 219

VIII. NADA ESPECIAL 225 DO DRAMA AO NÃO-DRAMA 225 MENTE SIMPLES 232 DOROTHY E A PORTA TRANCADA 234 PEREGRINAR NO DESERTO 243 A PRÁTICA É DAR 247

Page 4: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Orelhas:

Viver o zen n ã o é n a da de especial: é a pen a s a vida com o ta l. O zen é a vida em s i, n a da m a is . Qu a n do bu s ca m os n o zen (ou em qu a lqu er ca m in h o es p ir itu a l) a rea liza çã o de n os s a s fa n ta s ia s , separamo-n os da ter ra e do céu , dos n os s os s eres a m a dos , de n os s o cora çã o, pois ta is fa n ta s ia s n os coloca m n u m is ola m en to tem porá r io. A rea lida de, n o en ta n to, s e in s in u a de m il m a n eira s , e a n os s a vida s e torn a u m a cor rer ia des en frea da , u m des es pero m u do, m elodra m a s con fu s os . Dis t ra ídos e obceca dos , lu ta n do por a lgo es pecia l, bu s ca m os ou tro lu ga r e ou tro tem po: n ã o o a qu i, n em o a gora e ta m pou co o is to

tu do, m en os a vida com u m , esse... nada de especial.

Em Na da de es pecia l, Ch a r lot te J oko obs erva : "As cois a s s ã o sempre o qu e s ã o". Es s e pen s a m en to n ã o é u m con s elh o de des es pero, m a s u m con vite a o con ten ta m en to. Viven do a pa r t ir do qu e s om os , s a ím os de u m a vida cen tra da em n ós pa ra u m a vida centrada n a rea lida de. Aba n don a n do os pen s a m en tos m á gicos , desperta n do pa ra a m á gica do m om en to a tu a l, da m o-n os con ta da graça do nada de especial... o zen vivido.

As reflexões de J oko Beck s obre tóp icos com o lu ta , s a cr ifício, s epa ra çã o e vín cu los , m u da n ça , con s cien t iza çã o, liberda de e des -lu m bra m en to revela m de qu e m a n eira a verda deira es p ir itu a lida de n ã o im plica u m a vida reclu s a , s epa ra da , m a s u m m ergu lh a r n a s vivên cia s d iá r ia s

os s en t im en tos , os rela cion a m en tos , o t ra ba -lho

com con s ciên cia , h on es t ida de e in tegr ida de. Dota da de u m a pers p icá cia e de u m d is cern im en to h oje céleb res , es ta con s a gra da m es t ra ociden ta l con tem porâ n ea a p res en ta n ova s d im en s ões pa ra a s im plifica çã o de n os s o viver . Com is s o Ch a r lot te J oko revela como quando nada é especial tudo pode sê-lo.

Nad a d e es pecial fa la do a tem pora l e do peren e, com m etá fora s s im ples e cla ra s pa ra a s cois a s com u n s e os in ciden tes do d ia -a -d ia , ilu m in a n do com m a ra vilh os o bom s en s o a n os s a vida .

CHARLOTTE J OKO BECK n a s ceu em Nova J ers ey. Só depois dos qu a ren ta e pou co a n os , é qu e in iciou s u a p rá t ica zen , em Los

Page 5: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

An geles . Des de 1983 , m u dou -s e pa ra o Zen Cen ter de Sa n Diego, on de m ora e lecion a n os d ia s de h oje. É a u tora de S em pre z en , pu-blicado pela Saraiva.

Prefácio

O zen vivo n ã o é n a da es pecia l: é a vida com o ta l. O zen é a vida em s i, n a da m a is , "Nã o pon h a u m a ou tra ca beça em cim a d a s u a ", decla rou o m es t re Rin za i. Qu a n do bu s ca m os n o zen (ou em qu a lqu er ca m in h o es p ir itu a l) a rea liza çã o de n os s a s fa n ta s ia s , separamo-n os da ter ra e do céu , dos n os s os s eres a m a dos , de n os s os cora ções e de n os s a s cos ta s qu e doem , da s p rópr ia s s ola s de n os s os pés . Es s a s fa n ta s ia s n os coloca m n u m is ola m en to temporário; no entanto, a realidade insinua-s e de dez m il m a n eiras e n os s a s vida s torn a m -s e cor rer ia s des en frea da s , u m m u do des es pero, m elodra m a s con fu s os . Dis t ra ídos e obceca dos , lu ta n do por a lgo es pecia l, bu s ca m os ou tro lu ga r e ou tro tem po: não o a qu i, não o a gora, não is to. Tu do m en os es s a vida com u m , es s e... n a da especial.

O zen vivo s ign ifica u m a in vers ã o de n os s a fu ga do n a da , u m a a ber tu ra pa ra o va zio do a qu i-a gora . De m a n eira len ta e doloros a recon cilia m o-n os com a vida . O cora çã o es m orece, a es pera n ça m orre. "As cois a s s ã o s em pre o qu e s ã o", obs erva J oko. Es s a ta u tologia va zia n ã o é u m con s elh o de des es pero, m a s u m con vite a o con ten ta m en to. Ao m orrerm os pa ra os s on h os do ego, a o a ba n don a rm os o es forço de ob ter res u lta dos , recu pera m os a s im plicida de da m en te. No ja rd im da s exper iên cia s cot idianas des en ter ra m os tes ou ros in es pera dos . In gen u a m en te, viven do a pa r t ir do qu e s om os , s a ím os de u m a vida cen tra da em n ós pa ra u m a vida cen tra da n a rea lida de e a ber ta a o des lu m bra mento. Aba n don a n do os pen s a m en tos m á gicos , des per ta n do pa ra a m a gia do m om en to a tu a l, da m o-n os con ta , n o va zio d in â m ico, da gra ça do nada em especial... o zen vivo.

Em s u a vida e em s eu s en s in a m en tos , em s u a p rópr ia p re-sença, Joko Beck manifesta a ausência notável que é o zen vivo.

Page 6: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Com o obs erva Len ore Fr iedm a n : "Em s u a n a tu ra lida de absoluta, Joko encarna a qualidade zen do 'nada especial'. Ela está a pen a s a li, em ca da s im ples m om en to" *, A cla reza s em cer im ônia de J oko va i lon ge. Su a s idéia s ecoa ra m n u m n ú m ero in con tá vel de leitores pelo m u n do todo. S em pre z en: Com o in trod uz ir a prática d o z en em s eu d ia-a-d ia t rou xe os en s in a m en tos e a cla reza do zen pa ra a vida d iá r ia n u m a form a s in ton iza da com os r itm os da vida ociden ta l con tem porâ n ea . Nad a es pecial: o z en v ivo a m plia e a p rofu n da os en s in a m en tos de J oko. Su a eleva da m a tu r ida de e bem próxim a a ten çã o da p rá t ica em s i fa zem des te livro u m texto útil não só para aqueles que desejam compreender melhor o zen no Ociden te, com o ta m bém pa ra a qu eles qu e es tã o determ in a dos a transformar suas vidas.

Como a a n ter ior , es ta obra é fru to n ã o s ó da s idéia s de J oko, m a s ta m bém do gen eros o a poio de m u itos de s eu s ded ica dos a m igos e a lu n os . Os leitores en con tra rã o a qu i pa les t ra s qu e es s es a lu n os a m igos t ra n s crevera m ou s u ger ira m qu e fos s em in clu ída s . Sem a a ju da qu e p res ta ra m , es te livro ta lvez n ã o t ives s e s ido con clu ído. J oh n Lou don , ed itor -ch efe da Ha rper em Sa n Fra n s cís co, or ien tou es te p rojeto com in cen t ivos e s a bedoria. Agradeço-lh e por s u a lidera n ça e s en s a tez. Pou cos a u tores e ed itores podem s er m a is a for tu n a dos qu e eu em term os de a s s is -tên cia ed itor ia l: com u m bom h u m or in a ba lá vel, Pa t Pa d illa t ra ba lh ou com ra p idez e p recis ã o em m in h a s gera lm en te des or -denadas revisões. Mais uma vez, colaborar com Joko foi a maior de toda s a s a legr ia s . Com u m a com pa ixã o qu e a s a bedor ia tornou madura, ela continua servindo todas as vidas que toca.

Steve Smith

Claremont, Califórnia

Fevereiro de 1993.

* Meetings with remarkable women: Buddhist teachers in America, Boston: Shambala, 1987, p. 112

Page 7: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

I. Luta

RODAMOINHOS E ÁGUAS PARADAS

Som os bem pa recidos a roda m oin h os n o r io da vida . Em s eu fluxo, o rio ou riacho encontra pedras, galhos ou irregularidades de leito qu e leva m a o a pa recim en to es pon tâ n eo de roda m oin h os a qu i e a li. A á gu a qu e pa s s a por es s es pon tos ra p ida m en te os a t ra ves s a e s e rein tegra a o r io, poden do m a is a d ia n te en t ra r em ou tro roda m oin h o e p ros s egu ir depois . Em bora por cu r tos per íodos ela pa reça d is t in ta , u m even to s epa ra do, a á gu a do roda m oin h o é apenas o próprio rio. A estabilidade do rodamoinho é temporária. A en ergia do r io da vida form a a s cois a s viva s

o s er h u m a n o, o ga to, o ca ch orro, a s á rvores e a s p la n ta s , e, en tã o, o qu e m a n t in h a o roda m oin h o n o lu ga r s ofre u m a m odifica çã o e a qu ele torvelin h o é des feito e tom a a en t ra r n o flu xo m a ior . A en ergia qu e foi u m cer to roda m oin h o s e d is s olve e a á gu a p ros s egu e, ta lvez pa ra s er n ova m en te ret ida e, por u m m om en to, t ra n s form a r-s e em outro rodamoinho.

Prefer im os n o en ta n to n ã o pen s a r s obre n os s a s vida s des s a m a n eira . Nã o qu erem os n os ver com o u m a form a çã o tem porá r ia e s im ples , u m roda m oin h o n o r io da vida . O fa to é qu e a s s u m imos u m a form a por u m cer to tem po e, qu a n do a s con d ições s ã o p rop ícia s , s a ím os de cen a . Nã o h á n a da er ra do em s a ir de cen a ; é u m a pa r te n a tu ra l do p roces s o. Con tu do, gos ta m os de pen s a r qu e es s es pequ en os roda m oin h os qu e s om os n ã o fa zem pa r te do r io. Qu erem os n os ver com o s eres perm a n en tes e es tá veis . Toda a n os s a en ergia é d ir igida pa ra n os s a s ten ta t iva s de p roteger n os s a s u pos ta rea lida de em s epa ra do. Pa ra p roteger es s a n os s a s epa ra çã o, cr ia m os lim ites fixos e a r t ificia is . Em con s eqü ên cia d is s o, a cu m u la m os exces s o de ba ga gem , cois a s qu e des liza m pa ra o fu n do do roda m oin h o e n ã o podem flu ir de n ovo. As s im , a s cois a s vã o en tu p in do n os s o roda m oin h o e o p roces s o fica con fu s o. O r io p recis a flu ir n a tu ra lm en te, s em em pecilh os . Se o n os s o roda m oin h o pa r t icu la r es tá todo en tu lh a do de cois a s , a cabamos ta m bém preju d ica n do o r io em s i. E le n ã o con s egu irá ir a pa r te n en h u m a . Os roda m oin h os p róxim os terã o m en os á gu a em vir tu de de n os s o a pego des es pera do. O m elh or qu e podem os fa zer por n ós e pela vida é m a n ter a á gu a de n os s o roda m oin h o flu in do e lim pa

Page 8: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pa ra qu e a pen a s con t in u e s eu cu rs o. Qu a n do fica rep res a da , criamos problemas mentais, físicos e espirituais.

A m elh or m a n eira de s ervirm os ou tros roda m oin h os é per -m it in do qu e a á gu a qu e en t ra n o n os s o ten h a liberda de pa ra es cor rer a t ra vés dele e ir em fren te s olta e rá p ida , pa ra a t in gir qu a lqu er ou tro pon to qu e p recis e s er m obiliza do. A en ergia da vida bu s ca u m a rá p ida t ra n s form a çã o. Se con s egu irm os ver a vida des s a m a n eira e n ã o n os a pega rm os a n a da , a vida s im ples m en te vem e va i. Qu a n do det r itos ch ega m a o n os s o pequ en o roda m oinho, e s e s eu flu xo for h a rm ôn ico e for te, eles fica m gira n do por a li du ra n te u m cer to tem po e depois s egu em a d ia n te. Nã o é a s s im porém qu e vivem os . Com o n ã o percebem os qu e s om os s im ples roda m oin h os n o r io do u n ivers o, con s ideramo-n os en t ida des s epa -ra da s qu e p recis a m proteger s eu s lim ites . O p rópr io ju lga m en to "Sinto-m e m a goa do" es t ipu la u m lim ite a o n om ea r u m "eu " qu e cobra s er p rotegido. Sem pre qu e a lgu m lixo flu tu a pa ra den tro de n os s o roda m oin h o, fa zem os de tu do pa ra evitá-lo, pa ra expu ls á -lo, ou para, de alguma maneira, controlá-lo.

Noventa por cento da vida é gasta na tentativa de criar limites em torn o do roda m oin h o. Es ta m os con s ta n tem en te n a defen s iva : "Ele ta lvez m e m a goe"; "Is s o pode da r er ra do"; "Nã o gos to dele de jeito n en h u m ". Es s e é u m com pleto m a u u s o da n os s a fu n çã o vita l e, m es m o a s s im , todos n os com por ta m os des s a form a , em m a ior ou menor escala.

As p reocu pa ções fin a n ceira s refletem n os s o es forço pa ra manter limites fixos. "E se o meu investimento fracassar? Talvez eu perca todo o m eu d in h eiro." Nã o qu erem os qu e n a da a m ea ce n os s o s u pr im en to m on etá r io. Todos pen s a m qu e is s o s er ia u m a cois a ter r ível. Sen do p rotetores e a n s ios os , a pega n do-n os a os n os s os bens materiais, entulhamos nossas vidas. A água que deveria estar cor ren do, en t ra n do e s a in do, pa ra poder s ervir , torn a -s e es ta gn a da . O roda m oin h o qu e ergu e u m d iqu e à s u a volta e s e is ola do res to do r io s e torn a es ta gn a do e perde s u a vita lida de. A p rá t ica con s is te em n ã o s e es ta r m a is p res o a o qu e é pa r t icu la r , m a s em en xergá -lo com o rea lm en te é

u m a pa r te do todo. Apes a r d is s o, ga s ta m os a m a ior pa r te de n os s a en ergia cr ia n do á gu a pa ra da . È is s o o qu e a con tece qu a n do s e vive n o m edo. O m edo exis te porqu e o roda m oin h o n ã o en ten de o qu e é

ou s eja , n a da a lém do próprio r io. En qu a n to n ã o t iverm os u m vis lu m bre des s a verda de, toda n os s a en ergia es ta rá in do n a d ireçã o er ra da . Cr ia m os m u itos

Page 9: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pon tos de es ta gn a çã o qu e gera m con ta m in a çã o e doen ça s . Es s es pon tos es ta gn a dos em bu s ca de p roteçã o den tro de d iqu es com eça m a b r iga r u n s com os ou tros . "Você fede. Nã o gos to de você." Águ a s es ta gn a da s ca u s a m m u itos p rob lem a s . O fres cor da vida está perdido.

A p rá t ica do zen a ju da -n os a ver de qu e m a n eira cr ia m os es ta gn a çã o em n os s a vida . "Será qu e eu fu i s em pre tã o za n ga do e nunca repa rei?" As s im , n os s a p r im eira des cober ta n a p rá t ica é recon h ecer n os s a p rópr ia es ta gn a çã o, cr ia da por n os s os pen s a -m en tos cen tra dos em n ós m es m os . Os m a iores p rob lem a s s ã o cr ia dos por a qu ela s a t itu des qu e n ã o con s egu im os en xerga r em nós. A depressão, o medo e a raiva que não são reconhecidos criam r igidez. Qu a n do recon h ecem os a r igidez e a es ta gn a çã o, a á gu a com eça a flu ir de n ovo, pou co a pou co. Sen do a s s im , a pa r te m a is vita l da p rá t ica é o des ejo de s er a p rópr ia vida

qu e é a pen a s o con ju n to da s s en s a ções qu e n os ch ega m

com o a qu ilo qu e cr ia nosso rodamoinho.

Ao lon go de m u itos a n os , t rein a m o-n os pa ra fa zer o opos to: cr ia r pon tos de á gu a es ta gn a da . Es s a é a n os s a fa ls a con qu is ta. Des s e es forço in ces s a n te n a s cem todos os n os s os p rob lem a s e o nosso d is ta n cia m en to da vida . Nã o s a bem os com o s er ín t imos, como ser um fluxo de vida. Um rodamoinho estagnado, com limites defen d idos , n ã o es tá p róxim o de n a da . Pr is ion eiros de s on h os cen tra dos em n ós m es m os , s ofrem os , com o d izem os votos d iá r ios de um de nossos centros de zen *. A prática é a lenta inversão disso. Pa ra a m a ior ia dos es tu da n tes , es s a in vers ã o é t ra ba lh o pa ra u m a vida in teira . A m u da n ça é em gera l doloros a , p r in cipa lm en te n o in ício. Qu a n do es ta m os h a b itu a dos à r igidez e à in flexib ilida de de uma vida defen d ida , n ã o qu erem os da r perm is s ã o pa ra qu e n ova s cor ren tes de en ergia cru zem o es pa ço da con s ciên cia , por m a is rejuvenescedoras que sejam.

A verda de é qu e n ã o gos ta m os m u ito de a r fres co. Nã o gos ta m os m u ito de á gu a lim pa . Leva m u ito tem po a té conseguir-m os en xerga r n os s o s is tem a de defes a e m a n ipu la çã o da vida em n os s a s a t ivida des d iá r ia s . A p rá t ica a ju da -n os a en xerga r ta is m a n obra s com m a is cla reza , e es s a s con s ta ta ções s em pre s ã o

* Os votos são os seguintes: "Preso num sonho autocentrado: somente sofrimento / Apegado a pensamentos autocentrados: exatamente o sonho. / A cada momento, a vida é assim: a única mestra. / Ser somente este momento: o caminho da compaixão"

Page 10: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

des a gra dá veis . Ain da a s s im , é fu n da m en ta l qu e veja m os o qu e estam os fa zen do. Qu a n to m a is tem po p ra t ica rm os , m a is p ron ta -m en te poderem os recon h ecer n os s os pa drões de defes a . O p ro-ces s o n u n ca é fá cil ou in dolor , porém , e a qu eles qu e es tã o es pera n do en con tra r u m lu ga r fá cil e rá p ido pa ra des ca n s a r n ã o deverão embarcar nessa viagem.

Por es s e m ot ivo é qu e n ã o m e s in to à von ta de com o crescimento do Centro Zen em San Diego. Um número excessivo de a pren d izes es tá em bu s ca de s olu ções fá ceis e in dolores pa ra s u a s d ificu lda des . Prefiro u m cen tro m en or , lim ita do à qu eles qu e es tão pron tos e d is pos tos a execu ta r o t ra ba lh o. Cla ro qu e n ã o es pero de p r in cip ia n tes o m es m o qu e de p ra t ica n tes m a is exper ien tes . Es ta m os todos a p ren den do, ca da vez m a is . No en ta n to, qu a n to maior o centro, mais difícil é manter o ensino limpo e rigoroso. Não é im por ta n te o n ú m ero de a lu n os qu e con s egu im os a t ra ir pa ra o centro. Importante é manter forte a prática. Por isso estou exigindo ca da vez m a is n os en s in a m en tos . Es te n ã o é u m lu ga r pa ra qu em es tá in teres s a do n u m a pa z ou n u m es ta do de gra ça a r t ificia is , ou em algum outro estado particular.

O qu e ob tem os efet iva m en te da p rá t ica é torn a rm o-n os m a is con s cien tes , m a is des per tos , m a is vivos . É recon h ecer n ossas ten dên cia s n ociva s tã o bem qu e n ã o ten h a m os n eces s ida de de pô-la s em prá t ica com os ou tros . Apren dem os qu e n u n ca es tá cer to ber ra r com a lgu ém s ó porqu e es ta m os a borrecidos . A p rá tica ajuda-n os a perceber on de n os s a vida es tá es ta gn a da . Dife-ren tem en te dos r ios de m on ta n h a com s u a m a ra vilh os a á gu a percor ren do vá r ios lu ga res , s om os à s vezes leva dos a u m a im o-b iliza çã o com pen s a m en tos do t ipo: "Nã o gos to d is s o... E le de fa to me magoa", ou "Minha vida é tão difícil...". Na realidade, só existe o flu xo in ces s a n te da á gu a . Aqu ilo qu e ch a m a m os de n os s a vida nada mais é que um pequeno desvio, um rodamoinho que se forma para em seguida se desfazer. Às vezes, os desvios são pequeninos e m u ito cu r tos : a vida rodop ia por u m a n o ou dois em u m s ó lu ga r e depois é rem ovida . Ás pes s oa s s e in da ga m por qu e a lgu n s bebês m orrem qu a n do a in da s ã o tã o n ovin h os . Qu em s a be? Nós n ã o s a bem os por qu ê. Fa z pa r te des s e in term in á vel flu xo de en ergia . Qu a n do pu derm os a ceitá -lo, es ta rem os em pa z. Qu a n do todos os nossos esforços vão em direção oposta, não estamos em paz.

ALUNO: Em n os s a vida , é u m a boa idéia es colh er u m a d ireçã o específica e con cen tra r a li n os s a a ten çã o, ou é m elh or a pen a s

Page 11: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

a ceita r a s cois a s com o ela s s ã o? Es t ipu la r m eta s es pecífica s pode bloquear o fluxo da vida, não é?

JOKO: O p rob lem a es tá n ã o em term os m eta s , m a s em n os s a rela çã o com ela s . Precis a m os ter a lgu m a s m eta s . Por exem plo, os pa is s e es t ipu la m m eta s , com o orga n iza r s u a s fin a n ça s a n te-cipa da m en te pa ra pa ga r a edu ca çã o de s eu s filh os . As pes s oa s com ta len tos n a tu ra is têm com o m eta des en volvê-los . Nã o h á n a da de er ra do n is s o. Ter m eta s é pa r te de s er h u m a n o. É com o chegamos lá que cria transtornos.

ALUNO: O m elh or ca m in h o é ter a s m eta s , m a s n ã o fica r n a dependência do resultado final?

JOKO: É is s o. A pes s oa s im ples m en te fa z a qu ilo qu e é p recis o pa ra a t in gir s eu ob jet ivo. Qu a lqu er pes s oa qu e s e in teres s e em obter u m gra u a ca dêm ico p recis a m a tr icu la r -s e n u m a es cola e a s s is t ir à s a u la s , por exem plo. A qu es tã o é in cen t iva r o ob jet ivo realizando-o n o p res en te: fa zen do is to, is s o ou a qu ilo, con form e for s e m os tra n do n eces s á r io, a qu i, a gora . Em a lgu m m om en to irem os cola r o gra u , ou o qu e for . Por ou tro la do, s e a pen a s s on h a m os com u m ob jet ivo e deixa m os de p res ta r a ten çã o a o p res en te, é p rová vel qu e n ã o con s iga m os leva r n os s a vida a d ia n te

e fiquemos estagnados.

Seja qu a l for a n os s a es colh a , o res u lta do n os s ervirá como u m a liçã o. Se es t iverm os a ten tos e des per tos , a p ren derem os o qu e é n eces s á r io fa zer em s egu ida . Nes s e s en t ido, n ã o h á decis ã o er ra da . No m in u to m es m o em qu e tom a m os u m a decis ã o, s om os con fron ta dos com n os s o p róxim o p rofes s or . Podem os fa zer es -colh a s qu e n os deixem in com oda dos . Podem os ter rem ors o por cer ta s cois a s qu e fa zem os

e a pren der com es s a s exper iên cia s . Por exem plo, n ã o exis te u m a pes s oa idea l pa ra s e ca s a r , n em u m m eio idea l de s e viver . No in s ta n te em qu e n os ca s a m os , es ta m os com todo u m n ovo con ju n to de opor tu n ida des in éd ita s de a p ren -d iza gem , com bu s t ível pa ra p rá t ica . Is s o va le n ã o a pen a s pa ra ca s a m en tos , m a s pa ra qu a lqu er rela çã o. En qu a n to es t iverm os p ra t ica n do com o qu e ch ega a n ós , o res u lta do fin a l s erá qu a s e sempre recompensador e terá valido a pena.

ALUNO: Qu a n do es t ipu lo u m a m eta pa ra m im , m in h a ten dên cia é u s a r o es t ilo "rá p ido e em fren te", ign ora n do o flu xo do rio.

Page 12: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Qu a n do o roda m oin h o ten ta torn a r -s e in depen den te do r io, com o u m torn a do qu e rodop ia e s a i do con trole, ele pode ca u s a r m u itos es t ra gos . Mes m o qu e pen s em os n o ob jet ivo com o u m cer to es ta do fu tu ro a s er a lca n ça do, a verda deira m eta é s em pre a vida des te m om en to. Nã o h á com o em pu rra r o r io pa ra o la do. Mes m o qu e ten h a m os con s t ru ído u m d iqu e à n os s a volta e ten h a m os n os torn a do u m la go de á gu a es ta gn a da , a lgu m a cois a a con tecerá qu e n ã o h a vía m os p revis to. Ta lvez é a a m iga e s eu s qu a tro filh os qu e s e con vida pa ra vir n os vis ita r por u m a s em a n a . Ou m orre a lgu ém . Ou o t ra ba lh o m u da de repen te. A vida pa rece n os a p res en ta r ju s ta m en te a qu ilo qu e s er ia p recis o pa ra m ovi-mentar o lago.

ALUNO: Em termos da analogia dos rodamoinhos e do rio, qual é a diferença entre vida e morte?

JOKO: O roda m oin h o é u m vór t ice, e em torn o de s eu cen tro a á gu a gira . Con form e a vida da pes s oa va i p ros s egu in do, o cen tro a os pou cos va i fica n do ca da vez m a is fra co. Qu a n do en fra qu ecer o s u ficien te, des fa z-s e e a á gu a s im ples m en te s e torn a de n ovo pa r te do rio.

ALUNO: Des s e pon to de vis ta , n ã o s er ia m elh or s er s em pre apenas parte do rio?

JOKO: Nós s em pre s om os pa r te do r io, s en do roda m oin h os ou n ã o. Nã o h á com o evita rm os s er pa r te do r io. Nã o s a bem os d is s o, porém , porqu e tem os u m a form a delim ita da e n ã o en xergamos além dela.

ALUNO: Por ta n to é u m a ilu s ã o qu e a vida s eja d iferen te da morte?

JOKO: Em s en t ido a bs olu to is s o é verda de, em bora de n os s o pon to de vis ta s eja m m om en tos d is t in tos . Em n íveis d iferen tes , a m ba s a s percepções s ã o verda deira s : n ã o exis te vida e m or te e exis te vida e m or te. Qu a n do s ó con h ecem os es s a s egu n da pers pect iva , a pega m o-n os à vida e tem em os a m or te. Qu a n do vemos as duas, o aguilhão da morte é muito mais tênue.

Se es pera rm os o ba s ta n te, todos os roda m oin h os a ca ba rã o desfazendo-s e com o tem po. A m u da n ça é in evitá vel. Com o vivo em Sa n Diego h á m u ito tem po, ten h o obs erva do os pen h a s cos de La Jolla há anos. Eles estão mudando. A linha costeira que existe hoje n ã o é a m es m a qu e eu con tem pla va h á t r in ta a n os . Acon tece o

Page 13: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

mesmo com os rodamoinhos: eles também mudam e, com o tempo, vã o en fra qu ecen do. Algo cede en fim , a á gu a flu i n u m a corredeira e está tudo certo.

ALUNO: Qu and o en fim m orrem os , re tem os a lgu m a cois a do qu e fomos ou tudo se acaba?

JOKO: Nã o vou res pon der a es s a pergu n ta . Su a p rá t ica irá proporcionar-lhe um certo entendimento dessa questão.

ALUNO: Algu m a s vezes você des creveu a en ergia da vida com o u m a in teligên cia n a tu ra l qu e n ós s om os . Es s a in teligên cia ter ia algum tipo de limite?

JOKO: Nã o. In teligên cia n ã o é u m a cois a ; n ã o é u m a pes s oa . Nã o tem lim ites . No in s ta n te em qu e es ta belecem os lim ites pa ra u m a cois a , n ós a rein s er im os n a es fera fen om ên ica da s cois a s , como um rodamoinho que se enxerga separado do rio.

ALUNO: Um de n os s os votos com u n s n o Cen tro Zen fa la de u m "ilim ita do ca m po de ben es s es " *. Is s o é o m es m o qu e o r io, qu e a inteligência natural que nós somos?

JOKO: Sim . A vida h u m a n a é a pen a s u m a form a tem porá r ia que essa energia toma.

ALUNO: Apes a r d is s o, em n os s a s vida s exis te de fa to a necessidade de lim ites . Ten h o u m a gra n de d ificu lda de em ju n ta r isso com o que você está dizendo.

JOKO: Algu n s lim ites s ã o s im p les m en te in eren tes a o qu e s om os ; por exem plo, todos tem os u m a qu a n t ida de lim ita da de en ergia e de tem po. Precis a m os recon h ecer n os s a s lim ita ções n es s e s en t ido. Ma s is s o n ã o qu er d izer qu e ten h a m os de es ta belecer lim ites a r t ificia is e defen s ivos qu e b loqu eia m n ossas vida s . Mes m o qu a n do s om os a in da pequ en os roda m oin h os podem os já recon h ecer qu e s om os pa r te do r io

e n ã o fica m os estagnados.

* Francis Dojun Cook, How to raise an ox: Zen master Dogen's Shobogenzo, including ten newly translated essays, Los Angeles: Center Publications, 1978, p. 24 e s.

Page 14: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

O CASULO DA DOR

Qu a n do n os in clin a m os n o zen do, o qu e es ta m os h on ra n do? Uma maneira de responder a essa pergunta é indagar o que de fato h on ra m os em n os s a vida e qu e t ra n s pa rece n a qu ilo qu e pen s a m os e fa zem os . E a verda de des s a qu es tã o é qu e, em n os s a vida , n ós n ã o h on ra m os a n a tu reza bu da , n em o Deu s qu e en globa toda s a s cois a s , in clu s ive a vida e a m or te, o bem e o m a l, todos os opos tos . A verda de é qu e n ã o es ta m os in teres s a dos n is s o. É cer to n ã o qu ererm os h on ra r a m or te, a dor e a perda . O qu e fa zem os é er igir um falso deus. A Bíblia diz: "Não tens outros deuses antes de mim". Mas fazemos justamente isso.

Qu a l é o deu s qu e con s t ru ím os ? O qu e de fa to h on ra m os , a qu e da m os rea lm en te a ten çã o, de m om en to a m om en to? Pode-r ía m os ch a m á -lo de o deu s do con for to, da s a m en ida des e da s egu ra n ça . Qu a n do reveren cia m os es s e deu s , des t ru ím os a n os s a vida . Qu a n do reveren cia m o deu s do con for to e da s a m en ida des , a s pes s oa s litera lm en te s e m a ta m , com droga s , á lcool, cor r ida s de a u tom óveis , ra iva , im pru dên cia s . As n a ções reveren cia m es s e deu s n u m a es ca la m u ito m a ior e des t ru t iva . En qu a n to n ã o en xergarmos de form a h on es ta qu e é d is s o qu e n os s a vida t ra ta , n ã o s erem os capazes de descobrir quem somos de fato.

Tem os m u ita s m a n eira s de lida r com a vida , m u ita s m a n eiras de reveren cia r o con for to e a s a m en ida des . Toda s ela s ba seiam-se n a m es m a cois a : o m edo de depa ra r com qu a lqu er t ipo de incômodo. Se devem os ter ordem e con t role a bs olu tos , es ta mos ten ta n do evita r toda e qu a lqu er fon te de in côm odo. Se con s egu im os fa zer com qu e a s cois a s s eja m do jeito qu e qu eremos e fica m os za n ga dos qu a n do is s o n ã o a con tece, en tã o pen s a mos qu e podem os s obreviver e deixa r de la do n os s a a n s ieda de a res peito da m or te. Se con s egu im os a gra da r a toda s a s pes s oa s , en tã o im a gin a m os qu e a s cois a s des a gra dá veis n ã o en tra rã o em n os s a vida . Es pera m os qu e, s en do a es t rela do es petá cu lo, res -p la n decen te, m a ra vilh os a e eficien te, terem os u m a p la téia tã o em bevecida qu e n ã o p recis a rem os s en t ir n a da . Se con s egu irm os n os a fa s ta r do m u n do e en treter-n os a pen a s com n os s os p rópr ios s on h os , fa n ta s ia s e d is tú rb ios em ocion a is , pen s a rem os qu e con -s egu im os n os fu r ta r a os in côm odos . Se con s egu irm os p rever tu do a n tes , s e con s egu irm os s er tã o es per tos qu e n os s eja pos s ível

Page 15: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

en ca ixa r tu do em a lgu m p la n o ou ordem , form u la n do u m en ten d im en to in telectu a l com pleto, en tã o ta lvez n ã o s eja m os ameaça dos . Se con s egu irm os n os s u bm eter a a lgu m a a u tor ida de, fazê-la d ita r -n os com o a gir , en tã o poderem os en trega r a ou trem a res pon s a b ilida de por n os s a vida e n ã o terem os m a is qu e n os in cu m bir dela . Nã o terem os de s en t ir a a n s ieda de de tom a r u m a decis ã o. Se viverm os a lu cin a da m en te cor ren do a t rá s de toda s a s sensações a gra dá veis , de toda s a s excita ções , de toda s a s form a s de d ivers ã o, en tã o ta lvez n ã o ten h a m os de s en t ir dor . Se con s e-gu irm os d izer a os ou tros o qu e fa zer , m a n ten do-os bem s ob con trole, s ob n os s os pés , ta lvez eles n ã o con s iga m n os fer ir . Se conseguirmos "via ja r" n u m êxta s e qu a lqu er , s e con s egu irm os s er u m "bu da " in con s eqü en te, n ã o terem os de a s s u m ir a res pon -s a b ilida de pelos in côm odos do viver . Poderem os a pen a s rela xa r e ser felizes.

Toda s es s a s s ã o vers ões do deu s qu e rea lm en te reveren cia -m os . É o deu s do n en h u m des con for to e do n en h u m in côm odo. Sem exceçã o, todo s er n a Ter ra tem es s a a t itu de, em m a ior ou m en or gra u . En qu a n to a a lim en ta m os , perdem os o con ta to com o qu e n a verda de é. Nes s a fa lta de con ta to, n os s a vida des ce em es p ira l. E a qu eles m es m os in côm odos qu e ta n to des ejá va m os evitar conseguem, tomar-nos de assalto.

Tem s ido es s e o p rob lem a da vida h u m a n a des de o in ício dos tem pos . Toda s a s filos ofia s e religiões têm s ido ten ta t iva s va r iá veis de lida r com es s e m edo bá s ico. Apen a s qu a n do es s a s ten ta t ivas n os fa lh a m é qu e fica m os p ron tos pa ra in icia r u m a p rá t ica s ér ia . E ela s de fa to fa lh a m . Porqu e os s is tem a s qu e a dota m os n ã o s e ba s eia m n a rea lida de, n ã o podem da r cer to, a pes a r de todos os n os s os m a iores es forços . Ma is cedo ou m a is ta rde, con s ta ta m os que está faltando algo.

In felizm en te, n ós m u ita s vezes a pen a s a u m en ta m os o n os s o er ro con t in u a n do com a s m es m a s ten ta t iva s ou reves t in do n os s o velh o e déb il s is tem a com u m ou t ro n ovo, ta m bém déb il. É s edu tor , por exem plo, en t rega rm o-n os a a lgu m a fa ls a a u tor ida de ou a u m preten s o gu ru , qu e irá a dm in is t ra r a n os s a vida por n ós , enquanto ten ta m os en con tra r a lgo ou a lgu ém fora de n ós qu e s e in cu m ba de nosso medo.

On tem u m a borboleta en t rou voa n do pela por ta de m in h a ca s a e ficou es voa ça n do pela s a la . Algu ém a a pa n h ou e a s oltou lá

Page 16: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

fora . Fiqu ei pen s a n do n a vida de u m a borboleta . E la com eça com o u m a la ga r ta , qu e s e des loca m u ito deva ga r e n ã o con s egu e enxergar muito longe. Depois de um certo tempo, ela faz um casulo e n a qu ele es pa ço es cu ro e s ilen cios o perm a n ece m u ito tem po. Por fim , depois do qu e deve pa recer u m a etern ida de de t reva s , ela emerge como uma borboleta.

A h is tór ia de vida da s borboleta s é s em elh a n te à n os s a p rá t ica . Tem os a lgu n s p recon ceitos a res peito de a m ba s , porém . Podem os im a gin a r , por exem plo, qu e s en do a s borboleta s s eres lin dos , s u a vida n o ca s u lo, a n tes de s e torn a rem borboleta s , ta m bém é lin da . Nã o percebem os tu do o qu e a la ga r ta deve s u por ta r pa ra torn a r -s e u m a borboleta . Da m es m a form a , qu a n do com eça m os a p ra t ica r , n ã o n os da m os con ta da lon ga e pen os a t ra n s form a çã o a qu e s om os s olicita dos . Tem os de en xerga r a t ravés de n os s a bu s ca de cois a s extern a s , dos fa ls os deu s es do p ra zer e da s egu ra n ça . Tem os de pa ra r de devora r is s o e pers egu ir a qu ilo com n os s a vis ã o m íope e s im ples m en te rela xa r den tro do ca s u lo, nas trevas da dor que é a nossa vida.

Es s a p rá t ica exige a n os e a n os . Divers a m en te da s borboletas, n ã o em ergim os de u m a s ó vez. En qu a n to gira m os den t ro do ca s u lo de dor , podem os ter vis lu m bres fu ga zes da vida , com o u m a borboleta es voa ça n do a o s ol. Nes s es m om en tos , s en t im os o a bs olu to des lu m bra m en to do qu e é n os s a vida

a lgo qu e n u n ca con h ecem os com o la ga r t in h a s a ta refa da s , p reocu pa da s a pen a s com n ós p rópr ia s . Com eça m os a con h ecer o m u n do da borboleta apen a s pelo con ta to com n os s a p rópr ia dor , o qu e s ign ifica n ã o reveren cia r m a is o deu s do con for to e da s a m en ida des . Tem os de des is t ir de n os s a s ervil obed iên cia a qu a lqu er s is tem a qu e evite a dor qu e ten h a m os ela bora do, con s ta ta n do qu e n ã o podem os n os es qu iva r do in côm odo s im ples m en te cor ren do m a is depres s a e ten ta n do m a is u m pou co. Qu a n to m a is depres s a n os a fa s ta m os de n os s a dor , m a is ela s e a podera de n ós . Qu a n do n ã o fu n cion a m a is a qu ilo de qu e depen d ía m os pa ra da r s en t ido à n os s a vida , o qu e fazer?

Algu m a s pes s oa s ja m a is des is tem des s a fa ls a bu s ca . Com o tem po podem a ca ba r m orren do de u m a overdose, litera l ou figu ra t iva m en te. No es forço de a dqu ir ir con trole m ovem o-n os cada vez m a is rá p ido, da m os tu do o qu e tem os , ten ta m os com m a is em pen h o, es p rem em os a s pes s oa s a o m á xim o, es p rem em os n ós mesm os a o m á xim o. No en ta n to, a vida n u n ca poderá s er de fa to

Page 17: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s u bm et ida a u m con trole tota l. Qu a n to m a is fu gim os da rea lida de, mais a dor aumenta. Essa dor é nossa mestra.

A p rá t ica s en ta da n ã o t ra ta de en con tra r u m es ta do feliz de gra ça e n ele s e es qu ecer . Es s e es ta do pode in clu s ive ocorrer n a p rá t ica s en ta da , qu a n do já h ou verm os viven cia do n os s a dor vá rias vezes s egu ida s , de m odo qu e depois s ó res ta o en t rega r -s e. Es s a en t rega a es s a a ber tu ra pa ra a lgo n ovo e virgem é a con s eqüência de s e viver a dor , n ã o o res u lta do de s e en con tra r u m lu ga r on de podemos deixar a dor do lado de fora.

Sesshin * s en ta do e a p rá t ica d iá r ia s ã o u m a qu es tã o de n os embrulharmos naquele casulo de dor. Não o faremos senão de bom gra do. Pr im eiro podem os ter a pen a s u m a pequ en a fa ixa atando-n os , e en tã o n os livra m os dela . Ou tra vez a en rola m os à n os s a volta e m a is u m a vez n os s olta m os , Depois de u m tem po, s en t im o-n os d is pos tos a s en ta r com u m a pa rcela de n os s a dor du ra n te a lgu m tem po. En tã o depois , ta lvez, d is pom o-n os a tolera r du a s ou t rês fa ixa s n os a per ta n do. Con form e n os s a vis ã o va i fica n do m a is cla ra , podem os s im p les m en te s en ta r den tro de n os s o ca s u lo e descobrir que é o único espaço sossegado que já tivemos na vida. E, qu a n do es t iverm os d is pos tos a es ta r a li

em ou tra s pa la vra s , qu a n do es t iverm os des eja n do qu e a vida s eja o qu e ela é, en globa n do ta n to a vida com o a m or te, ta n to o p ra zer com o a dor , ta n to o bem com o o m a l, s en t in do con for to em s er a s du a s coisas , então o casulo começa a desfazer-se.

Diferen tem en te da borboleta , a ltern a m os en tre o ca s u lo e a borboleta muitas vezes. Esse processo se mantém por toda a nossa vida . Toda vez qu e depa ra m os com á rea s n ã o res olvida s dd n os s a vida , tem os qu e con s t ru ir u m ou tro ca s u lo e repou s a r n ele em s ilên cio a té qu e ten h a s e com pleta do o per íodo de a p ren d iza gem . Toda vez qu e o ca s u lo s e rom pe e n ós da m os m a is u m pequ en o passo, estamos um pouco mais livres.

O p r im eiro e es s en cia l pa s s o pa ra n os torn a rm os u m a bor-boleta é recon h ecer qu e n ã o ch ega rem os lá s en do la ga r ta s . Temos que enxergar mais além de nossa busca pelo falso deus do conforto e do p ra zer . Tem os qu e form u la r u m a n ít ida im a gem des s e deu s . Tem os de a b r ir m ã o de n os s a n oçã o de qu e tem os d ireitos , de qu e a vida n os deve is to ou a qu ilo. Por exem plo, tem os de a ba n don a r a

* Retiro para meditação zen intensiva.

Page 18: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

n oçã o de qu e con s egu im os força r os ou t ros a n os a m a r fa zen do cois a s pa ra eles . Tem os de recon h ecer qu e n ã o tem os con d ições de m a n ipu la r a vida pa ra n os s a t is fa zer e qu e en con tra r os defeitos em n ós ou n os ou tros n ã o é u m ca m in h o efica z pa ra s e a ju da r qu em qu er qu e s eja . Aos pou cos va m os a ba n don a n do n os s a arrogância básica.

A verda de é qu e a vida den tro do ca s u lo é fru s t ra n te e dói m u ito e n u n ca fica in teira m en te pa ra t rá s . Nã o es tou d izen do qu e da m a n h ã a té a n oite s en t im os a lgo com o "Es tou en volvido pela dor". Es tou d izen do qu e es ta m os s em pre a corda n do pa ra o qu e de fato nos sentimos atraídos, para aquilo que estamos fazendo com a n os s a vida rea lm en te. E o fa to é qu e is s o é doloros o. Nã o exis te possibilidade de liberdade, porém, sem essa dor.

Ou vi h á pou co tem po u m a decla ra çã o de u m a t leta p rofis -s ion a l: "Am or n ã o é p ra zer com pa r t ilh a do. É dor repa r t ida ". E is u m a boa percepçã o. Sem dú vida podem os gos ta r m u ito de pa ssear com nosso marido ou namorado, por exemplo, quando saímos para ja n ta r ju n tos . Nã o es tou qu es t ion a n do o va lor do p ra zer com pa r t ilh a do. Ma s , s e qu erem os u m a rela çã o m a is p róxim a e a u tên t ica , p recis a m os com pa r t ilh a r com n os s o com pa n h eiro a qu ilo qu e m a is n os a s s u s ta fa la r pa ra ou tra pes s oa . Qu a n do fa zem os is s o, en tã o o ou tro tem a liberda de de fa zer a m es m a cois a . Em vez d is s o, qu erem os fica r m a n ten do a n os s a im a gem , p r in cipa lmente para alguém a quem estamos tentando impressionar.

Compartilhar nossa dor não significa ficar informando o outro de qu e m a n eira ele n os ir r ita . Ser ia u m a ou tra m a n eira de lh e es ta r d izen do "Es tou com ra iva de você". Is s o n ã o n os a ju da a qu ebra r n os s o fa ls o ídolo, n em a n os a b r ir pa ra a vida com o u m a borboleta . O qu e de fa to n os a b re é fa la r de n os s a s vu ln era b ilida des . Às vezes vem os u m ca s a l qu e vem fa zen do es s e á rdu o t ra ba lh o du ra n te toda s u a vida . Ao lon go des s e tem po, en velh ecera m ju n tos . Podem os s en t ir o im en s o con for to, a qu a -lida de recíp roca de bem -es ta r en t re os dois . É m a ra vilh os o e m u ito ra ro. Sem es s a qu a lida de de a ber tu ra e vu ln era b ilida de, os pa res n ã o fica m s e con h ecen do de verda de; s ã o u m a im a gem viven do com outra imagem.

Ta lvez ten tem os n os es qu iva r do ca s u lo da dor m ergu lh a n do n u m es ta do n ebu los o e m a l foca liza do, com o u m boia r levemente a gra dá vel qu e pode du ra r h ora s . Qu a n do n os da m os con ta de qu e

Page 19: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

é is s o qu e es tá a con tecen do, qu a l s er ia u m a boa pergu n ta pa ra s e fazer?

ALUNO: "O que estou evitando?"

ALUNO-. Eu poderia perguntar: "O que estou vivenciando neste exato momento?".

JOKO: Es s a s s ã o du a s boa s pergu n ta s pa ra s e fa zer . O cu r ios o é qu e d izem os qu e qu erem os con h ecer a rea lida de e ver a n os s a vida com o ela é; e, n o en ta n to, qu a n do com eça m os a p ra t ica r , ou freqüentamos os sesshin, encontramos imediatamente maneiras de evitar a realidade, refugiando-nos nesse estado nebuloso, sonhador. Es s a é a pen a s u m a ou tra form a de reveren cia r o fa ls o deu s do conforto e do prazer.

ALUNO: Nã o é u m cer to des equ ilíb r io bu s ca r o s ofr im en to e concentrar nele a atenção?

JOKO: Nã o tem os qu e ir bu s cá -lo, ele já es tá em n os s a s vida s . A ca da cin co m in u tos en t ra m os n u m a es pécie de d ificu lda de. Toda n os s a "bu s ca " é pa ra evitá -lo. Exis tem in con tá veis m a n eira s pa ra s e ten ta r es ca pa r dele, ou pa ra coloca r u m a con ch a de p roteçã o a n os s a volta . Apes a r de todos os n os s os es forços , es s a con ch a s e rom pe. En tã o fica m os m a is des es pera dos e n os es força m os m a is . Va m os t ra ba lh a r e des cobr im os qu e o ch efe teve u m a n oite d ifícil, ou qu e nos s o filho acab a de liga r d izen do qu e es tá com prob lem a s n a es cola . A con ch a es tá s en do o tem po todo in va d ida . Nã o exis te m a n eira de n os a s s egu ra rm os de qu e ela perm a n ecerá in ta cta . Nos s a s vida s s e des m oron a m porqu e n ã o con s egu im os tolera r nenhuma oposição ao modo como queremos que as coisas saiam.

A dor es tá con s ta n tem en te em n os s a s vida s . Sen t im os n ã o s ó a n os s a p rópr ia dor , m a s a da s pes s oa s a o n os s o redor . Ten ta m os erguer um paredão mais sólido que o anterior, ou evitar as pessoas qu e es tã o s ofren do; con tu do, a dor s em pre es tá p res en te, s eja como for.

ALUNO: Va m os s u por qu e es tou p ra t ica n do e qu e n ã o es tou sofren do. Na verda de, es tou m e s en t in do m u ito bem . É ú t il lembrar de m om en tos doloros os pelos qu a is já s e pa s s ou , ou retorn a r a s itu a ções qu e fica ra m s em res olver e ten ta r t ra ba lh a r com essas coisas?

Page 20: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Nã o é n eces s á r io. Se es t iverm os a ler ta s pa ra o qu e es tá s e pa s s a n do em n os s os pen s a m en tos e em n os s o corpo n es te m o-mento, teremos mais do que o suficiente com que trabalhar.

Qu a n do es ta m os p len a m en te des per tos , n es te m om en to, a p rá t ica ta m bém pode s er a gra dá vel. Ma s n ã o devem os ir em bu s ca d is s o e ten ta r es ca pa r da dor , pois a s s im es ta r ía m os t ra zen do pa ra a p rá t ica o fa ís o deu s e n os recu s a r ía m os a des per ta r pa ra s u a verdadeira natureza.

ALUNO: Com o tem po des cobr i qu e o qu e com eça a a pa recer du ra n te a p rá t ica n ã o é ta n to p ra zer ou dor , n em a lgo en tre es s es dois , m a s a pen a s in teres s e. A vivên cia pode s er vis ta com o u m a espécie de curiosidade,

JOKO: Sim, bem lembrado.

ALUNO: Es ta m os fa la n do da d iferen ça en t re o a bs olu to e o relativo? Podemos dizer que o absoluto é prestar atenção em tudo e qu e o rela t ivo é ir a pen a s a t rá s de p ra zer e con for to? Rela xa r n o casulo da dor seria então um meio de se chegar ao absoluto?

JOKO; Eu n ã o d ir ia qu e é "u m m eio de ch ega r a o a bs olu to", pois s em pre es ta m os n ele. Porém , es colh em os n ã o p res ta r a ten çã o n o fa to de es ta rm os n ele e deixa rm os de la do pa r te de n os s a s vivência s . O a bs olu to s em pre en globa a dor e o p ra zer . Nã o h á n a da de er ra do com a dor em s i: n ós a pen a s n ã o gos ta m os dela . Nã o exis te a lgo ch a m a do a bs olu to qu e s eja m a ior do qu e o rela t ivo. São os dois lados de uma mesma moeda. O mundo fenomênico das pes s oa s , da s á rvores e dos ta petes e o m u n do a bs olu to do pu ro n a da in cogn os cível, da en ergia , s ã o a m es m a cois a . Em vez de ir em bu s ca de u m idea l u n ila tera l, p recis a m os n os cu rva r d ia n te do a bs olu to n o rela t ivo, a s s im com o do rela t ivo n o a bs olu to. Devem os honrar todas as coisas.

SÍSIFO E O FARDO DA VIDA

A m itologia grega fa la de Sís ifo, rei de Cor in to, con den a do pelos deu s es a o Ha des em pu n içã o etern a . Pa ra s em pre ele tem qu e em pu r ra r u m roch edo im en s o, colin a a cim a , e, qu a n do ch ega a o a lto, o roch edo rola pa ra ba ixo. E le s e es força pa ra em pu rra r a

Page 21: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pedra im en s a colin a a cim a a pen a s pa ra vê-la des cer tu do de n ovo, interminavelmente, eternidade afora.

Com o todos os m itos , es s a h is tór ia con tém u m en s in a m en to. Como vocês vêem esse mito? Do que ele trata? Como um koan, tem muitos aspectos.

ALUNO: O m ito s u gere pa ra m im qu e a vida é u m ciclo. Exis te um começo, um meio e um fim e então começa tudo de novo.

ALUNO: Is so m e fa z pen s a r n a p rá t ica de fica r lim pa n do e limpando o es pelh o. Tem os de fa zê-lo a té des is t ir e viver o momento presente.

ALUNO: O ca s t igo de Sís ifo é h or r ível s ó s e ele es pera qu e u m dia termine.

ALUNO: Es s e m ito m e recorda a a çã o obs es s iva , qu a n do es tou preso num ciclo repetitivo de comportamentos e pensamentos.

ALUNO: Sís ifo pa rece u m a pes s oa qu e es tá lu ta n do com a vida e seus fardos, tentando livrar-se deles.

ALUNO: Es s a h is tór ia pa rece a n os s a p rá t ica . Se vivem os ca da m om en to, s em o pen s a m en to de a lgu m a m eta , ou de ch ega r em a lgu m lu ga r ou de fin a lm en te ob ter a lgu m a cois a , en tã o n ós a pen a s vivem os . Fa zem os o qu e h á em s egu ida : em pu rra r a roch a , ela rolar, e então empurrar de novo.

ALUNO: Pen s o qu e a h is tór ia de Sís ifo rep res en ta a idéia de que não existe esperança.

ALUNO: A n a tu reza de m in h a m en te é n ã o fica r s a t is feito com m eu s p róp r ios feitos e ter m a is in teres s e n o des a fio de ch ega r em a lgu m lu ga r . As s im qu e con s igo a lgo, ele n ã o m e d iz m a is m u ita coisa.

ALUNO: Sís ifo é qu em eu s ou . Som os todos Sís ifos , ten ta n do fa zer a lgu m a cois a com n os s a s vida s e d izen do "Nã o pos s o". O próprio rochedo é o "Não posso".

JOKO: A qu es tã o qu e eu gos ta r ia de coloca r é o qu e qu er d izer fazer o mal? É interessante que alguém tenha julgado Sísifo por ele ter feito o m a l e qu e ten h a s ido con den a do a u m loca l es pecia l ch a m a do Ha des . Deixa n do porém es s a s qu es tões de la do, s e pu derm os ver qu e s ó exis te es te m om en to, en tã o em pu rra r a pedra colin a a cim a ou vê-la rola r pa ra ba ixo s ã o, em cer to s en t ido, a

Page 22: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

mesma coisa. Nossa interpretação comum é que a tarefa de Sísifo é d ifícil e des a gra dá vel. Con tu do s ó o qu e a con tece é em pu rra r a pedra e vê-la volta r , u m m om en to depois do ou tro. Com o Sís ifo, estamos todos apenas fazendo o que estamos fazendo, de momento a m om en to. Acres cen ta m os ju lga m en tos a es s a s a t ivida des , con tu do, a cres cen ta m os -lh es idéia s . O in fern o n ã o es tá em em pu rra r a pedra , m a s em pen s a r n is s o, em cr ia r idéia s de es pera n ça e des a pon ta m en to, em in da ga r -s e s e u m d ia s erá pos s ível fin a lm en te fa zer com qu e a pedra fiqu e lá em cim a . "Trabalhei tanto! Talvez desta vez a pedra fique."

Nossos esforços de fato fazem com que as coisas aconteçam e, fa zen do com qu e ela s a con teça m , ch ega m os a o s egu n do s egu in te. Ta lvez a pedra fique n o a lto por u m cer to tem po; ta lvez n ã o. Nenhum dos dois acontecimentos é, em si, bom ou mau. O peso da pedra , 0 fa rdo, é o pen s a m en to de qu e n os s a vida é u m a lu ta , de qu e dever ia s er d iferen te do qu e é. Qu a n do ju lga m os o fa rdo com o a lgo des a gra dá vel, p rocu ra m os m eios pa ra es ca pa r . Ta lvez u m a pes s oa s e em bebede pa ra es qu ecer do qu e é em pu rra r a pedra . Ou tra m a n ipu la a s pes s oa s pa ra a ju dá -la com is s o. Mu ita s vezes tentamos em pu rra r es s a ca rga pa ra u m a ou tra pes s oa , pa ra fugirmos do trabalho.

Qu a l poder ia s er o es ta do ilu m in a do pa ra o rei Sís ifo? Se ele em pu rra r a pedra a lgu n s m ilh a res de a n os , o qu e por fim irá compreender?

ALUNO: Ser uno com o ato de empurrar, a cada momento.

JOKO: Sim ples m en te em pu rra r a pedra e a ba n don a r a es pera n ça de qu e s u a vida s erá ou tra cois a . A m a ior ia de n ós im a gin a qu e o es ta do ilu m in a do s erá a lgo m u ito m a is a gra dá vel do qu e em pu rra r pedra s ! Algu m a vez você já a cordou pela m a n h ã res m u n ga n do: "Nã o qu ero n em pen s a r em toda s a s cois a s qu e ten h o pela fren te h oje'' ? Ma s a vida é com o ela é. E n os s a p rá t ica t ra ta n ã o de fa zer a vida s er gos tos a , m es m o qu e es s a s eja u m a es pera n ça m u ito h u m a n a . Todos gos ta m os da s cois a s qu e n os fa zem s en t ir bem . Gos ta m os em es pecia l dos com pa n h eiros qu e n os fa zem s en t ir bem . Se is s o n ã o a con tece, con clu ím os qu e a s cois a s p recis a m s er m u da da s , qu e ele ou ela p recis a m u da r! Por s erm os h u m a n os , pen s a m os qu e n os s en t ir bem é o ob jet ivo da vida . Ma s , s e a pen a s em pu rra rm os n os s a pedra a tu a l e p ra t ica rm os pa ra tom a r con s ciên cia do qu e a con tece em n ós

Page 23: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

en qu a n to a em pu rra m os , len ta m en te irem os n os t ra n s form a r . O que significa transformar?

ALUNO: Ma is a ceita çã o, m en os ju lga m en tos , m a is descontração diante da vida, abertura para a vida.

JOKO: Abertu ra para a v id a e aceitação es tã o u m pou co fora do a lvo, em bora s eja d ifícil en con tra r pa la vra s exa ta m en te cor reta s .

ALUNO: A ilu m in a çã o tem a lgo qu e ver com ch ega r a o zero, a o "não-Iugar".

JOKO: Mas o que significa para um ser humano o "não-Iugar"? O que é esse "não-Iugar"?

ALUNO: O agora, o já.

JOKO: Sim , m a s com o o vivem os ? Va m os s u por qu e a cordo de m a n h ã com u m a for te dor de ca beça e qu e ten h o u m a a gen da lota da . Todos tem os d ia s a s s im . O qu e s ign ifica "es ta r n o zero" diante disso?

ALUNO: Sign ifica es ta r a li com todos os m eu s s en t im en tos e com todos os m eu s pen s a m en tos

s im ples m en te es ta r a li, s em acrescentar mais nada extra.

JOKO: Sim , e m es m o qu e a cres cen tem os a lgo ext ra is s o ta m bém fa z pa r te do pa cote, pa r te da vida com o ela é n es te m om en to. Pa r te do pa cote é: "Eu s im ples m en te n ã o qu ero fa zer tu do des te d ia ". Qu a n do es s e pen s a m en to é o qu e recon h eço com o presente, en tã o es tou a pen a s em pu rra n do a m in h a pedra . Pa s s o por esse dia difícil e o que me resta para o dia seguinte? De alguma form a o roch edo des lizou de volta pa ra ba ixo en qu a n to eu es ta va dorm in do, de m odo qu e lá vou eu de n ovo: em pu rra r , em pu rra r , em pu rra r . "Eu detes to is s o... s im , eu s ei qu e detes to. Gos ta r ia qu e t ives s e u m jeito de s a ir , m a s n ã o tem ou pelo m en os eu n ã o enxergo nenhum agora." Perfeito sendo como é.

Qu a n do n ós vivem os de verda de ca da m om en to, o qu e a con tece com o fa rdo da vida ? O qu e a con tece com n os s a pedra ? Se form os tota lm en te o qu e s om os , a ca da s egu n do, com eça m os a s en t ir a vida com o a lgo feliz. En tre n ós e u m a vida feliz es tã o n os s os pen s a m en tos , n os s a s idéia s , n os s a s expecta t iva s , n os s a s es pera n ça s e n os s os receios . Nã o é qu e ten h a m os qu e ter u m a com pleta boa von ta de com res peito a em pu rra r a pedra . Podemos ter m á von ta de des de qu e recon h eça m os n os s a m á von ta de e

Page 24: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s im ples m en te a s in ta m os . Má von ta de n ã o é p rob lem a . Um a pa r te fu n da m en ta l de toda p rá t ica s ér ia é "Nã o qu ero fa zer is s o". E n ã o fa zem os . Ma s , qu a n do n os s a m á von ta de é ca r rega da pelos es forços pa ra es ca pa r , a qu es tã o é ou tra . "Bom , vou com er ou tra fa t ia des te bolo de ch ocola te. Ach o qu e s obrou u m a "; "Vou telefon a r pa ra m in h a s a m iga s e fa la r de com o tu do é ter r ível"; "Vou m e en fia r n u m ca n to pa ra poder rea lm en te fica r m e p reocu pa n do com minha vida horrível e com toda a pena que sinto de mim". Que outras maneiras existem para se escapar?

ALUNO: Ficar muito ocupado até me esgotar.

ALUNO: Ficar adiando.

ALUNO: Fazer planos e então refazê-los sem parar.

ALUNO: Meu jeito é ficar doente algum tempo.

JOKO: É verda de, cos tu m a m os fa zer is s o: fica r res fr ia dos, torcer o tornozelo, pegar gripe.

Qu a n do rotu la m os n os s os pen s a m en tos , fica m os con s cien tes de com o es ca pa m os . Com eça m os a ver a s m il e u m a form a s pela s qu a is ten ta m os es ca pa r de viver es te m om en to, de em pu rra r a n os s a ped ra . Des de o m om en to em qu e n os leva n ta m os pela m a n h ã a té a h ora em qu e va m os dorm ir , es ta m os fa zen do a lgu ma cois a ; em pu rra m os a n os s a pedra o d ia in teiro. É o n os s o ju lga m en to a res peito do qu e es ta m os fa zen do qu e ca u s a a n os s a in felicida de. Podem os n os ju lga r vít im a s : "Es tou t ra ba lh a n do com alguém que não é justo comigo1';' 'Não consigo me defender''.

Nos s a p rá t ica é ver o qu e es ta m os em pu rra n do

ch ega r nesse fato básico. Ninguém se dá conta disso o tempo todo; eu com cer teza n ã o. Ma s repa ro qu e a s pes s oa s qu e es tã o p ra t ica n do já h á a lgu m tem po com eça m a ter u m cer to s en s o de h u m or a res peito de s u a ca rga . Afin a l de con ta s , a idéia de qu e a vida é u m fa rdo é s ó u m con ceito. Es ta m os s im ples m en te fa zen do a qu ilo qu e es ta m os fa zen do, s egu n do a s egu n do. A m edida de u m a p rá t ica fru t ífera é s en t irm os qu e a vida é m en os u m fa rdo e m a is u m m ot ivo de con ten ta m en to. Is s o n ã o s ign ifica qu e n ã o exis te t r is teza , m a s a vivên cia da t r is teza é o qu e ju s ta m en te t ra z con ten ta m en to. Se n ã o perceberm os es s a m u da n ça depois de a lgu m tem po de p rá t ica , en tã o a in da n ã o terem os en ten d ido o qu e é a p rá t ica ; es s a mudança é um barômetro muito confiável.

Page 25: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Os fa rdos s em pre es tã o a pa recen do em n os s os ca m in h os . Por exem plo, va m os s u por qu e p recis o pa s s a r u m cer to tem po com a lgu ém de qu em n ã o gos to, e is s o m e pa rece u m fa rdo. Ou ten h o u m a s em a n a d ifícil pela fren te e fico des a n im a da com es s a pers pect iva . Ou a s tu rm a s qu e ten h o n es te s em es tre s ã o de a lu n os des prepa ra dos . Cr ia r filh os pode n os fa zer s en t ir s obreca r rega dos . Doen ça s , a ciden tes , qu a is qu er obs tá cu los qu e n os ven h a m pela fren te podem s er s en t idos com o fa rdos . Nã o podem os viver com o s eres h u m a n os sem en con tra r d ificu lda des , qu e podem os res olver chamar de "fardos". A vida então começa a ser tão pesada.

ALUNO: Aca bei de m e lem bra r de u m con ceito da ps icologia que fala da "querida carga".

JOKO: Sim , em bora a "qu er ida ca rga " n ã o pos s a perm a n ecer a pen a s em n os s a s ca beça s ; ela deve t ra n s form a r-s e em n ós . Exis -tem m u itos con ceitos e n oções m a ra vilh os os , m a s s e eles n ã o s e torn a rem n ós , com o s om os , podem torn a r -s e os fa rdos m a is h os t is de todos . En ten der u m a cois a in telectu a lm en te n ã o ba s ta ; à s vezes é pior do que não entender nada.

ALUNO: Es tou com d ificu lda de pa ra com preen der a idéia de que estamos sempre empurrando a pedra colina acima. Talvez por-que neste momento as coisas todas parecem estar a meu favor.

JOKO: É pos s ível. Às vezes a s cois a s rea lm en te vã o a o n os s o en con tro. Podem os es ta r viven do o a u ge de u m n ovo e m a ra vilh os o rela cion a m en to. O n ovo em prego con t in u a excita n te. Ma s h á u m a d iferen ça en t re a s cois a s n os s erem fa vorá veis e o verdadeiro con ten ta m en to. Va m os s u por qu e es ta m os n u m des s es belos per íodos em qu e tem os u m bom rela cion a m en to ou u m bom em prego, e tu do es tá u m a m a ra vilh a . Qu a l é a d iferen ça en t re es s a s en s a çã o boa , qu e s e ba s eia em circu n s tâ n cia s , e o con ten ta m en to? Como saber?

ALUNO: Tememos que possa acabar.

JOKO: E como esse medo se manifestaria?

ALUNO: Em alguma tensão corporal.

JOKO: A ten s ã o corpora l s em pre es ta rá p res en te s e n os s a s en s a çã o boa for a pen a s a qu ela felicida de com u m , cen tra da em s i m es m a . O con ten ta m en to n ã o tem ten s ã o, porqu e a ceita tu do qu e é com o é. Às vezes , em pu rra n do a pedra colin a a cim a , terem os

Page 26: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

m es m o a s s im u m a fa s e boa . Com o é qu e o con ten ta m en to a ceita essa sensação boa?

ALUNO: Simplesmente como é.

JOKO: Sim . Sem s om bra de dú vida , s e es t iverm os n u m bom per íodo de n os s a s vida s , va m os des fru tá -lo, m a s s em n os a pega r -m os a is s o. Nos s a ten dên cia é p reocu pa rm o-n os com s eu fim e então tentaremos nos agarrar a ele.

ALUNO: É , eu percebo qu e, en qu a n to es tou s im ples m en te viven do e des fru ta n do is s o, es tou bem , E qu a n do eu pa ro e pen s o "Is s o es tá ót im o" qu e eu com eço a m e p reocu pa r com "Qu a n to tempo isso ainda vai durar?".

JOKO: Nen h u m de n ós es colh er ia s er Sís ifo, m a s , em cer to sentido, todos somos.

ALUNO: Todos temos pedras na cabeça.

JOKO: Sim . Qu a n do n os en t retem os com a pedra qu e es tá s obre n os s a ca beça , o roch edo da vida pa rece pes a do. Ma s , por outro lado, nossas vidas são apenas aquilo que estamos fazendo. O m odo de fica rm os m a is con ten tes em s ó viver n os s a vida com o ela é, em só tornar mais leve o fardo de cada dia, é ser essa vivência de con s ta n te a livia r . Es s a é a form a de con h ecim en to qu e vem da experiência, e o entendimento intelectual pode decorrer dela.

ALUNO: Se eu s ou bes s e qu e a pedra ia des cer toda s a s vezes eu poderia pensar: *'Bom, vamos ver com que rapidez consigo levá-la a té o a lto des ta vez. Ta lvez eu pos s a m elh ora r m eu tem po". Eu t ra n s form a r ia is s o n u m jogo ou cr ia r ia a lgu m a es pécie de significado em minha mente.

JOKO: Ma s s e es ta m os fa zen do is s o des de s em pre, ou m esmo du ra n te u m a vida in teira , o qu e a con tecerá com o s ign ifica do qu e cr ia rm os ? Es s a s erá u m a cr ia çã o pu ra m en te in telectu a l; m a is cedo ou m a is ta rde, ca irá por ter ra . Es s e é o p rob lem a do "pen samento pos it ivo" e da s a firm a ções : n ã o podem os m a n tê-la s fu n cion ando para sempre. Esses esforços nunca são o caminho da liberdade. Na rea lida de, n ós já s om os livres . S ís ifo n ã o era p r is ion eiro n o Ha des , viven do em etern o ca s t igo. E le s em pre es ta va livre porqu e es ta va fazendo o que estava fazendo.

Page 27: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

RESPONDENDO ÀS PRESSÕES

Antes do serviço, recitamos o verso do Kesa: "Vasto é o manto da liber ta çã o, o ca m po in form e de ben efícios . Vis to o en s in a m en to u n ivers a l, s a lva n do todos os s eres s en s íveis " *. A fra s e "ca m po in form e de ben efícios " é pa r t icu la rm en te evoca t iva ; t ra z à tona qu em s om os e qu a l é a fu n çã o de u m s erviço religios o. O pon to da p rá t ica do zen é s erm os qu em s om os

u m ca m po in form e de

ben efícios . Es s a s pa la vra s pa recem m u ito bela s , m a s vivê-la s em nossa própria vida é difícil e confunde.

Con s iderem os de qu e m a n eira lida m os com a p res s ã o ou o es t res s e. Aqu ilo qu e pa ra a lgu ém é p res s ã o pa ra ou tro n ã o é. Pa ra u m a pes s oa t ím ida , p res s ã o poder ia s er a t ra ves s a r u m a fes ta a p in h a da de gen te. Pa ra ou tra , p res s ã o poder ia s er fica r s ozin h a , ou cumprir prazos. Há indivíduos para quem pressão seria ter uma vida lenta, monótona, sem nenhum prazo a cumprir. Um novo filho, u m n ovo n a m ora do, u m n ovo a m igo podem s er focos de p res s ã o. O s u ces s o ta m bém . Há pes s oa s qu e lida m bem com o fra ca s s o, m a s n ã o com o s u ces s o. Pres s ã o é a qu ilo qu e n os fa z fica r ten s os , qu e nos desperta a ansiedade.

Tem a s , d iferen tes es t ra tégia s . pa ra . res pon dera p res s ões . Gurdjieff, in térp rete do m is t icis m o s u fi, ch a m a va n os s a es t ra tégia de "a s pecto p r in cipa l" **. Precis a m os a pren der qu a l é o n os s o a s -pecto p r in cipal

a m a n eira m a is com u m de lida rm os com pres s ões . Qu a n do es tá s ob p res s ã o, u m a pes s oa ten de a recu a r , ou t ra s e es força pa ra s er per feita ou pa ra s er m a is es t rela a in da . Há qu em res pon de à p res s ã o t ra ba lh a n do m a is , e h á os qu e en tã o t ra ba lh a m m en os . Algu n s fogem , ou tros ten ta m dom in a r . Há os qu e s e ocu pa m e fa la m ba s ta n te; e h á os qu e s e torn a m m a is calados do que o habitual.

Descobre-s e qu a l é o a s pecto p r in cipa l obs erva n do-s e qu a n do s e es tá s ob p res s ã o. Todo d ia qu a n do a corda m os , é p rová vel qu e h a ja a lgu m a cois a a d ia n te n a qu ele d ia qu e irá n os ca u s a r a lgu m a

* Francis Dojun Cook, How to raise an ox. Zen master Dogen's Shobogenzo, including ten newly translated essays, Los Angeles: Center Publications, 1978, p. 24 e S. ** Para maiores comentários sobre o conceito de um "aspecto central" ver Don Richard Riso, Personatity types: Using the enneagram for self-discovery, Boston: Houghton Mifflin, 1987.

Page 28: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pres s ã o. Qu a n do a s cois a s es tã o d ifíceis , n ã o h á s en ã o p res s ã o em n os s a vida . Em ou tra s época s exis te m u ito pou ca p res s ã o e en tã o pen s a m os qu e a s cois a s es tã o in do bem . Ma s a vida s em pre n os pressiona de alguma maneira.

Nos s o pa drã o t íp ico de res pon der a p res s ões é cr ia do bem n o in ício de n os s a s vida s . Qu a n do en fren ta m os d ificu lda des n a in fâ n cia , o m a cio tecido da vida com eça a form a r p rega s . É com o s e es s a s p rega s form a s s em u m a pequ en a bols a qu e u s a m os pa ra es con der n os s o m edo. O m odo com o es con dem os n os s o m edo

es s a pequ en a bols a , qu e é n os s a es t ra tégia pa ra da r con ta da situação

é n os s o a s pecto p r in cipa l. En qu a n to n ã o en fren ta rm os n os s o "a s pecto p r in cipa l" e viven cia rm os n os s o m edo, n ã o conseguirem os s er a qu ela tota lida de con t ín u a , o "ca m po in form e de ben efícios ". Em vez d is s o es ta m os todos rep letos de p rega s , de calombos.

Ao lon go de u m a vida in teira de p rá t ica , o a s pecto p r in cipal da pes s oa m u da qu a s e qu e in teira m en te. Por exem plo, eu costumava ser tão tímida que, se tivesse de comparecer a uma sala on de es t ives s em dez ou qu in ze pes s oa s , por exem plo, ou a u m coquetel para pouca gente, eu levaria uns quinze minutos andando de u m la do pa ra ou tro lá fora a n tes de con s egu ir reu n ir a cora gem necessá r ia pa ra en t ra r . Hoje, n o en ta n to, em bora eu n ã o p refira gra n des fes ta s , s in to-m e à von ta de n ela s . Exis te u m a gra n de d iferen ça en t re s en t ir ta n to m edo qu e m a l s e con s egu e en tra r n a s a la e s en t ir -s e à von ta de n es s a s itu a çã o. Nã o es tou qu eren do d izer qu e a pers on a lida de bá s ica da pes s oa m u de. Eu n u n ca s erei ''a a lm a da fes ta '', m es m o qu e viva a té os 110 a n os . Gos to de olh a r pa ra a s pes s oa s qu e es tã o n u m a fes ta e de con vers a r com a lgu m a s delas; esse é o meu jeito.

Muitas vezes cometemos o erro de supor que podemos apenas n os ret rein a r a t ra vés de es forços e a u to-a n a lis e. Podem os pen s a r n a p rá t ica zen com o u m es tu do de n ós m es m os , pa ra poderm os a pren der a pen s a r de m a n eira d iferen te, da m es m a form a com o poder ía m os a p ren der xa drez ou cu lin á r ia fra n ces a . Ma s n ã o é is s o. A p rá t ica zen n ã o é com o a pren der h is tór ia da a n t igü ida de, m a tem á t ica ou cu lin á r ia refin a da . Es s es t ipos de a p ren d iza do têm s eu lu ga r , s em dú vida , porém qu a n do s e t ra ta de n os s o a s pecto principal

o m odo com o m a is com u m en te lida m os com a pressão

é n os s o m a u u s o da m en te in d ividu a l qu e cr iou a con tra çã o em ocion a l. Nã o podem os u s á -la pa ra s e cor r igir ; n ã o

Page 29: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

podemos usar nossa pequena mente para corrigir a pequena mente. É u m prob lem a form idá vel: a qu ilo m es m o qu e es ta m os in ves t iga n do é ta m bém o n os s o m eio ou in s t ru m en to de investigação. A distorção em nosso modo de pensar distorce nossos esforços para corrigir a distorção.

Nã o s a bem os com o a ta ca r o p rob lem a . Sa bem os qu e a lgo em n ós n ã o va i bem porqu e n ã o es ta m os em pa z; ten dem os a exper im en ta r toda s a s es pécies de fa ls a s s olu ções . Um a des s a s "s olu ções " é n os t rein a r a pen s a r de m odo pos it ivo. Es s a é a pen a s u m a m a n obra da pequ en a m en te. Qu a n do n os p rogra m a m os pa ra ter pen s a m en tos pos it ivos a in da n ã o ch ega m os rea lm en te a n os com preen der e s en do a s s im con t in u a m os a en t ra r em d ificu lda des . Se cr it ica m os n os s a m en te e n os d izem os : "Você n ã o pen s a m u ito bem , en tã o n ã o vou forçá -la a pen s a r", ou "Você a lim en tou todos es s es pen s a m en tos des t ru t ivos ; a gora você deve ter pen s a m en tos a gra dá veis , pen s a m en tos pos it ivos ", a in da es ta m os u s a n do n os s a m en te pa ra t ra ta r de n os s a m en te. Es s e pon to é s obretu do d ifícil pa ra os in telectu a is a bs orverem , u m a vez qu e pa s s a ra m s u a vida in teira u s a n do a m en te pa ra res olver p rob lem a s e, é n a tu ra l, in icia m s u a p rá t ica zen do m esmo m odo. (Nin gu ém m elh or qu e eu pa ra s a ber com o é a s s im !) A es t ra tégia n u n ca deu cer to e n u n ca dará.

Existe uma única maneira de se escapar a esse laço fechado e n os en xerga r com cla reza : tem os de da r u m pa s s o a lém do a lca n ce de n os s a pequ en a m en te e obs ervá -la . Es s a qu e obs erva n ã o é pen s a m en to porqu e o obs erva dor pode obs erva r o pen s a mento. Tem os de obs erva r a m en te e repa ra r n o qu e ela es tá fa zen do. Tem os de n ota r com o a m en te p rodu z es s es en xa m es de pen s a m en tos a u tocen tra dos e cr ia , des s a m a n eira , a ten são corporal. O processo de dar um passo atrás não é complicado, mas s e n ã o es ta m os h a b itu a dos a ele pa rece n ovo e des con h ecido e talvez assuste. Com persistência, torna-se mais claro.

Va m os s u por qu e perdem os o em prego. Os pen s a m en tos in u n da m a n os s a m en te, cr ia n do em oções va r ia da s . Nos s o a s pecto p r in cipa l ir rom pe em cen a , en cobr in do n os s o m edo pa ra qu e n ão precis em os en fren tá -lo d ireta m en te. Se perdem os n os s o em prego, a ú n ica cois a a fa zer é p rocu ra r ou tro, s u pon do qu e p recis a m os de d in h eiro. Con tu do, em gera l n ã o é is s o qu e fa zem os . Ou , s e es ta m os p rocu ra n do ou tro t ra ba lh o, podem os n ã o a gir com

Page 30: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

eficiên cia porqu e fica m os m u ito ocu pa dos com o n os s o a borre-cimento e com o transtorno causado pelo aspecto principal.

Va m os s u por qu e a lgu ém n os cr it icou . De repen te s en t im os a p res s ã o. Com o lida r com is s o? Nos s o a s pecto p r in cipa l a pa rece n o m es m o in s ta n te. Us a m os qu a lqu er t ru qu e m en ta l qu e con s e-gu im os en con tra r : p reocu pa ções , ju s t ifica t iva s , recr im in a ções . Po-dem os ten ta r es qu iva r -n os do p rob lem a pen s a n do em a lguma cois a in ú t il ou ir releva n te. Podem os u s a r a lgu m a d roga pa ra silenciá-lo.

Qu a n to m a is obs erva rm os n os s os pen s a m en tos e a ções , m a is n os s o a s pecto p r in cipa l ten derá a des a pa recer . Qu a n to m a is s e des fa z, m a is s en t im o-n os d is pon íveis pa ra viven cia r o m edo que apareceu antes de tudo. Durante muitos anos, a prática refere-se a for ta lecer o obs erva dor . Com o tem po, es ta rem os d is pon íveis pa ra fa zer o qu e es t iver pela fren te, s em res is tên cia , e es s e obs erva dor des a pa recerá . Nã o p recis a rem os en tã o do obs erva dor pa ra m a is n a da ; podem os s er a p rópr ia vida . Qu a n do es s e p roces s o es t iver com pleto, a pes s oa s erá u m s er p len a m en te rea liza do, u m bu da

em bora eu a in da n ã o ten h a con h ecido n in gu ém cu jo p roces s o tenha ficado completo.

Sen ta r pa ra a p rá t ica é com o n os s a vida d iá r ia : o qu e a pa rece qu a n do n os s en ta m os é o pen s a m en to a qu e qu erem os n os a pega r , o n os s o a s pecto p r in cipa l. Se gos ta m os de fu gir da vida , en con tra rem os em n os s a p rá t ica s en ta da u m a m a n eira de n os es qu iva r do s en ta r . Se gos ta m os de n os p reocu pa r , fica rem os preocu pa dos ; s e gos ta m os de fa n ta s ia r , irem os fa n ta s ia r . Aqu ilo qu e fa zem os em n os s a p rá t ica s en ta da é com o o m icrocos m o do res to de n os s a s vida s . Nos s a p rá t ica s en ta da m os tra -n os com o es ta m os leva n do n os s a vida e n os s a vida m os tra -n os o qu e fa ze-mos quando nos sentamos para a prática.

A t ra n s form a çã o n ã o com eça com a pes s oa d izen do pa ra s i m es m a : "Ten h o qu e s er d iferen te". A t ra n s form a çã o com eça com a com preen s ã o do qu e es tá d ito n o vers o do Kesa: "Va s to é o ca m po da liber ta çã o". Nos s a s p rópr ia s vida s s ã o u m va s to ca m po de liber ta çã o, u m ca m po in form e de ben efícios . Qu a n do ves t im os os en s in a m en tos da vida , obs erva n do n os s os pen s a mentos, viven cia n do a s s en s a ções qu e recebem os a ca da s egu n do, en tã o es ta m os n os ded ica n do a n os s a lva r e a s a lva r todos os seres sensíveis; apenas sendo quem somos.

Page 31: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Meu "a s pecto p r in cipa l" pa rece m u da r con form e a s i-tu a çã o. Sob p res s ã o em gera l s ou con trola dor , dom in a dor e Fico com ra iva . Em ou tra s itu a çã o, n o en ta n to, pos s o torn a r -m e ret ra í-do e calado.

JOKO: Mes m o a s s im , pa ra ca da pes s oa , com por ta m en tos diferentes em res pos ta à p res s ã o a dvêm da m es m a a borda gem bá s ica d ia n te do m edo, em bora pos s a m pa recer d iferen tes . Exis te um padrão intrínseco que está sendo expresso.

ALUNO; Qu a n do m e s in to p res s ion a do

em es pecia l qu ando

m e s in to cr it ica do , dou du ro e ten to fa zer bem a s cois a s ; ten to n ã o s om en te revida r , m a s s en ta r -m e n a a n s ieda de e n o m edo. No a n o pa s s a do, porém , ch egu ei à con s ta ta çã o de qu e, qu a n do m e s in to cr it ica do, por t rá s de m eu s es forços pa ra a gir de form a cor reta es tá u m a ra iva en orm e. O qu e rea lm en te qu ero é a ta ca r ; sou um tubarão assassino.

JOKO: Es s a ira es teve a li o tem po todo; s er u m a boa pes s oa e u m bom p rofis s ion a l é s eu d is fa rce. Exis te u m tu ba rã o a s s a s s in o em todo m u n do. E é o m edo qu e n ã o s e viven ciou . Seu m odo de encobri-lo é pa recer s er tã o boa pes s oa , fa zer ta n ta s cois a s e s er tão maravilhoso que ninguém jamais consiga ver quem você de fato é

a lgu ém m or to de m edo. Con form e va m os des en ter ra n do es s a s ca m a da s de fú r ia , é im por ta n te n ã o deixá -la va za r pa ra n os s a s con du ta s ; n ã o devem os in fligir n os s a fú r ia a os ou tros . Na p rá t ica gen u ín a , n os s a fú r ia é a pen a s u m es tá gio qu e pa s s a . Porém , por a lgu m tem po, s en t im o-n os m u ito m a is in com oda dos do qu e qu a n do com eça m os . Is s o é in evitá vel; es ta m os n os tornan do m a is h on es tos e n os s o fa ls o es t ilo s u per ficia l es tá com eça n do a s e d is s olver . O p roces s o n ã o du ra pa ra s em pre, m a s com cer teza é m u ito des a gra dá vel en qu a n to du ra . De vez em qu a n do podem os a té exp lod ir , m a s is s o é m elh or do qu e fu gir ou m a s ca ra r n os s a reação.

ALUNO: Freqü en tem en te, con s igo en xerga r os pa drões da s ou tra s pes s oa s com m u ito m a is ra p idez do qu e o m eu . Qu a n do ela s s ã o im por ta n tes pa ra m im , s in to a ten ta çã o de lh es d izer o qu e vejo. Sin to-m e com o s e es t ives s e ven do u m a m igo s e a foga r e n ã o lh e dou u m s a lva -vida s . Qu a n do de fa to in ter firo, porém , em gera l m e dá a s en s a çã o de qu e es tou m e in t rom eten do em s u a s vidas, o que não é em absoluto da minha conta.

Page 32: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: É im por ta n te es s e pon to. O qu e s ign ifica s er u m ca m po in form e de ben efícios ? Todos vem os a s pes s oa s fa zen do cois a s qu e evidentemente lhes são prejudiciais. O que devemos fazer?

ALUNO: Não basta estar consciente e ser presente para elas?

JOKO: Sim , es s a é em gera l a m elh or res pos ta . De vez em qu a n do a s pes s oa s n os pedem a ju da . Se s eu ped ido for s in cero, es tá cer to res pon der . Ma s podem os n os a foba r m u ito, n os a t ir a r em con s elh os . A m a ior ia de n ós s e com põe de con s er ta dores . Um a a n t iga m á xim a zen a con s elh a a n ã o res pon der en qu a n to n ã o n os tiverem s olicita do t rês vezes . Se a pes s oa rea lm en te qu er s u a op in iã o in s is t irá . Ma s a p res s a m o-n os em da r op in iões qu a n do ninguém as quer. Eu sei: eu era assim.

O obs erva dor n ã o tem em oções . É com o u m es pelh o. Tu do a pen a s pa s s a à s u a fren te. O es pelh o n ã o ju lga . Sem pre qu e ju lga m os , a cres cen ta m os u m ou tro pen s a m en to qu e n eces s ita s er rotu la do. O obs erva dor n ã o cr it ica . J u lga r n ã o é a lgo qu e o obs erva dor fa ça . E le s im ples m en te obs erva ou reflete, com o u m es pelh o. Se pa s s a lixo à s u a fren te, ele reflete lixo. Se pa s s a m ros a s à s u a fren te, ele reflete ros a s . O es pelh o con t in u a s en do u m es pelh o, u m es pelh o va zio. O obs erva dor n em m es m o a ceita ; s ó observa.

ALUNO: O observador não é de fato parte da pequena mente?

JOKO: Nã o. O obs erva dor é u m a fu n çã o da percepçã o con s cien te qu e s ó s u rge qu a n do tem os o a pa recim en to de u m ob jeto em n os s a vivên cia n o m u n do fen om ên ico. Se n ã o a pa rece u m ob jeto (por exem plo, n o s on o p rofu n do), o obs erva dor n ã o es tá a li. O obs erva dor fin a lm en te m orre qu a n do s om os apenas a percepção consciente e não precisamos mais dele.

Nu n ca con s egu im os en con tra r es s e obs erva dor , por m a is qu e o procuremos. No entanto, apesar de nunca conseguirmos localizá -lo, é óbvio qu e podem os obs erva r . Poder ía m os d izer qu e o obs erva dor é u m a d im en s ã o d iferen te da m en te, m a s n ã o um a s pecto da pequ en a m en te, qu e exis te n o n ível lin ea r com u m . Nós s om os percepçã o con s cien te. Nin gu ém ja m a is obs ervou a percepçã o con s cien te, n o en ta n to é is s o qu e s om os

u m "ca m po informe de benefícios".

ALUNO: Pa rece qu e u m a s en s a çã o des a gra dá vel con s egu e m e ancorar no presente e focalizar minha atenção no aqui-agora.

Page 33: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Tem os o a n t igo d ita do s egu n do o qu a l n a ú lt im a es s ên cia do h om em es tá a opor tu n ida de pa ra Deu s . Qu a n do a s cois a s s ã o a gra dá veis , ten ta m os n os a pega r à s a m en ida des . Em n os s a ten ta t iva de reter o p ra zer , n ós o des t ru ím os . Quando es ta m os s en ta dos n a p rá t ica e verda deira m en te pa ra dos , porém , o desconfor to e a dor n os rem etem de volta a o p res en te. A pos tu ra s en ta da torn a m a is óbvio n os s o des ejo de es ca pa r ou de fu gir . Qu a n do es ta m os p ra t ica n do bem , n ã o h á ou tro lu ga r a on de ir . Nos s a ten dên cia é n ã o a p ren der is s o a m en os qu e s in ta m os des con for to. Qu a n to m a is con s cien tes es t iverm os de n os s o des -con for to e de n os s os es forços pa ra es ca pa r , m a is t ra n s torn os s erã o cr ia dos n o m u n do fen om ên ico: des de gu er ra s in tern a cion a is a té discussões pes s oa is e b r iga s em n os s o ín t im o; todos es s es p rob lem a s s u rgem porqu e n os s epa ra m os de n os s a s vivên cia s . O des con for to e a dor n ã o s ã o a ca u s a de n os s os p rob lem a s ; a ca u s a é que nós não sabemos o que fazer com essas sensações.

ALUNO: Até m es m o n o p ra zer tem u m elem en to de des con for to. Por exem plo, é u m pra zer ter u m pou co de pa z e s ilên cio, m a s logo s in to u m cer to in côm odo a o pen s a r qu e o ba ru lh o e o a la r ido podem recomeçar a qualquer instante.

JOKO: Pra zer e dor s ã o a pen a s pólos opos tos . O contentamen to es tá em s er d is pon ível pa ra qu e a s cois a s s eja m com o s ã o. Com con ten ta m en to, n ã o h á pola r ida de. Se o ba ru lh o com eça , ele com eça . Am bos s ã o con ten ta m en to. Um a vez qu e qu erem os n os a pega r a o p ra zer e a fa s ta r a dor , porém , des en volvem os u m a es t ra tégia de es ca pe. Qu a n do a lgu m a cois a des a gra dá vel n os a con tece en qu a n to s om os cr ia n ça s , des en volvem os u m s is tema

u m a s pecto p r in cipa l pa ra lida r com a s cois a s des a gra dáveis

e vivem os des de en tã o com ba s e n is s o em vez de ver a vida como ela é.

A BASE DE APOIO

Na vida cot id ia n a es ta m os m u n idos do qu e podem os ch a m a r de u m a ba s e de a poio im a gin á r ia : é elét r ica e n os a r rem es s a pa ra cim a toda vez qu e tem os pela fren te a lgo qu e n os pa rece u m prob lem a . Podem os im a gin a r qu e tem m ilh ões de pon tos de s a ída , todos a o n os s o a lca n ce. Toda vez qu e n os s en t im os a m ea ça dos ou

Page 34: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

a borrecidos , a cion a m os es s e d is pos it ivo e rea gim os à s itu a çã o. Es s a ba s e de a poio rep res en ta n os s a decis ã o fu n da m en ta l a res peito do qu e tem os de s er pa ra s obreviver e ob ter da vida a qu ilo qu e qu erem os . Ain da qu a n do éra m os cr ia n ça s des cobr im os qu e a vida n ã o era s em pre do jeito qu e qu er ía m os qu e fos s e e qu e a s cois a s m u ita s vezes da va m er ra do, do n os s o pon to de vis ta pes s oa l. Nã o qu er ía m os qu e n in gu ém n os con t ra r ia s s e, n ã o qu er ía m os viven cia r cois a s des a gra dá veis e, a s s im , cr ia m os u m a rea çã o defen s iva pa ra b loqu ea r a pos s ível in felicida de. Es s a rea ção defen s iva é n os s a ba s e de a poio. Es ta m os liga dos n ela , m a s damos-Ih e u m a a ten çã o es pecia l em per íodos de es t res s e e a m eaça. Tom a m os u m a decis ã o a res peito da vida cot id ia n a

a vida com o ela é rea lm en te: ela é in a ceitá vel. E ten ta m os n os con tra por a o qu e está acontecendo.

Tu do is s o é in evitá vel. Nos s os pa is n ã o fora m s eres per fei-ta m en te ilu m in a dos , n em bu da s , m a s ou tros s eres e circu n s tâ n -cia s ta m bém con tr ibu íra m . Qu a n do éra m os cr ia n ça s pequ en a s , n ã o t ín h a m os s u ficien te m a tu r ida de pa ra n os h a ver com eles de m a n eira s á b ia . Por is s o a cion á va m os n os s a ba s e de a poio e t ín h a m os a ces s os de b ir ra , fa zía m os es câ n da los , ta lvez ficá va mos ret ra ídos . Des s a época em d ia n te, a vida n ã o foi m a is vivida pelo p ra zer de s e es ta r vivo, m a s pa ra a s s egu ra r n os s a ba s e de a poio. Parece bobagem, porém é isso que fazemos.

As s im qu e a ba s e de a poio es t iver con s t ru ída , s em pre qu e a lgo des a gra dá vel n os a t in gir

m es m o qu e s eja s ó u m olh a r u m pou co a t ra ves s a do de a lgu ém , n ós a cion a rem os es s a ba s e. E la pode con ter u m n ú m ero in fin ito de tom a da s de a cion a m en to e, du ra n te o d ia , podem os a cion á -la in fin ita s vezes . Com o res u ltado, des en volvem os u m a vis ã o m u ito es t ra n h a da n os s a vida . por exem plo, s u pon h a m os qu e Glor ia fa lou com igo com m u ita arrogância. Os fatos em si sã o ela ter dito uma coisa para mim. Ela e eu podem os ter u m a pequ en a d is cu s s ã o pa ra res olver , m a s a verda de da qu es tão é qu e ela s im ples m en te d is s e a lgo. Na h ora , n o entanto, s in to-m e s epa ra da de Glor ia . No qu e m e d iz res peito, tem a lgo de er ra do com ela . "Afin a l de con ta s , veja só o qu e ela fez! E la realmente é u m a pes s oa des a gra dá vel!" Agora es tou com ra iva dela . A verdade, porém, é que minha diferença não é com Gloria; ela n ão tem n a da qu e ver com is s o. Em bora s eja verda de qu e ela ten h a d ito a lgo, m eu a borrecim en to n ã o vem dela , m a s de ter a cion a do m in h a ba s e de a poio. Viven cio es s a ba s e com o u m a es pécie de

Page 35: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

tensã o, qu e é des a gra dá vel. Nã o qu ero ter n a da qu e ver com es s a sensa ção, en tã o en t ro em gu er ra com Glor ia . Toda via é a m in h a base de apoio que está causando o meu incômodo.

Se o in ciden te for ba n a l, n u m tem po rela t iva m en te cu r to eu o terei es qu ecido e a cion a rei m in h a ba s e de a poio a res peito de a lgu m a ou tra cois a . Se o in ciden te for s ign ifica t ivo, n o en ta n to, pos s o tom a r u m cu rs o d rá s t ico de a çã o. Lem bro-m e de u m a m igo da fa m ília , du ra n te a Gra n de Depres s ã o, qu e foi des ped ido do em prego em qu e s e h a via m a n t ido por qu a ren ta a n os . Correu pa ra o telh a do, a t irou -s e e a s s im s e m a tou . Ele n ã o en ten d ia s u a vida . Algo t in h a ocorr ido, é verda de, m a s n ã o era ca s o pa ra s u icíd io. E le es ta va com s u a ba s e de a poio fu n cion a n do a todo va por e s eu sofrimento era tão intenso que não conseguiu suportá-lo.

Sem pre qu e a lgo rep res en ta t ivo a con tece em n os s a vida , leva m os u m in ten s o ch oqu e de n os s a ba s e de a poio. Nã o s a bemos o que fazer com esse choque. Embora tenha vindo de dentro de nós, pen s a m os qu e vem de fora , "de lá ". Algu ém ou a lgo n os t ra tou m u ito m a l. Som os vít im a s . Com Glor ia , m e pa rece óbvio: o p rob lem a é Glor ia . "Qu em m a is poder ia s er? Nin gu ém m a is m e in s u ltou h oje. Tem de s er ela ." Pa ra revida r , com eço a p la n eja r : "Com o pos s o da r -lh e o t roco? Ta lvez eu n ã o fa le com ela n u n ca m a is . Se ela va i fica r fa zen do is s o, eu n ã o qu ero qu e ela s eja m a is m in h a a m iga . J á ten h o p rob lem a s s u ficien tes . Nã o p recis o de Gloria". Na realidade, a verdadeira fonte de meu aborrecimento não é Glor ia . E la fez u m a cois a de qu e eu n ã o gos tei, m a s s eu comportamento não é a fonte de minha dor. A fonte de minha dor é minha base de apoio fictícia.

Quando nos sentamos para a prática, gradualmente tornamo-n os m a is con s cien tes de n os s o corpo e percebem os qu e es tá o tempo todo contraído. Em geral a contração é muito discreta e sutil, in vis ível pa ra a s ou tra s pes s oa s . Qu a n do fica m os de fa to a borrecidos , a con tra çã o a u m en ta . Algu m a s pes s oa s es tã o tã o for tem en te con tra ída s qu e is s o s e tom a eviden te pa ra os ou tros . Depen de da h is tór ia pa r t icu la r de ca da u m . Mes m o qu e a pes s oa ten h a t ido u m a vida rela t iva m en te fá cil e feliz, a con tra çã o es tá sempre lá, como uma tensão marginal.

O qu e podem os fa zer com es s a con tra çã o? A p r im eira cois a é tomar consciência de que ela existe. Isso leva em gera] alguns anos de prática. Nos primeiros anos em que nos sentamos para praticar,

Page 36: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

lidamos em gera l com os pen s a m en tos m a is os ten s ivos qu e ru m in a m os a res peito dos a pa ren tes p rob lem a s qu e tem os com o u n ivers o. Es s es pen s a m en tos m a s ca ra m a con tra çã o s u b jacente. Tem os de lida r com eles e a ca lm a r n os s a s vida s a té qu e n os s a s rea ções em ocion a is n ã o s eja m tã o des t ra m belh a da s . Qu a n do n os s a s vida s t iverem s e torn a do u m pou co m a is a s s en ta da s e n orm a is , irem os n os con s cien t iza r da con tra çã o m a rgin a l s u b ja -cen te qu e s em pre es teve a li, o tem po todo. A pa r t ir de en tã o, podem os n os torn a r con s cien tes da con tra çã o com m a is in ten s i-dade do que quando algo dá errado do nosso ponto de vista.

A p rá t ica n ã o d iz res peito a os even tos tem porá r ios de n os s a vida . E la s e refere à n os s a ba s e de a poio. Es ta regis t ra os eventos tem porá r ios . Depen den do dos even tos e de com o n os s a ba s e de a poio os regis t ra , ch a m a m os n os s a s rea ções de a borrecim en to, ra iva , depres s ã o. Es s e t ra n s torn o n ã o é pelos even tos , m a s por n os s a ba s e de a poio. Por exem plo, s e u m ca s a l es tá d is cu t in do, pen s a m qu e s u a b r iga é de u m com o ou t ro, m a s n a rea lida de a d is cu s s ã o é de ca da u m com s u a p rópr ia ba s e de a poio. Acon tece u m a b r iga qu a n do ca da u m a da s pes s oa s s in ton iza s u a p rópr ia ba s e de a poio n u m a rea çã o a a lgu ém . Por is s o, qu a n do ten ta m os res olver u m a des a ven ça lida n do com n os s o côn ju ge de a lgu m a maneira , n ã o ch ega m os a pa r te n en h u m a ; n ã o é es s a a fon te do problema.

Uma outra coisa que aumenta a confusão é que nós gostamos de n os s a ba s e de a poio. E la n os con fere im por tâ n cia p rópria. Qu a n do n ã o en ten do m in h a ba s e de a poio, en tã o pos s o exigir m u ita a ten çã o d is cu t in do com a Glor ia , des for ra n do-m e dela , e a s s im ela fica s a ben do com qu em s e m eteu . Qu a n do a jo a s s im , m a n ten h o m in h a ba s e de a poio, o qu e con s idero com o m in h a p roteçã o d ia n te do m u n do. Ten h o con fia do n ela des de m eu s tem pos de cr ia n ça e n ã o qu ero m e livra r dela . Se eu fos s e m e des fa zer dela , ter ia de en ca ra r todo o m eu ter ror ; em vez d is s o, p refiro en fren ta r a Glor ia . E is s o qu e con s t itu i a p rá t ica s en ta da : en ca ra r o ter ror e s er a ten s ã o

s ecu n dá r ia ou p redominante

n o corpo. Nã o qu erem os fa zer is s o. Qu erem os lida r com n os s os principais problemas através de nossa base de apoio.

Há m u itos a n os , t ra ba lh ei pa ra u m a gra n de com pa n h ia . Era a a s s is ten te do ch efe de m in h a s eçã o, u m la bora tór io de pes qu is a cien t ífica . Min h a va ga n o es ta cion a m en to fica va per to da en t ra da do la bora tór io. Era bom is s o; qu a n do ch ovia , eu pod ia s a lta r do

Page 37: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ca r ro e en t ra r n o ed ifício s em fica r m u ito m olh a da . Foi s u rgin do u m prob lem a com es s a va ga , porqu e a por ta con du zia ta m bém d ireto pa ra o es cr itór io do vice-p res iden te. En tã o a s ecretá r ia do vice-p res iden te decid iu qu e a qu ela m in h a va ga era o m elh or lu ga r pa ra es ta cion a r . E la com eçou u m a con fu s ã o e a s com u n icações in tern a s com eça ra m a voa r pa ra todo la do. Era m pa ra o depa r ta m en to de pes s oa l, pa ra o m eu ch efe, pa ra o ch efe dela , e pa ra a lgu n s ou tros lu ga res . E la es ta va m u ito con tra r ia da porqu e no papel seu cargo era superior ao meu e no entanto a melhor vaga era a m in h a . Pen s ei: "Ela es tá ten ta n do m e t ira r es ta va ga . Eu s em pre t ive es ta va ga . Lega lm en te, é m in h a ". Meu ch efe, a pessoa m a is im por ta n te do la bora tór io de pes qu is a cien t ífica , s olida r izou -s e com igo e com eçou a lu ta r com o vice-p res iden te. Seu s egos es ta va m en volvidos . Qu em era m a is im por ta n te? Nã o h a via u m a res pos ta cla ra . Nes s a a ltu ra , em vez de es ta rm os a pen a s a s du a s ba ten do boca , n os s os ch efes es ta va m igu a lm en te n o con flito. Toda noite, quando saía da minha vaga, eu s abia que estava certa.

Es s a lu ta du rou m es es . As com u n ica ções deixa va m de s er exped ida s e de repen te

toda vez qu e es s a s ecretá r ia m e via

ela s com eça va m de n ovo a voa r de u m la do pa ra ou tro. Fin a lmente, cer ta n oite, n u m cru za m en to, en qu a n to es pera va qu e o s in a l m u da s s e pa ra verde, perceb i o s egu in te: "Nã o es tou ca s a da com a qu ela va ga . Se ela a qu er , qu e a leve". As s im , n o d ia s egu in te, com ecei eu m es m a a exped ir a s com u n ica ções . Com perm is s ã o do depa r ta m en to de pes s oa l, ced i m in h a va ga . Meu ch efe ficou fu r ios o com igo. Porém , com o n ã o era u m a qu es tã o m u ito gra ve, a ca bou s e a cos tu m a n do com a s itu a çã o. Um a s em a n a m a is ta rde, a s ecretá r ia m e telefon ou e convidou-m e pa ra a lm oça r . Nu n ca n os aproximamos muito, mas mantivemos uma relação cordial.

A verda deira qu es tã o n ã o era en t re m im e es s a s ecretá r ia . A va ga era a pen a s u m a es pécie de s ím bolo pa ra ou tra s es pécies de lu ta s . Nã o es tou qu eren do d izer qu e a gen te deva s em pre a b r ir m ã o de u m a va ga n o es ta cion a m en to. Nes s e ca s o, porém , a qu es tã o era t r ivia l: eu pa s s ei a ter de a n da r ta lvez qu a ren ta ou cin qü en ta pa s s os , em vez de s ete. Um a ou du a s vezes n o in vern o fiqu ei rea lm en te en ch a rca da da ca beça a os pés . No en tanto, en qu a n to es s a con trovérs ia n ã o foi res olvida , m a n teve m u ita s pessoas ocupadas durante meses.

Nos s a s des a ven ça s n u n ca s ã o com os ou tros , m a s com n os s a p rópr ia ba s e de a poio. Se tem os u m a ba s e de a poio com m u ita s

Page 38: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

tom a da s p ron ta s pa ra n os liga rm os em qu a lqu er u m a dela s , p ra t ica m en te qu a lqu er cois a s erá m ot ivo. Nós gos ta m os de n os s a s ba s es de a poio; s em ela s , ir ía m os s en t ir -n os a ter ror iza dos , ta l como nos sentíamos quando éramos muito pequenos.

O objetivo da prática é tornarmo-nos amigos de nossa base de a poio. Nã o irem os n os livra r dela de u m a vez por toda s . Es ta m os m u ito a pega dos a ela pa ra is s o. Ma s , con form e a m en te for rea lm en te s e a qu ieta n do e torn a r -s e m en os in teres s a da em lu ta r com o m u n do; qu a n do des is t irm os de n os s a s pos ições em a lgu m a s lu ta s s em s en t ido; qu a n do n ã o t iverm os m a is qu e b r iga r ta n to porqu e ch ega m os a ver o qu e es tá por t rá s , en tã o n os s a ca pa cida de de perm a n ecerm os s en ta dos n a p rá t ica a u m en ta rá . Nesse ponto, começamos a sentir que o problema real está naquela a n t iga cr ia çã o con s t itu ída de dor

a dor da cr ia n cin h a qu a n do des cobre qu e a vida n ã o é a qu ilo qu e ela gos ta r ia qu e fos s e. Es s a dor es tá reves t ida de ra iva , m edo e ou tros s en t im en tos pa recidos . Nã o h á m eios de s e es ca pa r des s e d ilem a , exceto volta n do pelo m es m o ca m in h o e torn a n do a s en t ir os s en t im en tos or igin a is . Nã o es ta m os in teres s a dos n is s o, porém , e é por is s o qu e s en ta r n a prática se torna tão difícil.

Qu a n do regres s a m os a o corpo, n ã o é qu e des en ter ra m os a lgu m gra n de m elodra m a qu e s e des en rola em n os s o ín t im o. Pa ra a m a ior ia da s pes s oa s , a m a ior pa r te do tem po, a con tra çã o é tã o s ecu n dá r ia qu e n em con s egu em perceber qu e es tá lá . Ma s es tá . Qu a n do s im ples m en te n os s en ta m os e m a n tem os u m a a pro-xim a çã o ca da vez m a ior da s en s a çã o des s a con tra çã o, a p ren demos a des ca n s a r n ela por per íodos ca da vez m a iores : cin co s egu n dos , dez s egu n dos , depois t r in ta m in u tos ou m a is . Um a vez qu e a ba s e de a poio é n os s a in ven çã o e qu e n ã o tem u m a rea lida de fu n da m en ta l, ela com eça a s e res olver u m pou co a qu i, u m pou co a li. Depois de fica r em sesshin por a lgu m tem po, ta lvez perceba m os qu e ela s u m iu . Depois ela pode volta r . Se en ten derm os a n os s a p rá t ica , a o lon go dos a n os de p rá t ica es s a ba s e de a poio va i fica n do ca da vez m a is fin a e m en os dom in a n te. Podem ocorrer a ber tu ra s m om en tâ n ea s , Em s i m es m a s , essas a ber tu ra s n ã o s ã o im por ta n tes , u m a vez qu e a ba s e de a poio em gera l retorn a im ed ia ta m en te a fu n cion a r a s s im qu e depa ra m os com u m a n ova s itu a çã o des a gra dá vel com a lgu ém . Nã o ten h o u m in teres s e es pecia l em cr ia r a ber tu ra s n a ba s e de a poio; o t ra ba lh o rea l es tá em d is s olvê-la por com pleto, a os pou cos . Sa bem os qu e a

Page 39: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

base de apoio está em ação quando nos sentimos contrariados com a lgo ou com a lgu ém . Sem s om bra de dú vida tem os qu es tões n o m u n do extern o a s erem res olvida s , a lgu m a s dela s m u ito d ifíceis . Contu do es s a s qu es tões n ã o s ã o o qu e n os con tra r ia . O qu e n os con tra r ia é es ta rm os fu n cion a n do a pa r t ir de n os s a ba s e de a poio. Quando isso acontece, não há serenidade, não há paz.

Es ta m oda lida de de p rá t ica

tra ba lh a r d ireta m en te com a

ba s e de a poio, com n os s a s con tra ções s u b ja cen tes

pode s er

m a is d ifícil do qu e a p rá t ica do koan *. Com a p rá t ica do koan, a pes s oa s em pre tem u m pequ en o in cen t ivo ou recom pen s a pa ra pa s s a r pa ra o p róxim o koan. Nã o h á n a da de er ra do com is s o, e eu à s vezes t r a ba lh o com koans com m eu s a lu n os . No en ta n to, es s a a borda gem n ã o é tã o fu n da m en ta l qu a n to o t ra ba lh o s obre a ba s e de a poio, qu e es tá p res en te em ca da u m de n ós . Es ta m os cien tes dela ? Sa bem os o qu e s ign ifica p ra t ica r? Com qu e s er iedade en ca ra m os n os s a s d ificu lda des com a s ou tra s pes s oa s e com a vida ? Qu a n do es ta m os liga dos n es s a ba s e, a vida é m u ito s em es pera n ça . Todos es ta m os s in ton iza dos n ela , em gra u s va riáveis, eu in clu s ive. Com o pa s s a r dos a n os torn ei-m e m a is h á b il pa ra recon h ecer qu a n do es tou liga da n es s a ba s e de a poio. Nã o perco m a is ta n to es s es m om en tos . Podem os n os fla gra r liga n do-n os n a n os s a ba s e de a poio obs erva n do o m odo com o fa la m os con os co e com os ou tros : "Tem a lgu m a cois a er ra da com ele. É cu lpa dele. E le t in h a qu e s er d iferen te"; "Eu dever ia s er m elh or"; "A vida s im ples m en te é in ju s ta com igo"; "Eu rea lm en te n ã o ten h o esperança".

Qu a n do execu ta m os es s a s s en ten ça s em n os s a m en te, s em questioná-la s , es ta m os des en ca dea n do u m a fa ls a b r iga e term in a -m os lá on de a ca ba m toda s a s fa ls a s b r iga s : em pa r te a lgu m a , ou em m a is d ificu lda des . Tem os de defla gra r a verda deira lu ta : perm a n ecer com a qu ilo com qu e n ã o qu erem os perm a n ecer . Pra t ica r exige cora gem . A cora gem a u m en ta com a p rá t ica , m a s n ã o exis te u m a s a ída rá p ida e fá cil. Mes m o depois de m u ito tem po s en ta dos n a p rá t ica , qu a n do fica m os com ra iva , tem os ta m bém o im pu ls o de a ta ca r a ou tra pes s oa . Procu ra m os form a s de ca s t iga r os ou tros pelo qu e fizera m . Es s a a t ivida de é n ã o viven cia r a n os s a raiva, mas evitá-la através de algum drama.

* Koan: uma questão paradoxal tradicional, impossível de ser analisada racionalmente, usada para aprofundar a meditação.

Page 40: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Mu ita s es cola s de tera p ia in cen t iva m qu e o clien te m a n ifes te d ireta m en te s u a h os t ilida de. Qu a n do a exp res s a m os porém , n os s a a ten çã o d ir ige-s e pa ra fora , pa ra u m a ou t ra pes s oa ou cois a , e pa ra o verda deiro p rob lem a . Expres s a r n os s os s en t im en tos é u m a cois a n a tu ra l e n ã o a lgo ter r ível em s i. Toda via em gera l n os cr ia p rob lem a s . Qu a n do verda deira m en te vivida , a ra iva é m u ito s ilen cios a . Tem u m a cer ta d ign ida de. Nã o h á m a n ifes ta ções , n ã o h á tea t ra liza ções . Refere-s e a pen a s a es ta r com a qu ela con tra çã o fu n da m en ta l qu e den om in ei a ba s e de a poio. Qu a n do de fa to ficamos com raiva, então os pensamentos pessoais e autocentrados s e des ta ca m do s en t im en to e fica m os d ia n te da en ergia pu ra , qu e pode ser usada de um modo compassivo.

Es s a é a verda deira h is tór ia da p rá t ica . A pes s oa qu e con -s egu e fa zer is s o com gra n de con s is tên cia é a lgu ém qu e ch a m a mos de ilu m in a do. Pa s s a r por u m a exper iên cia m om en tâ n ea de es ta r s em a ba s e de a poio n ã o é a verda deira ilu m in a çã o. A pes s oa rea lm en te ilu m in a da é a qu ela qu e con s egu e t ra n s form a r en ergia qu a s e o tem po todo. Nã o qu e a en ergia n ã o a pa reça m a is . A qu es tã o é o qu e fa zer com ela ? Se a lgu ém dá u m a t rom ba da n o n os s o ca r ro, s em ter p res ta do a ten çã o, n ã o irem os a pen a s s or r ir com docilida de. Terem os u m a rea çã o: "Ma s qu e d roga !". Ma s e en tã o? Por qu a n to tem po perm a n ecem os n es s a rea çã o? A m a ior ia de n ós p rolon ga es s a rea çã o e a a m plia a o m á xim o. Um exem plo é n os s a p ropen s ã o a m over p roces s os ; n ã o es tou d izen do qu e u m proces s o n u n ca s eja ju s t ifica do. Pode s er à s vezes n eces s á r io pa ra res olver u m a pen dên cia . No en ta n to m u itos p roces s os s ã o n a rea lida de a res peito de a lgu m a ou tra cois a e s ã o con tra p rodu cen tes . Se m a n ifes to m in h a ra iva pa ra Glor ia , ela , de a lgu m a m a n eira , irá devolvê-la pa ra m im . Min h a a m iza de com Glor ia poderá a ca ba r . Qu a n do o elem en to pes s oa l

o m odo com o m e s in to qu a n to a ela

é a fa s ta do, en tã o res ta s ó a en ergia . Qu a n do n os s en ta m os pa ra a p rá t ica des s a en ergia , com d ign ida de, em bora n o com eço s eja doloros o, depois s e t ra n s form a n u m lu ga r de gra n de des ca n s o. Um a fra s e do cora l de Ba ch m e vem à m en te: "Em Teu s b ra ços eu des ca n s o". Is s o s ign ifica des ca n s a r em qu em eu rea lm en te s ou . "Aqu eles qu e poder ia m m oles ta r -m e n ã o con s egu em en con tra r -m e a qu i." Por qu e é qu e eles n ã o con s egu em encontrar-m e a qu i? Porqu e n ã o tem n in gu ém em ca s a . Nã o tem n in gu ém a í. Qu a n do s ou en ergia pu ra , n ã o s ou m a is eu . Sou u m fu n cion a m en to pa ra o qu e é bom . Es s a t r a n s form a çã o é o m ot ivo pelo qu a l es ta m os s en ta dos n a p rá t ica . Nã o é fá cil. E n ã o a con tece

Page 41: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

do d ia pa ra a n oite. Ma s , s e p ra t ica rm os bem , irem os com o tem po n os en volver ca da vez m en os em equ ívocos in terpes s oa is , p reju d ica n do a n ós e a os ou tros . Sen ta r pa ra a p rá t ica in cin era o elem en to a u tocen tra do e n os deixa com a en ergia de n os s a s emoções, sem a destrutividade.

Sesshins, a p rá t ica regu la r , e a p rá t ica n a vida s ã o os m e-lhores caminhos para produzir essa transformação. Pouco a pouco, vai acontecendo uma mudança em nossa energia e mais um trecho de n os s a ba s e de a poio é in cin era do. Con form e n os s a s p reocu pa ções a u tocen tra da s forem s en do deixa da s de la do, n ã o poderem os m a is retorn a r a o m odo com o éra m os . Um a t ra n s for -mação fundamental aconteceu.

"Em Teus braços eu me descanso." Existe uma verdadeira paz quando descansamos dentro dessa contração fundamental, apenas viven cia n do o corpo com o é. Com o d iz Hu ber t Ben oit em s eu maravilhoso livro The s uprem e d octrine (A dou tr in a s u prem a ) *, qu a n do es tou n u m des es pero rea l, pelo m en os deixe-m e des ca n s a r n es s e d iva de gelo. Se eu con s egu ir verda deira m en te des ca n s a r a í, m eu corpo irá con form a r-s e com ele e n ã o h a verá m a is s epa ra çã o. Nes s e pon to, a lgu m a cois a m u da . Com o m e s in to a res peito de Glor ia a gora ? Oh , t ivem os u m pequ en o des en ten d im en to e da rem os en tã o u m belo pa s s eio a pé pa ra con vers a rm os a res peito. Sem problemas.

II. Sacrifício

SACRIFÍCIO E VÍTIMAS

Ou vin do m u ita s pes s oa s fa la rem de s u a s vida s , fico im pres -s ion a da pelo fa to de a p r im eira ca m a da en con tra da , qu a n do n os s en ta m os pa ra a p rá t ica , s er n os s o s en t im en to de s erm os vít im a s , n os s o s en t im en to de qu e fom os s a cr ifica dos pelos ou tros . Fomos

* Hubert Benoit, The supreme doctrine: Psychologícal studies in zen thought, Nova York: Viking, 1955, p. 145.

Page 42: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s a cr ifica dos à cob iça , à ra iva e à ign orâ n cia dos ou tros , à s u a fa lta de con h ecim en to de qu em s ã o. Mu ita s vezes es s a vit im a çã o é com et ida por n os s os pa is . Nin gu ém tem u m pa r de bu da s com o pa is . Em vez de bu da s , tem os pa is com o pa is : fa lh os , con fu s os , ira dos , a u tocen tra dos

com o todos n ós . Eu fu i m a lt ra ta da pelos

m eu s pa is e com cer teza m a lt ra tei m eu s filh os a lgu m a s vezes . Até m es m o os m elh ores pa is m a lt ra ta m s eu s filh os à s vezes , porqu e são humanos.

Com a p rá t ica tom a m os con s ciên cia de term os s ido s a cr ifi-ca dos e n os a borrecem os m u ito com es s e fa to. Sen t im o-nos m a goa dos , m a n ipu la dos , com o s e a lgu ém n ã o n os t ra ta s s e do m odo com o devía m os s er t ra ta dos

e is s o é verda de. Em bora inevitável, ainda é verdade e dói, ou assim parece.

O primeiro estágio é simplesmente tornar-se consciente de ter s ido s a cr ifica do. O s egu n do es tá gio con s is te em t ra ba lh a r com o s en t im en to qu e decor re de ta l con s cien t iza çã o: n os s a ra iva , n os s o des ejo de fica r qu ites , n os s o des ejo de m a goa r a qu eles qu e n os m a goa ra m . Es s es des ejos va r ia m m u ito qu a n to à s u a in ten s ida de: a lgu n s s ã o m odera dos , ou t ros poderos os e pers is ten tes . Mu ita s tera p ia s t ra ta m de des en ter ra r n os s a s vivên cia s de vit im a çã o; a p res en ta m va r ia da s a borda gen s a res peito do qu e fa zer qu a n to a ta is exper iên cia s . Na polít ica pa rece qu e pen s a m os qu e devem os revida r . Podem os revida r , ou podem os fa zer a lgu m a ou tra cois a . Mas o que poderia ser?

Con form e p ra t ica m os , tom a m os con s ciên cia de n os s a ra iva por ca u s a da s cois a s , de n os s o des ejo de des con ta r , de n os s a con fu s ã o, ret ra im en to e in d iferen ça . Se con t in u a m os p ra t ica n do (man ten do a a ten çã o, rotu la n do n os s os pen s a m en tos ), en tã o a lgo diferente

em bora ta m bém doloros o

com eça a des pon ta r em n os s a con s ciên cia . Com eça m os a ver n ã o s ó com o fom os s a cr ifica dos , m a s ta m bém com o s a cr ifica m os os ou tros . Es s a con s ta ta çã o pode s er a in da m a is pen os a do qu e a p r im eira . E , es pecia lm en te qu a n do da m os va zã o à n os s a ra iva e a o n os s o res s en t im en to e ten ta m os fica r qu ites , com eça a n os pa recer ca da vez m a is eviden te qu e a gora es ta m os s a cr ifica n do ou tra s pes soas, da m es m a form a com o fom os s a cr ifica dos . E a Bíb lia d iz: o m a l perpetua-s e gera çã o a pós gera çã o. Qu a n do a dor qu e s en t im os d ia n te do qu e fa zem os a os ou t ros e a dor pelo qu e n os fizera m com eça rem a s er do m es m o ta m a n h o, en tã o n os s a p rá t ica es ta rá amadurecendo.

Page 43: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Se es ta m os com prom et idos com cu ra r , qu erem os com pen sar. O qu e s ign ifica a pa la vra compensar? Sign ifica pen s a r * ju n to, s a ra r ju n to. Nã o podem os a pa ga r o qu e fizem os n o pa s s a do. J á es tá feito. Sen t irm o-n os cu lpa dos por ca u s a d is s o é u m a m a n eira de n os s a cr ifica rm os , porqu e n o pa s s a do s a cr ifica m os ou tra s pes s oa s . A cu lpa n ã o a ju da . Dizer qu e s en t im os m u ito

desculpar-nos

n em s em pre é com pen s a r . Em bora pos s a s er

n eces s á r io, pode n ã o s er s u ficien te. A p rá t ica religios a t ra ta de u m a com pen s a çã o, de p ra t ica r com a n os s a p rópr ia vida , de en xerga r o n os s o des ejo de s a cr ifica r os ou tros porqu e es ta m os com ra iva . Precis a m os con s ta ta r es s es des ejos , m a s n ã o rea lizá -los.

O p roces s o de com pen s a çã o leva a vida in teira . É d is s o qu e t ra ta a vida h u m a n a : com pen s a ções in term in á veis . Por ou tro la do, s en t ir cu lpa é u m a expres s ã o do ego: podem os s en t ir pen a de n ós (e n os s en t irm os a té n obres ) s e n os perderm os em n os s a cu lpa . Na verda deira com pen s a çã o, em vez de foca liza rm os n os s a a ten çã o n a cu lpa , a p ren dem os a con cen trá -la m a is em n os s os irm ã os e irm ãs, em n os s os filh os , em qu em qu er qu e es teja s ofren do. Pa ra qu e es s es es forços pos s a m s er gen u ín os , n o en ta n to, devem os a n tes lida r com a p r im eira ca m a da

qu e é a de tom a r con s ciên cia de todos os n os s os pen s a m en tos , s en t im en tos e de n os s a ra iva por tudo o qu e n os s a vida tem s ido. Depois p recis a m os des en volver a a gu deza de vis ã o e a s en s a çã o cla ra de n os s o a tu a l des ejo de s a cr ifica r os ou tros . Is s o é m u ito m a is im por ta n te: n ã o o qu e n os foi feito, m a s o qu e es ta m os fa zen do com os ou tros . Algu ém tem de para r o p roces s o. Com o in ter rom pê-lo? Nós o in ter rom pem os qu a n do n os ret ira m os de n os s os pen s a m en tos a m a rgos a res peito do pa s s a do e do fu tu ro e com eça m os a es ta . a pen a s n o a qu i e n o a gora , fa zen do o m elh or qu e podem os , obs erva n do o qu e fa zem os . As s im qu e es s e p roces s o s e tom a m a is cla ro, exis te a pen a s u m a cois a qu e rea lm en te qu erem os fa zer : rom per a ca deia , a m en iza r o s ofr im en to do m u n do. Se u m a em ca da dez pes s oa s do m u n do s e d is pu s es s e a rom per a ca deia , o ciclo in teiro des m oron a r ia ; n ã o teria força suficiente para se manter por si.

O que tudo isso tem que ver com integridade, com iluminação? Um a pes s oa ilu m in a da es ta r ia d is pos ta , s egu n do a s egu n do, a s er o s a cr ifício n eces s á r io pa ra s e rom per o ciclo do s ofr im en to. Es ta r d is pon ível pa ra o s a cr ifício n ã o s ign ifica s er "m a is s a n to qu e você";

* Nota da Tradutora: No sentido de pensar as feridas. No original, atone, at one.

Page 44: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

is s o é pu ro ego. A d is pon ib ilida de pa ra s er s a cr ifica do é m a is s im ples e m a is bá s ica . Qu a n to m a is s en ta m os n a p rá t ica , m a is a u m en ta n os s o con h ecim en to de n ós m es m os e de n os s a vida . En tã o tem os u m a es colh a a cerca do qu e irem os fa zer ; podem os es colh er en t re s a cr ifica r ou n ã o u m a ou tra pes s oa . Por exem plo, podem os es colh er da r u m a res pos ta a t ra ves s a da pa ra a lgu ém . Is s o pode pa recer u m a cois a t r ivia l, m a s n ã o é. Nós es colh em os com o n os rela cion a r com a s pes s oa s de qu em s om os p róxim os . Nã o qu e n os torn em os m á r t ires ; es colh er s er m á r t ir é n a rea lida de a lgo ba s ta n te a u tocen tra do. E n ã o é qu e des is ta m os do p ra zer qu e h á n a vida . (Com cer teza n ã o qu erem os con viver s em pre com pes s oa s qu e n u n ca s e d iver tem .) A qu es tã o p r in cipa l é torn a rm o-nos con s cien tes de term os s ido s a cr ifica dos e en tã o com eça rm os a ver com o s a cr ifica m os os ou tros . Es s e é u m es tá gio qu e p recis a fica r cla ro. Freqü en tem en te ou ço: "Por qu e é qu e eu n ã o dever ia revida r? Olha o que fizeram comigo!".

ALUNO: Às vezes , qu a n do m e s in to cu lpa do, en t ro n u m a sintonia de autopunição. Como posso sair dessa sintonia?

JOKO: O a u tofla gela m en to é a pen a s pen s a r . Podem os tom a r consciên cia des s es pen s a m en tos e s en t ir a ten s ã o corpora l qu e os a com pa n h a . Podem os n os pergu n ta r o qu e con qu is ta m os pu n in do-n os in ces s a n tem en te. De cer to m odo, gos ta m os do a u tofla gela m en to porqu e é a u tocen tra do: torn a -n os o cen tro do acontecim en to. A via gem da cu lpa é u m a a t ivida de m u ito autocentrada.

ALUNO: E qu a n to a es ta r com pes s oa s a qu em m e h a b itu ei a es ta r per to e de qu em n ã o gos to m a is ? A ra iva s obe com o u m a s om bra . Qu a n do pen s o n ela s , m in h a s en s a çã o é qu e es tou a fu n -dando.

JOKO: Fique apen as a ten to aos s eu s s en t im en tos ; obs erve o qu e es tá pen s a n do. Se h ou ver u m m om en to a p rop r ia do em qu e você p recis a es ta r com es s a s pes s oa s , obs erve com o é. E n ã o evite a s pes s oa s qu e m obiliza m es s a ra iva . Nã o es tou s u ger in do qu e você necessariamente vá atrás delas, mas pelo menos não as evite.

ALUNO: Com freqü ên cia s in to cu lpa por n ã o es ta r u s a n do com qu a lida de o tem po des pen d ido ju n to a os m eu s pa is . Ten h o m e obs erva do fa zen do is s o vá r ia s vezes . No en ta n to, con t in u o n a mesma.

Page 45: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Você es tá s e a va lia n do s egu n do u m a idéia m en ta l. Quando você estiver com seus pais, esteja simplesmente com eles e veja o qu e a con tece. É o qu e ba s ta . O res to é fa n ta s ia a res peito de com o você dever ia s er . Qu em s a be com o você dever ia s er? Nós a pen a s fa zem os o m elh or , s em pre. Com o tem po, perderem os todo o interesse em nosso passado.

A PROMESSA QUE NUNCA É CUMPRIDA

Nossos problemas decorrem do desejo. No entanto, nem todos os des ejos cr ia m prob lem a s . Exis tem dois t ipos de des ejos : a s exigên cia s ("Ten h o qu e ter is s o") e a s p referên cia s . As p referências s ã o in ócu a s ; podem os ter ta n ta s qu a n ta s qu is erm os . O des ejo qu e exige s er s a t is feito é qu e é o p rob lem a . É com o s e n os s en t ís s em os con s ta n tem en te com s ede e, pa ra s a ciá -la , ten tá s s em os liga r u m a m a n gu eira a u m a torn eira n a pa rede da vida . O tem po todo pen s a m os qu e des ta ou da qu ela torn eira irem os receber a á gu a qu e exigim os . Qu a n do ou ço o qu e m eu s a lu n os têm a d izer , todos pa recem s en t ir s ede de a lgu m a cois a . Podem os con s egu ir u m pou co de á gu a cá e lá , m a s is s o a pen a s n os tor tu ra . Sen t ir s ede, bastante sede, não tem graça nenhuma.

Qu a is s ã o a lgu m a s da s torn eira s à s qu a is recor rem os pa ra saciar n os s a s ede? Um a pode s er o em prego qu e a ch a m os qu e devem os ter . Ou tra pode s er "o pa r idea l", ou "o filh o qu e s e com por ta s em pre com o deve". Da r u m jeito n u m a rela çã o pes soal pode pa recer s er o ca m in h o pa ra ch ega r n a qu ela á gu a . Mu itos a cred ita m qu e por fim s a cia rã o s u a s ede s e en fim con s egu irem da r u m jeito em s i m es m os . Nã o tem o m en or s en t ido qu e o eu ten te con s er ta r o eu , m a s in s is t im os em fa zer is s o. O qu e ch a m a m os de n ós m es m os n u n ca n os é m u ito a ceitá vel. "Nã o con s igo fa zer o ba s ta n te"; "Nã o s ou bem-s u ced ido o s u ficien te"; "Es tou s em pre com ra iva , n ã o va lh o n a da "; "Sou m a u a lu n o". Exigim os u m n ú m ero in con tá vel de cois a s de n ós e do m u n do; p ra t ica m en te qu a lqu er cois a pode s er vis ta com o des ejá vel, com o u m s oqu ete a o qu a l n os a ta r ra ch a m os pa ra poderm os en fim con s egu ir a á gu a qu e a cred ita m os n eces s ita r . As livra r ia s es tã o rep leta s de livros de auto-a ju da p rocla m a n do vá r ios rem édios pa ra a n os s a s ede: Como faz er s eu m arid o am á-la, Com o au m en tar s u a au to-es tim a, e a s s im por d ia n te. Qu er pa reça m os s egu ros de n ós , qu er n ã o, por ba ixo

Page 46: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

des s a ca m a da todos n ós s en t im os qu e a lgu m a cois a es tá fa lta n do. Ach a m os qu e p recis a m os da r u m jeito n a n os s a vida pa ra s a cia r n os s a s ede. É p recis o qu e cr iem os es s a liga çã o, qu e in s ta lem os nossa mangueira na torneira e recebamos a água para beber.

O p rob lem a é qu e n a da de fa to fu n cion a . Com eça m os a des cobr ir qu e a p rom es s a qu e fizem os a n ós m es m os

a de qu e,

de a lgu m a m a n eira , n os s a s ede s er ia res olvida

n u n ca é

cu m pr ida . Nã o es tou qu eren do d izer qu e n u n ca goza m os a vida . Há muitas coisas na vida que podem ser intensamente desfrutadas: cer tos rela cion a m en tos , cer tos t ra ba lh os , cer ta s a t ivida des . Ma s o qu e n ós qu erem os é u m a cois a a bs olu ta . Qu erem os s a cia r n os s a sede em caráter perm an en te , pa ra qu e ten h a m os toda a á gu a qu e qu is erm os , o tem po todo. Es s a p rom es s a da com pleta s a t is fa çã o n u n ca é cu m pr ida . Nã o pode s ê-lo. No in s ta n te em qu e con s egu im os a lgo qu e qu is em os , fica m os s a t is feitos n o m om en to e então nossa insatisfação aparece de novo.

Ten ta m os du ra n te a n os a fio liga r n os s a m a n gu eira n es ta ou n a qu ela torn eira e a ca da vez des cobr im os qu e n ã o era o s u ficiente, e en tã o vem u m m om en to de p rofu n do des â n im o. Com eça m os a s en t ir qu e o p rob lem a n ã o es tá em n os s a in ca pa cida de de liga r u m recep tor a a lgo lá a d ia n te, m a s em qu e n a da extern o pode ja m a is s a t is fa zer es s a s ede. É n es s e m om en to qu e tem os m a is ch a n ce de da r in ício a u m a p rá t ica s ér ia . Es s e pode s er u m m om en to horrível

perceber qu e n a da irá ja m a is n os s a t is fa zer . Ta lvez ten h a m os u m bom em prego, u m bom rela cion a m en to ou fa m ília , e n o en ta n to con t in u a m os com s ede

e n os da m os con ta de qu e n a da rea lm en te con s egu e s a t is fa zer n os s a s exigên cia s . Podem os in clu s ive perceber qu e m u da rm os de vida

m u da r os m óveis de lugar

n ã o va i fu n cion a r ta m bém . O m om en to des s e des es pero é, na realidade, uma bênção, o verdadeiro começo.

Um a cois a es t ra n h a a con tece qu a n do a br im os m ã o de toda s a s n os s a s expecta t iva s . Tem os u m vis lu m bre de ou tra torn eira , qu e a té en tã o t in h a perm a n ecido in vis ível. Liga m os n os s a m a n -gu eira a ela e, pa ra o n os s o p ra zer , des cob r im os qu e a á gu a vem jor ra n do com força . Pen s a m os : "Agora s im ! Con s egu i!". E o qu e a con tece? Ma is u m a vez, a á gu a s eca . Trou xem os pa ra a p róp r ia prática todas as nossas exigências e de novo estamos com sede.

A prática tem de ser um processo de intermináveis decepções. Tem os de en xerga r qu e tu do o qu e exigim os (e a té ob tem os ) irá

Page 47: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

depois n os decepcion a r . Es s a des cober ta é n os s a m es t ra . É por is s o qu e devem os tom a r cu ida do com a m igos qu e es tã o em d ificu lda des , pa ra os qu a is n ã o devem os dem on s tra r n os s a s im -pa t ia a cen a n do-lh es com fa ls a s es pera n ça s e p rom es s a s de t ra n -qü ilida de. Es s a es pécie de s im pa t ia

qu e n ã o é a verda deira

compaixão

s im ples m en te reta rda m a is s eu a p ren d iza do. Em

cer to s en t ido, a m elh or a ju da qu e podem os oferecer a a lgu ém é a p res s a r s eu des a pon ta m en to. Em bora is s o pa reça cru el, n ã o o é n a verda de. Aju da m os a os ou tros e a n ós m es m os qu a n do com e-ça m os a en xerga r qu e toda s a s n os s a s exigên cia s h a b itu a is s ã o m a l d irecion a da s . Com o tem po, irem os n os torn a r es per tos o suficiente pa ra a n tecipa r qu a l s erá n os s a p róxim a decepçã o, pa ra s a ber qu e n os s o p róxim o es forço de s a cia r a s ede ta m bém fra -ca s s a rá . A p rom es s a n u n ca é cu m pr ida . Mes m o com m u itos a n os de p rá t ica , à s vezes con t in u a m os bu s ca n do s olu ções fa ls a s , m a s conforme vamos em seu en ca lço, recon h ecem os a in u t ilida de des s e em pen h o com u m a ra p idez m a ior . Qu a n do ocorre es s a a celera çã o, n os s a p rá t ica es tá da n do res u lta dos . Um a boa p rá t ica in evita velm en te p rom ove es s a a celera çã o. Devem os n ota r a p ro-m es s a qu e des eja m os a r ra n ca r da s ou tra s pes s oa s e a ba n don a r o s on h o de qu e ela s pos s a m s a cia r n os s a s ede. Devem os n os da r conta de que essa é uma iniciativa inútil.

Os cr is tã os ch a m a m es s a con s ta ta çã o de a "n oite es cu ra da a lm a ". J á es gota m os todos os recu rs os de qu e d is pom os e n ã o vem os m a is o qu e fa zer a s egu ir . E en tã o s ofrem os . Em bora s eja u m per íodo de a gu da in felicida de, es s e s ofr im en to é o pon to de m u da n ça . A p rá t ica n os con du z a es s e p rofícu o s ofr im en to e ajuda-n os a perm a n ecer n ele. Qu a n do a s s im fa zem os , em a lgu m momento o sofrimento começa a se transformar, e a água começa a flu ir . Pa ra qu e is s o a con teça , todos os n os s os lin dos s on h os a res peito da vida e da p rá t ica têm qu e s e des ped ir , in clu in do a crença de que uma boa prática aliás, qualquer coisa irá fazer-n os felizes . A p rom es s a qu e n u n ca s erá cu m pr ida s e ba s eia em sistemas de crenças, em pensamentos centrados na própria pessoa qu e n os s u s ten ta m im obiliza dos e s eden tos . Tem os m ilh a res deles . É impossível eliminá-los todos; não vivemos o bastante para isso. A prá t ica n ã o requ er qu e n os livrem os deles , m a s qu e s im ples m en te en xergu em os a lém deles e os recon h eça m os em s eu va zio e em s u a ausência de validade.

Page 48: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

J oga m os es s es s is tem a s de cren ça s pa ra todo la do com o a r roz em fes ta de ca s a m en to. Apa recem por toda pa r te. Por exemplo, qu a n do va i ch ega n do per to do Na ta l, a lim en ta m os expecta t iva s de qu e es s a s eja u m a época a gra dá vel e d iver t ida , u m a bela época do a n o. Se es s es d ia s de Na ta l n ã o s a t is fa zem n os s a s expecta t iva s , fica m os depr im idos e con tra r ia dos . Na rea -lida de, o Na ta l s erá o qu e for , qu er n os s a s expecta t iva s s eja m rea liza da s , qu er n ã o. Da m es m a m a n eira , qu a n do des cobr im os a p rá t ica zen , podem os a lim en ta r a es pera n ça de qu e is s o irá s olu -cion a r n os s os p rob lem a s e torn a r n os s a s vida s per feita s . Ma s a p rá t ica zen s im ples m en te n os rem ete de volta à vida com o ela é. A p rá t ica zen t ra ta de s erm os m a is e m a is a s n os s a s vida s ta is qu a is s ã o. Nos s a s vida s s ã o o qu e s ã o, e o zen n os a ju da a recon h ecer es s e fa to. O pen s a m en to "Se eu cu m pr ir es s a p rá t ica com a pa ciên cia n eces s á r ia , tu do s erá d iferen te" é u m ou t ro s is tem a de cren ça s , u m a ou tra vers ã o da p rom es s a qu e n u n ca s erá cu m pr ida . Quais são alguns outros sistemas de crenças?

ALUNO: Se eu trabalhar bastante, vou conseguir.

JOKO: Sim, esse é um bom sistema de crença americano.

ALUNO: Se eu for s im pá t ico com a s pes s oa s , ela s n ã o vã o m e magoar.

JOKO: Sim, esse é um que em geral nos desaponta. As pessoas serão como serão, é tudo. Sem garantias.

ALUNO: Min h a cren ça é qu e es ta m os todos fa zen do o m elh or que podemos.

IOKO: Eu também tenho a mesma crença.

ALUNO: Se eu fizer exercícios diariamente, ficarei saudável.

JOKO: Sou be recen tem en te de u m s u jeito qu e fa zia s eu s exercícios com regularidade, mas tropeçou e fraturou o quadril.

ALUNO: Se eu m ora s s e em ou tro lu ga r , des fru ta r ia m a is a vida .

ALUNO: Se eu ajudar as pessoas, então sou uma pessoa boa.

JOKO: É u m a verda deira a rm a d ilh a es s a cren ça . Um s is tem a sedu tor qu e n os t ra rá m u itos p rob lem a s . Cla ro, devem os fa zer o qu e é a p ropr ia do e n eces s á r io, m a s n u m s en t ido m a is p rofu n do não podemos ajudar ninguém.

Page 49: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: J á fa z ta n to tem po qu e p ra t ico s en ta do qu e a ch o qu e não devia mais me zangar.

JOKO: Se você está zangado, você está zangado.

ALUNO: Se m eu ca r ro pega fá cil de m a n h ã , en tã o o d ia cor rerá sem problemas.

ALUNO: Se eu t ra ba lh a r por u m a ca u s a ju s ta , o m u n do s erá um lugar melhor.

ALUNO: A dor qu e eu s in to deve torn a r -m e u m a pes s oa m elh or .

JOKO: Você já é uma boa pessoa, assim como é.

É ú t il rever n os s os s is tem a s de cren ça s des s a m a n eira , porqu e s em pre exis te u m a qu e n ã o vem os . Em ca da s is tem a de cren ça s es con dem os u m a p rom es s a . Qu a n to à p rá t ica zen : a ú n ica p rom es s a com qu e podem os con ta r é qu e, qu a n do a corda rmos pa ra n os s a s vida s , s erem os pes s oa s m a is livres . Se a corda rmos pa ra o m odo com o vem os a vida e lida m os com ela , a os pou cos irem os n os libertando

n ã o n eces s a r ia m en te m a is felizes ou melhores, no entanto mais livres.

Toda s a s pes s oa s in felizes qu e já con h eci es ta va m pr is io-n eira s de u m s is tem a de cren ça s qu e a lim en ta a lgu m a p rom es s a , p rom es s a qu e n u n ca foi cu m pr ida . As pes s oa s qu e vêm praticando bem já h á a lgu m tem po s ã o d iferen tes a pen a s pelo fa to de qu e recon h ecem es s e m eca n is m o qu e gera in felicida de e es tã o a p ren -den do a m a n ter -s e con s cien tes d is s o

o qu e é m u ito d iferen te de ten ta r m u dá -lo ou da r u m jeito n ele. Em s i, o p roces s o é tão s im ples qu a n to pos s ível. Toda via , n ós , s eres h u m a n os , con s ide-ramo-lo d ificílim o. Nã o tem os em a bs olu to o m en or in teres s e em m a n ter n os s a percepçã o con s cien te. Qu erem os es ta r pen s a n do a res peito de a lgu m a ou tra cois a , de qu a lqu er ou tra cois a . Por is s o, n os s a s vida s oferecem -n os o des es t ím u lo in term in á vel, ou s eja , o presente perfeito.

Qu a n do a s pes s oa s ou vem is s o, qu erem leva n ta r -s e e s a ir . No en ta n to, a vida a s pers egu e. Seu s is tem a de cren ça s con t in u a mantendo-a s in felizes . Qu erem os n os a ga r ra r a os n os s os s is temas de cren ça s , m a s , qu a n do o fa zem os , s ofrem os . Em cer to s en t ido, tu do fu n cion a com per feiçã o. Nu n ca m e im por to qu a n do a lgu ém começa a prática ou a interrompe. Isso não faz nenhuma diferença. O p roces s o s egu e in evita velm en te a d ia n te. É verda de qu e a lgu m a s

Page 50: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pes s oa s , m es m o qu e a o lon go de u m a vida in teira , n u n ca pa recem a pren der a lgo des s e p roces s o. Todos con h ecem os pes s oa s a s s im . No en ta n to, o p roces s o p ros s egu e, m es m o qu a n do ela s o ign ora m . A p rá t ica d im in u i n os s a ca pa cida de de ign orá -lo. Depois de u m a cer ta dos e de p rá t ica , m es m o qu e d iga m os "Bom , n ã o vou fa zer es s a p rá t ica . É m u ito d ifícil", n ã o podem os evitá -lo. Depois de a lgu m tem po, n ós s im ples m en te p ra t ica m os . As s im qu e a con s cien t iza çã o é des per ta da , n ã o podem os jogá -la pa ra den tro da caixa de novo.

Os con ceitos bá s icos da p rá t ica s ã o de fa to ba s ta n te s im ples. Porém , p ra t ica r a p rá t ica e ch ega r a u m gen u ín o en ten d imento dela leva m u ito tem po. Mu itos s u põem , n os p r im eiros dois a n os , qu e a en ten dem cla ra m en te. Na rea lida de, s e p ra t ica rmos bem du ra n te dez a qu in ze a n os , es ta rem os in do ba s ta n te bem . Pa ra a m a ior ia , vin te a n os é o tem po qu e leva . É n es s e per íodo qu e a p rá t ica s e torn a ra zoa velm en te cla ra e a es ta rem os viven do o tem po todo qu e pu derm os , do m om en to em qu e a corda m os pela manhã a té a h ora de ir dorm ir . Nes s a a ltu ra , a p rá t ica a té con t in u a pela n oite a den tro, en qu a n to dorm im os . Logo, n ã o exis te u m "jeito rá p ido". Con form e va m os p ra t ica n do, n o en ta n to, va i s e torn a n do ca da vez m a is a gra dá vel, m a is en gra ça da . Nos s os joelh os podem doer , podem os en fren ta r toda es pécie de a dvers ida des em nossas vidas, mas a prática consegue ser divertida, mesmo quando é difícil, dolorosa e frustrante.

ALUNO: As vezes é m u ito es t im u la n te. Sem pre qu e fico livre da dor, na prática, começo a rir.

JOKO: Por que você viu uma coisa que não tinha visto antes?

aluno: Claro.

ALUNO: Você s u ger iu qu e, em cer to s en t ido, n ã o exis te is s o de prática zen. Você poderia explicar?

JOKO: Exis te a p rá t ica de m a n ter a percepçã o con s cien te. Nes s e s en t ido, a p rá t ica zen exis te. Ma s , en qu a n to es ta m os vivos , existe a qu es tã o da con s cien t iza çã o. Nã o podem os evitá -la . As s im , n ã o exis tem m eios de s e evita r a p rá t ica , n em de fa zê-la . E la é apenas estar vivo. Embora existam algumas atividades formais que n os a ju da m a des per ta r (e qu e ch a m a m os de p rá t ica zen s e qu is erm os ), a verda deira "p rá t ica zen " é a pen a s es ta r a qu i a gora e não acrescentar nada a isso.

Page 51: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Retom a n do a a n a logia da pa rede com pequ en a s torn eira s : qu a n do en con tra m os u m a torn eira e n os liga m os a ela , conseguimos um pouco de água, não é?

JOKO: Sim , por a lgu m tem po s a cia m os ligeira m en te n os s a s ede. Por exem plo, s u pon h a qu e du ra n te s eis m es es você qu is convida r u m a m oça pa ra s a ir e qu e por fim você a r ru m ou cora gem pa ra fa la r com ela e ela a ceitou . Por u m breve in s ta n te, exis te u m a s en s a çã o im en s a de con ten ta m en to. A is s o ch a m a m os de con s egu ir á gu a , em bora você rea lm en te es ta r s a t is feito s eja u m a ou tra qu es tã o. Ma is cedo ou m a is ta rde, es s a rela çã o d im in u i e a vida de n ovo pa rece qu e s e n os a p res en ta com n ovos p rob lem a s . Es tou fa la n do de u m m odo de viver em qu e a p rópr ia vida n ã o é problema. Temos prob lem a s , m a s n ã o exis te p rob lem a em lida r com eles . Ta lvez todos con s iga m ver is s o, m es m o qu e ra p ida mente, de vez em quando.

Em cer to s en t ido, o zen é u m a p rá t ica religios a . Religião na verda de s ign ifica religa r a qu ilo qu e pa rece es ta r s epa ra do. A p rá t ica zen a ju da -n os com is s o. Ma s n ã o é u m a religiã o n o s en t ido de qu e exis te a lgo fora de n ós qu e irá tom a r con ta de n os s a s vida s . Um a gra n de pa r te da s pes s oa s qu e en t ra m n a p rá t ica zen n ã o tem u m a filia çã o religios a . Na da ten h o con tra a religiã o form a l. Em toda s a s religiões exis tem a lgu m a s pes s oa s n otá veis qu e verda deira m en te p ra t ica m e s a bem o qu e es tã o fa zen do. Toda via , ta m bém exis tem a qu ela s qu e n ã o pos s u em n en h u m vín cu lo com u m a religiã o form a l e qu e m es m o a s s im pra t ica m igu a lm en te bem . No fim , n ã o exis te p rá t ica , s en ã o a qu ilo qu e es ta m os fa zen do a cada segundo.

Um a vez qu e a verda deira p rá t ica e a verda deira religiã o ajudam-n os a religa r a qu ilo qu e pa recia es ta r s epa ra do, toda p rá t ica tem qu e s er a cerca da ra iva . A ra iva é a em oçã o qu e n os separa. Ela corta tudo em dois.

ALUNO: Es s a n ã o s er ia u m a p rá t ica m u ito d ifícil pa ra s er rea liza da in teira m en te a s ós ? Qu a n do u m de m eu s s is tem a s de cren ça s s e rom pe, s in to-m e t ra ído e p recis o de u m cer to a poio de outras pessoas.

JOKO: "Sentir-s e t ra ído" é, eviden tem en te, a pen a s u m ou tro pens a m en to. É m a is d ifícil p ra t ica r s ozin h o, m a s n ã o é im pos s ível. É p roveitos o ir a té u m cen tro zen e ob ter a lgu n s fu n da m en tos , depois m a n ter u m con ta to de lon ga d is tâ n cia e vir pa ra p ra t ica r

Page 52: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

com os ou t ros , qu a n do pu der . Qu a n do a pes s oa p ra t ica s ozin h a é com o n a da r con tra a cor ren te. Nu m a com u n ida de de pes s oa s qu e s e s en ta m ju n ta s pa ra p ra t ica r , tem os u m a lin gu a gem com u m e u m en ten d im en to com u m do qu e é a p rá t ica . Mes m o a s s im , ten h o a lgu n s a lu n os excelen tes qu e vivem ba s ta n te lon ge do cen tro zen e qu e fa la m com igo pelo telefon e. Algu n s deles es tã o in do m u ito bem . E , pa ra a lgu n s , o es forço de p ra t ica r com u m a poio tã o m ín im o pode ser a coisa mais proveitosa de todas.

J USTIÇA

Con form e va m os n os torn a n do ca da vez m a is s en s íveis a n ós e à s exper iên cia s t ra n s itór ia s de n os s a s vida s

n os s os pen s a -m en tos , n os s a s em oções e s en s a ções , torn a -s e óbvio pa ra n ós que o estrato subjacente de nossas vidas é a raiva. Quando alguém insiste "Eu nunca sinto raiva", não acredito.

Um a vez qu e a ra iva e s eu s s u bcon ju n tos

a depres s ã o, o res s en t im en to, o ciú m e, a ca lú n ia , a in tr iga etc.

dom in a m a n os s a vida , p recis a m os in ves t iga r o p rob lem a todo da ra iva com ba s ta n te cu ida do. Pois , u m a vida livre da ra iva s er ia a ter ra p rom et ida do leite e do m el, o n irva n a , u m a exis tên cia em qu e o n os s o p rópr io va lor e o dos ou tros s ã o u m a rea lida de a ben çoa -damente confirmada.

Pa ra a pes s oa p s icologica m en te m a du ra , os m a les e a s in ju s t iça s da vida s ã o en fren ta dos pela con tra -a gres s ã o, n a qu a l é feito u m es forço pa ra s e elim in a r a in ju s t iça e cr ia r a ju s t iça . Com freqü ên cia es s es es forços s ã o d ita tor ia is , rep letos de ra iva e de uma rígida convicção das próprias certezas.

Na m a tu r ida de es p ir itu a l, o opos to da in ju s t iça n ã o é a ju s t iça , m a s a com pa ixã o. Nã o eu con tra você, n ã o eu en d ireitando a s itu a çã o a gora a dvers a , lu ta n do pa ra ch ega r a u m res u ltado justo para mim e para outros, mas a compaixão, uma vida que não se opõe a nada e cumpre tudo.

Toda es pécie de ra iva é fu n da m en ta da em ju lga m en tos , s eja de n ós , s eja de terceiros . A idéia de qu e n os s a ra iva deve s er expres s a pa ra qu e s eja m os m a is s a u dá veis n ã o pa s s a de fa n ta s ia . Precis a m os deixa r qu e es s es pen s a m en tos ira dos e con den a tór ios

Page 53: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pa s s em d ia n te de n os s o Eu im pes s oa l, tes tem u n h a . Na da ga n h a m os expres s a n do-os . É u m equ ívoco s u por qu e n os s a ra iva in expres s a n os fere e qu e devem os expô-la e, des s a form a , fer ir a s outras pessoas.

A m elh or res pos ta pa ra a in ju s t iça n ã o é a ju s t iça , m a s a compaixão, ou o a m or . Você pergu n ta : "Ma s o qu e é qu e eu faço n es s a s itu a çã o d ifícil? Ten h o de fa zer a lgu m a cois a !". S im , m a s o qu ê? Nos s a p rá t ica s em pre deve s er a ba s e de n os s os a tos . Um a rea çã o a propr ia da e com pa s s iva n ã o a dvém de u m a lu ta pela ju s t iça , m a s da ra d ica l d im en s ã o da p rá t ica qu e "u lt ra pa s s a todo en ten d im en to". Nã o é fá cil. Ta lvez ten h a m os de viver s em a n a s , m es es em a gon ia , n a p rá t ica . Porém a res olu çã o virá . Nin gu ém pode n os p roporcion a r es s a res olu çã o; ela s ó pode vir de n os s o Eu verdadeiro

s e n os a b r irm os s em res erva s à p rá t ica . Nã o a dotem os u m a vis ã o fá cil e ps icologica m en te es t reita de n os s a s vida s . A d im en s ã o ra d ica l da qu a l fa lo exige tu do o qu e s om os e temos. O contentamento, não a felicidade, é seu fruto.

PERDÃO

O amor perfeito significa amar aquele por meio de quem tornamo-nos infelizes.

Soren Kierkegaard

Qu em é a pes s oa qu e você n ã o con s egu e perdoa r? Ca da u m de n ós tem u m a lis ta qu e pode in clu ir n ós m es m os (em gera l os m a is d ifíceis de perdoa r ) e ta m bém a con tecim en tos , in s t itu ições e grupos.

Nã o é n a tu ra l qu e n os deva m os s en t ir a s s im por ca u s a de u m a pes s oa ou u m a con tecim en to qu e n os fer iu

de m a n eira ta lvez gra ve e ir repa rá vel? Do pon to de vis ta com u m , a res pos ta é sim. Do ponto de vista da prática zen, a resposta é não. Precisamos formu la r o s egu in te voto: irei perdoa r , m es m o qu e cu s te p ra t ica r a vida inteira. Por que uma declaração tão forte?

A qu a lida de de toda a n os s a vida es tá em jogo. Deixa r de perceber a im por tâ n cia do perdã o é s em pre pa r te de u m rela cio-n a m en to fa lh o e u m fa tor em n os s a a n s ieda de, em n os s a s depres -

Page 54: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s ões , em n os s os m a les , em todos os n os s os p rob lem a s . Nos s a incapacidade de conhecer o contentamento é um reflexo direto

En tã o por qu e a pen a s n ã o o fa zem os ? Se fos s e fá cil, s er ía mos todos bu da s rea liza dos . Ma s n ã o é fá cil. Nã o tem proveito n en h u m d izer "Devo perdoa r . Eu devo. Eu devo. Eu devo...". Es s es pen s a m en tos des es pera dos a ju da m m u ito pou co. An á lis es e es forços in telectu a is podem produ zir u m cer to a b ra n da m en to da r igidez do n ã o-perdã o. Ma s o perdã o gen u ín o, com pleto, es tá n u m outro plano.

O n ã o-perdã o es tá a licerça do em n os s os pen s a m en tos h a b i-tu a lm en te cen tra dos em n os s a p rópr ia pes s oa . Qu a n do a cred ita -m os n eles , s ã o com o u m a gota de ven en o em n os s o copo de á gu a . A p r im eira e m on u m en ta l ta refa con s is te em rotu la r e observar esses pensamentos até que o veneno possa evaporar.

En tã o o t ra ba lh o m a ior pode s er efetu a do: o viven cia r a t ivo, com o s en s a çã o fís ica corpora l, do res ídu o da ra iva n o corpo, s em n en h u m a pego a os pen s a m en tos a u tocen tra dos . A t ra n s form a çã o em perdã o, qu e es tá in t im a m en te rela cion a da com a com pa ixã o, pode ocorrer porqu e o m u n do du a lis ta da pequ en a m en te e s eu s pen s a m en tos foi a ba n don a do pelo viven cia r n ã o-du a l, n ã o-pessoal, qu e é a ú n ica m a n eira de s a irm os de n os s o bu ra co in fern a l do não-perdão.

Só a nítida constatação da necessidade crítica de uma espécie de p rá t ica com o es s a pode ca pa cita r -n os a rea lizá -la com força e determ in a çã o a o lon go de m u itos a n os . A p rá t ica m a du ra s a be qu e não existe nenhuma outra escolha.

Então, quem é que você não consegue perdoar?

A FALA QUE NINGUÉM DESEJA OUVIR

Se form os h on es tos , terem os de a dm it ir qu e o qu e de fa to qu erem os da p rática

es pecia lm en te n o com eço, m a s em a lgum gra u o tem po todo

é u m m a ior con for to em n os s a s vida s . Es pera m os qu e, com u m a p rá t ica s u ficien te, o qu e n os in com oda a gora n ã o n os in com ode depois . Exis tem n a verda de du a s m a -n eira s de a borda rm os a p rá t ica , e qu e p recis a m s er cita da s . A p r im eira pers pect iva é o qu e a m a ior ia de n ós pensa qu e é a p rá t ica (qu er o a dm ita m os , qu er n ã o), e a s egu n da é a qu ilo qu e a

Page 55: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

prá t ica n a verda de é. Con form e n os s a p rá t ica va i s e des en volvendo com o tem po, a os pou cos pa s s a m os de u m a pers pect iva pa ra ou tra , em bora n u n ca a ba n don em os por com pleto a p r im eira . Es ta m os todos em algum ponto desse continuum.

Qu a n do a gim os m ovidos pela p r im eira pers pect iva , n os s a a t itu de bá s ica é qu e em preen derem os es s a p rá t ica d ifícil e exigente porqu e es pera m os ob ter determ in a dos ben efícios pes s oa is dela . Podem os n ã o es pera r tê-los todos a o m es m o tem po. Podem os ter u m a cer ta lim ita çã o de pa ciên cia , m a s depois de a lgu n s m es es de p rá t ica podem os com eça r a s en t ir qu e fom os lu d ib r ia dos ca s o n os s a vida n ã o ten h a m elh ora do. En tra m os n a p rá t ica com u m a cer ta expecta t iva ou exigên cia de qu e ela , de a lgu m a form a , irá incumbir-s e de n os s os p rob lem a s . Nos s a s exigên cia s bá s ica s s ã o qu e n os s in ta m os bem e n os torn em os felizes , qu e ten h a m os m a is pa z e s eren ida de. Es pera m os n ã o ter m a is qu e a tu ra r a qu eles h or r íveis s en t im en tos de con tra r ieda de, e ir em os con s egu ir tu do o qu e des eja m os . Es pera m os qu e, em vez de s er in s a t is fa tór ia , n os s a vida s e torn e m a is gra t ifica n te. Es pera m os fica r m a is s a u dá veis , m a is à von ta de. Es pera m os ter m elh or con trole de n os s a vida . Im a gin a m os qu e s erem os ca pa zes de t ra ta r os ou tros m elh or s em que isso seja inconveniente.

Exigim os qu e a p rá t ica n os deixe con fia n tes e qu e ob ten h a -m os ca da vez m a is a qu ilo qu e qu erem os : s e n ã o d in h eiro e fa m a , pelo m en os a lgo p róxim o. Em bora ta lvez n ã o qu eira m os a dm it i-lo, exigim os qu e u m a ou tra pes s oa tom e con ta de n ós e qu e a s pes s oa s qu e n os s ã o p róxim a s a tu em em n os s o ben efício. Es pe-ra m os s er ca pa zes de cr ia r con d ições de vida qu e n os s eja m a gra dá veis , com o o rela cion a m en to cer to, o t ra ba lh o cer to, o m elh or p rogra m a de es tu dos . Pa ra a qu eles com qu em n os iden -tificamos, queremos ser capazes de consertar suas vidas.

Nã o h á n a da de er ra do em qu erer qu a lqu er u m a des s a s cois a s , m a s , s e pen s a rm os qu e a lca n çá -la s é do qu e t ra ta a p rá t ica , en tã o a in da n ã o a terem os en ten d ido. As exigên cia s s ã o toda s a res peito do qu e nós qu erem os : qu erem os fica r ilu m in a dos, qu erem os pa z, qu erem os s eren ida de, qu erem os a ju da , qu eremos controle sobre as coisas, queremos que tudo seja maravilhoso.

A s egu n da pers pect iva é bem d iferen te: ca da vez m a is qu erem os s er ca pa zes de cr ia r h a rm on ia e cres cim en to pa ra toda s a s pes s oa s . Es ta m os in clu ídos n es s e cres cim en to, m a s n ã o s om os

Page 56: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

o cen tro dele; s om os a pen a s u m a pa r te do qu a dro. Con form e es s a s egu n da pers pect iva va i s e for ta lecen do em n ós , com eça m os a des fru ta r o s erviço qu e p res ta m os a os ou tros e tem os m en os in teres s e em s a ber s e s ervir a os ou tros a t ra pa lh a n os s o p rópr io bem-es ta r . Com eça m os a ir em bu s ca de con d ições de vida

com o u m em prego, s a ú de, u m n a m ora do

qu e m a is fa voreça m

es s e s erviço. Ta lvez ela s n ã o n os s eja m s em pre a gra dá veis . O qu e m a is n os im por ta é qu e ta is con d ições n os en s in a m com o s ervir bem a vida . Um a rela çã o d ifícil pode s er ext rem a m en te p roveitos a , por exemplo.

Conforme adotemos a segunda perspectiva mais e mais vezes, a p ren dem os a s ervir a todos , e n ã o s ó a s pes s oa s de qu em gos ta m os . Ca da vez m a is , tem os in teres s e em s er res pon s á veis pela vida , e n ã o n os im por ta m a is ta n to s e os ou tros s e s en tem ou n ã o res pon s á veis por n ós . Na rea lida de, n ós in clu s ive n os torn a m os d is pos tos a s er res pon s á veis pela s pes s oa s qu e n os m a lt ra ta m . Em bora pos s a m os n ã o o p refer ir , tornamo-n os m a is propensos a vivenciar situações difíceis para aprender.

À m edida qu e n os a p roxim a rm os m a is da s egu n da pers pec-t iva , irem os con t in u a r con s erva n do

m u ito p rova velm en te

a qu ela s p referên cia s qu e defin ia m a p r im eira pers pect iva . Con t i-nuaremos prefer in do s er felizes , s en t ir -n os bem , es ta r em pa z, ob ter o qu e qu erem os , m a n term o-n os s a u dá veis , ter u m cer to con trole s obre a s cois a s . A p rá t ica n ã o n os leva a perder n os s a s p referên cia s . Porém , qu a n do u m a p referên cia en t ra em con flito com a qu ilo qu e é m a is p roveitos o, en tã o s en t im o-n os d is pos tos a des is t ir da p referên cia . Em ou tra s pa la vra s , o cen tro de n os s a vida es tá m u da n do, da p reocu pa çã o con os co pa ra a a ten çã o à p rópr ia vida . A vida n os in clu i, s em dú vida ; n ã o fom os elim in a dos da segunda perspectiva, mas não somos mais o centro.

A p rá t ica d iz res peito a des loca r -s e da p r im eira pa ra a s egu n da pers pect iva . Exis te u m a a rm a d ilh a in eren te à p rá t ica , porém : s e p ra t ica rm os bem , m u ita s da s exigên cia s da p r im eira pers pect iva podem s er s a t is feita s . Tem os m a is p roba b ilida de de n os s en t ir m elh or , de fica r m a is con for tá veis . Podem os n os s en tir m a is à von ta de com n ós m es m os . Um a vez qu e n ã o es ta m os pu n in do n os s os corpos com ta n ta ten s ã o, n os s a ten dên cia é n os tornarmos mais saudáveis. Essas mudanças podem causar em nós a equ ivoca da n oçã o de qu e a p r im eira pers pect iva é cor reta : qu e a prática é tornar a vida melhor para nós. Na realidade, os benefícios

Page 57: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

qu e a u fer im os pes s oa lm en te s ã o in ciden ta is . A verda deira razão da prá t ica é s ervir a vida da m a n eira m a is p len a e p rodu t iva qu e pu derm os . E is s o é m u ito d ifícil pa ra a n os s a com preen s ã o, s obretu do a p r in cíp io. "Você qu er d izer qu e devo tom a r con ta de a lgu ém qu e a ca bou de m e des t ra ta r? Is s o é lou cu ra !" "Você es tá d izen do qu e devo des is t ir do qu e é con ven ien te pa ra m im pa ra servir alguém que nem gosta de mim?"

Nossas atitudes centradas em nosso ego têm raízes profundas e leva m m u itos a n os de á rdu a p rá t ica pa ra a frou xá -las um pouco. E es ta m os con ven cidos de qu e a p rá t ica d iz res peito à p r im eira pers pect iva , de qu e irem os con s egu ir a lgu m a cois a dela qu e s eja maravilhosa para nós.

A verda deira p rá t ica , con tu do, é m u ito m a is volta da pa ra en xerga rm os com o n os fer im os e m a goa m os os ou tros com pen -s a m en tos e a tos ilu d idos . É en xerga rm os de qu e m a n eira m a goa -m os os ou t ros , ta lvez por es ta rm os s im ples m en te tã o perd idos em n os s os p rópr ios pen s a m en tos qu e n em s equ er con s egu im os vê-los. Nã o a ch o qu e de fa to ca u s em os da n os a os ou tros ; é s ó qu e n ã o vem os m u ito bem o qu e es ta m os fa zen do. Pos s o s a ber com o es tá in do a p rá t ica de u m a pes s oa ven do s e s eu in teres s e pelos ou tros es tá a u m en ta n do, in teres s e qu e va i a lém do qu e m era m en te EU qu ero, do qu e es tá ME fer in do, de com o a vida é ter r ível, e a s s im por d ia n te. Es s e é o s in a l de u m a p rá t ica qu e es tá a va n ça n do. A p rá t ica s em pre é u m a ba ta lh a en t re a qu ilo qu e qu erem os e a qu ilo que a vida quer.

É n a tu ra l s er egoís ta , qu erer o qu e s e qu er , e s om os in evi-ta velm en te egoís ta s a té qu e en xergu em os u m a a ltern a t iva . A fu n çã o de lecion a r n u m cen tro com o es te é a ju da r a en xerga r a a ltern a t iva e in comodar-n os em n os s o egoís m o. En qu a n to es t i-verm os p res os n a p r im eira pers pect iva , govern a dos pelo des ejo de n os s en t ir bem ou em es ta do de gra ça , ou ilu m in a dos , n ós precisamos s er in com oda dos . Precisamos s er con tra r ia dos . Um bom cen tro e u m bom in s t ru tor t ra ba lh a m pa ra is s o. Afin a l de con ta s , a ilu m in a çã o é a pen a s a a u s ên cia de todo in teres s e ou p reocu pa çã o por s i. Nã o ven h a m a es te cen tro pa ra s e s en t irem m elh or ; es te n ã o é o lu ga r pa ra is s o. O qu e qu ero s ã o vida s qu e cres ça m pa ra qu e pos s a m tom a r con ta de m a is cois a s e de m a is pessoas.

Page 58: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Hoje de m a n h ã receb i u m telefon em a de u m a n t igo a lu n o qu e tem câ n cer n o pu lm ã o. Nu m a opera çã o a n ter ior , fora m removidos t rês qu a r tos de s eu s pu lm ões e ele es tá s e ded ica n do a s en ta r e p ra t ica r . Algu m tem po depois da opera çã o, ele com eçou a ter p rob lem a s de vis ã o e dores de ca beça m u ito for tes . Algu n s tes tes revela ra m dois tu m ores cerebra is

o câ n cer t in h a s e es pa lh a do.

Es tá de volta a o h os p ita l pa ra fa zer t ra ta m en to. Con vers a m os a respeito do tratamento e de como ele está indo. Eu lhe disse: "Sinto rea lm en te m u ito qu e tu do is s o ten h a a con tecido com você. Qu ero a pen a s qu e você s e s in ta con for tá vel. Es pero qu e a s cois a s m elh orem ". Ele res pon deu : "Nã o é is s o qu e qu ero de você. Eu qu ero qu e você exu lte de s a t is fa çã o. É a s s im pa ra m im

e é m a ra vilh os o. Vejo o qu e a m in h a vida é". E depois a cres cen tou : "Nã o qu er d izer qu e n ã o s in ta m u ita ra iva e m edo e fiqu e s u b in do pela s pa redes . Toda s es s a s cois a s con t in u a m a con tecen do e agora eu s ei o qu e é a m in h a vida . Nã o qu ero n a da de você exceto qu e partilhe de meu regozijo. Eu gostaria que todos pudessem se sentir do jeito que estou me sentindo".

Ele es tá viven do den tro da s egu n da pers pect iva , a qu ela n a qu a l a colh em os a s con d ições de vida

em prego, s a ú de, a m or

qu e n os s erã o a s m a is p roveitos a s de toda s . E le con s egu iu is s o. Qu er viva dois m es es , dois a n os , qu er u m lon go tem po, em cer to s en t ido n ã o im por ta . Nã o es tou s u ger in do qu e ele é u m s a n to. E le pa s s a por d ia s de u m a im en s a d ificu lda de: dor , ra iva , revolta . Es s a s cois a s a con tecem a gora com ele; a pes a r d is s o, n ã o era s obre es s a s cois a s qu e ele qu er ia fa la r . Se pu des s e recu pera r -s e, a in da ter ia toda s a s lu ta s e d ificu lda des qu e qu a lqu er pes s oa tem , a s exigên cia s e os s on h os de s eu ego. Es s a s cois a s n u n ca des a pa recem de fa to; s ó o qu e m u da é n os s o m odo de lida r com elas.

A m u da n ça da p r im eira pa ra a s egu n da pers pect iva é d ifícil pa ra n ós com preen derm os , em es pecia l n o p r in cíp io. Ten h o n ota do, n a s con vers a s com a s pes s oa s n ova ta s qu a n to à p rá t ica , qu e m u ita s vezes a s m in h a s pa la vra s s im ples m en te n ã o s ã o regis t ra -da s . Com o u m ga to n u m teto de zin co qu en te, ou gota s de á gu a n u m a fr igideira em pon to de fr itu ra , a s pa la vra s toca m s ó por u m m om en to a s u per fície e depois es va ecem -s e. Com o tem po, porém, a s pa la vra s n ã o irã o m a is s a lu ta r e s u m ir com ta n ta fa cilida de. Algu m a cois a com eça a a fu n da r , a a s s en ta r . Con s egu im os s u s ten ta r por m a is tem po qu e a vida é m u ito d iferen te da qu ilo qu e

Page 59: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

a ch a m os qu e poder ia ou dever ia s er . Com o tem po, a u m en ta a ca pa cida de de s im ples m en te s en ta r -s e com o qu e a vida n a verdade é.

Es s a m u da n ça n ã o a con tece de u m d ia pa ra ou tro. Som os obs t in a dos dem a is pa ra is s o. E la pode s er a celera da por u m a gra n de en ferm ida de ou u m for te des a pon ta m en to, por u m a perda gra ve ou ou tro p rob lem a s ér io. Apes a r de eu n ã o qu erer qu e cr is es a s s im a con teça m pa ra n in gu ém , ela s em gera l p roporcion a m o a pren d iza do n eces s á r io. A p rá t ica zen é d ifícil s obretu do porqu e cr ia des con for to e n os coloca ca ra a ca ra com os p rob lem a s qu e tem os em n os s a s vida s . Nã o qu erem os fa zer is s o, em bora n os a ju de a a p ren der e n os in cen t ive a ir em fren te, ru m o à s egu n da pers pect iva . Sen ta r em s ilên cio qu a n do es ta m os con tra r ia dos e gos ta r ía m os rea lm en te de es ta r fa zen do a lgu m a ou tra cois a é u m a liçã o qu e a s s en ta pou co a pou co. Qu a n to m a is recon h ecem os o va lor da p rá t ica , m a is a u m en ta n os s a m ot iva çã o pa ra p ra t ica r . Com eça m os a s en t ir a lgo. Ga n h a m os força pa ra s en ta r e p ra t ica r d ia a pós d ia , pa ra pa r t icipa r de s es s ões de u m d ia in teiro de p rá t ica s en ta da , pa ra fa zer u m sesshin. O des ejo de fa zer es s a p rá t ica á rdu a a u m en ta . Len ta m en te com eça m os a com preender a qu ilo qu e m eu a n t igo a lu n o es ta va qu eren do d izer com a fra s e: "Agora eu s ei o qu e é a m in h a vida ". Es ta m os equ ivoca dos s e sentimos pena dele. Talvez ele seja um dos felizardos.

ALUNO: Você d is s e qu e, n a s egu n da pers pect iva , exigim os qu e n os s a s vida s s eja m m a is p rodu t iva s . Você qu er d izer p rodu t iva s para a prática da pessoa ou o quê?

JOKO: Produtivas para a vida. Produtivas para a vida em geral, in clu in do ta n to da vida qu a n to for pos s ível. Es s a pa rece u m a afirmação ba s ta n te gera l, m a s , qu a n do a con tece em n os s a vida , n ós a com preen dem os . Por exem plo, ta lvez a ju da m os u m a m igo com s u a m u da n ça m es m o qu a n do es ta m os m u ito ca n s a dos e n ã o qu erem os t ra ba lh a r . Deixa m o-n os de la do, im pom os u m a in con -ven iên cia a n ós m es m os , n ã o pa ra s erm os n obres , m a s porqu e é necessário.

ALUNO: Qu a n do ou ço es s e t ipo de h is tór ia , qu ero im ed ia ta m en te com eça r a fa zer p la n os pa ra rea liza r cois a s produtivas.

JOKO: Sim , podem os torn a r qu a lqu er cois a u m idea l a s er buscado. Porém , s e a girm os a s s im , ra p ida m en te irem os depa ra r

Page 60: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

com n os s a p rópr ia res is tên cia

o qu e n os dá a lgo com qu e

trabalhar. Tudo é útil para nós.

Nã o tem os de n os força r a té o pon to de n os a r reben ta rm os . Nã o dever ía m os n os con s idera r com o m á r t ires ; es s e é u m ou t ro idea l, a pen a s is s o, u m a im a gem de com o dever ía m os s er , em contraste com o que de fato somos.

ALUNO; Qu a n do p la n ejo com o pos s o torn a r m in h a vida m a is s egu ra e con for tá vel, im a gin o qu e ela irá torn a r -m e feliz n o fin a l. Ma s en tã o s u rge u m a qu es tã o: "Serei rea lm en te feliz?". Percebo em m im u m a a n s ieda de de a ga r ra r a s egu ra n ça e a felicida de e, por t rá s des s e idea l, es tá u m a s en s a çã o de in s a t is fa çã o, porqu e de alguma maneira eu seí que também não será isso.

JOKO: Há u m cer to va lor em n ós pers egu irm os ta is s on h os porqu e, qu a n do a lca n ça m os o qu e pen s á va m os qu erer , en xerga m os com m a is cla reza qu e is s o n ã o n os dá a s a t is fa çã o pela qu a l a n s iá va m os . É a s s im qu e a p ren dem os . A p rá t ica n ã o é pa ra m u da r a qu ilo qu e fa zem os ; ela s e refere m a is a torn a rm o-nos gra n des obs erva dores e a viven cia rm os a qu ilo qu e es tá s e pa s -sando conosco.

ALUNO: O p roces s o de pers egu ir os s on h os pa rece interminável. Algum dia desaparece?

JOKO: Des a pa rece s im , m a s s om en te depois de a n os e a n os de p rá t ica . Du ra n te m u ito tem po, eu com eça va ca da sesshin com u m a s en s a çã o de res is tên cia . "Nã o qu ero fa zer is s o porqu e s ei o qu a n to es ta rei ca n s a da n o fin a l." Qu em qu er fica r ca n s a do? Hoje es s a res is tên cia já des a pa receu pa ra m im . Qu a n do o sesshin com eça , ele com eça . Se es ta m os p ra t ica n do, os p rogra m a s a n tecipa dos do ego a os pou cos des a pa recem . Ma s ta m bém n ã o de-vemos fazer desse desaparecimento um outro programa antecipado. Nã o dever ía m os pen s a r a p rá t ica com o u m m odo de ch ega r em alguma outra parte. Não há lugar nenhum para onde ir.

ALUNO: Nes te m om en to de m in h a vida , es tou fa zen do m u ita s a m iza des n ova s , m u itos n ovos con ta tos . É excita n te. Nã o s ei qu em está ajudando quem se sou eu quem está dando para eles, ou se s ã o eles qu e es tã o da n do pa ra m im . Is s o tem rela çã o com a p rá t ica ?

JOKO: A p rá t ica m u da a qu ele pa drã o de a m iza de ca lca do em cá lcu los da ra zã o cu s to/ ben efício pa ra ca da en volvido; torn a m o-n os s im ples m en te m a is gen u ín os . Em cer to s en t ido, n ã o podemos

Page 61: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

a ju da r os ou tros ; n ã o s a bem os o qu e é m elh or pa ra eles . Pra t ica r com a n os s a p rópr ia vida é o ú n ico m eio de poderm os a judar a lgu ém ; n a tu ra lm en te s ervim os os ou tros torn a n do-n os ca da vez mais quem somos.

ALUNO: Se qu erem os a tu a r den tro da s egu n da pers pect iva , fazendo o qu e é m a is p roveitos o pa ra a vida , com o s a ber o qu e fa zer? Com o poderem os s a ber s e é es te em prego ou es ta rela çã o que corresponde a isso?

JOKO: Qu a n do vivem os den tro da s egu n da pers pect iva , n ã o levam os con os co idea is n em progra m a s a n tecipa dos . É m a is u m a qu es tã o de en xerga r cla ra m en te o qu e es tá à n os s a fren te. Agimos s em fica r gira n do a qu es tã o em n os s a s m en tes , com o u n i d is co riscado, sem parar.

Sentar-s e pa ra p ra t ica r com es s a qu es tã o a ju da ; p res ta m os a ten çã o a os n os s os pen s a m en tos e à ten s ã o em n os s o corpo, e com eça m os a ver com m a is n it idez com o a gir . A verda deira p rá t ica de s en ta r é s em pre u m pou co em ba ra lh a da . Se n os m a n tivermos s en ta dos pa ra p ra t ica r , por u m tem po lon go o ba s ta n te, porém , a s cois a s vã o s e torn a n do pou co a pou co m a is cla ra s . Exis te u m continuum, e s en ta r -s e n a p rá t ica é a va n ça r a o lon go des s e continuwn. Nã o qu e ch egu em os em a lgu m lu ga r ; a pen a s qu e, ca da vez m a is , torn a m o-n os a pen a s n ós m es m os . Nã o m e refiro a sentar-s e n u m a a lm ofa da a pen a s . Se es ta m os p ra t ica n do bem , estamos fazendo zazen o tempo todo.

ALUNO: Son h a m os qu e irem os ch ega r a s a ber qu a l é a cois a cer ta a fa zer , qu a n do de fa to, em a lgu m pon to, n ós a pen a s com eça m os a a gir e en tã o, s eja com o for , a p ren dem os com es s a a çã o. Se com etem os er ros e m a goa m os a s pes s oa s , des cu lpa m o-n os . Qu a n do obs ervo m in h a m en te e perm a n eço a ten to a o m eu corpo, decorre des s a p rá t ica de a ten çã o u m a m aneira de agir. Pode s er u m cu rs o de a çã o m u ito con fu s o, Se m e a ten h o à m in h a p rá t ica , porém , de a lgu m a m a n eira a p ren derei com es s es comportamentos e is s o é o m elh or qu e pos s o fa zer . Nã o pos s o es pera r s a ber s em pre o qu e é m elh or pa ra a vida . Só pos s o fa zer o que posso fazer.

JOKO: Sim . A idéia de qu e deverá ch ega r o m om en to em qu e fica rem os s a ben do o qu e fa zer é pa r te da p r im eira pers pect iva . A ca m in h o da s egu n da , d izem os : "Irei p ra t ica r , vou fa zer o m elh or que posso e aprenderei com os resultados".

Page 62: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: A res peito da qu es tã o de a ju da r os ou tros , pen s o qu e, con form e form os en xerga n do ca da vez m elh or os n os s os s en t i-m en tos e a s n os s a s ten dên cia s pa ra m a n ipu la r u m a s itu a çã o, n es s a m es m a m edida com eça rem os a a gir com m a is h a rm on ia , ou pelo m en os a cr ia r m en os con fu s ã o. Por is s o n ã o tem os de ir lon ge pa ra a ju da r os ou tros . Apen a s en xerga r o qu e es ta m os fa zen do con form e in tera gim os a ju da n a tu ra lm en te a s pes s oa s , s em qu e nem estejamos de fato nos esforçando para isso.

JOKO: Sim . Por ou tro la do, s e vem os a lgu ém a lém de n ós com o u m a pes s oa pa ra a ju da r , podem os es ta r cer tos de qu e a r ra n ja m os u m bom prob lem a . Se s en ta rm os pa ra p ra t ica r , a cerca de n os s a s con fu s ões e lim ita ções , s em ten ta rm os fa zer m a is n a da , com o tempo fazemos algo.

ALUNO: Às vezes , o m a is va lios o pa ra a lgu ém n ã o é o qu e fazemos por ele, mas o que não fazemos.

JOKO: Cer to. Mu ita s vezes , o cu rs o m a is a cer ta do de a çã o é a pen a s perm it ir qu e a s pes s oa s s eja m o qu e s ã o. Por exem plo, s er ia u m er ro s e eu ten ta s s e fa zer a lgu m a cois a por a qu ele m eu a n t igo a lu n o qu e tem câ n cer . Pos s o a pen a s ou vi-lo e s er qu em eu s ou . Ele es tá pa s s a n do pelo qu e tem de pa s s a r ; es s e é s eu aprendizado. Não posso fazer nada a respeito.

ALUNA: Descobri em mim recentemente uma maior disponibili-da de. Pa rece qu e es tou m en os a u tocen tra da e m a is a ber ta , m a is d is pon ível pa ra os ou tros . Pa r te d is s o es tá em en con tra r -m e m a is rela xa da . As pes s oa s m e p rocu ra m com s u a s p reocu pa ções . Nã o é qu e es teja m ped in do a ju da . Em gera l s ó qu erem a lgu ém qu e a s es cu te. Tu do o qu e ten h o de fa zer é s im ples m en te s er eu m es m a e es ta r d is pon ível, d iga m os , pa ra a pes s oa do ou tro la do da lin h a que está me dizendo: "Quero te dizer uma coisa...".

JOKO: É isso.

ALUNO: Joko, você parece disponível o tempo todo, desse jeito.

JOKO: Nem sempre. Às vezes, desligo o telefone.

ALUNO: Nã o a ch o qu e você a ja a s s im pa ra o s eu p rópr io bem . Existem algumas pessoas que realmente se aproveitam de você.

JOKO: Ma s es s e é o m eu t ra ba lh o. E , lem brem -s e, n in gu ém pode "aproveitar" de mim.

Page 63: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Você es tá d izen do qu e s em pre qu e a lgu ém gr ita ped in do a ju da você deve s em pre res pon der? O qu e fa zer com aquelas pessoas que ligam e se queixam o tempo todo?

JOKO: Eu d igo a lgo com o "Es tou es cu ta n do o qu e você es tá d izen do. Ta lvez você pu des s e p ra t ica r com is s o. Com o você praticaria com isso?".

Nã o m e im por to s e a lgu ém s e qu eixa . Todos n os qu eixa mos, em bora pos s a m os n ã o a dm it i-lo. Todos gos ta m os de n os qu eixa r . No en ta n to, m e in com odo s e a s pes s oa s qu erem a pen a s con ta r s u a s h is tór ia s , s em pa ra r , s em o m en or es pa ço pa ra reflet ir s obre o qu e poder ia m es ta r t ra ba lh a n do em s u a vida . Nã o ten h o lu ga r nesses enredos. Talvez essas pessoas tenham de sofrer até estarem dispostas a acordar um pouco.

ALUNO: Fiqu ei m u ito com ovido com s u a h is tór ia do a lu n o com câ n cer . Ten h o u m a t rem en da res is tên cia a recon h ecer qu e todo esse sofrimento está certo.

JOKO: Nã o n os ca be d izer qu e todo es s e s ofr im en to es tá cer to. Ta m bém n ã o qu ero qu e ele s ofra . Ma s é o qu e ele d iz qu e im por ta . A vida n os a p res en ta lições o tem po todo. É m elh or s e pu derm os a pren der ca da u m a dela s , in clu in do a s pequ en in a s . Porém , n ós n ã o qu erem os a pren dê-la s . Qu erem os coloca r a cu lpa pelo p rob lem a em ou tra pes s oa , s im ples m en te colocá -lo de la do, t irá -lo de n os s a vis ta . Qu a n do n os recu s a m os a a p ren der com os p rob lem a s m en ores , s om os força dos a a p ren der com os m a iores . A p rá t ica t ra ta de a p ren der com ca da pequ en a cois a qu e em erge de m odo qu e, qu a n do gra n des qu es tões n os con fron ta m , s om os m a is aptos a lidar com elas.

ALUNO: Torn ei a m e fa m ilia r iza r recen tem en te com o fa to de qu e, qu a n do com eço a m e a fa s ta r do ca m in h o em qu e vin h a vin do e m e d ir ijo m a is pa ra on de p recis o es ta r s egu in do, toda s a s es pé-cies de caos aparecem. Não vai ser fácil.

JOKO: Cer to. Qu a n do com eça m os u m a p rá t ica s ér ia e, por a lgu m tem po a pa r t ir do in ício, a vida pa rece p iora r em vez de melhora r , es ta m os n u m a pa r te da con vers a qu e n in gu ém des eja ouvir.

Page 64: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

O OLHO DO FURACÃO

Segurança é, principalmente, uma superstição. Não existe na natureza, nem os filhos dos homens experimentam-na por completo. A longo prazo, evitar perigos não é mais seguro do que atirar-se e arriscar-se. A vida é ou uma audaciosa aventura, ou nada.

Helen Keller

Algu n s a lu n os a qu i t ra ba lh a m com koans, porém n ã o s ã o to-

dos . Em bora h a ja m u ito a s e a p ren der com o es tu do de koans, a cred ito qu e depen der a pen a s d is s o pode s er lim ita n te. Se en ten -dem os a s n os s a s vida s , en ten dem os os koans. E t ra ba lh a r d ireta -m en te com a n os s a vida é m a is va lios o e d ifícil. Os qu e t ra ba lh a m com koans por u m cer to tem po podem com eça r a in teres s a r -s e em s a ber do qu e t ra ta u m koan, m a s s a ber n ã o é n eces s a r ia m en te o m es m o qu e s er . Em bora a p rá t ica do koan es teja ba s ea da n a idéia de qu e s e virm os o qu e é verda de n ós s erem os es s a verda de, is s o n em s em pre a con tece. Apes a r d is s o, os koans podem s er m u ito ú teis . Com ecem os com u m extra ído do Gateles s gate (Portã o s em porteira) *, o Hom em n o Alto da Arvore, de Kyogu n . Mes tre Kyogu n d is s e: "É com o u m h om em n o a lto da á rvore, pen du ra do de u m ga lh o pela boca ; s u a s m ã os n ã o con s egu em pega r u m ra m o s equ er , s eu s pés n ã o a lca n ça m ou tro ga lh o. Va m os s u por qu e u m ou tro hom em em ba ixo da á rvore lh e pergu n te: 'Qu a l é o s ign ifica do de Bodh idh a rm a vir pa ra o Ociden te? '. Se ele n ã o res pon de, con tra r ia o desejo do interrogante. Se responde, perde a vida. Nessa situação, o qu e ele dever ia fa zer?". Poder ía m os reform u la r es s e koan pergu n ta n do: "Qu a l é o s ign ifica do da vida ?". Nã o res pon der é n ã o cumprir com a nossa responsabilidade; responder é perder a nossa vida.

Para trabalhar com esse koan contarei uma outra história. Há m u itos a n os eu vivia em Providen ce, em Rh ode Is la n d . Um fu racão en orm e s u b ia pela cos ta e des t ru ía a Nova In gla ter ra . Em pu r rei o berço do m eu bebê pa ra per to da pa rede e o cobr i pa ra qu e, s e a s ja n ela s qu ebra s s em o vid ro, es te n ã o o a t in gis s e, e tom a m os

* Gateless gate, newly translated with commeníary by zen master Koun Yamada, Los Angeles: Center Publications, 1979, p. 35.

Page 65: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ou tra s p rovidên cia s n eces s á r ia s . Es tá va m os d ireta m en te n o cami-n h o do fu ra cã o e ele era m u ito in ten s o. Em fren te à ca s a vía m os á rvores en orm es , a n t iga s , qu ebra n do e ca in do pa ra todo la do. Os ventos atingiam uma velocidade média de 200 km horários.

Depois de t rês ou qu a tro h ora s , n u m a qu es tã o de m in u tos , tu do ficou qu ieto de n ovo. O s ol a pa receu e os pá s s a ros com eça -ra m a ca n ta r . O ven to pa rou . Es tá va m os n o olh o do fu ra cã o. Den tro de u m a h ora m a is ou m en os , o olh o s e des locou , os ven tos recom eça ra m e a t ra ves s a m os o ou tro la do da m a s s a rodop ia n te de ven tos . Em bora n ã o tã o poderos o qu a n to o p r im eiro la do, ta m bém era muito intenso. No final tinha sobrado uma gigantesca confusão pa ra s er a r ru m a da . Fiqu ei s a ben do m a is ta rde qu e à s vezes os p ilotos s ã o a ciden ta lm en te a pa n h a dos pelos fu ra cões , s u jeita n do a s i e a o a viã o a m om en tos de u m ter r ível es t res s e. Qu a n do is s o a con tece, eles em gera l ten ta m voa r pa ra o olh o do fu ra cã o, o centro, para terem uma mínima chance de recuperar-se.

A m a ior ia da s pes s oa s é com o o h om em n o a lto da á rvore, ou o p iloto den tro do a viã o, a pen a s a ga r ra dos , es pera n do con s eguir s a ir da tem pes ta de. Sen t im o-n os a p r is ion a dos n a s os cila ções da vida . Podem s er ocor rên cia s n a tu ra is , com o en ferm ida des s érias. Podem s er d ificu lda des n os rela cion a m en tos , qu e s em pre pa recem in ju s tos . Do n a s cim en to à m or te, fica m os p r is ion eiros des s e rodop io de ven tos qu e é a rea lida de da vida : u m a en ergia en orm e, deslocando-s e e m odifica n do-s e, Nos s a m eta é com o a do p iloto: p roteger a n ós e a n os s o a viã o. Nã o qu erem os fica r on de es ta m os . Por is s o fa zem os o m á xim o pos s ível pa ra p res erva r a s n os s a s vida s e s a lva r a es t ru tu ra do a viã o, pa ra poderm os es ca pa r do fu ra cã o. Exis te es s a cois a poderos a e en orm e qu e ch a m a m os de n os s a vida e es ta m os em a lgu m pon to, s en ta dos bem n o m eio de n os s o a viã o, esperando conseguir encontrar uma saída sem nos machucarmos.

Va m os s u por qu e, em vez de es ta rm os n u m a viã o, es ta m os n u m p la n a dor n o m eio do fu ra cã o, s em o con trole e o poder do m otor . Som os a r ra s ta dos pelos ven tos a r reba ta dores . Se tem os a lgu m a idéia de s a ir vivos d is s o, s om os tolos . Mes m o assim, en qu a n to viverm os den tro da qu ela en orm e m a s s a de ven tos , temos u m a excelen te ca ron a . Apes a r do m edo e do ter ror , pode s er excitante e delicioso como deslizar montanha abaixo.

O h om em n o a lto da á rvore, a ga r ra do pa ra s a lva r s u a vida , é com o o p iloto do a viã o, es pera n do em des es pero con s egu ir s a lva r -

Page 66: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s e da s os cila ções da vida . E depois lh e pergu n ta m : "Qu a l é o s ign ifica do da vida ?". Com o é qu e ele res pon de? Com o é qu e nós res pon dem os ? Ao viverm os n os s a s vida s , a s s im com o a o fa zerm os zazen, es ta m os ten ta n do p roteger -n os . Es s a m en te qu e pen s a , imagina, se excita, se emociona, culpa os outros e se sente vítima é como o piloto do avião tentando desesperadamente. sair do furacão. Nu m a vida de ta n ta s ten s ões e a gru ra s , joga m os com tu do o qu e tem os a pen a s pa ra s obreviver . Toda a n os s a a ten çã o es tá em n ós m es m os e em n os s o pa in el de con troles ; qu a n do ten ta m os n os s a lva r , n ã o p res ta m os a ten çã o em m a is n a da . Con tu do qu em es t iver n o p la n a dor pode des fru ta r tu do

os relâ m pa gos , a ch u va

qu en te, o u ivo do ven to. E le pode pa s s a r m om en tos in des cr it íveis . O qu e a con tecerá n o fin a l? Am bos m or rem , é cla ro. Ma s qu a l conhece o significado da vida? Quem conhece o contentamento?

Com o o p r im eiro p iloto, pa s s a m os a vida in teira ten ta n do p roteger a n ós m es m os . Qu a n to m a is n os s a in ten çã o é n os p rote-ger das oscilações de nossa atual situação, mais estresse sentimos, m a is in felizes n os torn a m os e m en os vivem os rea lm en te a n os s a vida . Devem os ign ora r o cen á r io qu e n os rodeia s e es ta m os obce-cados com os painéis de controle, que cedo ou tarde irão nos faltar, de qualquer modo.

Qu a n do es ta m os n o zazen, podem os obs erva r n os s os .m eca -n is m os de p roteçã o p res ta n do a ten çã o à n os s a m en te. Podem os n ota r com o ten ta m os exp lica r n os s a dor e a s s im a fa s tá -la , joga n do a cu lpa de n os s a s d ificu lda des em ou trem . Con s egu im os perceber n os s a s im piedos a s e vã s ten ta t iva s de n os s a lva r . Nos s os es forços n ã o a d ia n ta m de n a da , é cla ro. Qu a n to m a is ten ta m os , m a is tensos e nervosos ficamos.

Existe apenas uma coisa para finalmente resolver o problema; ninguém qu er ou vir qu a l é, porém . Pen s e n o h om em qu e es tá n o p la n a dor . Será qu e ele de fa to qu er ia es ta r lá ? Des de o p r im eiro in s ta n te, ele n ã o tem n en h u m a ch a n ce. Ele es tá a li s ó pa ra s er levado na maior carona do mundo. Nossas próprias vidas são como es s a ca ron a , qu e term in a in evita velm en te em n os s a m or te. Es ta m os ten ta n do fa zer o im pos s ível, s a lva r -n os . Nã o podem os fazê-lo. Aliá s , es ta m os todos m orren do n es te exa to m in u to. Qu a n -tos m in u tos m a is tem os ? Com o o p la n a dor , ta lvez ten h a m os s ó m a is u m m in u to, ta lvez u m a cen ten a deles . Nã o im por ta qu a n tos : n o fin a l, ca ím os todos . Ma s a qu ele qu e pode pergu n ta r "Qu a l é o s ign ifica do da vida ?" é o p iloto do p la n a dor , n ã o o do a viã o. O

Page 67: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

primeiro saberá que no instante seguinte irá colidir, e o segundo só saberá quando gritar.

Va m os a o sesshin n a es pera n ça de qu e, den tro do fu ra cã o de n os s os tu m u ltos , irem os en con tra r o pequ en o olh o, o pequ en o n irva n a . Pen s a m os : "Deve es ta r em a lgu m lu ga r . On de? On de es tá ?". Às vezes , a lca n ça m os u m pon t in h o de s os s ego, de bon s s en t im en tos . En tã o ten ta m os a pega r -n os a ele. Toda via n ã o pode-m os n os a ga r ra r a o olh o do fu ra cã o. O fu ra cã o s egu e cor ren do em fren te. O n irva n a n ã o es tá em en con tra r a qu ele pequ en o es pa ço de ca lm a on de fica m os p rotegidos e a b r iga dos por a lgo ou a lguém. Is s o é u m a ilu s ã o. Na da n o m u n do irá ja m a is n os p roteger : n em n os s o com pa n h eiro, n em n os s a s circu n s tâ n cia s de vida , n em n os s os filh os . Afin a l de con ta s , a s ou tra s pes s oa s es tã o toda s ocu pa da s s e p rotegen do. Se pa s s a rm os a vida p rocu ra n do o olh o do fu ra cã o, terem os vivido de m a n eira es tér il. Morrerem os s em termos vivido de fato.

Nã o s in to pen a do p iloto n o p la n a dor . Qu a n do ele m orrer , terá pelo m en os vivido. Sin to peita da qu eles qu e es tã o tã o cegos por s eu s p roced im en tos defen s ivos e p rotetores qu e n u n ca s equ er ch ega m a viver . Qu a n do es ta m os em s u a com pa n h ia , podem os s en t ir o m edo e a in u t ilida de. No sesshin, podem os en xerga r es s e equ ívoco com m a is cla reza : n ã o es ta m os ten ta n do viver p len a -mente nossa vida; estamos tentando encontrar o olho do furacão, o lugar onde por fim ficaremos a salvo.

Nin gu ém pode s a ber o qu e é a vida , m a s podem os exper i-mentá-la de m a n eira d ireta . Só is s o n os é da do, com o s eres h u m a n os . Porém , n ã o a ceita m os o p res en te. Nã o vivem os n os s a s vida s d ireta m en te. Em vez d is s o, vivem os p rotegen do-n os . Qu a n do n os s os s is tem a s de p roteçã o fa lh a m , cu lpa m os a lgu ém ou n ós m es m os . Tem os s is tem a s pa ra en cobr ir n os s os p rob lem a s ; n ã o es ta m os d is pos tos a en ca ra r a dor da vida de fren te. Aliá s , qu a n do a encaramos de frente, a vida se torna uma grande viagem.

Cla ro qu e é in teres s a n te com pra r s egu ro de vida e ver ifica r qu e os freios em n os s o ca r ro fu n cion a m . Ma s , n o fin a l, a té m es m o m o es s es exped ien tes n ã o n os s a lva rã o. Cedo ou ta rde, todos os n os s os m eca n is m os de p roteçã o fa lh a rã o. Nin gu ém con s egu e re-s olver com pleta m en te o koan da vida , em bora em n os s a im a gin a -çã o o ou tro s u jeito ta lvez ten h a con s egu ido. Cu lpa m os a s ou tra s pes s oa s porqu e pen s a m os qu e ela s dever ia m já ter com preen d ido

Page 68: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

tu do a res peito da vida . Nós n ã o, m a s a in da a ch a m os qu e os ou tros n u n ca dever ia m s er con fu s os a res peito de com o vivem . Na verda de, s om os todos con fu s os porqu e todos es ta m os im ers os n es s e jogo de a u toproteçã o, em vez de n o verda deiro jogo da vida . A vida n ã o é u m es pa ço s egu ro. Nu n ca foi e n u n ca s erá . Se con s egu im os ch ega r n o olh o do fu ra cã o por u m a n o ou dois , a in da a s s im n ã o s e pode con ta r com is s o. Nã o exis te lu ga r s egu ro pa ra o n os s o d in h eiro, pa ra n ós , pa ra a qu eles qu e a m a m os . E n ã o n os d iz respeito preocuparmo-nos com isso.

En qu a n to n ã o en xerga rm os m a is a lém des s e jogo qu e n ã o fu n cion a , n ã o es ta rem os joga n do o jogo rea l. Algu m a s pes s oa s jamais enxergam mais além e morrem sem jamais terem vivido. E é u m a gra n de pen a . Podem os pa s s a r n os s a vida cu lpa n do a s ou tra s pes s oa s , a s circu n s tâ n cia s ou o a za r , pen s a n do qu e a vida dever ia s er de ou t ro jeito. Podem os m orrer a s s im s e qu is erm os . É n os s o p r ivilégio, m a s n ã o é m u ito d iver t ido. Tem os de n os a b r ir pa ra o en orm e jogo qu e es tá em a n da m en to e do qu a l fa zem os pa r te. Nos s a p rá t ica deve s er cu ida dos a , m et icu los a , pa cien te. Tem os de encarar todas as coisas.

III. Separação e Vínculos

PODE ALGUMA COISA NOS FERIR?

Um a a lu n a do zen telefon ou -m e h á pou cos d ia s pa ra qu eixa r -s e da ên fa s e s obre a d ificu lda de da p rá t ica . E la d is s e: "Pen s o qu e você com ete u m er ro qu a n do in s is te com os a lu n os pa ra qu e levem sua prá t ica tã o a s ér io. A vida dever ia s er d iver t ir -n os e pa s s a r bon s m om en tos ". Eu pergu n tei pa ra ela : "Algu m a vez es s a a borda gem já deu cer to pa ra você?". E ela res pon deu : "Bom , n a verdade não... Mas tenho esperanças!".

En ten do s u a a t itu de e s im pa t izo com todo a qu ele qu e a ch a qu e a p rá t ica é rea lm en te u m t ra ba lh o m u ito du ro. É m es m o. Ma s ta m bém fico t r is te por a qu eles qu e n ã o es tã o a in da d is pos tos a fazer esse tipo de trabalho sério, porque serão os que mais sofrerão. Apes a r d is s o, a s pes s oa s têm de fa zer s u a s p rópr ia s es colh a s e

Page 69: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

a lgu m a s dela s n ã o es tã o p ron ta s pa ra u m a p rá t ica s ér ia . E eu d is s e pa ra a a lu n a do zen : "Apen a s fa ça s u a p rá t ica de a cordo ou n ã o com s u a s p rópr ia s idéia s e eu a a poia rei". Seja o qu e for qu e a s pes s oa s es teja m fa zen do, qu ero da r -lh es a poio

porqu e é

nesse ponto que elas se encontram e está tudo bem.

O fato é que, para a maioria das pessoas, as nossas vidas não estão indo bem. Enquanto não nos dedicarmos a uma prática séria, n os s a vis ã o bá s ica de vida em gera l perm a n ecerá em gra n de pa r te in ta cta . Aliá s , a vida con t in u a a n os fa zer s en t ir p ior e ch ega m es m o a p iora r por s i. Um a p rá t ica s ér ia é n eces s á r ia pa ra qu e con s iga m os en xerga r es s a fa lá cia bem n o fu n do de qu a s e toda s a s ações, idéias e emoções humanas.

Sen do h u m a n os , vem os a vida a t ra vés de u m determ in a do a pa ra to s en s or ia l e, porqu e a s pes s oa s e os ob jetos pa recem s er extern os a n ós , viven cia m os m u ita in felicida de. Es s a in felicida de decorre da con cepçã o equ ivoca da de qu e s om os s epa ra dos . Cer -tamente essa é a impressão parece que sou separada das outras pes s oa s e de tu do o m a is qu e exis te n o m u n do fen om ên ico. Es s a con cepçã o equ ivoca da de qu e s om os s epa ra dos cr ia toda s a s dificuldades da vida humana.

En qu a n to pen s a rm os qu e s om os s epa ra dos , irem os s ofrer . Se n os s en t im os s epa ra dos , irem os ta m bém s en t ir qu e tem os de n os defen der , qu e tem os de ten ta r s er felizes , qu e tem os de en con tra r algo no mundo à nossa volta que irá tornar-nos felizes.

A verda de des s a qu es tã o, n o en ta n to, é qu e n ã o s om os s epa ra dos . Som os todos expres s ões ou em a n a ções de u m pon to central

s e qu is er , ch a m e-o de en ergia m u lt id im en s ion a l. Nã o podem os im a gin a r qu a l s eja s u a form a ; o pon to ou a en ergia cen tra l n ã o tem ta m a n h o, es pa ço ou tem po. Es tou fa la n do m eta -for ica m en te a res peito da qu ilo qu e n ã o pode n a rea lida de s er mencionado em termos comuns.

Leva n do es s a m etá fora u m pou co m a is a d ia n te, é com o s e es s e pon to cen tra l ir ra d ia s s e em b ilh ões de ra ios , ca da u m deles pen s a n do qu e é s epa ra do de todos os ou tros . Na verda de, ca da u m de n ós é s em pre o cen tro, e o cen tro é ca da u m de n ós . Um a vez qu e toda s a s cois a s es tã o con ecta da s n es s e cen tro, todos s om os apenas uma coisa só.

Page 70: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Nã o en xerga m os es s a u n ida de, porém . Ta lvez s e con h ecermos ba s ta n te teor ia da fís ica con tem porâ n ea , poderem os en ten der in telectu a lm en te a qu es tã o. Con form e va m os p ra t ica n do a o lon go dos anos, contudo, fragmentos dessa verdade começam a insinuar-s e em n os s a s vivên cia s , cá e lá . Nã o n os s en t im os m a is tã o s epa ra dos dos ou tros . Con form e es s a s en s a çã o va i a s s en ta n do em n ós , a vida , ta l com o a con tece à n os s a volta , deixa de s er tã o fru s t ra n te. As s itu a ções , a s pes s oa s , a s d ificu lda des com eça m a impor-s e a n ós de u m m odo u m pou co m a is leve. Um a m u da n ça s u t il es tá a con tecen do. Ao lon go de toda u m a vida de p rá t ica es s e p roces s o a os pou cos s e for ta lece. Podem ocorrer b reves m om en tos n os qu a is tem os vis lu m bres de percepçã o de qu em rea lm en te s om os , em bora em s i es s es m om en tos n ã o s eja m m u ito im por ta n tes . É m a is im por ta n te a len ta e cres cen te con s ta ta çã o de qu e n ã o s om os s epa ra dos . Em term os com u n s , a in da pa rece qu e exis t im os s epa ra dos , m a s n ã o n os s en t im os m a is tã o s epa ra dos. Em con s eqü ên cia ; n ã o es pern ea m os m a is ta n to con tra a vida : n ã o tem os de lu ta r con tra ela , n ã o tem os de a gra dá -la , n ã o tem os de nos preocupar com ela. Esse é o caminho da prática.

Se não br iga m os com a vida , is s o s ign ifica qu e ela n ã o irá n os fer ir? Exis te a lgo a lém de n ós qu e pode n os fer ir? Na qu a lida de de a lu n os zen , podem os ter a p ren d ido a d izer

n o m ín im o intelectualmente

qu e a res pos ta é n ã o. Ma s o qu e é qu e de fa to pen s a m os d is s o? Há a lgu m a pes s oa ou s itu a çã o qu e pode n os fer ir?

Claro que pensamos que sim, No meu trabalho com os alunos, ou ço in ú m era s h is tór ia s de com o es tã o m a goa dos ou con tra r ia dos . Todos es s es rela tos s ã o vers ões de "Is s o a con teceu com igo". Nos s os pa rceiros a m oros os , n os s os pa is , n os s os filh os , n os s os a n im a is de estimação "Isso aconteceu e me contrar iou ". Todos fa zem os is s o, s em exceçã o. Is s o é a n os s a vida . Ta lvez a s cois a s cor ra m ra zoa velm en te m a n s a s du ra n te a lgu m tem po e depois , de repen te, a lgo a con tece qu e n os con tra r ia . Em ou tra s pa la vra s , s om os vít im a s . Bom , es s a é a n os s a vis ã o gera l da s cois a s . Es tá profundamente entranhada em nós, quase inata.

Qu a n do n os s en t im os ' vit im a dos pelo m u n do, p rocu ra m os por alguma coisa além de nós para levar essa dor embora. Pode ser u m a pes s oa , pode s er con s egu ir a lgo qu e qu erem os , pode s er a lgu m a m u da n ça em n os s a pos içã o p rofis s ion a l, a lgu m recon h e-cim en to ta lvez. Um a vez qu e n ã o s a bem os on de p rocu ra r , e estamos magoados, buscamos conforto em outro lugar.

Page 71: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

En qu a n to n ã o perceberm os qu e n ã o s om os s epa ra dos de n a da , irem os lu ta r con tra n os s a s vida s . Qu a n do lu ta m os , en t ra -m os em d ificu lda de. Ou fa zem os boba gen s , ou n os s en t im os con tra r ia dos , in s a t is feitos ou com o s e a lgu m a cois a es t ives s e fa lta n do. É com o s e a vida n os a p res en ta s s e u m a s ér ie de in da -ga ções qu e n ã o podem s er res pon d ida s . E , por fa la r n is s o, n ã o podem mesmo. Por quê?

Porqu e s ã o fa ls a s in da ga ções . Nã o es tã o ba s ea da s n a rea li-da de. Sen t ir qu e a lgo es tá er ra do e p rocu ra r m eios de con s er tá -lo

qu a n do com eça m os a s en t ir o er ro des s e t ipo de pa drã o,

com eça a p rá t ica s ér ia . A jovem qu e m e telefon ou a in da n ã o ch egou n es s e pon to. E la con t in u a im a gin a n do qu e a lgo extern o irá torná-la feliz. Talvez US$ 1 milhão?

Por ou tro la do, já com a s pes s oa s qu e p ra t ica m , a a rm a du ra treme u m pou co, a con tecem pequ en os la m pejos de verda deira com preen s ã o. Pode s er qu e n ã o qu eira m os recon h ecer es s es la m -pejos . Mes m o a s s im , é fa to qu e com eça m os a com preen der qu e exis te u m ou tro m eio de viver , a lém de s e s en t ir a cos s a do pela vida e sair atrás de remédio contra isso.

Des de o com eço dos com eços , n ã o h á n a da er ra do. Nã o h á s epa ra çã o: tu do é u m ú n ico con ju n to qu e ir ra d ia . Nin gu ém a cred ita n is s o e en qu a n to n ã o h ou verm os p ra t ica do por m u ito tem po é d ifícil de ca p ta r . Mes m o com s eis m es es de u m a p rá t ica inteligen te, con tu do, com eça a h a ver u m pequ en o a ba lo n a fa ls a es t ru tu ra de n os s a s cren ça s . A es t ru tu ra com eça a des m a n ch a r a qu i e a li. Con form e p ra t ica m os a o lon go dos a n os , a es t ru tu ra en fra qu ece. O es ta do ilu m in a do exis te qu a n do es s a es t ru tu ra ru i por inteiro.

Sim , tem os de s er s ér ios a res peito de n os s a p rá t ica . Se você n ã o es t iver p ron to pa ra s er s ér io, tu do bem . Con t in u e s im -p les m en te leva n do s u a vida em fren te. Você p recis a s er em pu rrado de u m la do pa ra o ou tro por m a is a lgu m tem po. Es tá cer to. As pes s oa s n ã o devem es ta r n u m cen tro zen en qu a n to n ã o s en tirem que nada mais há para ser feito: é nesse momento que devem vir.

Voltem os à n os s a pergu n ta : s erá qu e a lgo ou a lgu ém pode n os fer ir? Con s iderem os a lgu n s des a s t res rea is . Va m os s u por qu e perd i m eu em prego e qu e es tou s er ia m en te en ferm a . Va m os s u por qu e todos os m eu s a m igos m e deixa ra m . Va m os s u por qu e u m ter rem oto des t ru iu m in h a ca s a . Pos s o fica r fer ido por toda s es s a s

Page 72: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

cois a s ? Cla ro qu e eu pen s o qu e s im . E s er ia ter r ível s e toda s es s a s cois a s a con teces s em . Porém , s erá qu e podem os rea lm en te s er a t in gidos por ta is even tos ? A p rá t ica n os a ju da a ver qu e a resposta é não.

Não é objetivo da prática evitar os sentimentos que nos ferem. Aqu ilo qu e ch a m a m os "m á goa " a in da a con tece. Pos s o perder m eu emprego, u m ter rem oto pode des t ru ir m in h a ca s a , m a s a p rá t ica ajuda-m e a da r con ta de cr is es , a m a n tê-la s den tro do m eu con trole. En qu a n to es t iverm os m ergu lh a dos em n os s a m á goa , s erem os u m poço de la m en ta ções de pou ca s erven t ia pa ra qu a lqu er u m . Se n ã o es t iverm os em a ra n h a dos em n os s o m elodra m a de dor , por ou tro la do, m es m o du ra n te u m a cr is e po'demos ser úteis.

En tã o o qu e a con tece qu a n do n ós de fa to p ra t ica m os ? Por qu e é qu e a s en s a çã o de qu e a vida pode n os fer ir com eça a diminuir com o tempo? O que ocorre?

Só u m ego cen tra do em s i, u m ego a pega do à s u a m en te e a o s eu corpo pode s er a t in gido. Es s e ego é n a rea lida de u m con ceito form a do a pa r t ir de pen s a m en tos n os qu a is a cred ita m os . Por exem plo, "Se eu n ã o con s egu ir is s o fica rei in feliz", ou "Se is s o n ã o der cer to pa ra m im , s erá h or r ível", ou "Se eu n ã o ten h o u m a ca s a para morar, isso é realmente terrível". Aquilo que chamamos de ego n ã o é m a is do qu e u m a s ér ie de pen s a m en tos a os qu a is es ta m os h a b itu a dos . Qu a n do es ta m os en volvidos por in teiro em n os s os pequ en os egos , a rea lida de

a en ergia bá s ica do u n ivers o

dificilmente é sequer percebida.

Va m os s u por qu e eu a ch o qu e n ã o ten h o a m igos e es tou m u ito s ozin h a . O qu e a con tece s e s en to pa ra p ra t ica r s obre is s o? Com eço a ver qu e m eu s en t im en to de s olidã o s e com põe, n a verda de, a pen a s de pen s a m en tos . A rea lida de é qu e es tou a pen a s s en ta da a qu i. Ta lvez eu es teja s en ta da a s ós em m in h a s a la , s em m a is n in gu ém . Nin gu ém m e telefon ou . Sin to-m e s ó. Ma s a rea lida de é qu e es tou s ó s en ta da . A s olidã o e a in felicida de s ã o meus pensamentos, meu julgamento de que as coisas deveriam ser d iferen tes do qu e s ã o. Nã o en xergu ei a t ra vés dela s . Nã o recon h eci qu e m in h a in felicida de é fa b r ica da por m im . A verda de da qu es tã o é qu e es tou s en ta da em m in h a s a la . Leva u m bom tem po a n tes de conseguirm os ver qu e a pen a s fica r s en ta da n a p rá t ica é bom , es tá

Page 73: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

bem . Fico a pega da a o pen s a m en to de qu e s em u m a com pa n h ia agradável, que me dê apoio, sou infeliz.

Nã o es tou recom en da n do u m a vida em qu e n os d is ta n cia mos do con vívio s ocia l pa ra fica rm os livres de a pegos e depen dências. Apegos d izem res peito n ã o a o qu e tem os , m a s a n os s a s op in iões a cerca do qu e tem os . Nã o h á n a da de er ra do com o fa to de s e pos s u ir a lgu m d in h eiro, por exem plo. Apego é qu a n do n ã o con s egu im os m a is ver a vida s em ele. Da m es m a form a , n ã o es tou d izen do pa ra s e des is t ir de es ta r com os ou tros . Es ta r com a s pes s oa s é m u it ís s im o a gra dá vel. Às vezes , porém , ta lvez tenhamos de pa s s a r s eis m es es fa zen do u m a pes qu is a em a lgu m pon to do des er to. Pa ra a m a ior ia is s o s er ia m u ito d ifícil. Toda via , s e es tou fa zen do u m a pes qu is a n o m eio do n a da , du ra n te s eis m es es , a verda de da qu es tã o é qu e é is s o m es m o, é a pen a s is s o qu e es tou fazendo.

A len ta e d ifícil m u da n ça da p rá t ica a licerça a vida e torn a -a gen u in a m en te m a is pa cífica . Sem n os es força rm os pa ra ser pa cíficos , percebem os qu e ca da vez m a is a s tem pes ta des da vida n os a t in gem m a is de leve. Es ta m os com eça n do a n os desvencilhar de n os s o a pego a os pen s a m en tos qu e pen s a m os s er n ós m es m os . O ego é um conceito que enfraquece com a prática.

A verda de é qu e n a da pode n os fer ir . Ma s n ós com cer teza pensamos qu e es ta m os s en do a t in gidos e qu e podem os lu ta r pa ra remediar as idéias de mágoa usando meios bastante improdutivos.

Ten ta m os rem edia r u m fa ls o p rob lem a com u m a fa ls a s o-lu çã o e s em dú vida is s o cr ia o ca os . Gu erra s , da n os a o m eio ambiente tudo decorre dessa ignorância.

Se n os recu s a m os a rea liza r es s e t ra ba lh o

e n ã o o fa remos s en ã o qu a n do es t iverm os p ron tos , terem os a lgu m t ipo de s ofr im en to, e tu do à n os s a volta s ofrerá ta m bém . Pra t ica r ou n ã o n ã o é u m a qu es tã o de bom ou m a u , cer to ou er ra do. Tem os de estar prontos. Mas, quando não praticamos, pagamos o preço.

Sem dú vida , a u n ida de or igin a l

o cen tro da en ergia multidimensional

perm a n ece in ta cta . Nã o h á com o con s egu ir -mos perturbá-la. Ela sempre existe; só isso. Isso é o que somos. Do pon to de vis ta da vida fen om ên ica qu e leva m os , porém , exis te u m preço a ser pago.

Page 74: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Nã o es tou ten ta n do cr ia r s en t im en to de cu lpa em n in gu ém . Es s e s en t im en to em s i n ã o pa s s a de pen s a m en tos . Nã o es tou cr it ica n do a m oça qu e n ã o qu er ia leva r a p rá t ica a s ér io. E la es tá exa ta m en te n es s e pon to, porém , e pa ra ela é per feito. Con form e p ra t ica m os , n o en ta n to, n os s a res is tên cia à p rá t ica d im in u i. Ma s sem dúvida isso leva tempo.

ALUNO: Con s igo ver com o podem os s er u n os com a s ou tra s pes s oa s , m a s pa ra m im es tá d ifícil en ten der o qu e s er ia s er u n o com uma mesa ou coisa assim.

JOKO: Un o com u m a m es a ? Ach o qu e com a m es a é m u ito m a is fá cil do qu e com a s pes s oa s ! Nu n ca ou vi n in gu ém rela ta r conflitos com u m a m es a . Nos s a s d ificu lda des qu a s e s em pre envolvem pessoas, individualmente ou em grupos.

ALUNO: Ta lvez eu n ã o ten h a en ten d ido o qu e você qu er d izer com "ser uno".

JOKO: "Uno com" é a ausência de qualquer coisa que divida.

ALUNO: Mas eu não me sinto uma mesa.

JOKO; Você n ã o tem de s en t ir qu e é u m a m es a . Com es s a fra s e "s er u n o com a m es a ", es tou qu eren do d izer qu e n ã o exis te s en s o de opos içã o en tre você e a m es a . Nã o é u m a qu es tã o de u m s en t im en to es pecia l; é u m a fa lta ou a u s ên cia da s en s a çã o de d is tâ n cia , em s en t ido em ocion a l. As m es a s em gera l n ã o des per -tam emoções. Por isso é que não temos problemas com elas.

ALUNO: Diga m os qu e u m a pes s oa tem a r tr ite e s en te dor o tempo todo; você diz que isso não dói?

JOKO: Nã o. Se s en t im os u m a dor pers is ten te, devem os s em dúvida fa zer o qu e n os for pos s ível pa ra lida r com ela . Ma s depois , s e a in da res ta u m pou co de dor , tu do o qu e podem os fa zer é viven cia r es s e res ídu o. Nã o a d ia n ta n a da a cres cen ta r à dor ju lga -m en tos do t ipo "Ma s qu e cois a ter r ível! Coita da de m im ! Por qu e é a s s im ?". A dor s im ples m en te é. Con s idera da des s a form a , a dor é u m en s in a m en to. Segu n do a m in h a exper iên cia , a m a ior ia da s pes s oa s qu e já pa s s ou por u m a en ferm ida de s ér ia e qu e a p ren deu a u s á -la term in ou des cobr in do qu e a qu ilo foi a m elh or cois a qu e poderia ter acontecido para elas.

ALUNO: Se a lgu ém n ã o pode n os fer ir e n ós n ã o podem os fer ir o ou tro, is s o n ã o n os dá n eces s a r ia m en te a u tor iza çã o pa ra

Page 75: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

fa la rm os tu do o qu e tem os n a ca beça porqu e n ã o podem os fer ir ninguém.

JOKO: Cer to. Se en ten dem os er ra da m en te es s e pon to e d izem os "Vou fa la r tu do a gora pa ra você porqu e n ã o pos s o fer i-lo", is s o já é u m a s epa ra çã o. Nós n ã o a ta ca m os os ou tros a m en os qu e n os s in ta m os s epa ra dos deles . Toda p rá t ica s ér ia p res u m e u m a devoção a preceitos e princípios morais básicos.

ALUNO: E qu a n to à ét ica s a m u ra i, h is tór ica n o J a pã o? Por exemplo, u m gu er reiro s a m u ra i pode d izer "Um a vez qu e s ou u n o com tu do, qu a n do decepa r a ca beça de u m a pes s oa in ocen te n ã o há assassinato; essa pessoa sou eu".

JOKO: Em s en s o a bs olu to n ã o h á a s s a s s in a to n en h u m porqu e s om os todos

"vivos " e "m or tos "

a pen a s m a n ifes ta ções da qu ela en ergia cen tra l qu e é tu do. Porém , em term os p rá t icos , n ã o con cordo com a ét ica s a m u ra i. Se vem os qu e n ã o s om os s epa ra dos da s ou tra s pes s oa s , s im ples m en te n ã o a ta ca m os . Os gu er reiros samurais estavam confundindo o relativo e o absoluto. É claro que, por cer to, n ã o h á u m qu e m a te e u m qu e s eja m or to, m a s n a vida que vivemos, sim, existe. E por isso não o fazemos.

ALUNO: Em ou tra s pa la vra s , s e con fu n d im os o a bs olu to e c rela t ivo poder ía m os u s a r o a bs olu to pa ra ju s t ifica r o qu e fa zem os no relativo?

JOKO: Sim , m a s s ó s e vivem os n a ca beça . Se con s idera m os qu e a p rá t ica é u m a pos tu ra filos ófica , podem os fica r rea lm en te confu s os . Se s a bem os qu e a verda de da p rá t ica es tá em n os s os ossos

s em s equ er pen s a r a es s e res peito

n ã o com eterem os esse erro.

ALUNO: An tes de eu com eça r a s en ta r pa ra p ra t ica r , eu n ã o achava que as coisas pudessem me ferir, porque eu não as sentia.

JOKO: Is s o é m u ito d iferen te. Você es tá fa la n do de dorm ên cia ps icológica . Qu a n do es ta m os en torpecidos , n ã o es ta m os u n os com a dor; estamos fingindo que ela não está ali.

ALUNO: Quando por fim me sintonizo e percebo o quanto estou m e m a goa n do de va r ia da s m a n eira s , fica m u ito m a is fá cil in ter -romper o comportamento contraproducente. Até que esse momento chegue, como você disse, estaremos fazendo o que estamos fazendo. Se vamos estragar as coisas, é isso que iremos fazer.

Page 76: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: É is s o m es m o. E n ã o es tou d izen do ja m a is cr it ica r a os ou tros e s u a s con du ta s . Se a lgu ém fez a lgo pa ra m im

rou bou

todo o m eu d in h eiro pa ra a s com pra s , pos s o p recis a r n ega r e tom a r a lgu m a a t itu de. Se os ou t ros m e t ra ta m m a l ou m e ca u s a m dor , ta lvez deva m s a ber qu e fizera m is s o. Ma s , s e fa la rm os com eles com ra iva , n u n ca a p ren derã o a qu ilo qu e p recis a m a pren der . Jamais sequer nos escutarão.

A a t itu de ou o con h ecim en to in tern o de qu e n ã o s om os s epa ra dos cr ia u m a m u da n ça fu n da m en ta l em n os s a vida em o-cion a l. Es s e con h ecim en to s ign ifica qu e, in depen den tem en te do qu e a con tecer , n ã o s om os per tu rba dos por is s o. Ter o con h eci-mento n ã o s ign ifica qu e n ã o n os in cu m birem os dos p rob lem a s con form e forem s u rgin do. No en ta n to, n ã o es ta rem os m a is d izendo em n os s o ín t im o: "Ma s qu e cois a h or r ível. Nin gu ém tem toda s a s d ificu lda des qu e eu ten h o". É com o s e n os s o en ten d imento cancelasse essas reações.

ALUNO: Por ta n to, s en t ir -s e fer ido s ã o s ó n os s os pen s a m en tos a respeito da situação?

JOKO: Sim . Qu a n do n ã o n os iden t ifica m os m a is com es s es pens a m en tos , lida m os com a s itu a çã o e n ã o fica m os m a is em ocio-nalmente envolvidos nela.

ALUNO: Mas a pessoa pode se sentir ferida.

JOKO: Sim . E n ã o es tou d izen do pa ra evita r es s e s en t im en to. Na prática, nós trabalhamos com o complexo de sensações físicas e pensamentos que constituem "Eu me sinto ferido". Se vivenciarmos tota lm en te a s s en s a ções e os pen s a m en tos , en tã o o "s en tir-se fer ido" eva pora . Eu n u n ca d ir ia pa ra n ã o n os s en t irm os do jeito que nos sentimos.

ALUNO: Você está dizendo para se abrir mão do apego à mágoa?

JOKO: Nã o. Nã o podem os n os força r a a ba n don a r es s e a pego. O a pego é pen s a m en to, m a s n ã o podem os a pen a s d izer "Vou de-s is t ir d is s o". Nã o fu n cion a . Tem os de en ten der o qu e é o a pego. Tem os de exper im en ta r o m edo

a s en s a çã o corpora l

qu e es tá por t rá s do a pego. En tã o es s e a pego irá s im ples m en te fen ecer . Um er ro com u m n o en s in a m en to zen é n os obr iga r a "deixa r ir ". Nã o podem os n os força r a "deixa r ir ". Tem os de viven cia r o m edo subjacente.

Page 77: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Viven cia r o a pego ou o s en t im en to ta m bém n ã o s ign ifica dramatizá-lo. Qu a n do d ra m a t iza m os n os s a s em oções , s im ples -mente as encobrimos.

ALUNO: Você es tá d izen do qu e s e s en t irm os n os s a t r is teza de verdade, por exemplo, não teríamos mais necessidade de chorar?

JOKO: Podem os ch ora r . No en ta n to, exis te u m a d iferen ça en t re a pen a s ch ora r e d ra m a t iza r a n os s a t r is teza , o m edo ou a ra iva . A d ra m a t iza çã o, m u ita s vezes , é m a is u m d is fa rce. Por exem plo, a s pes s oa s qu e b r iga m , a t ira m cois a s , ber ra m e gr ita m ainda não estão em contato com sua raiva.

ALUNO: Volta n do à m oça qu e pen s a va qu e a p rá t ica dever ia ser menos séria e que não queria vir para sentar-se e praticar aqui: você es tá equ a cion a n do a p rá t ica s ér ia com pra t ica r com regu la -ridade num centro zen?

JOKO: Nã o, em bora es s a p rá t ica regu la r s eja m u ito ú t il. Ten h o a lgu n s a lu n os qu e m ora m lon ge e p ra t ica m ba s ta n te. Apes a r da d is tâ n cia , eles en con tra m u m jeito de vir a qu i de vez em qu a n do. A m oça s im p les m en te a in da n ã o es tá p ron ta pa ra fa zer is s o. E é ela quem sofre, o que é o mais triste.

O PROBLEMA SUJEITO-OBJETO

Nos s o p rob lem a bá s ico com o s eres h u m a n os é a rela çã o s u -jeito-ob jeto. Na p r im eira vez qu e ou vi es s a a firm a çã o, a n os e a n os atrás, pareceu abstrata e irrelevante para minha vida. Apesar disso, toda a n os s a des a rm on ia e d ificu lda de decorrem de n ã o s a berm os o qu e fa zer a res peito da rela çã o en tre s u jeito e ob jeto. Em term os com u n s , do d ia -a -d ia , o m u n do es tá d ivid ido em s u jeitos e ob jetos . Eu olh o pa ra vocês , vou pa ra o t ra ba lh o, s en to-m e n u m a ca deira . Em ca da u m des s es ca s os , pen s o em m im com o o s u jeito em rela çã o com os ob jetos : vocês , m eu t ra ba lh o, a ca deira . In tu it iva m en te, n o en ta n to, s a bem os qu e n ã o s om os s epa ra dos do m u n do e qu e a d ivis ã o s u jeito-ob jeto é u m a ilu s ã o. Pa ra ch ega r a esse conhecimento intuitivo é que praticamos.

Se n ã o en ten derm os o du a lis m o s u jeito-ob jeto, verem os os ob jetos em n os s o m u n do com o a fon te de n os s os p rob lem a s : vocês s ã o o m eu p rob lem a , meu trabalho é m eu p rob lem a , a cadeira.

Page 78: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

(Quando me con s idero com o o p rob lem a , torn ei-m e ob jeto.) Des s a form a , a fa s ta m o-n os dos ob jetos qu e con s idera m os com o os p rob lem a s e va m os em bu s ca de ou tros , qu e pa ra n ós s ã o n ã o-p rob lem a s . Des s e pon to de vis ta , o m u n do con s is te em m im e n a s coisas que agradam ou desagradam a mim.

His tor ica m en te, a p rá t ica zen e a m a ior ia da s ou tra s d is ci-p lin a s de m ed ita çã o têm ten ta do res olver o du a lis m o s u jeito-objeto es va zia n do o ob jeto de todo con teú do. Por exem plo, t ra ba lh a r n o Um * ou em gra n des koans es va zia o ob jeto do con d icionamento qu e vin cu la m os a ele. Con form e o ob jeto va i s e torn a n do ca da vez m a is t ra n s pa ren te, s om os u m s u jeito con tem pla n do u m ob jeto vir tu a lm en te va zio. Es s e es ta do é à s vezes ch a m a do de samadhi. Esse é u m es ta do de gra ça porqu e o ob jeto va zio n ã o m e in com oda m a is . Qu a n do a t in gim os es s e es ta do, ten dem os a n os pa ra ben iza r por todo o progresso que já fizemos.

Es s e es ta do de samadhi, porém , a in da é du a lis ta . Qu a n do o a t in gim os , u m a voz in tern a d iz: "Deve s er is s o!" ou "Agora es tou de fa to in do bem ". Perm a n ece exis t in do u m s u jeito ocu lto, obs erva n do u m ob jeto vir tu a lm en te va zio, n o qu e a ca ba s en do u m a s epa ra çã o en tre s u jeito e ob jeto. Qu a n do n os da m os con ta des s a s epa ra çã o, ten ta m os a cion a r o s u jeito ta m bém e es va ziá -lo de s eu con teú do. Qu a n do fa zem os is s o, tom a m os o s u jeito em ou tro ob jeto a in da , com u m s u jeito a in da m a is s u t il a obs ervá -lo. Es ta m os a s s im criando uma regressão infinita de sujeitos.

Es s es es ta dos de samadhi n ã o s ã o p recu rs ores da verda deira ilu m in a çã o porqu e u m s u jeito fin a m en te vela do es tá s epa ra do de u m ob jeto vir tu a lm en te va zio. Qu a n do volta m os ã vida d iá r ia , a qu ele es ta do de gra ça s e d is s ipa e m a is u m a vez es ta m os n u m mar de sujeitos e objetos. Prática e vida assim não se encontram.

Uma prá t ica m a is lím pida n ã o ten ta livra r -s e do ob jeto, m a s , a n tes , ten ta en xergá -lo ta l qu a l é. Aos pou cos , a p ren dem os o qu e é ser ou vivenciar, e n es s e es ta do n ã o exis te s u jeito n em ob jeto. Nã o é qu e elim in em os a lgu m a cois a ; a n tes , reu n im os a s cois a s . Ain da há a mim e ainda há você, mas quando sou apenas minha vivência de você, não me sinto separado de você. Sou uno com você.

* Mu

literalmente "não" ou "nada"

é normalmente proposto para os iniciantes como um meio de focalizar sua atenção.

Page 79: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Es s e t ipo de p rá t ica é porém m u ito m a is len to porqu e, em vez de con cen tra r -s e n u m ú n ico ob jeto, t ra ba lh a com tu do em n os s a vida . Qu a lqu er cois a qu e n os a borreça ou con tra r ie (qu e, pa ra s erm os h on es tos , in clu i qu a s e tu do) s e torn a fa relo pa ra o m oin h o da n os s a p rá t ica . Tra ba lh a r com tu do leva a u m a p rá t ica qu e permanece viva em cada segundo de nossa vida.

Qu a n do a pa rece ra iva , por exem plo, a m a ior ia da s p rá t ica s zen t ra d icion a is n os leva r ia a ign ora r es s a ra iva e a n os con cen trar em a lgu m a cois a , com o a res p ira çã o. Em bora des s e jeito a ra iva s eja pos ta de la do, ela volta rá toda vez qu e form os cr it ica dos ou a m ea ça dos de a lgu m a form a . Por ou tro la do, n os s a p rá t ica é n os torn a rm os a p rópr ia ra iva , viven cia n do-a p len a m en te, s em separação ou rejeição. Quando trabalhamos dessa maneira, nossas vida s s e a qu ieta m . Aos pou cos , a p ren dem os a n os rela cion a r com os objetos problemáticos de uma forma diferente.

Nos s a s rea ções em ocion a is gra du a lm en te s e m in im iza m ; por exem plo, ob jetos qu e tem ía m os vã o perden do s eu poder s obre n ós e podemos lidar com eles com mais presteza. É fascinante observar a m u da n ça qu e ocorre; vejo-a a con tecer n os ou tros e em m im ta m bém . Es s e p roces s o n u n ca es tá com pleto; n o en ta n to, es ta m os nos tornando cada vez mais livres e despertos.

ALUNO: Com o é a qu ilo qu e você des creve com o d iferen te da prática s h ik an taz a * tradicional?

JOKO: Cor reta m en te en ten d ido, é m u ito pa recido com o s h ik an taz a , m a s exis te u m a ten dên cia a es va zia r a m en te. É pos s ível en t ra r n u m a es pécie de exper iên cia b ru xu lea n te n a qu a l o s u jeito n ã o es tá in clu ído. Es s a é a pen a s u m a ou tra form a de fa ls o samadhi. Os proces s os de pen s a m en to fora m elim in a dos da percepção conscien te e ca n cela m os n os s a exper iên cia s en s or ia l da m es m a form a com o s er ia feito com qu a lqu er ou tro ob jeto da percepção consciente.

ALUNO: Você d is s e qu e o verda deiro p ropós ito da p rá t ica é exper im en ta rm os n os s a u n ida de com toda s a s cois a s , ou a pen a s serm os n os s a s p rópr ia s vivên cia s de m odo qu e, por exem plo, es ta -

* Shikantaza

"apenas sentar'': uma forma pura de meditação sentada, sem a ajuda da contagem da respiração ou da prática do koan, na qual a mente mantém-se bastante concentrada, alerta e calmamente cônscia do presente.

Page 80: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

m os s ó lixa n do a s u n h a s s e for is s o qu e es t iverm os fa zen do. Ma s não é um paradoxo tentar chegar até nisso?

JOKO: Con cordo com você: n ã o podem os ten tar s er u n os com o lixa r . Se ten ta rm os n os torn a r u n os com es s e m ovim en to, separamo-n os dele. O p rópr io es forço s e der rota . Exis te u m a cois a , porém , qu e podem os fa zer : podem os repa ra r n os pen s a m en tos qu e n os s epa ra m de n os s a a t ivida de. Podem os es ta r côn s cios de n ã o es ta rm os com pleta m en te en ga ja dos n a qu ilo qu e es ta m os fazendo. Is s o n ã o é tã o d ifícil. Rotu la r n os s os pen s a m en tos a ju da -n os n es s e s en t ido. Em vez de d izer "Vou m e u n ir com o a to de lixa r", o qu e é dualista

pen s a r a res peito da a t ivida de em vez de s ó execu tá -la , sempre podemos observar que não o estamos fazendo. É tudo quanto se torna necessário.

A p rá t ica n ã o tem qu e ver com pa s s a r por cer ta s exper iên cias, com viven cia r gra n des con clu s ões , n em com ch ega r em a lgu m a pa r te ou torn a r -s e a lgo. Som os per feitos com o s om os . Com "per feitos " qu ero d izer qu e é is s o, s ó. A p rá t ica é s im plesmente m a n ter a percepçã o con s cien te

de n os s a s a t ivida des e ta m bém de todos os pen s a m en tos qu e n os s epa ra m de n os s a s a t ivida des . Qu a n do lixa m os n os s a s u n h a s ou n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , n ós a pen a s lixa m os a s u n h a s ou n os s en ta m os pa ra p ra t ica r . Um a vez qu e n os s os s en t idos es tã o a ber tos , ou vim os e s en t im os ou tra s cois a s ta m bém : s on s , odores e a s s im por d ia n te. Qu a n do os pen s a m en tos s u rgem , obs erva m os qu e s u rgira m e regres s a m os à nossa experiência direta.

A percepção consciente é nosso verdadeiro ser. E o que somos. Por isso, não temos que tentar desenvolver a percepção consciente; n ós a pen a s p recis a m os obs erva r com o b loqu ea m os n os s a con s cien t iza çã o, com pen s a m en tos , fa n ta s ia s , op in iões e ju lga m en tos . Ou es ta m os n a percepçã o con s cien t iza dora , qu e é o n os s o es ta do n a tu ra l, ou es ta m os fa zen do a lgu m a ou tra cois a . O s in a l do a lu n o m a du ro é qu e, n a m a ior pa r te do tem po, ele n ã o fa z outra coisa. Ele está apenas ali, vivendo sua vida. Nada especial.

Qu a n do n os torn a m os u m a percepçã o con s cien te a ber ta , n os s a h a b ilida de pa ra os ra ciocín ios n eces s á r ios torn a -s e m a is a gu da , e todo o n os s o input s en s or ia l s e torn a m a is cla ro, m a is in ten s o. Depois de a lgu m tem po s en ta dos n a p rá t ica , o m u n do pa rece m a is b r ilh a n te, os s on s s ã o m a is in ten s os , e h á u m a r iqu eza da ca p ta çã o s en s or ia l qu e é a pen a s o n os s o es ta do n a tu ral

Page 81: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

se não estivermos bloqueando o acesso às experiências com nossas mentes rígidas e preocupadas.

Qu a n do com eça m os a p rá t ica , podem os m a n ter a percepção con s cien te s ó por in terva los m u ito b reves e logo des via m os a n os s a a ten çã o do p res en te. Pr is ion eiros de n os s os pen s a m en tos , n ã o repa ra m os n em qu e es ta m os d iva ga n do. En tã o n os a pa n h a m os de volta e recu pera m os a a ten çã o n a p rá t ica s en ta da . A p rá t ica in clu i ta n to a percepçã o con s cien te de n os s a pos tu ra s en ta da com o a percepçã o con s cien te de term os d iva ga do. Após a n os de p rá t ica , es s a s d iva ga ções d im in u em a té qu a s e des a pa recerem , em bora is s o nunca ocorra de forma radical.

ALUNO: Os s on s e odores e ta m bém a s n os s a s em oções e pensamentos são todos partes da nossa prática sentada?

JOKO: Sim . É n orm a l qu e a m en te p rodu za pen s a m en tos . A prát ica é tom a r con s ciên cia de n os s os pen s a m en tos s em n os perderm os n eles . Ca s o n os perca m os , p res te a ten çã o n is s o também.

O zazen n a rea lida de n ã o é com plica do. O verda deiro p ro-b lem a é: n ós n ã o qu erem os fa zê-lo. Se m eu n a m ora do com eça a olh a r pa ra a s ou tra s m u lh eres , por qu a n to tem po perm a n ecerei s im ples m en te d is pos ta a viven cia r is s o? Todos tem os p rob lem a s con s ta n tes , m a s n os s a d is pon ib ilida de pa ra s om en te s er es tá n os últimos itens, em nossa lista de prioridades, até termos praticado o s u ficien te pa ra term os fé em a pen a s s erm os de m odo qu e a s s olu ções pos s a m a pa recer n a tu ra lm en te. Um ou tro in d ica dor de u m a p rá t ica em fa s e de a m a du recim en to é o des en volvim en to dessa confiança e dessa fé.

ALUNO: Qu a l é a d iferen ça en t re perm a n ecer tota lm en te absorvido n o lixa r da s u n h a s e em es ta r con s cien te de es ta r totalmente absorvido no lixar das unhas?

JOKO: Estar consciente de estar absorvido em lixar as unhas é a in da u m du a lis m o. Você es tá pen s a n do "Es tou tota lm en te a b -s orvido lixa n do a s m in h a s u n h a s ". Es s a n ã o é a verda deira p res en ça a ten ta . Na verda deira p res en ça a ten ta , a pes s oa es tá s ó fa zen do. A con s cien t iza çã o de qu e s e es tá a bs orvido n u m a da da exper iên cia pode s er u m pa s s o ú t il n o ca m in h o, m a s a in da n ã o é ter ch ega do efet iva m en te lã , porqu e a in da h á o pen s a r s obre is s o. Ain da h á u m a s epa ra çã o en tre a percepçã o con s cien te e o ob jeto

Page 82: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

des s a percepçã o con s cien te. Qu a n do es ta m os lixa n do a s u n h a s , não estamos pensando em prática. Numa boa prática, não estamos pen s a n do "Es tou n a p rá t ica ". Um a boa p rá t ica é fa zer o qu e es ta m os fa zen do e obs erva r qu a n do d iva ga m os . Qu a n do já es ta m os n es s a p rá t ica h á m u itos a n os , percebem os qu a s e de imediato quando começamos a divagar.

Foca liza r a a ten çã o em a lgo ch a m a do "p rá t ica zen " n ã o é n eces s á r io. Se, da m a n h ã a té a n oite, form os tom a n do con ta de u m a cois a a pós a ou tra , de m a n eira com pleta e ca ba l e s em pen s a m en tos con com ita n tes do t ipo "Sou u m a boa pes s oa por ter feito is s o", ou "Nã o é m a ra vilh os o eu poder tom a r con ta de tu do?", então isso será suficiente.

ALUNO: Min h a vida pa rece con s is t ir em ca m a da s s obre ca m a da s de a t ivida des , toda s des en rola n do-s e a o m es m o tem po. Se eu fizes s e a pen a s u m a cois a por vez e depois pa s s a s s e pa ra a seguinte, eu não conseguiria dar conta de tudo que realizo normal-mente durante um dia.

JOKO: Du vido. Fa zer u m a cois a de ca da vez e en t rega r -s e por com pleto a es s a execu çã o é o m eio m a is efica z de s e con s egu ir viver , porqu e n ã o h á b loqu eio n en h u m n o orga n is m o. Qu a n do vivem os e t ra ba lh a m os des s a m a n eira , s om os m u ito eficien tes s em nos afobarmos. A vida é sem acidentes.

ALUNO: Ma s e qu a n do u m a da s cois a s é ter de reflet ir s obre u m a s s u n to, ou t ra é a ten der o telefon e, u m a terceira é u m a ca r ta para se escrever...

JOKO: Mes m o a s s im , toda vez qu e n os volta m os pa ra u m a ou tra a t ivida de, s e es t iverm os com pleta m en te p res en tes , a pen a s fazendo o qu e es ta m os fa zen do, a ta refa s erá con clu ída m u ito m a is depres s a e m elh or . Em gera l, n o en ta n to, in clu ím os n a a t ividade vá r ios pen s a m en tos s u b lim in a res com o "Precis o con s egu ir fa zer toda s es s a s cois a s ta m bém

ou m in h a vida s im ples m en te n ã o s erve". A a t ivida de pu ra é m u ito ra ra . Qu a s e s em pre exis te u m a s om bra , u m film e s obre ela . Podem os n ã o es ta r con s cien tes d is s o, mas perceber a pen a s u m a cer ta ten s ã o. Nã o exis te ten s ã o n a a t ivida de pu ra , a lém da con tra çã o fís ica exigida pa ra qu e a atividade em si seja executada.

Há m u itos a n os , n u m sesshin, eu cos tu m a va ter a exper iên -cia de a pen a s torn a r -m e o cozin h a r , o a r ra n ca r a s erva s da n in h a s ,

Page 83: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ou o qu e fos s e qu e eu t ives s e qu e fa zer , m a s a in da exis t ia u m a s s u n to s u t il a li. E s em a m en or h es ita çã o, a s s im qu e o sesshin t in h a eva pora do u m pou co qu e fos s e, eu volta va com pleta m en te a toda a m es m a h is tór ia de s em pre. Eu n ã o m e h a via torn a do u n a com o objeto.

ALUNO: De volta a o exem plo de lixa r a s u n h a s : s e rea lm en te es ta m os a pen a s fa zen do is s o, en tã o n ã o es ta m os em a bs olu to cien tes de n ós , a o pa s s o qu e, s e lem bra m os de qu e es ta m os fa zen do is s o, retorn a m os a o du a lis m o s u jeito e ob jeto e n ão es ta m os m a is en t regu es à pu ra a t ivida de. Is s o n ã o s ign ifica , n o en ta n to, qu e qu a n do es ta m os s ó lixa n do a s u n h a s n ã o es ta m os absolutamente ali? Não existimos mais?

JOKO: Qu a n do es ta m os en tregu es à pu ra a t ivida de, s om os u m a p res en ça , u m a percepçã o con s cien te. Ma s is s o é tu do o qu e s om os . E is s o n ã o s e pa rece com n a da . As pes s oa s s u põem qu e o es ta do ilu m in a do é in u n da do de s en t im en tos a m oros os e em oções ca loros a s . Porém , o verda deiro a m or , ou a verda deira com pa ixã o, é s im ples m en te es ta r n ã o-s epa ra do do ob jeto. Em es s ên cia , é u m flu xo de a t ivida de n a qu a l n ã o exis t im os com o u m s er s epa ra do de nossa atividade.

Sem pre exis te u m cer to va lor n a p rá t ica qu e tem ca ra cter ís -t ica s du a lis ta s . Um cer to t rein o e u m des con d icion a m en to des en -rolam-s e em qu a lqu er s itu a çã o de p rá t ica s en ta da . Ma s , a té qu e ten h a m os s u pera do es s e du a lis m o, n ã o con s egu irem os con h ecer a liberda de fin a l. Nã o exis te u m a liberda de fin a l en qu a n to n ã o houver apenas um só, ali.

Podem os a ch a r qu e n ã o n os im por ta m os com a liberda de final nesse sentido. A verdade, no entanto, é que nós a desejamos.

ALUNO: Se uma pessoa está sentindo amor e outra pessoa está sentindo ódio, existe uma diferença em como devem praticar?

JOKO: Nã o. O a m or ou a com pa ixã o gen u ín a é u m a a u s ên cia des s a s du a s em oções con ceb ida s em n ível pes s oa l. Som en te u m a pes s oa pode a m a r ou od ia r n o s en t ido u s u a l. Se n ã o exis te pes s oa , s e es ta m os a pen a s a bs orvidos n o viver , es s a s em oções es ta rã o ausentes.

Na p rá t ica de con cen tra çã o qu e des crevi p r im eiro, u m a vez qu e o s en t im en to de ra iva é u m ob jeto, o qu e fa zem os é s im ples -m en te ign orá -lo. Em pu rra m os a em oçã o pa ra o la do e es va zia mos

Page 84: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

o koan de s eu con teú do. O p rob lem a des s a a borda gem é qu e, qu a n do volta m os à vida d iá r ia , n ã o s a bem os o qu e fa zer com a s n os s a s em oções , porqu e ela s n ã o fora m res olvida s . Sã o u m ter r itór io des con h ecido pela p rá t ica zen clá s s ica . Na p rá t ica da con s cien t iza çã o, n ós a pen a s viven cia m os o pen s a m en to e a em oçã o e s u a s s en s a ções con com ita n tes . Os res u lta dos s ã o m u ito diferentes.

ALUNO: Na p rá t ica s h ik an taz a qu e m e en s in a ra m , a s em oções fa zem pa r te da p rá t ica : ela s a pa recem e n ós n os s en ta m os pa ra praticar com elas.

JOKO: Sim , a p rá t ica s h ik an taz a pode s er en ten d ida des s a maneira. Temos apenas que nos acautelar quanto às armadilhas.

ALUNO: Nos sesshins m a is lon gos e d ifíceis , à s vezes m e s in to com o Gordon Liddy, com m in h a m ã o s ob re a ch a m a de u m a vela pa ra s a ber qu a n ta dor con s igo s u por ta r . No velh o es t ilo da p rá t ica do samadhi, eu pen s o qu e o tes te do samadhi da pes s oa era s u a ca pa cida de de n ã o s en t ir a dor m ed ia n te o es ta do de gra ça e a concentração.

JOKO: Certo. Então o objeto é cancelado.

ALUNO: Nes s e es t ilo de p rá t ica , o sesshin torna-s e u rn a es pécie de p rova de res is tên cia . Você poder ia com en ta r com o a dor funciona nesse sistema para não ser masoquismo?

JOKO: Um a dor m odera da é u m bom m es tre. A vida m es m a a pres en ta a dor e ta m bém in con ven iên cia s . Se n ã o s a bem os com o lida r com a dor e com a in con ven iên cia , n ã o s a bem os m u ito a n os s o p rópr io res peito. Um a dor ext rem a n ã o é n eces s á r ia , n o en ta n to. Se a dor for exces s iva , pode-s e u s a r u m ba n co ou a ca deira , ou a té m es m o pode-s e deita r . Mes m o a s s im , exis te u m cer to va lor em a pes s oa d is por-s e a s er a dor . A s epa ra çã o s u jeito-ob jeto ocorre porqu e n ã o es ta m os d is pos tos a s er a dor qu e a s s ocia m os com o ob jeto. E por is s o qu e n os d is ta n cia m os dele. Se n ã o n os en ten dem os em rela çã o à dor , cor rem os dela qu a n do aparece, e perdemos esse imenso tesouro de conscientização com a vivência direta da vida. De modo que, até certo ponto, é útil sentar-s e com a dor pa ra poderm os recu pera r u m a con s ciên cia m a is plena de nossa vida tal qual ela é.

Page 85: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Qu a n do a ten do a lu n os em daisan *, a m a ior pa r te do tem po m eu s joelh os fica m doen do. En tã o es tã o doen do: é s ó is s o. Sobretu do qu a n do fica m os m a is velh os , é ú t il s er ca pa z de es ta r com a n os s a vivên cia e viver p len a m en te a vida . Pa r te do qu e viem os a qu i a p ren der é com o es ta r com o des con for to e a in con -veniência.

De cer ta form a , a dor é u m gra n de m es t re. Sem u m cer to gra u de des con for to, a m a ior ia da s pes s oa s a p ren der ia m u ito pouco. Dor, desconforto, dificuldade e até mesmo a tragédia podem ser grandes instrutores, em especial quando ficamos mais velhos.

ALUNO: Den tro da con s ciên cia ord in á r ia , tu do o qu e es teja além de nós é um objeto?

JOKO: Se pen s a rm os n o eu da pes s oa com o u m ob jeto en t re ou tros , a té m es m o ele pode s er u m ob jeto. Pos s o obs erva r a m im mesma, posso ouvir a minha voz, posso cutucar as minhas pernas. Desse ponto de vista, sou um objeto também.

ALUNO: En tã o, ob jetos in clu em s en t im en tos e es ta dos de ânimo, além das coisas do mundo?

JOKO: Sim . Em bora pen s em os em n ós com o s u jeitos e em tu do o m a is com o ob jetos , is s o é u m er ro. Qu a n do n ós s epa ra m os a s cois a s u m a s da s ou tra s , tu do s e torn a u m ob jeto. Só exis te u m único sujeito verdadeiro que é o absolutamente nada. O que é?

ALUNO: A percepção consciente.

JOKO: Sim , a percepçã o con s cien te, em bora a pa la vra s eja inadequ a da . A percepçã o con s cien te n ã o é n a da e, n o en ta n to, o mundo inteiro existe através dela.

INTEGRAÇÃO

Há u m a h is tór ia t ra d icion a l a res peito de u m in s t ru tor zen *

qu e es ta va recita n do s u t ra s ** qu a n do foi a borda do por u m la drão

* Daisan: uma entrevista formal entre aluno e instrutor no decurso da prática meditativa. * Ver Paul Reps, compilador, Zen flesh, zen bones: A collection of zen and pre-zen writings, Garden City, NY: Anchor, Doubleday, sem data, "O homem que se tornou um discípulo", p. 41.

Page 86: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

qu e exigiu s eu d in h eiro ou a vida . O in s t ru tor d is s e a o la d rã o on de es ta va o d in h eiro, e ped iu qu e ele a pen a s deixa s s e o s u ficien te pa ra pa ga r s eu s im pos tos e qu e qu a n do es t ives s e p res tes a s a ir a gra deces s e a o in s t ru tor pelo p res en te. O la d rã o con cordou . Un s d ia s depois foi ca p tu ra do e con fes s ou vá r ios cr im es , in clu s ive o a s s a lto a o in s t ru tor zen . Ma s es te in s is t iu qu e n ã o h a via s ido vítima de roubo porque havia dado ao homem o seu dinheiro e este agradecera por is s o. Depois de o la d rã o ter term in a do de cu m pr ir a pena, voltou até o instrutor e tornou-se um de seus discípulos.

Es s a s h is tór ia s pa recem rom â n t ica s e lin da s . Ma s va m os s u por qu e a lgu ém n os peça em pres ta do d in h eiro e n ã o n os devolva. Ou qu e a lgu ém rou be o n os s o ca r tã o de créd ito e o u t ilize. Com o rea gir? Um a d ificu lda de da s h is tór ia s clá s s ica s do zen , com o es s a , é qu e ela s pa recem a n t iga s e m u ito d is ta n tes . Por es ta r d is ta n te de n os s a época , podem os deixa r de en ten der o "x" da qu es tã o. A questão não é que alguém levou o dinheiro ou o que o mestre fez. A qu es tã o é qu e o m es t re n ã o ju lgou o la d rã o. Is s o n ã o qu er d izer qu e a m elh or cois a s eja s em pre da r a o la d rã o a qu ilo qu e ele qu er ; pode s er qu e à s vezes es s a n ã o s eja a m elh or m a n eira de rea gir . Es tou cer ta de qu e o m es t re con s iderou a s itu a çã o, viu qu em era o h om em (ta lvez u m ga roto qu e a pa n h ou u m a es pa da e es pera va com ela conseguir um dinheirinho rápido) e intuitivamente soube o qu e fa zer . Nã o é ta n to o qu e o m es t re fez, m a s a m a n eira com o a giu . A a t itu de do m es t re foi cru cia l. Em vez de fa zer u m ju lga m en to, ele s im ples m en te lidou com a s itu a çã o. Se a s itu a çã o tivesse sido diferente, sua resposta poderia ter sido outra.

Nã o percebem os qu e s om os todos p rofes s ores . Tu do o qu e fa zem os , de m a n h ã a té a n oite, é u m en s in a m en to: o m odo com o fa la m os com a lgu ém , n a h ora do a lm oço, o m odo com o fa zem os n os s a s t ra n s a ções ba n cá r ia s , n os s a rea çã o qu a n do o a r t igo qu e a p res en ta m os é a ceito ou rejeita do

tu do o qu e fa zem os e d izem os reflete n os s a p rá t ica . Ma s n ã o é pos s ível qu ererm os s er s im ples m en te com o Sh ich ir i Kogen . É u m a a rm a d ilh a do t rein o con clu ir : "Oh , eu dever ia s er des s e jeito". Os a lu n os ca u s a m u m gra n de da n o qu a n do a r ra s ta m es s es idea is pa ra a p rá t ica . E les im a gin a m qu e "dever ia m s er a lt ru ís ta s , gen eros os e n obres com o o gra n de m es t re zen ". O m es tre em ca da u m a des s a s h is tór ia s foi eficien te porqu e foi o qu e ele era . E le n ã o pen s ou du a s vezes a

** Sutra: texto budista tradicional, em geral falado em voz alta.

Page 87: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

res peito. Qu a n do ten ta m os s er u m a cois a qu e n ã o s om os , tornamo-nos escravos de uma mente rígida e fixa, que segue regras a res peito de com o a s cois a s têm de s er . A violên cia e a ra iva qu e exis tem em n ós con t in u a m des perceb ida s porqu e n os m a n tem os a pr is ion a dos em n os s a s im a gen s de com o dever ía m os s er . Se con s egu im os u s a r a s h is tór ia s de form a cor reta , ela s s ã o maravilhos a s . En treta n to, n ã o dever ía m os a pen a s ten ta r cop iá -las em n os s a s vida s . Som os in t r in s eca m en te per feitos do jeito qu e somos. Somos ilu m in a dos . Ma s , en qu a n to n ã o com preendermos isso, iremos nos iludir a respeito das coisas.

Os cen tros zen e ou tros loca is de p rá t ica es p ir itu a l cos tu mam ign ora r o qu e tem de ocorrer com u m s er h u m a n o pa ra qu e a con teça a verda deira ilu m in a çã o. A p r im eira cois a qu e tem de acontecer

a o lon go de m u ita s eta pa s , s u pera n do m u itos des vios e a rm a d ilh a s

é a n os s a in tegra çã o com o s eres h u m a n os , pa ra qu e a m en te e o corpo torn em -s e u m a cois a s ó. Pa ra m u ita s pes s oa s , es s e em preen d im en to leva a vida in teira . Qu a n do o corpo e a m en te s ã o u m s ó, n ã o s om os m a is con s ta n tem en te pu xa dos pa ra cá e pa ra lá , pa ra fren te e pa ra t rá s . En qu a n to formos con trola dos por n os s a s em oções a u tocen t ra da s (e a m a ior ia de n ós tem m ilh a res des s a s ilu s ões ), n ã o terem os a in da s u pera do es s a eta pa . Pega r a pes s oa qu e a in da n ã o in tegrou corpo e m en te e forçá-la a pa s s a r pelo es t reito e con cen tra do por tã o da ilu m inação pode s em dú vida p rodu zir u m a poderos a exper iên cia de vida , m a s essa pessoa não vai saber o que fazer com isso. Vislumbrar por um in s ta n te a u n ida de ú lt im a do u n ivers o n ã o s ign ifica n eces s a r ia m en te qu e da í em d ia n te n os s a s vida s s erã o m a is livres . Pois , en qu a n to n os p reocu pa m os com o qu e a lgu ém n os fez, com o rou ba r o n os s o d in h eiro por exem plo, n ã o es ta m os verda deira m en te in tegra dos . De qu em é o d in h eiro a fin a l de con ta s ? E o qu e torn a n os s o u m peda ço de ter ra ? Nos s o s en s o de p ropr ieda de a pa rece porqu e tem os m edo e s om os in s egu ros e por is s o qu erem os ter cois a s . Qu erem os pos s u ir a s pes s oa s . Qu eremos s er os don os da s idéia s . Qu erem os ter n os s a s p rópr ia s op in iões . Qu erem os ter u m a es t ra tégia pa ra viver . En qu a n to es tivermos fa zen do toda s es s a s cois a s , a idéia de qu e poder ía m os a gir com naturalidade como o mestre Kogen é completamente sem sentido.

O im por ta n te é qu em s om os a ca da m om en to da do e de qu e m odo lida m os com a qu ilo qu e a vida n os oferece. Qu a n do m en te e corpo torn a rem -s e m a is in tegra dos , o t ra ba lh o pa ra doxa lm en te irá

Page 88: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

fica r m u ito m a is fá cil. Nos s a ta refa é in tegra rm o-n os com o m u n do todo. Com o d is s e o bu da : "O m u n do todo s ã o m eu s filh os ". As s im qu e es t iverm os rela t iva m en te em pa z con os co, a in tegra çã o com o resto do mundo se tornará mais fácil. O que custa mais tempo e dá m a is t ra ba lh o é a p r im eira pa r te. As s im qu e is s o es t iver qu a s e a lca n ça do, exis tem m u ita s á rea s da vida qu e têm a qu a lida de de u m a vida ilu m in a da . Os p r im eiros a n os s ã o m a is d ifíceis do qu e os ú lt im os . O m a is d ifícil é o p r im eiro s esshin; os m es es m a is d ifíceis da prática estão no primeiro ano; o segundo já é mais fácil, e assim por diante.

Ma is ta rde pode ir rom per u m a n ova cr is e, ta lvez depois de cin co ou dez a n os de p rá t ica , qu a n do com eça m os a en ten der qu e n ã o irem os ga n h a r n a da com ta n to tem po s en ta do

a bs olu ta -m en te n a da , O s on h o a ca bou , o s on h o da glór ia pes s oa l qu e pen s á va m os ob ter a pa r t ir da p rá t ica . O ego es tá des fa zen do-se; es s e pode s er u m per íodo á r ido, d ifícil. Con form e vou lecion a n do, percebo os p rogra m a s p ré-preparados da pes s oa s e des fa zen do. Isso acontece na primeira parte da viagem. É mesmo lindo, embora s eja a pa r te d ifícil. A p rá t ica deixa de s er rom â n t ica : n ã o s e pa rece mais com aquilo que lemos nos livros. Então começa a prática real: de u m m om en to pa ra o ou tro, a pen a s en ca ra n do ca da m om en to. Nossas mentes não se impõem mais tanto a nós. Não nos dominam m a is . Tem in ício u m a gen u ín a ren ú n cia de n os s os p rogra m a s a n tecipa dos , em bora m es m o n es s a época ta l eta pa pos s a s er in ter rom pida por toda s a s es pécies de ep is ód ios d ifíceis . O ca m in h o n u n ca é d ireto e s u a ve. Alíá s , qu a n to m a is pedregos o, melhor. O ego precisa de obstáculos que o desafiem.

Con form e n os s a p rá t ica p rogr ide, obs erva m os qu e os ep i-sódios

os obs tá cu los em n os s o ca m in h o

n ã o s ã o tã o d ifíceis quanto poder ia m ter s ido. Nã o tem os m a is ta n tos p rogra m a s a n tecipa dos a res peito de tu do, n em o m es m o im pu ls o pa ra n os torn a rm os im por ta n tes ou gra n des ju izes . Se s en ta m os pa ra p ra -t ica r com a té 40% de percepçã o con s cien te, pequ en a s fa gu lh a s s a em de n os s a s p rogra m a ções a n tecipa da s . Qu a n to m a ior for o tem po em qu e perm a n ecem os s en ta dos p ra t ica n do, m en os cois a s vã o a con tecer du ra n te a p rá t ica . Por qu a n to tem po a tu ra m os en xerga r toda a obs t ru çã o de n os s o ego? Por qu a n to tem po con s egu im os obs ervá -lo a n tes de la rga r m ã o e s im ples m en te retorn a r a o a qu i? Tra ta -s e de u m len to p roces s o de des ga s te

e

Page 89: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

n ã o de u m a qu es tã o de ga n h a r vir tu des ; é m a is ga n h a r en ten -dimento.

Além de rotu la r n os s os pen s a m en tos , p recis a m os perm a n ecer com a s s en s a ções de n os s o corpo. Se t ra ba lh a rm os com es s a s du a s qu es tões com toda a pa ciên cia pos s ível, irem os a os pou cos abrindo-nos para uma nova visão de vida.

Qu erem os u m a vida qu e s eja tã o r ica e a m p la e benéfica

qu a n to s eja pos s ível. Todos tem os a pos s ib ilida de de viver a s s im . In teligên cia a ju da . As pes s oa s qu e vêm a u m cen tro zen s ã o, de m a n eira t íp ica , m u ito in teligen tes . Ma s ela s ta m bém ten dem a ca ir n a s m a lh a s de m u ita s ra cion a liza ções e a n á lis es . Seja qu a l for a disciplina

a rte, m ú s ica , fís ica , filos ofia

podem os m odificá -la e usá-la pa ra evita r a p rá t ica . Porém , s e n ã o o fa zem os , a vida n os dá u m ch u t in h o a pós o ou tro a té a p ren derm os a qu ilo qu e p recis a m os a pren der . Nin gu ém pode fa zer es s a p rá t ica por n ós . O ú n ico tes te pa ra s a ber s e es ta m os fa zen do a p rá t ica é a n os s a própria vida.

OS TOMATEIROS RIVAIS

Há a lgu n s in s ta n tes receb i u m telefon em a de u m a a m iga da cos ta les te qu e es tá m orren do. Ela d is s e qu e ta lvez ten h a m a is t rês ou qu a tro d ia s de vida e qu e es ta va telefon a n do pa ra d izer a deu s . Depois des s a liga çã o, lem brei-m e da p recios ida de des ta jóia qu e ch a m a m os vida

e de qu ã o pou co s a bem os a s eu res peito ou a a p recia m os . Mes m o qu e s a iba m os u m pou co, com o é pou co o quanto cuidamos dela!

Algu m a s pes s oa s , em es pecia l a s qu e per ten cem a com u n i-da des es p ir itu a is , podem im a gin a r qu e a jóia da vida n u n ca tem con flitos , d is cu s s ões ou t ra n s torn os

qu e é s ó ca lm a e pa z. Es s e é u m gra n de en ga n o porqu e s e n ã o en ten dem os com o o con flito é gera do, podem os fa zer com qu e a n os s a vida en t re em rota de colis ã o com a vida dos ou tros . Pr im eiro, p recis a m os ver qu e todos s en t im os m edo. Nos s o m edo bá s ico é o de m orrer , e es te es tá n a ba s e de todos os ou tros . Nos s o m edo de s erm os pes s oa lm en te a n iqu ila dos leva -n os a con du ta s in ú teis , en t re a s qu a is o es forço de p roteger n os s a a u to-im a gem , o ego. Des s a n eces s ida de de

Page 90: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

proteçã o vem a ra iva . Da ra iva n a s ce o con flito. E o con flito des t rói nossos relacionamentos com os outros.

Nã o es tou qu eren do d izer qu e u m a boa vida n ã o ten h a acaloradas discussões, desacordos; isso é bobagem. Quando eu era m en in a con h eci m u ito bem dois s en h ores e s u a s fa m ília s . Es ta s era m a m iga s e era com u m s a irm os ju n tos pa ra pa s s eios de fim de semana. Esses dois homens competiam em todas as oportunidades, m a s m a is es pecia lm en te n a tem pora da do tom a te. Apres en ta va m s u a s s a fra s n a feira loca l. Su a s d is cu s s ões a res peito de s eu s tom a tes era m clá s s ica s : ia m ergu en do a voz a té a s pa redes com eça rem a t rem er . E , n a rea lida de, os dois ga n h a va m o p rêm io de "O Melh or Tom a te da Feira ". Era u m a delícia vê-los porqu e os dois s a b ia m qu e a qu ele ba te-boca era s ó pa ra b r in ca r . O tes te de u m bom con flito, de u m a boa t roca de op in iões , é qu e qu a n do o conflito termina não resta frieza ou amargor, nenhum apego à idéia do "eu ganhei, você não". Tudo bem discutir, mas apenas se for por d ivers ã o. Se tem os u m a d is cu s s ã o com a lgu ém qu e n os é p róxim o, m a s , depois de tu do s u pos ta m en te perdoa do e es qu ecido, con t in u a m os fr ios e d is ta n tes , en tã o es tá n a h ora de olh a rm os mais de perto essa situação.

Um vers o do Tao Te Ch ing * a firm a : "O m elh or a t leta qu er qu e s eu a dvers á r io es teja em s u a m elh or form a . O m elh or gen eral en tra n a m en te de s eu in im igo. O m elh or n egocia n te s erve a o bem com u n itá r io. O m elh or líder s egu e a von ta de do povo"*. Toda s es s a s pes s oa s en ten dem o qu e é a com pet içã o. Nã o é qu e evitem com pet ições , m a s com petem com es p ír ito es por t ivo. Nes s e s en t ido s ã o com o a s cr ia n ça s , em h a rm on ia com o Ta o. Se n os s a s d is cu s s ões s e dã o n es s e s en t ido, tu do bem . Ma s qu a n ta s vezes isso acontece?

Su zu k i Ros h i foi in terpela do cer ta vez s e a ra iva poder ia s er com o u m ven to pu ro qu e va r re e deixa tu do lim po. Ele d is s e: "Sim , m a s n ã o creio qu e você p recis e s e p reocu pa r com is s o". E le d is s e que nunca tinha sentido uma raiva que fosse como o vento puro. E a n os s a ra iva com cer teza n ã o é pu ra ta m bém porqu e exis te m edo por t rá s dela . En qu a n to n ã o en tra rm os em con ta to com o n os s o m edo e o viven cia rm os por in teiro, n os s a ra iva s erá ca pa z de causar danos.

* Tao Te Ching: A new English version, with foreword and notes, por Stephen MitchelI, Nova York: Harper & Row, 1988, p. 68.

Page 91: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Um bom exem plo es tá em n os s o es forço pa ra s erm os h o-n es tos . A h on es t ida de é a ba s e a bs olu ta de n os s a p rá t ica . Ma s o qu e is s o qu er d izer? Va m os s u por qu e d izem os pa ra a lgu ém : "Qu ero s er h on es to com você. Qu ero lh e con ta r com o vejo o n os s o rela cion a m en to". O qu e d is s erm os pode s er p roveitos o. Porém , m u ita s vezes n os s os es forços de h on es t ida de n ã o vêm da verdadeira honestidade, mas de um espírito de brincar, de incluir o outro mesmo que possamos fingi-lo. Enquanto tivermos a menor in ten çã o qu e s eja de ter ra zã o, de m os tra r ou en s in a r a lgo pa ra o ou tro, p recis a m os n os a ca u tela r . En qu a n to n os s a s pa la vras t iverem a m en or liga çã o qu e s eja com o ego, s erã o des on es ta s . As pa la vra s verda deira s vêm qu a n do en ten dem os o qu e é s a ber qu e estamos com raiva, saber que estamos com medo, e esperar. Dizem a s a n t iga s pa la vra s : "Você tem a pa ciên cia de es pera r a té qu e s u a m en te a qu iete e a á gu a fiqu e cla ra ? Você con s egu e s e m a n ter im óvel a té qu e a a çã o cor reta a pa reça por s i?". Es s e é u m m odo m a ra vilh os o de a pon ta r o "x" da qu es tã o: s erá qu e con s egu im os fica r em s ilên cio por u m m om en to a té qu e a s pa la vra s ju s ta s a pa reça m por s i

pa la vra s h on es ta s , qu e n ã o m a goa m os ou t ros ? Es s a s pa la vra s podem s er m u ito fra n ca s . Podem com u n ica r exa ta m en te o qu e qu erem os d izer . Podem in clu s ive s er a s m es m a s pa la vra s qu e ter ía m os fa la do a pa r t ir de n os s o ego, m a s h a verá u m a d iferen ça . Viver des s e jeito n ã o é fá cil. Nin gu ém con s egu e fazê-lo o tem po todo. Nos s a p r im eira rea çã o vem da a u topres erva çã o e do m edo, e en tã o a ra iva s a lta bem n o m eio da cen a . Nos s os s en t im en tos fora m fer idos , es ta m os com m edo, ficamos com raiva.

Se tivermos paciência de esperar até que a lama (nossa mente) deca n te e a á gu a fiqu e lím pida , s e perm a n ecerm os im óveis a té qu e a a çã o cor reta s u r ja por s i, á s pa la vra s cer ta s a pa recerã o, s em qu e p recis em os pen s a r n ela s . Nã o p recis a rem os ju s t ifica r a qu ilo qu e es ta m os d izen do u s a n do m ú lt ip la s ra zões ; n ã o terem os qu a isquer razões. As palavras certas se farão dizer se tivermos nos aquietado. Nã o con s egu im os is s o s em u m a p rá t ica s in cera . Pode n ã o s er u m a p rá t ica form a l; à s vezes , a pen a s res p ira m os fu n do, es pera m os u m m in u to, s en t im os com o vã o a s cois a s bem n o m eio de n ossa ba r r iga e en tã o é qu e fa la m os . Por ou tro la do, s e es ta m os ten d o u m gra n de con flito com u m a pes s oa , ta lvez p recis em os de m a is tempo. Pode ser melhor às vezes não dizer nada durante um mês.

Page 92: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Meu s velh os a m igos qu e d is cu t ia m por ca u s a dos tom a tes n ã o t in h a m n en h u m a in ten çã o de ca u s a r da n o. Apes a r de todo o ba ru lh o, n ã o h a via rea lm en te a pa r t icipa çã o de s eu s egos . J á vin h a m joga n do a qu ele jogo h a via a n os . Mu ita s vezes ou ço dos alunos histórias a respeito de seus amigos, do que deu errado, e do qu e qu erem fa zer pa ra "a cer ta r" a s itu a çã o. "Meu a m igo fez u m a cois a ru im . Meu a m igo n ã o m e a ju dou . Vou m os tra r pa ra ele com o é qu e es tou m e s en t in do." Acerca de ta is s itu a ções J es u s d is s e: "Qu e a t ire a p r im eira pedra a qu ele qu e n ã o t iver peca do". Todos tem os fa lh a s . Eu ten h o fa lh a s ; você ta m bém . Todos tem os fa lh a s . Con tu do, o n os s o ego n os d iz qu e s ó o outro es tá er ra do. Gra n de pa r te da qu ilo qu e ch a m a m os de com u n ica çã o com os ou tros du ra n te n os s os con flitos a ca ba s en do, n o fu n do, d izer -lh es com o s ã o fa lh os . En tã o eles , m u ito n a tu ra lm en te, qu erem n os d izer com o n ós tem os fa lh a s . E a s s im va i, de lá pa ra cá , de cá pa ra lá . Na da de ú t il es tá s en do com u n ica do. As pes s oa s qu e es tã o fa la n do s ã o com o dois n a vios qu e pa s s a m u m pelo ou tro à n oite. As pes s oa s s e n ega m a es pera r a té qu e a la m a a s s en te, porém . Tem os m edo de qu e os ou tros s e a p roveitem de n ós . Ma s s erá qu e is s o pode mesmo acontecer?

ALUNO: Nã o podem s e a p roveita r de n ós , m a s com cer teza n os sentimos assim uma grande parte do tempo.

JOKO: Sim , é com u m s en t irm os qu e es tã o s e a p roveita n do de n ós . Va m os s u por u m a pes s oa qu e n os deve d in h eiro e n ã o pa ga . Ou qu e a lgu ém deixa de cu m pr ir u m a p rom es s a qu e n os fez. Ou qu e a lgu ém fa la de n ós pela s cos ta s . E por a í va i; todos n ós fa zem os es s a s cois a s . Será qu e es s a s con du ta s s ã o suficientes pa ra s e a ba n don a r u m a m igo, u m m a r ido ou m u lh er , u m filh o, ou pa i ou m ã e? Ter ía m os n ós a pa ciên cia de es pera r a té qu e n os s a la m a a s s en ta s s e e a á gu a es t ives s e cla ra ? Con s egu ir ía m os m a n ter -n os im óveis a té qu e a a çã o a dequ a da a pa reces s e por s i? Às vezes , fica m os com ra iva de n ós . Qu a n do is s o a con tece, cos tu m a m os em prega r pa la vra s fa ls a s e qu e b rota m de n os s a p ropen s ã o a n os s en t irm os m a goa dos ou p reju d ica dos . Em vez de d ir igir a a lgu ém a n os s a ira , n ós a reen ca m in h a m os pa ra n ós m es m os . Ma s s ó segu n do o Ta o

o va zio, o s ilên cio

é qu e a s pa la vra s ju s ta s e a a çã o ju s ta podem a pa recer . As pa la vra s e con du ta s ju s ta s são o Tao.

Qu a n do lecion o, ten h o m en os in teres s e n os con flitos qu e os a lu n os vivem e m a is n o ca rá ter de s u a s pa la vra s e de on de ela s

Page 93: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

procedem . No ca s o da s pes s oa s qu e têm pra t ica do por a lgu m tem po, a s pa la vra s podem pa recer m elh ores , m a s a in da vêm do lu ga r er ra do. "Eu s ei qu e é tu do eu . Eu s ei qu e n ã o tem n a da qu e ver com você. Nã o p reten do s er ra n zin za n em in t rom et ido, mas..." O julgamento a in da es tá p res en te, a pen a s d is fa rça do. Poder ia m ter a pen a s d ito: "Ma s qu e d roga ! Por qu e é qu e você n ã o pega e a r ru m a s u a s rou pa s ?". Em bora s eja bom qu e a s rou pa s es teja m a r ru m a da s , n ã o é des s e jeito qu e s e fa z is so a con tecer . Con s egu ir ía m os n os m a n ter im óveis , de boca fech a da , a té qu e a a çã o e a s pa la vra s ju s ta s a pa reces s em por s i? A m a ior pa r te do tem po n ã o h á per igo em n ã o s e fa zer nada. Qu a s e tu do o qu e fa zem os n ã o fa z m u ita d iferen ça , de qu a lqu er m a n eira , n ós a pen a s achamos que faz.

Som os pes s oa s za n ga da s porqu e es ta m os todos a s s u s ta dos . Felizm en te, tem os em gera l a opor tu n ida de de p ra t ica r com a ra iva , com a s pes s oa s qu e s ã o d ifíceis pa ra n ós . Podem os ten ta r lida r com elas eliminando-as de nossas vidas. Por que fazemos isso?

ALUNO: Para facilitar a nossa vida.

ALUNO: Porqu e pen s a m os qu e ela s s ã o a ca u s a do n os s o problema.

ALUNO: Porque elas não fazem o que queremos que façam.

ALUNO: Porqu e ta lvez ela s n os m os trem a lgo a n os s o res peito que não queremos enxergar.

ALUNO: Para evitarmos a nossa própria culpa.

ALUNO: Poderíamos estar querendo puni-las.

ALUNO: Ta lvez n a ú lt im a vez em qu e es t ivem os ju n tos ten h a sido tão confuso e doloroso que não queremos nos aproximar outra vez.

JOKO: Precis a m os es ta r d is pos tos a des ca n s a r n a con fu s ã o e n o in côm odo, deixa n do a la m a a s s en ta r a té con s egu irm os ver com m a is n it idez. Com es s a es pécie de p rá t ica , podem os des cobr ir a jóia p recios a de n os s a vida ; h a verá en tã o u m a a u s ên cia de a lterca ções . Ain da poderem os ter d is cu s s ões , com o os tom a teiros rivais

m a s por es p ír ito es por t ivo. Qu a n do es tu da m os a ra iva a fundo, ela desaparece. Como disse Dogen Zenji, estudar o budismo é estudar o eu, e estudar o eu é esquecer o eu. Quando nossa raiva s e d is s ipa n u m n a da , n ã o h á p rob lem a . A a çã o cor reta a pa rece por

Page 94: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s i. Em ret iros in ten s ivos , es s e p roces s o é a celera do. O eu a u tocen tra do torn a -s e m a is t ra n s pa ren te, m a is n ít ido, e a s s im podemos nos assentar bem no meio dele. Conforme a lama decanta e a á gu a fica lím pida n ova m en te, podem os en xerga r a jóia quase com o s e es t ivés s em os em á gu a s t rop ica is e con s egu ís s em os olh a r bem n o fu n do e ver a s p la n ta s e os peixes color idos . En tã o podem os fa la r a s pa la vra s verda deira s , em opos içã o à s autocentradas, que sempre criam desarmonia.

ALUNO: Joko, o que você diz para alguém que está morrendo?

JOKO: Nã o m u ito, ou "eu a m o você". Mes m o qu a n do es ta m os morrendo ainda queremos fazer parte da experiência humana.

ALUNO: Algu m a s vezes , qu a n do ten h o u m con flito, s e con s igo s a ir e d izer a lgo da m elh or m a n eira pos s ível, m es m o qu a n do n ã o s a i per feito, a p ren do m u ita cois a a m eu res peito qu e n ã o qu er ia s a ber e is s o é m u ito va lios o. En tã o pos s o s er h on es to a res peito disso, em vez de esperar.

JOKO: Sim , eu en ten do. Qu a n do eu d igo pa ra es pera r , n ã o es tou fa la n do de u m a fórm u la . Es tou fa la n do de u m a a t itu de de aprendiza gem . Às vezes é ú t il d izer a lgo a n tes qu e a la m a a s s en te; depen de da a t itu de, do es p ír ito da s pa la vra s . Mes m o qu e o es p írito es teja u m pou co torcido, s e es ta m os a p ren den do depres s a en qu a n to a gim os , is s o ta m bém pode fica r bem . Se a gim os de m a n eira im própr ia , en tã o n os des cu lpa m os . Dever ía m os es ta r s em pre p ron tos pa ra n os des cu lpa r . Todos tem os cois a s de qu e pedir desculpas.

ALUNO: Eu m u ita s vezes pen s o qu e es tou s en do h on es to e s ó mais tarde é que percebo que estava enganando a mim mesmo.

JOKO: Sim . O tes te de u m bom con flito

em con tra s te com o con flito qu e ca u s a da n o

é qu e n ã o res ta m res ídu os depois . Todos s e s en tem bem m a is ta rde. Es tá tu do cla ro. Aca ba do. O clima fica agradável. É maravilhoso, mas raro.

ALUNO: Pa rece qu e exis tem a lgu m a s cois a s , n o en ta n to, qu e simplesmente não conseguimos consertar.

JOKO: Nã o es tou fa la n do de con s er ta r cois a s ; is s o é ten ta r controlar o mundo, dirigir o universo.

Page 95: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Às vezes perm ito qu e a s pes s oa s a bu s em de m im . Quando fa ço is s o, é im por ta n te fa la r e coloca r u m lim ite. Qu a n do faço isso costumo obter bons resultados.

JOKO: Tu do bem fa la r e es cla recer , s e o fizerm os com a s pa la vra s verda deira s . E s e s en t im os qu e a bu s a ra m de n ós , p recis a m os recon h ecer qu e ta lvez ten h a m os con s en t ido com es s e a bu s o. Qu a n do vem os is s o, pode vir a s er des n eces s á r io d izer qu a lqu er cois a . Em vez de ten ta r edu ca r ou s a lva r a ou tra pes s oa (o qu e n u n ca é a lgo qu e n os d iz res peito), podem os a pen a s aprender.

NÃO JULGAR

Exis te a s egu in te pa s s a gem n o Dhammapada, vers o 50 : "Qu e n in gu ém en con tre defeitos n os ou tros . Qu e n in gu ém en xergu e a s om is s ões e a s fra qu eza s a lh eia s . Ma s qu e ca da u m veja s eu s p rópr ios a tos , feitos ou n ã o". Es s e é u m a s pecto cen tra l de n os s a prática. Embora a prática possa nos tornar mais cônscios de nossa ten dên cia a ju lga r os ou tros , n a vida com u m a in da a gim os a s s im . Por sermos humanos, julgamo-nos uns aos outros. Alguém faz algo qu e n os pa rece gros s eiro, in delica do ou in s en s a to, e n ã o podem os deixa r de repa ra r n is s o. Mu ita s vezes por d ia vem os pes s oa s fazendo coisas que parecem de alguma maneira defeituosas.

Nã o é qu e todos a ja m o tem po todo da m a n eira a p ropr ia da . As pes s oa s em gera l a pen a s fa zem a qu ilo qu e n ã o qu erem os . Qu a n do fa zem o qu e fa zem , n o en ta n to, n ã o é n eces s á r io qu e a s ju lgu em os . Nã o s ou im u n e a is s o; percebo-m e ju lga n do os ou tros também. Todos fazemos isso. Por isso recomendo uma prática para n os a ju da r a n os fla gra r n o a to de ju lga r : s em pre qu e p ron u n cia rm os o n om e da ou t ra pes s oa devem os obs erva r o qu e a cres cen ta m os a es s e n om e. O qu e d izem os ou pen s a m os acerca da pes s oa ? Qu e es pécie de rótu lo u s a m os ? In s er im os a pes s oa em a lgu m a ca tegor ia ? Nin gu ém dever ia s er redu zido a u m rótu lo e, n o en ta n to, em ra zã o de n os s a s p referên cia s e a vers ões , fa zemo-lo assim mesmo.

Su s peito qu e s e você en t ra r n es s a p rá t ica des cobr irá qu e n ã o con s egu e pa s s a r cin co m in u tos s em ju lga r . É s u rp reen den te. Qu erem os qu e o com por ta m en to da ou tra pes s oa s eja a pen a s

Page 96: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

a qu ilo qu e qu erem os

e qu a n do n ã o é, n ós a ju lga m os . Nos s a

vida em vigília é repleta desses julgamentos.

Pou cos de n ós a gred im os fis ica m en te os ou tros . O m eio m a is com u m de a gred ir é com a n os s a boca . Com o a lgu ém d is s e: "Exis tem dois m om en tos em qu e s e deve m a n ter a boca fech a da - n a da n do e qu a n do você es tá za n ga do". Qu a n do ju lga m os qu e os ou tros es tã o er ra dos , a ca ba m os es ta n do com a ra zã o

e

gostamos disso.

Com o d iz a pa s s a gem , dever ía m os a ten ta r pa ra o n os s o p rópr io com por ta m en to em vez de ju lga r . "Ma s qu e ca da u m veja s eu s p róp r ios a tos , feitos ou n ã o." Em vez de olh a r à volta con s ta n tem en te e ju lga r todo m u n do, veja m os a s n os s a s p róp r ia s con du ta s : o qu e fizem os e o qu e n ã o fizem os . Nã o p recis a m os n os ju lga r , m a s ba s ta obs erva r o a to. Se com eça m os a n os ju lga r , es t ipu la m os u m idea l, u m cer to m odo qu e pen s a m os deva s er o n os s o. Is so ta m bém n ã o a ju da . Precis a m os en xerga r n os s os ver -da deiros pen s a m en tos , tom a r con s ciên cia do qu e é de fa to ver -da deiro pa ra n ós . Se fizerm os is s o, irem os n ota r qu e, s em pre qu e ju lga m os , n os s o corpo s e ten s ion a . Por t rá s do ju lga m en to es tá u m pen s a m en to a u tocen tra do qu e p rodu z ten s ã o n o corpo. Com o tem po, es s a ten s ã o torn a -se-n os p reju d icia l e, in d ireta m en te; p reju d ica os ou tros . A ten s ã o n ã o é a ú n ica ca pa z de ca u s a r da n os ; os ju lga m en tos qu e expres s a m os a res peito dos ou tros (e de n ós também) causa igualmente seus danos.

Toda vez qu e d is s erm os o n om e da pes s oa é ú t il n ota r s e a firm a m os m a is do qu e u m fa to. Por exem plo, o ju lga m en to "ela é des a ten ta " va i a lém dos fa tos . Os fa tos s ã o qu e ela fez o qu e fez

por exem plo, d is s e qu e ia m e telefon a r e n ã o telefon ou . Dizer qu e ela é des a ten ta é m eu ju lga m en to pes s oa l n ega t ivo, a cres cido a o fa to. Irem os repa ra r qu e fica m os in ces s a n tem en te fa zen do es s a es pécie de ju lga m en to. A p rá t ica s ign ifica tom a r con s ciên cia dos m om en tos em qu e a gim os a s s im . É im por ta n te n ã o n egligen cia r grandes áreas de nossa vida e boa

ALUNO: Es tá cer to d izer : "Ela d is s e qu e ia telefon a r e n ã o tele-fonou"?

JOKO: Depen de de com o é d ito. Se "a pres en ta m os os fa tos " de m odo a cu s a dor , es ta m os s em dú vida em it in do u m ju lga m en to, mesmo que as palavras pareçam apenas descrições de fatos.

Page 97: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Qu a n do n ota m os os er ros dos ou t ros , é ú t il s a ber o que não fazer. De certo modo, deveríamos ser gratos por seus erros.

JOKO: Sim , é ú t il ver p rofes s ores n a s ou tra s pes s oa s . Ma s , s e n os s o a p ren d iza do im plica ver os ou tros com o "er ra dos ", a in da estamos nas malhas do julgamento.

Se n os m a n tem os a corda dos e n os des p im os de n os s a s emoções, nossa tendência é aprender. Quase sempre, porém, o que fa zem os é n os con tra r ia r de a lgu m a m a n eira . Em n os s a con tra r ieda de ju lga m os os ou tros e n ós m es m os . Am ba s a s a t i-tudes são nocivas e infrutíferas.

ALUNO: Min h a ten dên cia é fica r de b ico fech a do a res peito dos ou tros . Ma s obs ervo qu e, qu a n do fico com ra iva ou con tra r ia do, m eu s ju lga m en tos a pa recem de form a in d ireta , n u m a a t itu de qu e tom o ou em com por ta m en tos pa s s ivo-agress ivos . Pa ra m im is s o é realmente muito difícil de trabalhar.

JOKO: A fra s e cen tra l pa ra is s o é: "Qu e ca da u m veja s eu s p rópr ios a tos , feitos ou n ã o". Is s o s im ples m en te qu er d izer ob-s erva r n os s a a t itu de, n os s os pen s a m en tos , n os s o com por ta m en to. E retornar à vivência corporal básica da raiva, de fato senti-la.

ALUNA: Às vezes com eça m os a n os qu eixa r e fa zer in t r iga s a res peito do pa t rã o, lã n o t ra ba lh o. Se eu m e recu s o a pa r t icipa r , é com o s e eu fos s e a lh eia ou a r roga n te e a cred ita s s e qu e s ou m elh or que os outros.

JOKO: Es s a é u m a s itu a çã o d ifícil de s e t ra ba lh a r . Um dos s in a is da p rá t ica h a b ilidos a é es ta r p res en te s em pa r t icipa r de a ções p reju d icia is . Pa ra você, is s o poder ia s ign ifica r es ta r n u m gru po qu e ju lga e é cr ít ico, m a s perm a n ecer a cr ít ica e cu ida r para n ã o a gir de m odo a s er d iferen te ou s u per ior . Pode a con tecer . De que maneira isso poderia ser feito? O que seria útil?

ALUNO: Bom humor.

JOKO: Sim, o bom humor ajuda. O que mais?

ALUNO: Não julgar os outros que estão tendo atitudes críticas.

JOKO: Sim . Se todos os ou tros es tã o fa zen do fofoca e n ós decidim os qu e n ã o va m os a gir a s s im , p rova velm en te es ta rem os n os s en t in do s u per iores , "m a is s a n tos " qu e eles . Pode s er qu e ta m -bém h a ja ra iva con t ra eles . Se n os s a a t itu de con t iver ra iva e s en s a çã o de s u per ior ida de, es s e ju lga m en to a pa recerá . Se h ou -

Page 98: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

verm os p ra t ica do h on es ta m en te com a n os s a ra iva , n o en ta n to, ele ta lvez s eja m ín im o e n ã o cr ie p rob lem a s . Podem os a pen a s es ta r presentes no grupo de modo natural.

ALUNO: J á n otei qu e, qu a n do es tou n u m gru po on de s e fa z in t r iga ou s e cr it ica a lgu ém e eu s im ples m en te deixo qu e fa lem s em m e en volver em s u a s op in iões , é com u m eles a ca ba rem da n do a volta e ven do o ou t ro la do da qu es tã o. Qu a n do ten to in ter fer ir já n o com eço da s itu a çã o, porém , a s cr ít ica s a pen a s a u m en ta m . Se d is cu to e ten to a pon ta r a s boa s qu a lida des da pes s oa n a ber lin da , fica tudo uma confusão.

JOKO; Sim . Con form e va m os n os torn a n do m a is es cla recidos em fu n çã o de n os s a p rá t ica , n os s a ten dên cia é en con t ra r m a n eira s mais habilidosas de lidar com qualquer coisa que apareça.

ALUNO: Em lu ga r de fa la r a res peito da pes s oa cr it ica da , é ú t il retom a r o fio da con vers a com a pes s oa qu e es tá ju lga n do e m os tra r u m pou co de com preen s ã o por s eu s s en t im en tos . Por exem plo, s e a lgu ém d iz "Es s a pes s oa s em pre s e a t ra sa ", podemos d izer "Ta lvez s eja d ifícil pa ra você ter de es pera r . Vejo qu e você parece contrariado",

ALUNO: E qu a n to a ju lga m en tos pos it ivos ? Exis te u m a es cola de pen s a m en to a res peito de com o t ra ba lh a r com cr ia n ça s qu e afirm a qu e n ã o é s a u dá vel pa ra ela s rotu lá -la s de m odo a lgu m , s eja pos it iva , s eja n ega t iva m en te. Qu a n do d izem os "Com o você é u m m en in o lega l!" ou "Ma s qu e es per to!", es ta m os coloca n do-as numa caixinha.

JOKO: O m elh or é n ã o ju lga r o ou tro de jeito n en h u m . Podem os n o en ta n to a p rova r s u a s con du ta s . Pa ra u m a cr ia n ça poder ía m os d izer : "Qu e lin do des en h o!". Qu a n to m a is es pecíficos puderm os s er , m elh or . Em vez de "Belo t ra ba lh o o s eu !", podem os comentar "A introdução está realmente boa", ou "Seus exemplos de sustentação do argumento são muito pertinentes".

As cr ia n ça s s ã o m en os a m ea ça dora s pa ra n ós do qu e os a du ltos . Es pera m os deles qu e s a iba m o qu e es tã o fa zen do e por is s o es ta m os s em pre p ron tos a ju lgá -los e en con tra r s eu s defeitos. Da m es m a form a con os co: pen s a m os qu e dever ía m os s a ber a qu ilo que estamos fazendo.

ALUNO: O que faz«r quando me perceber julgando os outros?

Page 99: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Qu a n do n os fla gra rm os ju lga n do, p recis a m os repa ra r n os pen s a m en tos qu e con s t itu em es s e ju lga m en to, com o por exemplo "pen s a r qu e é u m id iota " e s en t ir a ten s ã o n o corpo. Por trás de n os s os ju lga m en tos es tá s em pre a ra iva ou o m edo. É ú t il s en t ir a ra iva ou o m edo em vez de perm it ir qu e es s a s em oções governem nossos comportamentos.

O p rob lem a é qu e gos ta m os de fa la r de m odo cr ít ico dos ou tros , e is s o ca u s a s em pre p rob lem a s . Se a lgo a con tece qu e n os in s p ira u m a n eu tra lida de im pa rcia l, em gera l lida m os m u ito bem com a s itu a çã o. Porém , a res peito de qu a s e toda s a s cois a s n ã o mantemos uma neutralidade especial. È por isso que nossa prática tem tanta importância.

ALUNO: Obs ervo qu e, s e ju lgo a pes s oa em m eu p r im eiro con ta to com ela , es s e ju lga m en to colore a pa r t ir de en tã o todo o meu relacionamento com essa pessoa. Minha tendência é depender desse julgamento e simplesmente esquecer de praticar com ele.

JOKO: Sim . Form u la m os u m a n oçã o fixa . Na p róxim a vez qu e virm os es s a pes s oa , n os s a n oçã o já es ta rá fixa e poderem os observar ainda menos aspectos a respeito de como ela realmente é.

ALUNO: Cr it ica r a pes s oa pa ra a lgu ém pa rece torn a r o ju lga m en to a in da m a is for te. Se, por exem plo, u m a ou tra pes s oa e eu con corda m os qu e a lgu ém é des a ten to, es s e ju lga m en to torn a -se sólido e difícil de ser abalado.

JOKO: Sim . Um a gra n de pa r te da qu ilo qu e den om in a m os a m iza de redu n da em ju lga m en tos e a t itu des cr ít ica s qu e tem os em comum, relativos a outras pessoas e acontecimentos.

ALUNO: Os ju lga m en tos n ã o s ã o s em pre fa ls os ? Vem os tã o pouco da outra pessoa.

JOKO: Nã o d ir ia qu e n ós es ta m os s em pre equ ivoca dos . Som os incompletos. Por exemplo: todas as pessoas são, uma vez ou outra, des a ten ta s . S im ples m en te n ã o reflet im os s obre u m a cois a do com eço a o fim ; n ã o p res ta m os toda a a ten çã o pos s ível. Ma s , qu a n do rotu la m os a lgu ém de "des a ten to", n ã o en xerga m os essas outras centenas e milhares de coisas que ele faz. Nossa tendência é n os in teres s a rm os a pen a s pelo qu e n os a feta de m a n eira d ireta . É por is s o qu e, qu a n do n os lem bra m os de n os s a in fâ n cia , s em pre lem bra m os do qu e foi ru im . Nã o tem os o m es m o in teres s e pela s cois a s boa s qu e fizera m pa ra n ós . Nos s a ten dên cia é recorda r

Page 100: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

qu a lqu er cois a qu e pa reça ter s ido a m ea ça dora. Se a lgu ém n os a gr ide, n ã o tem os in teres s e pela s ou tra s cois a s qu e ela fa z. No qu e n os d iz res peito, es s a pes s oa torn a -s e in a ceitá vel. Se n os qu eixa m os dela pa ra os dem a is e eles con corda m con os co, es tá cr ia da u m a s ólida rede de t ra n s m is s ã o de ju lga m en tos . A a t itu de n ega t iva qu e form a m os a res peito dela en ven en a o m odo pelo qu a l ela é receb ida pelos ou tros , in clu s ive por a qu eles qu e n ã o têm dela u m a exper iên cia d ireta . Por terem ou vido a fofoca , ta m bém a rejeita m . Es s e ju lga m en to cu m u la t ivo é a cois a m a is perniciosa qu e os s eres h u m a n os fa zem u n s com os ou tros . J u lga m os a s pessoas e as rejeitamos sem conhecê-las em absoluto.

Algu m a vez vocês já pa s s a ra m pela exper iên cia de ou vir a lgu ém des creven do u m a pes s oa qu e vocês n u n ca t in h a m vis to n a vida ? Sen t im os com o s e já a con h ecês s em os a n tes m es m o de vê-la pela p r im eira vez. Qu a n do a en con tra m os , con s idera m o-la totalmente diferente da descrição. É surpreendente.

ALUNO: Às vezes é tera pêu t ico con vers a r com u m a pes s oa a m iga a res peito de u m a s itu a çã o d ifícil qu e exis te en t re m im e uma pessoa. Isso sempre pode ser bom?

JOKO: Só s e es s a con vers a for es t r ita m en te con fiden cia l. E , mesm o a s s im , é m elh or a pen a s des crever o com por ta m en to da ou tra pes s oa em term os qu e s e refira m a os fa tos , pa ra en tã o mencionar seus sentimentos pessoais a respeito. Precisamos tomar m u ito cu ida do. Se con s egu irm os perm a n ecer n o "Obs ervo qu e es tou pen s a n do qu e ela é in s en s a ta ", ou "Sin to-m e rea lm en te contrar ia do e ten s o", ót im o. Ma s qu a n do es cor rega m os pa ra "Ela é mesmo uma desmiolada, não é?" perdemos a prática de vista.

ALUNO: Pen s o qu e é im por ta n te lem bra r o qu e você a s s in a lou qu a n do fa la m os rea lm en te m a l de a lgu ém , pois a s s im es ta m os a gred in do a n ós m es m os . Há u m a con tra çã o qu e ocorre qu a n do falo mal de alguém ou mesmo só penso mal.

JOKO: Sim , n os s o corpo e n os s a m en te fica m con t ra ídos . Sem pre pa ga m os por is s o, de m u ita s m a n eira s . As ou tra s pes s oa s também pa ga m . Su giro qu e, n o m in u to em qu e o n om e de a lgu ém es ca pa de s u a boca , você p res te a ten çã o n o qu e a cres cen ta a es s e n om e. O qu e d is s em os foi u m fa to? Ou é u m ju lga m en to? Por exem plo, s e Lis a deixou a lgu m a cois a n o ca m in h o e eu pos s o t ropeça r , podem os d izer "Lis a deixou u m a cois a n o ch ã o on de pos s o ta lvez t ropeça r . É m elh or eu tom a r cu ida do", podem os d izer

Page 101: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

"Lisa é um problema. É tão descuidada!". Esse não é um fato, é um julgamento.

ALUNO: Meu s ju lga m en tos pa recem m u ito pers is ten tes . Atra ves s o per íodos n os qu a is ten h o pen s a m en tos n ega t ivos a res peito de u m a pes s oa vezes e vezes s egu ida s . Pa rece qu e rotu lo es s e pen s a m en to u m m ilh ã o de vezes e con t in u o perden do-o ou t ro milhão de vezes.

JOKO: Sim . Ta lvez s eja p recis o qu e o fa ça m os m u ita s e m u ita s vezes antes que essa tendência se desfaça.

ALUNO; Es tou in t r iga do pela d iferen ça en t re fa tos e ju lga m en tos . Va m os s u por qu e a lgu ém rea lm en te m e a torm en te o tem po todo. Se eu d is s er : "Ela es tá s em pre m e a torm en ta n do", is s o é um fato ou um julgamento?

JOKO: A d iferen ça es tá em com o o d izem os e n o s en t im en to qu e es tá a li a t rá s . Se es ta m os obs erva n do: "É verda de, s im . Ela m e a torm en ta ", is s o é u m fa to. Se n os qu eixa m os , é u m ju lga m en to. O tom da voz é uma das pistas.

ALUNO: Se n os fla gra m os ju s to n a qu ele m om en to em qu e ía m os com eça r a ju lga r u m a ou tra pes s oa e n ã o d izem os n a da , parece que nossa disposição é, naquele momento, sermos nada.

JOKO: Is s o é verda de. Qu a n do ju lga m os , reforça m os n os s a ident ida de es pecia l com o pes s oa qu e ju lga . Qu a n do m a n tem os a boca fechada, temos de desistir dessa identidade por um momento. E por is s o qu e a técn ica qu e s u ger i é rea lm en te t rein a r com a qu ilo que o budismo chama de "não-eu".

ALUNO: Percebo qu e, qu a n do en con tro pes s oa s qu e des con h eço, s e eu n ã o d is s er n a da de p ropós ito a res peito dela s , n ã o pa rece qu e eu con s iga m e a fer ra r a op in iões a res peito dela s . Is s o m e perm ite perceber com o é im por ta n te fa la r pa ra form u la r julgamentos.

JOKO: Sim , em bora ta m bém pos s a m os form u la r ju lga m en tos s em d izer u m a s ó pa la vra . Ma is u m a vez, p recis a m os obs erva r os ju lga m en tos qu e t iverm os form a do. Precis a m os lem bra r qu e a m a ior pa r te da p rá t ica pode s er res u m ida n o term o delicadeza. Em qualquer situação, o que é delicadeza?

Page 102: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

IV. Mudança

PREPARO DO TERRENO

De tem pos em tem pos , u m de m eu s a lu n os pa s s a por u m a d is creta revira volta , u m a pequ en a percepçã o es pecia l ou kensho. Algu n s cen tros zen con cen tra m -s e n es s a s exper iên cia s e dã o-lhes m u ita ên fa s e. Is s o a qu i n ã o a con tece. As vivên cia s s ã o in teres s a n tes : s e, por u m m om en to, a lgu ém en tra n o p res en te a bs olu to, ocor re u m a m u da n ça . Es s a m u da n ça n ã o du ra , s em pre es cor rega m os de volta pa ra os n os s os m eios u s u a is de fa zer a s cois a s . Ma s , por u m cer to tem po, ta lvez u m s egu n do, ta lvez u m a h ora , ta lvez s em a n a s , tu do o qu e era u m prob lem a n ã o o é m a is . En ferm ida des per tu rba dora s e lu ta s de todos os t ipos de repen te s eren a m . Por u m in s ta n te, a vida ficou de pon ta -ca beça . Vem os a s cois a s com o ela s de fa to s ã o. Ter es s a s exper iên cia s n ã o s ign ifica m u ito em s i. Ma s pode a s s in a la r -n os o ca m in h o pa ra es ta rm os n o p res en te a bs olu to ca da vez m a is . Es ta r n o p res en te é o pon to cen tra l da p rá t ica s en ta da e da p rá t ica em gera l: a ju da -n os a s er m a is s en s a tos d ia n te da vida , m a is com pa s s ivos , m a is or ien ta dos ru m o a o qu e p recis a s er feito. Torn a m o-n os m a is eficien tes em n os s o t ra ba lh o. Es s es res u lta dos s ã o m a ra vilh os os ; n ã o obs ta n te, não podemos nos empenhar em consegui-los ou fazê-los acontecer. O m á xim o qu e n os é pos s ível é p repa ra r a s con d ições n eces s á r ia s . Precis a m os ter cer teza de qu e o s olo es tá bem prepa ra do, de qu e es tá r ico, s olto e fér t il, pa ra qu e, qu a n do a s em en te ca ir , b rote ra p ida m en te. A ta refa do a lu n o n ã o é ca ça r res u lta dos , m a s es ta r n o p repa ro do ca m in h o. Com o d iz a Bíb lia : "Prepa ra o ca m in h o para o Senhor". Esse é o nosso trabalho.

Em cer to s en t ido, o n os s o ca m in h o n ã o é n en h u m ca m in h o. O ob jet ivo n ã o é ch ega r em n en h u m a pa r te. Nã o h á gra n des m is tér ios , n a verda de. O qu e p recis a m os fa zer é a lgo d ireto e objet ivo. Nã o qu ero d izer com is s o qu e s eja fá cil; o "ca m in h o" da p rá t ica n ã o é u m a es t ra da livre. Es tá en tu lh a da de pedra s pon t ia gu da s qu e podem fa zer -n os t ropeça r ou ra s ga r n os s os s a -pa tos . A vida em s i é rep leta de obs tá cu los . En con trá -los é o qu e em gera l fa z a s pes s oa s irem a os cen tros zen . O ca m in h o da vida

Page 103: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pa rece s er p r in cipa lm en te com pos to por d ificu lda des , por cois a s qu e n os dã o t ra ba lh o. Apes a r d is s o, qu a n to m a is tem po p ra t ica -m os , m a is com eça m os a en ten der qu e a qu ela s pedra s pon t ia gu das do caminho são de fato jóias preciosas, pois nos ajudam a preparar a s con d ições a dequ a da s pa ra n os s a s vida s . As pedra s são d iferen tes con form e a pes s oa . Um a pode p recis a r des es pera da m en te de m a is tem po s ozin h a ; ou tra pode p recis a r des es pera da m en te de m a is tem po com a s ou tra s pes s oa s . A ped ra pontiagu da pode s er t ra ba lh a r com u m a pes s oa des a gra dá vel, ou viver com a lgu ém d ifícil de s e leva r . As ped ra s pon t ia gu da s podem ser seus filhos, seus pais, qualquer pessoa. Não se sentir bem pode s er s u a pedra pon t ia gu da . Perder o em prego, a r ru m a r ou tro, preocupar-se com isso. Existem pedras pontiagudas em todo lugar. O qu e m u da com os a n os da p rá t ica é ch ega r a s a ber a lgu m a cois a qu e você n ã o s a b ia a n tes : qu e n ã o exis tem pedra s pon t ia gu da s , a es t ra da es tá cober ta de d ia m a n tes . Qu a is s ã o ou tra s pedra s pontiagudas que, na realidade, são diamantes?

ALUNA: A morte do meu marido.

ALUNO: Prazos.

ALUNO: Doenças.

JOKO: Sim , m u ito bem . O qu e é n eces s á r io pa ra n ós , s eres human os , n os da rm os con ta de qu e a s pedra s pon t ia gu da s de n os s a s vida s s ã o n a rea lida de d ia m a n tes ? Qu a is s ã o a lgu m a s da s condições que nos tornam possível praticar?

Qu a n do s om os bem n ova tos em term os de p rá t ica , pode s er im pos s ível qu e en xergu em os u m gra n de t ra u m a com o u m presente, a pedra pon t ia gu da com o u m d ia m a n te. Em gera l é m elh or com eça r a p rá t ica n u m a época em qu e a vida da pes s oa n ã o es tá m u ito revira da . Por exem plo, qu a n do a m u lh er a ca bou de ga n h a r u m bebê, o p r im eiro m ês n ã o é u m a boa h ora pa ra com eça r a prática

com o eu m es m a bem m e lem bro. É a con s elh á vel começa r a p ra t ica r n u m per íodo m a is ca lm o. É m elh or es ta r em con d ições de s a ú de ra zoá veis . Um a s a ú de u m pou co p recá r ia n ã o elim in a a pos s ib ilida de da p rá t ica , m a s en ferm ida des gra ves tornam-n a m u ito d ifícil de com eça r . Aju da ta m bém a pes s oa es ta r em con d ições ra zoa velm en te boa s de con d icion a m en to fís ico. A prática é fisicamente cansativa.

Page 104: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Qu a n to m a ior o tem po de n os s a p rá t ica , m en os im por ta n tes s ã o es s es p ré-requ is itos . Ma s s em eles , n o in ício, a s ped ra s tornam-s e gra n des dem a is . Des s e jeito n ã o con s egu im os en xergar ca m in h o n en h u m pa ra p ra t ica r . Qu a n do a pes s oa ficou a n oite in teira a corda da com u m bebê ch ora n do e s ó con s egu iu dorm ir du a s h ora s , es s a n ã o é u m a boa h ora pa ra s e fa zer z az en , S e o corpo da pes s oa es tá s e des peda ça n do ou s e ele es tá in feliz, também n ã o es tá n u m bom m om en to pa ra com eça r . Qu a n to m a is p ra t ica rm os , m a is a s d ificu lda des da vida qu e s e n os a p res en ta m podem s er con s idera da s verda deira s jóia s . Ca da vez m a is , os p rob lem a s n ã o ca n cela m a p rá t ica , m a s , em vez d is s o, es t im u lam-n a . Em lu ga r de pen s a r qu e é a p rá t ica qu e é d ifícil dem a is , qu e tem os m a is p rob lem a s do qu e s u por ta m os , vem os qu e os p rob lem a s em s i s ã o a s jóia s , e ded ica m o-n os a com eça r com eles u m t ra ba lh o qu e n u n ca a n tes pu dem os s on h a r . Em m in h a s en t revis ta s com os a lu n os , ou ço con s ta n tes rela tos a res peito des s a s m u da n ça s : "Há t rês a n os , eu n ã o ter ia con s egu ido de jeito n en h u m da r con ta des ta s itu a çã o, já h oje...". Es s a é a revira volta , o p repa ro do ter ren o. Is s o é o qu e o corpo e a m en te p recis a m pa ra de fa to a con tecer a t ra n s form a çã o. Nã o é qu e o p rob lem a des a pa reça ou qu e a vida "m elh ore"; a vida t ra n s forma-se lentamente

e a s pedra s pon t ia gu da s qu e od ia m os s e torn a m jóia s bem -vin da s . Pode s er qu e n ã o exu ltem os qu a n do virm os qu e elas aparecem em nosso caminho, mas valorizamos a oportunidade qu e rep res en ta m e, s en do a s s im , a colh em o-la s em vez de n os es qu iva rm os dela s . É es s e o fim de n os s a s qu eixa s a res peito da vida . Até a qu ela pes s oa d ifícil, qu e cr it ica você, qu e n ã o res peita a sua opinião, ou o que for todos têm alguém ou alguma coisa que é a pedra n o ca m in h o. Es s a é u m a pedra p recios a : é u m a oportunidade, uma jóia para recolher.

Nin gu ém en xerga a jóia logo de ca ra . Nin gu ém a vê por com pleto. Às vezes podem os en xergá -la n u m a á rea , m a s n ã o em ou tra . ,As vezes vem os a jóia e em ou tra s n ã o con s egu im os localizá-la. Podemos nos recusar de modo taxativo a vê-la; pode ser que não queiramos ter nada que ver com ela.

Mes m o a s s im devem os n os h a ver o tem po todo com es s e p rob lem a bá s ico. Porqu e s om os h u m a n os , u m a gra n de pa r te do tem po n ós n em qu erem os fica r s a ben do dela . Por qu ê? Porqu e havermo-n os com ela s ign ifica u m a vida a ber ta pa ra a s d ificu l-da des em vez de fu ga d ia n te da s a dvers ida des . Em gera l, es ta m os

Page 105: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ten ta n do s u bs t itu ir a lgu m a cois a pela d ificu lda de. Qu a n do es ta m os ch eios dos filh os , por exem plo, gos ta r ía m os de devolvê-los e receber ou tros n ovos . Mes m o qu a n do con t in u a m os com eles , en con tra m os m a n eira s s u t is de "devolvê-los ", em lu ga r de perm a n ecer com a rea lida de de qu em s ã o. Lida m os com todos os ou tros p rob lem a s da m es m a form a : tem os m a n eira s s u t is de "devolver" quase tudo, de escolher não lidar com aquilo.

Engalfinharmo-n os com a rea lida de de n os s a vida fa z pa r te da in term in á vel p repa ra çã o do ter ren o. Às vezes p repa ra m os bem u m pequ en o s etor do ter ren o. Podem os ter b reves vis lu m bres de ilu m in a çã o, m om en tos qu e a con tecem de repen te. Ain da a s s im , exis tem m u itos m a is a cres de ter ra qu e n ã o fora m cu lt ivados

en tã o con t in u a m os in do a d ia n te, a b r in do m a is e m a is a n os s a vida . É is s o tu do qu e de fa to im por ta . A vida h u m a n a dever ia s er com o u m voto, ded ica do à des cober ta do s ign ifica do de s e viver . O s ign ifica do do viver n ã o é de fa to com plica do, m a s n os a pa rece com o qu e en volto por u m véu qu e é feito do m odo com o en xerga m os n os s a s d ificu lda des . É p recis o a m a is pa cien te da s p rá t ica s pa ra com eça rm os a en xerga r is s o, pa ra des cobr irm os qu e as pedras pontiagudas são verdadeiras jóias.

Na da d is s o tem a lgo qu e ver com ju lga m en tos , com s erm os "boas" ou "más" pessoas. Apenas fazemos o melhor que podemos, a ca da m om en to da do. O qu e n ã o vem os , n ã o vem os . Es s e é o "x" da p rá t ica : a m plia r o "bu ra qu in h o da fech a du ra " qu e por vezes en con tra m os , pa ra qu e s e torn e ca da vez m a is la rgo. Nin gu ém o loca liza o tem po todo. Eu com cer teza n ã o. As s im , con t in u a m os tentando enxergar do mesmo jeito.

De cer to m odo, a p rá t ica d iver te: olh a r pa ra a m in h a p rópria vida e s er h on es ta a res peito dela é d iver t ido. É d ifícil, h u m ilh a n te, des en cora ja dor ; em cer to s en t ido, porém , é en gra ça do, porqu e é es ta r viva . Ver a m im e à m in h a vida com o s ã o rea lm en te é en gra ça do. Depois de todo o em pen h o, a evita çã o, a n ega çã o e os des vios por ou tros ca m in h os , é p rofu n da m en te s a t is fa tór io qu e, por u m s ó s egu n do, es teja m os com a vida ta l com o ela é. Es s a s a t is fa çã o é o p rópr io cern e qu e n os con s t itu i. A pes s oa qu e s om os es tá a lém da s palavras

a pen a s o poder a ber to da vida , manifestando-s e s em pre em toda s a s es pécies de cois a s in teres s a n tes , m es m o qu e s eja em n os s a p rópr ia in felicida de e a t ra vés de lu ta s . As a dvers ida des s ã o a o m es m o tem po ter r íveis e curativas. Isso é o que significa preparar o terreno. Não precisamos

Page 106: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

n os p reocu pa r a res peito dos pequ en os m om en tos ou a ber tu ra s qu e ir rom pem . Se t iverm os u m s olo fér t il e bem prepa ra do, podemos semear qualquer coisa, que crescerá.

Qu a n do efetu a m os es s e t ra ba lh o com toda a pa ciên cia , chega m os n u m a s en s a çã o d iferen te de n os s a s vida s . Há pou co tem po ou vi de u m a lu n o qu e m ora lon ge e fa la va com igo a o telefon e qu e n ã o con s egu ia a cred ita r n o qu e es ta va a con tecen do. "Qu a s e o tem po todo a m in h a vida é u m a gos tos u ra ." Pen s ei com igo m es m a , s im , qu e bom , m a s ... a v id a é m u ito a gra dá vel. Um a vida a gra dá vel in clu i pa decim en tos a fet ivos , decepções , lu to. Faz parte do fluxo da vida permitir que tais momentos transcorram. Eles vêm e vã o, e o lu to fin a lm en te s e t ra n s form a em a lgu m a ou tra cois a . Ma s , s e fica rm os n os qu eixa n do, a pega dos e r ígidos (qu e é com o gos ta m os de fa zer ), en tã o terem os m u ito pou co qu e des fru ta r . Se tem os s ido con s cien tes do p roces s o de n os s a s vida s , in clu s ive dos m om en tos qu e od ia m os , e tem os en tã o a con s ciên cia des s e ódio "Não quero fazer isso, mas vou fazê-lo do mesmo jeito" , a p rópr ia tom a da de con s ciên cia é a vida em s i. Qu a n do perm a n ecem os n es s a percepçã o con s cien te n ã o tem os a qu ela s en s a çã o rea t iva a res peito da vivên cia

es ta m os s im ples m en te viven cia n do. En tã o, n u m da do m om en to, com eça m os a en xerga r : "Oh , m a s qu e cois a ter r ível

e a o m es m o tem po qu e delícia ". Va m os a pen a s s egu in do a d ia n te, p repa ra n do o ter ren o. É o qu a n to basta.

EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS

A ca da s egu n do, es ta m os n u m a en cru zilh a da en t re a in con s ciên cia e a percepçã o con s cien te, en t re es ta r a u s en te e es ta r p res en te, ou en t re a s exper iên cia s e o viven cia r . A p rá t ica d iz res peito a s a ir do â m bito da s exper iên cia s e en t ra r n o da s vivên -cias. O que queremos dizer com isso?

Nos s a ten dên cia é n os exceder com o termo experiência e, qu a n do d izem os "Fiqu e em s u a exper iên cia ", es ta m os fa la n do de m a n eira des cu ida da . Pode n ã o s er p roveitos o s egu ir es s e con s elh o. Em gera l vem os n os s a s vida s com o u m a s ér ie de exper iên cia s . Por exem plo, ten h o a exper iên cia de u m a ou ou tra pes s oa , de m eu a lm oço ou de m eu es cr itór io. Des s e pon to de vis ta , m in h a vida

Page 107: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

n a da m a is é qu e ter u m a exper iên cia a pós a ou tra . En volven do ca da exper iên cia pode h a ver u m d is creto h a lo ou véu em ocion a l n eu rót ico. Em gera l, es s e véu a s s u m e a form a de m em ór ia s , fa n ta s ia s , es pera n ça s pa ra o fu tu ro

a s a s s ocia ções qu e fa zem os

com a exper iên cia , com o res u lta do de n os s os con d icion a m en tos a n ter iores . Qu a n do fa zem os zazen, n os s a s exper iên cia s podem s er dom in a da s por n os s a s recorda ções , a s qu a is podem s er arrebatadoras.

Algo er ra do com is s o? Os s eres h u m a n os realmente têm recorda ções , fa n ta s ia s , es pera n ça s , is s o é n a tu ra l. Qu a n do reves -t im os es s a s exper iên cia s com ta is a s s ocia ções , n o en ta n to, ela s s e torn a m u m ob jeto: u m s u bs ta n t ivo em lu ga r de u m verbo. Sen do assim , n os s a vida s e torn a en con tra r u m ob jeto depois do ou tro: pessoas, o almoço, o escritório. As recordações e as esperanças são a lgo pa recido: a vida s e torn a u m a s ér ie de "is s os " e "a qu ilos ". Cos tu m a m os ver n os s a vida com o en con tros com cois a s qu e existem "lá fora ". A vida torn a -s e du a lis ta : s u jeitos e ob jetos , eu e as outras coisas.

Nã o h á n a da de er ra do com es s e p roces s o

a m en os qu e a cred item os n ele, pois , qu a n do de fa to a cred ita m os qu e es ta m os o d ia in teiro en con tra n do ob jetos , torn a m o-n os es cra viza dos . Por n u ê? Porqu e qu a lqu er ob jeto "lá fora " terá u m d is creto reves t i-m en to de ton a lida de em ocion a l. E en tã o rea gim os em term os de n os s a s a s s ocia ções em ocion a is . No en s in o zen clá s s ico, s om os es cra vos da cob iça , da ra iva e da ign orâ n cia . Ver o m u n do exclus iva m en te por es s e p r is m a é es cra viza dor . Qu a n do n os s o mundo consiste em ob jetos , d ir igim os n os s a vida s egu n do a qu ilo qu e es pera m os de ca da ob jeto: "Será qu e ele gos ta de m im ?"; "Is s o m e ben eficia de a lgu m a form a ?"; "Devo tem ê-la ?". Nos s a h is tór ia e nossas recorda ções a s s u m em o com a n do, e d ivid im os o m u n do em coisas a serem evitadas e coisas a serem alcançadas.

O p rob lem a com es s e t ipo de vida é qu e a qu ilo qu e m e beneficia agora pode ferir-me depois e vice-versa. O mundo está em con s ta n te m u da n ça e por is s o n os s a s a s s ocia ções n os des orientam. Nã o h á a m en or s egu ra n ça n u m m u n do de ob jetos . Es ta m os s em pre em es ta do de a ler ta e des con fia n do a té m es m o da qu ela s pes s oa s qu e d izem os a m a r e de qu em n os m a n tem os p róxim os . En qu a n to a ou tra pes s oa for u m ob jeto pa ra n ós , podem os es ta r certos de que não haverá amor ou compaixão genuínos entre nós.

Page 108: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Se ter exper iên cia s é o n os s o cot id ia n o, qu a l é o ou tro m u n do, o ou tro b ra ço da en cru zilh a da ? Qu a l é a d iferen ça en t re exper iên cia s e vivên cia s ? Qu a l é o ou vir , o toca r , o s a borea r , o ver etc. genuínos?

Qu a n do ocorre a vivên cia , n a qu ele m om en to n ã o s e dá a lgo n u m tem po e n u m es pa ço. Nã o pode s er a s s im , pois , qu a n do ocorre tem po e es pa ço, foi cr ia do u m ob jeto da exper iên cia . Qu a n do toca m os , olh a m os e ou vim os , es ta m os cr ia n do o m u n do do tem po e do es pa ço, m a s a vida em s i

a qu ela qu e vivem os n ã o

está no espaço e no tempo, ela é só vivências. O mundo do tempo e do es pa ço a con tece qu a n do o viven cia r s e redu z a u m a s ér ie de exper iên cia s . No p recis o m om en to em qu e s e es cu ta a lgo, por exem plo, exis te s ó o ou vir , qu e cr ia o s om do a viã o, ou do qu e s eja . Tâ p , tâ p , tâ p , tâ p ... exis te es pa ço en tre ca da ba t ida e ca da u m a dela s é u m ou vir a bs olu to. Es s a é a n os s a vida , e a s s im cr ia m os o n os s o m u n do. Es ta m os cr ia n do-o com todos os n os s os s en t idos e com ta n ta ra p idez qu e n ã o n os é pos s ível a com pa n h a r o p roces s o. O m u n do de n os s a s exper iên cia s es tá s en do cr ia do do n a da , segundo a segundo.

No s erviço qu e a ten dem os d iz u m a da s ded ica tór ia s : "Mu -da n ça in ces s a n te fa z gira r a roda da vida ". Viven cia r , viven cia r , vivenciar

m u da n ça , m u da n ça , m u da n ça . "Mu da n ça in ces s a n te fa z gira r a roda da vida e a s s im a rea lida de é exib ida em toda s a s s u a s m ú lt ip la s form a s . O h a b ita r s os s ega da m en te en qu a n to m u da a s i m es m o liber ta todos os s eres s en s íveis s ofredores e proporciona-lh es gra n de con ten ta m en to." "O h a b ita r s os s ega da -m en te en qu a n to m u da a s i m es m o" qu er d izer s en t ir a pu ls a çã o da dor em m in h a s pern a s , ou vir o s om do ca r ro: a pen a s o viven cia r . Apen a s h a b ita r n a p rópr ia exper iên cia . Até m es m o a dor es tá m u da n do m in u s cu la m en te, s egu n do a s egu n do. "O h abitar s os s ega da m en te en qu a n to m u da a s i m es m o liber ta todos os s eres sensíveis sofredores e proporciona-lhes grande contentamento."

Se es s e p roces s o fos s e cla r ís s im o, n ã o ter ía m os a m en or n eces s ida de de p ra t ica r . O es ta do de ilu m in a çã o é n ã o ter expe-r iên cia s ; em vez d is s o é u m a a u s ên cia de toda s a s exper iên cia s . O es ta do de ilu m in a çã o é o viven cia r pu ro e in ta cto. Is s o é inteiramente diferente de se "ter uma experiência de iluminação". A ilu m in a çã o é a dem oliçã o de toda s a s con s t ru ída s exper iên cia s de pen s a m en tos , fa n ta s ia s , recorda ções e es pera n ça s . Fra n ca m en te, n ã o es ta m os in teres s a dos em dem olir n os s a s vida s ta l com o a

Page 109: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

con h ecem os . Dem olim os a s fa ls a s es t ru tu ra s de n os s a s vida s rotu la n do n os s os pen s a m en tos , d izen do pela m ilés im a vez "Pen s a m en to de qu e is s o e a qu ilo va i a con tecer". Depois de o term os t ido m il vezes , a ca ba m os en xerga n do o qu e é. É a pen a s en ergia pu ra rodop ia n do a pa r t ir de n os s o con d icion a m en to s em a m en or rea lida de. Nã o exis te u m a verda de in t r ín s eca n is s o; é pu ra mudança.

Pa ra n ós é fá cil fa la r des s e p roces s o, m a s n ã o exis te n a da em qu e es teja m os m en os in teres s a dos qu e n a dem oliçã o de n ossas es t ru tu ra s de fa n ta s ia . Tem os o m edo s ecreto de qu e s e a s demolirmos todas seremos nós mesmos demolidos.

Exis te u m a a n t iga h is tór ia s u fi a res peito de u m h om em qu e deixou ca ir s u a s ch a ves n o la do es cu ro da ru a cer ta n oite, cru za n do pa ra a ou tra ca lça da on de h a via lu z, on de poder ia en xerga r a s ch a ves . Qu a n do u m a m igo pergu n tou por qu e es ta va procurando debaixo do facho de luz, em vez de no lugar onde tinha deixa do a s ch a ves ca írem , ele res pon deu ; "Es tou olh a n do a qu i porqu e tem m a is lu z''. É is s o o qu e fa zem os com a n os s a vida : referên cia con h ecida é a qu ela qu e n os s erve pa ra olh a r , Se tem os u m prob lem a , s egu im os t ra jetos fa m ilia res de s olu çã o: pen s a r , rem oer , a n a lis a r ,- m a n ter a lou cu ra de n os s a s vida s em ordem porque é isso que estamos acostumados a fazer. Não tem nenhuma im por tâ n cia qu e n ã o dê cer to. Apen a s fica m os a in da m a is determ in a dos a con t in u a r p rocu ra n do em ba ixo do pos te de lu z. Nã o es ta m os in teres s a dos n a qu ela vida qu e es tá fora do es pa ço e do tem po, con s ta n tem en te cr ia n do o m u n do do es pa ço e do tem po. Nã o es ta m os in teres s a dos n is s o; a liá s , is s o n os a s s u s ta . O qu e n os im pele a a ba n don a r es s e m elod ra m a , a s en ta r com es s a con fu s ã o em pra t ica r? No fu n do, t ra ta -s e en fim do in côm odo com qu e tem os de n os h a ver n a m a n eira com o leva m os a n os s a vida . Além da vida de exper iên cia s qu e s e têm , exis te a vida viven cia da , u m a vida de com pa ixã o e con ten ta m en to. Pois a verda deira com pa ixã o com o o verda deiro p ra zer n ã o s ã o cois a s a s erem exper im en ta da s . Nos s o verda deiro in s t ru tor é a pen a s es te: m u da r , m u da r , m u da r ; viven cia r , viven cia r , viven cia r . O m es t re n ã o es tá n o es pa ço e n o tempo

e n a da m a is é qu e es pa ço e tem po. Nos s a vivên cia da vida ta m bém é cr ia r a p rópr ia vida . "Mu da n ça in ces s a n te fa z gira r a roda da vida e a s s im a rea lida de é exib ida em s u a s m u ita s formas."

Page 110: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Um poem a de W. H. Au den ca p ta a es s ên cia de qu a s e tu do que constitui nosso estado habitual:

Preferiríamos nos arruinar a mudar,

Preferiríamos morrer em nosso pavor

A subir pela cruz do momento

E deixar nossas ilusões morrerem.

Prefer ir ía m os a n tes n os a r ru in a r a m u da r *

m es m o qu e m u da r s eja a es s ên cia do qu e n ós s om os . Prefer ir ía m os m orrer em noss a a n s ieda de, em n os s o m edo, em n os s a s olidã o a s u b ir pela cru z do m om en to e deixa r qu e a li n os s a s ilu s ões m orres s em . E a cru z é ta m bém a en cru zilh a da , a es colh a . Es ta m os a qu i pa ra fa zer essa escolha.

O DIVÃ DE GELO

Qu a n do viven cia m os , perdem os n os s o relacionamento aparentem en te du a lis ta com a s ou tra s cois a s e pes s oa s qu e é "Eu vejo você, com en to a s eu res peito, ten h o pen s a m en tos a cerca de você e de m im ", ou o qu e s eja . O rela cion a m en to du a lis ta n ã o é d ifícil de s er com en ta do, m a s o rela cion a m en to n ã o-dual

o vivenciar

é m a is d ifícil de des crever . Qu ero con s idera r com o n os exim im os de viver de m a n eira em pír ica , com o n os expu ls a mos do jardim do Éden.

En qu a n to cres ce, todo s er h u m a n o decide qu e p recis a de u m a es t ra tégia porqu e n ã o podem os cres cer s em depa ra r com opos ições qu e p rocedem de fon tes qu e pa ra n ós s ã o "n ã o-eu ", de fon tes qu e n os pa recem s er extern a s . Mu ita s vezes s om os con tra r ia dos por pa is , a m igos , pa ren tes e ou tra s pes s oa s . Algu mas vezes es s a a pa ren te opos içã o é in ten s a ; em ou tra s , é moderada ou s u a ve. Ma s n in gu ém cres ce s em des en volver u m a es t ra tégia pa ra lidar com essa oposição.

* W. H. Auden, extraído de "The Age of Anxiety", in Collected Poems, ed. por Edward Mendelson, Nova York: Random House, 1976, p. 407.

Page 111: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Podem os decid ir qu e a m elh or opçã o pa ra s e con s egu ir u m a s obrevivên cia a gra dá vel é torn a r -s e u m a pes s oa a da p tá vel, "a gra dá vel*'. Se is s o n ã o pa rece fu n cion a r , podem os a pren der a a ta ca r os ou tros a n tes qu e eles n os a gr ida m , ou bem recu a m os . Exis tem , por ta n to, t rês es t ra tégia s p r in cipa is pa ra lida rm os com a opos içã o: con form a r-s e em a gra da r , a ta ca r ou recu a r . Todo m u n do emprega uma ou mais dessas estratégias de alguma maneira.

Para conseguirmos manter nossa estratégia, temos de pensar. Sen do a s s im , a cr ia n ça va i ca da vez con fia n do m a is em s eu s ra ciocín ios pa ra ela bora r es s a es t ra tégia . Toda s itu a çã o ou pes soa em s eu ca m in h o com eça a s er a va lia da do pon to de vis ta da es t ra tégia es colh ida . Depois de a lgu m tem po t ra ta m os o m u n do todo com o s e es t ives s e em ju lga m en to e pergu n ta m os : "Es s a pes s oa ou a con tecim en to irá m e fer ir?". Em bora pos s a m os for -mulá-la com s or r is os e civilida de, es s a qu es tã o n os ocorre d ia n te de tudo que encontramos.

Com o tem po a ca ba m os a per feiçoa n do a n os s a es t ra tégia a ta l pon to qu e n ã o a iden t ifica m os m a is con s cien tem en te; a gora es tá n o corpo. Por exem plo, va m os s u por qu e des en volvem os u m a es t ra tégia de recu o. Qu a n do depa ra m os com a lgo ou com a lgu ém , ten s ion a m os o corpo; es s a é a res pos ta h a b itu a l. Podemos ten s ion a r n os s os om bros , n os s o ros to, n os s o es tôm a go ou a lgu m a ou tra pa r te do corpo. O es t ilo pa r t icu la r é ú n ico de ca da pes s oa . E n em s equ er s a bem os qu e es ta m os fa zen do a s s im porqu e, tã o logo a con tra çã o s e dê, des en rola -s e em ca da célu la de n os s o corpo. Nã o tem os de s a ber a res peito d is s o; es tá s im ples m en te a li. Em bora a res pos ta s eja in con s cien te, torn a n os s a vida des a gra dá vel porqu e é u m recu o d ia n te da vida e u m d is ta n cia r -se dela. A contração dói.

Mes m o a s s im , todos s e con tra em . Mes m o qu a n do pen s a mos qu e es ta m os n u m m om en to de rela t iva felicida de, podem os s er ca pa zes de detecta r u m a leve ten s ã o pelo corpo. Nã o é n a da de ext ra ord in á r io e pode s er m u ito d is creta . Qu a n do tu do es tá a n os s o fa vor , n ã o n os s en t im os m a l, m a s a leve con tra çã o n u n ca ces s a . Es tá s em pre a li, em toda s a s pes s oa s qu e exis tem s obre a face da Terra.

As cr ia n ça s a p ren dem a ela bora r s u a s es t ra tégia s in corpo-ra n do tu do o qu e lh es a con tece n es s a referên cia pa ra s eu s is tem a pessoa l. Nos s a s percepções torn a m -s e s elet iva s , in corpora n do os

Page 112: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

even tos qu e s e a ju s ta m a o n os s o s is tem a e elim in a n do os qu e n ã o. Um a vez qu e o s is tem a tem a p reten s ã o de n os m a n ter a s a lvo e s egu ros , n ã o tem os n en h u m in teres s e em en fra qu ecê-lo com informações con tra d itór ia s . Na época em qu e a t in gim os a m a tu r ida de, es s e s is tem a é n ós m es m os . É a qu ilo qu e den om in a -mos ego. Vivem os a pa r t ir dele, ten ta n do loca liza r pes s oa s , s i-tu a ções , em pregos qu e ven h a m a con firm a r n os s a es t ra tégia , evitando aqueles que a ameacem.

Ta is m a n obra s , n o en ta n to, n u n ca s ã o com pleta m en te s a t is -fa tór ia s porqu e en qu a n to viverm os ja m a is con s egu irem os s a ber com exa t idã o o qu e irá a con tecer em s egu ida . Mes m o qu e t ivés -semos a maior parte de nossa vida sob controle, nunca saberíamos com o a lca n ça r es s e con h ecim en to

e n ós s a bem os qu e n ã o s a bem os . As s im , s em pre exis te u m elem en to de m edo. Ele tem de es ta r p res en te. Sem s a ber o qu e fa zer , a pes s oa n orm a l bu s ca em toda pa r te por u m a res pos ta . Tem os u m prob lem a e, n a rea lida de, n ã o s a bem os do qu e s e t ra ta . A vida s e torn a pa ra n ós a p rom es s a que jamais é cumprida porque a resposta não nos satisfaz. E nesse ponto que podemos começar a prática. Só uns poucos felizardos na fa ce des te p la n eta com eça m a en xerga r o qu e p recis a s er feito pa ra s e recu pera r o ja rd im do Éden , qu e é o n os s o Eu em funcionamento genuíno.

Ta lvez con s iga m os a r ru m a r u m com pa n h eiro qu e é s im -p les m en te m a ra vilh os o (em pa r t icu la r n os rela cion a m en tos , a ilu s ã o rein a s obera n a ). Ca s a m o-n os ou va m os viver com es s a pes s oa e... epa ! Se es ta m os p ra t ica n do, es s es "epa s !" podem s er m u ito in teres s a n tes e in s t ru t ivos . Se n ã o es ta m os p ra t ica n do, podem os d is pen s a r o com pa n h eiro e ir a t rá s de a lgu m ou tro. Pa rece qu e a p rom es s a n ã o foi cu m pr ida . Ou com eça m os u m n ovo em prego, ou n ovo p rojeto. No in ício va i tu do m u ito bem , m a s depois com eça m os a perceber a lgu m a s á s pera s verda des , e a des ilu s ã o com eça a in filt ra r -s e. Se es ta m os viven do s egu n do a s d iret r izes de n os s a es t ra tégia , n a da pa rece qu e va i fu n cion a r , porqu e a vida fen om ên ica é, por defin içã o, u m a p rom es s a qu e n u n ca s e cu m pre. Se s a t is fa zem os u m des ejo, fica m os felizes por u m breve in s ta n te, m a s a n a tu reza da s a t is fa çã o de u m da do des ejo é en con tra r im ed ia ta m en te o des ejo s egu in te, e depois m a is u m e depois ou tro, e depois ou tro... Nã o h á com o fica r livre da p res s ã o ou do es t res s e. Nã o con s egu im os a s s en ta r . Nã o en -contramos paz.

Page 113: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Qu a n do n os s en ta m os , o roda m oin h o in ces s a n te em n os s a m en te revela -n os n os s a es t ra tégia . Se rotu la rm os n os s os pen s a -m en tos por m u ito tem po, irem os recon h ecer n os s a es t ra tégia . É es s a p rópr ia es t ra tégia qu e gera os pen s a m en tos ren iten tes . Só u m a cois a em n os s a vida n ã o é a p r is ion a da por es s a es t ra tégia

a vida orgânica, física, do corpo.

Cla ro qu e o corpo es tá receben do pu n ições porqu e reflete n os s a a u tocen tra çã o. O corpo tem de obedecer à m en te; por is s o, se ela está dizendo que o mundo é um lugar terrível, o corpo diz "Ai, com o es tou depr im ido!". No m es m o in s ta n te em qu e a s im a gen s aparecem

com o pen s a m en to, fa n ta s ia ou es pera n ça

o corpo tem de res pon der . Tem u m a res pos ta crôn ica e, à s vezes , es s a resposta exacerba-se em depressão ou enfermidade.

O p r in cipa l p rofes s or qu e t ive em toda a m in h a vida foi u m livro. Ta lvez s eja o m elh or livro s obre zen qu e já foi es cr ito. É u m a t ra du çã o do fra n cês , porém , e o texto n ã o es tá bem en ca dea do; a s s en ten ça s n ã o con s t itu em pa rá gra fos in teiros . Depois de ler u m a des s a s s en ten ça s é pos s ível qu e n os pergu n tem os a tu rd idos : "Ma s o qu e foi qu e ele disse?" Por is s o é u m livro d ifícil; m es m o a s s im , é a .m elh or exp lica çã o do p rob lem a h u m a no qu e já en con trei. Nu m a cer ta época com ecei a es tu da r s eu s en s in a m en tos e o fiz du ra n te dez ou qu in ze a n os . Meu exem pla r pa rece qu e foi pa ra r n a máquina de lavar roupa. Trata-se de A d ou trin a s uprem a de Hubert Ben oit , u m ps iqu ia t ra fra n cês qu e pa s s ou por u m gra vís s im o a ciden te qu e o deixou in ca pa z por m u itos a n os . A ú n ica cois a qu e pod ia fa zer era fica r im óvel, deita do. O p rob lem a h u m a n o era s eu in teres s e in s a ciá vel e, por is s o, u s ou a qu eles a n os de recu pera çã o para mergulhar profundamente nessa questão.

A expres s ã o de Ben oit pa ra a con tra çã o em ocion a l qu e p rocede de n os s os es forços pa ra n os p roteger é "es pa s m o". Ele ch a m a a fa la çã o in ces s a n te do n os s o d iá logo in tern o de "o film e im a gin á r io". O pon to de t ra n s içã o pa ra ele veio qu a n do s e deu con ta de qu e "es s e es pa s m o qu e vin h a ch a m a n do de a n orm a l es tá n o ca m in h o qu e leva a o satori (ilu m in a çã o)... Poder -se-ia in clu s ive d izer qu e a qu ilo qu e deve s er perceb ido, den tro do film e im a gin á r io, é u m a cer ta s en s a çã o de cã ib ra p rofu n da , de u m a per to pa ra lis a n te, de u m fr io im obiliza dor ... e qu e é n es te d iva du ro, im óvel e gela do qu e n os s a a ten çã o deve perm a n ecer fixa , com o s e es t ivés s em os t ra n qü ila m en te es t ira dos con tra u m a roch a du ra ,

Page 114: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

m a s a colh edora , qu e fos s e m olda da exa ta m en te pa ra receber o nosso corpo" *.

O qu e Ben oit es tá d izen do é qu e, qu a n do des ca n s a m os s os s ega dos den tro de n os s a dor , es s e repou s o é o "por tã o s em por teira ". Es s e é o ú lt im o loca l em qu e qu erem os es ta r ; n ã o é a gra dá vel, e todo o n os s o im pu ls o es t ra tégico volta -s e pa ra a s a m en ida des . Nã o; qu erem os a lgu ém qu e n os con for te, qu e n os s a lve, qu e n os dê pa z. Nos s os pen s a m en tos , p la n eja m en tos e p rojetos es t ra tégicos in ces s a n tes ten ta m ju s ta m en te is s o. Apen a s qu a n do perm a n ecem os com a qu ilo qu e es tá por t rá s do film e im a gin á r io e a li des ca n s a m os é qu e com eça m os a ter p is ta s . Cos tu m o exp lica r do s egu in te m odo: em lu ga r de perm a n ecerm os com os n os s os pen s a m en tos , n ós os rotu la m os a té qu e s e a qu ietem u m pou co e en tã o fa zem os o m elh or pos s ível pa ra perm a n ecer com a qu ilo qu e de fa to é

a n ã o-du a lida de qu e é a sensaçã o de n os s a vida n es te exa to m om en to. Is s o con tra r ia tu do a qu ilo qu e qu erem os , tu do o qu e n os s a cu ltu ra n os en s in a , m a s é a única solução real, o único portão de saída.

Qu a n do a s s en ta m os em n os s a s en s a çã o de dor , a ch a m os qu e ela é tã o a pa vora n te qu e n os a gita m os tu do de n ovo. No in s ta n te em qu e a ter r is s a m os n a s en s a çã o de in côm odo, s a lta m os de volta pa ra o film e im a gin á r io. Sim p les m en te n ã o qu erem os es ta r n a rea lida de da qu ilo qu e s om os . Is so é h u m a n o, n em bom n em m a u , e s ã o n eces s á r ios vá r ios a n os de p rá t ica pa ra s e toca r ca da vez m a is a rea lida de, com con for to a o pa ra r por a li, a té qu e por fim , com o d iz Ben oit , é a pen a s u m a roch a du ra , m a s a colh edora, moldada para ajustar-se ao nosso corpo e, enfim, é aí que podemos descansar e ficar em paz.

Às vezes podem os des ca n s a r por u m cu r to per íodo, m a s , por es ta rm os m u ito h a b itu a dos , logo volta m os pa ra o m es m o fa la tór io mental de sempre. E, assim, atravessamos o processo vezes e vezes. Com o tem po, é es s e in ces s a n te p roces s o qu e n os leva à pa z. Se estiver completo, pode ser chamado de satori, ou iluminação.

O film e im a gin á r io gera o es pa s m o e o es pa s m o gera o film e im a gin á r io. É u m ciclo in term in á vel qu e s ó s e rom perá qu a n do es t iverm os d is pos tos a des ca n s a r em n os s a dor . A ca pacidade para

* Hubert Benoit, The supreme doctrine: Psychological studies in zen thought, Nova York: Viking, 1955, p. 140 e 145.

Page 115: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

fa zer is s o s ign ifica qu e n os s en t im os a té cer to pon to des ilu d idos , qu e n ã o es pera m os m a is qu e n os s os pen s a m en tos e s en t im en tos s eja m a s olu çã o pa ra a lgu m a cois a . En qu a n to a lim en ta rm os a es pera n ça de qu e a p rom es s a deverá s er cu m pr ida , n ã o irem os descansar em meio às dolorosas sensações corporais.

Por ta n to, a p rá t ica com põe-s e de du a s pa r tes . Um a é a decepçã o in term in á vel. Tu do em n os s a vida qu e n os decepcion a é u m a m igo ded ica do. E es ta m os todos s en do des a pon ta dos , de u m m odo ou de ou tro. Se n ã o es ta m os decepcion a dos , n u n ca desistim os de n os s o des ejo de pen s a r e de n os recoloca r n o a lto com o vitor ios os . Nin gu ém ga n h a n o fim ; n in gu ém irá s obreviver. Porém es s e a in da é o n os s o im pu ls o, o n os s o s is tem a . Ele s ó pode s er des a r t icu la do com a n os e a n os de p rá t ica e com o des ga s te natural qu e a vida t ra z. Por is s o é qu e n os s a p rá t ica e n os s a vida têm de ser a mesma coisa.

Tem os a ilu s ã o de qu e a s ou tra s pes s oa s irã o n os fa zer felizes , qu e ela s irã o fa zer com qu e a n os s a vida fu n cion e. Até qu e n os livrem os des s a ilu s ã o, n ã o h a verá u m a s olu çã o rea l. As ou t ra s pes s oa s exis tem pa ra n os a legra rm os e n ã o pa ra qu a lqu er ou tro p ropós ito. E la s fa zem pa r te da m a ra vilh a qu e a vida é; n ã o es tã o a qu i pa ra fa zer qu a lqu er cois a por n ós . En qu a n to es s a ilu s ã o n ã o com eça r a s e des fa zer , n ã o irem os n os con ten ta r em perm a n ecer n o es pa s m o, n a con tra çã o em ocion a l. Rodop ia rem os im ed ia ta m en te pa ra lon ge d is s o, retorn a n do logo a os n os s os pen -samentos: "Sim, mas se eu fizer isto as coisas vão melhorar...".

A vida é u m a s ér ie de in term in á veis decepções e é m a ra vi-lhoso qu e s eja a s s im a pen a s porqu e ela n ã o n os dá a qu ilo qu e qu erem os . Percor rer es s e ca m in h o requ er cora gem , e m u ita s pes s oa s , n es ta vida , n ã o o fa rã o. Es ta m os todos em d iferen tes m om en tos do ca m in h o, o qu e es tá m u ito bem . Só a lgu n s pou cos , dotados de uma persistência enorme e que não entendem as coisas toda s da vida com o in s u ltos e s im com o opor tu n ida des , é qu e fin a lm en te com preen derã o. As s im , s e in ves t irm os toda a n os s a en ergia ten ta n do fa zer com qu e a n os s a es t ra tégia fu n cion e m elh or , en tã o es ta m os a pen a s gira n do em cim a de n os s os ca lcanhares. Nossa infelicidade nos perseguirá até o nosso último suspiro.

Por ta n to, n a vida n ã o h á s en ã o opor tu n ida des , s ó opor tu n i-da des . E is s o in clu i qu a lqu er cois a em qu e con s iga m os pen s a r . Até qu e n os s in ta m os des ilu d idos com o film e im a gin á r io qu e

Page 116: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pa s s a m os in ces s a n tem en te d ia n te dos olh os (m a l os a b r im os pela m a n h ã e já com eça a p r im eira s es s ã o), n ã o n os m a n terem os a s s en ta dos n a cã ib ra . Fa rem os pa s s a r m a is a lgu m t rech o do film e. Suponho que seja isso que se esteja dizendo quando se menciona a roda do carma.

Bem , n ã o es tou ped in do a n in gu ém qu e a dote es s a des cr ição com o a lgu m a es pécie de s is tem a de cren ça . A ú n ica m a n eira de con h ecerm os a rea lida de des s a p rá t ica é execu ta n do-a . Depois de a lgu m tem po, pa ra a lgu m a s pes s oa s (à s vezes in term iten temente, m a s depois qu a s e o tem po todo), ocor re o qu e os cr is tã os ch a m a m de "a paz que ultrapassa todo o entendimento".

Mu ita s vezes m e a ju dou em m om en tos d ifíceis pen s a r n a -qu ele d ivã gela do e im óvel e, em vez de lu ta r e b r iga r , a pen a s dispor-m e a des ca n s a r a li. Com o tem po a ca ba m os des cobr in do qu e o d ivã é o ú n ico lu ga r t ra n qü ilo, a fon te da s a ções transparentes.

En qu a n to pa les t ra s obre dharma, tu do is s o s oa p roib it ivo. No en ta n to, a s pes s oa s qu e p ra t ica m o tem po todo s ã o a qu ela s qu e estão des fru ta n do a vida . É es s e o por tã o s em por teira s pa ra o con ten ta m en to. As pes s oa s qu e en ten dem e têm a cora gem de fa zer is s o s ã o a qu ela s qu e even tu a lm en te fica m con h ecen do o qu e é o con ten ta m en to. Nã o es tou fa la n do de u m a felicida de interminável (porque não existe isso), mas de contentamento.

ALUNO; É com u m qu e a s pes s oa s es colh a m u m a des s a s estratégia s , m a s con form e o tem po pa s s a ela s podem a dota r u m a ou tra ? As pes s oa s qu e es colh era m , d iga m os , recu a r e n ã o pa r t icipa r podem , a o s e torn a rem , m a is for tes , decid ir a lgo com o "Bom , ta lvez a gora eu vá m e con form a r u m pou co e a gra da r a os outros". As pessoas alguma vez saem de cima do muro e entram no fluxo da calçada?

JOKO: Mu ita s vezes obs ervei qu e a s pes s oa s qu e a n tes era m depen den tes e con form is ta s com eça m a a s s u m ir a res de u m a fa ls a in depen dên cia . Is s o é n a tu ra l, u m es tá gio a n tes de con s eguirmos s er rea lm en te n ós m es m os . Qu a n to m a is p ra t ica m os a cã ib ra , m a is a t ra n s form a çã o s e a celera . Do pon to de vis ta do m u n do fen om ên ico fa zem os p rogres s os em bora , em s en s o a bs oluto, estejamos sempre bem do jeito que somos.

Page 117: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Qu a n do des ca n s a m os em n os s o des con for to, des cobr i-m os qu e n ã o é a s s im tã o a s s u s ta dor e qu e con s egu im os n os aventurar um pouco?

JOKO: Cer to. Por exem plo, podem os a pren der qu e con s egu im os es ta r depr im idos e a in da a s s im fu n cion a r . S im ples m en te con t in u a m os em fren te e a gim os . Nã o tem os de n os s en t ir bem pa ra fu n cion a r . Qu a n to m a is n ós form os con tra n os s o sistema rígido, melhor.

ALUNO: Qu a n do você fa la a res peito da cã ib ra , is s o pa rece fazer parte do sistema rígido.

JOKO: Nã o, ela é p rodu zida pelo s is tem a r ígido, m a s é a ú n ica pa r te do s is tem a a ber ta a oferecer -lh e u m a s olu çã o. Por exem plo, s e tem os pen s a m en tos ra ivos os , o corpo tem de ten s ion a r . Nã o con s egu im os ter u m pen s a m en to de ra iva a res peito de a lgu ém s em n os ten s ion a r . E , s e h a b itu a lm en te tem os u m a es t ra tégia qu e é a ra iva e o a ta qu e, o corpo perm a n ecerá con tra ído qu a s e qu e o tem po todo. Toda via es s a é a ú n ica pa r te des s e s is tem a qu e n os forn ece u m a s a ída porqu e podem os viven cia r a cã ib ra e deixá-la in ta cta e, com is s o, ela pode s e a b r ir . Pode cu s ta r cin co a n os , m a s vai abrir.

ALUNO: Ou tro d ia eu li qu e, s eja qu a l for n os s o a s pecto p r in cipa l, é bom exa gerá -lo. Pa ra m im , porém , is s o s er ia o m es m o que ficar com muita raiva e agredir os outros.

JOKO: Você pode fazê-lo a sós.

ALUNO: Ma s s e eu rea lm en te exa gera r a ra iva e a ta ca r pa ra torná-la mais consciente isso não iria agredir alguém?

JOKO: Nã o. Por fa vor lem brem -s e de qu e o ú n ico m eio de exagera r é exa gera r a sensação de qu e a cã ib ra es tá lá . Nã o deveríam os exa gera r n os s os com por ta m en tos ira dos . Es s e s is tem a é tota lm en te in con s cien te, por is s o, a o viven cia rm os de m a n eira consciente a cãibra, ela pode se dissolver por si.

ALUNO: Por exper iên cia p rópr ia des cu bro qu e es tou n es ta cã ib ra ter r ível e, de repen te, ela m u da . Algu m a cois a s e a b re e es tou n u m es pa ço on de m e s in to livre e a ber to; depois , s em nenhuma razão aparente, retorno para a minha contrariedade.

JOKO: Eviden tem en te, você volta pa ra o s eu s is tem a h a b itu a l de pensamentos autocentrados.

Page 118: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Às vezes pa rece com o s e fos s e u m m ú s cu lo qu e es ta va contraído e agora está relaxando.

JOKO: Sim , m a s a ca u s a rea l n ã o é u m a qu es tã o m u s cu la r . Nos s o des ejo bá s ico de s obreviver es tá n a ba s e de todos os n os s os p rob lem a s . Se h ou ves s e a lgu m a m a n eira de lida r com os m ú s cu los, en tã o todos a qu eles qu e t ra ba lh a m corpora l m en te s er ia m s u jeitos iluminados.

ALUNO: Percebo qu e a s en s a çã o des a gra dá vel n ã o é u m es ta do es tá t ico. Es tá s em pre flu in do, m u da n do o tem po todo. En tã o es tou den tro e fora , pelo lu ga r in teiro, porqu e é en ergia pu ra , n ã o é estático.

JOKO: A ú n ica cois a qu e in ter fere n o flu xo é o fa to de acreditarm os de n ovo em n os s os pen s a m en tos . E is s o é p ra t ica m en te u m de n os s os m a iores h á b itos . Precis a m os p ra t ica r s en ta dos por m u itos e m u itos a n os a n tes de n ã o a cred ita rm os mais em nossos pensamentos. Precisamos de fato.

ALUNO: En qu a n to n ã o des ga s ta rm os a força do p rojeto de n os p roteger da vida e de lu ta r con t ra o m odo com o a s cois a s n os s ã o a p res en ta da s a ca da m om en to, irem os s em pre volta r a o es ta do de contração que é "Não gosto disso!". Acontece o tempo todo.

ALUNO: Onde se situa a cãibra?

JOKO: On de você a s en t ir . Pode s er n o ros to, n os om bros , em qu a lqu er pa r te. Em gera l é em ba ixo, n a s cos ta s , n a lin h a da cintura.

ALUNO: Es tou ca da vez m a is con s cien te de qu e a lgu n s de m eu s pen s a m en tos pa recem s im ples m en te cois a s da da s , im a gen s que tenho de mim e que não parecem pensamentos, ou que são tão a gra dá veis qu e n ã o os rotu lo. En tã o a con tecem pen s a m en tos qu e não são rotulados porque parecem como uma boa prática zen.

JOKO: Sim . É o pen s a m en to qu e n ã o ca p ta m os qu e fica dirigindo o espetáculo.

ALUNO: Um a boa pa r te do m eu con d icion a m en to pa rece inconscien te ou s u bcon s cien te. Por is s o pos s o s en t ir -me conscientem en te m u ito cla ro e leve e, n o en ta n to, o condicionamento a in da es tá lá e a ca ba m e leva n do de volta pa ra a cã ib ra ou o leito du ro, o es pa s m o, m u ito em bora eu n ã o con s ta te nada acontecendo no plano consciente.

Page 119: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Cer to. Lem brem -s e de qu e, em cer to s en t ido, n ã o exis te in con s cien te n en h u m e o qu e é revela do pode s er m u ito s u t il. Um a boa pa r te do qu e es ta m os fa la n do n ã o é u m a gra n de cã ib ra do t ipo qu e s e des creve com o "con tra çã o m u s cu la r depois de exces s os físicos".

ALUNO: Você d is s e qu e n a boa p rá t ica o com pa n h eiro de rotu la r pen s a m en tos é viven cia r . Is s o qu er d izer qu e o pen s a m en to qu e você n ã o ca p ta pode s e revela r s e você es t iver rea lm en te vivenciando a cãibra?

JOKO: Sim . Qu a n to m a is p ra t ica rm os e torn a rm os a s cois a s conscien tes , m a is e m a is com eça rá a boia r à beira d 'á gu a o pen s a -m en to de qu e n ã o t ín h a m os con s ciên cia a n tes . Su b ita m en te ele n os a t in ge. "Oh , n u n ca t in h a pen s a do n is s o a n tes ." Ele s im ples -mente emerge.

ALUNO: O qu e é o es pa s m o ou o t rem or corpora l repet it ivo qu e costuma aparecer às vezes nesse tipo de prática?

JOKO: Se perm a n ecerm os com o es pa s m o m u ita s vezes , o corpo va i t rem er , a s lá gr im a s podem brota r , porqu e s e rea lm en te pus erm os n os s a a ten çã o n o corpo e lh e derm os liberda de pa ra s er qu em é, ele com eça rá a a b r ir -s e e a en ergia qu e es ta va b loqu ea da com eça rá a em ergir . Pode a dota r a form a de ch oro, t rem or , ou outro movimento involuntário.

ALUNO: Você poderia falar mais a respeito de sentimentos?

JOKO: Sen t im en tos s ã o a pen a s pen s a m en tos m a is s en s a ções corporais.

ALUNO: E se um sentimento aparece?

JOKO: Fragmente-o. Ou perceba qu a is s ã o os pen s a m en tos, entre na sensação corporal.

ALUNO: Ao viven cia rm os a lgo, a vivên cia pode efet iva m en te de-sencadear recordações ou vislumbres de total entendimento?

JOKO: Sim , à s vezes . Se n os m a n tem os n a vivên cia , a cã ib ra à s vezes s e des fa z. En tã o verem os cer ta s im a gen s do pa s s a do, m a s eu n ã o m e p reocu pa r ia com is s o. Deixe a pen a s qu e ven h a m e s u m a m . A p rá t ica n ã o t ra ta de a n a lis a r es s a s recorda ções , porqu e a li n ã o h á u m "eu ". No en ta n to, n a p rá t ica qu e s e a s s en ta s ob re vivên cia s , n os s a vida em ergirá m a is e m a is do n ã o-eu , com o u m a

Page 120: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

vida de fu n cion a m en to d ireto e efet ivo e

s im !

de pen s a m en tos

válidos e claros. Vivenciar é a chave.

DERRETENDO OS CUBOS DE GELO

É ú t il com preen der o a s pecto técn ico da p rá t ica , a ba s e teór ica do s en ta r pa ra p ra t ica r . Ma s os a lu n os cos tu m a m ter a vers ã o pela s exp lica ções técn ica s e qu erem a n a logia s con creta s . Às vezes , o m elh or m eio de exp lica r é u s a n do m etá fora s s im ples e a té tola s . As s im , gos ta r ia de fa la r da p rá t ica zen com o "o ca m inho do cubo de gelo".

Va m os im a gin a r , por u m in s ta n te, qu e os s eres h u m a n os s ã o gra n des cu bos de gelo com m a is ou m en os 60 cm em ca da la do, dota dos de ca becin h a s e pés pen du ra dos . Nos s a vida h u m a n a é a s s im qu a s e qu e o tem po todo, cor ren do de u m la do pa ra o ou t ro com o cu bos de gelo, da n do poderos a s t rom ba da s en t re s i. É freqü en te a t in girm o-n os u n s a os ou tros com força s u ficien te pa ra qu ebra r n os s a s a res ta s . Pa ra n os p roteger , con gela m os o m á xim o qu e n os for pos s ível e es pera m os qu e, qu a n do en tra rm os em colis ã o com os ou tros , eles qu ebrem a n tes de n ós . Con gela mo-nos porqu e s en t im os m edo. Nos s o m edo n os fa z fica r r ígidos , fixos e du ros e cr ia m os gra n des con fu s ões qu a n do da m os u m en con trã o em a lgu ém . Qu a lqu er obs tá cu lo ou d ificu lda de in es pera da tem a probabilidade de nos despedaçar.

Cu bos de gelo doem . Cu bos de gelo pa s s a m gra n des a pu ros. Qu a n do s om os du ros e r ígidos , in depen den tem en te do qu a n to pos s a m os s er cu ida dos os , n os s a ten dên cia é es cor rega r e s a ir de con trole. Tem os a res ta s pon t ia gu da s qu e ca u s a m da n os , e fer im os não só os outros como nós mesmos também.

Um a vez qu e es tam os con gela dos , n ã o tem os á gu a pa ra beber e com is s o s en t im os s ede o tem po todo. Nos coqu etéis , cos tu m a m os n os s u a viza r u m pou co e bebem os , m a s es s a s beb i-da s em gera l n ã o s ã o de fa to s a t is fa tór ia s porqu e h á o n os s o m edo la teja n do e m a n ten do-n os con gela dos e res s eca dos . Es s e a b ra n da m en to é s ó tem porá r io e s u per ficia l; por ba ixo, a in da sentimos sede e ansiamos por alguma satisfação.

Page 121: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Algu n s cu bos de gelo m a is in teligen tes bu s ca m ou t ra s m a -n eira s de s a ir de s u a s vida s m is erá veis . Qu a n do percebem s u a s a res ta s a gu da s e s u a s d ificu lda des n o t ra to com os ou tros , ten ta m s er a gra dá veis e cola bora r . Es s a a t itu de a ju da u m pou co; n o en ta n to, u m cu bo de gelo é u m cu bo de gelo e perm a n ece in ta cta a existência de arestas pontiagudas.

Un s s or tu dos , n o en ta n to, a ca ba m en con tra n do u m cu bo de gelo qu e rea lm en te ten h a der ret ido e s e torn a do u m a poça . O qu e a con tece s e u m cu bo de gelo en con tra u m a poça ? A á gu a m a is quente da poça começa a derreter o cubo de gelo. A sede é cada vez m en os u m prob lem a . O cu bo de gelo com eça a perceber qu e n ã o tem de s er du ro, r ígido e fr io, qu e exis te ou tro m odo de s e es ta r no m u n do. O cu bo de gelo a p ren de com o cr ia r s eu p róp r io ca lor pelo s im ples p roces s o da obs erva çã o, O fogo da a ten çã o com eça a der reter s u a du reza . Ao obs erva r de qu e m a n eira t rom ba com os ou tros e fere, a o ver s u a s p rópr ia s a res ta s pon t ia gu da s , o cu bo de gelo com eça a s e da r con ta de com o foi fr io e du ro a té a í. Com eça en tã o a a con tecer a lgo es t ra n h o. Qu a n do os cu bos de gelo com eça m a perceber s u a s p rópr ia s a t ivida des , a obs erva r s u a "n a tu reza lega da em cu bos ", torn a m -s e m a is s u a ves e m a cios e sua compreensão aumenta, simplesmente observando o que são.

Os res u lta dos s ã o con ta gios os . Va m os s u por qu e dois cu bos de gelo ten h a m s e ca s a do. Ca da u m es tá p rotegen do a s i m es m o e ten ta n do m u da r o ou tro. Con tu do n en h u m deles con s egue rea lm en te m u da r ou "con s er ta r" o ou tro, u m a vez qu e a m bos s ã o r ígidos e du ros com a res ta s pon t ia gu da s . Porém , s e u m deles com eça a der reter , o ou tro cu bo de gelo

s e s e a p roxim a r o m ín im o qu e s eja

tem ta m bém de com eça r a der reter . E ta m bém ele com eça a ter u m pou co m a is de s a bedor ia e vis ã o. Em vez de con s idera r o ou tro cu bo de gelo com o u m prob lem a , ele com eça a tom a r con s ciên cia de s u a p rópr ia n a tu reza gela da . Am bos en tã o a p ren dem qu e a tes tem u n h a , a percepçã o con s cien te de s u a p rópr ia a t ivida de in d ividu a l, ê com o o fogo. O fogo n ã o pode s er a u m en ta do com es forços ; n ã o n os é pos s ível ten ta r n os der reter . Derreter é res u lta do da tes tem u n h a , Qu e, em cer to s en t ido, n ã o é a bs olu ta m en te n a da e, em ou tro, é tu do

"Nã o eu , m a s o Pa i em mim", como disse Cristo. A percepção consciente, a testemunha é o "Pai"

qu e é a n os s a verda deira n a tu reza . A fim de perm it irm os qu e a tes tem u n h a efetu e s eu t ra ba lh o, devem os n ã o n os perm it ir a p r is ion a r n o en r ijecim en to e n o en du recim en to de n ós m es m os ,

Page 122: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

joga n do o n os s o pes o pa ra todo la do, da n do t rom ba da s n os ou t ros e ten ta n do m odificá -los . Se fa zem os es s a s cois a s , p recis a m os tomar consciên cia pa ra qu e a tes tem u n h a pos s a fa zer s eu t ra ba lh o.

Algu n s cu bos de gelo com eça m a perceber a idéia e a fa zer o t ra ba lh o n eces s á r io. Podem in clu s ive torn a r -s e u m pou co m a is macios. A primeira coisa que observo a respeito dos alunos zen que es tã o p ra t ica n do é qu e s u a expres s ã o de ros to m u da . Tornam-se mais suaves. Riem de um jeito diferente. Estão um pouco "macios". En treta n to o t ra ba lh o é d ifícil e a lgu n s cu bos de gelo, a té m es m o os qu e com eça m a a m olecer , ca n s a m -s e do p roces s o. Dizem : "Eu qu ero m es m o é volta r a s er u m cu bo de gelo con for tá vel. É verda de qu e é u m a vida s olitá r ia e fr ia , m a s , pelo m en os , n ã o s in to ta n to in côm odo. Nã o qu ero m a is s im ples m en te tom a r con s ciên cia de n a da ''. A verda de, n o en ta n to, é qu e depois de a pes s oa ter com eça do a s u a viza r -s e ela n ã o con s egu e m a is en du recer de n ovo. Você pode d izer qu e es s a a té é u m a da s "leis dos cu bos de gelo" (com a s devida s des cu lpa s à fís ica ). Um cu bo de gelo qu e ten h a com eça do a fica r m a cio n u n ca m a is con s egu e es qu ecer es s a m a ciez. É por is s o qu e d igo à s pes s oa s : "Nã o en tre n a p rá t ica en qu a n to você n ã o es t iver p ron to pa ra o p róxim o es tá gio". Nã o h á com o ret roceder . Um a vez in icia do o p roces s o da p rá t ica , tã o logo ten h a m os a m olecido u m pou co, s om os u m pou co m a is m a cios e é is s o qu e exis te. Podem os in clu s ive pen s a r qu e con s egu irem os retorn a r à vida qu e t ín h a m os a n tes e a té ten ta r fa zê-lo, m a s n ã o tem os con d ições de viola r o p roces s o, a "lei bá s ica dos cu bos de gelo". Depois de term os n os torn a do u m pou co m a is m a cios , seremos para sempre um pouco mais macios.

Algu n s cu bos de gelo, por fa zerem u m a p rá t ica a pen a s es porá d ica , m u da m a pen a s u m pou co a o lon go de u m a vida toda e s e torn a m s ó u m pou co m a is m a cios . Aqu eles qu e rea lm en te en ten dem o ca m in h o e p ra t ica m com afinco, porém , s e tornam de fa to poça s d 'á gu a . O en gra ça do a res peito des s a s poça s é qu e, qu a n do os ou tros cu bos de gelo a s a t ra ves s a m , com eça m a der -reter e a torn a r -s e u m pou co m a is m a cios . Mes m o qu e der reta mos s ó u m pou co, os ou tros à n os s a volta a m olecem ta m bém . É u m processo fascinante.

Mu itos a lu n os m eu s s ã o m a cios . Na m a ior ia da s vezes detestam passar pelo processo. Quando vamos até o fundo dele, no en ta n to, o t ra ba lh o de u m cu bo de gelo é en fim der reter . En qu a n to es ta m os con gela dos e per feita m en te s ólidos pen s a m os qu e o n os s o

Page 123: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

t ra ba lh o é s a ir por a í ba ten do n os ou tros cu bos de gelo ou s en do a gred idos por eles . Nu m a vida com o es s a n in gu ém ja m a is con s egu e der reter o ou tro. Com o pá ra -ch oqu es , ba tem os e r icoch etea m os , a fa s ta n do os ou tros , e depois va m os a d ia n te. É u m modo muito solitário e frio de viver. Aliás, o que de fato queremos é der reter . Qu erem os s er poça s . Ta lvez tu do o qu e s e pos s a d izer s obre a p rá t ica é qu e es ta m os a p ren den do com o der reter . A cer tos in terva los d izem os : "Me deixe em pa z. Fiqu e lon ge. Qu ero a pen a s s er u m cu bo de gelo". Ma s a s s im qu e com eça m os a der reter u m pou co qu e s eja , n ã o con s egu im os m a is es qu ecer . Com o tem po, a qu ilo qu e é em n ós o cu bo de gelo fica des t ru ído. Ma s , s e o cu bo de gelo t iver s e torn a do u m a poça , ela é rea lm en te des t ru ída ? Podem os d izer qu e n ã o é m a is u m cu bo de gelo, m a s s u a n a tu reza essencial está realizada.

A com pa ra çã o de u m a vida h u m a n a com u m cu bo de gelo é s em dú vida tolice. Porém , vejo a s pes s oa s s e ba ten do en tre s i n a esperança de que com tantos ataques alguma coisa seja alcançada. Nu n ca a con tece is s o. Algu ém tem de pa ra r com os a ta qu es e com eça r a s en ta r e p ra t ica r com s u a n a tu reza gela da e cú b ica . Precis a m os a pen a s s en ta r , obs erva r e s en t ir com o é s er o qu e somos

viven cia n do is s o de verda de. Nã o podem os fa zer m u ito m a is pelos ou tros cu bos de gelo. Aliá s , n ã o é n em es s a n os s a incumbência. A única coisa que podemos fazer é convocar cada vez m a is a p res en ça da tes tem u n h a . Qu a n do n os torn a m os es s a tes tem u n h a , com eça m os a der reter . Se der retem os , ou tros cu bos de gelo ta m bém o fa zem , pou co a pou co. As s im qu e t iverm os com eça do a der reter é per feita m en te n a tu ra l res is t ir ao der ret im en to e qu erer retom a r o es ta do con gela do, ten ta n do con trola r e m a n ipu la r toda s a s ou tra s cr ia tu ra s con gela da s qu e con h ecem os . Nu n ca m e p reocu po com is s o porqu e, pa ra qu a lqu er pes s oa qu e ven h a p ra t ica n do já h á a lgu m tem po, é m u ito o qu e h á pa ra s e s a ber . Nã o podem os torn a r -n os r ígidos de n ovo porqu e bem n o fu n do s a bem os de u m a cois a qu e a n tes des con h ecía m os . Não podemos retroceder.

Na p róxim a vez qu e fa la rm os com a s pereza , qu e n os qu ei-xa rm os , ou ten ta rm os con s er ta r o ou tro, ou a n a lis á -lo, es ta m os b r in ca n do in u t ilm en te de s er cu bo de gelo. Es s e es forço n ã o dá em n a da . O qu e fu n cion a é cu lt iva r a a ten çã o, qu e s em pre es tá a li, em bora n ã o con s iga m os percebê-la s e es ta m os m u ito ocu pa dos da n do pa n ca da s nos ou tros cu bos de gelo. Mes m o qu e n ã o

Page 124: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

a bra m os es pa ço em n os s a s vida s pa ra a tes tem u n h a , ela s em pre es tá p res en te. É qu em s om os . Apes a r de todos ten ta rm os evitá -la, não o conseguimos.

Ao n os torn a rm os m a is m a cios , des cobr im os qu e s er u m a poça a t ra i m u itos ou tros cu bos de gelo. Às vezes a té a poça preferir ia s er u m cu bo de gelo. Qu a n to m a is poça n os torn a rm os , m a ior o t ra ba lh o a s er feito. A poça a tu a com o u m ím ã pa ra os cu bos de gelo qu e qu erem der reter . As s im , qu a n to m a is p in ga mos, mais e mais atraímos trabalho para fazer e é isso mesmo.

ALUNO: Gostei da analogia porque quando a poça estiver limpa con terá o todo em s eu reflexo. Você poder ia fa la r m a is de com o nasce a testemunha?

JOKO: A tes tem u n h a s em pre es tá p res en te. Ma s a s s im com o u m cu bo de gelo n ã o con s egu e ver n a da exceto da r t rom ba da s em outros cu bos de gelo, ou evitá -los , é com o s e es s a a ten çã o da tes tem u n h a n ã o pu des s e fu n cion a r . É p recis o qu e h a ja u m a m u -da n ça n o cu bo de gelo pa ra perm it ir -lh e tom a r con s ciên cia de s u a p rópr ia a t ivida de. En qu a n to n os s a ca pa cida de de con s cien t ização es t iver tota lm en te volta da pa ra o qu e os ou t ros cu bos de gelo es tã o fa zen do, a tes tem u n h a n ã o pode a pa recer , m es m o qu e es teja lá o tem po todo. Qu a n do com eça m os a ver

"Oh , o p rob lem a n ã o é com os ou tros cu bos de gelo, a ch o qu e p recis o olh a r pa ra m im mesmo" , a testemunha aparece automaticamente. Começamos a perceber qu e o p rob lem a n ã o es tá "lá fora ", m a s s em pre es teve e estará aqui dentro.

ALUNA: No es ta do de cu bo de gelo, pos s o a lim en ta r a ilu s ã o de qu e n a da pode en tra r n em s a ir , e a s s im m e s in to p rotegida . Quando o a m a cia m en to com eça , con tu do, ocor re-m e qu e tu do s e in terpen etra com tu do

in clu in do a polu içã o, a gu er ra , o de-s a m pa ro e a s s im por d ia n te. Perceber cla ra m en te es s a in terpen etra çã o pode s er a s s u s ta dor e des es t im u la n te. Você poder ia fa la r obre o m edo e os ou tros es ta dos em ocion a is qu e.a pa recem qu a n do a pes s oa es tá en t re s er u m cu bo de gelo e uma poça?

JOKO: É verda de, o es tá gio in term ed iá r io a té a m a ciez im plica m u ito m edo e res is tên cia . De cer to m odo, s er u m cu bo de gelo fu n cion a ou pa rece qu e fu n cion a . É s ó qu e o cu bo de gelo s e s en te s olitá r io e s eden to. Qu a n do s om os m a cios , s om os m a is vu ln erá veis a os ou tros . Se n ã o vem os o qu e es tá a con tecen do, viven cia m os

Page 125: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

m a is m edo. Sen do a s s im , es s e es ta do m a cio, qu e é o in ício do der ret im en to, é s em pre a com pa n h a do de res is tên cia de m edo de qu e o m u n do s e a ba ta s obre n ós . Qu erem os n os en r ijecer de n ovo porqu e es ta m os com eça n do a receber u m t ipo de s olicita çã o pa ra o qu a l n ã o es ta m os p repa ra dos . Es s a s s olicita ções podem n ã o s er bem-vin da s . Nos s a res is tên cia ten ta rá s e s olid ifica r . Mes m o a s s im , a resistência não conseguirá

durar.

Às vezes a s pessoas m e d izem : "J á es tou p ra t ica n do h á s eis m es es e tu do em m in h a vida ficou p ior". An tes de p ra t ica r t in h a m a ilu s ã o de s a ber o qu e era m . Agora , es tã o con fu s a s e is s o n ã o é agradável

e pode s er h or r ível. Ma s é a bs olu ta m en te n eces s á r io. A m en os qu e perceba m os es s e fa to, podem os n os s en t ir tota lm en te des en cora ja dos . A p rá t ica , à s vezes , é m u it ís s im o des a gra dá vel. A idéia de qu e tu do s ó va i m elh ora r , s em recu os , a pen a s eleva n do-se e adiantando-se, é equivocada do começo ao fim.

ALUNA: Na s p r im eira s vezes em qu e m e s en tei pa ra p ra t ica r , era com o es ta r m or ta do pes coço pa ra ba ixo. Sin to-m e exa ta m en te com o o cu bo de gelo que você d es creveu: um a cabeça em cim a, pés em ba ixo e u m com pu ta dor m or to e a m bu la n te n o m eio. A p rá t ica liberou den tro de m im m u ito do s en t im en to; por exem plo, já ch orei muito e parece que estou derretendo e me tornando uma poça.

JOKO: Mu ito bom . Ten h o obs erva do o der ret im en to n a m a ior ia dos m eu s a lu n os . Em gera l n ã o é a gra dá vel, m a s de cer to m odo e m a ra vilh os o ta m bém . Sen t im os qu e es ta m os n os tom a n do m a is a qu ilo qu e s om os verda deira m en te. Sem pre exis te res is tên cia ta m bém . Os dois a s pectos a n da m s em pre ju n tos . As pes s oa s a ch a m qu e res is tên cia é u m a cois a ter r ível. A p rópr ia n a tu reza da prática é resistir. Não é uma coisa extra.

ALUNA: Ser m ã e fa z a gen te a m a cia r? Min h a idéia é qu e a s m ã es têm de s e a b r ir pa ra os s eu s filh os e is s o ten der ia a fa zer o cubo de gelo derreter.

JOKO: Ser m ã e pode s er u m t rein o excelen te. Ma s con h eci m ã es qu e era m u n s gra n des cu bos de gelo

in clu s ive eu , n u m a certa época.

Page 126: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

O CASTELO E O FOSSO

Des de qu e com ecei com o in s t ru tora en con trei m u ito pou ca s pessoas que não estavam de alguma maneira mergulhadas naquilo qu e con s idera va m com o u m prob lem a . É com o s e s u a s vida s es t ives s em en ter ra da s n u m a den s a e en orm e n u vem , ou com o s e es t ives s em n u m qu a r to es cu ro à s volta s com n os s a n êm es e. Qu a n -do es ta m os n a s m a lh a s des s e con flito, fech a m os o m u n do do la do de fora . Fra n ca m en te, n ã o tem os tem po pa ra ele porqu e es ta m os muito ocupados com nossas preocupações. Nosso único interesse é s olu cion a r n os s o p rob lem a . Nã o vem os m a is a lém do qu e es s a ilu s ã o, em qu e o p rob lem a com qu e n os p reocu pa m os n ã o é o problema real. Ou ço u m s em -n ú m ero de va r ia ções s obre es s e tema: "Estou tão sozinha"; "A vida é vazia e sem sentido"; "Tenho de tudo, e n o en ta n to...". Nã o en xerga m os qu e n os s o p rob lem a s u per ficia l é a pen a s a pon t in h a do iceberg. Na rea lida de, o qu e con s idera m os como nosso problema é, na verdade, um pseudoproblema.

Pa ra n ós com cer teza n ã o pa rece qu e s eja m s ó ps eu dopro-b lem a s . Se, por exem plo, s ou ca s a da e m eu m a r ido va i em bora s em dú vida n ã o a ch o qu e es s e s eja u m ps eu doprob lem a . Va i pa s s a r m u ito tem po a n tes qu e eu con s iga ver qu e a qu ilo qu e es tou ch a m a n do de o m eu p rob lem a n ã o é a d ificu lda de rea l. Apes a r d is s o, o p rob lem a rea l n ã o é a pa r te qu e podem os en xerga r , com o a lgo pen du ra do n o a r ; o verda deiro p rob lem a é o iceberg qu e es tá em ba ixo da á gu a . Pa ra u m a pes s oa , o iceberg pode s er u m a cren ça gen era liza da e en t ra n h a da do t ipo "Ten h o tu do s ob con trole"; pa ra ou tra , pode s er "Precis o fa zer a s cois a s com per feiçã o". Ma s , n a verda de, n ã o con s igo con trola r o m u n do s en do p res ta t iva , n ã o con s igo con trolá -lo s en do des p rotegida , n ã o con s igo con trolá -lo com meus encantos, ou meu sucesso, ou minha agressividade, não con s igo con trolá -lo pela s u a vida de ou pela doçu ra , ou pelo m elodra m a da vít im a . Logo a ba ixo do p rob lem a em ergen te es tá u m pa drã o m a is fu n da m en ta l qu e devem os recon h ecer e com o qu a l n os fa m ilia r iza r . Tra ta -se de u m a a t itu de crôn ica e a b ra n gen te pera n te a vida , u m a decis ã o m u ito a n t iga decorren te de n os s os tem ores in fa n t is . Se n ã o con s egu irm os en xergá -la e, em vez d is s o, n os perderm os ten ta n do lida r com o p s eu doprob lem a qu e s e apresenta, continuaremos cegos aos acontecimentos e às pessoas.

Page 127: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Só qu a n do n os s a a borda gem de cegos d ia n te da vida com eçar a a p res en ta r defeitos é qu e pa s s a rem os a s en t ir va gos la m pejos de qu e n os s o ps eu doprob lem a é u m ca s telo a s s om bra do n o qu a l es ta m os com o pr is ion eiros . O p r im eiro pa s s o de qu a lqu er p rá t ica é s a ber qu e s om os p r is ion eiros . A m a ior ia da s pes s oa s n ã o tem a m en or s u s peita d is s o: "Oh , com igo va i tu do bem ". Porém , qu a n do com eça m os a recon h ecer qu e es ta m os com o pr is ion eiros , podem os com eça r a en con tra r u m a por ta qu e n os leve pa ra fora da p r is ã o. Es ta rem os en tã o des per tos o s u ficien te pa ra s a ber qu e es ta m os aprisionados.

É com o s e m eu p rob lem a fos s e u m ca s telo s om br io e ten e-b ros o, cerca do de á gu a por todos os la dos . En con tro-m e n u m pequ en o bote e com eço a rem a r pa ra ga n h a r d is tâ n cia . Con form e rem o, olh o pa ra o ca s telo qu e va i fica n do pa ra t rá s , e qu a n to m a is m e a fa s to, m en or fica . O fos s o é im en s o, m a s fin a lm en te o a t ra ves s o e ch ego n a ou tra m a rgem . Agora , qu a n do olh o de n ovo pa ra o ca s telo, ele pa rece m u ito pequ en o. Por ter recu a do, n ã o tem m a is o m es m o in teres s e qu e u m d ia des per tou em m im . As s im , com eço a da r m a is a ten çã o pa ra o lu ga r on de a gora m e en con t ro. Olh o pa ra a á gu a , a s á rvores , os pá s s a ros . Ta lvez exis ta m pes s oa s pa s s ea n do de bote pela á gu a , a p recia n do o a r livre. Algu m d ia des s es , en qu a n to es t iver des fru ta n do o cen á r io, vou olh a r pa ra onde estava o castelo e verei que ele terá sumido.

A p rá t ica é com o o p roces s o de rem a r pelo fos s o. Pr im eiro es ta m os n a s m a lh a s de n os s o p s eu doprob lem a . Em a lgu m pon to, contudo, damo-nos conta de que aquilo que parecia ser o problema n ã o é, a fin a l de con ta s . Nos s o p rob lem a é a lgo m u ito m a is p rofu n do. Um a lu z com eça a b r ilh a r . Som os ca pa zes de en con trar u m a por ta de s a ída e ga n h a r u m a cer ta d is tâ n cia ou pers pectiva em n os s os es forços . O p rob lem a poderá a in da con t in u a r n os a torm en ta n do, com o u m im en s o ca s telo m a l-a s s om bra do, m a s pelo m en os es ta rem os do la do de fora , olh a n do pa ra ele. Qu a n do com eça m os a rem a r e n os d is ta n cia r , a á gu a pode es ta r encapelada e dificultar o avanço. Até mesmo um a tem pes ta de pode n os a r rem es s a r de volta à beira do la go, de m odo qu e n ã o conseguim os ir em bora a in da por m a is a lgu m tem po. No en ta n to, continuamos tentando e, em algum momento, conseguimos colocar a lgu m a d is tâ n cia en t re n ós e o ca s telo ten ebros o. Com eça m os a des fru ta r u m pou co a vida do la do de fora do ca s telo. Depois de a lgu m tem po, podem os es ta r gos ta n do ta n to dela qu e o ca s telo em

Page 128: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s i a gora pa rece a pen a s u m ou tro res to de a lgu m a cois a flu tu a n do na água, tão sem importância.

Qu a l é o s eu ca s telo? Qu a l é o s eu ps eu doprob lem a ? E qu a l é o iceberg lá em ba ixo, o p rob lem a m a is p rofu n do qu e d ir ige a s u a vida ? O ca s telo e o iceberg s ã o u m a e a m es m a cois a . O qu e s ã o pa ra você? A res pos ta , pa ra ca da pes s oa , é d iferen te. Se com eça m os a ver qu e o p rob lem a a tu a l qu e n os con tra r ia n ã o é a verda deira qu es tã o de n os s a s vida s , m a s s im ples m en te u m sintoma de um padrão mais profundo, então estamos começando a con h ecer n os s o ca s telo. Qu a n do o con h ecerm os ba s ta n te bem , estaremos começando a encontrar a direção da saída.

Poderíamos perguntar por que continuamos presos no castelo. Perm a n ecem os p res os porqu e n ã o recon h ecem os o ca s telo, n em com o con qu is ta r a n os s a liberda de. O p r im eiro pa s s o n a p rá t ica é s em pre ver e recon h ecer n os s o ca s telo ou p r is ã o. As pes s oa s s ã o feitas prisioneiras de muitas e variadas maneiras. Por exemplo, um ca s telo pode s er a bu s ca con s ta n te de u m a vida excita n te e m ovim en ta da , rep leta de n ovida des e d iver t im en tos . As pes s oa s qu e vivem a s s im s ã o es t im u la n tes , m a s d ifíceis de con viver . Viver n u m ca s telo, por ta n to, n ã o s ign ifica n eces s a r ia m en te u m a vida de p reocu pa ções , a n s ieda de e depres s ã o. As p r is ões m a is s u t is n ã o pa recem em n a da com is s o. Qu a n to m a ior o n os s o s u ces s o n o m u n do extern o, m a is d ifícil pode s er iden t ifica r o ca s telo on de es ta m os com o pr is ion eiros . O s u ces s o em s i é ót im o; con tu do, s e n ã o n os con h ecem os , pode s er u m a p r is ã o. Con h eci pes s oa s fa m os a s em s eu s ca m pos de a t ivida de e qu e a pes a r d is s o era m pr is ion eira s de s eu s ca s telos . Ta is pes s oa s s ó pa r tem pa ra a p rá t ica qu a n do a lgu m a cois a com eça a n ã o da r m a is cer to em s u a vida

em bora o s u ces s o extern o em gera l torn e m a is d ifícil recon h ecer e a dm it ir a des in tegra çã o. Qu a n do a s p r im eira s ra ch a du ra s con creta s a pa recerem n a pa rede do ca s telo, ta lvez comecemos a investigar nossas vidas. Os primeiros anos de prática con s is tem em ch ega r a con h ecer o ca s telo do qu a l s om os p r is ion eiros e com eça r a en con tra r on de es tá o bote a rem o. A via gem a t ra vés do fos s o pode s er tor tu os a , es pecia lm en te n o p r in cíp io. Ta lvez n os a con teça m tem pes ta des e á gu a s a gitadas qu a n do n os s epa ra m os de n os s o s on h o de com o s om os e de com o pensamos que a nossa vida deveria ser.

Um s ó elem en to rea liza por n ós es s a t ra ves s ia : a percepçã o con s cien te do qu e es tá a con tecen do. A ca pa cida de de m a n ter a

Page 129: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

percepçã o con s cien te qu a n do ps eu doprob lem a s a pa recem é a lgo qu e a os pou cos s e des en volve pela p rá t ica , em bora n ã o por es forços delibera dos n es s e s en t ido. Qu a n do s e dã o a con tecim en tos dos qu a is n ã o gos ta m os , cr ia m os ps eu doprob lem a s e fica m os s eu s p r is ion eiros : "Você m e in s u ltou ! Cla ro qu e es tou com ra iva !"; "Es tou tã o s ozin h a . Nin gu ém rea lm en te s e im por ta com igo"; "Min h a vida foi m u ito du ra . Abu s a ra m de m im ". Nos s a via gem n ã o term in a (e ta lvez n u m a ú n ica vida h u m a n a n u n ca ch egu e a o fim ) en qu a n to n ã o virm os qu e n ã o exis te ca s telo e qu e n ã o exis te p rob lem a . A qu a n t ida de de á gu a qu e a t ra ves s a m os em n os s o bote é s em pre a qu ilo qu e ela é. Com o poder ia exis t ir a lgu m prob lem a ? Meu "p rob lem a " ê qu e n ã o gos to d is s o. Nã o gos to d is s o, n ã o gos to des s e jeito, a vida n ã o m e s erve. As s im , pa r t in do de minhas op in iões , rea ções e ju lga m en tos con s t ru o u m ca s telo n o qu a l m e faço prisioneiro.

A p rá t ica a ju da -m e a com preen der es s e p roces s o. Em vez de m e perder em m eio a con tra r ieda des , obs ervo m eu s pen s a mentos e a con tra çã o do m eu corpo. Com eço a ver qu e o inciden te qu e m e t ra n s torn ou n ã o é o p rob lem a rea l; em vez d is s o, m in h a con tra r ieda de der iva de m in h a pa r t icu la r m a n eira de olh a r a vida . Es colh o es ta pa r te e com eço a dem olir o m eu s on h o. Pou co a pou co, vou con s t ru in do u m a cer ta d is tâ n cia em pers pectiva. Meu bote a rem o a fa s ta -s e do ca s telo qu e ergu i e n ã o s ou m a is prisioneiro ali dentro.

Qu a n to m a is tem po p ra t ica m os , m a is ra p ida m en te a va n ça -m os por es s e p roces s o, a ca da vez qu e ele em erge. O t ra ba lh o é len to e des en cora ja dor n o com eço, m a s , con form e vã o a u m en tando n os s o en ten d im en to e n os s a s h a b ilida des , ele a celera ca da vez m a is e ch ega m os depois a ver qu e n ã o exis tem prob lem a s . Podem os des en volver doen ça s e perder o pou co d in h eiro qu e tínhamos; apesar desses transtornos, não há problema.

Porém , "n ós n ã o en xerga m os a vida des s a m a n eira . No m in u to em qu e s e im põe a n ós a lgo de qu e n ã o gos ta m os , tem os , do n os s o pon to de vis ta , u m prob lem a . As s im , a p rá t ica zen n ã o t ra ta de n os a ju s ta rm os a o p rob lem a , m a s de verm os qu e n ã o exis te p rob lem a n en h u m . É u m a es trada muito diferente daquela a qu e es tã o a cos tu m a da s qu a s e toda s a s pes s oa s . A m a ior ia a pen a s ten ta con s er ta r o ca s telo, em vez de ver m a is a lém dele e en con tra r o fos s o qu e n os s epa ra dele

e is s o é o qu e a p rá t ica n os leva a reconhecer.

Page 130: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Na verda de, a m a ior ia n ã o qu er s a ir do ca s telo. Podem os n ã o percebê-lo, m a s a dora m os os n os s os p rob lem a s . Qu erem os con t in u a r com o pr is ion eiros de n os s a s con s t ru ções , gira n do e revolven do n o m es m o pon to com o vít im a s , s en t in do m u ita pen a de n ós . Depois de a lgu m tem po, pode s er qu e ch egu em os a ver qu e es s a vida n a rea lida de n ã o fu n cion a m u ito bem . É qu a n do ta lvez com ecem os a p rocu ra r pelo fos s o. Ma s m es m o en tã o, con t in u a m os a n os ilu d ir , bu s ca n do s olu ções qu e m a n têm o ca s telo in ta cto e a n ós com o pr is ion eiros . Por exem plo, s e u m rela cion a m en to pa rece ser o problema, talvez nos atiremos em outro em vez de descobrir a qu es tã o qu e es tá n a ba s e, e qu e é a n os s a fu n da m en ta l decis ã o sobre a vida, o castelo que erguemos.

"Min h a pern a qu ebrou ." "Es tou a borrecido com a m in h a namorada." "Meu s pa is n ã o m e com preen dem ." "Meu filh o u s a d roga s ." E a s s im por d ia n te. O qu e, n es te exa to m in u to, é o fa tor qu e n os s epa ra da vida e n os im pede de en xerga r a s cois a s com o ela s s ã o? Só qu a n do a vida for a p recia da em todos os s eu s m om en tos é qu e poderem os d izer qu e s a bem os a lgo de u m a vida religiosa.

Com preen der é a ch a ve. Ain da a s s im , s ã o p recis os a n os e a n os de p rá t ica pa ra com eça rm os a en ten der o qu e es tou des cre-ven do e é p recis o cora gem pa ra n os a ven tu ra rm os n a t ra ves s ia do fos s o, d is ta n cia n do-nos do ca s telo. En qu a n to fica m os den tro dele, con s egu im os s en t ir qu e s om os im por ta n tes . É p recis o u m in term in á vel t rein a m en to pa ra cru za r a qu ele fos s o com ra p idez e eficiên cia . Nã o s om os m u ito p ropen s os a s a ir do ca s telo. Se es ta m os ter r ivelm en te depr im idos , a depres s ã o é, a pes a r de tu do, a qu ilo qu e con h ecem os ; qu e Deu s n ã o perm ita qu e n ós deva m os a ba n don a r n os s a dep res s ã o. É a s s u s ta dor en t ra r n o n os s o pequ e-n o bote e deixa r pa ra t rá s toda s a s cois a s qu e a té en tã o ch a m á -va m os de a n os s a vida . Apr is ion a dos n o ca s telo, fica m os con s -t r in gidos a u m es pa ço redu zido, a per ta do. Nos s a vida é s om br ia e a s s u s ta d iça , qu er o perceba m os , qu er n ã o. Felizm en te, a liberdade (o nosso ser verdadeiro) nunca cessa de nos chamar.

ALUNO: Pa ra m im pa rece qu e n ã o h á com o en tra r n o bote e com eça r a t ra ves s ia do fos s o en qu a n to a m a gia da p rá t ica n ã o começar a surtir efeito, depois de meses, talvez um ano.

JOKO: Algumas pessoas vêm para a prática quando suas vidas es tã o ca in do a os peda ços e s eu s on h o pes s oa l es tá ru in do. Ela s

Page 131: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

es tã o gera lm en te p ron ta s pa ra com eça r a dem oliçã o do ca s telo. Pa ra ou tra s , o p roces s o a con tece m a is deva ga r . O p roces s o de s en ta r e p ra t ica r coloca n os s o ca s telo pes s oa l s ob a ta qu e cer ra do; n ã o dem ora m u ito e com eça m os a ver ra ch a du ra s a qu i e a li, m es m o qu e a n tes a con s t ru çã o pa reces s e m u ito s ólida . Tom a m os consciência talvez chocados dessas primeiras rupturas.

ALUNO: Se u m prob lem a parece u m prob lem a , ele n ã o é rea l? O que faz dele um falso problema?

JOKO: Va m os s u por qu e a lgu ém qu e eu a m o foi m a n da do trabalh a r n a Eu ropa por dois a n os e m in h a s obr iga ções m e força m a fica r a qu i. Is s o pa rece qu e é u m prob lem a pa ra m im . A m in h a vida tem s ido u m en t rela ça m en to com a vida des s a pes s oa e fico m u ito in feliz com es s a s epa ra çã o. Do m eu pon to de vis ta , es s e é u m prob lem a rea l; porém , do pon to de vis ta da vida em s i m eu n a m ora do va i pa ra a Eu ropa e eu fico a qu i. Pon to. O ú n ico "problema" é a minha opinião sobre isso.

ALUNO: Você está dizendo que é para não fazer nada a respeito, só aceitar passivamente qualquer coisa que aconteça?

JOKO: Nã o, em a bs olu to. A qu es tã o n ã o é es s a . Se eu ten h o a opçã o de m e m u da r pa ra a Eu ropa pa ra fica r com ele e s e is s o va i s er bom pa ra todos os en volvidos , ót im o. Ma s em gera l n os en con tra m os em s itu a ções a cu jo res peito n ã o h á o qu e s e pos s a fazer . Nem s em pre podem os refa zer o m u n do pa ra qu e s e a ju s te a s n os s a s p referên cia s . A p rá t ica a ju da -n os a lida r com a s cois a s como elas são, e não acrescentar mais nada a elas.

ALUNO: Com o é qu e des cobr im os o qu e é o n os s o ca s telo? Qual é a estratégia?

JOKO: A ch a ve es tá em n ota r o qu e n os deixa con tra r ia dos . O ca s telo é con s t ru ído de em oções pes s oa lm en te cen tra da s . Qu a is são alguns exemplos de contrariedades?

ALUNO: Raiva, alguém dizer algo de que não gosto.

ALUNO: Depressão.

JOKO: A depres s ã o é em gera l u m s in a l de qu e a vida n ã o es tá indo pelo caminho que gostaríamos.

ALUNO: Ciú m e. Nã o gos to do jeito qu e ele es tá olh a n do pa ra ela.

Page 132: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Res s en t im en to, porqu e fiz tu do e eles n ã o m e dera m valor.

JOKO: Es s e é u m elem en to com u m n os com en tá r ios feitos pelos pais: "Fiz tudo por você e qual é o agradecimento que recebo? Dediquei a você os melhores anos de minha vida!".

Todo ca s telo im plica u m con ju n to pes s oa l de p rogra m a s já es ta belecidos . O ca s telo pode s er con s t ru ído em cim a do qu e pa recem s er n obres in ten ções e, m es m o a s s im , ocu lta r pen s a -m en tos a u tocen tra dos . Por exem plo, t ra ba lh a r pa ra os s em -teto pode ser um caminho para mostrarmos aos outros e a nós mesmos com o s om os bon s , com o n os im por ta m os . (A qu es tã o n ã o é s e devem os ou n ã o a ju da r os s em -teto, m a s o m ot ivo qu e n os leva a essa ação.)

ALUNO: Algu m a cois a qu e n os dá felicida de pode ta m bém s er pa r te do ca s telo? Por exem plo, s e es cu ta m os u m lin do t rech o musical para tentar lidar com a contrariedade?

JOKO: Sim , s e a m ú s ica for u s a da com o es ca pe, fa z pa r te do castelo.

ALUNO: Pa ra qu em m ora den tro deles , os ca s telos s em pre parecem que estão baseados na realidade, não é?

JOKO: Cer to, m a s n ã o es tã o. Nos s a decis ã o p rofu n da de qu e a vida é a s s im é qu e cr ia o ca s telo. Toda vez qu e es s a decis ã o é questionada de alguma maneira, nosso castelo balança.

ALUNO: A decis ã o qu e tom a m os decorre de a lgu m a exper iên cia que já tivemos no passado, certo?

JOKO: Sim , em bora ta lvez n ós n ã o lem brem os m a is des s a experiência.

ALUNO: Podem os ter m a is de u m ca s telo? Ou ca da pes s oa vive em um só castelo geral?

JOKO: A m a ior ia vive n u m s ó, m a s com m u itos a pos en tos . Pa ra a m a ior ia , o ca s telo a pa rece em decorrên cia de u m a decis ã o bá s ica com res peito à vida , em bora es s a decis ã o pos s a a pa recer de m u ita s m a n eira s d iferen tes . Tem os de des cobr ir a s vá r ia s form a s pela s qu a is em preen dem os n o con creto a s n os s a s decis ões . Tem os de conhecer bem o nosso castelo.

Page 133: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Con h ecer o n os s o ca s telo s ign ifica tom a r con s ciên cia da tensão em nosso corpo?

JOKO: Sim

e ver e rotu la r os n os s os pen s a m en tos . Ao fa zer -

m os is s o, n ós va m os len ta m en te des t ra n ca n do a por ta do ca s telo e en con tra n do o ca m in h o a té o bote qu e n os leva rá a t ra vés do fos s o. É u m proces s o gra du a l: n ã o h á u m a lin h a dem a rca tór ia vis ível. E n ã o é qu e s a ím os do ca s telo de u m a vez por toda s . Às vezes , ele pa rece es ta r d is ta n te e en tã o a lgo a con tece qu e n ã o h a vía m os vis to a n tes e eis -n os de volta , den tro dele. Nin gu ém con h ece por completo todos os aposentos do castelo.

ALUNO: A a n a logia do ca s telo e do fos s o é ú t il, m a s eu s ei qu e n o in s ta n te em qu e pa ro de p ra t ica r e volto pa ra o res to de m in h a vida perco a minha clareza.

JOKO: A vir tu de de p ra t ica r e de es ta r con vers a n do com o a gora é es cla recer os p rob lem a s qu e en ca ra m os qu a n do volta m os pa ra o res to de n os s a s vida s ; es s a s a t ivida des a ju da m -n os a lida r com is s o. Com u m a boa p rá t ica , es s a ca pa cida de de fa to a u m en ta com o tem po. É verda de qu e podem os s er fa cilm en te s u ga dos de volta pa ra os n os s os velh os pa d rões . Em s i, u m colóqu io com o es te nada pode fazer; a única coisa que importa é aquilo que as pessoas farã o com ele. Con s egu im os olh a r com fra n qu eza pa ra n os s a s á rea s de con tra r ieda de e obs erva rm o-n os con tra r ia dos ? Con s egu im os olh a r pa ra is s o de u m a cer ta d is tâ n cia , com a lgu ma pers pect iva ? Es s e é o a lvo do fos s o: olh a r por cim a do om bro pa ra o ca s telo qu e ficou lá a t rá s e en xergá -lo com m a is n it idez. Em bora s oe fá cil, é d ificílim o, em pa r t icu la r n o com eço. A d ificu lda de n ã o é uma coisa ruim; é só do jeito que é.

ALUNO: Você d ir ia qu e o ca s telo é o con ju n to da pers on a lida de do in d ivídu o? Ou a pen a s s u a s op in iões pes s oa is e s u a s idéia s preconcebidas?

JOKO: Personalidade s u gere u m a es t ru tu ra in tern a perm a n en te ou r ígida . Nos s a pers on a lida de é a es t ra tégia qu e ela bora m os pa ra lida r com a vida . Nes s e s en t ido, o ca s telo é nossa pers on a lida de. Ao p ra t ica rm os du ra n te u m cer to tem po, os a s pectos p redom in a n tes de n os s a pers on a lida de d is s olvem -s e. Na s pes s oa s qu e vêm pra t ica n do bem por m u ito tem po, a pers on a lida de ten de a des a pa recer e da r lu ga r à a ber tu ra . De cer to m odo, qu a n to m a is s en ta rm os pa ra p ra t ica r , m en os pers on alidade teremos.

Page 134: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Con h eço você já fa z m u itos a n os e m e pa rece qu e a gora você tem m a is pers on a lida de do qu e em qu a lqu er ou t ra época de sua vida.

JOKO: Com o tempo, a boa prática nos torna mais sensíveis ao qu e es tá a con tecen do. Em vez de u m a res pos ta in va r iá vel, res -pon dem os de m a n eira m a is livre e con d izen te com a s itu a çã o. A p rá t ica a lim en ta n os s a ca pa cida de de rea gir a p ropr ia da m en te. A personalidade então não atrapalha mais.

V. Percepção Consciente

O PARADOXO DA PERCEPÇÃO CONSCIENTE

Qu a n do n os s en ta m os pa ra a p rá t ica é im por ta n te m a n ter u m a im obilida de tã o a bs olu ta qu a n to pos s ível: es ta r con s cien te da lín gu a n o s eu es pa ço, dos globos ocu la res , da in qu ieta çã o dos dedos . Qu a n do eles de fa to s e m ovim en ta m , é im por ta n te tom a r con s ciên cia do m ovim en to. Qu a n do qu erem os pen s a r , n os s os globos ocu la res s e m ovim en ta m . Tem os m a n eira s m u ito s u t is de es ca pa r de n ós m es m os . A im obilida de a bs olu ta é pa ra m u itos uma instrução restritiva e desagradável. Para mim, é. Depois de ter fica do n a p rá t ica , s en ta da por vá r ios per íodos , qu ero fa zer a lgu m a coisa, consertar algum objeto, tomar conta do que tiver pela frente. Nã o dever ía m os n os m a n ter ten s os ou du ros , m a s s im ples m en te m a n ter a im obilida de ta n to qu a n to pu dés s em os . Serm os a pen a s o qu e s om os é a ú lt im a cois a qu e qu erem os fa zer . Todos n ós tem os gra n des des ejos : de con for to, de s u ces s o, de a m or , de ilu m in a çã o, de ch ega r a o es ta do bú d ico. Qu a n do vem o des ejo, em pen h a m o-n os , ten ta n do torn a r n os s a vida a lgo qu e ela n ã o é. Por is s o, a ú lt im a cois a qu e qu erem os é fica r pa ra dos . Na im obilida de a bs olu ta tom a m os con s ciên cia de n os s a fa lta tota l de d is pon ib ilida de pa ra s erm os o qu e s om os , n es te p róp r io s egu n do. E is s o é u m a cois a m u ito a bor recida : n ós , en fim , n ã o qu erem os fazê-la , de jeito n en h u m . O m es tre Rin za i d is s e: "Nã o desperdice u m pen s a m en to s equ er n a pers egu içã o do es ta do bú d ico". Is s o s ign ifica qu e devem os s er com o s om os , a ca da m om en to, de u m

Page 135: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

m om en to pa ra ou tro. É tu do o qu e ja m a is p recis a rem os fa zer , m a s o des ejo h u m a n o é ir em bu s ca de a lgo m a is . Atrá s do qu e n os empenhamos quando sentamos para praticar?

ALUNO: Conforto.

ALUNO: Tentar parar de pensar.

JOKO: Estamos tentando parar de pensar em vez de tomarmos consciência de nosso pensar.

ALUNO: Ter a lgu m a es pécie de exper iên cia corpora l in ten s a , um estado alterado de consciência.

aluno: Paz.

ALUNO: Ficar mais acordado, menos sonolento. Ou livrar-se da ra iva . "As s im qu e con s egu ir m e livra r des ta ra iva , ch ega rei m a is perto do estado de buda."

JOKO: Ou podemos nos lembrar de uma fase de nossa vida em qu e a s cois a s cor r ia m bem , pa ra ten ta rm os en tã o recu pera r es s a s en s a çã o. Se n ã o t iverm os u m a ú n ica idéia de ir n o en ca lço do estado búdico, o que estaríamos fazendo?

ALUNO: Não nos apegando.

JOKO: Não nos apegando e sendo propensos a ser...

ALUNO: Quem somos e onde estamos.

JOKO: Sim

qu em s om os e on de es ta m os , exa ta m en te a qu i e a gora . Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , es ta m os n os d is pon do a fa zer is s o por m a is ou m en os t rês s egu n dos . Depois , qu a s e qu e im ed ia ta m en te, já es tá a li o des ejo de m ovim en to, de a gita çã o, de pensar, de fazer alguma coisa.

Nos term os m a is s im p les qu e con s igo en con tra r , exis tem dois t ipos de p rá t ica . Um é a ten ta t iva de n os a per feiçoa rm os ra p ida m en te. Au m en ta m os n os s a en ergia , com em os m elh or , purificamo-n os de a lgu m a m a n eira e força m o-n os a ter u m a m en te cla ra . As pes s oa s pen s a m qu e ilu m in a çã o é o res u lta do des s es es forços , m a s n ã o é. Cla ro, é bom a lim en ta r -s e de m a n eira a de-qu a da , p ra t ica r exercícios , fa zer a qu ela s cois a s qu e n os torn a rã o m a is s a u dá veis . E es s e es forço de viverm os m elh or , de s egu ir por u m caminho que nos levará a alguma parte, pode produzir pessoas qu e pa recem m u ito s a n t ifica da s , m u ito ca lm a s , m u ito impressionantes.

Page 136: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Do pon to de vis ta do s egu n do t ipo de p rá t ica , n o en ta n to, es s a n oçã o de n os t ra n s form a rm os em a lgo d iferen te e m elh or n ã o tem s en t ido. Por qu ê? Porqu e s en do a pen a s com o s om os es tá bem . Uma vez, porém, que sermos como somos não parece bom, ficamos confusos, transtornados, raivosos. Essa declaração de que estamos bem sendo como somos e pronto não faz para nós o menor sentido.

Podem os es cla recer es s a qu es tã o de u m a ou tra m a n eira . Se es ta m os con s cien tes de n os s os pen s a m en tos , a ten dên cia deles é des a pa recer . Nã o podem os es ta r con s cien tes de pen s a r s em qu e o pen s a r com ece a m in gu a r , a d is s olver -s e. Um pen s a m en to é s im ples m en te u m ta n t in h o de en ergia , m a s a ele a cres cen ta m os n os s a s cren ça s con d icion a da s e ten ta m os depois n os a pega rm os a o pen s a m en to. Qu a n do o con s idera m os da pers pect iva de n os s a percepçã o con s cien te im pes s oa l, ele des a pa rece. Qu a n do olh a mos pa ra u m a pes s oa , porém , ela des a pa rece? Nã o, ela perm a n ece. E es s a é a d iferen ça en t re rea lida de e a vis ã o ilu s ór ia da rea lida de qu e tem os , qu a n do vivem os em n os s os pen s a m en tos : qu a n do verda deira m en te con s idera dos com a ten çã o, a qu ela permanece, es ta des a pa rece. A vers ã o pes s oa l da vida s im ples m en te s e des fa z. O qu e n ós qu erem os é s er u m a vida rea l. Is s o é d iferen te de s e viver como um santo.

Todos n ós s om os s edu zidos pelo fa s cín io des te t ipo de p rá t ica : qu erem os n os torn a r ou tra cois a qu e n ã o s om os . Pen s a m os qu e, qu a n do n os s en ta m os em sesshin, es ta m os n os t ra n s form a n do em a lgu m a cois a qu e é u m a ed içã o a per feiçoa da . Mes m o qu a n do des per ta m os pa ra a verda de da s cois a s , o des ejo, bem n o fu n do, é qu erer a lgu m a ou tra cois a qu e s im ples m en te n ã o es tá a li. Nã o tem os de n os livra r de n os s os pen s a m en tos ; ba s ta qu e n os m a n ten h a m os olh a n do pa ra eles . Se p rocederm os a s s im , eles s e des m a n ch a rã o n o n a da . Qu a lqu er cois a qu e s e des m a n ch a n o n a da n ã o é rea l. Ma s a rea lida de n ã o des a pa rece a pen a s porqu e estamos olhando para ela.

ALUNO: Nã o h a ver ia a n eces s ida de de a lgu m t ipo de ob jet ivo pa ra qu e pu des s e a con tecer u m proces s o a fin a l, pa ra qu e s e chegasse em algum resultado?

JOKO: O que você quer dizer com "processo1*?

ALUNO: Processo é fazer alguma coisa.

Page 137: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: A percepçã o con s cien te é u m fa zer? Exis te u m a d iferen ça en t re fa zer a lgu m a cois a

por exem plo, "Vou s er u m a

boa pes s oa "

e a s im ples percepçã o con s cien te do qu e es tou

fazendo. Va m os s u por qu e es tou fa zen do u m a fofoca . Fofoca r é fa zer a lgu m a cois a , m a s a percepçã o con s cien te d is s o n ã o é u m fazer , u m leva r cois a s a a con tecerem . A ba s e do fa zer é o pen s a m en to de qu e a s cois a s dever ia m s er d iferen tes do qu e ela s são.

Em vez de d izer a m im m es m a "Ten h o de m e torn a r u m a pes s oa m elh or" e ten ta r fa zer is s o, eu dever ia s im ples m en te tom a r con s ciên cia do qu e es tou fa zen do

por exem plo, obs erva r qu e toda vez qu e en con tro u m a determ in a da pes s oa eu a coloco de fora . Qu a n do eu t iver m e a com pa n h a do fa zen do is s o u m a cen ten a de vezes , a lgo a con tece. O pa drã o s e des a r t icu la , e torn o-m e u m a pessoa melhor, embora eu n ã o ten h a a gido s egu n do a instrução da s en ten ça pa ra s er u m a pes s oa m elh or . A percepçã o con s cien te n ã o tem s en ten ça s , n ã o tem pen s a m en tos n es s e s en t ido. É a pen a s percepçã o con s cien te. É is s o o s en ta r n a p rá t ica : n ã o fica r p res o n a m en te, n ã o en t ra r n a a rm a d ilh a de es força r -s e pa ra ch ega r em alguma parte, para tornar-se um buda.

ALUNO: Pa rece u m pa ra doxo. Nu m n ível, n os s a m en te es tá fazendo a lgo de form a a t iva e, n u m ou tro, es ta m os con s cien tes do qu e n os s a m en te es tá fa zen do. Em qu e con s is te a percepção consciente?

JOKO: No pen s a m en to com u m , a m en te s em pre tem u m ob jet ivo, a lgu m a cois a qu e irá ob ter . Se n os a tola m os n es s es p rojetos do qu e ob ter , en tã o s om e a percepçã o con s cien te da rea lida de. Terem os s u bs t itu ído a percepçã o con s cien te por u m s on h o pes s oa l. A percepçã o con s cien te n ã o a n da , n ã o s e en ter ra em sonhos; ela apenas permanece onde está.

A p r in cíp io, a d is t in çã o en tre o pen s a m en to cor r iqu eiro e a percepçã o con s cien te pa rece s u t il e es qu iva . Con form e p ra t ica mos, con tu do, a d is t in çã o s e torn a ca da vez m a is n ít ida : com eça m os a n ota r ca da vez m a is com o n os s os pen s a m en tos s ã o ocu pa dos com a ten ta t iva de ch ega rm os em a lgu m lu ga r , e com o fica m os p r is ion eiros deles , de ta l m odo qu e n ã o con s egu im os m a is repa ra r no que está realmente presente em nossas vidas.

Page 138: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: A im pres s ã o qu e dá é qu e ou es ta m os obs erva n do o qu e es tá a con tecen do, ou fica m os a tola dos n o con teú do de n os s os pensamentos.

JOKO: Cer to. Nã o h á n a da de er ra do com u m pen s a m en to em si. É a pen a s u m a dos e de en ergia . Ma s qu a n do n os p ren dem os em s eu con teú do, n a s pa la vra s do pen s a m en to, en tã o o terem os a r ra s ta do pa ra n os s os dom ín ios pes s oa is e qu ererem os fica r a pe-gados a ele.

ALUNO: Fica r a pega do a u m pen s a m en to exige u m a cren ça . Na n oite pa s s a da , en qu a n to ia pa ra u m cer to lu ga r , m in h a m en te esta va rep leta de pen s a m en tos e s en t im en tos . Eu a cred ita va qu e estava praticando: eu sabia que estava com raiva, que estava tenso, qu e es ta va a p res s a do, e m in h a p is ta era eu es ta r com u m a ra iva ca da vez m a ior , ca da vez m a is con tra r ia do. De repen te eu d is s e pa ra m im m es m o: '*Qu a l é a p rá t ica n es te exa to m om en to?". E u m m ilh ã o de pon tos de lu z ilu m in ou o qu e es ta va a con tecen do n a m in h a m en te. De u m a pers pect iva com pleta m en te im pes s oa l a in da h a via o m es m o con teú do

ra iva , p res s a , ten s ã o fís ica , m a s n a da t in h a qu e ver com a m in h a pes s oa . Era qu a s e com o obs erva r uma barata no chão da cozinha.

JOKO: Quando começamos a observar os pensamentos e senti-m en tos , eles com eça m a s e d is s olver . Nã o con s egu em m a n ter -se sem a sustentação de nossa crença neles.

ALUNO: Quando n os a tola m os des s e jeito n os n os s os pensamentos , n os s o m u n do fica m a is es t reito. Nã o tem os m a is u m a pers pect iva do todo. Qu a n do leva m os n os s a percepçã o con s cien te pa ra n os s os pen s a m en tos , es s a es t reiteza a la rga e os pensamentos restritivos começam a sumir.

JOKO: Sim . Se n os s a s vida s n ã o es tã o m u da n do en qu a n to va m os p ra t ica n do, en tã o a lgu m a cois a er ra da es tá ocorren do com o que estamos fazendo.

ALUNO; Qu a n do n os a tola m os em n os s os pen s a m en tos , geramos ansiedade, não é?

JOKO: Sim . A a n s ieda de é s em pre u m a d is tâ n cia en t re o m odo com o a s cois a s s ã o e o m odo com o pen s a m os qu e ela s ter ia m de s er . A a n s ieda de é a lgo qu e s e es ten de en t re o rea l e o ir rea l. Nos s o des ejo h u m a n o é evita rm os a qu ilo qu e é rea l e, em lu ga r dele, es ta rm os n o dom ín io de n os s a s idéia s a res peito do m u n do: Sou

Page 139: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ter r ível"; "Você é ter r ível"; "Você é m a ra vilh os a ". A idéia é s epa ra da da rea lida de, e a a n s ieda de é a d is tâ n cia en t re a idéia e a rea lida de de qu e a s cois a s s ã o a pen a s com o ela s s ã o. Qu a n do pa ra m os de a cred ita r n o ob jeto qu e cr ia m os

qu e es tá por a s s im d izer

des loca do pa ra u m s ó dos la dos da rea lida de , a s cois a s ra p ida m en te s e rea lin h a m de volta n o cen tro. É is s o qu e s ign ifica dizer que algo ou alguém é centrado. A ansiedade então desaparece de vista.

ALUNO: Pa rece qu e fico ext rem a m en te ten s o com es s a tentativa de me ater à percepção consciente.

JOKO: Se você es tá ten ta n do a ter -s e à percepçã o con s cien te, is s o é u m pen s a m en to. Nós u s a m os u m a pa la vra com o percepção consciente e em s egu ida a s pes s oa s torn a m -n a a lgo es pecia l. Se não es ta m os ten ta n do (ten te por a pen a s dez s egu n dos pa ra r de pen s a r ), n os s o corpo rela xa , e con s egu im os ou vir e obs erva r tu do o qu e es tá s e pa s s a n do. No in s ta n te m es m o em qu e pa ra m os de pen s a r , es ta m os con s cien tem en te percep t ivos . A percepçã o con s cien te n ã o é a lgo qu e ten h a m os de s er

é u m a a u s ên cia de alguma coisa. O que é a ausência de uma coisa?

ALUNO: Não é que estamos só mudando aquilo de que estamos côn s cios ? Nã o a ca ba m os de decid ir qu e s em pre es ta m os con s -cien tes ? Min h a p rem is s a é qu e a vida é s em pre percepçã o con s -cien te. Sem pre es ta m os cien tes de a lgu m a cois a . Qu a n do n os s en ta m os n a p rá t ica (em cer to s en t ido, is s o é u m pa ra doxo), tem os um objetivo nesse sentar: estamos refocalizando a nossa percepção consciente, talvez tornando-a mais aguda a respeito de algo.

JOKO: Nã o, is s o tom a a percepçã o con s cien te fa zer a lgu m a cois a . A percepçã o con s cien te é com o o ca lor qu e s obe n u m d ia de verã o: a s n u ven s n o céu a pen a s des a pa recem . Qu a n do es ta m os conscientes, o irreal simplesmente desaparece e não temos de fazer nada.

ALUNO: Há m a is percepçã o con s cien te depois de u m sesshin que antes?

JOKO: Nã o, a d iferen ça é qu e n ã o a es ta m os b loqu ea n do. A percepçã o con s cien te é o qu e s om os , m a s n ós a b loqu ea m os com pen s a m en tos a u tocen tra dos : s on h a n do, fa n ta s ia n do, fa zen do tu do a qu ilo qu e qu erem os fa zer . Ten ta r s er con s cien te é s ó o pen s a m en to com u m , n ã o é a percepçã o con s cien te. Tu do o qu e

Page 140: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

precis a m os fa zer é tom a r con s ciên cia de n os s os pen s a m en tos a u tocen tra dos . Fin a lm en te, eles des a pa recem n a d is tâ n cia e n ós res ta m os a pen a s a li. Em bora s e pos s a d izer qu e es ta m os fa zen do u m a cois a , a percepçã o con s cien te n ã o é u m a cois a n em u m a pes s oa . A percepçã o con s cien te é a n os s a vida qu a n do n ã o es ta -mos fazendo mais nada.

ALUNO: A s im ples percepçã o con s cien te n ã o tem m a is n a da . Não tem espaço, tempo, nada.

JOKO: Cer to, a percepçã o con s cien te n ã o tem es pa ço, tem po, n em iden t ida de

e, a pes a r d is s o, é qu em s om os . No m es m o

in s ta n te em qu e fa la m os dela ela já s e foi. Em term os de p rá t ica , n ã o tem os de ten ta r s er con s cien tes . O qu e tem os de fa zer é obs erva r n os s os pen s a m en tos . Nã o devem os ten ta r s er con s cien tes ; sempre s om os con s cien tes , a m en os qu e es teja m os a p r is ion a dos em n os s os pen s a m en tos a u tocen tra dos . Es s a é a fin a lida de de rotularmos nossos pensamentos.

ALUNO: Então às vezes estamos conscientemente percebendo e não notamos isso.

joko: É.

ALUNO: Ta lvez a d iferen ça en t re os pen s a m en tos com u n s n os qu a is a cred ita m os e a percepçã o con s cien te é qu e u m pen s a m en to em qu e s e a cred ita n ã o s e s u s ten ta n a percepçã o con s cien te, ele não é reconhecido como um simples pensamento.

JOKO: Cer to. E le n ã o é vis to a pen a s com o o fra gm en to de en ergia qu e é de fa to. Nós o con s idera m os rea l, e a cred ita m os n ele. En tã o ele com eça a d ir igir o es petá cu lo, em vez de a percepçã o consciente desempenhar esse papel, que é o que deveria acontecer.

ALUNO: Cos tu m o n ota r a percepçã o con s cien te de m a n eira mais acentuada quando não estava sendo consciente. Por exemplo: de repen te m e dou con ta de qu e es tou n o t ra ba lh o e n em s ei com o cheguei lá e então acordo.

JOKO: Exceto o bu da , todo m u n do flu tu a pa ra den tro e pa ra fora da percepçã o con s cien te. Ma s qu a n to m a is tem po de p rá t ica t iverm os , m a ior a porcen ta gem de tem po de n os s a s vida s qu e s erá leva da n a percepçã o con s cien te. Du vido qu e a lgu ém con s iga u m dia viver totalmente na percepção consciente.

Page 141: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Você d is s e "qu a n to m a is tem po de p rá t ica t iverm os ", m a s n a rea lida de você es ta va s e refer in do à form a com qu e colocamos a atenção no presente?

JOKO: Sim . É pos s ível p ra t ica r s en ta do por vin te a n os e mesmo assim não ter noção do que é essa prática. Mas, se estamos s en ta n do e p ra t ica n do com a tota lida de de n os s a vida , en tã o s em s om bra de dú vida o m on ta n te de percepçã o con s cien te a u m en ta . Eu cos tu m a va pa s s a r m eta de da vida deva n ea n do. Era "a gra dá vel''.

ALUNO: Durante muitos anos, minha prática sentada consistiu em primeiro me desligar do meio ambiente e depois do meu corpo e depois recitar Mu sem parar. Eu era totalmente consciente de nada.

JOKO: Sim , es s a é u m a form a de p rá t ica con cen tra da qu e, pa ra a lgu m a s pes s oa s , p rodu z efeitos rá p idos e in ten s os , m u ito agradá veis . Nã o a ju da m u ito a vida des s a pes s oa . De todo jeito, o Mu não tem de ser praticado dessa forma.

ALUNO: Qu a n do foca lizo a a ten çã o n a percepçã o con s cien te, parece qu e obs ervo m a is dor em m eu corpo. Ma s s e eu s im ples -mente "via ja r" n ã o ten h o m a is p rob lem a de dor , n em s in to dor . Depois a cordo e tom o con s ciên cia , e lá es tá a dor de n ovo. Por qu e a dor desaparece quando eu "viajo"?

JOKO: Bom , n os s os s on h os s ã o n a rcót icos poderos os . Por is s o é qu e gos ta m os ta n to deles . Nos s os s on h os e n os s a s fa n ta s ia s s ã o vicia n tes , da m es m a form a com o a s s u bs tâ n cia s ca u s a dora s de vícios.

ALUNO: Nã o exis te u m a s epa ra çã o da rea lida de s e s en t im os dor?

JOKO: Não, se a sentirmos totalmente.

ALUNO: Se eu rea lm en te m e tom o a dor , es s a dor simplesmente des a pa rece. Porém , a s s im qu e ten h o u m pen s a m en to a res peito, s ofro. Qu a n do obs ervo a dor e ten h o o pen s a m en to qu e d iz qu e é dolor ida , o s ofr im en to perm a n ece, m a s s e eu s im ples m en te a obs ervo com o u m a s en s a çã o in ten s a , o sofrimento some.

JOKO: Qu a n do con s egu im os ver a dor com o a pen a s u m a s en s a çã o es tá vel com m u ita s va r ia ções m ín im a s , torn a -se in teres s a n te e a té m es m o bela . Toda via , s e n os a p roxim a m os dela

Page 142: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

com a idéia de que iremos fazê-la sumir, isso é só um outro jeito de ir atrás de um estado búdico.

ALUNO: Qu a n do com eço a p rá t ica , torn o-m e con s cien te em gera l de es ta r m u ito ten s o, com u m a dor de a per to por todo o corpo. Sin to-a com o a lgo qu e es tá s im ples m en te a li do ou tro la do de m in h a percepçã o con s cien te. Du ra n te a n os a s pes s oa s vivia m m e d izen do: "Você es tá tã o ten s o!" e eu res pon d ia "Nã o es tou ten s o". Hoje percebo qu e eu s im ples m en te n ã o perceb ia es s a ten s ã o, m a s es ta va lá . Eu u s a va m eu s pen s a m en tos pa ra b loqu ea r a percepçã o con s cien te dela . A ten s ã o e a dor es ta va m lã , a pen a s despercebidas.

JOKO: A ten s ã o e a dor s ã o rea is ? Algo es tá lá , m a s o qu e é? Um a n oite des s a s eu es ta va a n da n do a o lon go da cos ta , en qu a n to o lu a r b r ilh a va s obre a á gu a do m a r . Eu con s egu ia ver u m la m pejo brilhante de luz sobre o oceano, ou era o luar que realmente estava ali? O oceano realmente tem algo sobre sua superfície? Qual é essa cor? E rea l ou n ã o? Nen h u m a da s in da ga ções é cor reta . De m in h a pers pect iva , o lu a r es ta va s obre a á gu a . Ma s , s e eu t ives s e m e a proxim a do m a is da ton a d 'á gu a , n ã o ter ia vis to lu a r n en h u m sobre sua superfície. Eu teria visto qualquer coisa que ali houvesse pa ra s e ver . Nã o exis te is s o de lu a r s ob re a á gu a , litera lm en te fa la n do. Qu a n to à s n u ven s do céu : qu a n do es ta m os n u m a n u vem , chamamo-la de n évoa . Da m es m a form a , em pres ta m os u m t ipo de fa ls a rea lida de a n os s os pen s a m en tos . É verda de qu e s em pre vivem os den tro de u m a determ in a da pers pect iva . A p rá t ica d iz res peito a a p ren der a viver n es s a rea lida de rela t iva , des fru ta n do-a, m a s en xerga n do-a com o de fa to é. Com o o lu a r s obre a á gu a , es tá lá

s egu n do u m a cer ta pers pect iva rela t iva

e n ã o é rea l, n ã o é o a bs olu to. Até m es m o a á gu a em s i tem a pen a s u m a rea lida de pa rcia l. Qu a n do n ã o h á lu z s obre a á gu a , vem os qu e ela é p reta . Um d ia eu es ta va ja n ta n do n u m res ta u ra n te qu e fica va n a or la m a r ít im a e a vi m u da r de cor , de a zu l pa ra a zu l-es cu ro, pa ra pú rpu ra a in da m a is es cu ro e fin a lm en te n ã o con s egu i m a is vê-la. O qu e é rea l? Em term os a bs olu tos , n a da d is s o é rea l. Em term os de n os s a p rá t ica , n o en ta n to, devem os com eça r com n os s a s exper iên cia s , com es te t ra ba lh o m et icu los o s obre a percepçã o con s cien te. Precis a m os retorn a r à rea lida de de n os s a s vida s . Tem os dores e pa decim en tos , t em os a dvers ida des , gos ta m os da s pes s oa s ou n ã o: es s e é o con ju n to de cois a s qu e com põe a n os s a vida. É aí que começa nosso trabalho com a percepção consciente.

Page 143: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

RECOBRANDO O JUÍZO

Todos n ós des eja m os a in teireza , a tota lida de. Qu erem os s er pes s oa s com pleta s ; qu erem os u m a s en s a çã o de com pleta m en to; qu erem os fica r em pa z em n os s a s vida s . Ten ta m os s olu cion a r es s e problema, pensar num jeito de chegar na totalidade.

Va m os s u por qu e es ta m os n u m a ca m in h a da por u m a m on -ta n h a e qu e n os s en ta m os à m a rgem de u m r ia ch o. O qu e s ign ifica ser "inteiro" nesse momento?

ALUNO: Ser in teiro s ign ifica r ia s en t ir o a r em m in h a pele e ouvir os sons.

JOKO: Sim...

ALUNO: Pensar em mim.

JOKO: Qu a n do pen s a m os em n ós , s epa ra m o-n os da experiência que estamos vivendo e não somos mais inteiros.

ALUNO: Sentir-m e s en ta do n o ch ã o, em con ta to com a s folh a s e o solo. Observar-me pensando a meu respeito.

JOKO: Sim, essa é a percepção consciente.

ALUNO: Ver o r ia ch o, s en t ir os odores n a tu ra is da ter ra , s en t ir o sol nas minhas costas.

JOKO: Sim, isso também é parte da experiência.

ALUNO: Sen t ir o qu e n ã o es tá p res en te. Por exem plo, qu a n do es tou n u m lu ga r t ra n qü ilo pos s o s en t ir a a u s ên cia de dor . Es s a é uma sensação boa: não existe dor.

JOKO: Es s e é u m t ipo de pen s a m en to qu e n os a fa s ta da percepção consciente ou totalidade. Não há nada de errado com ele, m a s a in da é a lgo ext ra . É com o s e, n o m eio de u m pôr-do-s ol m a g-n ífico a qu e es teja m os a s s is t in do, d is s és s em os : "Ma s qu e pôr-do-sol maravilhoso!". Teríamos nos distanciado um pouco.

En qu a n to es t iverm os s en ta dos à m a rgem do r ia ch o, p rova -velm en te n ã o terem os s en s a ções de s a bor . Ma s va m os s u por qu e es ta m os n u m ja n ta r de Açã o de Gra ça s : é s u rp reen den te com o poucas pessoas realmente sentem o sabor do que estão comendo.

Page 144: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Qu a n do es tou s en ta do per to de u m r ia ch o à s vezes m e dá a im pres s ã o de con s egu ir qu a s e s en t ir es s e r ia ch o em m eu corpo.

JOKO: Ta lvez você es teja fa la n do a cerca n ã o de u m a s en s a çã o, m a s de u m pen s a m en to m u ito s u t il, da qu ele t ipo qu e leva a s pessoas a escreverem livros a respeito do que é estar na natureza.

Se es ta m os a pen a s s en ta dos à m a rgem do r ia ch o, s en t in do tu do o qu e h á pa ra s er s en t ido, n ã o h á n a da a í de s en s a cional: es ta m os a pen a s s en ta dos a li. Va m os s u por , n o en ta n to, qu e co-m eça m os a pen s a r a res peito de n os s os p rob lem a s n a vida . Tor-namo-n os a bs orvidos em n os s os pen s a m en tos , deb ru ça n do-nos s obre com o n os s en t im os a res peito des s es p rob lem a s e do qu e podem os fa zer a respeito deles

e de repen te es qu ecem o-n os de tu do o qu e es tá va m os s en t in do h á u m m in u to a pen a s . Nã o vem os m a is a á gu a , n em s en t im os o ch eiro da m a deira , n em o n os s o corpo. As sensações sumiram. Nesse momento, teremos sacrificado a n os s a vida pa ra poderm os pen s a r a respeito de cois a s qu e n ã o estão presentes, que não são reais, aqui, agora.

Na p róxim a vez qu e es t iverem n u m ja n ta r de Açã o de Gra ça s , ou em qu a lqu er refeiçã o, a liá s , pergu n te pa ra você m es m o s e es tá verda deira m en te s a borea n do s u a com ida . Pa ra a m a ior ia , a exper iên cia de com er u m a refeiçã o é, n a m elh or da s h ipóteses, parcial.

Sem a percepçã o con s cien te de n os s a s s en s a ções , n ã o es ta -m os p len a m en te vivos . A vida é in s a t is fa tór ia pa ra a m a ior ia da s pes s oa s porqu e ela s es tã o a u s en tes de s u a s vivên cia s , qu a s e o tem po todo. Se es ta m os p ra t ica n do s en ta dos h á a lgu n s a n os , fazemo-lo u m pou co m en os . Nã o con h eço n in gu ém com pleta mente presente o tempo todo, porém.

Som os com o o peixe qu e es tá n a da n do de u m la do pa ra ou tro, olh a n do pa ra o gra n de ocea n o da vida , m a s in con s cien te do qu e o cerca . Com o o peixe, in da ga m o-n os s obre o s en t ido da vida , s em perceberm os a á gu a à n os s a volta e o ocea n o em qu e es ta m os m ergu lh a dos . O peixe fin a lm en te en con tra u m profes s or qu e com preen de e lh e pergu n ta : "Qu a l é o gra n de ocea n o?". E o professor apenas ri. Por quê?

ALUNO: Porqu e o peixe jã es ta va n o ocea n o e s im ples m en te não o havia percebido,

Page 145: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Sim. O oceano era s u a vida . Sepa re u m peixe da á gu a e n ã o h á m a is vida pa ra ele. Da m es m a form a , s e n os s epa ra rm os de noss a vida , qu e s e com põe da qu ilo qu e vem os , ou vim os , toca m os , a s p ira m os e a s s im por d ia n te, terem os perd ido o con ta to com o que somos.

Nos s a vida é s em pre a pen a s es ta vida . Nos s o com en tá r io pes s oa l s obre a vida

toda s a s op in iões qu e tem os dela

é a

causa de n os s a s d ificu lda des . Nã o con s egu ir ía m os n os a borrecer s e n ã o es t ivés s em os deixa n do de fora a n os s a vida . Se n ã o es t ivés s em os deixa n do de fora o ou vir , o ver , o s en t ir s a bores , odores , a s en s a çã o cin es tés ica de s im ples m en te es ta r s en t in do nosso corpo, não conseguiríamos nos aborrecer. Por que é assim?

ALUNO; Porque estamos no presente.

JOKO: Sim. Não pod em os n os a borrecer , a m en os qu e n os s a m en te n os ten h a rem ovido do p res en te e leva do pa ra pen s a m en tos ir rea is . Sem pre qu e es ta m os con tra r ia dos es ta m os literalmente * 'de fora'': deixamos algo de fora. Somos como um peixe fora d'água. Qu a n do es ta m os n o p res en te, p len a m en te con s cien tes , n ã o con s egu im os ter u m a idéia do t ipo: "Oh , es s a vida é tã o d ifícil. Tã o s em s en t ido!". Se fa zem os is s o, deixa m os a lgu m a cois a de fora . Só isso!

Um bom a lu n o recon h ece qu a n do s e d is ta n ciou e retorn a à vivên cia im ed ia ta . Às vezes a pen a s ba la n ça m os a ca beça e res -ta belecem os a ba s e de n os s a vida , os a licerces da vivên cia . Des s es a licerces b rota m pen s a m en tos , a ções e u m a cr ia t ividade per feita m en te a dequ a dos . Tu do is s o n a s ce des s e es pa ço da vi-vência, em que os sentidos simplesmente se encontram abertos.

Qu a n do es ta va com dezes s eis , dezes s ete a n os eu gos ta va de tocar os corais de Bach no piano. Um que me agradava em especial era ch a m a do "Em Teu s Bra ços Eu Me Des ca n s o". A t ra du çã o p ros s egu e a s s im : "Os in im igos qu e m e a ta ca r ia m n ã o con s egu em encontrar-m e a qu i". Em bora s eja da t ra d içã o cr is tã , em gera l du a lis ta , es s e cora l t ra ta do es ta r p res en te e des per to. Exis te u m lu ga r de repou s o em n os s a s vida s , u m lu ga r on de devem os es ta r pa ra poderm os fu n cion a r bem . Es s e lu ga r de des ca n s o

os bra ços de Deu s , s e qu is erem ch a m á -lo a s s im

é s im ples m en te a qu i e a gora : ver , ou vir , toca r , s en t ir odores e s a bores , s en t ir a vida com o ela é. Podem os a té a cres cen ta r * 'pen s a r" a es s a lis ta , s e en ten dem os o pen s a r com o a pen a s o fu n cion a m en to n a tu ra l e n ã o

Page 146: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

com o a s reflexões do ego qu e s e ba s eia m em m edo e a pego. Apen a s pen s a r , n o s en t ido fu n cion a l, in clu i o pen s a m en to a bs t ra to, o pen s a m en to cr ia t ivo, ou p la n eja r o qu e tem os pa ra fa zer h oje. Com exces s iva freqü ên cia , porém , a cres cen ta m os pen s a m en tos n ã o fu n cion a is , ba s ea dos n o ego, qu e n os leva m à s d ificu lda des e n os retiram dos braços de Deus.

Um a vida qu e fu n cion a des ca n s a s obre es s es s eis a licerces : os cin co s en t idos m a is o pen s a m en to fu n cion a l. Qu a n do n os s a s vida s es t iverem a poia da s n es s es s eis pon tos de s u s ten ta çã o, n e-nhum problema ou contrariedade pode nos alcançar.

Um a cois a é ou vir u m a pa les t ra dharma s obre es s a s verdades, con tu do, e ou tra viver s egu n do es s es en s in a m en tos . No in s ta n te em qu e a lgo n os con tra r ia , s u b im os im ed ia ta m en te pa ra n os s a ca beça e ten ta m os res olvê-lo. Ten ta m os recu pera r n os s a s egu ra n ça pen s a n do. Pergu n ta m os com o podem os n os m odifica r ou m u da r a lgu m a cois a fora de n ós

e es ta m os perd idos . Pa ra res ta belecerm os n os s a vida em fu n da m en tos firm es , tem os de retorn a r à qu ela s s eis pern a s da rea lida de vá r ia s vezes s egu ida s . Es s a é toda a p rá t ica de qu e p recis a m os . Se m e ocorre o m a is s u t il pensamento de irritabilidade a respeito de alguém, a primeira coisa qu e fa ço n ã o é com eça r a pen s a r n u m jeito de con s er ta r es s a s itu a çã o, m a s a pen a s pergu n ta r pa ra m im m es m a : "Es tou m es m o con s egu in do es cu ta r os ca r ros n o beco?". Qu a n do recu peramos com pleta m en te u m dos s en t idos , com o o da a u d içã o, en tã o os res ta belecem os todos , pois todos fu n cion a m n o m om en to p res en te. As s im qu e recu pera m os a percepçã o con s cien te, vem os o qu e fa zer a res peito da s itu a çã o. A a çã o qu e decorre da vivên cia des per ta quase sempre é satisfatória. Dá certo.

Vocês podem d izer : "Is s o pode s er verda de com os p rob lemas s im ples , m a s du vido qu e dê cer to com os gra n des e com plicados prob lem a s qu e ten h o de en fren ta r". Es s e p roces s o n a rea lida de fu n cion a , porém , qu ã o "s ér io" s eja o p rob lem a . Pode s er qu e n ã o en con trem os a s olu çã o pela qu a l es ta m os p rocu ra n do, e a res olu çã o pode ta m bém n ã o s er im ed ia ta , m a s en xerga rem os qu a l o p róxim o pa s s o a s er da do, Com o tem po, a p ren dem os a con fia r n o p roces s o, a ter fé qu e a s cois a s irã o fu n cion a r da m elh or form a pos s ível d ia n te de s u a s circu n s tâ n cia s . A pes s oa com qu em con tá va m os n ã o a pa receu , fu rou o em prego qu e qu eríamos, doen ça s fís ica s n os im por tu n a m : em vez de fica rm os gira n do em círcu los em n os s os pen s a m en tos , p reocu pa n do-n os com os

Page 147: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

prob lem a s , qu a n do res ta belecem os os a licerces de n os s a vida n a experiência imediata, vemos como agir de maneira apropriada.

Nã o es tou s u ger in do qu e deva m os a gir à s cega s , por m eros im pu ls os . Precis a m os n os in form a r , con h ecer a s cois a s óbvia s a res peito do p rob lem a ; p recis a m os u s a r n os s a in teligên cia n a tu ra l, n os s o pen s a m en to fu n cion a l. Por exem plo, va m os s u por qu e es tou com dor de den te. Se com eço a pen s a r em com o odeio ir a o den t is ta , com s u a s b roca s e a gu lh a s e todo o in côm odo, fico gira n do em círcu los den tro da m in h a ca beça e cr io u m im en s o, p rob lem a pa ra m im m es m a . Se regres s o a os a licerces de m in h a vida , n a s m in h a s exper iên cia s d ireta s , por ou tro la do, pos s o m e dizer: "Bom, agora é só uma pontada. Vou ficar de olho e continuar com o qu e es tou fa zen do. Se es s a pon ta da in s is t ir , ou fica r p ior , telefon o pa ra o den t is ta e m a rco u m a con s u lta ". Com es s a es pécie de abordagem tudo entra nos eixos.

ALUNO: O per igo de eu retorn a r à s m in h a s s en s a ções com u n s é qu e eu pos s o es ta r b loqu ea n do a percepçã o de m in h a a n s ieda de ou p reocu pa çã o de u m a m a n eira a té ra d ica l, com o s e es s a s cois a s não existissem.

JOKO: An s ieda de n a da m a is é qu e cer tos pen s a m en tos e u m a s en s a çã o con com ita n te de ten s ã o ou con tra çã o n o corpo. Retornar a os n os s os s en t idos s ign ifica obs erva r os pen s a m en tos em s u a rea lida de e tom a r con s ciên cia da ten s ã o n o corpo. A percepção con s cien te da ten s ã o é, a fin a l de con ta s , s ó u m a ou tra s en sação física, ao lado de ver, sentir odores etc.

Pa rece u m a cois a lou ca d izer qu e, qu a n do tem os u m pro-b lem a , dever ía m os es cu ta r o t rá fego. Ma s , s e rea lm en te ou vimos, nossos ou tros s en t idos ta m bém cobra m vida . Sen t im os a con tra çã o em n os s o corpo ta m bém . Qu a n do fa zem os is s o, a lgu ma cois a m u da , e fica m a is cla ra a a t itu de qu e tom a rem os com o resposta.

ALUNO: Os s en t idos n ã o fu n cion a m n u m a es pécie de "tem po repa r t ido"? Se es ta m os tota lm en te m ergu lh a dos n a a u d içã o de u m s om , n ã o es ta m os b loqu ea n do os ch eiros , s a bores etc? Ou vir rea lm en te o ba ru lh o dos ca r ros pode s ign ifica r qu e es tou ign o-rando o resto do meu corpo.

JOKO: Es s a es pécie de a ten çã o exclu s iva a u m s ó m odo s en s or ia l é o res u lta do de u m pen s a m en to s u t il, ta lvez a n s ios o, do

Page 148: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

t ipo "Ten h o de fa zer is s o" ou "Es tou em per igo". Se es ta m os com pleta m en te a ber tos , en volvem o-n os em todos os n os s os s en -tidos ao mesmo tempo.

ALUNO: Nem s em pre volto logo pa ra os m eu s s en t idos . Se estou p reocu pa do com a lgu m a cois a , pos s o pen s a r s obre is s o du ra n te u m a s em a n a , a pes a r de m eu s es forços pa ra p res ta r atenção no trânsito ou no que for.

JOKO: Sim , depen den do de h á qu a n to tem po e com qu a n ta firmeza es ta m os p ra t ica n do, es s e p roces s o leva tem po. A ca pa cida de de des loca r -s e com ra p idez é o s in a l d is t in t ivo de u m a p rá t ica qu e já es tá a con tecen do h á m u itos a n os . Algu m a s pes s oa s cons egu em a pega r -s e à s u a in felicida de du ra n te a n os . E rea lm en te gos ta m d is s o. Há pou co tem po a lgu ém es ta va m e d izen do com o ela a p recia s u a s en s a çã o de es ta r s em pre cer ta . Qu em qu er fica r p res ta n do a ten çã o n o ba ru lh o dos ca r ros s e pode des fru ta r es s a s en s a çã o de s er qu em tem s em pre ra zã o? Nã o qu erem os a ba n do-n a r os n os s os pa drões , os pen s a m en tos de qu em s om os , m es m o qu a n do recon h ecem os in telectu a lm en te qu e eles n os ca u s a m pro-b lem a s . Por is s o a pega m o-n os a eles e volta m os pa ra on de es tã o, m es m o depois de n os h a verm os recorda do qu e é pa ra recu pera r -m os o con ta to com os n os s os s en t idos . Nã o es ta m os en tã o a in da p ron tos pa ra con fia r in teira m en te n o p roces s o, pa ra ter fé em nossa vivência direta.

ALUNO: Ten h o u m a ou tra dú vida a res peito da qu es tã o do "tem po repa r t ido". Você in clu iu o pen s a m en to fu n cion a l com o u m a da s s eis pern a s da exper iên cia rea l. Va m os s u por qu e es tou t ra ba -lhando n u m com pu ta dor ou con s er ta n do u m relógio; é n a tu ra l b loqu ea r a a ten çã o da s ou tra s s en s a ções pa ra da r u m a a ten çã o completa ao que estou fazendo?

JOKO: Sim , pode h a ver u m es t reita m en to m ecâ n ico da a ten çã o em prol de u m a a t ivida de es pecífica . Is s o é d iferen te do estreitamento ps icológico, qu e vem dos pen s a m en tos autocentrados geradores de uma sutil rigidez.

ALUNO: En tã o, s e u m a da s ta refa s qu e ten h o en qu a n to m e s en to à m a rgem do r ia ch o é p la n eja r o qu e fa zer n a qu ele d ia , tu do bem?

JOKO: Sim , s u pon do qu e p la n eja r o d ia é u m a ta refa a p ropr ia da pa ra a qu ele m om en to, em vez de a lgo qu e vem de

Page 149: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pen s a m en tos a n s ios os a res peito de s i m es m o. Apen a s fa zem os o qu e tem de s er feito, qu a n do é n eces s á r io fa zê-lo. As s im qu e tivermos nos desincumbido da tarefa, voltamo-nos para o que mais es t iver a con tecen do. Nã o h á p rob lem a em es t reita r a a ten çã o qu a n do is s o for n eces s á r io pa ra rea liza r u m a ta refa . É m u ito d iferen te de fech a r n os s a vida porqu e es ta m os pen s a n do em n ós , que então se torna um impedimento psicológico desnecessário.

A d is t in çã o d iz res peito à fa ls a em oçã o versus a em oçã o verda deira . Se u m com en tá r io qu e n os fizera m h á a lgu n s d ia s a in da es tá n os a borrecen do, es s a em oçã o é fa ls a . Um a em oçã o verda deira é im ed ia ta em rela çã o à s itu a çã o: ta lvez a lgu ém m e a gr ide ou vejo qu e u m a pes s oa es tá a flita . Por u m in s ta n te fico con tra r ia da e fa ço a lgu m a cois a

e depois a ca ba . As em oções s ã o u m a res pos ta a u m a con tecim en to rea l; qu a n do es s e a con te-cim en to n ã o es tá m a is s e des en rola n do, en tã o a s em oções a s s en -ta m de n ovo. Es s a é u m a res pos ta n a tu ra l à vida . Nã o h á n a da de er ra do com a verda deira em oçã o. A m a ior ia da s pes s oa s vive à ba s e de em oções fa ls a s , porém . Ca rrega m lem bra n ça s do pa s sado ou p reocu pa ções qu a n to a o fu tu ro e com is s o cr ia m t ra n s tornos pa ra s i m es m a s . Es s e t ra n s torn o n ã o tem rela çã o com o qu e es tá a con tecen do n a qu ele m om en to. Es ta m os ru m in a n do s obre o qu e aconteceu na semana passada e não conseguimos dormir.

ALUNO: Mes m o qu e a recorda çã o es teja gera n do fa ls a s em oções , exis te u m a s en s a çã o n o corpo qu e é p res en te. A em oçã o está entalada em mim; posso senti-la.

JOKO: Sim- Por ta n to obs erva m os os pen s a m en tos con com ita n tes e s en t im os a ten s ã o do corpo. Qu a n do fa zem os is s o u m n ú m ero s u ficien te de vezes , es s e b loqu eio ces s a . E a lgu m a coisa muda.

ALUNO: Se m eu d ia es tá es pecia lm en te ocu pa do, pode acumular-s e u m a boa dos e de a n s ieda de e dá a im pres s ã o de s er mais agradável ficar então devaneando. Isso é errado?

JOKO: Se é is s o qu e você fa z, fa ça is s o. O p rob lem a é qu e, a o deva n ea r , n ós n os a fa s ta m os da vida . Qu a n do es ta m os a lienados da vida , ign ora m os a s cois a s e n os m etem os em a pu ros . É com o es t ivés s em os flu tu a n do n u m r io de á gu a s revolta s . Aqu i e a li exis tem pedra s e tocos de á rvore qu e s e p rojeta m pa ra fora d 'á gu a . Olh a r pa ra es s a s cois a s pode n os torn a r a n s ios os . Ma s ign orá-las, e em vez d is s o con tem pla r a s lin da s n u ven s n o céu , irá fa zer com

Page 150: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

que mais cedo ou mais tarde nós nos afoguemos. Prestar atenção à á gu a b ra n ca e s u a s pedra s pode pa recer a s s u s ta dor , m a s é u m a idéia muito boa, apesar de tudo,

ALUNO. Con tem pla r o céu m e dá a ilu s ã o de qu e pos s o con trola r a s cois a s . Qu a n do retorn o a os m eu s s en t idos , em gera l ten h o m edo de perder o con trole. Dá u m a s en s a çã o de t ra n qü iíiza çã o perm a n ecer n os a n t igos con d icion a m en tos e ten ta r resolver tudo só na cabeça.

JOKO: Sim . Toda p rá t ica evoca m edo. Por is s o a ltern a m os en tre viven cia r o m edo e volta r pa ra den tro da cida dela dos pensamentos . A m a ior pa r te da vida da s pes s oa s con s is te n u m a rá p ida a ltern â n cia en t re o con ta to e o d is ta n cia m en to com a exper iên cia d ireta . Nã o es pa n ta qu e a vida ta n to pa reça u m a corda bamba.

ALUNO: Volta r pa ra a exper iên cia d ireta pa rece com o a s s en ta r os pontos de sustentação da vida da pessoa.

JOKO: Sim . No in s ta n te em qu e a ten ta m os pa ra o qu e vem pelo n os s o con ju n to de órgã os dos s en t idos , es ta m os bem planta dos . Se a in da con t in u a m os con tra r ia dos , is s o qu er d izer qu e n ã o es ta m os s en t in do p len a m en te os a licerces , qu e a in da res ta algum pensar.

ALUNO: Qu a n do eu es ta va a p ren den do a joga r tên is , o p rofes s or d izia o tem po todo; "Você n ã o con s egu e ba ter d ireito n a bola se seus dois pés não estiverem bem apoiados no chão. Se uma perna estiver no ar, você não está equilibrado".

JOKO: Se n ã o m a n tem os n os s o a poio cen tra do n a s pern a s e n os pés , n os s a ten dên cia é n ã o en xerga r o qu e a con tece à n os s a volta e da r u m a t rom ba da n u m a á rvore ou t ropeça r n u m a ped ra , ou qu a lqu er cois a a s s im . Um a vida des per ta n ã o é u m a cois a s em pé nem cabeça. É muita ligada na realidade.

ALUNO: Qu a n do eu m ora va n o a lto de u m a m on ta n h a em Ma u i era m u ito fá cil deita r n a ter ra e religa r -m e com m in h as s en s a ções , m a s qu a n do es tou n o m eio de u m a s a la de a u la ba ru lh en ta com toda s a s cr ia n ça s ber ra n do, n ã o qu ero viven cia r is s o de jeito n en h u m , n em o ba ru lh o n em a ten s ã o em m eu estômago.

Page 151: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Cer to. Apes a r d is s o, a qu es tã o con t in u a s en do: pa ra negocia r n os s a s vida s de m a n eira eficien te, p recis a m os es ta r em contato tanto quanto possível.

ALUNO: An t iga m en te, em vez de a pen a s m e a br ir pa ra a experiência qu e m e ocorr ia , m in h a ten dên cia era exa gera r o p roces s o a fu n da n do n a s s en s a ções , in do a t rá s dela s de qu a lquer maneira, como um cão atrás do próprio rabo.

JOKO: Há u m pen s a m en to por t rá s de ta n to em pen h o: "Ten h o de entrar no meu roteiro".

ALUNO: Agora , es tou com eça n do a a p ren der u m a ou tra m a n eira : eu m e pergu n to on de es tá a ten s ã o em m eu corpo. Sem força r n a da , a pen a s a com pa n h o a s s en s a ções . Com o tem po aparece uma suave difusão e uma sensação de afundar por dentro, e tom o m a is con s ciên cia a in da de m in h a liga çã o com toda s a s coisas.

JOKO: Ót im o; qu a n do is s o a con tece, tem os u m es pa ço m u ito cla ro pa ra a gir . S im ples m en te s a bem os o qu e fa zer , s em fa zer cá lcu los n em con jectu ra s . O gra u de cla reza qu e en con tra m os é u m a fu n çã o do tem po e da con s is tên cia com qu e t iverm os p ra t i-ca do. E im por ta n te, porém , n ã o cr ia r u m ou tro idea l em n os s a ca beça ("Precis o fa zer com qu e is s o a con teça ") e n os es força r pa ra atingi-lo. Estamos onde precisamos estar.

Com o d izia a let ra da qu ele cora l, exis tem a licerces em n os s a vida , u m lu ga r em qu e n os s a vida s e a s s en ta . Es s e lu ga r n a da m a is é qu e n os s o m om en to p res en te, qu a n do vem os , ou vimos, viven cia m os o qu e é. Se n ã o volta rm os pa ra es s e lu ga r , viverem os nossas vidas em função do que estiver em nossa cabeça. Culpamos os ou tros , qu eixa m o-n os , s en t im os pen a de n ós . Todos es s es s in tom a s m os tra m qu e es ta m os a tola dos em n os s os pen s a m en tos . Estamos fora de con ta to com o es pa ço a ber to qu e es tá exa ta m en te a qu i. Só depois de a n os e a n os de p rá t ica é qu e s om os ca pa zes de viver no espaço aberto e desperto, a maior parte do tempo.

ALUNO: Min h a ten dên cia é ir em bu s ca de lu ga res ca lm os , s ilen cios os , on de s eja m a is fá cil a b r ir -m e pa ra o p res en te e evita r lugares como salas de aula barulhentas, onde fico tenso e distraído.

JOKO: Sim , es s e é u m im pu ls o n a tu ra l e n ã o h á n a da de er ra do n is s o. Mes m o a s s im , é u m a es pécie de evita çã o. Con form e n os s a p rá t ica va i fica n do m a is for te, torn a m o-n os ca pa zes de

Page 152: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

m a n ter a a ber tu ra e a con s is tên cia n a qu ela s s itu a ções em qu e anteriormente a s ter ía m os perd ido. A cois a im por ta n te é a p ren der a n os a b r ir pa ra o qu e for qu e a vida n os t ra ga , on de qu er qu e es teja m os . Se es t iverm os a ler ta s o s u ficien te, obs erva rem os n os s o impulso de evitar e poderemos regressar à percepção consciente do pres en te, s em h es ita çã o. Es s a s in ces s a n tes pen du la ções da a ten çã o s ã o a p rá t ica em s i. Qu a n do es ta m os ten ta n do evita r ou es ca pa r de a lgu m a cois a , volta m os a os pen s a m en tos em vez de à s experiências diretas.

ALUNO: As vezes, quando tento concentrar-me em minha expe-riência

diga m os u m s en t im en to de ra iva , ou a ten s ã o n o queixo , pa rece qu e is s o s e expa n de e en ch e a s a la toda . Toda s as minhas outras sensações desaparecem.

JOKO: Há a lgu m pen s a m en to vela do por t rá s des s a s exper iên cia s e n ã o s im ples m en te u m a s en s a çã o a ber ta . Se viven cia m os por com pleto u m órgã o do s en t ido, viven cia m os todos os ou tros ta m bém . Se den om in a m os a n os s a ra iva e con cen tra m o-nos n ela exclu in do tu do o m a is , n ã o terem os a in da en con tra do a nossa vida.

ALUNO: E qu e ta l s im ples m en te obs erva r a s p rópr ia s sensações?

JOKO: Há va lor n is s o. Ma s é t ra n s itór io; a in da res ta u m elem en to de pen s a m en to, de du a lida de s u jeito-ob jeto. Se de fa to escutam os o ba ru lh o dos ca r ros , es ta m os a bs orvidos n ele. Nã o h á eu , n ã o h á t rá fego. Nã o h á obs erva dor e n ã o h á ob jeto da s en s a çã o. Retornamos ao que somos, que é simplesmente a vida em si.

ATENÇÃO SIGNIFICA ATENÇÃO

Segu n do u m a a n t iga h is tór ia zen * u m a lu n o ter ia d ito a o mestre Ich u : "Por fa vor , es creva -m e a lgo com gra n de s a bedor ia ". O m es tre Ich u tom ou de s eu p in cel e es creveu u m a s ó pa la vra : "Aten çã o". O a lu n o in da gou : "É tu do?". O m es tre es creveu en tã o: "Atenção. Atenção". O aluno ficou irritado. "Não me parece que seja

* Philip Kapleau, ed., The three piliars of zen: Teaching, practice, enlightenment, Boston: Beacon, 1967, p. 10-11.

Page 153: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

profu n do n em s u t il." Em res pos ta , o m es t re es creveu s im ples m en te: "Aten çã o. Aten çã o. Aten çã o". Fru s t ra do, o a lu n o exigiu : "O qu e s ign ifica es s a pa la vra atenção!". E o m es t re Ich u disse: "Atenção significa atenção".

Em lu ga r de atenção poder ía m os u s a r percepção cons cien te. Aten çã o ou percepçã o con s cien te é o s egredo da vida , o cern e da p rá t ica . Com o o a lu n o n es s a h is tór ia , con s idera m os es s e en -s in a m en to u m a decepçã o; é á r ido e des in teres s a n te. Qu erem os a lgo excita n te em n os s a p rá t ica ! A s im ples a ten çã o en ted ia ! Perguntamos: a prática é só isso?

Qu a n do os a lu n os a pa recem pa ra fa la r com igo, ou ço qu eixas e m a is qu eixa s : o h orá r io do ret iro, o a lim en to, o s erviço, eu m es m a , e a s s im por d ia n te. Ma s a s qu es tões qu e a s pes s oa s es tã o m e t ra zen do n ã o s ã o m a is releva n tes ou im por ta n tes do qu e u m even to "t r ivia l" com o es fola r u m dedo. Com o coloca m os a s n os s a s a lm ofa da s ? Com o es cova m os os n os s os den tes ? Com o va r rem os o ch ã o ou fa t ia m os u m a cen ou ra ? Pen s a m os qu e es ta m os a qu i pa ra da r con ta de qu es tões "m a is im por ta n tes ", com o os p rob lem a s qu e tem os com n os s os côn ju ges , n os s os t ra ba lh os p rofis s ion a is , n os s a saúde etc. Não queremos nos incomodar com as "pequenas" coisas, por exem plo com o s egu ra m os n os s os ta lh eres ou on de pom os a colh er . Mes m o a s s im , s ã o es s es a tos qu e con s t itu em o es tofo de n os s a vida , de u m m om en to a ou tro. Nã o é u m a qu es tã o de im por tâ n cia ; é u m a qu es tã o de p res ta r a ten çã o, de es ta r con s cien tem en te percep t ivo. Por qu ê? porqu e ca da m om en to n a vida é a bs olu to em s i. E is s o é tu do o qu e exis te. Nã o exis te m a is n a da a lém des te m om en to p res en te; n ã o exis te pa s s a do, n ã o exis te fu tu ro, n ã o exis te n a da a lém d is to. Por is s o, qu a n do n ã o p res ta m os a ten çã o a ca da pequ en o isto, perdem os tu do. E o con teú do do isto pode s er qu a lqu er cois a . Is to pode s er en d ireita r n os s os colch on etes de p ra t ica r , fa t ia r u m a cebola , vis ita r a lgu ém qu e n ã o des eja m os vis ita r . Nã o im por ta o con teú do do qu e s eja o m om en to; ca da m om en to é a bs olu to. É s ó is s o qu e exis te e qu e ja m a is exis t irá . Se con s egu ís s em os p res ta r tota lm en te a ten çã o, n u n ca fica r ía m os con tra r ia dos . Se es ta m os con tra r ia dos , é a xiom á t ico qu e n ã o es ta m os p res ta n do a ten çã o. Se perdem os n ã o a pen a s u m s ó m om en to, m a s u m m om en to depois do ou tro, estamos em apuros.

Va m os s u por qu e fu i con den a da a s er deca p ita da n a gu ilh o-t in a . Agora es tou ca m in h a n do e s u b in do os degra u s qu e leva m a o

Page 154: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ca da fa ls o. Con s igo m a n ter m in h a a ten çã o n o m om en to? Con sigo es ta r con s cien te de ca da pa s s o, pa s s o a pa s s o? Con s igo coloca r m in h a ca beça n a gu ilh ot in a cu ida dos a m en te pa ra a s s im s ervir bem a o a lgoz? Se eu con s egu ir viver e m orrer des s a m a n eira , n ã o surgem quaisquer problemas.

Nos s os p rob lem a s a pa recem qu a n do s u bord in a m os es te m o-mento a alguma outra coisa, a nossos pensamentos autocentrados: n ã o é s ó es te m om en to, m a s o qu e eu quero. Reves t im os o m om en to com n os s a s p r ior ida des pes s oa is , o d ia in teiro. E é a s s im que começamos a ter dificuldades.

Um a ou tra h is tór ia a n t iga d iz res peito a u m gru po de la drões que invade o estúdio de um mestre zen e lhe diz que iam decepá-lo. Ele com en tou : "Por fa vor , a gu a rdem a té a m a n h ã de m a n h ã . Precis o con clu ir u m cer to t ra ba lh o". As s im , pa s s ou a n oite com pleta n do o t ra ba lh o, beben do ch á e des fru ta n do. Es creveu u m poem a s im ples n o qu a l com pa ra va s u a ca beça decepa da a u m a b r is a p r im a ver il e o en t regou a os la d rões com o u m presente quando eles voltaram. O mestre entendia bem o que era praticar.

Tem os d ificu lda de em com preen der es s a h is tór ia porqu e tem os todos u m im en s o a pego à n os s a ca beça , qu e qu erem os qu e perm a n eça s obre n os s os om bros . Nã o é n os s o des ejo pa r t icular qu e n os s a s ca beça s s eja m decepa da s . Es ta m os determ in a dos a qu e a vida p ros s iga do jeito com o nós qu erem os qu e p ros s iga . Qu a n do is s o n ã o a con tece, fica m os com ra iva , con fu s os , depr i-m idos , ou de a lgu m a form a con tra r ia dos . Nã o é ru im em s i ter esses sentimentos, mas quem quer uma vida comandada por eles?

Qu a n do a a ten çã o a o m om en to p res en te é des via da pa ra a lgu m a vers ã o de "Eu ten h o de con s egu ir a s cois a s ao m eu m od o", cria-s e u m a d is tâ n cia en t re n os s a percepçã o con s cien te e a rea lida de ta l com o é, n es te m om en to p recis o. Nes s a d is tâ n cia ou fos s o des peja m os todos os m a les de n os s a vida . Cr ia m os u m a d is tâ n cia a t rá s da ou t ra , em s eqü ên cia , o d ia in teiro. A fin a lida de da p rá t ica é a n u la r es s a s d is tâ n cia s , é redu zir o tem po qu e pa s -samos ausentes, prisioneiros de nosso sonho autocentrado.

No en ta n to, com etem os u m er ro s e pen s a m os qu e a s olu çã o es tá em qu e eu pres to a ten çã o. Nã o é "EU va r ro o ch ã o", "EU fa t io a cebola ", "EU d ir ijo o ca r ro". Em bora es s a p rá t ica s eja n eces s á r ia n os es tá gios p relim in a res , ela con t in u a a lim en ta n do os pen s a m en tos a u tocen tra dos a o den om in a r a pes s oa com o u m "EU"

Page 155: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pa ra o qu a l a exper iên cia es tá p res en te. Um jeito m elh or de en ten der é a s im ples percepçã o con s cien te: a pen a s viven cia r , viven cia r , viven cia r . Na s im ples percepçã o con s cien te, n ã o h á d is tâ n cia , n ã o h á es pa ço pa ra pen s a m en tos a u tocen t ra dos a pa re-cerem.

Em a lgu n s cen tros zen , os a lu n os s ã o s olicita dos a s e en -volver em a ções em câ m era exa gera da m en te len ta , por exem plo a ba ixa n do ob jetos e ergu en do-os m u ito deva ga r . Es s a a ten çã o a u tocon s cien te é d iferen te da s im ples percepçã o con s cien te, do a pen a s fa zer o a ba ixa -leva n ta . A receita pa ra s e viver é s im ples -mente fazer o que estamos fazendo. Não estando autoconsciente do qu e fa z; s ó fa zen do. Qu a n do ocorrem os pen s a m en tos a u to-centrados , en tã o er ra m os de bon de e a pa rece a d is tâ n cia . Es s a d is tâ n cia ou fos s o é o loca l de n a s cim en to dos p rob lem a s e transtornos que nos atormentam.

Mu ita s form a s de p rá t ica , com u m en te ch a m a da s de m ed i-ta çã o con cen tra t iva , bu s ca m es t reita r a percepçã o con s cien te de a lgu m a m a n eira . Os exem plos in clu em recita r m a n tra s , con cen -trar-s e n u m a im a gem vis u a l, t ra ba lh a r com o Mu (de m a n eira con cen tra da ) e a té m es m o a com pa n h a r a res p ira çã o s e is s o for feito de m odo a deixa r de fora os dem a is órgã os dos s en t idos . No proces s o de a fu n ila m en to da a ten çã o, es s a s p rá t ica s ra p ida mente cr ia m cer tos es ta dos a gra dá veis . Podem os s en t ir qu e n os es qu iva m os de n os s os p rob lem a s porqu e n os s en t im os m a is ca l-m os . Qu a n do n os in s ta la m os n es s e foco tã o es t reito, podem os depois de u m cer to tem po a té en t ra r em tra n s e, com a s pectos de torpor e s os s ego, n u m es ta do em qu e tu do n os es ca pa . Apes a r de es s es m om en tos s erem ú teis , toda p rá t ica qu e a fu n ila n os s a per -cepçã o con s cien te é lim ita da . Se n ã o leva rm os em con ta tu do em n os s o m u n do, ta n to de n a tu reza fís ica com o m en ta l, perderem os a lgu m a cois a . Um a p rá t ica es t reita n ã o s e t ra n s fere bem pa ra o res to de n os s a vida ; qu a n do a leva m os pa ra o m u n do, n ã o s a be-mos como agir e podemos ainda nos sentir bastante constrangidos. Um a prá t ica de con cen tra çã o, s e fôs s em os m u ito pers is ten tes (com o eu cos tu m a va s er ), pode m om en ta n ea m en te n os força r a a t ra ves s a r n os s a res is tên cia , e en tã o ter u m vis lu m bre do a bs oluto. Es s a a ber tu ra força da n ã o é rea lm en te a u tên t ica ; a lgo fica de fora . Em bora ten h a m os u m vis lu m bre do ou tro la do do m u n do fen om ên ico, ca p ta n do o n a da ou o pu ro va zio, a in da exis te u m eu

Page 156: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

rea liza n do is s o. A exper iên cia con t in u a s en do du a lis ta e lim ita da em sua aplicabilidade.

Por ou tro la do, a n os s a percepçã o con s cien te com o prá t ica é ta l qu e recebe tu do o qu e a con tece. O "a bs olu to" é s im plesmente tu do em n os s o m u n do, es va zia do do con teú do em ocion a l pes s oa l. Com eça m os por es va zia r -n os n ós m es m os des s es pen samentos a u tocen tra dos , a o a p ren derm os a es ta r ca da vez m a is con s cien tem en te percep t ivos em todos os n os s os m om en tos . Em -bora u m a p rá t ica de con cen tra çã o pos s a foca liza r a res p ira çã o e bloquear o som dos carros ou o falatório de nossa mente (o que nos deixa perd idos qu a n do perm it im os qu e qu a lqu er es pécie de exper iên cia pen etre n a con s ciên cia ), a p rá t ica da percepçã o con s -cien te es tá a ber ta a qu a lqu er exper iên cia p res en te

em todo es te in côm odo u n ivers o

e a ju da -n os a irm os a os pou cos n os desemaranhando de nossas reações e apegos emocionais.

Toda vez qu e tem os u m a qu eixa a res peito de n os s a s vida s , es ta m os n a qu ele t ipo de d is tâ n cia de qu e fa lei. Na p rá t ica da percepçã o con s cien te, obs erva m os n os s os pen s a m en tos e a con -t ra çã o de n os s o corpo receben do tu do is s o e volta n do pa ra o m om en to p res en te. Es s e é o t ipo m a is á rdu o de p rá t ica . Prefer i-r ía m os com cer teza fu gir des s a cen a ou en tã o perm a n ecer m er-gu lh a dos em n os s os pequ en os t ra n s torn os . Afin a l de con ta s , toda s a s n os s a s a dvers ida des n os m a n têm com o o cen tro da s cois a s ou pelo m en os a s s im a cred ita m os . A a t ra çã o de n os s os pen s a m en tos autocentrados é como pisar na lama: nosso pé cons egu e a cu s to s e despregar e já está preso de novo. Podemos nos libertar lentamente, mas, se pensarmos que é fácil, estaremos nos enganando.

Toda vez qu e es t iverm os a borrecidos , es ta rem os n es s a d is -tâ n cia ; n os s a s em oções a u tocen tra da s , o qu e nós qu erem os de n os s a vida , p redom in a m . No en ta n to, n os s a s em oções do m omento n ã o s ã o m a is im por ta n tes do qu e en cos ta r a ca deira de volta n o lugar ou recolocar a almofada no lugar certo.

A m a ior ia da s em oções n ã o decorre do m om en to im ed ia to, com o qu a n do p res en cia m os a cen a de u m a cr ia n ça s en do a t rope-la da por u m ca r ro, m a s s ã o gera da s por n os s a s exigên cia s a u to-cen tra da s de qu e a vida s eja com o nós qu erem os qu e ela s eja . Em bora n ã o fa ça m a l ter es s a s em oções , a p ren dem os pela p rá t ica qu e ela s n ã o têm im por tâ n cia em s i. En d ireita r o lá p is s obre a carteira é tão importante quanto se sentir abandonado ou solitário,

Page 157: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

por exem plo. Se con s egu im os viven cia r o s en t ir -s e s olitá r io e en xerga r n os s os pen s a m en tos a res peito de es ta rm os s olitá rios, entã o con s egu im os s a ir do fos s o des s a d is tâ n cia . A p rá t ica é es s e m ovim en to, vezes e vezes s egu ida s . Se n os lem bra m os de a lgo qu e a con teceu h á s eis m es es e com es s a recorda çã o s u rgem s en t im en tos de a bor recim en to, n os s os s en t im en tos devem s er vis tos com in teres s e, e n a da m a is . Em bora pos s a pa recer u m a cois a fr ia , é n eces s á r ia es s a a t itu de pa ra qu e n os torn em os pes -s oa s gen u in a m en te a fet iva s e com pa s s iva s . Se n os percebem os pen s a n do qu e n os s os s en t im en tos s ã o m a is im por ta n tes do qu e a qu ilo qu e es tá a con tecen do n u m da do m om en to, p recis a m os obs erva r a p res en ça des s e pen s a m en to. Va rrer a ca lça da é rea li-da de; n os s os s en t im en tos s ã o u m a cois a qu e n ós cr ia m os , com o u m a teia qu e fia m os e n a qu a l n os en reda m os . É u m proces s o s u rp reen den te es s e em qu e n os m etem os

em cer to s en t ido, somos todos malucos.

Qu a n do vejo m eu s pen s a m en tos e obs ervo a s s en s a ções do m eu corpo, recon h eço a m in h a res is tên cia pa ra p ra t ica r com es s a s vivên cia s e depois volto pa ra term in a r de es crever a ca r ta qu e es ta va fa zen do, en tã o es tou m e a r ra n ca n do do fos s o da d is tâ n cia e en t ra n do n a percepçã o con s cien te. Se form os de fa to pers is ten tes , d ia a pós d ia , irem os gra du a lm en te des cob r ir n os s o ca m in h o pa ra s a ir des s a in s en s a ta con fu s ã o qu e é a n os s a vida pes s oa l. A ch a ve é atenção, atenção, atenção.

Preench er u m ch equ e é tã o im por ta n te qu a n to o a n gu s t ia n te pen s a m en to de qu e n ã o verem os u m en te qu er ido. Qu a n do n ã o t ra ba lh a m os com o fos s o cr ia do pela des a ten çã o, todos os ou tros pagam um preço.

A p rá t ica é n eces s á r ia pa ra m im ta m bém . Va m os s u por qu e eu a n s eio pela vis ita de m in h a filh a n a época do Na ta l, e ela m e telefon a pa ra d izer qu e n ã o vem . A p rá t ica a ju da -m e a con t in u a r a amá-la em vez de m e s en t ir con tra r ia da porqu e ela n ã o fa rá o qu e eu qu er ia qu e fizes s e. Com a p rá t ica , pos s o a m á -la com m a is plenitude. Sem a p rá t ica , eu m e s en t ir ia u m a velh in h a s olitá r ia e des a m pa ra da . Em cer to s en t ido, a m or é s im ples m en te a ten çã o, s im ples m en te percepçã o con s cien te. Qu a n do m e m a n ten h o con s -cien tem en te percep t iva , pos s o lecion a r bem , o qu e é u m a form a de a m a r ; pos s o coloca r m en os expecta t iva s n os ou tros e s ervi-los m elh or ; qu a n do vir m in h a filh a ou tra vez, n ã o t ra rei a n t igos ressentimentos para esse encontro e serei capaz de vê-la com olhos

Page 158: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

n ovos . As s im , a p r ior ida de é a qu i e a gora . Aliá s , exis te u m a s ó p r ior ida de e é a a ten çã o a o m om en to p res en te, s eja qu a l for s eu conteúdo. Atenção significa atenção.

FALSAS GENERALIZAÇÕES

Na s ru d in , s á b io e tolo s u fi, es ta va u m d ia em s eu ja rd im es pa lh a n do fa relo de pã o por todo la do. Qu a n do u m vizin h o lh e pergu n tou por qu e o fa zia , ele d is s e: "Pa ra m a n ter os t igres a d is tâ n cia ". O vizin h o en tã o com en tou : "Ma s n ã o exis tem t igres n u m ra io de 2 .000 km a o redor da qu i!". E Na s ru d in con clu iu : "Eficaz, não é?".

Rim os porqu e tem os cer teza de qu e a s du a s cois a s

tigres e fa relo de pã o

n ã o têm n a da qu e ver u m a com a ou tra . No en ta n to, com o a con tece com Na s ru d in , n os s a p rá t ica e n os s a s vida s cos tu m a m ba s ea r -s e em fa ls a s gen era liza ções qu e n a da têm qu e ver com a rea lida de. Se n os s a vida es tá a licerça da em con ceitos gen era liza dos , podem os a gir com o Na s ru d in , es pa lhando fa relo de pã o pa ra m a n ter os t igres a fa s ta dos . Dizem os , por exem plo, "Eu a m o a s pes s oa s ", ou "Eu a m o m eu m a r ido". A verdade é que ninguém ama ninguém o tempo todo e ninguém ama o m a r ido ou a es pos a o tem po todo. Es s a s gen era lida des obs cu recem a rea lida de es pecífica e con creta da n os s a vida , daquilo que está acontecendo conosco neste dado momento.

Cla ro qu e pos s o a m a r o m a r ido qu a s e o tem po todo. Ain da a s s im , a gen era liza çã o em s i deixa de fora a rea lida de m u tá vel e ca m bia n te de u m a rela çã o rea l. Da m es m a m a n eira , d izer "Eu a m o o m eu t ra ba lh o", ou "A vida é du ra com igo". Qu a n do com eça m os a p ra t ica r , em gera l a cred ita m os em op in iões gen era liza da s e a s expres s a m os . Podem os pen s a r , por exem plo, "Sou u m a pes s oa a ten cios a ", ou "Sou u m a pes s oa ter r ível". Porém , n a rea lida de, a vida nunca é uma generalidade. A vida sempre é específica: é o que es tá a con tecen do n es te exa to m om en to. A p rá t ica s en ta da a ju da -n os a en xerga r em m eio a o n evoeiro da s gen era liza ções a cerca de n os s a s vida s . Con form e va m os p ra t ica n do, n os s a ten dên cia é abandonar nossos conceitos generalizados em favor de observações m a is es pecífica s . Por exem plo, em lu ga r de "Nã o con s igo tolera r m eu m a r ido", obs erva m os "Nã o con s igo s u por ta r o m eu m a r ido

Page 159: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

qu a n do ele n ã o s e cu ida ", ou "Nã o con s igo m e s u por ta r qu a n do faço isso ou aquilo". Em vez de conceitos generalizados, vemos com m a is cla reza o qu e es tá s e pa s s a n do. Nã o fica m os m a is reves t in do os acontecimentos com grandes pinceladas de verniz.

Nos s a exper iên cia de u m a ou tra pes s oa ou s itu a çã o n ã o é a pen a s u m a cois a s ó. Pode in clu ir m ilh a res de pen s a m en tos e rea ções m en ores . Um pa i pode d izer "Am o a m in h a filh a ", e, n o en ta n to, es s a gen era liza çã o ign ora m om en tos ta is com o ' 'Por qu e ela é tã o im a tu ra ?", ou "Ela es tá s en do ign ora n te". Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , obs erva n do e rotu la n do n os s os pen -s a m en tos , torn a m o-n os m a is fa m ilia r iza dos com o in ces s a n te t ra n s borda m en to de n os s a s op in iões ã res peito de tu do e de n a da . Em vez de a pen a s n ivela r por ba ixo o m u n do todo em gen era li-zações va zia s , torn a m o-n os côn s cios de n os s os con ceitos e ju l-ga m en tos m a is es pecíficos . Ao n os fa m ilia r iza rm os m a is com o n os s o pen s a m en to, des cobr im os qu e es ta m os m u da n do, de u m momento para o outro, assim como nossas idéias mudam.

Es cu tem os o qu e d iz u m a cer ta m oça . E la es tá s a in do com um rapaz há algum tempo. Ela pensa que as coisas estão indo bem. Se lh e pergu n ta s s em , ela d ir ia qu e rea lm en te s e im por ta m u ito com ele. Nes te m om en to ele lh e telefon a . Va m os ou vir n ã o s ó o qu e ela diz para ele, mas também o que ela está pensando para si:

Qu e bom qu e você es tá liga n do pa ra m im . Você pa rece ótimo ("Mas devia ter telefonado mais cedo").

Ah , en tã o você foi a lm oça r com fu la n a , É s im , ela é en ca n ta dora . Ten h o cer teza de qu e você gos tou m u ito da com -panhia dela ("Eu te mato!").

Você es tá a ch a n do qu e es tou m eio s em a s s u n to? Qu e n ã o s ou m u ito de fa la r? Bom , obr iga da por s u a op in iã o ("Você m a l m e con h ece! Com o ou s a fa zer es s a es pécie de gen era liza çã o a m eu respeito!").

Você foi bem n o exa m e? Fico feliz por is s o. Qu e bom pa ra você! ("Ma s es tá s em pre pen s a n do n ele! Será qu e ter ia a lgu m interesse pela minha vida?")

Você gos ta r ia de s a ir a m a n h ã à n oite pa ra ja n ta r? Eu a dora r ia ir . Ser ia ót im o vê-lo de n ovo! ("Fin a lm en te m e con vidou! Só queria que não tivesse deixado para o último instante!")

Page 160: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Es s a é u m a con vers a per feita m en te cor r iqu eira en t re du a s

pes s oa s , a qu ela es pécie de fa r s a qu e pa s s a por com u n ica çã o. Es s a s pes s oa s p rova velm en te gos ta m u m a da ou tra . Mes m o a s sim, ela es ta va form u la n do u m con ceito a pós o ou tro s ob re ele e s obre si mesma. A conversa foi um verdadeiro mar de material conceituai; foi com o dois gra n des n a vios qu e s e cru za m em a lto-m a r à n oite

total ausência de contato.

Den tro da p rá t ica zen cos tu m a m os deba ter con ceitos ilu s ó-r ios o tem po todo: "Tu do é per feito s en do com o é"; "Todos es tã o fa zen do o m elh or qu e podem "; "Toda s a s cois a s s ã o u m a s ó"; "Sou u n a com ele". Ch a m a m os tu do is s o de a fa la çã o in ú t il do zen , em bora a s ou tra s religiões ta m bém ten h a m a s s u a s p rópr ia s vers ões . Nã o é qu e a s decla ra ções s eja m fa ls a s . O m u n do é uno. Eu sou você. Tu do é perfeito s en do com o é. Todo s er h u m a n o n a fa ce do p la n eta es tá fa zen do o m elh or qu e pode n es te m om en to. É s em dú vida verda de. Ma s , s e pa ra rm os n is s o, terem os feito da n os s a p rá t ica u m exercício s ob re con ceitos e terem os perd ido a percepçã o con s cien te do qu e es tá a con tecen do con os co n es te exa to segundo.

A boa p rá t ica s em pre im plica a n a lis a r n os s os con ceitos . Con ceitos s ã o à s vezes elem en tos ú teis n a vida d iá r ia ; tem os de usá-los . Toda via p recis a m os recon h ecer qu e u m con ceito é s ó u m con ceito e n ã o a rea lida de, e es s e recon h ecim en to ou con h e-cim en to len ta m en te s e des en volve con form e va m os p ra t ica n do. Aos pou cos pa ra m os de "com pra r" n os s os con ceitos . Nã o formulamos m a is ju lga m en tos gera is do t ipo: "Ele é u m a pes s oa ter r ível", ou "Eu s ou u m a pes s oa ter r ível". Obs erva m os n os s os pen s a m en tos : "Prefer ia qu e ele n ã o a t ives s e leva do pa ra a lm oça r". En tã o tem os de viven cia r a dor qu e a com pa n h a es s e pen s a m en to. Qu a n do con s egu im os fica r com a dor com o u m a pu ra s en s a çã o fís ica , em algum momento ela se dissolverá e então iremos nos adiantar até a verda de, qu e é tu do s er per feito do jeito qu e é. Todos es tão fazendo o m elh or qu e podem . Ma s tem os de pa r t ir da vivên cia , qu e freqü en tem en te é doloros a , e en t ra r n a verda de em vez de reves t ir n os s a s vivên cia s com u m a ca m a da de pen s a m en tos . As pes s oa s de n a tu reza in telectu a l s ã o pa r t icu la rm en te p ropen s a s a com eter es te er ro: ela s pen s a m qu e o m u n do ra cion a l dos con ceitos é o m u n do real. O mundo racional dos conceitos não é o mundo real, é apenas uma descrição dele, um dedo apontando para a lua.

Page 161: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Va m os ilu s t ra r com a exper iên cia de a lgu ém ter s ido a gredido. Qu a n do s om os cr it ica dos ou t ra ta dos de m a n eira in ju s ta , é im por ta n te obs erva r os pen s a m en tos qu e tem os e n os des loca r a té o n ível celu la r de n os s a m á goa , pa ra qu e n os s a percepçã o con s cien te s e torn e a s s en s a ções n u a s e cru a s , e n a da m a is : n os s o qu eixo qu e t rem e, a con tra çã o n o peito, ou o qu e for qu e pos s a mos es ta r s en t in do n a s célu la s de n os s o corpo. Es s e viven cia r pu ro é zazen. Qu a n do perm a n ecem os n ele, n os s o des ejo de pen s a r vem vá r ia s vezes à ton a : ju lga m en tos , op in iões , recr im in a ções , res pos ta s a t ra ves s a da s . En tã o rotu la m os os n os s os pen s a mentos e m a is u m a vez volta m os a o n ível celu la r de vivên cia s , qu e é p ra t ica m en te in des cr it ível, ta lvez a pen a s u m la m pejo de en ergia , talvez alguma coisa mais forte. Nesse espaço não há "eu" ou "você". Qu a n do s om os es s a vivên cia n ã o-du a l podem os en xerga r a n os s a s itu a çã o com m a is cla reza . Podem os ver qu e "ela es tá fa zen do o m elh or qu e pode". Con s egu im os ver qu e nós es ta m os fa zen do o m elh or qu e podem os . Se d izem os es s a s s en ten ça s s em o com pon en te corpora l da vivên cia , n o en ta n to, n ã o s a berem os qu a l é a verda deira p rá t ica . Um a pers pect iva ca lm a , fr ia , ra cion a l, deve fundamentar-s e n a qu ele pu ro n ível celu la r . Tem os n eces s ida de de con h ecer n os s os pen s a m en tos, mas isso não significa que devemos pen s a r qu e eles s ã o rea is , n em qu e devem os a gir com ba s e n eles . Após obs erva r n os s os pen s a m en tos a u tocen tra dos , m om en to a pós m om en to, a s em oções ten dem a s e equ a liza r . Es s a s eren ida de n u n ca poderá s er en con tra da s e reves t irm os o qu e es tá rea lm en te a con tecen do com u m a ca m a da de con ceitos filos óficos com o s e fosse uma demão de verniz.

Só qu a n do n os em bren h a m os pelo n ível viven cia l é qu e a vida tem s en t ido. É is s o qu e os ju deu s e os cr is tã os es tã o d izen do qu a n do fa la m em es ta r com Deu s . Viven cia r é a lgo fora do tem po: n ã o é o pa s s a do, n ã o é o fu tu ro, n ã o é n em o p res en te n o s eu s en t ido u s u a l. Nã o podem os d izer o qu e é; podem os a pen a s s ê-lo. Em term os bu d is ta s t ra d icion a is , es s a es pécie de vida é s er a própria natureza búdica. A compaixão brota dessas raízes.

Todos tem os n os s os con ceitos fa vor itos . "Sou s en s ível. Magôo-m e com fa cilida de." "Sou do t ipo de pes s oa qu e força a s cois a s ." "Sou u m in telectu a l." Nos s os con ceitos podem s er ú teis n o n ível cot id ia n o, m a s p recis a m os en xerga r s u a n a tu reza gen u ín a . Con ceitos qu e n ã o fora m viven cia dos s ã o u m a fon te de con fu s ã o,

Page 162: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

de a n s ieda de, de depres s ã o; a ten dên cia deles é p rodu zirem comportamentos que não são bons para nós nem para os outros.

Pa ra rea liza r o t ra ba lh o da p rá t ica , p recis a m os de u m a pa ciên cia in es gotá vel, qu e ta m bém s ign ifica recon h ecer qu a n do não temos paciência. Sendo assim, precisamos ser pacientes com a n os s a fa lta de pa ciên cia ; recon h ecer qu a n do n ã o qu erem os pra t ica r fa z ta m bém pa r te da p rá t ica . Nos s os m om en tos de evita çã o e res is tên cia fa zem pa r te do qu a d ro con ceitu a l qu e a in da n ã o es ta m os p repa ra dos pa ra exa m in a r . Tu do bem n ã o es ta rm os p repa ra dos . En qu a n to va m os n os p repa ra n do, pou co a pou co, abre-s e u m es pa ço e es ta rem os a p tos a viven cia r u m pou co m a is e depois u m pou co m a is . Res is tên cia e p rá t ica a n da m de m ã os da da s . Todos res is t im os à n os s a p rá t ica , porqu e todos res is t im os à s n os s a s vida s . E s e a cred ita m os em con ceitos em vez de n a exper iên cia da qu ele m om en to, s om os com o Na s ru d in : es ta m os espalhando farelo de pão sobre as jardineiras para manter os tigres afastados.

ALUNO: Às vezes , os con ceitos s ã o n eces s á r ios . Qu a l a d iferen ça en t re u m con ceito qu e m e s erve e u m qu e m e con fu n de? Por exemplo, "olhe para os dois la dos da ru a a n tes de a t ra ves s a r" é uma generalização útil.

JOKO: Es s e é u m bom exem plo, u m u s o s en s a to da m en te human a . No en ta n to, u m a gra n de pa r te do qu e s e pa s s a em nossas cabeças não tem relação com a realidade.

ALUNO: Se a generalização ou o conceito surge de uma emoção autocentrada então pode não ser proveitosa.

JOKO: Na con vers a pelo telefon e da qu ela m oça , os ju lga m en tos vin h a m de em oções e op in iões ocu lta s ; eram cen tra da s em s eu ego. Seu s ju lga m en tos a res peito do ra pa z era m expres s ões de s u a p rópr ia n eces s ida de e n a da t in h a m qu e ver com ele. Fa ls a s gen era liza ções

con ceitos p reju d icia is

s em pre têm u m a ton a lida de em ocion a l pes s oa l. Por ou tro la do, obs erva ções s obre com o con s egu ir efetu a r com eficá cia u m cer to t ra ba lh o, ou s obre com o res olver u m prob lem a de m a tem á t ica podem n ã o ter quase nenhum contexto emocional. São pensamentos úteis, esses.

ALUNO: Pa ra m im es tá tã o en cober to o n ível viven cia l, celu la r ...

JOKO: Lembre-se de que o nível vivencial não é uma coisa exó-t ica e es t ra n h a . Pode s er u m for rn iga m en to n a pele ou u m a

Page 163: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

contração no meio do peito, um rosto crispado o nível vivencial é ba s ta n te bá s ico e n u n ca es tá m u ito d is ta n te. É a qu ilo qu e s om os exa ta m en te a gora . O n ível viven cia l n ã o é a J go es pecia l e qu a n to m a is n os s en ta rm os pa ra p ra t ica r , m a is bá s ico n ós o recon h ecerem os . Nos p r im eiros a n os de p rá t ica , con tu do, h á m a is por viven cia r porqu e vivem os n u m tu m u lto de em oções qu e gera muitas e muitas sensações.

Nu n ca evita m os por com pleto o n ível celu la r . Mes m o qu e a com pa n h em os a n os s a res p ira çã o por a pen a s u m fra gm en to de s egu n do, en t re pen s a m en tos , es ta m os todos n o n ível celu la r em a lgu m n ível. Qu a n to m a is rotu la m os nos s os pens am en tos e con -t in u a m os volta n do pa ra a qu ilo qu e es t iver a con tecen do em n ossas vivên cia s , m elh or . Pa s s a r a viver u m a vida m a is viven cia l é a lgo qu e pode à s vezes dem ora r u m pou co e à s vezes s er m u ito rá p ido, depen den do da in ten s ida de da p rá t ica . Qu a n do n os da m os con ta de qu e p recis a m os p ra t ica r 24 h ora s por d ia é im pos sível evitarmos o nível vivencial.

ALUNO: Um con ceito qu e n u m cer to m om en to é pa ra m im m u ito ca r rega do de em oçã o, n u m ou tro m om en to pode n ã o m e a ba la r em a bs olu to. Por exem plo, pos s o fica r m e p reocu pa n do a respeito de en con tra r em prego. An tes da en t revis ta , es ta rei rea lm en te p reocu pa do com is s o e vou gen era liza r a res peito da s itu a çã o da m in h a ca r reira p rofis s ion a l. Depois qu e a en t revis ta es t iver con clu ída , qu a n do pen s o de n ovo a qu ela m es m a cois a , n ã o consigo imaginar como aquilo pôde ter me aborrecido.

JOKO: Todos os pen s a m en tos ocorrem em con textos es pecíficos . Es ta é a qu es tã o: en xerga r o con texto es pecífico e n ã o s ó o pen s a m en to gera l. Nos s a rea çã o a u m a pes s oa ou a u m pensam en to s erá d iferen te h oje da qu e terem os n a s em a n a qu e vem , depen den do de ca da u m a da s s itu a ções . Se você t ives s e u m m ilh ã o de dóla res n o ba n co, p rova velm en te n ã o s e im por ta r ia de con s egu ir a qu ele em prego ou n ã o. Apen a s en t ra r ia ca lm a m en te n a s itu a çã o e des fru ta r ia a en t revis ta . Toda rea lida de é es pecífica, im ed ia ta . Podem os en con tra r a s m es m a s pes s oa s e ter u m pensamento a res peito dela s h oje, e já n a s em a n a qu e vem (depen den do da s m óveis s itu a ções pes s oa is ) ela s n os pa recerã o diferentes.

ALUNO: Se eu es tou s em pre p res ta n do a ten çã o à s s en s a ções do m eu corpo, com o pos s o p res ta r a ten çã o n a s cois a s qu e es tã o à

Page 164: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

minha volta, ou na tarefa que preciso executar? Por exemplo, como pos s o joga r ca r ta s ou d ir igir e a in da a s s im pres ta r a ten çã o n a s sensações de meu corpo?

JOKO: Podem os foca liza r n u m a determ in a da a t ivida de en qu a n to con t in u a m os recep t ivos a u m â m bito m a is a m plo de sensações . Por exem plo, en qu a n to es tou fa la n do a gora com vocês , ta m bém es tou m u ito cien te de tu do o qu e es tá s e pa s s a n do com igo. Is s o n ã o qu er d izer qu e n ã o es tou p res ta n do tota l a ten çã o em vocês. "Prestar atenção em vocês" faz parte da informação sensorial total qu e recebo a gora com o a m in h a vida n es te p recis o m om en to. Se ten h o u m a p len a percepçã o con s cien te de m in h a vida , es ta tem de in clu ir tu do. Qu a n do u m a lu n o e eu es ta m os con vers a n do em daisan, m in h a a ten çã o es tá tota lm en te volta da pa ra ele, m a s eu es tou s em pre con s cien te de m in h a vida . Min h a s a ções decorrem desse contexto total e não somente de minha cabeça.

ALUNO: A con cen tra çã o n a qu ilo qu e es tou fa zen do n es te exa to m om en to n ã o é exclu s iva . Qu a n do es tou a n a lis a n do da dos n o com pu ta dor , lá n o t ra ba lh o, m in h a m en te es tá rep leta des s a a n á -lis e de da dos , m a s con s igo ter u m a p len a percepçã o con s cien te do m eu corpo. Nã o é qu e eu fiqu e s ó n o m eu corpo. Nã o ten h o tem po pa ra fa zer is s o. Min h a s s en s a ções corpora is n ã o s ã o o foco p r in cipa l do qu e es tou fa zen do. Ma s é im por ta n te a ca da m om en to es ta r perceben do con s cien tem en te a s s en s a ções fís ica s e ta m bém a s m in h a s rea ções a tu do o qu e es tá a con tecen do. As s im , pos s o es ta r n o m eio de u m a a n á lis e es ta t ís t ica e, n o en ta n to, a o m es m o tempo, estar cônscio de outras coisas. Às vezes, é claro, me envolvo de ta l m a n eira n u m a determ in a da a t ivida de qu e m e es qu eço de tu do o m a is . Porém , qu a s e o tem po todo, m in h a percepçã o consciente não está focalizada e não é exclusiva.

JOKO: A es s ên cia da p rá t ica zen é s er tota lm en te o qu e você es tá fa zen do. Ma s n ós n ã o s om os m u ito a s s im . Qu a n do n ã o s om os , en tã o n os s o foco p recis a regres s a r pa ra o n os s o corpo. Qu a n do con s egu im os is s o, tom a -s e m a is fá cil en t ra r por in teiro n o qu e es ta m os fa zen do. Podem os es ta r tota lm en te con cen tra dos n u m a certa a t ivida de ou con s cien tes de vá r ia s . A qu es tã o é viven cia r o que quer que esteja acontecendo. Um grande mestre de xadrez, por exem plo, tem u m im en s o a cú m u lo de a p ren d iza do e form ação in telectu a l; n o en ta n to, n o m eio do jogo, s u a percepçã o con s cien te es tá tota lm en te n o m om en to p res en te, e a pa rece o m ovim en to

Page 165: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

exa to a s er feito. O a p ren d iza do técn ico es tá lá , m a s s u bord in a do à sua intensa percepção consciente, que é o verdadeiro mestre.

ALUNO: Qu a n do s e p ra t ica m ú s ica , é im por ta n te tom a r consciência de todos os n íveis da n os s a vivên cia . Qu a n do es tou praticando a lgo n ovo n o p ia n o, s e ign ora r m eu corpo, é pos s ível qu e m e a con teça u m a ten d in ite, por exem plo. Is s o a con tece m u ita s vezes com os a lu n os n ovos . E , s e eu es t iver a pen a s p res ta n do a ten çã o a os m eu s pen s a m en tos em ocion a is , fico des cu ida do em termos das notas que estou executando.

JOKO: Até m es m o u m a m ín im a percepçã o con s cien te de qu a n to tem po pa s s a m os "com pra n do" os n os s os pen s a m en tos a u tocen tra dos é u m a p rá t ica ú t il. Cla ro qu e em pou cos in s ta n tes nós estaremos fazendo a mesma coisa de novo.

OUVINDO O CORPO

A prá t ica n ã o d iz res peito a a ju s ta r es te eu fen om ên ico qu e n ós pen s a m os s er pa ra a n os s a vida . De cer to m odo, s om os eu s fen om ên icos , m a s , em ou tro s en t ido, n ã o o s om os . Poder-se-ia d izer qu e s om os a s du a s cois a s

ou n en h u m a . En qu a n to n ã o compreendermos esse aspecto, nossa prática será vacilante.

Rotu la r n os s os pen s a m en tos é u m a p rá t ica p relim in a r . No nível fenomênico, uma boa parte de nosso eu psicológico é revelada pelo rotu la r . Com eça m os a obs erva r on de fica m os a tola dos em n os s a s p referên cia s e a vers ões , em todos os n os s os pen s a m en tos h a b itu a is a res peito de n ós e da vida . Es s e t ra ba lh o p relim in a r é im por ta n te e n eces s á r io

m a s n ã o tudo. Rotu la r é u m pr im eiro pa s s o, m a s en qu a n to n ã o s ou berm os o qu e s ign ifica perm a n ecer n a n os s a vivên cia n ã o irem os s a borea r os fru tos da p rá t ica . Se n ã o os s a borea m os , n ã o en xerga m os o qu e é a p rá t ica e irem os n os qu eixa r : "Nã o com preen do bem a p rá t ica ; n ã o con s igo ver do qu e s e t ra ta ". O fa to é qu e n ã o pos s o lh es d izer do qu e ela t ra ta , pois a qu ilo qu e es tou ten ta n do exp lica r n a rea lida de n ã o pode s er pos to em pa la vra s . Fu n da m en ta lm en te, a p rá t ica é d iferen te de a per feiçoa r u m a h a b ilida de com o s a ber joga r tên is ou golfe; u m a pa r te gra n de des s a s a t ivida des pode s er t ra n s pos ta pa ra a s pa la vra s . Ma s n ã o podem os exp lica r n os s a p rá t ica zazen em palavras.

Page 166: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Em vir tu de des s e d ilem a , a p rá t ica pode s er h es ita n te du -ra n te a lgu n s m es es , du ra n te a n os . Se for m u ito va cila n te, o a lu n o a ca ba a ba n don a n do-a

e con t in u a a s ofrer , s em n o en ta n to

a p reen der o qu e é s u a vida . Por is s o, em bora a p rá t ica n ã o pos s a rea lm en te s er pos ta em pa la vra s , podem os s er a ju da dos por u m en ten d im en to m ín im o da m es m a

a pes a r de in telectu a l e con -

fuso , a s s im perm it in do-n os evita r u m a pa r te de n os s a s in ú teis divagações. Melhor inclusive do que esse entendimento confuso é a s im ples d is pon ib ilida de pa ra pers is t ir p ra t ica n do, m es m o qu a n do não vemos a razão disso.

Atra vés do p roces s o de rotu la r os pen s a m en tos ch ega m os a ver qu e n ã o qu erem os des er ta r de n os s o p rópr io d ra m a ps icológico particular

com pos to por a qu ilo qu e pen s a m os de n ós e dos ou tros e do qu e s en t im os a res peito da s cois a s qu e es tã o a con tecen do. Rea lm en te qu erem os pa s s a r n os s o tem po com n os --s o d ra m a pes s oa l, a té qu e m es es depois de term os com eça do a rotu la r os pen s a m en tos s u a n a tu reza es tér il s eja revela da . Qu a n do es s e es tá gio do rotu la r es tá já em a n da m en to h á a lgu m tem po, p recis a m os rea liza r u m a p rá t ica qu e n ã o oferece, a pa ren tem en te, n en h u m t ipo de gra t ifica çã o pos ter ior : a vivên cia de n os s a s sen-s a ções corpora is , de n os s o ou vir , ver , s en t ir pelo ta to, perceber odores , s a bores . Um a vez qu e es s a p rá t ica pa rece-n os m on óton a e s em s en t ido, cos tu m a m os relu ta r em pers is t ir n ela . Por ca u s a d is s o, n os s a p rá t ica pode s er fra ca , in term iten te e, em gera l por m u ito tem po, in efica z. Ach a m os qu e tem os cois a s m a is im por-tantes a fazer. Como passar nosso tempo em atividades monótonas, entediantes, como ficar sentado sentindo, vendo, saboreando etc?

É verda de qu e n ã o pa rece es ta r a con tecen do n a da de im -portante qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r . Percebem os s en s a -ções n a s pern a s e n os joelh os , ten s ã o n a fa ce, coceira s ; m a s por qu e d ia bos ir ía m os rea lm en te qu erer fa zer isso? Os a lu n os cos -tu m a m recla m a r pa ra m im : "Ma s qu e ch ato! Nã o qu ero fa zer is s o". Apes a r d is s o, s e pers is t irm os , em a lgu m m om en to h a verá u m a m u da n ça e, por u m s egu n do, n ã o h a verá eu e o m u n do, m a s a pen a s ... n ã o h á pa la vra s pa ra is s o porqu e é u m a vivên cia n ã o-du a l. É a ber to, es pa ços o, cr ia t ivo, com pa s s ivo e, do pon to de vis ta habitual, chato.

Cada s egu n do qu e pa s s a m os n es s e viven cia r n ã o-du a l t ra n s -form a a n os s a vida . Nã o con s egu im os en xerga r a t ra n s form a çã o porqu e n ã o exis te d ra m a a í. O d ra m a s em pre es tá em n os s a s

Page 167: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

cr ia ções m en ta is a u tocen tra da s . Nã o exis te d ra m a n u m a boa p ra t ica s en ta da . Nã o gos ta m os des s a fa lta de excita çã o

a té qu e

de fa to pa s s em os a s a boreá -la . En qu a n to is s o n ã o a con tecer , con fu n d irem os p rá t ica com a lgu m a es pécie de em preen d im en to ps icológico. Em bora u m a p rá t ica for te in clu a elem en tos p s icoló-gicos, não é disso que ela se compõe.

Qu a n do d igo a os a lu n os qu e viven ciem s eu corpo, a s pes soas fa la m : "Oh , s im , es tou s en t in do m eu corpo. Rotu lo m eu s pen s a m en tos e depois s in to m eu corpo. Ma s is s o n ã o a d ia n ta n a da "; "Sim , eu s in to u m a per to n o m eu peito, e s im ples m en te m e cen tro n is s o e es pero qu e des a pa reça ". Es s es com en tá r ios revela m u m a p rogra m a çã o pes s oa l já m on ta da , u m a es pécie de a m biçã o. No fu n do, o pen s a m en to é: "Vou fica r n es ta p rá t ica pa ra qu e eu

m eu eu zin h o

pos s a con s egu ir a lgu m ben efício dela ". Na rea lida de, en qu a n to n os s o eu zin h o es t iver fa la n do des s e jeito, n ã o es ta m os de verda de viven cia n do. Nos s a p rá t ica es ta rá con ta m in a da por p rogra m a s pes s oa is des s e t ipo e todos n ós tem os coisas assim às vezes.

Podem os ch ega r m a is per to de u m en ten d im en to a cu ra do do viven cia r u s a n do a pa la vra ouvir. Nã o "vou fazer es s a vivên cia", m a s "eu vou s im ples m en te ouvir a s m in h a s s en s a ções corpora is ". Se eu rea lm en te ou vir a qu ela dor do la do es qu erdo, exis te u m elem en to de cu r ios ida de, de o qu e é is s o? (Se eu n ã o s ou u m a pes s oa cu r ios a , s em pre s erei es cra viza da por m eu s pen s a m en tos .) Com o u m bom cien t is ta qu e es tá s ó obs erva n do, s em n oções preconcebidas, nós apenas observamos, olhamos, ouvimos.

Se nossa mente é mobilizada por interesses de ordem pessoal, n ã o con s egu im os ou vir

ou m elh or , n ã o queremos ouvir. Qu erem os pen s a r . É por is s o qu e rotu la r , obs erva r a m en te e s u a s a t ivida des , é em gera l n eces s á r io por u m tem po ba s ta n te lon go a n tes qu e es s e s egu n do n ã o-es ta do do viven cia r , ou s er , pos s a s equ er com eça r . Es s e n ã o-es ta do é o qu e fa z com qu e a n os s a p rá t ica s eja religios a . Viven cia r é o rein o do n ã o-tem po, do n ã o-espaço, da verdadeira natureza. Só o ser, o existir só Deus.

No p r in cíp io, n os s o des ejo de pen s a r a n os s o res peito é poderos o e s edu tor . Pa rece a cen a r -n os com in fin ita s p rom es s a s . Esse des ejo é tã o poderos o qu e, depen den do da pes s oa , pode leva r u m , cin co, dez a n os ou m a is a n tes qu e es s e des ejo en fra qu eça e n ós con s iga m os de fa to a pen a s s en tar. Es s a form a de s en ta r é

Page 168: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

en trega , é ren d içã o, porqu e n ã o tem u m eu a li. É a en t rega a o qu e é, é u m a p rá t ica religios a . Es s a p rá t ica n ã o é p r im a r ia m en te empreendida em nosso benefício pessoal.

A boa p rá t ica é s im ples m en te s en ta r -s e a li

é des provida de

a con tecim en tos . Do pon to de vis ta h a b itu a l, é u m a ch a tea çã o. Com o tem po, n o en ta n to, a p ren dem os em n os s os corpos qu e a qu ilo qu e cos tu m á va m os ch a m a r de "en ted ia n te" é pu ro con -ten ta m en to, e es s e con ten ta m en to é a fon te, o s olo fér t il, de n os s a vida e de nossos atos. Às vezes, é chamado de samadhi; é o próprio não-es ta do n o qu a l dever ía m os viver toda a n os s a vida : qu a n do da m os a u la , qu a n do a ten dem os u m clien te, qu a n do cu ida m os de u m bebê, qu a n do toca m os u m in s t ru m en to. Qu a n do vivem os nesse samadhi não-du a lis ta , n ã o tem os p rob lem a s porqu e n ã o h á nada separado de nós.

Con form e n os s a m en te va i perden do u m a pa r te de s u a obs es s ã o com o pen s a m en to a u tocen tra do, a u m en ta n os s a ca pa -cida de de perm a n ecer n a n ã o-du a lida de. Se form os pa cien tes e pers is ten tes , a ca ba rem os depois de u m tem po a pren den do m u ito a res peito da n ã o-du a lida de. Ma s , en qu a n to n ã o s a borea rm os rea lm en te es s a n ã o-du a lida de, n os s a p rá t ica ; a in da n ã o terá s e torn a do m a du ra . Podem os p rom over n os s a in tegra çã o ps icológica a t ra vés dos es tá gios in icia is da p rá t ica , porém , en qu a n to o vivenciar não se tornar o fundamento essencial de nossa existência, ainda continuaremos sem saber o que a prática é.

É a lgo m u ito s u t il. Por is s o é qu e a p rá t ica é d ifícil: n ã o pos s o oferecer-lh es u m m a pa deta lh a do e des crever pa ra on de vocês estão se encaminhando. Diversos alunos deixam de praticar depois de cin co a n os m a is ou m en os . É u m a pen a , porqu e s u a s vida s a in da s ã o u m m is tér io pa ra eles . Até qu e o va lor do viven cia r s e torn e cla ro e óbvio, é d ifícil perm a n ecer n a qu ilo em qu e tem os de perm a n ecer . Só u m cer to n ú m ero de pes s oa s efet iva m en te o consegue.

Ma s , por fa vor , n ã o des is ta m . Qu a n do con s egu irm os "ou vir ' ' o corpo por per íodos ca da vez m a is lon gos , n os s a vida irá s e t ra n s form a r n a d ireçã o da pa z, da liberda de e da com pa ixã o. Livro a lgu m poderá en s in a r -n os is s o, s om en te a n os s a p rá t ica d ireta . Sim, isso pode ser feito. Muitos já o conseguiram.

Page 169: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

VI. Liberdade

OS SEIS ESTÁGIOS DA PRÁTICA

O ca m in h o da p rá t ica é cla ro e s im ples . No en ta n to, qu a n do n ã o o en ten dem os , ele pode pa recer con fu s o e s em s en t ido. É u m pou co com o a pren der a toca r p ia n o. Logo n o in ício de m eu apren d iza do, u m profes s or d is s e-m e qu e, pa ra m e torn a r u m a p ia n is ta m elh or , eu dever ia p ra t ica r a s eqü ên cia C (dó), E (m i), G (s ol), vá r ia s vezes s egu ida s , a té cin co m il. E le n ã o m e deu n en h u m motivo; só me disse que o fizesse.

J á qu e eu era u m a boa m en in a qu a n do pequ en a , p rova vel-m en te fiz is s o m es m o s em en ten der por qu e era n eces s á r io. Ma s n em todos s om os bon s m en in os e m en in a s . Por is s o qu ero a p re-sentar-lhes o "porquê" da prática elucidando os passos do caminho qu e p recis a m os percor rer

por qu e é n eces s á r io todo es s e ted ios o e repet it ivo t ra ba lh o. Toda s a s m in h a s a u la s fa la m dos a s pectos des s e ca m in h o; es ta é u m a revis ã o, com a fin a lida de de pôr a s coisas em ordem, segundo uma certa perspectiva.

A m a ior ia da qu eles qu e n ã o s e en t rega ra m a n en h u m a espécie de p rá t ica (exis tem m u ita s pes s oa s p ra t ica n do a s eu p rópr io m odo, s eja m ou n ã o d is cípu la s do zen ) es tá n a qu ilo qu e den om in o o p ré-ca m in h o. Is s o com cer teza s e a p licou a m im a n tes qu e eu com eça s s e a p ra t ica r . Es ta r n o p ré-ca m in h o s ign ifica es ta r inteiramen te ca t ivo de n os s a s rea ções em ocion a is d ia n te da vida , a dota n do a vis ã o de qu e a vida es tá a con tecen do para nós. Sentimo-n os fora de con trole, a tola dos n o qu e pa rece u m a con fu s ã o es ton tea n te. Is s o pode s er verda de pa ra qu em ta m bém es tá p ra t ica n do. A m a ior ia dos a dep tos volta pa ra es s e es ta do de doloros a con fu s ã o à s vezes . A s eqü ên cia do h om em m on ta do n u m touro * ilu s t ra es s e a s pecto; podem os es ta r t ra ba lh a n do per to dos es tá gios fin a is e de repen te, pera n te u m a s itu a çã o de es t res s e, regred ir de repen te a es tá gios a n ter iores . Às vezes , s a lta m os de

* Essa é uma seqüência tradicional de imagens em que um homem doma aos poucos um touro selvagem, assim aludindo ao progresso da prática, que da desilusão chega à iluminação.

Page 170: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

volta pa ra o per íodo do p ré-ca m in h o, on de n os vem os tota lm en te tom a dos por n os s a s rea ções . Es s a revers ã o n ã o é n em boa , n em ruim, apenas algo que fazemos.

Es ta r tota lm en te à m ercê do p ré-ca m in h o, n o en ta n to, é n ã o ter a m en or idéia de qu e exis te u m ou tro ca m in h o pa ra s e ver a vida . Aden tra m os o ca m in h o da p rá t ica , porém , qu a n do com eça -m os a recon h ecer n os s a s rea ções em ocion a is ; por exem plo, qu e es ta m os s en t in do ra iva e com eça n do a cr ia r ca os . Com eça m os a des cobr ir qu a n to m edo s en t im os ou com qu e regu la r ida de tem os pensamentos mesquinhos ou invejosos.

O p r im eiro es tá gio da p rá t ica é es s e p roces s o de torn a r -me con s cien te de m eu s s en t im en tos e de m in h a s rea ções in tern a s . Rotu la r os pen s a m en tos a ju da n es s e s en t ido. É im por ta n te s er firm e n es s a fa s e, porém , ca s o con trá r io perderem os u m a boa pa r te do qu e s e pa s s a em n os s os pen s a m en tos e s en t im en tos . Precisamos observar tudo o que se passa. Nos primeiros seis a doze m es es de p rá t ica podem os s ofrer m u ito porqu e com eça m os a n os en xerga r com m a is n it idez e a recon h ecer o qu e rea lm en te es ta m os fa zen do. Rotu la m os os pen s a m en tos , por exem plo: "Eu qu er ia qu e ele sumisse do mapa!", ou "Não consigo mais agüentar o jeito como ela a r ru m a os t ra ves s eiros !". Nu m ret iro in ten s ivo, es s es pen s a m en tos têm a ten dên cia de s e m u lt ip lica r con form e va m os fica n do ca n s a dos e ir r ita d iços . Nos p r im eiros s eis a doze m es es , abrirmo-n os pa ra n os s a vida in ter ior pode s er u m gra n de ch oqu e. Em bora es s e s eja o p r im eiro es tá gio da p rá t ica , res ídu os dele perma n ecem n os dez ou qu in ze a n os s egu in tes , con form e continuamos a nos conhecer cada vez mais.

No s egu n do es tá gio, qu e com eça de m a n eira t íp ica n o s e-gu n do a n o e s e es ten de a té o qu in to, com eça m os a rom per os elos dos es ta dos em ocion a is , decom pon do-os em s eu s com ponentes fís icos e m en ta is . Con form e p ros s egu im os rotu la n do pen samentos, e quando começamos a saber o que significa vivenciar a nós, nosso corpo e a qu ilo qu e ch a m a m os de o m u n do extern o, os es ta dos em ocion a is len ta m en te com eça m a s e des fa zer . Nu n ca des a pa recem por com pleto, porém . A qu a lqu er m om en to, podemos volta r com tu do pa ra o es tá gio a n ter ior

e is s o n os a con tece com gra n de freqü ên cia . Mes m o a s s im , es ta m os com eça n do u m n ovo es tá gio. A dem a rca çã o en tre es tá gios n u n ca é p recis a , cla ro. Ca da um flui no seguinte. É mais uma questão de ênfase.

Page 171: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

O es tá gio u m é o com eço da con s cien t iza çã o do qu e es tá s e pa s s a n do e do m a l qu e is s o ca u s a . No es tá gio dois , s om os m ot iva dos a des fa zer os elos da s rea ções em ocion a is . No es tá gio t rês , com eça m os a en con tra r a lgu n s m om en tos de pu ro viven cia r s em os pen s a m en tos a u tocen tra dos : a pen a s o pu ro viven cia r em s i. Em a lgu n s cen tros zen , es s es es ta dos s ã o à s vezes ch a m a dos de experiências de iluminação.

No es tá gio qu a tro, de m a n eira len ta e firm e n os en ca m in h a -m os pa ra u m es ta do n ã o-du a l de vida em qu e a ba s e do exis t ir é viven cia l, em vez de s er dom in a do por fa ls os pen s a m en tos . É im por ta n te lem bra r qu e s ã o a n os e a n os de p rá t ica im plica dos em todos esses estágios.

No es tá gio cin co, 80 a 90% da vida é vivida de m a n eira viven cia l. Agora viver é a lgo m u ito d iferen te do qu e cos tu m a va s er . Podem os d izer qu e es s a é u m a vida do n ã o-ego, porqu e o pequ en o eu , a qu ele p reen ch im en to em ocion a l a t ra vés do qu a l vía m os a vida e qu e n os fa zia des pen ca r , p ra t ica m en te s e foi. Nes s a fa s e, é im pos s ível o d is cípu lo viver com o n o p ré-ca m in h o, fica n do p r is ion eiro de tu do e n a s m a lh a s de s u a s rea ções em ocionais. Mes m o qu e a pes s oa qu is es s e rever ter do es tá gio cin co pa ra o p ré-ca m in h o, ela n ã o o con s egu ir ia . No es tá gio cin co, es tã o m u ito m a is fortes a com pa ixã o e a va lor iza çã o da vida da s ou tra s pes s oa s . Nes s e es tá gio, é pos s ível s er p rofes s or e a ju da r os ou tros qu e s e en con tra m em ou tros m om en tos do ca m in h o. Os qu e ch ega ra m n o es tá gio cin co p rova velm en te já s ã o p rofes s ores de u m jeito ou de outro. Fra s es com o "Eu n ã o s ou n a da " (e "Por ta n to s ou tu do") n ã o s ã o m a is des t itu ída s de s en t ido, com o fra s es literá r ia s de efeito, m a s cois a s qu e a pes s oa s a be in tu it iva m en te. Es s e con h ecim en to não é nada especial ou exótico.

Do ponto de vista teórico, existe um sexto estágio, o estado de bu da , em qu e a vida t ra n s corre toda em es ta do viven cia l pu ro. Nã o o conheço e duvido que alguém o atinja por completo.

De lon ge o m a is d ifícil de tu do é s a lta r do es tá gio u m pa ra o dois . Pr im eiro, devem os tom a r con s ciên cia de n os s a s rea ções em ocion a is e de n os s a ten s ã o corpora l, de com o n os des in cu m -b im os de tu do em n os s a s vida s , m es m o qu e ocu ltem os a s n os s a s rea ções . Tem os qu e n os en ca m in h a r pa ra a m a is n ít ida con s cien t iza çã o pos s ível, rotu la n do os n os s os pen s a m en tos e começando a s en t ir a ten s ã o n o corpo. Res is t im os a rea liza r es s e

Page 172: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

t ra ba lh o porqu e ele com eça a d ila cera r qu em n ós pen s á va m os s er . Nes s e es tá gio, é ú t il tom a r con s ciên cia de n os s o tem pera m en to bá s ico, de n os s a es t ra tégia pa ra en fren ta r a p res s ã o de n os s a s vida s . A ps icotera p ia ta m bém pode s er p roveitos a n es s e es tá gio s e for in teligen te. A boa tera p ia a ju da -n os a a u m en ta r n os s o ca m po de con s ciên cia . In felizm en te, tera peu ta s bon s de verda de s ã o a té cer to pon to ra ros e a m a ior pa r te da s tera p ia s n ã o é in teligen te e inclusive incentiva a jogar culpa em outros.

Nesse cenário de lutas que é a transição do estágio um para o dois , com eça m os a n os da r con ta de qu e tem os es colh a . Qu a l é es s a es colh a ? Um a é a recu s a de p ra t ica r : "Nã o vou m a is rotu la r esses pensamentos; é um tédio. Vou só me sentar e ficar sonhando com a lgu m a cois a a gra dá vel". A es colh a é perm a n ecer a tola do e con t in u a r s ofren do (o qu e, in felizm en te, s ign ifica qu e fa rem os os ou tros s ofrer ta m bém ) ou en con tra r a cora gem pa ra m u da r . On de en con tra r es s a cora gem ? Ela a u m en ta con form e n os s a p rá t ica con t in u a e com eça m os a tom a r con s ciên cia de n os s o p rópr io s ofr im en to e (s e form os de fa to pers is ten tes ) do s ofr im en to qu e ca u s a m os à s ou tra s pes s oa s . Com eça m os a perceber qu e, s e recusarmos a ba ta lh a r a qu i, ca u s a rem os da n os à vida . Tem os de fazer uma escolha entre viver uma vida dramática e autocentrada e ou tra ba s ea da n a p rá t ica . Ad ia n ta r -s e de m a n eira firm e do es tá gio u m pa ra o dois im plica qu e n os s o d ra m a tem , len ta m en te, de ch ega r a o fim . Do pon to de vis ta do pequ en o eu , es s e é u m sacrifício tremendo.

Qu a n do es ta m os n os deba ten do en tre o es tá gio u m e o dois , fa zem os ju lga m en tos m ora is : "Ele rea lm en te m e deixa ira do!"; "Sinto-m e rejeita da !"; "Sin to-m e m a goa do"; "Es tou a borrecida e res s en t ida "; "Sin to von ta de de m e vin ga r". Es s a s s en ten ça s b rota m de n os s a s em oções . Toda s s ã o m u ito s a boros a s e a té s edu tora s : ela bora m os u m dra m a de p r im eira em cim a de n os s a pos içã o d e vít im a s da vida , do qu e a con teceu con os co, de com o tu do é d ificílim o. Apes a r de n os s o s ofr im en to todo, n a verda de a dora m os s er o cen tro de tu do is s o: "Sin to-m e depr im ida "; "Sin to-me en ted ia da "; "Sin to-m e a borrecido"; "Sin to-m e ir r ita do"; "Sin to-me excita da ". Es s e é o n os s o d ra m a pes s oa l. Todos tem os vers ões de u m dra m a pes s oa l, e s ã o n eces s á r ios a n os de p rá t ica a n tes de n os s en t irm os d is pos tos a con s idera r s er ia m en te a ba n don á -lo. As pes s oa s des loca m -s e em velocida des d iferen tes devido a d iferen ça s de h is tór ico pes s oa l, de força , de determ in a çã o. Ain da a s s im , s e

Page 173: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

form os pers is ten tes , com eça rem os a m u da r do es tá gio u m pa ra o dois.

Qu a n to m a is cla ra for a in s erçã o n o es tá gio dois , com eça m a s u ceder ca da vez m a is per íodos em qu e n os en con tra m os d izen do: "Oh , tu do bem . Nã o s ei por qu e pen s ei qu e is s o fos s e u m gra n de p rob lem a ". Des cobr im os qu e vem os tu do com u m a com pa ixão cres cen te. Es s e p roces s o n u n ca ch ega a fica r com pleto ou a fin a liza r . Em qu a lqu er m om en to podem os m ergu lh a r de volta n o es tá gio u m . Mes m o a s s im , n o gera l, n os s a ca pa cida de de a p recia çã o a u m en ta e des cobr im os qu e podem os va lor iza r pes s oa s qu e a n tes n ã o con s egu ía m os n em s equ er s u por ta r . Nu m a boa p rá t ica , exis te u m m ovim en to qu a s e qu e in exorá vel, m a s devem os es ta r d is pos tos a pa s s a r ta n to tem po qu a n to s eja p recis o em ca da passo. O processo não pode ser apressado.

En qu a n to in s is t irm os n os ju lga m en tos em ocion a is qu e m en -cion ei (e pode h a ver in fin ita s va r ia ções dos m es m os ), podem os es ta r s egu ros de qu e n ã o es ta m os in s ta la dos com firm eza n o es tá gio dois . Se a in da a cred ita m os qu e u m a ou tra pes s oa n os fa z s en t ir ra iva , por exem plo, p recis a m os recon h ecer exa ta m en te qu a l é o nosso trabalho. Nosso ego é muito poderoso e insistente.

Qu a n do n os des loca m os pa ra o es tá gio t rês , es ta m os a os pou cos deixa n do pa ra t rá s o es tá gio du a lis ta dos ju lga m en tos

ter pen s a m en tos , em oções , op in iões a res peito de n ós e dos ou tros , de tu do e do m u n do

e n os en ca m in h a m os pa ra u m a vida m en os du a lis ta e m a is s a t is fa tór ia . Os ca s a is d is cu tem m en os en t re s i, com eça m os a deixa r m a is em pa z os filh os ; os p rob lem a s qu e es ta m os en fren ta n do s e a ten u a m qu a n to m a is rá p ido percebem os o qu e é a p ropr ia do pa ra s er feito. Algu m a cois a es tá de fa to m u da n do. Qu a n to tem po is s o tu do leva ? Cin co a n os ? Dez a n os ? Depende da pessoa.

O continuum da p rá t ica poder ia s er d ivid ido de d iferen tes m a n eira s . Poder ía m os s im plifica r a a n á lis e com u m a a n a logia : primeiro, exis te o s olo, qu e é a qu ilo qu e s om os n es te m om en to do tempo. O solo pode ser de argila ou areia, rico em húmus" e adubo. Pode a t ra ir qu a s e n en h u m a m in h oca , ou m u ita s m in h ocas, depen den do de s u a fer t ilida de. O s olo n ã o é n em bom , n em m a u ; é a qu ilo com qu e depa ra m os com o pon to de pa r t ida pa ra t ra ba lh a r . Nã o tem os p ra t ica m en te n en h u m con trole s obre o qu e os n os s os pa is n os dera m em term os de h ered ita r ieda de e con d icionamento.

Page 174: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Nã o podem os s er n a da a lém do qu e s om os n es te p recis o m om en to. Tem os cois a s por a p ren der , s em dú vida ; m a s a qu a lqu er pon to do p roces s o s om os qu em s om os . Pen s a r qu e dever ía m os s er qu a lqu er ou tra cois a é r id ícu lo. Sim ples m en te p ra t ica m os com a qu ilo qu e somos. Esse é o solo.

Ao n os en t rega rm os a o t ra ba lh o de cu lt ivo do s olo es ta m os cobrin do a qu eles qu e den om in ei es tá gios dois a qu a t ro. Tra ba -lh a m os com o qu e é o ch ã o

a s s em en tes , o a du bo, a s m in h o-

cas , a r ra n ca n do a s erva s da n in h a s , poda n do, u s a n do m étodos naturais para produzir uma boa safra.

Do s olo qu e foi cu lt iva do vem u m a colh eita qu e com eça a mostrar-s e bem eviden te n o es tá gio qu a tro e a u m en ta da í em d ia n te. A colh eita é a pa z e o con ten ta m en to. As pes s oa s qu eixam-s e pa ra m im d izen do: "Ain da n ã o s in to con ten ta m en to em m in h a p rá t ica ", com o s e ela lh es fos s e p roporcion a r es s a vivên cia . Qu em n os dá es s e con ten ta m en to? Nós n os oferecem os es s a vivên cia por m eio de u m a p rá t ica in ca n s á vel. Nã o é a lgo qu e pos s a m os es pera r ou exigir . Apa rece qu a n do a pa rece. Um a vida de con ten ta m en to n ã o s ign ifica qu e es teja m os s em pre felizes e n a da m a is . Significa a pen a s qu e a vida é r ica e in teres s a n te. Podem os a té detes ta r cer tos a s pectos do viver , m a s ca da vez m a is é a lgo s a t is fa tór io de se viver, num plano geral. Não nos engalfinhamos mais com a vida.

Res u m in do: o p r im eiro es tá gio con s is te em n os con s cienti-za rm os do qu e s om os em ocion a lm en te, in clu in do n os s o des ejo de con trola r . O s egu n do es tá gio é. decom por a s rea ções em s eu s com pon en tes fís icos e m en ta is . Qu a n do es s e p roces s o com eça a tornar-s e u m pou co m a is a d ia n ta do, com eça m os

n o terceiro estágio

a pa s s a r a lgu n s m om en tos em pu ro viven cia r . Agora o p r im eiro es tá gio pa rece ba s ta n te rem oto. No qu a r to es tá gio, movimentamo-n os com m a is liberda de n o s en t ido de viver viven cia lm en te, a fa s ta n do-n os dos es forços pa ra ta n to. No qu in to es tá gio, a vida viven cia l es tá a gora in s ta la da com firm eza . De 80 a 90% do tem po, a pes s oa es tá viven cia n do s eu viver . O tem po do pré-caminho

ca tivo da s em oções pes s oa is e t ra n s fer in do-a s pa ra os ou tros , pen s a n do qu e a cu lpa de n os s a s d ificu lda des é a lgu ém qu e n ã o n ós

a gora é im pos s ível de s er retom a do. A pa r t ir do es tá gio dois em d ia n te, a com pa ixã o e a a p recia çã o dos ou tros começam a crescer.

Page 175: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: A s u a des cr içã o dos es tá gios da p rá t ica é m u ito ú t il. É com o u m m a pa : n ã o n os d iz com o ch ega r a o fim , m a s n os perm ite saber onde nos encontramos ao longo do percurso.

JOKO: Com o a lgu ém "ch ega a o fim " depen de de ca da pes s oa . Todos s om os d iferen tes e os pa drões de ego va r ia m de pes s oa a pessoa. Ainda assim, é útil ter uma imagem do padrão geral.

O qu e des crevi é ba s ta n te pa recido com a s dez figu ra s clá s s ica s da s eqü ên cia do tou ro e do h om em , m a s veio a p res en -tado em termos mais psicológicos porque essa forma de abordagem é m a is con h ecida h oje em d ia . No fu n do, porém , p rá t ica é p rá t ica ; p recis a m os en tra r com tu do o qu e s om os . Tem os s im ples m en te de fazê-la. C, E, G. C, E, G. C, E, G.

CURIOSIDADE E OBSESSÃO

Um de m eu s a lu n os d is s e-m e, h á pou co tem po, qu e pa ra ele a m ot iva çã o toda qu e s en t ia pa ra s en ta r e p ra t ica r era a cu r ios i-da de. E le es ta va a ch a n do qu e eu ir ia d is corda r dele e desaprovar es s a form a de p ra t ica r . A verda de é qu e eu con cordo p len a m en te. Um a gra n de pa r te de n os s a vida pa s s a m os p res os em n os s os pen s a m en tos , obceca dos com is to ou a qu ilo, e n ã o verda deira -m en te n o p res en te. Ma s à s vezes n os in t r iga m os a n os s o p róp r io res peito e a res peito de n os s a s obs es s ões : "Por qu e s ou tã o a n s ios o, depr im ido ou a foba do?". Des s a s en s a çã o in t r iga n te vem u m a cu r ios ida de e u m a d is pon ib ilida de pa ra a pen a s obs erva r a n ós e a n os s os pen s a m en tos , pa ra ver com o n os leva m os a fica r tã o contraria dos . O a rco repet it ivo do pen s a m en to recu a pa ra s egu n do p la n o e tom a m os con s ciên cia do m om en to p res en te. Sen do a s s im , a curiosidade é, em certo sentido, o coração da prática.

Se form os cu r ios os de verda de in ves t iga rem os s em n en h u m precon ceito. Su s pen derem os n os s a s cren ça s por a lgu m tem po e a pen a s obs erva rem os , a pen a s n ota rem os . Qu erem os in ves t iga r a n ós m es m os , de qu e m odo leva m os n os s a vida . Se fizerm os is s o de m a n eira in teligen te, exper im en ta rem os a vida m a is de per to e com eça rem os a vê-la com o é. Por exem plo, es ta m os a qu i s en ta dos. Va m os s u por qu e, em vez de n os p reocu pa rm os com u m a cois a ou ou tra , n ós d ir igim os n os s a a ten çã o pa ra a n os s a experiência im ed ia ta . Pres ta m os a ten çã o n o qu e es ta m os es cu ta n do. Sen t im os

Page 176: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

n os s os joelh os dolor idos e ou t ra s s en s a ções em n os s o corpo. Depois de a lgu m tem po, perdem os n os s o foco, e n os s os pen s a m en tos com eça m a fervilh a r e form a r a rcos de repet içã o, u m a t rá s do ou tro, Qu a n do n os da m os con ta de qu e n os des via mos, volta m os a p res ta r a ten çã o. Es s e é o pa drã o n orm a l da prática s en ta da . O qu e es ta m os de fa to fa zen do é in ves t iga r a n os s a pes s oa , os n os s os pen s a m en tos , a n os s a vivên cia : ou vimos, s en t im os , percebem os o odor da s cois a s . Nos s a s s en s a ções a cion a m pen s a m en tos e n os s a m en te s e la n ça n u m ou tro a rco. En tã o percebem os es s e a rco repet it ivo. Nos s o foco de in ves t iga ção m u da u m pou co e com eça m os a con s idera r : "O qu e é todo es s e pen s a r?"; "O qu e é qu e eu fa ço?"; "No qu e es tou pen s a n do?"; "Com o é qu e eu es tou con s ta n tem en te pen s a n do a res peito d is s o e não daquilo?".

Se obs erva rm os o n os s o pen s a m en to em vez de cor rerm os com ele, com o tem po a n os s a m en te s e a qu ieta rá e n ós in ves t i-ga rem os o m om en to s egu in te. Es s a percepçã o con s cien te poderia s er : "Es tou s en ta da a qu i h á h ora s e o m eu corpo todo es tá com eça n do a doer". En tã o in ves t iga m os is s o. O qu e dói? O qu e é rea lm en te is s o? Depois de a lgu m tem po tom a m os con s ciên cia n ã o s ó de n os s a s s en s a ções fís ica s , m a s de n os s os pen s a m en tos a res peito dela s ta m bém . Obs erva m os o fa to de qu e n ã o qu eremos fica r de jeito n en h u m s en ta dos a qu i. Obs erva m os n os s os pensamentos rebeldes: "Quando será que vão tocar o sino para que eu pos s a m e m ovim en ta r?". Repa ra r é u m a for rn a de cu r iosidade, u m a in ves t iga çã o do qu e é. Apen a s p res ta m os a ten çã o n a qu ilo qu e está implicado em nossa vida ou em nossa prática sentada.

Es s e p roces s o pode ocorrer n ã o s ó qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , m a s em ou tra s opor tu n ida des . Va m os s u por qu e es tou n o con s u ltór io do den t is ta pa ra ob tu ra r u m a cá r ie. Obs ervo m eu s pen s a m en tos a res peito do t ra ba lh o do den t is ta : "Eu n ão gos to de leva r u m a in jeçã o n a gen giva !". Obs ervo a s u a ve ten s ã o qu e a con tece a s s im qu e o den t is ta en t ra n a s a la . En qu a n to n os cu m pr im en ta m os edu ca da m en te

"Olá , com o va i?"

obs ervo qu e m eu corpo es tá con tra in do. En tã o ch ega a a gu lh a . Apen a s s in to e fico com es s a s en s a çã o. O den t is ta a ju da com a lgu m a s in s t ru ções : "Con t in u e a pen a s res p ira n do. Res p ire fu n do...". É com o t rein a r pa ra u m pa r to n a tu ra l: qu a n do a com pa n h a m os a respiração, não pensamos na dor. Simplesmente somos a dor.

Page 177: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Ou ta lvez es teja m os n o n os s o a m bien te de t ra ba lh o. J á delin ea m os n os s a s ta refa s pa ra a pa r te da m a n h ã . En tã o o ch efe en t ra e d iz: "Tem os u m pra zo a per ta do a gora . Deixem o qu e es ta va m fa zen do. Precis o d is to p ron to a n tes do res to. Da qu i a u m a h ora ". Se tem os p ra t ica do s en ta dos , obs erva m os de im ed ia to a s nossas reações corporais, no mesmo instante em que começamos a fazer nossa tarefa. Observamos que o corpo começa a contrair-se e qu e a lim en ta m os pen s a m en tos res s en t idos : "Se ele m es m o fos s e fa zer is s o n ã o es pera r ia qu e fica s s e p ron to em u m a h ora ". Obs erva m os n os s os pen s a m en tos e en tã o os a ba n don a mos, volta n do pa ra o qu e tem os d ia n te de n ós e p recis a s er feito, Mergulhamos nisso.

Podem os in ves t iga r toda a n os s a vida des s a m a n eira . "O qu e estou sentindo? O que acontece comigo quando a vida faz o que ela fa z? '' As a b ru p ta s exigên cia s do ch efe s ã o a pen a s a lgo qu e a vida faz para mim. Da mesma forma, precisar obturar um dente é o que a vida fa z com igo. Ten h o s en t im en tos e pen s a m en tos a res peito de ca da in ciden te. Qu a n do perm a n eço com os s en t im en tos e pen s a m en tos , a s s en to-m e em a pen a s es ta r a qu i, em a pen a s es ta r com a s cois a s qu e a con tecem do jeito qu e a con tecem , in do s im ples m en te a té a cois a s egu in te. Na h ora do a lm oço, o ch efe volta e pergunta: "Você ainda não terminou aquilo?". Ele não disse: "O qu e h á de er ra do com você?", m a s recebem os es s a m en s a gem . Sen t im os n os s o corpo ou tra vez ten s ion a r . Obs erva m os n os s os pen s a m en tos res s en t idos a res peito dele. Fa zem os u m a lm oço rá p ido em vez da h ora in teira qu e t ín h a m os p la n eja do leva r almoçando. Depois corremos de volta para o trabalho.

Qu a n do tem os a gra n de s or te de fa zer u m t ra ba lh o do qu a l gostamos de verdade, também observamos as reações. Observamos qu e o corpo rela xa m a is . Obs erva m os qu e en t ra m os com m a is fa cilida de n a ta refa . Fica m os a bs orvidos , o tem po pa s s a m a is depres s a , e n os s os pen s a m en tos s ã o m a is in freqü en tes porqu e gos ta m os n ã o é m a is im por ta n te do qu e a qu ilo qu e detes ta mos, porém. E quanto mais tempo praticamos, mais o fluxo de momento a m om en to p res ide n os s o viver , in depen den te de n ossas preferên cia s e a vers ões . Tem os con s ciên cia da s itu a çã o con forme ela flu i por n ós e n os deixa pa ra t rá s . Es ta m os s ó fa zen do o qu e es ta m os fa zen do. Es ta m os cien tes do flu xo da exper iên cia . Na da es pecia l. Ma is e m a is o flu xo in s ta la -s e e p rom ove u m a vida bastante boa.

Page 178: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Não é que tudo passe a ser agradável. Não podemos antecipar o qu e a vida irá n os p roporcion a r . Qu a n do n os leva n ta m os pela m a n h ã , n ã o s a bem os qu e à s 14 h ora s irem os qu eb ra r a pern a . Nu n ca s a bem os o qu e es tá por a con tecer . É pa r te do p ra zer de s e estar vivo.

A prática nada mais é que essa atitude de curiosidade: "O que es tá a con tecen do a qu i, a gora ? No qu e es tou pen s a n do? O qu e es tou s en t in do? O qu e a vida es tá m e a pres en ta n do? O qu e es tou fa zen do com is s o? Qu a l é a cois a in teligen te pa ra s e fa zer a es te res peito? O qu e é a cois a in teligen te de s e fa zer com u m ch efe qu e já es tá ir r ita do e fora do bom s en s o? O qu e fa ço qu a n do ob tu ra r u m den te s e torn a u m a dor in s u por tá vel?". A p rá t ica d iz res peito a es s a s form a s de in ves t iga çã o. Qu a n to m a is ch ega m os a u m a cordo com n os s os pen s a m en tos e rea ções pes s oa is , m a is podem os s im ples m en te es ta r n a qu ilo qu e p recis a s er feito. É is s o qu e com põe em es s ên cia a p rá t ica zen : fu n cion a r de u m m om en to pa ra o outro.

Tem u m a m os qu in h a n es ta s opa , con tu do. A m os ca é qu e m u ita s vezes n ã o s om os cu r ios os a cerca da vida , n em a ber tos pa ra ela . Em vez de exa m in a r com in teres s e es s e ch efe d ifícil, vem o-nos a pr is ion a dos em pen s a m en tos e rea ções a es s a s itu a çã o. Atola m o-n os em des vios m en ta is obs es s ivos , em a rcos repetit ivos de pen s a m en tos . Se n u n ca p ra t ica m os o zen , podem os fica r n es s es a rcos repet it ivos qu a s e qu e 95% do tem po. Se es t ivemos pra t ica n do bem já h á a lgu n s a n os , ta lvez perm a n eça m os n es s es arcos entre 5 e 10% do tempo.

Com respeito àquele chefe difícil, o arco de pensamentos pode s er : "Ma s qu em ele pen s a qu e é? Ele a ch a qu e vou fa zer is s o tu do em u m a h ora ? Ma s é r id ícu lo!". A res is tên cia a pa rece. "Vou da r u m a liçã o n ele!" Podem os ch ega r a té a s a bota r o s erviço qu e p recis a s er feito. Se n ã o o s a bota m os , podem os fa zer is s o con os co, mantendo-n os a tola dos em n os s os pen s a m en tos e em n os s a ra iva . Per to do fin a l do d ia , irem os pa ra ca s a es gota dos e fa la rem os pa ra qu em es tá lá com o h oje o ch efe es ta va im pos s ível. "Nin gu ém con s egu e t ra ba lh a r com ele. E le es tá a r ru in a n do a m in h a vida ." Nes s a s a ca lora da s rea ções pes s oa is n ã o vem os a p res en ça de u m a pos tu ra cu r ios a e in ves t iga t iva . Em vez dela , m a n tem o-n os a ta dos pelo la ço da obs es s ã o m en ta l. Nã o obs erva m os a pen a s n os s os pen s a m en tos a res peito do ch efe: em lu ga r d is s o, a cred ita m os qu e a lgu m a va lida de exis te pa ra term os rodop ia do o d ia todo em torn o

Page 179: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

de n os s os pen s a m en tos en ra ivecidos , em vez de en xergá -los em s u a s im ples n a tu reza , s en t in do a con tra çã o corpora l qu e a pa receu em fu n çã o deles , e, ta n to qu a n to n os fos s e pos s ível, volta r pa ra o trabalho fazendo algo que solucionasse aquele problema.

A p rá t ica s en ta da é exa ta m en te is s o: es ta m os in ves t iga n do a n os s a vida . Ma s , qu a n do n os perdem os em n os s os fios a u to-cen tra dos de pen s a m en tos , n ã o es ta m os m a is in ves t iga n do cois a n en h u m a . Es ta m os pen s a n do em com o tu do é ru im , ou cu lpa n do a lgu ém de a lgu m a cois a , ou n os recr im in a n do. Ca da pes s oa tem s eu es t ilo p rópr io, qu e é com o ju s t ifica m os n os s a exis tên cia . Gos ta m os qu e n os s os a rcos repet it ivos de pen s a m en tos cres ça m . Sen t im os p ra zer n is s o de verda de

a té com eça rm os a perceber que eles arruínam a nossa vida.

As pes s oa s s e perdem em m u itos t ipos d iferen tes de a rcos de pen s a m en tos . Pa ra a lgu m a s é: "Nã o con s igo fa zer n a da en quanto n ã o t iver en ten d ido tu do". Por is s o recu s a m -s e a a gir a té terem a n a lis a do tu do. Ou tra s res pon dem a ch efes d ifíceis d izen do: "Vou fazer o trabalho, mas do meu jeito. E não vou mexer nisso a menos qu e pos s a s a ir per feito". Um per feccion is m o obs es s ivo pode s er o la ço qu e n os a ta . Es te ta m bém pode s er de n a tu reza filos ófica , e en tã o p recis a m os con s tela r u m a im a gem com pleta de com o a s cois a s s e en ca ixa m u m a s n a s ou tra s . Es s e la ço é n o fu n do u m a ten ta t iva de torn a r s egu ra a n os s a vida : pen s a m os qu e, en ten den do tu do, terem os m a is s egu ra n ça . Um a ou tra es pécie de laço é torn a r -s e obs es s iva m en te ocu pa do e t ra ba lh a r o tem po in teiro. Um es t ilo cor rela to é fa zer m u ita s cois a s a o m es m o tem po, Nos s os a rcos repet it ivos de pen s a m en tos s ã o o n os s o es t ilo pes s oa l e des cobr im os o qu e s ã o qu a n do rotu la m os os n os s os pensamentos. É por isso que rotular pensamentos é tão importante. Tem os de s a ber on de e com o gos ta m os de n os en reda r em pen s a m en tos ; tem os de con h ecer nosso própr io es t ilo pes s oa l de fazer esses arcos e laços de nos atar.

Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , n os in teira m os de como é qu e p refer im os n os lu d ib r ia r . Qu a n do es ta m os n os en ganando, p res os em n os s os a rcos e la ços , n ã o es ta m os s en do cu riosos, a pen a s m ecâ n icos , a pen a s s egu in do os d ita m es de u m a decis ã o bá s ica in con s cien te qu e tom a m os em ou tra época : "Precis o ser des s e jeito e fa zer a qu ilo". Nã o con s egu im os perceber n en h u m a m en s a gem e n ã o con s egu im os en xerga r o qu e es tá a con tecen do de verda de. Nã o exis te u m a verda deira cu r ios ida de a cerca de com o

Page 180: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

estamos funcionando e acerca de outros possíveis meios de se agir. O la ço dos pen s a m en tos obs es s ivos e a u tocen tra dos a tu do a per ta e bloqueia. Nossa abertura e curios ida de bá s ica s a res peito da vida foram-se com o vento.

Sentar-s e e p ra t ica r n ã o é a lgo qu e s e ba s eie em es pera n ças. Baseia-s e em n ã o s a ber , ern u m a pos tu ra de s im ples a ber tu ra e cu r ios ida de. "Nã o s ei, m a s pos s o in ves t iga r ." Todos n ós tem os o n os s o es t ilo pa r t icu la r de fra ca s s a r n es s e s en t ido. Gos ta m os de pen s a r de form a circu la r e repet it iva ; gos ta m os des s es a rcos m en ta is m a is do qu e de n os s a p rópr ia vida . Es s es a rcos é qu em n ós a ch a m os qu e s om os : "Sou es s e t ipo de pes s oa ". Gos ta m os des s es pen s a m en tos e a t ivida des de for ta lecim en to da s n os s a s crenças, mesmo que sejam estéreis.

Qu a n to m a is n os s en ta m os pa ra p ra t ica r e rea lm en te n os torn a m os m a is fa m ilia r iza dos con os co, m a is d is pos tos va m os fica n do pa ra s ó en xerga r es s es a rcos m en ta is e deixa r qu e s e vã o, qu e s e des fa ça m . Com eça m os a pa s s a r u m tem po ca da vez m a ior n a pa r te es s en cia l da p rá t ica s en ta da , qu e é a pen a s es ta r a ber to e cu r ios o, a pen a s deixa n do a vida flu ir em pa z. Do pon to de vis ta de u m pr in cip ia n te, p ra t ica r des s a form a é a cois a m a is ted ios a do m u n do. Qu a n do s en ta m os , n a da es tá a con tecen do, exceto qu e ou vim os u m ca r ro pa s s a n do lon ge, qu e n os s o b ra ço es qu erdo deu u m leve t rem or e qu e s en t im os o a r . Do pon to de vis ta de u m a pes s oa a pega da a s eu s p rópr ios a rcos pes s oa is de pen s a m en tos , é n a tu ra l qu e s u r ja a qu es tã o: "Pa ra qu e você qu er fa zer isto*! Que importância isto tem ?". Apes a r d is s o, es s a p rá tica é de importância cru cia l porqu e é n es s e es pa ço qu e a vida a s s u m e o com a n do. A vida

a in teligên cia ou o fu n cion a m en to n a tu ra l da s cois a s

sabe o que fazer.

ALUNO: Qu a n do m e s in to depr im ido gos to de form a r u m a visualização onde eu me sinta bem.

JOKO: Is s o é u m la ço. Ach a m os qu e n ã o in teres s a o m odo com o es ta m os n os s en t in do, qu e exis te a lgu m a cois a er ra da com a s en s a çã o qu e es ta m os ten do de n ós . En tã o s u bs t itu ím os is s o por a lgo "m elh or" qu e in ven ta m os . Se, em vez d is s o, a pen a s in ves -tigarmos o que é sentir-se abatido ou deprimido, e termos interesse n es s a pes qu is a , irem os des cobr ir cer ta s s en s a ções corpora is e cer tos pen s a m en tos qu e s ervira m pa ra com por a qu ela s en s a çã o gera l. Qu a n do a gim os in ter iorm en te des s a m a n eira , a depres s ã o

Page 181: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ten de a des a pa recer e n ã o s en t im os m a is n eces s ida de de vis u a lizar ou fantasiar um outro estado.

ALUNO: A in ves t iga çã o em s i n ã o pode s er u m la ço obs es s ivo? Debruçar-s e s obre a vida in tern a com o u m detet ive qu e s e debruça s obre u m a evidên cia com u m a lu pa : "Eu fiz is s o e depois a qu ilo, o que me levou a fazer aquilo outro...".

J OKO: É u m a cois a s im ples m en te obs erva r o n os s o p roces s o interior como um fato, e outra ficar preso em por que o fazemos, no qu e pode es ta r er ra do com is s o. Se es ta m os ten ta n do ra s t rea r a s cois a s com o u m detet ive em bu s ca de des ven da r u m cr im e, n ã o estamos fora do laço.

ALUNO: Há a lgu m per igo em obs erva r o la ço e s egu i-lo por onde ele levar? Esse processo poderia desenrolar-se para sempre?

JOKO: Nã o. Se es ta m os rea lm en te a pen a s obs erva n do n os s a s obsessões sem nos aprisionarmos nelas, elas tendem a desfazer-se, a m orrer . Em gera l, n ós pers egu im os n os s os a rcos repet it ivos de pen s a m en tos porqu e de fa to qu erem os retorn a r pa ra n os s o es t ilo a u tocen tra do de pen s a r . No m es m o in s ta n te em qu e s im ples m en te obs erva m os os n os s os pen s a m en tos , es s e a pego a u tocen tra do é cor ta do, e o a rco perde força , ^ão tem os de n os p reocu pa r com u m a obs erva çã o in term in á vel de pen s a m en tos . Qu a n do com eça -m os a p ra t ica r s en ta dos , n os s os pen s a m en tos ou a rcos m en ta is obs es s ivos têm m u ita en ergia , m a s es s e ím peto s e d is s ipa con -form e va m os a u m en ta n do os per íodos de p rá t ica . Ca da vez m a is n os s os pen s a m en tos irã o m orren do, e n ós s im ples m en te seremos nossas sensações corporais, a vida como ela é.

Nã o qu ero qu e a s pes s oa s a qu i a pen a s en gu la m o qu e es tou fa la n do em s im ples boa -fé. Qu ero qu e in ves t igu em o qu e es tou d izen do por s i m es m a s . É is s o qu e é a p rá t ica : u m proces s o de des cober ta pa ra n ós m es m os , a res peito de com o fu n cion a m os e pensamos.

ALUNO: Algu m a s a t ivida des pa recem exigir qu e s e s iga u m a s eqü ên cia de pen s a m en tos . Por exem plo, a p rofis s ã o de es cr itor ou u m a pes qu is a filos ófica . Es s a s a t ivida des pa recem depen der da ca pa cida de de s u s ten ta r u m "a rco" ou u m a lin h a de idéia s ta n to quanto possível.

JOKO: Cla ro, tu do bem . Is s o é m u ito d iferen te, en t reta n to, de pen s a m en tos a u tocen tra dos e obs es s ivos . A fu n çã o cr ia t iva de u m

Page 182: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

es cr itor ou de u m filós ofo s ó pode a con tecer s e a pes s oa não es t iver es cra viza da por s eu s p rópr ios pen s a m en tos pes s oa is a n -s ios os . Obs erva r com o n os s a p rópr ia m en te t ra ba lh a , en xerga r n os s os a rcos m en ta is obs es s ivos , em s u a n a tu reza rea l, pode libertar-n os pa ra u m u s o m a is im a gin a t ivo de n os s a m en te, s em ficarmos atolados.

ALUNO: Há a lgu m a es pécie de pen s a m en to a res peito de s i mesmo que não seja autocentrado?

JOKO: Sim . Em gera l tem os de pen s a r a res peito de n os s a pes s oa . Por exem plo, u m a cá r ie a pa rece em u m den te. Precis o m e organ iza r pa ra u m a ida a o den t is ta . Is s o é pen s a r em m im , m a s não necessariamente de uma maneira obsessiva e autocentrada.

ALUNA: Às vezes , pen s a r s obre a p rá t ica pode s er u m la ço. Pos s o form a r u m a fa n ta s ia de com o m in h a vida va i s er m a ra vilh os a s e eu s em pre es t iver a ten ta a os m eu s pen s a m en tos e sentimentos.

JOKO: Sim . Nes s e ca s o, n ós n ã o es ta rem os s im ples m en te investiga n do os n os s os pen s a m en tos , m a s a cres cen ta n do es pera n ça s ou expecta t iva s . Nã o s e t ra ta m a is de u m a pes qu is a a ber ta e cu r ios a . Com o d izia o m es t re Rin za i: "Nã o pon h a ou tra ca beça a cim a da s u a ". Es s a é u m a ca beça ext ra . Com u m a p rá t ica s en ta da con s is ten te, cu ida dos a , com eça m os a des em a ra n h a r es s es laços e a reconhecer do que são feitos.

ALUNO: Qu a n do es tou à s volta s com a lgu m a ta refa m en ta l, em gera l m e en redo n u m poderos o la ço de a u tocr ít ica . Por exem plo, qu a n do es tou es creven do, é fá cil pa ra m im in ter rom per m eu flu xo criativo de pensamentos com juízos críticos a respeito do que estou fazendo. En tã o o p roces s o in teiro en t ra em cu r to-circu ito e fico paralisado.

JOKO: Sim. Como você poderia praticar com isso?

ALUNO: Apen a s obs erva n do m eu s pen s a m en tos a u tocr ít icos e continuando com a atividade.

JOKO: Certo.

ALUNA: Percebo qu e pa ra m im é a ter ror iza n te a pers pect iva de m eu s pen s a m en tos a u tocen tra dos rea lm en te des a pa recerem . Meu m edo é qu e ta lvez eu n em exis t is s e m a is s em es s e a pego fu n da -mental a mim mesma.

Page 183: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Sim . Apen a s obs erve is s o. Qu a n to m a is obs erva m os qu e n ã o qu erem os qu e es s a m u da n ça ocorra m a is , pa ra doxa lm en te, torn a m o-n os livres pa ra perm it ir qu e s e efetu e. E la n ã o pode s er força da . Nã o h á n a da a s er força do. Es ta m os a pen a s s en do con s cien tem en te percep t ivos , com a ber tu ra e curiosidade.

ALUNO: Algumas pessoas dizem que meditação demais é depri-m en te e qu e p recis a s er equ ilib ra da com ou tra s a t ivida des m a is felizes, como celebrações. O que você pensa a esse respeito?

JOKO. Em s i, n ã o h á n a da n a vida qu e s eja bom ou ru im . O qu e é a pen a s é o qu e é, A depres s ã o n ã o é m a is qu e cer ta s sensações corpora is a com pa n h a da s de pen s a m en tos , os qu a is podem s er a m bos in ves t iga dos . Qu a n do n os s en t im os depr im idos , precisam os tã o-s om en te obs erva r a s en s a çã o e rotu la r os pen s a m en tos . Se deixa m os a depres s ã o de la do ou n os es qu iva m os dela , ten ta n do s u bs t itu í-la por a lgo com o ir a u m a fes ta , n ã o terem os in ves t iga do n em en ten d ido a dep res s ã o. Ir a fes ta s pode en cobr ir a depres s ã o por u m cer to tem po, m a s ela volta rá . Dis fa rça r n os s os s en t im en tos e pen s a m en tos é a pen a s u m ou t ro tipo de laço.

ALUNO: Um dos m eu s la ços é p reocu pa r-m e com o t ra ba lh o e a s qu es tões de d in h eiro: "Será qu e terei d in h eiro s u ficien te pa ra a s n eces s ida des ? Con s igo s u s ten ta r a m in h a fa m ília ? Meu em prego é s egu ro?". Min h a ten dên cia é m a n ter -m e em a ra n h a do n es s es pensamentos ansiosos e preocupados.

JOKO: Cer to. Ao in ves t iga rm os n os s os pen s a m en tos obs es s ivos , n ã o os a ba n don a m os n em ba n im os . Ma s a os pou cos eles perdem o poder qu e exercem s obre n ós , con form e va m os ven do do qu e s e com põem e s en t in do qu a l é o m edo bá s ico qu e lhes está por baixo. Lentamente eles se desmancham.

ALUNO: Percebo qu e a ch o qu e a s a t ivida des s ã o em s i deprimentes ou ca pa zes de a legra r e qu e m in h a ten dên cia é es qu ecer qu e is s o qu e ch a m a m os de depres s ã o ou con ten ta m en to é só u m ba n do de pen s a m en tos e s en s a ções qu e tem os com o res pos ta d ia n te da s cois a s . Em gera l, o qu e con s idera m os com o "a legre" é s ó u m a fu ga m om en tâ n ea do qu e es tá s e pa s s a n do den tro de n ós . En tã o tem os m edo de pa ra r e n os perm it ir realmente sentir.

Page 184: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: É is s o m es m o. O con ten ta m en to gen u ín o é s er es te m o-mento, a pen a s com o ele é. Viven cia r o m om en to pode s er s en t ir a con tra çã o qu e ch a m a m os de depres s ã o, ou pode s er s en t ir a con tra çã o qu e ch a m a m os receber boa s n ot ícia s . Sen do a s s im , o verda deiro con ten ta m en to es tá por ba ixo ta n to da qu ilo qu e ch a -m a m os de depres s ã o com o do qu e ch a m a m os de ela çã o. Exis te u m a es pécie de qu a lida de im pes s oa l, ou vis ã o d ivin a da s cois a s , que aparece naqueles que se sentam para praticar por muitos anos a fio. Não estou falando de tomar-me fria e insensível ou cruel. Não s ou u m a pes s oa in d iferen te, em bora ten h a des en volvido es s a qualidade impessoal em minha vida.

ALUNA: Há a n os eu já a con h eço e ten h o u m a s en s a çã o a res peito d is s o qu e você fa lou . Na m in h a op in iã o, con form e você s e tom ou m a is "im pes s oa l", você s e torn ou m a is a fet iva , m a is receptiva à aproximação dos outros.

JOKO: Nu m a cer ta época eu t in h a m edo dem a is pa ra perm it ir qu e a s pes s oa s ch ega s s em per to. Hoje vejo o qu e cos tu m a va s er tã o per tu rba dor e d igo: "Oh , is s o é qu e es tá a con tecen do. Qu e in teres s a n te". É s im ples m en te u m a qu es tã o de in ves t iga çã o ou de cu r ios ida de: "O qu e es tá a con tecen do a gora ?". Es s a é a n os s a vida . Por exem plo, ou tro d ia m eu ca r ro levou u m a ba t ida . A ou t ra m otor is ta n ã o es ta va olh a n do e eu ta m bém n ã o

en tã o dem os u m a t rom ba da . Eu n ã o t ive a m en or rea çã o de qu a lqu er es pécie. Nã o es tou d izen do qu e é bom ou ru im , m a s com cer teza é m a is fá cil pa ra a s s u pra -ren a is . Se a lgu ém t ives s e s e m a ch u ca do eu poder ia ter t ido u m a ou tra res pos ta , m a is for te, em bora es teja cer ta de qu e s er ia bem d iferen te da qu ela qu e s er ia a m in h a rea çã o h á a lgu n s a n os . Tu do é s im ples m en te a vida , u m pres en te qu e n os é dado vivenciar.

TRANSFORMAÇÃO

Na regiã o s u l da Ca lifórn ia joga m os de u m la do pa ra ou tro pa la vra s qu e des crevem o cres cim en to pes s oa l, com o mudança e transformação. Du vido qu e n o Ka n s a s vocês ou vis s em ta n ta s vezes es s a es pécie de con vers a . Um a gra n de pa r te do qu e s e ou ve é bobagem, refletindo um reduzido nível de entendimento da questão. "Cres cim en to pes s oa l" é com freqü ên cia s ó u m a m u da n ça

Page 185: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s u per ficia l, com o pôr m a is u m a polt ron a n a s a la de es ta r . Na verda deira t ra n s form a çã o, por ou tro la do, exis te u m a im plica çã o de qu e a lgo gen u in a m en te n ovo a pa receu . É com o s e a qu ilo qu e exis t ia a n tes t ives s e des a pa recido e a lgo d iferen te t ives s e ocu pa do s eu lu ga r . Qu a n do ou ço a pa la vra transformação pen s o n a qu eles des en h os on de figu ra e fu n do s e a ltern a m e, on de p r im eiro pa rece que existem vasos, surgem faces. Isso é transformação.

A p rá t ica zen é à s vezes ch a m a da de o ca m in h o da t ra n s -form a çã o. Mu itos dos qu e o in icia m , con tu do, es tã o a pen a s bus-ca n do, com a p rá t ica zen , u m a m u da n ça a d it iva ; "Qu ero s er m a is feliz"; "Qu ero fica r m en os a n s ios a ". Es pera -s e qu e da p rá t ica zen ven h a m es s es n ovos s en t im en tos . Ma s , s e n os t ra n s formamos, nossa vida desloca-se para uma base inteiramente nova. É como se tu do pu des s e a con tecer

u m a ros eira da r lír ios , u m a pes s oa de n a tu reza á s pera , cor ros iva e m a l-h u m ora da s e t ra n s form a r em a lgu ém delica do. Ciru rgia s s u per ficia is n ã o a d ia n ta m n a da pa ra is s o. A verda deira t ra n s form a çã o im plica qu e a té m es m o o ob jet ivo do "eu " qu e qu er s er feliz é t ra n s form a do. Por exem plo, va m os s u por qu e eu m e veja com o u m a pes s oa ba s ica m en te depr im ida , a tem or iza da , ou o qu e s eja . A t ra n s form a çã o n ã o es tá em eu a pen a s lida r com o qu e ch a m o de a m in h a depres s ã o; s ign ifica qu e o "eu ", o in d ivídu o com o u m todo, a s ín drom e com pleta qu e ch a m o de "eu ", é t ra n s form a do. Es s a é u m a vis ã o de p rá t ica m u ito d iferen te da qu ela qu e é a dota da pela m a ior ia dos d is cípu los zen . Nã o gos ta m os de lida r com a p rá t ica des s a m a n eira porqu e is s o s ign ifica qu e, s e quiserm os s en t ir u m con ten ta m en to gen u ín o, terem os de n os d is por a s er qu a lqu er cois a . Tem os de n os a b r ir à t ra n s form a çã o qu e a vida n os pede qu e viva m os . Ten h o de es ta r p repa ra da pa ra a pos s ib ilida de de vir a m e torn a r u m a m en d iga , por exem plo. Agora , eu n ã o qu ero rea lm en te s er u m a m en d iga . Nos s a fa n ta s ia é qu e, qu a n do p ra t ica rm os , n os s a vida irá s er m u ito fá cil e s en t irem os m u ito con for to s en do qu em s om os . Ach a m os qu e irem os s er vers ões n ova s e m a ra vilh os a s de qu em s om os a gora . No en ta n to, a verda deira t ra n s form a çã o s ign ifica qu e talvez o próximo passo s e ja virar uma mendiga na rua.

Com cer teza n ã o é is s o qu e t ra z a s pes s oa s a u m cen t ro zen pa ra p ra t ica r . Es ta m os a qu i pa ra con s egu ir da r u m a a jeita da n a p in tu ra extern a de n os s o a tu a l m odelo. Se o ca r ro de n os s a vida é cinza-ch u m bo, qu erem os qu e s e torn e verde-água ou ros a . Ma s t ra n s form a çã o s ign ifica qu e o ca r ro ta lvez des a pa reça por com pleto.

Page 186: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Ta lvez em lu ga r de u m ca r ro s eja u m a ta r ta ru ga . Nã o qu erem os n em ou vir fa la r des s a s pos s ib ilida des . Es pera m os qu e o p rofes s or n os en s in e a lgu m a cois a qu e dê u m jeit in h o n o p res en te m odelo. Um m on te de tera p ia s a pen a s m a n ipu la técn ica s pa ra a m elh or ia do m odelo. Fa zem a fu n ila r ia a qu i e a li e podem os in clu s ive s en t ir -n os m u ito m elh or . No en ta n to, is s o n ã o é t ra n s form ação. Tra n s form a çã o é a lgo qu e decorre de u m a d is pon ib ilida de qu e s e des en volve m u ito deva ga r , a o lon go do tem po, pa ra virm os a s er aquilo que a vida pede que sejamos.

A m a ior ia da s pes s oa s (eu en t re ela s ) é com o u m ba n do de cr ia n ça s : qu erem os qu e a lgo ou a lgu ém n os dê a qu ilo qu e a cr ia n cin h a qu er de s eu s pa is . Qu erem os ter pa z, a ten çã o, t ra n qü i-lida de, com preen s ã o. Se n os s a vida n ã o n os oferece is s o, pen s a -m os : "Un s a n in h os de p rá t ica zen poderã o oferecer -m e es s a s cois a s ". Nã o, n ã o é a s s im . Nã o é d is s o qu e t ra ta a p rá t ica . A p rá t ica é a b r irm o-n os pa ra qu e es s e "eu zin h o" qu e qu er s em pa ra r u m a cois a a t rá s da ou tra

qu e n a rea lida de o m u n do in teiro s eja seus pais enfim cresça. Crescer não nos interessa muito, porém.

Um m on te de a lu n os m eu s ten ta fa zer de m im u m a m ã e substituta. Esse não é o meu papel. Discípulos em apuros em geral vêm corren do a t rá s de m im ; ta n to qu a n to pos s ível, en ca m inho-os pa ra qu e eles m es m os lidem com s u a s d ificu lda des . As s im qu e os a lu n os têm a lgu m a idéia de com o poder ia m lida r com o p rob lem a , a m elh or cois a a fa zer é deixá -los lu ta r . É en tã o qu e exis te a lgu m a possibilidade de transformação.

Tra n s form a çã o é perm it ir -n os pa r t icipa r de n os s a vida , n es te exato segundo. Eis um negócio tremendamente assustador. Não há n en h u m a ga ra n t ia de con for to, de pa z, de d in h eiro, de cois a n en h u m a . Tem os de s er o qu e s om os . A m a ior ia de n ós , con tu do, tem ou tra s idéia s . É com o s e fôs s em os u rn a á rvore qu e p rodu z folh a s e fru tos de u m a cer ta es pécie. Qu erem os p rodu zir is s o porqu e é con for tá vel. A t ra n s form a çã o, con tu do, é p rodu zir o qu e a vida es colh e p rodu zir a t ra vés de n ós . Nã o podem os s a ber o qu e is s o irá s er . Poderá s ign ifica r qu a lqu er t ipo de t ra n s form ação

n o tra ba lh o qu e fa zem os , n o m odo com o vivem os , em n os s o es ta do de saúde (inclusive com o risco de ficar pior e não melhor).

Ain da a s s im t ra n s form a çã o é con ten ta m en to. Tra n s form a ção s ign ifica qu e, s eja com o a vida for

difícil, fá cil, t ra n qü iliza dora ou in qu ieta dora , ela é con ten ta m en to. Com es s a pa la vra eu n ã o

Page 187: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

estou querendo dizer felicidade. Contentamento tem mais afinidade com cu r ios ida de. Pen s em os em bebês de m a is ou m en os n ove meses a um ano, engatinhando por todo lado, conhecendo todas as es pécies de m a ra vilh a s : podem os en xerga r a cu r ios ida de e o des lu m bra m en to em s eu s ros t in h os . Nã o es tã o en ga t in h a n do por toda pa r te pa ra a bs orver in form a çã o, n em es tã o ten ta n do s er m elh ores bebês qu e podem en ga t in h a r com m a is eficiên cia ; n a rea lida de n ã o es tã o en ga t in h a n do por n en h u m a ra zã o es pecífica . Es tã o s im ples m en te en ga t in h a n do pelo pu ro p ra zer e cu riosidade de fa zê-lo. Precis a m os recu pera r a ca pa cida de de s en t ir cu r ios ida de a res peito de tu do em n os s a vida , a té m es m o dos des a s t res . Por exem plo, va m os s u por qu e n os s o com pa n h eiro de m u itos a n os n os a ba n don e de u m a h ora pa ra ou tra . Es s e t rá gico evento pode n os fa zer m ergu lh a r n u m m elodra m a de rea ções . Você pode s e im a gin a r con s egu in do ver es s a s itu a çã o com cu r ios ida de, em vez de com s ofr im en to? O qu e s ign ifica r ia con s idera r es s e desastre com curiosidade?

ALUNA: Estar num possível estado de deslumbramento.

JOKO: É is s o m es m o. Ter ía m os in teres s e pela s itu a çã o, pela cois a toda , in clu s ive por n os s a s rea ções em ocion a is : n os s os gr itos , n os s a s os cila ções de h u m or , n os s a s s en s a ções fís ica s

s ó cu -r ios ida de, de u m s egu n do pa ra o s egu in te. Is s o pode s oa r fr io, m as n ã o é; s ign ifica qu e, pela p r im eira vez, es ta m os a ber tos pa ra a s itu a çã o e podem os a pren der com ela e lida r com ela . Es s a cu r ios ida de ta m bém fa z pa r te do con ten ta m en to, u m es ta do de des lu m bra m en to. No en ta n to, n ã o n os im por ta m os com cu r ios i-da de e des lu m bra m en to. Prefer im os em vez d is s o con s er ta r coisas pa ra virm os a n os s en t ir bem . Ma s a cu r ios ida de da qu a l es tou falando pode estar lá, quer estejamos nos sentindo bem, quer mal.

Há vá r ios a n os t ive u m a s ocieda de com u m cien t is ta de gra n de ren om e. Pergu n tei-lh e o qu e s ign ifica va s er u m cien t is ta . E le d is s e: "Se h á u m pra to n u m a m es a per to de você e você s a be qu e a lgu m a cois a es tá deba ixo do p ra to

m a s você n ã o s a be o qu e é , s er u m cien t is ta s ign ifica qu e você n ã o va i con s egu ir des ca n s a r d ia e n oite a té ter vis to o qu e es tá em ba ixo do p ra to. Você tem d e s a ber". A p rá t ica dever ia cu lt iva r es s a es pécie de pos tu ra . Atra vés de n os s a s m ed ida s de a u toproteçã o, porém , perdem os u m a gra n de pa r te de n os s a cu r ios ida de a res peito da vida. Quando estamos deprimidos, queremos apenas fazer com que a depres s ã o pa re. Da m es m a m a n eira , qu a n do es ta m os

Page 188: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

preocu pa dos , s olitá r ios ou con fu s os . Em vez d is s o, p recisamos en fren ta r n os s o es ta do de â n im o com cu r ios ida de e a ber to des lu m bra m en to. Es s e ou vir a ber to e cu r ios o do qu e a vida n os envia é contentamento independentemente de qual seja o estado de ânimo de nossa vida.

Es s e é o ca m in h o da t ra n s form a çã o. Fica m os m en os em a -ra n h a dos em n os s a s m ed ida s de a u toproteçã o pa ra ver a vida

qu erer o qu e s e qu er , m en os a pega dos à s im a gen s ou fa n ta sias de com o n os s a vida deve s er . A p rá t ica , o ca m in h o da t ra n s form a çã o, é u m len to des loca m en to pelo tem po a té a con -s olida çã o de u m n ovo m odo de s e es ta r n o m u n do. Com cer teza es s e s erá u m ca m in h o tera pêu t ico, m a s es s a n ã o é s u a fin a lida de prim eira . Um a pes s oa tota lm en te cu r ios a n ã o é n em feliz n em in feliz. Um bebê n a fa s e de en ga t in h a r qu e des cobre u m copo pa ra m ed ir in gred ien tes , coloca do n o ch ã o, n ã o es tá n em feliz n em infeliz. Em vez de "feliz" o bebê es tá absorvido pelo exame do objeto. Nã o é a m bicios o; n ã o é u m bebê bom ou m a u ; es tá a pen a s a bs orvido n o des lu m bra m en to da qu ilo qu e es tá ven do. In felizm en te, os bebês torn a m -s e a du ltos . Nã o qu e a m elhor p rá t ica s eja s er com o u m bebê. Nu m p la n o idea l, con s erva m os a a ber tu ra e a d is pon ib ilida de de u m bebê, porém tem os m en tes m a du ra s e ca pa cida des de a du ltos . Em vez de ver o m u n do com cu r ios ida de e des lu m bra m en to, a p roxi m a m o-n os da vida com u m a p rogra m a çã o a u tocen tra da , qu eren do qu e tu do s e con form e a n ós e n os fa ça s en t ir bem . As pes s oa s de qu em gos ta m os s ã o a s pes s oa s qu e n os t ra n s m item boa s s en s a ções . Os a m igos qu e de fa to qu erem os por per to s ã o a qu eles qu e n os fa zem s en t ir qu e s om os boa s pes s oa s . Os s u jeitos qu e con s is ten tem en te n os fa zem s en t ir m a l vã o pa ra ou tra lis ta . Um a pes s oa qu e s ó é cu r ios a e aberta, porém, não age assim, pelo menos não no mesmo nível.

Com o es creve Ca r los Ca s ta n eda *, n os s a p rá t ica p recis a s er impecável Is s o s ign ifica es ta rm os tã o con s cien tes qu a n to n os for pos s ível a ca da m om en to, pa ra qu e n os s a "pers on a lida de", qu e é com pos ta de n os s a s es t ra tégia s de a u toproteçã o, com ece a s e des a r t icu la r e pos s a m os a s s im rea gir de u m a m a n eira ca da vez m a is s im ples a o m om en to. Um a p rá t ica im pecá vel s ign ifica , por exem plo, t ra ba lh a r com u m ou dois p rojetos n a p rá t ica e s im -

* Carlos Castaneda, Journney to Ixtlan: The lessons of Don Juan, Nova York: Simon and Schuster, 1972.

Page 189: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

p les m en te a ter-s e a is s o, s em des is tên cia ou des vio. Va m os s u por qu e tem os u m h á b ito de a cred ita r em pen s a m en tos com o "Nã o va lh o n a da ". A p rá t ica im pecá vel s ign ifica qu e qu a s e n u n ca deixa m os de perceber toda s a s vezes em qu e es s e pen s a mento ocorre. Mes m o qu e u m ou ou tro es ca pe de repen te, p rá tica im pecá vel é a qu ela qu e s u s ten ta a p res s ã o s obre n ós . Nã o s e t ra ta de es ta rm os ten ta n do s er m elh ores , ou de s erm os p iores ca s o n ã o con s iga m os . Mes m o a s s im , p recis a m os s er m et icu los os . Prá t ica im pecá vel s ign ifica qu e n u n ca pa ra m os . O ca m in h o da t ra n s form a çã o n ã o s ign ifica "Oh , já p ra t iqu ei ba s ta n te por h oje; a ch o qu e vou s a ir pa ra m e d iver t ir ". Nã o h á n a da de er ra do em s e pa s s a r bon s m om en tos , m a s p rá t ica im pecá vel é ter con s ciên cia disso também. De outro modo, estamos apenas nos ludibriando.

Apes a r de m et icu los a , a p rá t ica m a du ra n ã o tem es forço. Nos p r im eiros a n os , con tu do, n ã o h á m eios de evita rm os a s lu ta s . Aos pou cos , a o lon go dos a n os , a lu ta torn a -s e m en or . A p rá t ica n ã o é ta m bém a lgo pa ra s e deixa r de la do qu a n do a s cois a s s e torn a m d ifíceis . Em vez de "As cois a s es tã o tã o com plica da s a gora qu e vou p ra t ica r n a s em a n a qu e vem ", p recis a m os p ra t ica r exa ta m en te a gora , com es s a d ificu lda de qu e es ta m os a t ra ves s a n do. Se n ã o for a s s im , a p rá t ica é s ó m a is u m br in qu ed in h o qu e es ta m os u s a n do para nos divertir, uma simples perda de tempo.

O ca m in h o da t ra n s form a çã o requ er u m gu er reiro im pecá -vel

qu e n ã o é o m es m o qu e s er u m gu er reiro per feito. Em vez d is s o, es ta m os s em pre fa zen do o m elh or qu e podem os , t ra ba -lh a n do com u m cu ida do es pecífico. Em lu ga r de decid ir "Vou tom a r con s ciên cia ", p recis a m os decid ir "Qu a n do eu fizer is s o ou a qu ilo vou torn a r -m e em es pecia l con s cien te". Em vez de ten ta r t ra ba lh a r com tu do de u m a vez, t ra ba lh a m os com u m ou dois a s s u n tos por vez, ta lvez por dois ou t rês m es es , e a pen a s n os m a n tem os con s is ten tem en te a ten tos a es s es a s s u n tos . Se deixa m os qu e a pen a s u m s ó pen s a m en to des s es es ca pe, com o "Mas eu sou mesmo uma pessoa que não tem jeito", sem tomarmos con s ciên cia dele, s en ã o ba s ta n te tem po depois , en tã o irem os querer praticar e sentar com ainda mais firmeza e tentar outra vez. É p recis o qu e n os a p liqu em os com con s tâ n cia , qu e con s olidem os a res is tên cia m u s cu la r pa ra a lon ga e á rdu a jorn a da . No fin a l, percebem os qu e não é u m a lon ga e á rdu a jorn a da , m a s n ão enxergaremos isso até o dia em que enxergarmos isso.

Page 190: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Qu a n do es tou lon ge do cen tro zen de Sa n Diego, a s pes soas à s vezes com bin a m u m a p rá t ica de dois d ia s e rea liza m -n a . Is so é bom. Nem todos podem participar; alguns têm filhos pequenos, por exem plo. Mes m o a s s im , en t ra r n u m a p rá t ica des s e t ipo

s en ta r -

s e du ra n te dois d ia s , lu ta n do pa ra m a n ter -s e con scientemente perceptivo

é do qu e es ta m os fa la n do, Nu m a p rá t ica s ér ia n ã o h á

com o evita r es s a es pécie de es forço. Há lu ta r e es força r -s e du ra n te u m lon go tem po. Nã o h á com o fu gir d is s o. Lu ta r e es força r -se des en volve força . Sign ifica cres cer , a m a du recer . Qu a n do n os qu eixa m os , qu a n do n os s en t im os a m a rgos a res peito do qu e a lgu ém fez pa ra n ós , a m a rgos pelo qu e a vida n os fez, en tã o es ta m os s en do cr ia n cin h a s . Deve h a ver u m gra n de s eio em a lgu m lu ga r a o qu a l es ta m os ten ta n do n os a ga r ra r . A p ra t ica zen t ra ta de cres cer e a m a du recer . Nã o dever ía m os in icia r u m a p rá t ica a s s im en qu a n to n ã o a qu is és s em os m u ito. Devem os qu erer de verda de uma vida que se irá transformar.

O HOMEM NATURAL

Nã o im por ta h á qu a n tos a n os ven h a m os p ra t ica n do, n os s a ten dên cia é com preen der de m a n eira er ra da a n a tu reza da p rá t ica. De u m jeito ou de ou tro n ós s u pom os qu e a p rá t ica d iz res peito a cor r igir u m er ro. Im a gin a m os qu e, s e fizerm os is to ou dom in a rm os a qu ilo, por fim con s egu irem os s u pera r o er ro qu e h á em n ós . Nos s a s vida s s erã o "a jeita da s " e de a lgu m a m a n eira a girem os melhor.

Muitas formas de terapia começam pelo suposto de que existe algo de errado com a pessoa que busca terapia, e que esse trabalho s ervir ia pa ra con s er ta r o qu e es tá er ra do. Tra n s pom os es s a atitude

tã o d ifu n d ida em n os s a cu ltu ra

pa ra n os s a p rópr ia prática espiritual.

Pres u m im os qu e a lgo n ã o es tá cer to com n os s a s vida s porque n ã o n os s en t im os con ten tes con os co. De n os s o pon to de vis ta pes s oa l, a lgo es tá er ra do. O qu e p recis a s er en ten d ido a res peito desse dilema?

Pen s em os n u m fu ra cã o. Do pon to de vis ta do fu ra cã o em s i, n ã o h á o m en or p rob lem a em des t ru ir m ilh a res de á rvores , em des t ru ir o s is tem a de en ca n a m en to, em m a ta r pes s oa s , em des -

Page 191: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

t ru ir a s p ra ia s etc. É is s o o qu e os fu ra cões fa zem . Do n os s o pon to de vis ta , con tu do, s obretu do s e a n os s a ca s a foi des t ru ída por u m furacão, algo está muito errado. Se pudéssemos, daríamos um jeito n os fu ra cões . Só qu e a in da n ã o con s egu im os ver o qu e pode s er feito.

In felizm en te, qu a n do ten ta m os da r u m jeito n a s cois a s , n a m a ior ia da s vezes cr ia m os u m con ju n to todo n ovo de p rob lem a s . O a u tom óvel é u m a bela in ven çã o qu e fa cilita n os s a s vida s de in ú m era s m a n eira s , porém , com o todos n ós s a bem os , t rou xe con s igo todo u m a rs en a l de gra n des p rob lem a s . En tregu e a s i m es m a , a n a tu reza fa z toda es pécie de con fu s ã o, m a s es s a pa rece ser uma confusão curativa, e o processo natural se restaura por si. Qu a n do a lim en ta m os a idéia de qu e p recis a m os resolver todos os p rob lem a s da vida , porém , n ã o n os s a ím os tã o bem . A ra zã o de n os s o fra ca s s o es tá em qu e n os s os pon tos de vis ta s ã o lim ita dos a o qu e n os s o ego n eces s ita , a o qu e "eu qu ero". Se a qu ilo qu e es tá acontecendo em nossa vida fosse aceito, nada nos perturbaria.

Será qu e dever ía m os a pen a s n os torn a r pa s s ivos e perm it ir qu e tu do fos s e com o é, s em fa zer n a da a res peito? Nã o. Ma s n os m etem os em a pu ros pelos con textos em ocion a is qu e a cres cen ta -mos, pela atitude de que existe uma coisa errada que precisa ser

ajeitada.

Em pa r t icu la r , qu erem os qu e n os s os eu s pes s oa is s eja m d iferen tes do qu e s ã o. Por exem plo, qu erem os n os torn a r "ilu -m in a dos ". Im a gin a m os qu e u m eu ilu m in a do é de a lgu m a form a glor ifica do, d iferen te, des ta ca do do res to dos m eros m or ta is co-muns. Ilu m in a çã o pa rece-n os s er u m a gra n de con qu is ta , a rea li-za çã o excels a do ego. Es s a â n s ia de torn a r -s e ilu m in a do pen etra m u itos cen tros es p ir itu a is com o u m a cor ren te s u b ter râ n ea de excita çã o a res peito da p rá t ica es p ir itu a l. Na rea lida de, is s o é ridículo.

Mes m o a s s im , qu a n do n os s en t im os in felizes , gos ta m os de im a gin a r qu e podem os en con tra r a lgo qu e n os con s er te, de m odo qu e n os s os rela cion a m en tos s em pre s eja m m a ra vilh os os . Imaginamo-n os s em pre n os s en t in do bem , fa zen do t ra ba lh os qu e nunca dã o m om en tos de s ofr im en to, qu e n u n ca n os a p res en ta m reveses.

Page 192: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Veja m os o qu e poder ía m os ch a m a r de "o h om em n a tu ra l". (Poder ía m os fa la r igu a lm en te da "m u lh er n a tu ra l", m a s n es te exem plo fa lem os do h om em .) Na Bíb lia , o h om em n a tu ra l s er ia o Adã o a n tes de s er expu ls o do ja rd im do Éden , ou s eja , a n tes de ter tom a do con s ciên cia de s i com o u m eu s epa ra do. Com o era es s e homem natural? O que seria ser um homem natural?

ALUNO: O homem natural seria pleno de deslumbramento.

JOKO: E verda de, em bora ele n ã o s ou bes s e qu e era p len o de deslumbramento.

ALUNO: Nã o h a ver ia s en s o de s epa ra çã o en tre ele e o m u n do à sua volta.

JOKO: Ma is u m a vez is s o é verda de. E le ta m bém n ã o ter ia consciência dessa ausência de separação.

ALUNA: Ele simplesmente seria.

JOKO: Sim . Ele s er ia , s im ples m en te. Com o s e com por ta r ia ? Por exem plo, ele s er ia s a n to, ou de vez em qu a n do s a ir ia pa ra caçar?

ALUNO; Ele faria o que fosse preciso para viver.

JOKO: Ele fa r ia o qu e fos s e p recis o pa ra s obreviver . Se necessár io, ele ca ça r ia , com o os n a t ivos a m er ica n os qu e fa zia m oferendas aos animais que tinham de matar.

ALUNO: Ele faria guerra com o povo de sua tribo?

JOKO: Pos s ivelm en te, em bora eu du vide qu e s e t ra ta s s e de uma matança. Talvez desacordos eventuais.

ALUNO: Pen s o qu e u m h om em n a tu ra l s er ia com o o m eu ga to: com e, dorm e, fa z o qu e p recis a s er feito a ca da m om en to s em tomar nenhuma consciência disso, ou pensar a respeito.

JOKO: É m u ito is s o. Os cã es s ã o u m m a u exem plo porqu e n ós fa zem os deles o qu e qu erem os qu e eles s eja m . J á os ga tos s ã o mais independentes, mais como o homem natural.

O es ta do n a tu ra l é do qu e t ra ta a p rá t ica . Ser u m a pes s oa n a tu ra l n ã o qu er d izer qu e n os torn em os u m a es pécie de s a n to. Sem uma noção de separação entre nós e o mundo, porém, sempre exis te u m a bon da de e u m a p ropr ieda de in a ta s em n os s a s a ções.

Page 193: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Por exem plo, n os s a s du a s m ã os n ã o s e com por ta m de m a n eira imprópria entre si porque fazem parte do mesmo corpo.

O homem natural aprecia alimentos. Ele aprecia amar. De vez em qu a n do fica con tra r ia do e p rova velm en te n ã o por m u ito tem po. Pode sentir medo quando sua sobrevivência é ameaçada.

Em con tra s te com es s e qu a dro, n os s a vida é m u ito a n t in a tu ra l. Sen t im o-n os s eres s epa ra dos do m u n do e is s o n os a fa s ta do ja rd im do Éden . Qu a n do n os des ta ca m os do m u n do, ta m bém des ta ca m os o bem do m a l, o s a t is fa tór io do insatisfatório, o a gra dá vel do doloros o. Depois de term os s epa ra do a s cois a s des s a m a n eira , perm a n ecerem os pa ra s em pre ten ta n do d ir igir -nos pa ra u m dos la dos , evita n do o ou tro, de m odo a s ó en con trarmos aquelas partes da vida que nos convêm.

A n a tu reza é com o o fu ra cã o. Seja o qu e for qu e a con teça , a con tece. Nã o qu erem os is s o em n os s a vida , porém . Qu erem os u m fu ra cã o qu e a r ra s e a s ou tra s ca s a s , m a s a n os s a n ã o. Es ta m os s em pre a t rá s de u m pequ en in o n ich o de s egu ra n ça em m eio a o fu ra cã o da vida . Con tu do es s e lu ga r n ã o exis te. A vida d iz res peito a a pen a s viver e a p recia r a qu ilo qu e vier . Porqu e n os s a s m en tes s ã o egocen tra da s , porém , pen s a m os qu e a vida s e t ra ta de protegermo-n os . Is s o n os m a n tém ca t ivos . Um a m en te egocen tra da é a u tocen tra da . Pa s s a todo o s eu tem po pen s a n do em com o irá s obreviver e m a n ter -s e a s a lvo, con for tá vel, en t ret ida , s a t is feita , n ã o a m ea ça da , a ca da en cru zilh a da . Qu a n do vivem os a s s im , perdem os o bon de. Perdem os n os s o cen tro. Qu a n to m a is n os a fa s ta m os do cen tro, m a is a n s ios a e excên t r ica quer dizer, longe do centro nossa vida se torna.

Des de n os s os p r im eiros m om en tos de vida , es ta m os des en -volven do u m a m en te egocen tra da . Viver des s a form a é a pen a s olh a r a vida de u m a determ in a da m a n eira . Nã o exis te n a da in t r in s eca m en te er ra do com is s o; é s ó qu e vem os a vida a pen a s de n os s o p róp r io pon to de vis ta . Nos s a n a tu reza es s en cia l permanece in viola da em todos os m om en tos . Nã o podem os vê-la , porém , porqu e es ta m os a gora s em pre en xerga n do a pa r t ir de u m a perspectiva limitada e unilateral.

Es ta m os lon ge de "s ó viver" com o u m h om em ou u m a m u lh er n a tu ra is p rova velm en te viver ia m . Es ta m os pen s a n do s obre o viver , o tem po todo. Ta lvez pa s s em os de 80 a 90% do n os s o tem po fa zen do is s o. E n os es pa n ta m os de qu e n a da pa rece es ta r cer to, de

Page 194: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

qu e n a da é cer to. De n os s o pon to de vis ta , es ta m os s em pre m u ito incomodados.

En tregu e a s eu s p róp r ios recu rs os , o h om em n a tu ra l é es -s en cia lm en te bom . Ca ça qu a n do p recis a . Fa z o qu e p recis a . Por n ã o s e s en t ir s epa ra do, n o en ta n to, ca u s a m u ito pou co da n o. Ba s ta olh a rm os pa ra n ós pa ra verm os o qu a n to es ta m os d is ta n tes dessa espécie de vida.

Nos s a ta refa es s en cia l n a p rá t ica não é ten ta r a lca n ça r a l-gu m a cois a . Nos s a verda deira n a tu reza

n os s a n a tu reza bu da

es tá s em pre a í. Sem pre in viola da . É p res en te. Recon h ecem os qu e estamos s im ples m en te bem qu a n do en tra m os em con ta to com ela . No en ta n to, n ã o es ta m os em con ta to com ela porqu e n os des via m os pa ra u m dos la dos , s om os u n ila tera is . E is s o cr ia os problemas de nossas vidas.

Diz-s e com m u ita freqü ên cia qu e a es s ên cia de qu a lqu er prática religios a é a ren ú n cia do eu . Mu ito verda deiro, des de qu e en ten da m os cor reta m en te es s a s pa la vra s . Ao qu e é qu e tem os de renunciar então?

ALUNO: Aos apegos.

JOKO: Sim. Os apegos assentam-se no quê?

ALUNO: Nos pensamentos autocentrados?

JOKO: Pensamento a u tocen tra do. Su pon h a m os qu e a lgu ém m e d iz: "J oko, você é u m a es tú p ida ". Es s a pes s oa es tá s ó m e da n do s u a op in iã o. Eu devolvo com ou tra : "Nã o s ou es tú p ida . Você é qu em n ã o s a be o qu e es tá fa zen do''. E com is s o fica m os de ba te-boca . En tra m os n es s es jogos em ra zã o de n os s a s m en tes a u to-cen tra da s , egocen tra da s . Des s e pon to de vis ta , s em pre exis te a lgo de er ra do com o m u n do. Na rea lida de, porém , a vida em s i va i bem , ba s ta n te t ra n qü ila . O qu e ca u s a a s per tu rba ções s ã o a s n os s a s opiniões.

A p rá t ica n ã o d iz res peito a en con tra rm os a lgu m a cois a . Nã o tem os de en con tra r a ilu m in a çã o. Nã o tem os de en con tra r a n os s a n a tu reza bu da . É o qu e s om os . O qu e p recis a m os fa zer é rem over n os s a cegu eira , pa ra poderm os n ova m en te volta r a vê-la . Qu a is são algumas maneiras práticas de remover nossa cegueira?

ALUNO: Rotular nossos pensamentos.

Page 195: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Sim , podem os rotu la r n os s os pen s a m en tos pa ra vê-los apen a s com o pen s a m en tos , com o a lgo qu e n ós m es m os en gen dra -mos. Precisamos ver que eles não têm uma realidade essencial.

ALUNO: Pen s o qu e a pes s oa tem de a ceita r o fa to da cegu eira . Nã o con s igo rotu la r n a da en qu a n to n ã o m e d is pu s er a olh a r pa ra isso.

JOKO: É verda de. Em gera l n ã o tem os d is pos içã o pa ra fa zer es s e t ra ba lh o de ver en qu a n to n ã o es t iverm os s ofren do. O qu e provavelm en te a con tece em qu a lqu er vida a u tocen tra da : s ofrer , em mim e nas pessoas à minha volta.

Nos s a pequ en a m en te p rodu z qu eixa s . Produ z a m a rgu ra e a s en s a çã o de s er vít im a . Produ z s a ú de p recá r ia . Nã o é a ú n ica ca u s a de u m a s a ú de p recá r ia ; m es m o a s s im , u m corpo con s ta n -tem en te ten s o tem u m a du p la ba ta lh a pa ra en fren ta r . A pequ en a m en te p rodu z a r t ifícios e a r rogâ n cia . Im pede-n os de es ta r em con ta to com a s s en s a ções de n os s o corpo e com a vida em s i. Qu a n do es ta m os em con ta to, por ou tro la do, n os s a s vida s s ã o mais como a do homem natural. O que isso significa?

ALUNO: Significa uma noção do ato apropriado.

JOKO: Sim. Algo mais?

ALUNO: Um a m a ior a ber tu ra . A in teligên cia n a tu ra l a bs orve inform a çã o a t ra vés dos órgã os dos s en t idos e fu n cion a com o u m a parte de tudo o mais.

JOKO: Nos s a ten dên cia é en xerga rm os com m a is cla reza . Nos s a ten dên cia é s a ber com o equ ilib ra r a s cois a s e o qu e fa zer n u m a determ in a da s itu a çã o. Nos s a ten dên cia é perm a n ecerm os ca lm os porqu e n ã o n os t ra n s torn a m os d ia n te de ca da cois in h a . Nos s a ten dên cia é s erm os m a is d iver t idos . Ma is es pon tâ n eos . Ma is coopera t ivos . Ten dem os a ver o ou tro com m a is p len itu de em vez de como uma coisa a ser manipulada.

Es s es res u lta dos n ã o n os ch ega m com fa cilida de. O t ra ba lho qu e rea liza m os s obre a a lm ofa da é à s vezes ba s ta n te á r ido. Fica m os ca n s a dos de rotu la r n os s os pen s a m en tos e de volta r à s s en s a ções do n os s o corpo. Ma s es s e n ã o é u m t ra ba lh o s em sentido, embora leve anos. Somos obstinados e não queremos fazer n a da qu e n ã o s eja n eces s á r io. Qu a n do n ã o a gim os a s s im , n o

Page 196: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

en ta n to, a vida é du ra con os co e com todos à n os s a volta . Mes m o então, costumamos não fazer o trabalho que é preciso.

Ren u n cia r a o eu pa rece exót ico. Im a gin a m os Cr is to n a cru z ou a lgu m a ou tra a çã o n otá vel. Ma s ren ú n cia do eu é, ba s ica m en te, a lgo m u ito s im ples e es s en cia l. Ren ú n cia do eu é o qu e a con tece toda vez qu e vem os n os s os pen s a m en tos rodop ia n do e os rotu la m os e a b r im os m ã o de n os s o pequ en o eu

pois os

pen s a m en tos s ã o is s o

e volta m os a o qu e es tá a con tecen do.

Volta m os a ca p ta r a s s en s a ções corpora is , o s om dos ca r ros , o odor do a lm oço. É is s o qu e s ign ifica ren ú n cia do eu . Qu a n do n os s en ta m os du ra n te u m a s em a n a , fa zen do ret iro, dever ía m os fa zer is s o dez m il vezes : rotu la r n os s os pen s a m en tos , en xerga r a fa n -ta s ia , retorn a r à percepçã o con s cien te do qu e é, o qu e é ren u n cia r a o pequ en o eu em fa vor do eu m a ior . Res u lta do: a pen a s a vida vindo.

Na da h á n is s o de m a ra vilh os o: é o qu e fa zem os ta lvez dez vezes a ca da per íodo de p rá t ica s en ta da . Se es t iverm os rea lm en te a ler ta s , ta lvez vin te ou t r in ta vezes . Se n os perdem os em n os s os pen s a m en tos du ra n te qu in ze m in u tos , perdem os u m a pa r te de nosso trabalho.

Ninguém se apressa em nos dar uma medalhinha de ouro por

term os feito es s e t ipo de t ra ba lh o. Nin gu ém . Pa ra ta n to, precisa-

m os en ten der o qu e es tá im plícito a í. Tu do

a n os s a vida inteira

es tá im p lica do. Tu do o qu e de fa to qu erem os es tá en volvido n es s e m on óton o t ra ba lh o qu e rea liza m os vá r ia s vezes seguidas.

Depois surgem fases em nossa vida em que simplesmente não tem os d is pon ib ilida de pa ra fa zer es s e t ra ba lh o du ra n te a lgum tempo. "Não importa o que a Joko diga, vou entrar neste devaneio," En tã o pa s s a m os o film in h o de n os s a pequ en a fa n ta s ia e depois volta m os a o t ra ba lh o. Nos s a m en te s a i de s u a fa n tasia a u tocen tra da e retorn a pa ra a s en s a çã o qu e es tá em n os s os joelhos, para perceber a tensão de nosso corpo, para apenas deixar a con tecer o qu e es tá a con tecen do. Nes s e s egu n do, ren u n cia m os a n ós . Es s e é o es ta do ilu m in a do: es ta r s im ples m en te a í. Sem pre retorn a m os a o n os s o pequ en o eu . Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , porém , a os pou cos a u m en ta o in terva lo em qu e

Page 197: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

perm a n ecem os s im ples m en te com a vida com o ela é, en qu a n to a s interrupções de nossa autocentraçao se tornam um pouco menores, u m pou co m a is b reves . As in ter ru pções n ã o du ra m m a is ta n to e n ã o a s leva m os m a is tã o a s ér io. Ca da vez m a is , ela s s ã o com o n u ven s qu e va gu eia m pelo céu : n ós a s vem os , m a s s om os m en os con trola dos por ela s . Com o tem po, es s e p roces s o p rodu z u m a a cen tu a da d iferen ça em n os s a vida . Sen t im o-n os m elh or . Fu n cion a m os m elh or . Depois de u m ret iro in ten s ivo, por exem plo, a m a ior ia a ch a qu e a s cois a s qu e era m u m prob lem a a n tes a gora s ã o t r ivia is , qu a n do n ã o en gra ça da s . O "p rob lem a " n ã o m u dou , m a s a m en te es tá d iferen te. A fin a lida de de m in h a s a u la s

e a do

próprio sesshin

es tá n es s e retorn o à vida d iá r ia . Qu a n do volta m os pa ra a s exigên cia s m a is com plexa s de n os s a vida de tod o d ia , n o en ta n to, cos tu m a m os es qu ecer de con t in u a r p ra t ica n do. Em vez de perm it ir qu e n os s a m en te s e perca , tem os de con t in u a r a ten tos , obs erva n do. Se n ã o fa zem os is s o, a cla reza qu e tínhamos con qu is ta do com eça a es fu m a ça r-s e. Is s o n ã o tem de ocorrer ; n ã o temos de lutar com alguém no dia seguinte ao sesshin.

Qu a n to m a is tem po n os m a n t iverm os p ra t ica n do e m a is os h á b itos da p rá t ica torn a rem -s e s im ples m en te qu em s om os , m a is tem po du ra rã o os ben efícios do sesshin. Depois de u m per íodo, ch ega m os n u m pon to em qu e n ã o h á m a is d iferen ça en t re o sesshin e a vida diária.

É im por ta n te n os lem bra rm os de qu e n ã o es ta m os con s er -ta n do n a da . Nã o es ta m os ten ta n do s er d iferen tes do qu e s om os . Aliá s , a p rá t ica é a pen a s retorn a r à qu ilo qu e s em pre s om os . Nã o es ta m os fa zen do n a da es pecia l. Nã o es ta m os ten ta n do fica r ilu -m in a dos . Ma n tern o-n os a pen a s volta n do, ren u n cia n do a o pequ eno eu, vezes e vezes seguidas.

Con form e fa zem os es s e t ra ba lh o, com eça m os a s en t ir a vida de u m a m a n eira d iferen te, e es s a é a ú n ica cois a qu e pode n a verda de n os en s in a r a lgo. Pa la vra s com o es ta s vêm e vã o: s e n ã o fa zem os o t ra ba lh o, a s pa la vra s n ã o s ign ifica m n a da . Ler u m livro ou ou vir u m a a u la n ã o é em s i s u ficien te. É o t ra ba lh o que execu ta m os qu e n os dá u m a idéia de u m a m a n eira d iferen te de s en t irm os n os s a vida . Con form e es s a idéia s e torn a m a is firm e, descobrimos que não podemos mais voltar para casa, mesmo que o qu is és s em os . Qu a n do n os t ra n s form a m os ca da vez m a is em qu em n ós s om os , verda deira m en te, os efeitos in s ta la m -s e e n os s a s vida s mudam.

Page 198: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Alguma pergunta?

ALUNA: Você des creveu a p rá t ica com o retom a r a ca da m om en to a os s on s ou à s s en s a ções corpora is , m a s e s e eu es t iver praticando com uma emoção forte, como luto ou ira?

JOKO: O qu e é u m a em oçã o? Um a em oçã o é s im ples m en te u m a com bin a çã o de s en s a ções corpora is e pen s a m en tos . Os pensam en tos s ã o a u tocen tra dos . "Ma s com o é qu e ele ou s a s a ir com ou tra m u lh er? Ele d is s e qu e m e a m a va !" Es s es pen s a m en tos apoderam-s e de n ós com o u m fogo. "Ma s com o ele ou s a fa zer is s o!" Nos s os pen s a m en tos rodop ia m e gira m . "Ele n ã o dever ia a gir a s s im !" E con t in u a m s em ces s a r . Bem , en qu a n to es ta m os ten do es s es pen s a m en tos , o corpo es tá s e ten s ion a n do. Va m os s u por , porém , qu e com eça m os a rotu la r os pen s a m en tos . Pode cu s ta r "d ia s , m a s , em a lgu m m om en to, n os s os pen s a m en tos com eça m a ca ir por ter ra e res ta -n os a pen a s es te corpo ten s o e s ofredor . Se a pen a s perm a n ecem os com es te corpo ten s o e s ofredor , s em pen s a m en tos , o qu e a con tece? A ten s ã o a u m en ta e en tã o ca i por terra e a emoção acabou.

O fa to é qu e n ã o exis te n a da de rea l n u m a em oçã o a u tocen tra da . Todos pen s a m os qu e n os s a s em oções s ã o im por ta n tes ; n o en ta n to, n ã o exis te n a da m en os im por ta n te qu e u m a em oçã o a u tocen tra da . A em oçã o é a pen a s ten s ã o e pensam en tos qu e cozin h a m os todos ju n tos . Os pen s a m en tos s ã o es s en cia lm en te ir rea is , n ã o es tã o vin cu la dos à rea lida de. Por exemplo, posso

a ch a r qu e o fu ra cã o n ã o é ju s to, qu e n ã o dever ia m e a t in gir . Es s e é u m pen s a m en to in ú t il, des vin cu la do do rea l. Nã o é importa n te. Min h a s s en s a ções corpora is são a pen a s o qu e são, n em boa s n em m á s . Qu a n do en ten dem os a em oçã o a u tocen tra da , vemos que é desnecessária.

ALUNO: Qu a n do es tou rotu la n do pen s a m en tos , e u m pen s a m en to s e ergu e e com eça a ca m in h a r por m in h a ca beça , e a meio camin h o eu pa ro e d igo: "Epa , é u m pen s a m en to", ten h o de volta r n a h ora pa ra m in h a s s en s a ções corpora is ou é m elh or p r im eiro obs erva r o pen s a m en to com pleta m en te a n tes de deixá -lo de lado?

Page 199: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Se es s e pen s a m en to t iver u m a im por tâ n cia decis iva pa ra s u a vida , ele volta rá . Você n ã o p recis a s e p reocu pa r em n ã o tê-lo visto até o fim.

ALUNA: O que é uma verdadeira emoção?

JOKO: Um a verda deira em oçã o é u m a res pos ta à rea lida de. Vamos supor que um amigo tem um ataque cardíaco e cai no chão. Com cer teza eu es ta r ia ten do u m a em oçã o a o s a lta r pa ra ten ta r fa zer a lgu m a cois a . Por ou tro la do, qu a n do es tou com ra iva de a lgo qu e a con teceu h á cin co m in u tos , es s a n ã o é u m a em oçã o rea l. Se a lgu ém m e ofen deu h á cin co m in u tos , n ã o qu ero s a ber qu e a m in h a em oçã o a res peito des s e in s u lto é ir rea l. Em lu ga r d is s o, qu ero perm a n ecer n o "Ele n ã o devia ter feito is s o. Ma s qu e s u jeito h or r ível!". Qu a n do levo m in h a s pequ en a s em oções a s ér io, en tã o reforço m in h a idéia de m im m es m a pa ra qu e eu pos s a m e m a n ter jogando essa espécie de jogo.

ALUNO: A raiva pode ser uma verdadeira emoção?

JOKO. Pode, m a s é ra ro. Se eu vejo a lgu ém es pa n ca n do u m a pes s oa e m e in t rom eto pa ra fa zer a lgu m a cois a , pa ra pa ra r com a qu ela a gres s ã o, ta lvez s in ta em m im a lgu m a ra iva . Ma s is s o é m a is com o u m a pequ en a tem pes ta de do qu e com o a qu ilo qu e n orm a lm en te ch a m a m os de ra iva . Qu a s e s em pre, qu a n do pen s a -m os qu e es ta m os m a n ifes ta n do a verda deira ra iva , n a rea lida de estamos é nos enganando.

ALUNA: Existe uma verdadeira emoção na empatia?

JOKO: A verda deira em pa t ia ou com pa ixã o n ã o é em s i u m a em oçã o. Pode con ter em oções com o o a m or . Porém , em s i, a com pa ixã o é a pen a s a ber tu ra a o qu e é. Por s er com pleta m en te a ber ta , s erá recep t iva e ca pa z de ver o qu e é m elh or de s e fa zer e o fa rá . A com pa ixã o ta lvez s eja o res u lta do fin a l da p rá t ica . Nin gu ém é s em pre com pa s s ivo, m a s , s e n os s a p rá t ica for rea l, irem os n os torn a r m a is com pa s s ivos . Torn a m o-n os m a is con s cien tes dos ou tros com o pes s oa s , n ã o s ó com o cois a s a s erem con trola da s , ou m a n ipu la da s , ou con s er ta da s , m a s com o cen tros de rea l percepçã o con s cien te. Es s a ca pa cida de a u m en ta com a p rá t ica . Se n ã o a u m en ta , en tã o es ta m os en ten den do a p rá t ica , ou s im ples m en te não a estamos realizando.

Nã o ten h o de in ves t iga r o qu e a lgu ém es tá fa zen do n a a lm ofa da s e en xergo s eu com por ta m en to n o res to de s u a vida . É

Page 200: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

óbvio qu a n do u m a p rá t ica es tá a m a du recen do. A s en s a çã o de s er vít im a , de "coita d in h a de m im ", des a pa rece. A pes s oa tem m u ito m a is percepçã o con s cien te da s n eces s ida des da s ou tra s pes s oa s e u m a d is pon ib ilida de ca da vez m a ior pa ra s a t is fazê-las

o qu e é

muito diferente de ser um "bonzinho na vida".

ALUNA: En tã o a com pa ixã o n ã o n eces s a r ia m en te s e pa rece com alguma outra coisa?

JOKO: Nã o. Se n ós es ta m os de fa to ou vin do com com pa ixã o a outra pessoa, podem os n ã o s en t ir m u ito cois a n en h u m a ; s imples-m en te ou vim os e a gim os com propr ieda de. Con fu n d im os com -pa ixã o com a m or . Com pa ixã o pode con ter a m or , o qu e pode s er u m a em oçã o, m a s em s i a com pa ixã o n ã o é a m or . Na verda deira com pa ixã o n ã o exis te s epa ra çã o, o qu e qu er d izer qu e n ã o h á pen s a m en tos a u tocen tra dos en t re m im e a pes s oa com a qu a l eu esteja. Nenhuma separação é compaixão.

ALUNO: A defin içã o do d icion á r io pa ra em patia é s en t ir o qu e o ou tro es tá s en t in do. Is s o n ã o s ign ifica n eces s a r ia m en te rea gir a o qu e es tã o s en t in do ou s im pa t iza r . Com pa ixã o s ign ifica es ta r com a experiência que estão tendo, mas não na experiência.

JOKO: A pes s oa verda deira m en te com pa s s iva n u n ca n em pen s a a res peito. É a lgo n a tu ra l. Nã o res u lta de s u a ten ta t iva de s er com pa s s iva . Ten ta r s er com pa s s ivo é com o ten ta r s er espon tâ n eo. Ou s om os ou n ã o s om os . Se n ã o s om os , podem os es ta r cer tos de qu e es ta m os a p r is ion a dos n u m s on h o a u tocen tra do de a lgu m a es pécie. Qu a n do es ta m os a p r is ion a dos em n os s os pen s a m en tos , n ã o s om os com pa s s ivos . As s im , o cern e da p rá t ica é in ves t iga r o s on h o a u tocen tra do de qu e ta n to gos ta m os . Se n ã o estivermos apegados a ele, seremos compassivos.

ALUNA: Amor e compaixão são a mesma coisa?

JOKO: Às vezes , o a m or tem u m a con ota çã o em ocion a l por breves per íodos . Verda deira m en te, a m a r a lgu ém n ã o s ign ifica qu e n os s en t im os em ot ivos a res peito dele, porém . Podem os a m a r n os s os filh os e qu erer qu e eles lim pem os s a pa tos n o ca pa ch o a n tes de en t ra r em ca s a . Sen t ir ir r ita çã o porqu e eles n ã o fa zem is s o é u m a em oçã o, m a s o a m or qu e es tá lá , em ba ixo da ra iva , n ã o é. O amor pelos próprios filhos permanece estável.

No ca s o do a m or rom â n t ico, qu a s e s em pre exis te u m ele-m en to de n eces s ida de, u m pen s a m en to de qu e irem os ob ter a lgo

Page 201: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

dele: "Fico tã o excita da por es ta r com você"; "Me s in to tã o bem qu a n do es tou per to de você"; "Você m e fa z s en t ir tã o feliz"; "Qu a n do es tou com você m e s in to com pleta "; "Você s a t is fa z toda s a s m in h a s n eces s ida des ". Qu a n do a lgo en tã o a con tece pa ra des t ru ir n os s a fa n ta s ia , a s pa la vra s m u da m : "Eu rea lm en te o detesto! Não sei nem o que um dia enxerguei nele!".

Na rea lida de, n in gu ém n os torn a felizes ou t r is tes ; nós é que fa zem os is s o con os co. O a m or rom â n t ico es tá rep leto de ilu s ões . O a m or gen u ín o, ou com pa ixã o, n ã o tem ilu s ões . É s im ples m en te quem somos.

VII. Deslumbramento

A QUEDA

Hou ve cer ta vez u m h om em qu e s u b iu a o topo de u m ed ifício de dez a n da res e s a ltou . Qu a n do pa s s a va pelo 5° a n da r em s eu mergulho rumo ao chão ouviram-no dizer:' 'Até aqui, tudo bem!".

Rim os des s e h om em porqu e s a bem os o qu e o es pera em pou cos in s ta n tes . Com o é qu e ele pode d izer qu e tu do es tá in do bem a té a li? Qu a l é a d iferen ça en t re o s egu n do em qu e ele es tá n o 5º andar e o segundo imediatamente anterior ao seu choque contra a ca lça da ? O s egu n do logo a n tes de ele ba ter n o ch ã o é o qu e a m a ior ia de n ós ch a m a r ia de cr is e. Se pen s a m os qu e s ó tem os a lgu n s m in u tos ou d ia s a n tes de m orrer , a m a ior ia d irá : "Is s o é u m a cr is e". Por ou tro la do, s e n os s os d ia s es tã o t ra n scorrendo n orm a lm en te (o t ra ba lh o de s em pre, a s pes s oa s h a b itu a is , a s in cu m bên cia s con h ecida s ), a vida pode n ã o pa recer in cr ível, m a s , pelo m en os , es ta m os a cos tu m a dos com ela . Nes s a s fa s es n ã o s en t im os qu e es ta m os em cr is e e ta lvez n ã o n os s in tamos m ot iva dos a p ra t ica r com d iligên cia . Con s idera m os es s a s u pos ta diferença entre crise e não-crise.

O sesshin é u m a cr is e a r t ificia l. Qu a n do n os com prom etemos com u m ret iro, tem os de fica r e lu ta r com u m a s itu a çã o d ifícil. No fin a l do per íodo de ret iro a m a ior ia da s pes s oa s terá s u pera do es s a

Page 202: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

crise

o s u ficien te, pelo m en os , pa ra en xerga r s u a vida de u m a

m a n eira u m pou co d iferen te. É t r is te qu e n ós n ã o com preen da m os qu e ca da m om en to de n os s a s vida s

beber u m a xíca ra de ca fé,

a n da r pela ru a pa ra com pra r u m jorn a l

é isso. Por qu e n ã o

a preen dem os es s a verda de? Nã o a a p reen de m os porqu e n os s a s pequ en a s m en tes pen s a m qu e es te s egu n do qu e es ta m os viven do tem centenas de m ilh a res de s egu n dos qu e o p recedera m e cen ten a s de m ilh a res de s egu n dos a in da por vir , por is s o afastamo-n os do viver de fa to n os s a vida . Em lu ga r d is s o, fa zem os a qu ilo qu e os s eres h u m a n os pa s s a m s u a vida toda fa zen do: a com pleta perda de tem po de ten ta r m en ta lm en te es qu em a t iza r a s cois a s pa ra qu e n u n ca ten h a m os de s ofrer u m a cr is e. Ga s ta m os toda s a s n os s a s en ergia s ten ta n do s er a m a dos , bem -sucedidos, boas pessoas, agradáveis, firmes (ou instáveis), dependendo do que pen s a m os qu e va i da r m a is cer to n o n os s o ca s o. Tem os es qu em a s . A m a ior pa r te de n os s a s en ergia s é ca n a liza da pa ra es s es es qu em a s , con form e ten ta m os lida r com n os s a vida de ta l m a n eira qu e n u n ca ch egu em os n o fu n do do poço. Por is s o é qu e s e tom a tã o in cr ível ch ega r per to des s e fu n do. É por is s o qu e a s pes s oa s s er ia m en te doen tes , ou qu e pa s s a m por u m a circu n s tâ n cia m u ito des t ru idora em s u a vida , em gera l des per ta m . Des per ta m pa ra o quê? Para o que elas acordam?

ALUNO: Para o presente?

JOKO: Sim, e o que mais?

ALUNO: Para a impermanência?

JOKO: Impermanência. Certo, é verdade.

ALUNA: Para as sensações corporais.

JOKO: Sim, e mais que isso, para o que acordamos?

ALUNO: Para o deslumbramento diante disso tudo.

JOKO: O des lu m bra m en to des te s egu n do. Qu a n do es te s egu n do n ã o é eu , n em n en h u m a ou tra cois a , m a s o s im ples m en te, Oh!

e is s o n ã o s ign ifica n en h u m a em oçã o giga n tes ca , s ó o apenas

en tã o toda s a s n os s a s p reocu pa ções s ã o in exis ten tes . Em gera l, porém , s ó tem os es s a percepçã o qu a n do n os vem os m u ito p res s ion a dos , ta n to qu e n os s a m en te é a r rem es s a da pa ra o m om en to p res en te. En tã o podem os es qu ecer todos os n os s os es qu em a s de n os con s er ta r , de con s er ta r a lgu ém ou a s

Page 203: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

circu n s tâ n cia s . A m a ior ia da s pes s oa s pa s s a de 80 a 90% do s eu tem po a corda da , ten ta n do evita r o fu n do do poço. No en ta n to, n ã o podem os evitá -lo. Todos es ta m os a ca m in h o do fu n do, todos n ós . Nã o podem os evita r o fu n do, m a s pa s s a m os qu a s e n os s a vida toda tentando isso mesmo.

Des per ta r s ign ifica da r -s e con ta de qu e a n os s a é u m a situação sem esperança e maravilhosa. Não nos resta fazer nada exceto viver a pen a s es te s egu n do. Qu a n do es ta m os em cr is e, ou em sesshin, podem os n ã o des per ta r por com pleto, m a s a corda m os o s u ficien te pa ra qu e m u de o m odo pelo qu a l en ca ra m os a vida . Percebem os qu e a s n os s a s m a n obra s h a b itu a is

preocu pa rm o-n os com o pa s s a do, p rojeta r u m fu tu ro im a gin á r io __n ã o fa zem sentido, são um desperdício de segundos preciosos.

De u m pon to de vis ta , es ta m os s em pre em cr is e: es ta m os s em pre ca in do a té o fu n do. Segu n do u m a ou tra pers pect iva , n ã o h á cr is e. Se irem os m orrer em u m da do s egu n do, h á a lgu m a cr is e? Nã o, exis te s ó es s e s egu n do. Nu m s egu n do es ta m os vivos ; n ou tro, m or tos . Nã o h á cr is e. Exis te s ó o qu e exis te. Porém a â n s ia h u m a n a de fa zer o im pos s ível nos m a n tém a fu n da dos n a la m a . Gas ta m os a n os s a vida ten ta n do evita r o in evitá vel. Nos s a s en ergia s , n os s a s em oções , n os s os p rojetos en ca m in h a m -s e pa ra con s egu ir d in h eiro, s uces s o, faz er com qu e todos gos tem dê n ós , porqu e n o ín t im o a cred ita m os qu e is s o tu do irá n os p roteger . Um a de nossas mais poderosas ilusões é que estar amando alguém pode n os p roporcion a r u m a verda deira p roteçã o. Na rea lida de, n ã o existe proteção nem resposta. Nossas vidas são absolutamente sem esperança. É por isso que são maravilhosas. E não é nada de mais.

Qu em qu er s er bem -s u ced ido? Qu em qu er s er a p recia do? Todos n ós . Na da de er ra do com es s es des ejos

a m en os qu e a cred item os n a ilu s ã o. Até m es m o qu erer VS$ 1 m ilh ã o pode s er m u ito en gra ça do

tã o d iver t ido qu a n to qu a lqu er ou tro jogo

s e a pen a s o virm os com o u m jogo en gra ça do e n ã o fer irm os os ou tros en qu a n to o joga m os . Ma s n ã o vem os is s o com o u m jogo e por is s o fer im os os ou tros en qu a n to pers egu im os es te qu e s e torn a u m plano letal.

Ilu m in a çã o é a pen a s s a ber a verda de n ã o com a ca beça , m a s com todo o n os s o s er , s a ben do qu e "é is so". É m a ra vilh os o. Es tá com dor de den te? Is so ta m bém é o qu e é

m a ra vilh os o. Qu a n do es ta m os n a dor de den te cla ro qu e n ã o a a ch a m os s en s a cion a l.

Page 204: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Con tu do ela é m a ra vilh os a s im ples m en te por s er a vida qu e acontece neste segundo, doendo mesmo assim.

É u m a pen a qu e n os s a s m en tes h u m a n a s n os lu d ib r iem . Em s u a m a ior pa r te, os a n im a is s ã o m en os m a n ipu la dores com s u a s vidas. Algumas vezes podem tentar fazer joguinhos. Tive uma

vez um cachorro que não gostava de vir para casa quando era ch a m a do e en tã o fica va por t rá s de u m a cerca , do ou tro la do da ru a . No verã o is s o fu n cion a va m u ito bem

ele fica va ca m u fla do

por t rá s da s folh a s , tã o im óvel qu a n to con s egu is s e. Ma s qu a n do a s folh a s ca ía m n o ou ton o ele a in da a s s im con t in u a va cor ren do pa ra s e es con der lá e perm a n ecia pa ra d in h o

s ó qu e com pleta m en te vis ível! Apes a r d is s o, cã es e ou tros a n im a is n ã o s e em ba ra lh a m ta n to qu a n to n ós a res peito do p ropós ito de s u a vida ; eles a pen a s vivem, e nós não.

Algu n s de n ós es ta m os em m eio a "des a s t res "; ou t ros n ã o. Cla ro qu e n ã o perm a n ecem os pa ra s em pre em m eio a u m im en s o des a s t re, m a s qu a n do es ta m os a t ra ves s a n do u m per íodo des s es n ós p ra t ica m os m u ito, com pa recen do ca da vez m a is a o zen do

e fa zen do tu do a o n os s o a lca n ce pa ra en fren ta r a s itu a çã o. Depois, qu a n do a vida s e a ca lm a , deixa m os de p ra t ica r com a m es m a in ten s ida de. Um in d ica dor da p rá t ica m a du ra é en xerga r a vida com o u m proces s o s em pre tota lm en te em cr is e e tota lm en te n ã o em cr is e: a s du a s vers ões s ã o a m es m a cois a . Na p rá t ica m a du ra , praticamos com a mesma intensidade, haja uma crise ou não. Com crise ou sem, nós praticamos.

Na da s erá de fa to s olu cion a do en qu a n to n ã o com preen der-m os qu e não ex is te s olu çã o. Es ta m os ca in do e n ã o exis te res pos ta pa ra is s o. Nã o con s egu im os con trola r is s o. Es ta m os pa s s a n do a vida ten ta n do deter a qu eda ; n o en ta n to, ela n u n ca s e in ter rom pe. Nã o exis te s olu çã o n em pes s oa m a ra vilh os a qu e con s iga m deter es s e m ovim en to. Nen h u m s u ces s o, n en h u m s on h o, n a da pod e fazê-lo in ter rom per-s e. Nos s o corpo es tá s im ples m en te des -pencando.

Essa qu eda é u m a gra n de bên çã o. Se a lgu ém a n u n cia s s e uma pílula que curasse a morte e nos permitisse viver para sempre, is s o s er ia u m a verda deira t ra géd ia . Im a gin e-s e da qu i a s eis m il a n os a in da pen s a n do os m es m os velh os pa drões de pen s a m en to! Com u m a cu ra pa ra a m or te, m u da r ia por com pleto todo o

Page 205: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s ign ifica do de s e es ta r e s er n es te p la n eta . E on de ir ía m os coloca r os novos bebês que fossem nascendo?

Todos n ós es ta m os cien tes do en velh ecim en to: ca belos gr i-s a lh os , ru ga s , ca coetes . Des de o m om en to em qu e s om os conce-b idos , es ta m os m orren do. Qu a n do obs ervo es s es s in a is , n ã o m e reju b ilo. Nã o gos to deles , a s s im com o vocês ta m bém n ã o. Mesmo a s s im , exis te u m a gra n de d iferen ça en t re n ã o a p recia r a s mudanças e tentar a todo preço detê-las.

Ma is cedo ou m a is ta rde, da m o-n os con ta de qu e a verda de da vida é es te s egu n do qu e es ta m os viven do, in depen den tem en te de es te s egu n do es ta r n o 9 º a n da r ou n o p r im eiro. Em cer to s en t ido, n os s a vida n ã o tem a m en or du ra çã o: es ta m os s em pre viven do o m es m o s egu n do. Nã o exis te m a is n a da a lém des te s egu n do, do m om en to p res en te a tem pora l. Qu er viva m os es te s egu n do n o 5 º p is o, qu er n a ca lça da , a in da é o m es m o s egu n do. Dia n te des s a con s ta ta çã o, ca da s egu n do é u m a fon te de con ten -ta m en to. Sem es s a com preen s ã o, todo s egu n do é u m in fern o. (Na realida de, n ós n o fu n do qu erem os m u ita s vezes s er bem in felizes ; nós gos tam os de ser o centro de algum melodrama.)

Qu a s e o tem po todo n ã o pen s a m os qu e exis te a lgu m a cr is e a con tecen do. ("Até a qu i, tu do bem !") Ou pen s a m os qu e cr is e é o fa to de n ós n ã o n os s en t irm os felizes . Is s o n ã o é u m a cr is e; é u m a ilu s ã o. Sen do a s s im , pa s s a m os qu a s e a vida in teira ten ta n do con s er ta r es s a en t ida de in exis ten te qu e pen s a m os qu e s om os . Na rea lida de, n ós s om os es te s egu n do. O qu e poder ía m os s er? Es te s egu n do n ã o tem tem po n em es pa ço. Nã o pos s o s er o s egu n do qu e fui há cinco minutos; como poderia sê-lo? Estou aqui. Estou agora. Nã o pos s o s er o s egu n do qu e ch ega rá da qu i a dez m in u tos . A ú n ica cois a qu e pos s o s er é o remexer-m e s obre a m in h a a lm ofa da , s en t ir dor n o joelh o es qu erdo, viven cia r a qu ilo qu e es t iver a con tecen do a gora . Is s o é qu em s ou . Nã o pos s o s er m a is n a da . Posso imaginar que em dez minutos não sentirei dor no meu joelho esquerdo, mas isso é pura fantasia.

Lembro-m e de u m a época em qu e eu era jovem e bela . Is s o ta m bém é pu ra fa n ta s ia . Qu a s e toda s a s n os s a s d ificu lda des , es pera n ça s e p reocu pa ções ta m bém s ã o m era s fa n ta s ia s . Na da ja m a is exis t iu exceto es te m om en to. E le é tu do o qu e exis te. Is s o é tu do qu e s om os . Mes m o a s s im , a m a ior ia da s pes s oa s ga s ta de 80 a 90% de s eu tem po im a gin a n do cois a s , viven do em s u a fa n ta s ia .

Page 206: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Pen s a m os n o qu e a con teceu , n o qu e poder ia ter ocor r ido, em com o n os s en t im os a es s e res peito, em com o dever ia s er d iferen te, em com o os ou tros dever ia m s er d iferen tes , em com o é u m a pen a m es m o, e a s s im por d ia n te. É tu do fa n ta s ia , tu do im a gin a çã o. Memória é im a gin a çã o. Toda recorda çã o a qu e n os a pega m os arruína a nossa vida.

Pen s a m en tos p rá t icos

qu a n do n ã o es ta m os n os a pega n do

a a lgu m a fa n ta s ia , m a s a pen a s fa zen do a lgu m a cois a

é u m a

ou tra qu es tã o. Se m eu joelh o dói, ta lvez eu deves s e pes qu is a r u m t ra ta m en to pa ra is s o. Os pen s a m en tos qu e n os des t roem s ã o aqueles nos quais estamos tentando deter a queda para não

da r de ca ra n o ch ã o: "Vou da r u m jeito n ele"; "Vou da r u m jeito em m im "; ou "Vou com eça r a m e en ten der . Qu a n do eu fin a lm en te en ten der qu em s ou , fica rei em pa z e en tã o a vida cor rerá bem ". Nã o, n ã o cor rerá bem , Ela s erá a pen a s a qu ilo qu e tiver de ser, a cada segundo. Apenas o deslumbramento.

Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , con s egu im os perceber o des lu m bra m en to? Con s egu im os s en t ir o des lu m bra m en to qu e h á n o fa to de es ta rm os a qu i, de qu e, com o s eres h u m a n os , podem os a precia r es ta vida ? Nes s e s en t ido, s om os m a is a for tu n a dos qu e os a n im a is . Du vido qu e u m ga to ou u m a a belh a ten h a m es s a ca pa cida de de a p recia r , em bora eu pos s a es ta r en ga n a da . E pos s o perder es s a ca pa cida de de a p recia çã o, de des lu m bra m en to, s e desviar-m e des te m om en to. Se a lgu ém m e xin ga : "J oko, você é u m a d roga !" e eu m e perder em m in h a s rea ções (em m eu s pen s a m en tos de a u toproteçã o ou de revide e vin ga n ça ), en tã o terei perd ido o des lu m bra m en to. Ma s , s e perm a n eço n es te m om en to, exis te s ó o ter ou vido a lgu ém qu e m e xin gou . Nã o é n a da . Todos nós porém nos atolamos em nossas reações.

En qu a n to s eres h u m a n os , tem os u m a m a ra vilh os a ca pa ci-dade pa ra ver o qu e a vida é. Eu n ã o s ei s e a lgu m ou tro a n im a l tem essa capacidade. Se nós a desperdiçarmos e não a praticarmos de verda de, todos a qu eles com qu em en tra rm os em con ta to s en t irã o os efeitos . Is s o in clu i n os s os com pa n h eiros , n os s os filhos, nossos pa is , n os s os a m igos . A p rá t ica n ã o é a lgo qu e n ós fa ça m os a pen a s por n ós . Se fos s e, n ã o ca u s a r ia a m en or d iferen ça , em cer to s en t ido. Toda via , con form e n os s a vida va i en t ra n do n a rea lida de, todos a qu eles com qu em n os rela cion a m os ta m bém

Page 207: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s en tem a m es m a m u da n ça . Se h á a lgu m a cois a ca pa z de a feta r este universo sofredor, é esta.

O SOM DE UM POMBO E UMA VOZ CRÍTICA

Receb i recen tem en te u m telefon em a de u m a pes s oa da cos ta les te, qu e m e d is s e: "Qu a n do m e s en tei n a p rá t ica es ta m a n h ã , es ta va tu do s os s ega do e de repen te h ou ve s ó u m s om de pom bo. Nã o h ou ve n en h u m pom bo, n ã o h ou ve eu , era s ó isto". A pes s oa en tã o a gu a rdou m eu com en tá r io. Eu res pon d i: "Qu e m a ravilha! Ma s s u pon h a qu e em vez de ou vir o pom bo você ou ve u m a voz cr ít ica en con tra n do defeitos em você. Qu a l é a d iferen ça en t re o s om do pom bo e o s om de u m a voz cr ít ica ?". Im a gin e qu e es ta m os s en ta dos n a qu ietu de do in ício da m a n h ã e de repen te pela ja n ela a ber ta en t ra s ó a qu ele a r ru in a r do pom bo. Es s e pode s er u m m om en to en ca n ta dor . (Cos tu m a m os pen s a r , a liá s , qu e é is s o qu e é o zen .) Porém , va m os s u por qu e n os s o ch efe ir rom pe s a la a den tro ber ra n do: "Eu já devia ter o s eu rela tór io em m in h a m es a des de ontem. Onde es tá?". O que é igual nestes dois sons?

ALUNO: Os dois são só ouvir.

JOKO: Sim , os dois s ã o s ó ouvir. Seja o qu e for qu e n os a con teça o d ia in teiro, is s o é s im ples m en te input receb ido por u m des tes órgã os dos s en t idos : s ó ou vir , s ó ver , s ó s en t ir o odor , s ó toca r , s ó s en t ir o gos to. J á d is s em os o qu e é igu a l a res peito dos dois sons. Agora, qual é a diferença? Ou, existe uma diferença?

ALUNO: Gostamos de um e não gostamos do outro.

JOKO: Por qu e is s o é verda de? Afin a l de con ta s , a m bos s ã o s ó s on s . Por qu e n ã o gos ta m os da voz cr ít ica ta n to qu a n to gos ta m os do arrulhar do pombo?

ALUNA: NÓS n ã o ou vim os s im ples m en te a voz. Nós a t rela m os uma opinião ao que ouvimos.

JOKO: Cer to. Tem os u m a op in iã o a res peito des s a cr ít ica

pensamentos fortes e reações intensas, para ser franca.

Nu m a a u la a n ter ior , con tei u m a h is tór ia a res peito do h omem qu e s a ltou do ed ifício de dez a n da res e, a o pa s s a r pelo qu in to, a in da ber ra va "Até a qu i, tu do bem !". E le es ta va es pera n do du ra r

Page 208: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pa ra s em pre. É a s s im qu e vivem os : n a es pera n ça de evita r a voz crítica, de desafiar a gravidade e permanecer para sempre.

Alguns parecem de fato desafiar a gravidade. Uma pessoa que m e deu p ra zer a o lon go de m u itos a n os foi Greg Lou ga n is , p rova velm en te o m a ior m ergu lh a dor qu e ja m a is exis t iu . Um m ergu lh a dor ext ra ord in á r io com o Lou ga n is tem força pa ra a t in gir uma altura notável quando se atira, dando assim mais espaço para o m ovim en to de des cida den tro d 'á gu a . A a ltu ra forn ece-lh e es pa ço de m ovim en ta çã o. Um ou tro a t leta m em orá vel qu e pa rece des a fia r a gra vida de é o joga dor de ba s qu ete Mich a el J orda n , qu e à s vezes pa rece fica r s u s pen s o n o a r . Su rp reen den te. E n os m a ra vilh a m os com Ba rys h n ikov, es s e gra n de ba ila r in o. Todos eles ch ega m a u m a altura assombrosa, mas em algum momento todos vêm para baixo. Como nos ensina o bom senso, a gravidade sempre prevalece.

Ma s n ós n ã o vivem os de a cordo com o bom s en s o. Não gos ta m os da voz cr ít ica ; n ã o gos ta m os de ca ir . Nã o gos ta m os n a da des s a s cois a s . No en ta n to, gos ta n do ou n ã o, a vida con s is te em m u ita s cois a s des a gra dá veis qu e n os a t in gem . É ra ro a vida n os da r s ó a qu ilo qu e qu erem os . Sen do a s s im , pa s s a m os o tem po todo ten ta n do fa zer a qu ilo qu e n en h u m s er h u m a n o con s egu e. Ten ta m os , de a lgu m a m a n eira , perm a n ecer a qu i pa ra qu e n u n ca ch egu em os n o fu n do, n u n ca n os es borra ch em os n o ch ã o. Ten ta -mos evitar aquilo que não pode ser evitado.

Nã o exis te com o viver u m a vida h u m a n a e evita r a s cois a s des a gra dá veis qu e n os a t in gem . Exis te cr ít ica , dor , s er fer ido, fica r doen te, decepcion a r -s e. Nos s a pequ en a m en te d iz: "Você n ã o pode con fia r n a vida . Melh or p roviden cia r a lgu m s egu ro". Fa zem os o m elh or qu e podem os pa ra evita r todo e qu a lqu er con ta to com a dolorosa realidade.

Qu a n do n os s en ta m os pa ra o zazen, n os s a m en te es tá in ces -s a n tem en te fa n ta s ia n do, ten ta n do "perm a n ecer pa ra s em pre". Nã o podem os fa zê-lo. Con tu do, n a qu a lida de de s eres h u m a n os , pers is t im os n a ten ta t iva de fa zer a qu ilo qu e n ã o pode s er feito: evita r toda es pécie de dor . "Vou p la n eja r . Vou des cobr ir o m elh or ca m in h o. Vou des cobr ir o qu e fa zer pa ra con s egu ir s obreviver e fica r a s a lvo." Ten ta m os t ra n s form a r a rea lida de com o n os s o pensamento para que ela não consiga se aproximar de nós, jamais.

Há a qu ela h is tór ia qu e lh es con tei a n tes a res peito de s en tar-m e n u m zen do per to de u m a m oça qu e fica va s e m exen do o tem po

Page 209: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

todo. Ela es ta va com d ificu lda des com o torn ozelo e n ã o pa ra va . E la o es ten d ia , pu n h a pa ra ba ixo, torcia -o pa ra t rá s , dobra va . Estava mexendo o tempo todo com o tornozelo. O monitor inclinou-s e e s u s s u rou n o ou vido dela : "Você deve fica r im óvel. Deve pa ra r de m exer o torn ozelo". E la d is s e: "Ma s dói". Ele res pon deu : "Bem , exis tem m u itos torn ozelos doen do n es s a s a la ". E la fa lou : "Ma s é o meu torn ozelo!". Qu a n dq a t ra ves s a m os cer ta s es pécies de dor , tem os u m a s im pa t ia por ou tra pes s oa qu e pa s s a pela m es m a dor . Ma s qu a n do a lgu ém s en te dor n ã o é o m es m o qu e qu a n do eu sinto dor . Qu a n do a lgu ém d iz: "Sin to m u ito por você", a verda de é qu e n ã o s en te n ã o, n ã o do jeito qu e s en te pa ra s i. Tem os u m ob jet ivo p r im á r io: qu erem os m a n ter a dor tã o a fa s ta da de n ós qu e n em ch egu em os a s a ber dela . Qu erem os perm a n ecer pa ra s em pre em n os s a s n u ven s de pen s a m en to a res peito de n os s a s p rovidên cia s e esquemas de nosso auto-aperfeiçoamento.

Na da h á de er ra do com n os s o a u to-a per feiçoa m en to em s i; por exemplo, podemos decidir que não vamos mais comer porcaria, ou que vamos fazer mais exercícios físicos, ou dormir melhor. Tudo bem . O qu e h á de er ra do é qu e a es s es es forços a cres cen ta m os a es pera n ça de qu e es s e a u to-a per feiçoa m en to irá s ervir de va cin a con tra toda s a s a dvers ida des

a voz cr ít ica , a decepçã o, a en ferm ida de, o en velh ecim en to. Qu a n do Mich a el J orda n es t iver com 70 a n os , p rova velm en te n ã o es ta rá m a is flu tu a n do em torn o da s ces ta s de ba s qu ete com o é ca pa z de fa zer a gora . Da m es m a form a com os rela cion a m en tos e ca s a m en tos : qu e expecta t iva s despejamos nesses vínculos?

ALUNA: Esperamos que garantam a nossa felicidade.

JOKO: Cer to. É p roveitos o t ra ba lh a r pa ra s e ter u m bom casamento. Mas a esse trabalho acrescentamos a esperança de que n os s o com pa n h eiro a ju de-n os a des a fia r a gra vida de, deten do a nossa queda.

En qu a n to a ch a rm os qu e exis te u m a d iferen ça en t re o s om de u m pom bo e o de u m a voz cr ít ica , irem os n os en ga lfin h a r com a vida . Se n ã o qu erem os qu e es s a voz cr ít ica exis ta em n os s a vida e s e n ã o t iverm os t ra ba lh a do com a n os s a rea çã o a ela , irem os n os engalfinhar. E a que se refere essa luta? Todos nós estamos nela.

ALUNO: Es s a lu ta a con tece por ca u s a da d iferen ça en t re o qu e está realmente acontecendo e o que está em nossa mente.

Page 210: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

JOKO: Cer to. Com s u a pecu lia r s u t ileza , n os s a m en te s em pre es tá a cres cen ta n do: "Es ta s itu a çã o é u m a cois a de qu e gos to/ n ã o gosto". Formulamos opiniões.

Quando a pen a s ou vim os , n ã o exis tem op in iões . Qu a n do o s om a t in ge os n os s os t ím pa n os , n ã o exis te op in iã o, s ó a u d içã o. O es forço qu e s e fa z n a p rá t ica é ju s ta m en te s obre es s e a s pecto. O d ia in teiro in form a ções s en s or ia is es tã o n os a lca n ça n do. Ma s , do ponto de vista humano, apenas parte delas é aceitável.

Será qu e is s o qu er d izer qu e s e você a ca r icia r com delica deza a minha mão ou espetar uma agulha com força nela eu vou ter que gos ta r igu a lm en te da s du a s cois a s ? Nã o, a lgo terá a m in h a p referên cia . Todos nós s abem os qu e p refer im os as sensações a gra dá veis . (Pa r t icu la rm en te eu detes to qu a n do a lgu m técn ico de la bora tór io es peta u m a a gu lh a n a pon ta do m eu dedo pa ra ret ira r u m a a m os tra de s a n gu e.) Nã o h á n a da er ra do com preferên cia s em s i; é a em oçã o qu e a cres cen ta m os a ela s qu e n os coloca em a pu ros . Em ra zã o de n os s a s em oções , t ra n s form a m os p referên cia s em exigên cia s . A p rá t ica a ju da -n os a rever ter es s e p roces s o, a des fa zer a s exigên cia s , fa zen do com qu e voltem a s er s im ples p referên cia s , s em pes o em ocion a l Por exem plo, s e p la n eja m os u m p iqu en iqu e, u m a p referên cia é: ''Ser ia m elh or qu e h oje n ã o ch oves s e". Porém , s e fica m os m u ito con t ra r ia dos porqu e ch ove, es s a p referên cia já s e torn ou u m a exigên cia : "Prepa rei toda es s a com ida , t ive toda es s a trabalheira

e a gora fa ço o qu e com tu do is s o? Ma s qu e d roga de vida!"

Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , va m os con s olida n do u m a vis ã o ca da vez m a is ob jet iva da s cr ia ções m en ta is por m eio da s qu a is ten ta m os n os p roteger pa ra con s egu irm os "perm a n ecer pa ra s em pre". Apren dem os a s im ples m en te obs erva r a s cr iações m en ta is e a retorn a r a o viven cia r a ber to do input s en s or ia l. Sen ta r é uma iniciativa simples.

Se form os h on es tos qu a n do n os s en ta rm os pa ra p ra t ica r , irem os des cobr ir qu e n ão querem os ou vir n os s o corpo. Qu eremos pensar. Querem os pen s a r a cerca de toda s a qu ela s idéia s qu e n os dão esperança.

As s im , o p r im eiro pa s s o é s er h on es to. Is s o qu er d izer ver os n os s os pen s a m en tos ta n to qu a n to n os for pos s ível e ou vir nosso corpo. En qu a n to n os s a es pera n ça n ã o s e es fu m a ça r , n ós n ã o devota rem os m u ito tem po a ou vir o n os s o corpo. Sem du vida n ós

Page 211: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

n ão querem os ou vir . Ao lon go de a n os de p rá t ica s en ta da , con tu do, es s a in d is pon ib ilida de a os pou cos s e t ra n s form a . Sen ta r n ã o d iz res peito a fica r em es ta do de gra ça ou s en t ir -s e feliz. Sen ta r t ra ta de en fim en xerga r qu e n ã o exis te, n a rea lida de, u m a d iferen ça en t re ou vir u m pom bo e ou vir a lgu ém a n os cr it ica r ; a "d iferen ça " s ó exis te em n os s a m en te. Es s e es forço é o qu e con s t itu i a p rá t ica . Nã o é s en ta r -s e em es ta do de gra ça du ra n te a lgu m tem po, todo d ia de m a n h ã . Diz res peito a en ca ra rm os n os s a vida de m a n eira d ireta , pa ra verm os o qu e es ta m os n a verda de fa zen do. Em gera l, o qu e es ta m os de fa to fa zen do é ten ta r m a n ipu la r n os s a vida ou a vida dos ou tros . S im ples m en te, en tã o, observamos qu e es ta m os ten ta n do m a n ipu la r a s pes s oa s ou os a con tecim en tos pa ra qu e "eu"

es s a ilu s ã o con s t ru ída por pen s a m en tos a u tocen tra dos

não possa ser ferido.

Hon es t ida de: recon h ecer a s m in h a s op in iões a res peito da p rá t ica s en ta da , de m im m es m a , da pes s oa s en ta da per to de m im . Hon es t ida de: "Rea lm en te s ou bem ir r itá vel, bem ch a ta ". Es s a h on es t ida de n os perm ite ou vir m a is e m a is n os s o corpo

por dois s egu n dos , vin te s egu n dos , ou a in da m a is tem po. Qu a n to m en os es pera n ça t iverm os de poder con s er ta r a s cois a s pelo pen s a m en to, m a is tem po s erem os ca pa zes de fica r ou vin do o qu e é rea l. E por fim podem os com eça r a n os da r con ta de qu e n ã o h á s olu çã o. Só os egos devem ter s olu ções , m a s n ã o exis tem s olu ções . Em a lgu m m om en to, podem os a té m es m o en xerga r qu e, s e n ã o exis te s olu çã o, não existe problema.

Au la s com o es ta n ã o s ã o pa la vra s pa ra s erem pon dera da s ; fica m os com a lgo do qu e a con teceu , joga m os fora , depois , e en tã o volta m os pa ra a p rá t ica s im ples e d ireta . Será qu e u m d ia ch ega -rem os a s er m a ra vilh os os e per feitos ? Nã o. Nã o irem os ch ega r em pa r te a lgu m a . Nã o h á pa r te a lgu m a on de ch ega r . J á ch ega m os neste lugar onde não existe diferença entre o som de um pombo e o de uma voz crítica. Nossa tarefa é reconhecer que já chegamos.

CONTENTAMENTO

Com freqü ên cia s ou a cu s a da de en fa t iza r a s d ificu lda des da p rá t ica . Es s a é u m a a cu s a çã o verda deira . Acred item -m e, a s d ifi-cu lda des es tã o a í. Se n ã o a s recon h ecem os , n em o m ot ivo de

Page 212: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

a pa recerem n os é cla ro, n os s a ten dên cia é n os en ga n a r . Ain da a s s im , a rea lida de ú lt im a

n ã o s ó em n os s a p rá t ica s en ta da , m a s

ta m bém em n os s a s vida s

é o con ten ta m en to. Com con -

ten ta m en to n ã o es tou qu eren do d izer felicida de; a s du a s vivên cias n ã o s ã o a m es m a . Felicida de tem u m opos to; con ten ta m en to n ã o. En qu a n to bu s ca m os a felicida de, irem os s er in felizes , porque estamos oscilando de um pólo a outro.

De tem pos em tem pos , viven cia m os o con ten ta m en to. Pode s er por a ca s o, ou n o decu rs o de n os s a p rá t ica s en ta da , ou em ou tra s es fera s de n os s a vida . Depois de u m sesshin, podemos viven cia r o con ten ta m en to por m a is a lgu m tem po. Com o pa s s a r dos a n os de p rá t ica , n os s a vivên cia do con ten ta m en to a p rofu n da -se

qu er d izer , s e en ten derm os a p rá t ica e es t iverm os d is pos tos a realizá-la. A maioria das pessoas não está disposta dessa maneira.

O con ten ta m en to n ã o é a lgo qu e ten h a m os de encontrar. Con ten ta m en to é o qu e s om os s e n ã o es t iverm os p reocu pa dos com a lgu m a ou tra cois a . Qu a n do ten ta m os en con tra r o con ten ta mento, es ta m os s im ples m en te a cres cen ta n do u m pen s a m en to

e, a liá s , a lgo n a da p roveitos o

a o fa to bá s ico do qu e s om os . Nã o temos n eces s ida de de s a ir em bu s ca do con ten ta m en to. Ma s s em dú vida p recis a m os fa zer a lgu m a cois a . A qu es tã o é: o qu ê? Nos s a s vida s n ã o n os oferecem con ten ta m en to e bu s ca m os s em ces s a r u m a solução nesse sentido.

Nos s a s vida s s ã o ba s ica m en te percepçã o. Com es s e term o, qu ero d izer tu do a qu ilo qu e os órgã os dos s en t idos regis t ra m . Vem os , ou vim os , toca m os , s en t im os odores etc. Is s o é a rea lida de da vida . No en ta n to, qu a s e o tem po todo s u bs t itu ím os a percepçã o por a lgu m a ou tra a t ivida de; reves t im o-la com a lgu m a ou tra cois a qu e ch a m a rei de a va lia çã o. Com a va lia çã o n ã o es tou qu eren do d izer u m a a n á lis e ob jet iva e fr ia , com o por exem plo qu a n do exa m in a m os u m a pos en to des orga n iza do e con s idera m os ou a va lia m os com o orga n izá -lo e lim pá -lo. A a va lia çã o a qu e m e refiro é cen tra da n o ego: "Será qu e es te p róxim o ep is ód io de m in h a vida irá t ra zer -m e a lgo de qu e gos to, ou n ã o? Será qu e va i m e m a goa r , ou n ã o? Será a gra dá vel ou des a gra dá vel? Irá torn a r -m e im por ta n te ou ba n a l? Irá t ra zer -m e va n ta gen s m a ter ia is ?". Nos s a n a tu reza é a va lia r a s cois a s des s e jeito. Qu a n to m a is n os en t rega rm os a a va lia ções des s a n a tu reza , m en os con ten ta m en to h a verá em n os s a vida.

Page 213: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

É n otá vel a ra p idez com qu e n os in s ta la m os n a freqü ên cia de a va lia çã o. Ta lvez ven h a m os fu n cion a n do bem , bem m es m o

e

então, de repen te, a lgu ém cr it ica o qu e es ta m os fa zen do. Nu m a fra çã o de s egu n do, s a lta m os pa ra o rein o de n os s os pen samentos. Tem os u m a d is pon ib ilida de es pa n tos a pa ra n os a fu n da r n es s e peculiar espaço de julgamentos dos outros ou de nós. Muito drama va i n is s o e gos ta m os dele, m a is a in da do qu e tem os con s ciên cia . A m en os qu e esse dra m a s e torn e pu n it ivo e p rolon ga do, en t ra m os n ele de bom gra do porqu e, com o s eres h u m a n os , tem os u m a p red ileçã o es s en cia l pelos d ra m a s . De u m a pers pect iva com u m , perm a n ecer n u m m u n do de pu ra s percepções é ba s ta n te entediante.

Va m os s u por qu e s a ím os de fér ia s por u m a s em a n a e qu e a gora es ta m os de volta . Ta lvez ten h a m os n os d iver t ido ou a s s im ju lgu em os . Qu a n do volta m os a o es cr itór io, a ca ixa de t ra ba lh os por fa zer es tá lota da e, es pa lh a dos por toda a m es a , es tã o reca d in h os "en qu a n to você es teve a u s en te". Qu a n do a s pes s oa s nos telefonam, no serviço, isso em geral quer dizer que elas querem a lgu m a cois a . Ta lvez o s erviço qu e pa s s a m os pa ra ou tra pes s oa execu ta r ten h a s ido es qu ecido. Na h ora com eça m os a a va lia r a s itu a çã o: "Qu em fez es s a ba gu n ça ?"; "Qu em fez corpo m ole?"; "Por qu e é qu e ela es tá telefon a n do? Apos to qu e é a m es m a velh a h is tór ia de s em pre"; "Ma s a res pon s a b ilida de é deles a fin a l. Por qu e es tã o m e liga n do?". Da m es m a m a n eira , n o fin a l de u m sesshin podem os viven cia r u m flu xo de vida em con ten ta m en to. Depois n os es pa n ta m os de ele s e d is pers a r . Em bora n ã o ten h a s e dispersado, alguma coisa aconteceu: uma nuvem tolda a clareza.

En qu a n to n ã o n os derm os con ta de qu e con ten ta m en to é ju s ta m en te o qu e es tá a con tecen do, s em con s idera r a n os s a op in iã o s obre is s o, irem os ter a pen a s u m redu zido m on ta n te de contentam en to. Qu a n do perm a n ecem os com a percepçã o em vez de n os perderm os em a va lia ções , o con ten ta m en to pode s er a pes s oa qu e n ã o fez o s erviço en qu a n to es tá va m os de fér ia s . Pode s er o in teres s a n te en con tro a o telefon e com toda s a qu ela s pes s oa s pa ra qu em tem os de liga r , s eja lá o qu e es teja m qu eren do. Contentam en to pode s er a dor de ga rga n ta qu e es ta m os s en t in do; pode s er a dem is s ã o; pode s er o in es pera do per íodo de t ra ba lh o extra . Pode s er o exa m e de m a tem á t ica qu e p recis a m os fa zer , ou lida r com a ex-es pos a qu e qu er u m a pen s ã o m a ior . Em gera l n ã o

Page 214: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

cos tu m a m os pen s a r qu e es s a s s itu a ções s eja m fon tes de contentamento.

A p rá t ica d iz res peito a lida r com o s ofr im en to. Nã o qu e o s ofr im en to s eja im por ta n te ou va lios o em s i, m a s é o s ofr im en to qu e n os en s in a . É o ou tro la do da vida , e en qu a n to n ã o con s e-gu irm os en xerga r todos os la dos da vida , n ã o irá h a ver n en h u m con ten ta m en to. Pa ra s er h on es ta , o sesshin é u m s ofr im en to con trola do. Tem os a opor tu n ida de de en ca ra r n os s o s ofr im en to n u m a s itu a çã o p rá t ica . Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , todos os a t r ibu tos t ra d icion a is de u m a boa a lu n a zen s ã o pos tos em xequ e: res is tên cia , h u m ilda de, pa ciên cia , com pa ixã o. Es s a s coisas pa recem fa n tá s t ica s n os livros , m a s n ã o s ã o tã o a t ra en tes qu a n do es ta m os com dor . É por is s o qu e o sesshin deve n ã o s er fá cil: tem os de a p ren der a es ta r com o n os s o s ofr im en to e a in da a s s im a gir da m a n eira a p ropr ia da . Qu a n do a pren dem os a es ta r com n os s a s vivên cia s , s eja m ela s qu a is forem , tem os m a is con sciência do con ten ta m en to qu e é a n os s a vida . O sesshin é a opor tu n ida de de s e a p ren der es s a liçã o. Qu a n do es ta m os p repa ra dos pa ra a p rá t ica , o s ofr im en to pode s er u m a bên çã o. Nen h u m de n ós qu er recon h ecer es s e fa to. Sem dú vida eu ten to evita r o s ofr im en to; exis tem m u ita s cois a s qu e n ã o qu ero qu e a con teça m n a m in h a vida . Apes a r d is s o, s e n ã o con s egu irm os a p ren der a s er a n os s a exper iên cia m es m o qu a n do ela dói, ja m a is con h ecerem os o con ten ta m en to. O con ten ta m en to é s er a s circu n s tâ n cia s de n os s a vida, sejam elas quais forem. Se alguém agiu injustamente conosco, é is s o. Se a lgu ém es tá con ta n do m en t ira s a n os s o res peito, também é isso.

A r iqu eza m a ter ia l dos Es ta dos Un idos d ificu lta , em cer to s en t ido, qu e viven ciem os o con ten ta m en to bá s ico qu e s om os . As pes s oa s qu e via ja m pa ra a ín d ia à s vezes rela ta m qu e, a o la do da en orm e pobreza , exis te u m con ten ta m en to ext ra ord in á r io. De-fron ta da s com a vida e a m or te o tem po todo, a s pes s oa s a p ren -dera m a lgo qu e pa ra n ós a qu i é m u ito d ifícil: a p ren dera m a a p recia r ca da m om en to. Nã o n os s a ím os m u ito bem n es s a h a b i-lida de. Nos s a p rópr ia p ros per ida de

toda s a s cois a s qu e da m os com o cer ta s e toda s a qu ela s qu e qu erem os a in da m a is

de cer to m odo a ge com o u m obs tá cu lo. Exis tem ou tros obs tá cu los , a in da m a is elem en ta res , m a s n os s a a bu n dâ n cia m a ter ia l é com cer teza uma parte do problema.

Page 215: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Na prá t ica , volta m os vá r ia s vezes à percepçã o, a a pen a s s en ta r . A p rá t ica é s ó ou vir , s ó ver , s ó s en t ir . Is so é o qu e os cr is tã os ch a m a m de a fa ce de Deu s : s im ples m en te a colh er o m u n do ta l com o ele s e a p res en ta . Sen t im os o n os s o corpo, ou vim os os ca r ros e os pá s s a ros . E tu do o qu e exis te. Porém n ã o n os d is pom os a perm a n ecer n es s e es pa ço por m a is do qu e u n s pou cos s egu n dos . Logo n os des via m os , pa ra lem bra r o qu e a con teceu con os co n a s em a n a pa s s a da , ou pen s a r n o qu e irá a con tecer n a s em a n a qu e vem . Pen s a m os de form a obs es s iva n a s pes s oa s qu e n os es tã o da n do t ra ba lh o, ou n o qu e es ta m os rea liza n do p rofis s ion a lm en te, ou em qu a lqu er ou tra cois a . Nã o h á n a da de er ra do com es s a s idéia s qu e p ipoca m em n os s a m en te, m a s s e n os m a n t iverm os p res os a ela s fica rem os a tola dos n o m u n do da s a va lia ções efetu a da s s egu n do o n os s o pon to de vis ta a u tocen tra do. A m a ior ia da s pes s oa s pa s s a a vida toda den tro dessa perspectiva.

É n a tu ra l pen s a r : "Se eu n ã o t ives s e u m com pa n h eiro tã o d ifícil (ou u m a colega de qu a r to tã o d ifícil ou qu a lqu er ou tra cois a tã o d ifícil), m in h a vida s er ia m u ito m a is ca lm a . Eu s er ia m u ito m a is ca pa z de a p recia r m in h a vida ". Pode s er qu e is s o des s e cer to por u m breve per íodo. Por a lgu m tem po a vida pa recer ia m elh or , s em dú vida . En treta n to es s e con for to n ã o é tã o va lios o qu a n to en ca ra r a qu ilo qu e n os con tra r ia , porqu e é es s a p rópr ia con tra r ieda de (ou s eja , n os s a ten dên cia a n os m a n ter a pega dos a os n os s os d ra m a s , a n os en volver n eles com a m en te a celera da e a s em oções a todo va por) qu e con s t itu i o obs tá cu lo va loros o. Nã o exis te u m verda deiro con ten ta m en to n u m a vida a s s im ; a liá s , n en h u m con ten ta m en to. Por is s o fu gim os da s d ificu lda des e ten ta m os elim in a r a lgu m a cois a : o com pa n h eiro, a colega de qu a r to, o qu e qu er qu e s eja , de m odo a con s egu irm os en con tra r a qu ele lu ga r per feito em qu e n a da pode' n os con tra r ia r . Algu ém tem u m lu ga r a s s im ? On de poder ia s er? O qu e poder ia s er -lhe aproxim a do? Há m u itos a n os , eu cos tu m a va m e con ceder dez m in u tos todo d ia pa ra deva n ea r a res peito de u m a ilh a t rop ica l e todo d ia eu a r ru m a va u m pou co m a is a m in h a ca ba n a . Min h a vida de fa n ta s ia fica va ca da d ia m elh or . Até qu e u m d ia en tã o eu já es ta va com tu do de m a is con for tá vel. Alim en tos m a ra vilh os os s im ples m en te a pa recia m com o por m ila gre, e a qu ele m a r en ca n ta dor e u m a la goa , per feita pa ra s e n a da r , a o la do da ca ba n a . E ót im o deva n ea r s e exis te u m lim ite de tem po pa ra is s o. Porém m eu s on h o n ã o poder ia exis t ir , exceto n a m in h a m en te. Nã o h á

Page 216: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

lu ga r n a Ter ra on de pos s a m os n os ver livres de n ós m es m os . Se es t ivés s em os s en ta dos n u m a ca vern a m ed ita n do, a in da a s s im es ta r ía m os pen s a n do a res peito de a lgu m a cois a : "Ma s qu e a t itu de n obre a m in h a de s en ta r -m e n es ta ca vern a !". E depois de m a is a lgu n s in s ta n tes : "Qu e des cu lpa pos s o in ven ta r pa ra s a ir da qu i e is s o n ã o fica r m a l?". Se pa ra rm os den tro de n ós e des cobr irm os o que de fato estamos sentindo ou pensando, iremos notar mesmo qu e es teja m os t ra ba lh a n do du ro

u m fin o véu de p reocu pa çã o

egocen tra da a res peito de n os s a a t ivida de. A ilu m in a çã o é s im ples m en te n ã o fa zer is s o. Ilu m in a çã o é fa zer o qu e es ta m os fazendo

tota lm en te

em rea çã o à s cois a s ta l com o ela s n os

ch ega m . O term o a tu a l é "flu ir". O con ten ta m en to é a pen a s is s o: a lgo vem a té n ós ; eu o percebo. Algo é n eces s á r io, eu o fa ço; depois ou tra cois a , e m a is ou tra . Ocu po u m a pa r te do tem po da n do u m a volta a pé ou con vers a n do com m eu s a m igos . Nã o h á p rob lem a s numa vida vivida dessa maneira. O contentamento nunca cessaria, a m en os qu e eu .o in ter rom pes s e fa zen do a va lia ções : rea gin do a os acontecim en tos com o s e fos s em prob lem a s , recr im in a n do, rejeita n do, es ga rça n do-m e: "Nã o qu ero fa zer is s o". Qu a n do o qu e a con tece n ã o s e a ju s ta à m in h a idéia do qu e eu qu ero fa zer , ten h o u m prob lem a . Se a a t ivida de es tá en t re a s qu e a p recio, ta m bém pos s o des provê-la de con ten ta m en to. Vocês con s egu ira m pen s a r em algum exemplo?

ALUNO: Eu tento ser perfeito.

ALUNA: Eu penso que fazer isso me toma importante.

ALUNA: Eu pa ro de p res ta r a ten çã o e s ó fico pen s a n do em terminar o que estou fazendo.

ALUNO: Eu com eço a m e com pa ra r com os ou tros e en t ro em competição.

ALUNO: Eu me preocupo se estou fazendo direito.

ALUNA: Começo a me preocupar que isso possa acabar.

JOKO: Bom . E a ba ixo do n ível de con s ciên cia es tá n os s o profunda m en te a r ra iga do con d icion a m en to, os m ot ivos in con s cien tes qu e n os leva m a fa zer a qu ilo qu e fa zem os . Com o tem po toda s es s a s cois a s vêm à ton a . Mes m o qu e es teja m os n u m a a t ivida de de qu e gos ta m os , m es m o qu e o com pa n h eiro s eja a lgu ém de qu em ba s ica m en te gos ta m os , a n a tu reza do s er h u m a n o é contin u a r ten ta n do a jeita r a s cois a s , o qu e leva em bora o

Page 217: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

contentam en to. Qu a lqu er a va lia çã o a u tocen tra da de u m a s itu a çã o irá n u b la r a percepçã o pu ra , qu e é o p rópr io con ten ta m en to. Qua n do es s es pen s a m en tos s u rgem , a pen a s os vem os e deixa m os que se vão, vemos os pensamentos e permitimos que se vão, vemos os pen s a m en tos e perm it im os qu e s e vã o. Regres s a m os à vivên cia da qu ilo qu e es t iver a con tecen do. É is s o qu e coloca d ia n te de n ós a perspectiva do contentamento.

A boa p rá t ica s en ta da n ã o s ign ifica qu e de s ú b ito tem os u m es pa ço m u ito cla ro n o qu a l n a da a con tece. Oca s ion a lm en te is s o pode a con tecer , m a s n ã o é im por ta n te. Pa ra u m a boa p rá t ica s en ta da é n eces s á r io qu e es teja m os ca da vez m a is d is pos tos a tom a r con s ciên cia do qu e es tá a con tecen do. Es ta rm os d is pon íveis pa ra perceber con s cien tem en te qu e: "É s im , n ã o fa ço m a is n a da s en ã o pen s a r n o Ta it i. Nã o é in teres s a n te?"; ou : "Term in ei com o m eu n a m ora do h á s eis m es es e o qu e es tou fa zen do? Todos os m eu s pen s a m en tos es tã o p res os n is s o. Ma s qu e in teres sante!". Em oções a cu m u la m -s e em fu n çã o des s e t ipo de pen s a mento

depres s ã o, p reocu pa çã o, a n s ieda de

e con t in u a m os a tola dos em nossas obsessões. Onde está o contentamento?

Para a maioria, permanecer no momento presente e continuar s e lem bra n do de qu e é is s o qu e viem os fa zer a qu i é s ofrer , lem os de es ta r d is pos tos a efetu a r es s a p rá t ica n ã o s ó qu a n do es ta m os s en ta dos , m a s pelo res to de n os s a s vida s . Se o fizerm os , en tã o a u m en ta rem os a porcen ta gem de vivên cia s de con ten ta m en to em n os s a vida . Pa ra ta n to, tem os de pa ga r u m preço, porém . Algu m a s pes s oa s o pa ga rã o, ou tra s n ã o. Às vezes , a s pes s oa s im a gin a m qu e con s igo p rodu zir con ten ta m en to pa ra ela s . E la s a ch a m qu e eu tenho alguma espécie de mágica. Ma s n ã o con s igo fa zer n a da pelos ou tros , exceto d izer -lh es o qu e fa zer . Nã o pos s o rea lizá -lo por m a is ninguém, apenas para mim mesma. É por isso que, se a prática for m u ito fa cilita da e n ã o exis t ir u m preço a s er pa go, n u n ca s equ er vira rem os a ch a ve n a fechadu ra des s a por ta . Se con t in u a rm os em nossa vida fugindo de tudo o que nos desagrada, essa chave nunca se movimentará.

Nã o devem os n os força r com exa gero. Depen den do de n os s a ca pa cida de, podem os p recis a r recu a r , ret roceder . Ma s , s e recu a rm os , podem os es ta r cer tos de qu e n os s os p rob lem a s per -m a n ecerã o fielm en te a o n os s o la do. Qu a n do "fu gim os " de n ossos prob lem a s , eles n os a com pa n h a m s em h es ita çã o. E les gos ta m de n ós , e n ã o n os a ba n don a rã o en qu a n to n ã o lh es derm os u m a

Page 218: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

verda deira a ten çã o. Dizem os qu e qu erem os s er u n os com o m u n do, qu a n do o qu e qu erem os n a rea lida de é qu e o m u n do n os a gra de. Pa ra qu e pos s a m os es ta r "em u n iã o com o m u n do", devem os pa s s a r vá r ios a n os n u m a p rá t ica m et icu los a , ca va n do e es cu lp in do. Nã o exis tem a ta lh os ou ca m in h os qu e con du zem m a is depres s a a um contentamento e sossego relativos sem que se pague um preço. Devem os en xerga r qu a n do es ta m os em ba ra lh a dos em n os s a s qu es tões pes s oa is , a pen a s obs erva r es s e m ovim en to in tern o, e depois volta r pa ra es te m u n do da s percepções pu ra s , o qu e n ã o n os in teres s a de m odo n en h u m , qu a s e n u n ca . Su zu k i Ros h i d is s e cer ta vez: "Do pon to de vis ta com u m , es ta r ilu m in a do pa rece a lgo m u ito m on óton o". Nã o exis te n is s o d ra m a n en h u m ; é a pen a s es ta r ali.

Difer im os em term os de n os s a ca pa cida de de perm a n ecer com a s n os s a s percepções . Ma s todos tem os es s a ca pa cida de. E la pode s e m a n ifes ta r em n íveis ligeira m en te d iferen tes , m a s todos tem os es s a ca pa cida de. Um a vez qu e s om os h u m a n os , podem os es ta r des per tos e podem os s em pre a u m en ta r a qu a n t ida de de tem po em qu e perm a n ecem os des per tos . Qu a n do des per ta m os , o m om en to s e t ra n s form a : com eça a da r u m a s en s a çã o gos tos a , a n os con fer ir en ergia pa ra fa zer o qu e vem em s egu ida . Es s a ca pa cida de s em pre pode a u m en ta r . Devem os es ta r con s cien tes do qu e s om os n es te s egu n do. Se es t iverm os com ra iva , tem os de s a ber d is s o. Tem os de s en t i-la . Tem os de ver os pen s a m en tos a í en volvidos . Se es ta m os en ted ia dos , is s o é, s em s om bra de dú vida , a lgo a s er pes qu is a do. Se n os s en t im os des es t imulados, p recis a m os perceber is s o. Se es t iverm os n a s m a lh a s dos ju lga m en tos qu e ela bora m os ou da con vicçã o de es ta rm os exclu s iva m en te com a ra zã o, p recis a m os ter is s o p res en te. Se n ã o virmos esses conteúdos, eles roubam o espetáculo.

Pa ra res u m ir : qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , es tã o ocorren do du a s a t ivida des : u m a é a percepçã o pu ra , o m ero sentar-s e a qu i. O con teú do des s a percepçã o pode s er qu a lqu er cois a . A ou tra a t ivida de é a a va lia çã o: s a lta r da percepçã o pu ra para os ju lga m en tos a u tocen tra dos a res peito de qu a lqu er cois a , qu a n do n os s en ta m os pa ra a p rá t ica , lida m os com es s a ten s ã o, com es s a con tra çã o e com es s e pen s a m en to repet it ivo. Tern os de enfrentar nosso condicionamento residual: é o único caminho até o con ten ta m en to. Lida m os com o qu e es tá ocorren do, exa ta m en te aqui, bem agora.

Page 219: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

CAOS E DESLUMBRAMENTO

Qu a n do con vers o com os a lu n os , ou ço m u ita s cois a s a respeito a e por qu e s e s en ta m pa ra p ra t ica r : "Qu ero m e con h ecer melhor"; "Quero que minha vida fique mais integrada"; "Quero ficar m a is s a u dá vel"; "Qu ero con h ecer o u n ivers o"; "Qu ero s a ber o qu e é a vida "; "Es tou s ó"; "Qu ero u m a rela çã o"; "Qu ero qu e m in h a s relações fiquem melhores". Existem infinitas variações para essas e ou tra s m ot iva ções pa ra u m a p rá t ica . Todos es tã o a bs olu ta m en te bem , n ã o h á n a da de er ra do com n en h u m a dela s . Ma s , s e pensamos qu e a fin a lida de de s en ta r e p ra t ica r é a t in gir es s a s cois a s , en tã o n os equ ivoca m os qu a n to a o qu e es ta m os fa zen do. É verdade que temos de começar a nos conhecer e a conhecer nossas em oções e com o ela s a tu a m . Precis a m os perceber a rela çã o en tre n os s a s em oções e n os s a s a ú de fís ica . Tem os de con s idera r a n os s a fa lta de in tegra çã o e tu do o qu e es s a n ã o-in tegra çã o im plica . Sen ta r e p ra t ica r a t in gem todos os a s pectos de n os s a s vida s ; a pes a r d is s o, qu a n do n os es qu ecem os de u m a s ó cois a , esquecemo-n os de tu do. Sem ela , n a da m a is fu n cion a . Difícil denominá-la . Poder ía m os ch a m á -la des lu m bra m en to, a s s om bro. Qu a n do n os es qu ecem os de n os m a ra vilh a r d ia n te da qu ilo com qu e depa ra m os , en tã o es ta m os em a pu ros , e n os s a vida n ã o acontece.

É verda de qu e a t ra vés da p rá t ica n eces s ita m os efetu a r u m bom con ta to com a qu ela s cois a s qu e m en cion a m os a n tes : em oções, ten s ã o, s a ú de

en tre ou tros fa tores . En qu a n to n ã o es t ivermos h a b itu a dos a fa zer es s a s liga ções , o des lu m bra m en to n ã o a pa rece. Nos s a liga çã o, porém , n ã o tem de s er com pleta ; n o en ta n to, s ó qu a n do n ã o es ta m os n os a foba n do por ca u s a des s a s cois a s é qu e en xerga m os o des lu m bra m en to. Por exem plo: s e es tou com a lgu ém que me irrita, esqueci o deslumbramento que ela é. Outro exemplo: a m a ra vilh a de fa zer u m s erviço qu e n ã o qu ero fa zer . On tem , decid i lim pa r a qu ele es pa ço qu e fica em ba ixo da p ia . Es s a é u m a cois a qu e p refiro es qu ecer de fa zer . No en ta n to, h a via n is s o ta m bém u m des lu m bra m en to: d ia n te da qu ela s pa r t ícu la s de s u jeira e ou tra s cois a s qu e en con trei. O des lu m bramento n ã o é a lgo d iferen te da qu ilo qu e fa zem os . Pen s a m os qu e o des lu m bra m en to é u m es ta do extá t ico, e o des lu m bra m en to pode

Page 220: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s er m es m o u m êxta s e. Dir igir pela s Mon ta n h a s Roch os a s com o pa n ora m a do Gra n de Ca n yon

es s a s cen a s s ã o tã o es peta cu la res

qu e por u m m om en to vem os o des lu m bra m en to qu e h á n is s o. Es s a s vivên cia s podem con ter u m a poderos a d im en s ã o em ocion a l. Ma s o des lu m bra m en to n ã o é s em pre em ocion a l; n em n ós con s egu ir ía m os pa s s a r todo o n os s o tem po em ta l es ta do emocional.

Podem os pen s a r qu e o des lu m bra m en to s ó é en con t ra do em cer ta s a t ivida des es pecia is . "Ta lvez os a r t is ta s e os m ú s icos a ch em fácil enxergar o que é deslumbrante. Mas sou um contador. Onde é qu e es tá o des lu m bra m en to d is s o?" Mes m o qu e os m ú s icos e a r t is ta s en t rem de fa to em con ta to com o des lu m bra m en to em s u a s á rea s es pecífica s , podem n ã o vê-lo em ou tra s . Podem os , por exem plo, ter a im pres s ã o de qu e os fís icos e ou tros cien t is ta s es tã o m u ito d is ta n tes do des lu m bra m en to da vida . No en ta n to, con h eci a lgu n s fís icos e des cobr i qu e é m u ito im por ta n te pa ra eles qu e u m a s olu çã o s eja elega n te. E is a í u m a pa la vra in teres s a n te de s u rgir n o m eio de u m m on te de m a tem á t icos e com pu ta dores . Cer ta vez pergu n tei a u m fís ico por qu e ele u s a va es s a pa la vra . E le d is s e a pen a s : "Toda boa s olu çã o tem de s er elega n te". Qu a n do lh e pergu n tei o qu e is s o qu er ia d izer , ele res pon deu qu e elegâ n cia s ign ifica ir deca n ta n do a té a es s ên cia , pa ra qu e n ã o s e fiqu e com cois a s ext ra s . Is s o con tém u m des lu m bra m en to. A s olu çã o pode n ã o s er n em verda deira ; os fís icos lida m com teor ia s . Em cer to s en t ido, n en h u m a fórm u la é verda deira . Nã o h á n a da de "verda deiro" ta m bém em n en h u m rela cion a m en to. Ma s , n es te m om en to, u m rela cion a m en to pode s er s im ples m en te des lu m bra n te. Se n ã o n os da m os con ta d is s o, n ã o n os da m os conta do que é a nossa prática.

A p rá t ica n ã o é es ta r s im ples m en te in tegra do ou em bom es ta do de s a ú de, ou s er u m a boa pes s oa , em bora toda s es s a s cois a s fa ça m pa r te da p rá t ica . A p rá t ica d iz res peito a o des lu m -bra m en to. Se você qu er a ver igu a r com o a n da a s u a p rá t ica , n a próxim a vez qu e a lgo a con tecer em s u a vida qu e você n ã o con s egu ir s u por ta r , pergu n te-s e: "On de es tá a qu i o des lu m bra -m en to?" É is s o qu e cres ce con form e va m os p ra t ica n do. Au m en ta a n os s a ca pa cida de de ver o des lu m bra m en to da vida , s eja o qu e for qu e s e a p res en te, e in depen den te de gos ta rm os ou n ã o. Por exem plo, qu a n do en t ra m os n u m a rela çã o com es s a pers pectiva, podem os d izer : "Eu a m o você pelo qu e você é e a m o você pelo qu e

Page 221: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

você não é". Em lugar de encontrar os defeitos "Você fala demais. Você n ã o fa la n a da . Você deixa s u a s rou pa s por toda pa r te. Você n u n ca lim pa a m es a da cozin h a . Você m e ir r ita o tem po todo" , o deslumbramento brilha e atravessa as camadas. "Eu amo você pelo que você é e amo você pelo que você não é."

Como sabermos se a nossa prática é uma prática real? Só por u m a cois a : vem os ca da vez m a is o qu e é des lu m bra n te. Qu a l é o des lu m bra m en to? Eu n ã o s ei. Nã o podem os s a ber es s a s cois a s a t ra vés do pen s a m en to. Ma s s em pre s a bem os qu a n do é verda deiro.

Às vezes n ã o con s igo en xerga r de jeito n en h u m o qu e h á de des lu m bra n te, em bora eu o con s iga m u ito m a is do qu e h á cin co anos. Uma prática verdadeira desloca-se ao longo de um continuum a ca m in h o de u m teor ca da vez m a ior de percepçã o con s cien te do des lu m bra m en to. Nã o es tou d izen do viver n u m es ta do de gra ça , de a lgu m a es pécie. Pode s er en xerga r o des lu m bra m en to de u m a pessoa de quem não gostamos. "Mas que coisa maravilhosa ela é exa ta m en te com o ela é!" Ou podem os en con trá -lo em a lgu ém qu e tem u m a doen ça gra ve. Es s a pes s oa pode ter u m a p res en ça tã o poderosa qu e ilu m in a todo o es pa ço à s u a volta , de m a n eira deslumbrante.

Con form e você va i pa s s a n do pelo d ia , a t ra ves s a n do s u a s pequ en a s a dvers ida des e d ificu lda des , pergu n te-s e: "On de es tá o des lu m bra m en to?". Sem pre es ta rá a li. O des lu m bra m en to é a n a tu reza da vida em s i. Se n ã o o s en t im os , s im ples m en te con t i-n u a m os com a n os s a p rá t ica ; n ã o podem os n os força r a s en t i-lo. Só podem os t ra ba lh a r com o obs tá cu lo qu e es tá à n os s a fren te. O obs tá cu lo é cr ia do por n ós ; n ã o é ca u s a do pelo qu e a con teceu con os co. Is s o fa z pa r te do des lu m bra m en to ta m bém . Se vocês es tã o en ten den do do qu e es tou fa la n do, ót im o. Se n ã o s a bem do qu e es tou fa la n do, ót im o ta m bém . Am ba s a s res pos ta s fa zem pa r te do deslumbramento: saber ou não saber; de todo modo, ótimo.

ALUNO: Ten h o pen s a do ba s ta n te a res peito do con flito com o Iraque. Não consigo enxergar nada deslumbrante nisso.

ALUNO: Nã o pos s o evita r , m a s a ch o qu e es s e con flito é h or r ível. Por ba ixo des s e s en t im en to s in to m edo. Nã o qu erem os en xerga r o deslumbramento porque estamos atolados no medo.

JOKO: Sim, no geral isso é verdade.

Page 222: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNA: Qu a n do pen s o n o con flito, loca lizo u m cer to deslumbramento na perspectiva de uma maior unificação mundial.

JOKO: Sim . Com o pes s oa , olh o com h orror pa ra es s e con flito. Ma s o ca os é em s i in teres s a n te. Na d is cip lin a da fís ica , exis te u m ca m po rela t iva m en te n ovo ch a m a do a teor ia do ca os . A gu er ra es tá p rodu zin do o ca os . Com ele s u rgem n ova s pos s ib ilida des . Tu do es tá s en do a ba la do e, de a gora em d ia n te, todo o Or ien te Médio irá s er d iferen te. Nos s os rela cion a m en tos com todos os en volvidos s erã o d iferen tes . Os rela cion a m en tos deles com toda s a s cois a s irã o s er d iferen tes . Nã o podem os en xerga r ordem n o ca os porqu e s om os h u m a n os . Nã o é qu e o ca os s eja n eces s a r ia m en te ru im ; a té m es m o n o h orror exis te u m des lu m bramento. Des lu m bra n te é o qu e es tá a con tecen do. E n ã o n os ca be ju lga r ou a va lia r is s o. Cla ro qu e s e eu pu des s e im ped ir a m a ta n ça eu o fa r ia . Is s o n ã o fa z n en h u m s en t ido; é s ó o ca os , e, n o en ta n to, o ca os n ã o é ca os

é des lu m bra m en to. Do ca os em erge u m a n ova ordem , qu e por s u a vez s e torn a ca os . Is so é a vida . Pa ra n ós , pa z é es ta r d is pon ível pa ra perm a n ecer com o ca os . Is s o n ã o qu er d izer qu e n ã o a gim os de m odo a lgu m . Ma s a té a n os s a a çã o fa z pa r te do ca os . Sem pre tem os dois pon tos de vis ta : o pes s oa l e es s e qu e s e des en volve a pa r t ir da p rá t ica s en ta da , qu e é o des lu m bra m en to. Por exem plo: é ter r ível qu e m ilh a res de pes s oa s ten h a m s ido m or ta s n a ú lt im a gu er ra ; m a s do pon to de vis ta do bem -es ta r da Ter ra , m en os pes s oa s es tã o m elh or . A Terra já tem m u ita gen te. Se eu s ou u m a da s pes s oa s qu e m or rera m ou s e con h eço a lgu ém qu e foi m or to, cla ro qu e, pes s oa lm en te, is s o pa ra m im foi u m des a s t re. Porém , a vida n a Ter ra n ã o pode s er m a n t ida n u m a pos içã o fixa . Sa dda m Hu s s ein é a p róxim a peça n o ta bu leiro; con form e ele a n da , todos a n da m , e o ca os s obrevirá . Is s o é bom ou ru im ? Nen h u m dos dois . É só o que é.

ALUNO: É com o u m a célu la de câ n cer : qu erem os redu zir es s a célula porque vai tentar prejudicar o corpo todo.

JOKO: Mas a célula de câncer não vê a coisa desse jeito. Ela só está fazendo o que está fazendo.

ALUNA: Nós qu erem os tom a r p rovidên cia s pa ra fa zer a lgo a respeito do câ n cer ; n o en ta n to, n u m determ in a do m om en to, ta m -bém podemos nos dar conta de seu deslumbramento.

JOKO: Podem os es ta r lu ta n do con tra o câ n cer , fa zen do tu do o qu e pu derm os pa ra s obreviver e, a o m es m o tem po, podem os s en t ir

Page 223: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

o des lu m bra m en to des te p roces s o qu e n ós s om os . Se eu t ives s e câ n cer eu lu ta r ia a té o ú lt im o fio de força . Sou u m a lu ta dora . Ao mesmo tempo, o deslumbramento está sempre presente.

ALUNA: É com o s e a ú lt im a cois a qu e eu qu is es s e ver fos s e o deslumbramento.

JOKO: Você tem ra zã o. A ú lt im a cois a qu e qu erem os en xerga r é o des lu m bra m en to, porqu e é h u m ilh a n te; s em pre n os s en t im os in s u lta dos em cer ta m ed ida . Tu do n a vida é des lu m bra m en to, m a s , como a vida ta l com o n os a pa rece ra ra m en te n os con vém , n ã o con s egu im os en xerga r o des lu m bra m en to. En tã o fica m os n os in da ga n do por qu e s om os tã o in felizes . Aqu ilo qu e es ta m os ba n in do de n os s a s vida s é o qu e rea lm en te qu erem os e necessitamos.

ALUNA: Pen s a n do n o n ovo equ ilíb r io de força s n o Or ien te Médio, lem bro da s ten s ões ext ra s qu e recen tem en te pes a ra m s obre minhas relações. Estamos passando por nossas pequenas batalhas e m u da n ça s , e es ta m os t ra ba lh a n do em prol de u m n ovo equ ilíb r io de força s . E com o u m m icrocos m o do qu e es tá a con tecen do em vá r ia s pa r tes do m u n do. E obs erva n do o con flito do Or ien te Médio con s igo en ten der com u m pou co m a is de cla reza o qu e es tá acontecendo comigo neste exato momento, em casa.

ALUNO: Qu a n do m orei n o Or ien te Médio por t rês a n os , u m pon to de vis ta dos á ra bes a pa receu -m e com m u ita n it idez. Nes te pa ís , gra n de pa r te do pet róleo vem da qu i m es m o, n o en ta n to, desperd iça m os u m a boa pa r te do qu e u s a m os . Tem os u m a n eces s ida de a n s ios a de pet róleo. Nos s a â n s ia es tá fora de con trole, e es ta m os en tã o u s a n do os recu rs os de ou trem pa ra s a t is fa zer a n os s a p róp r ia â n s ia . Fa z pa r te do ca os . Há u m a m a n eira de ver tudo isso, que os árabes têm, e que é realmente válida.

ALUNA: Há pou co tem po voltei de u m a via gem à Áfr ica . Enquanto via ja va por lá à s vezes via h om en s á ra bes com s eu s m a n tos es voa ça n tes . Obs ervei com o eu rea gia a eles , ba s ea n do-me n a s cois a s qu e m e h a via m s ido d ita s a res peito de com o a lgu m a s cu ltu ra s á ra bes s ã o opres s iva s em rela çã o à s m u lh eres . Sen t ia m eu corpo fica n do ten s o. Um d ia , en qu a n to eu es ta va pa s s a n do pelo cor redor de u m a viã o, es ba r rei n u m des s es á ra bes e ele m e d is s e: "Des cu lpe-m e", olh a n do-m e n os olh os e s or r in do. Na quele m om en to a lgo a b r iu -s e pa ra m im e eu o vi a pen a s com o u m a pessoa e não como um árabe.

Page 224: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Mu ita s vezes fico fa s cin a do por todo o ca os qu e m e circu n da . Obs ervo os con flitos em m in h a p rópr ia m en te, e ou tra s pes s oa s fa la m pa ra m im da s cois a s qu e es tã o a t ra ves s a n do, e depois olh o pa ra a s pes s oa s qu e es tã o a ca m in h o do t ra ba lh o n o cen tro de Los An geles . É u m a con fu s ã o im en s a , e p ra t ica m en te todo m u n do es tá in do pa ra o t ra ba lh o. É qu a s e qu e in a cred itá vel! Im a gin a r a lgu ém em a lgu m lu ga r ten ta n do coreogra fa r a qu ilo tudo

"An da , a n da , a n da !"

s eria tota lm en te im pos s ível. Tu do

pa rece com pr im ido a pon to de exp lod ir . No en ta n to, em ra zã o da ext rem a p res s ã o, a s pes s oa s recu a m u m pou co e deixa m os ou tros en t ra r , e tu do volta a flu ir . É fa s cin a n te com o a fin a l a qu ilo tu do acaba funcionando.

JOKO: Uma vez enquanto voava até Los Angeles eu estava con-vers a n do com u m pa s s a geiro qu e era p la n eja dor u rba n o. Ele olh ou pela ja n elin h a pa ra a s a u top is ta s e os ed ifícios e d is s e: "Nã o va i con s egu ir fica r des s e jeito por m u ito m a is tem po!". Ma s a s cois a s a ca ba m s e m a n ten do em pé porqu e exis te u m a ju s ta m en to em andamento. De alguma maneira as pessoas se adaptam.

ALUNO: Eu obs ervo qu e rela xo por ca u s a da in evita b ilida de do caos

e ta lvez ou tros fa ça m is s o ta m bém . Ta lvez s eja is s o qu e im peça a cida de de torn a r -s e m a is m a lu ca do qu e ela já é. Qu a lqu er pes s oa qu e d ir ija por a lgu m tem po n u m a a u top is ta ou n u m a ru a en ga r ra fa da p recis a rea lm en te deixa r a s cois a s a con te-cerem pa ra a gü en ta r a s itu a çã o. É u m m om en to n es s a cida de fren ét ica em qu e a s pes s oa s têm de ceder , de deixa r qu e a con teça o que tiver de acontecer. É uma espécie de jogo espiritual.

JOKO: Na s lu ta s do Or ien te Médio e de ou tra s pa r tes vem os o res u lta do fin a l da violên cia in tern a de todos n ós . Im a gin a m os qu e podem os res olver os nossos problemas com lu tas extern a s e gu er ra s . Ga s ta m os s om a s in a cred itá veis em a rm a m en tos ; n o en -ta n to, os ín d ices de m or ta lida de in fa n t il es tã o en t re os m a is a ltos n o m u n do in du s t r ia liza do. Is s o ta m bém fa z pa r te do ca os . Tu do bem adotar um ponto de vista pessoal e tentar mudar essas coisas, m a s n os s os pon tos de vis ta pes s oa is p recis a m s er equ ilibrados pelo recon h ecim en to de qu e m ilh ões de cois a s

m u ita s m a is do qu e con s egu irem os u m d ia en ten der

es tã o s e a gru pando, mudando e movimentando-se o tempo todo.

En qu a n to n ã o en ca ra rm os a n os s a p rópr ia s itu a çã o, com todo o ca os qu e exis te em n os s a s p rópr ia s vida s , n ã o poderem os

Page 225: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

fa zer m u ito, ou s er eficien tes em ou tros lu ga res . Va i h a ver ca os de qu a lqu er jeito, m a s , qu a n do n ós o en ca ra m os , vem o-lo por u m ou tro p r is m a . Nã o qu erem os vê-lo, n o en ta n to. Qu erem os viver den tro da s ca ixa s qu e cr ia m os e a pen a s con t in u a r redeco-ra n do a s pa redes , em vez de s a ir pela por ta . Rea lm en te a dora m os a s n os s a s p r is ões ; es s a é u m a ra zã o pela qu a l a p rá t ica é tã o d ifícil. Resistência é a própria natureza do ser humano.

Um a pes s oa com o Sa dda m Hu s s ein n ã o a pa rece do vá cu o, s em m ot ivo; ele é o res u lta do de m u ita s e m u ita s circu n s tâ n cia s , ta l com o foi Hit ler . Nã o dever ía m os n o en ta n to pen s a r qu e s e o m u n do in teiro p ra t ica s s e o zazen n ã o h a ver ia ca os . Ta m bém n ã o é a s s im . O ca os con t in u a rá . Nã o p recis a m os n os p reocu pa r com is s o. Ma s , s e p ra t ica rm os , com o tem po terem os m a is a ber tu ra pa ra a s cois a s s erem com o ela s s ã o. Con t in u a rem os ten do p referências pes s oa is pela s cois a s irem de u m cer to jeito, m a s n ã o fa rem os m a is ta n ta s exigên cia s . Preferên cia s s ã o m u ito d iferen tes de exigên cia s . Qu a n do a s cois a s n ã o ca m in h a m do jeito qu e p refer im os , a ju s ta m o-n os com m u ito m a is ra p idez a o m odo como elas aparecem. Isso é o que acontece após anos de prática sentada. Se vocês es t iverem procu ra n do a lgu m a ou tra cois a , bem , desculpem-me...

É pa ra doxa l, m a s a p ren der a perm a n ecer com o ca os p ro-porcion a u m a es pécie de pa z p rofu n da . Porém n ã o é a qu ilo qu e costumamos imaginar para nós.

ALUNA: Isso é o deslumbramento?

JOKO: Isso é o deslumbramento.

VIII. Nada Especial

DO DRAMA AO NÃO-DRAMA

Na prá t ica zen n ós s a ím os de u m a vida d ra m á t ica

es pécie de n ovela da s 20 h

pa ra u m a vida n ã o-d ra m á t ica . A des peito do qu e pos s a m os d izer , todos n ós gos ta m os m u ito de n os s os d ra m a s pes s oa is . A ra zã o pa ra ta n to? Seja qu a l for o n os s o d ra m a

Page 226: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

pa r t icu la r , s em pre es ta m os n o pa pel p r in cipal

qu e é on de n ós

qu erem os es ta r . E , pela p rá t ica , n ós gra du a lm en te n os des loca m os pa ra lon ge des s a p reocu pa çã o com n ós m es m os . As s im , s a ir de u m a vida d ra m á t ica pa ra u m a vida n ã o-d ra m á t ica , em bora pos s a pa recer s em n en h u m a t ra t ivo, é do qu e t ra ta a p rá t ica zen . Examinemos esse processo mais de perto.

Qu a n do com eça m os a p ra t ica r , é bom com eça r res p ira n do a lgu m a s vezes bem fu n do, en ch en do a ca vida de a bdom in a l, o m eio do peito e em ba ixo dos om bros , a té es ta rm os rep letos de a r ; depois , s olta m os o a r , in ter rom pen do a exp ira çã o u m in s ta n te. Fa ça is s o t rês ou qu a tro vezes . Em cer to s en t ido, é a r t ificia l, m a s a ju da a cr ia r u m cer to equ ilíb r io e form a u m a ba s e con ven ien te pa ra s e s en ta r e p ra t ica r . Depois de term os feito is s o, o pa s s o s egu in te é es qu ecer exa ta m en te is s o, es qu ecer de con t rola r a res p ira çã o. Nã o o es qu ecerem os por com pleto, é cla ro, m a s é in ú t il con trola r a res p ira çã o. Em vez d is s o, a pen a s viven cie es s e p roces s o, o qu e é m u ito d iferen te. Nã o es ta m os ten ta n do fa zer u m a res p ira çã o len ta , longa e regular, como muitos livros sugerem. Em lugar disso, o que qu erem os é deixa r qu e o a r s eja o com a n da n te, pa ra qu e a res p ira çã o es teja n os res p ira n do. Se a res p ira çã o for s u per ficia l, qu e s eja a s s im . Qu a n do n os torn a m os a n os s a res p ira çã o, por s u a p rópr ia pu ls a çã o a res p ira çã o s e torn a m a is len ta . A res p ira çã o permanece superficial porque queremos pensar em vez de vivenciar a n os s a vida . Qu a n do fa zem os is s o, tu do s e torn a m a is s u per ficia l e con trola do. A pa la vra re tes ad o é ba s ta n te s u ges t iva : des creve com o s u b im os pa ra a ca beça , a ga rga n ta , os om bros e lá n os ten s ion a m os ; es ta m os com m u ito m edo e n os s a res p ira çã o ta m bém fica a lta . Um a res p ira çã o qu e con s egu e s er a bdom in a l, com o ten de a ocorrer a pós a n os de p rá t ica , é a qu ela qu e vem qu a n do a m en te perdeu a s es pera n ça s . Tu do a qu ilo pelo qu e es pera m os é do qu e len ta m en te a p ren dem os a des is t ir e, en tã o, a res p ira çã o des ce. Nã o é a lgo qu e p recis em os ten ta r fa zer . A p rá t ica consiste em vivenciarmos a respiração como ela é.

Ta m bém pen s a m os qu e dever ía m os ter u m a m en te s os s egada. Mu itos livros d izem is to: qu e a pes s oa ilu m in a da é a qu ela qu e tem u m a m en te s os s ega da . É verda de: qu a n do n ã o tem os n en h u m a es pera n ça , n os s a m en te s os s ega . En qu a n to a lim en ta mos es pera n ça s n os s a m en te es tá ten ta n do des cobr ir com o s a t is fazer es s a s von ta des m a ra vilh os a s de cois a s qu e qu erem os qu e a con teça m , ou es ta m os ten ta n do n os p roteger de toda s a s cois a s

Page 227: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ter r íveis qu e n ã o dever ia m a con tecer . As s im , a m en te es tá tu do, m en os s os s ega da . Agora , em lu ga r de força r a m en te pa ra qu e ela sossegue, o qu e podem os fa zer? Podem os n os torn a r con scientes do qu e ela es tá fa zen do. É is s o qu e é rotu la r n os s os pen s a m en tos . Em vez de nos atolarmos em esperanças começamos a ver: "É, sim, pela vigés im a vez h oje es tou es pera n do s en t ir a lgu m a lívio". Depois de u m bom sesshin, poderem os ter d ito is s o u m a s qu in h en ta s vezes : "Es pero qu e ele m e telefon e qu a n do o sesshin a ca ba r". E en tã o rotu la m os : "Com es pera n ça de qu e ele m e telefon e qu a n do o sesshin term in a r"; "Com es pera n ça de qu e ele m e telefon e qu a n do o sesshin terminar". Depois de termos dito isso quinhentas vezes, o qu e a con tece com is s o? En xerga m os exa ta m en te o qu e é: u m a bs u rdo. Afin a l de con ta s , a verda de é qu e ou ele telefon a ou n ã o telefon a . Con form e va m os obs erva n do n os s a m en te a o lon go dos a n os , a os pou cos a s es pera n ça s s e d is s ipa m . E o qu e n os res ta ? Pode parecer lúgubre, eu sei: resta-nos a vida tal com o ela é .

É p roveitos o en t ra r n es s e p roces s o com u m a a t itu de de in ves t iga çã o. Em vez de ver a n os s a p rá t ica s en ta da com o a lgo bom ou m a u , com o a lgo qu e deve m elh ora r n u m a ba s e firm e, dever ía m os s ó in ves t iga r , obs erva r o qu e es ta m os de fa to fa zen do. Nã o exis te u m a boa ou m á p rá t ica s en ta da ; exis te a pen a s a percepçã o con s cien te ou a in con s ciên cia do qu e es tá s e pa s s a n do em n os s a vida . E , qu a n do n ós m a n tem os m a is tem po a percepção con s cien te, a s in da ga ções qu e tem os a res peito da vida s ã o vis ta s por u m n ovo p r is m a . Nã o s om os en tregu es pu ra e s im ples m en te a u m ou tro pon to de vis ta , m a s con qu is ta m os u m a m a n eira d iferen te de ver a s cois a s . Con form e es s e p roces s o s e des en volve com o tem po, m u ito deva ga r a n os s a m en te va i s os s ega n do

n ã o por com pleto, e o qu e s e a qu ieta n ã o s ã o os pens am en tos (poderem os p ra t ica r vin te a n os e con t in u a r ven do os pen s a m en tos qu e cor rem pela m en te). O qu e s os s ega é o n os s o apego aos nossos pen s a m en tos . Ca da vez m a is os vem os com o u m a es pécie de es petá cu lo, pa recido com o qu e fa zem os qu a n do olh a m os a s cr ia n ça s b r in ca rem . (Min h a m en te pen s a qu a s e o tem po todo. Qu e pen s e, s e é o qu e qu er .) E n os s o apego a os pen s a m en tos qu e b loqu eia o samadhi. Podem os ter m u itos pen s a m en tos e m es m o a s s im es ta r em profu n do samadhi, des de qu e n ã o es teja mos a pega dos a eles e s ó perm a n eça m os n a vivên cia . É verda de qu e qu a n to m a is tem po de p rá t ica t iverm os , m en os ten derem os a pen s a r , porqu e n os s a ten dên cia é obceca rm o-n os m en os . Sen do a s s im , a m en te de fa to a qu ieta , em bora com toda cer teza n ã o por

Page 228: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

term os d ito a n ós m es m os :' 'Eu tenho d e ter u m a m en te s os s ega da !". Qu a n do n os m a n tem os s en ta dos n a p rá t ica , de tem pos em tem pos a lca n ça m os pers pect iva s de gra n de lu cidez a res peito de n os s a s vida s , qu e es cla recem d iferen tes a s pectos da s m es m a s . Em s i m es m os es s es m om en tos n ã o s ã o n em bon s n em m a u s e, do pon to de vis ta da p rá t ica zen , n ã o s ã o n em pa r t icu la rm en te im por ta n tes . Apes a r de es s es m om en tos de lu cidez repen t in a terem u m a cer ta u t ilida de, zazen n ã o é ir a t rá s deles . E les rea lm en te ocorrem , e de repen te vem os : "Ora , é is s o

is s o é o qu e eu fa ço. Qu e in teres s a n te!". No en ta n to, a té m es m o ca p ta r o m om en to des s a repen t in a lu cidez é s ó a lgo qu e vem e va i, vem e va i, por n os s a m en te. Torn a m o-n os cien t is ta s qu e vivem esse experimento chamado nossa vida. Nossos eus e nossos pensa-m en tos es tã o es pa lh a dos à n os s a fren te; olh a m os com in teres s e pa ra es s e es petá cu lo, m a s n ã o m a is com o n os s o p rópr io d ra m a pes s oa l. Qu a n to m a is des en volvida for es s a pers pect iva em n ós , m elh or s erá a n os s a vida . Por exem plo: s e es ta m os fa zen do u m exper im en to com s a l e a çú ca r , n ã o d izem os : "Qu e cois a ter r ível! O s a l e o a çú ca r es tã o d is cu t in do!". Nã o n os im por ta o qu e o s a l e o a çú ca r es teja m fa zen do, a pen a s os obs erva m os e a p recia m os com o in tera gem . Por ou tro la do, em gera l nós n os im por tamos m u ito com o qu e os n os s os pen s a m en tos es tã o fa zen do. Nã o fica m os a pen a s n a s u a obs erva çã o, com u m a a t itu de de in teres s e, com o os cien t is ta s qu e a pen a s a com pa n h a m o qu e a con tece. "Se eu misturar isso e aquilo interessante. Se eu puser essas coisas em proporções d iferen tes

in teres s a n te." O cien t is ta s im ples m en te observa e acompanha processos.

Qu a n do es s a qu a lida de de obs erva r , de a p recia r e viven cia r o qu e a con tece es t iver m a is for ta lecida em n os s a vida , a rea lidade (qu e é s ó a percepçã o con s cien te) depa ra a ir rea lida de ou o n os s o pequ en o d ra m a tecido de pen s a m en tos . E vem os com m a is cla reza o qu e é rea l e o qu e é ir rea l, com o a lu z qu e ilu m in a a es cu r idão. Ma s , qu a n do n ós t ra zem os m a is rea lida de (percepçã o con s cien te) pa ra n os s a s vida s , a qu ilo qu e vin h a s en do p rob lem á t ico pa rece m u da r . Qu a n do in s t ila m os m a is percepçã o con s cien te em n os s a s vida s , com eça m os a elim in a r n os s os d ra m a s pes s oa is . E n ã o querem os fa zer is s o de verda de. Gos tam os de n os s os d ra m a s pes s oa is , gos ta m os de a lim en tá -los . Ca da u m de n ós tem s u a p rópr ia en cen a çã o p red ileta . Por exem plo, podem os a cred ita r : "As circu n s tâ n cia s da m in h a vida s ã o em es pecia l d ifíceis . A m in h a in fâ n cia foi m a is d ifícil qu e a da m a ior ia da s pes s oa s "; ou "Aqu ela

Page 229: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

cois a qu e m e a con teceu rea lm en te a r ru in ou a m in h a vida ". É verda de, es s a s cois a s a con tecera m e cr ia ra m os n os s os con d icion a m en tos . Porém , en qu a n to m a n t iverm os n os s a s cren ça s de qu e a s h is tór ia s qu e con ta m os s ã o a verda de a cerca de n os s a vida , a p rá t ica gen u ín a n ã o irá ocorrer . As cren ça s in terd ita m a prática.

A m en os qu e h a ja u m a cer ta d is pon ib ilida de pa ra a ba n donar es s a s cren ça s pes s oa is de vida , n ã o exis te n a da qu e eu ou qu a lqu er ou tra pes s oa pos s a fa zer . Às vezes , u m s ofr im en to é o s u ficien te pa ra cr ia r por s i a qu ela m ín im a b rech a por on de a percepçã o con s cien te con s iga s e in filt ra r . Ma s en qu a n to es s a pequena fenda não se abrir não há nada que alguém possa fazer. E as pessoas realmente obstinadas conseguem manter suas histórias pes s oa is a té a m or te. A vida pa ra ela s é m u ito du ra . Um a cren ça pes s oa l des s e t ipo

"Sou u m a vít im a "

é com o u m a rm á r io fech a do e es cu ro. Se qu erem os s en ta r n es s e a rm á r io com a por ta bem t ra n ca da , n a da con s egu irá pen etra r n ele. In felizmente, en qu a n to in s is t im os em fica r s en ta dos den tro des s e a rm á r io (e todos fa zem os is s o à s vezes ), des cobr im os qu e n in gu ém qu er , n a rea lida de, en t ra r e s en ta r -s e con os co. Com fra n qu eza , n in gu ém tem u m in teres s e pa r t icu la r pelo d ra m a dos ou tros . O qu e n os in teres s a é o n os s o p rópr io d ra m a . Eu pos s o qu erer m e fech a r den tro do m eu p rópr io a rm á r io, m a s com cer teza n ã o vou fica r sentado dentro do seu.

Todos n ós en t ra m os em n os s os a rm á r ios pa r t icu la res . O armário é o nosso drama pessoal, e queremos ficar sozinhos dentro dele pa ra n os s en t ir bem n o s eu cen tro. É u m a s u cu len ta in felicida de. E qu er n os dem os con ta , qu er n ã o, a dora m os is s o. Porém, quando passamos pela experiência de abrir a porta e deixar u m pou co de lu z en t ra r , depois de term os vis to u m a vez qu e s eja o qu e é u m pou co de lu z gen u ín a den tro do a rm á r io, n u n ca m a is con s egu irem os n os m a n ter in defin ida m en te den tro dele. Pode n os cu s ta r a n os , m a s depois de a lgu m tem po irem os a b r ir a por ta . Uma maneira de entender os sesshins é que esses encontros fazem a por ta a b r ir -s e pa ra a lgu m a s pes s oa s . Por is s o é qu e os sesshins podem ser tão incômodos.

Em a lgu m m om en to com eça m os a ver qu e a qu ilo qu e a con -tece em n os s a vida n ã o é a qu es tã o; s em pre h a verá a lgo a con te-cen do. O qu e a con tece s em pre s erá u m a m es cla da qu ilo de qu e gostamos e de que não gostamos. Não há tempo em que isso cesse.

Page 230: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

No en ta n to, qu a n to m a is cien t is ta s n os tom a rm os , m en os n os em a ra n h a rem os n o qu e es tá a con tecen do e m a is s erem os ca pa zes de a pen a s obs erva r o qu e es tá a con tecen do. A ca pa cida de de fa zer is s o e a d is pon ib ilida de pa ra ta n to a u m en ta m com o pa s s a r dos a n os n a p rá t ica . No in ício es s a pos tu ra obs erva dora pode s er m ín im a . Nos s a in cu m bên cia é a u m en ta r n os s a a ber tu ra pa ra desenvolvê-la,

No fin a l, n ã o im por ta com o n os s en t im os . Nã o fa z d iferen ça s e es ta m os depr im idos , in qu ietos , fra gm en ta dos , felizes . A ta refa do a lu n o é obs erva r , viven cia r , tom a r con s ciên cia . Por exem plo, a depres s ã o, qu a n do com pleta m en te viven cia da , deixa de s er depres s ã o e torn a -se samadhi. A in qu ieta çã o ta m bém pode s er viven cia da e, qu a n do is s o a con tece, dá -s e u m des loca mento in tern o e n ã o tem os m a is de n os p reocu pa r com a n os s a in qu ieta çã o. Nen h u m a circu n s tâ n cia , n en h u m s en t im en to, es s a é a meta. O objetivo é a oportunidade de vivenciar.

Cos tu m a m os s u por qu e tem os de m ergu lh a r fu n do n a s "questões " ps icológica s s u bm ers a s e t ra ba lh a r com es s e m a ter ia l. Não é bem isso. Afinal de contas, onde essas questões se escondem? Nã o é s u pos içã o rea lm en te a cu ra da a de qu e exis ta m cois a s por ba ixo da con s ciên cia qu e irã o da r u m jeito de vir à ton a , em bora pos s a a s s im pa recer a n ós . Nos sesshins, podem os fica r em ocion a dos , t r is tes , des es pera dos , m a s es s a s emoções não são mistér ios es con d idos qu e a pa recem de repen te. Es s a s cois a s s ã o simples m en te o qu e s om os , e es ta m os viven cia n do qu em s om os . Qu a n do ten ta m os t ra ba lh a r pa ra qu e es s a s cois a s ven h a m à ton a , es ta m os a pen a s d ia n te de u m a ou tra form a de a u to-aperfeiçoa-m en to qu e n ã o fu n cion a . A p rá t ica n ã o é u m a qu es tã o de s en ta r pa ra qu e es s a s cois a s pos s a m em ergir e a s s im con s iga m os t ra ba -lhar com o material para nos tornarmos pessoas melhores. O fato é que já estamos bem. Não se trata de ir a nenhuma outra parte.

Bloqu ea m os n os s a percepçã o con s cien te com n os s a cu lpa e nossos ideais. Por exemplo, vamos supor que eu disse para alguém: "É s ó qu e n ã o s ou u m a boa p rofes s ora . Nã o lido com toda s a s s itu a ções de m a n eira per feita ". Qu a n do fico a pega da a es s e pen s a m en to, b loqu eio toda a m in h a ca pa cida de de a p ren der . A cu lpa e os idea is de com o eu d everia s er b loqu eia m a ú n ica cois a que de fato importa: uma clara percepção consciente: "Estou vendo o que aconteceu, eu realmente fiz uma bela confusão, não foi? Bom, o qu e pos s o a p ren der?". Um ou tro exem plo poder ia s er o do

Page 231: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

cozin h eiro p reocu pa do com o ja n ta r . Va m os s u por qu e o ja n ta r qu eim ou . O cozin h eiro n ã o tem de s e des ca bela r : "Oh ! é o fim do m u n do! O qu e a s pes s oa s vã o pen s a r de m im ? Eu a ca bo de qu eim a r tu do!". Nes s e pon to o qu e pode s er feito? Ba s ta p rocu ra r ca da peda ço de pã o qu e a in da h ou ver em ca s a e repa r t i-lo. Nã o é o fim do m u n do qu a n do o ja n ta r qu eim a , m a s a cu lpa in terd ita o aprendizado.

A ú n ica cois a qu e im por ta é a percepçã o con s cien te do qu e es tá a con tecen do. Qu a n do en tra m os pelo s etor dos idea is e da cu lpa , a s decis ões em s i torn a m -s e d ifíceis , porqu e n ós n ã o vem os com o ca ím os n a s a rm a d ilh a s da s n os s a s p reocu pa ções : "Será qu e is s o va i s ervir pa ra m im ? O qu e a con tecerá ? Será rea lm en te u m a boa m ed ida ? Min h a vida va i s e torn a r m a is s egu ra , m a is m a ra vilh os a , m a is per feita ?". Es s a s pergu n ta s s ã o er ra da s . Qu a is s ã o a s cer ta s ? E qu a is s ã o a s decis ões cer ta s ? Nã o podem os d izer a n tes , m a s , em a lgu m m om en to, s a berem os s e n ã o n os em a ra n h a rm os n a cu lpa , n os idea is e n o per feccion is m o qu e em gera l a cres cen ta m os a o n os s o p roces s o de tom a r decis ões . Sen ta r para praticar trata dessa espécie de clarificação.

Toda s a s técn ica s s ã o ú teis e toda s s ã o lim ita da s . Seja qu a l for a técn ica qu e in s er irm os em n os s a p rá t ica , ela n os s ervirá por a lgu m tem po, a té qu e deixem os rea lm en te de em pregá -la , qu e com ecem os a deva n ea r com ela ou a s on h a r . Sen do a s s im , o im por ta n te com qu a lqu er técn ica é a in ten çã o. Nos s a in ten çã o deve s er a de es ta rm os p res en tes , de tom a rm os con s ciên cia , de es ta rm os p ra t ica n do. E n in gu ém s u s ten ta es s a s in ten ções o tem po todo. Ela s s e m a n têm em ca rá ter in term iten te. Ta m bém qu eremos encon tra r u m profes s or qu e pa s s e a tom a r con ta d is s o por n ós ; todos n ós qu erem os s er s a lvos e cu ida dos . A in ten çã o de p ra t ica r é a cois a m a is im por ta n te. Nã o exis te técn ica qu e pos s a n os s a lva r , professor algum que venha nos salvar, centro algum que possa nos s a lva r . Nã o exis te nada qu e ven h a n os s a lva r . Es s e é o m a is cru el de todos os golpes.

Qu a n do t ra n s form a m os n os s a vida d ra m á t ica n u m a vida não-dra m á t ica , is s o qu er d izer qu e pega m os a n os s a vida de in ces s a n te bu s ca r , a n a lis a r , a lim en ta r es pera n ça s e s on h a r e a torn a m os u m es pa ço pa ra a pen a s viven cia r a vida ta l com o ela s e n os a pa rece, n es te exa to m om en to. O fa tor ch a ve é a percepção con s cien te, o m ero viven cia r da dor qu e é com o é. Pa ra doxalmente

Page 232: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

is s o é o con ten ta m en to. Nã o exis te n en h u m ou tro con tentamento na Terra, exceto este.

Es s a es pécie de p rá t ica s u r te u m efeito leta l: elim in a rá de m a n eira ir revers ível n os s o d ra m a . Ma s n ã o a n os s a pers on a lida de. Todos s om os d iferen tes e con t in u a rem os s en do a s s im . Con tu do, o d ra m a n ã o é rea l. É u m im ped im en to a u m a vida qu e flu i e pode ser atenciosa.

MENTE SIMPLES

A ú n ica m en te qu e pode en xerga r a vida de m a n eira t ra n s for-m a da é a s im ples . O d icion á r io defin e simples com o "ten do ou s en do com pos to por a pen a s u m a pa r te". A percepçã o con s cien te pode a bs orver u m a m u lt ip licida de de cois a s , da m es m a form a com o o olh o con s egu e ca p ta r m u itos deta lh es a o m es m o tem po. Ma s em s i m es m a a percepçã o con s cien te é u m a cois a s ó. E la perm a n ece in a ltera da , s em a crés cim os ou m odifica ções . A per -cepçã o con s cien te é com pleta m en te s im ples ; n ã o tem os de a cres -cen ta r n a da , n em de m odificá -la . É des preten s ios a e is en ta de a r rogâ n cia . Nã o pode evita r de s er a s s im , a percepçã o con s cien te n ã o é u m a cois a , pa ra s er a feta da por is to ou a qu ilo. Qu a n do vivemos a partir da pura percepção consciente, não somos afetados por n os s o pa s s a do, n em pelo p res en te, n em pelo fu tu ro. Um a vez qu e a percepçã o con s cien te n a da tem qu e pos s a s ervir -lh e de fingimento, é humilde. É modesta. Simples.

A p rá t ica d iz res peito a des en volver ou revela r u m a m en te s im ples . Por exem plo, m u ita s vezes ou ço a s pes s oa s s e qu eixa n do de qu e s e s en tem a s s oberba da s pela vida qu e es tã o leva n do. Es ta r a s s oberba do é es ta r s u b ju ga do por todos os ob jetos , pen s a mentos, a con tecim en tos da vida e s en t ir -s e em ocion a lm en te a feta do por eles , de ta l m odo qu e fica m os com ra iva e con tra r ia dos . Qu a n do n os s en t im os a s s im , podem os d izer e à s vezes d izem os cois a s qu e m a goa m os ou tros e a n ós m es m os . Diferen te da m en te s im ples , qu e exis te n a pu ra percepçã o con s cien te, con fu n d im o-n os pela multiplicidade do a m bien te extern o. Nes s e es ta do de con fu s ã o n ã o con s egu im os perceber qu e tu do o qu e é extern o é n ós . Nã o con s egu im os en xerga r qu e tu do exis te em n ós en qu a n to n ã o vivem os de 80 a 90% do tem po com a m en te s im ples . A p rá t ica

Page 233: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

t ra ta de des en volver es s a m en ta lida de. Nã o é fá cil. Requ er u m a inesgotável paciência, assiduidade e determinação.

No m eio des s a s im plicida de, des s a percepçã o con s cien te, en ten dem os o pa s s a do, o p res en te, o fu tu ro e com eça m os a s er m en os a feta dos pela a va la n ch e de exper iên cia s . Con s egu im os viver a p recia n do a s pes s oa s e s itu a ções e s en t in do u m a gen u ín a com pa ixã o. Nos s a vida deixa de revolver em torn o de ju lga m en tos como: "Oh, ele é tão duro comigo. Sou uma vítima total"; "Você fere m eu s s en t im en tos "; "Você n ã o é do jeito qu e eu qu ero qu e você seja".

Às vezes a s pes s oa s m e d izem qu e, depois dos sesshins, a vida s im ples m en te flu i, s em n en h u m prob lem a . As m es m a s qu es -tões con t in u a m exis t in do, m a s rep res en ta m m en os d ificu lda de. Is s o a con tece porqu e n o sesshin a m en te s e torn a m a is s im ples . Infelizm en te, n os s a ten dên cia é perder es s a s im plicida de porqu e recom eça m os a n os en reda r n o qu e pa rece s er u m a vida m u ito complexa em torno de nós. Sentimos que as coisas não são do jeito que queremos que elas sejam e começamos a espernear e a nos pôr à m ercê de n os s a s em oções . Qu a n do is s o a con tece, é com u m qu e nos comportemos de maneira destrutiva.

Qu a n to m a is tem po de p rá t ica t iverm os , m a is terem os pe-ríodos

breves n o com eço e depois m a is exten s os

em qu e s en t irem os qu e n ã o n os é n eces s á r io n os opor a os ou tros , m es m o qu a n do s eja m pes s oa s d ifíceis . Em vez de vê-la s com o prob lemas, com eça m os a a p recia r s u a s es qu is it ices , s em ten ta r con s er tá-las. Por exemplo, podemos desfrutar o fato de serem silenciosas demais, ou de fa la rem m u ito, ou de u s a rem m a qu ia gem dem a is . Des fru ta r o m u n do s em ju lgá -lo é o qu e con s t itu i u m a vida rea liza da . Sã o a n os e a n os de p rá t ica . E m es m o en tã o n ã o es tou qu eren do d izer qu e todos os p rob lem a s pos s a m s er viven cia dos s em u m a rea çã o; m es m o en tã o, ocor re u m a m u da n ça in tern a e n os a fa s ta m os da vida de rea ções a pen a s , n a qu a l tu do o qu e a con tece pode mobilizar nossas defesas prediletas.

A m en te s im ples n ã o é m is ter ios a . Na m en te s im ples , a percepção, consciente apenas é. Aberta, transparente. Não há nada com plica do a s eu res peito. Pa ra a m a ior ia da s pes s oa s , qu a s e todo o tem po, porém , é u m a pos tu ra in tern a em gra n de pa r te in a ces s ível. Ma s qu a n to m a ior o con ta to com a m en te s im ples , m a is verem os qu e tu do é n ós e m a is n os s en t im os res pon s á veis

Page 234: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

por tudo. Quando percebemos de que maneira estamos vinculados, temos de agir de outra forma.

Qu a n do fica m os p res os n os fios de n os s os p rópr ios pen s a -m en tos , n ã o es ta m os fa zen do o n os s o t ra ba lh o

s en tin do o

pa s s a do e o fu tu ro, tu do n o p res en te. Ch ega m os a té a im a gin a r qu e s e es ta m os is ola dos n u m a pos en to, s em m a is n in gu ém , a pe-n a s con tra r ia n do-n os , is s o es tá cer to. A verda de porém é qu e, qu a n do n os la rga m os des s a form a , n ã o es ta m os fa zen do o n os s o t ra ba lh o, e a n os s a vida é a feta da em s u a tota lida de. Qu a n do m a n tem os a percepçã o con s cien te, qu er n os in teirem os d is s o, qu er não, uma cura está ocorrendo. Se praticarmos por um tempo longo o ba s ta n te, com eça rem os a en xerga r a verda de: ch ega rem os a en ten der qu e o "a gora " a colh e o pa s s a do, o fu tu ro e o p res en te. Quando conseguimos sentar para praticar com uma mente simples, s e fica m os em a ra n h a dos em n os s os pen s a m en tos , a lgo a os pou cos s e es boça e u m a por ta qu e es teve a té en tã o fech a da com eça a s e a b r ir . Pa ra qu e is s o ocorra , tem os de t ra ba lh a r com a n os s a ra iva , com a n os s a con tra r ieda de, com n os s os ju lga m en tos , com a autopiedade, com as idéias de que o passado determina o presente. Con form e es s a por ta s e a b re, vem os qu e o p res en te é a bs olu to e qu e, em cer to s en t ido, o u n ivers o in teiro com eça n es te exa to m om en to, a ca da s egu n do. E a cu ra da vida es tá n es s e s egu n do de pura percepção consciente.

Sa ra r é s em pre o es ta r s im ples m en te a qu i, com u m a m en te simples.

DOROTHY E A PORTA TRANCADA

Todos es ta m os em bu s ca de a lgu m a cois a . A m a ior ia dos s eres h u m a n os s en te u m a es pécie de fa lta , de a lgo in com pleto, e busca algo que preencha o buraco que sentem. Mesmo aqueles que d izem : "Nã o es tou bu s ca n do n a da ; es tou con ten te com a m in h a vida ", ta m bém es tã o em u m a bu s ca a s eu p rópr io m odo. As s im , a s pes s oa s vã o pa ra es ta ou a qu ela igreja , pa ra os cen t ros zen ou de ioga , com pa recem a workshops de cres cim en to pes s oa l

n a esperança de encontrar essa peça que falta.

Qu ero fa la r com vocês s obre u m a ga rota ch a m a da Doroth y. Ela n ã o m orou n o Ka n s a s , m a s em Sa n Diego, n u m a im en s a ca s a

Page 235: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

em es t ilo vitor ia n o. Su a fa m ília m ora va n o s ola r h á vá r ia s gera ções . Todos t in h a m s eu p rópr io qu a r to, e h a via a pos en tos ext ra s e cu b ícu los por toda pa r te, a lém de u m s ótã o e u m porã o. Qu a n do Doroth y a in da era u m a ga rot in h a , ela a p ren deu qu e a lgo de es t ra n h o h a via n a qu ela ca s a : n o ú lt im o a n da r da qu ela velh a m a n s ã o vitor ia n a h a via u m qu a r to t ra n ca do. Há ta n to tem po qu a n to a s pes s oa s con s egu ia m s e lem bra r , a qu ele qu a r to s em pre perm a n ecera t ra n ca do. Corr ia m ru m ores de qu e u m d ia fora a ber to, porém n in gu ém s a b ia o qu e h a via lá den tro. A fech a du ra da qu ela por ta era es tra n h a e n in gu ém ja m a is con s egu ira en con -t ra r u m a m a n eira de a b r i-la . As ja n ela s da qu ele a pos en to ta m bém es ta va m de a lgu m m odo b loqu ea da s . Um a vez Doroth y s u b iu n u m a es ca da pelo la do de fora da ca s a e ten tou ver o qu e h a via lá dentro, mas não conseguiu ver nada.

A m a ior ia da s pes s oa s da qu ela fa m ília es ta va s im ples m en te h a b itu a da a o a pos en to com s u a por ta t ra n ca da . Sa b ia m qu e es ta -va lá , m a s n ã o qu er ia m s e im por ta r com is s o. Por es s a ra zã o era a pen a s u m a cois a qu e m en cion a va m , Doroth y porém era d iferen te. Des de o tem po em qu e era m u ito pequ en in a a in da ficou obceca da com es s e qu a r to e com o qu e h a ver ia den t ro dele. E la a ch a va qu e ela precisava abri-lo.

Qu a s e tu do a res peito da vida de Doroth y era n orm a l pa ra u m a ga rot in h a da qu ele ta m a n h o. Ela cres ceu , fizeram-lh e t ra n ça s no cabelo, tornou-se adolescente, cortou o cabelo segundo a última m oda , t in h a u m a a m iga in s epa rá vel, u m a m igo in s epa rá vel, fica va toda excitada com as últimas novidades no campo da maquiagem e com a m a is n ova ca n çã o de s u ces s o. E la era ba s ta n te n orm a l. Toda via n u n ca des is t iu de s u a obs es s ã o pelo qu a r to t ra n ça do. De cer to m odo, is s o dom in a va a s u a vida . Às vezes ela s u b ia a té o ú lt im o a n da r e s en ta va -s e d ia n te da por ta e perm a n ecia a pen a s olhando para ela, indagando-se sobre o que haveria por trás.

Qu a n do Doroth y ficou u m pou co m a is velh a , ela s en t ia o qu a r to com o u m a pos en to liga do a o qu e lh e fa zia fa lta n a vida . Por is s o deu in ício a vá r ios t ipos de t rein a m en tos e p rá t ica s n a es pera n ça de en con tra r o s egredo qu e lh e perm it ir ia a b r ir a porta. Ten tou de tu do: foi a vá r ios cen tros , con s u ltou d ivers os p rofes -s ores , bu s ca n do a fórm u la pa ra des t ra n ca r a por ta . Pa r t icipou de workshops, pa s s ou por p roces s os de ren a s cim en to, h ipn os e e m u ito m a is . Fez de tu do. Na da , con tu do, des t ra n ca va a por ta para ela . Su a bu s ca p ros s egu iu du ra n te m u ito tem po, a o lon go de todos

Page 236: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

os a n os da u n ivers ida de e pós -gra du a çã o. Ela cr iou técn ica s pa ra s e leva r a vá r ios es ta dos a ltera dos de con s ciên cia , e con t in u a va ainda assim incapaz de abrir aquela porta.

En tã o u m d ia , qu a n do ch egou em ca s a , n otou qu e ela es ta va des er ta . E la s u b iu a té o ú lt im o a n da r e s en tou -s e em fren te da porta trancada, Usando uma de suas práticas esotéricas ela entrou n u m es ta do p rofu n do de m ed ita çã o. Obedecen do a u m im pu ls o, es ten deu a m ã o e em pu rrou a por ta

qu e com eçou a a b r ir . Ela

es ta va elet r iza da . Em todos a qu eles lon gos a n os de ten ta t iva s pa ra a b r ir a por ta , n a da pa recido com a qu ilo h a via ocorr ido. Doroth y s en t iu m edo e excita çã o a o m es m o tem po. Trem en do, forçou -s e a atravessar aquela porta. Foi quando descobriu...

Des a pon ta m en to e con fu s ã o. Doroth y en con trou -s e n ã o n u m n ovo, ou es t ra n h o, ou m a ra vilh os o es pa ço n a qu ele a pos en to m is -ter ios o, m a s im ed ia ta m en te de volta a o p is o tér reo da qu ela velh a casa vitoriana, em meio a todas as coisas antigas e tão conhecidas. Era a m es m a pers pect iva , ela es ta va n a m es m a loca liza çã o com a m es m a con h ecida m obília de s em pre. Tu do era a pen a s com o s em pre t in h a s ido. Decepcion a da e in tr iga da a o m es m o tem po, a lgu m a s h ora s depois ela s u b iu a s es ca da s a té o ú lt im o a n da r e en t rou n o a pos en to m is ter ios o. A por ta a in da es ta va t ra n ca da . Dorothy havia aberto a porta e não havia aberto a porta.

A vida s egu iu em fren te. Doroth y ca s ou -s e. Teve u m ca s a l de filh os . Ain da m ora va n a m es m a ca s a vitor ia n a , com s u a fa m ília . Era u m a boa es pos a e u m a boa m ã e. Ain da a s s im , n u n ca des is t iu de s u a obsessão. Aliá s , s u a ú n ica exper iên cia de ter a ber to a por ta motivava-a s em pre m a is . E la pa s s a va m u ito tem po n o ú lt im o a n da r d ia n te da por ta t ra n ca da , de pern a s cru za da s , ten ta n do abri-la . J á o h a via feito u m a vez, poder ia fa zê-lo de n ovo. E com cer teza , depois de ta n tos a n os ten ta n do, a con teceu de n ovo: ela em pu rrou a por ta e es ta s e a b r iu . Excita da , ela pen s a va : "Hoje é o d ia !". Atra ves s ou a por ta

e ou tra vez s e en con trou n o tér reo da mesma velh a ca s a vitor ia n a , on de m ora va com o m a r ido e os filh os . Correu de n ovo a té o ú lt im o a n da r a té o a pos en to m is ter ios o e o que encontrou? A porta continuava trancada.

O qu e s e pode fa zer? Um a por ta t ra n ca da é u m a por ta t ra n ca da . Doroth y deu con t in u ida de à s u a vida . Ficou com os ca belos gr is a lh os . Con t in u a va pa s s a n do u m bom tem po s en ta da d ia n te da por ta t ra n ca da . Era u m a es pos a e m ã e ba s ta n te boa ,

Page 237: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

m a s s u a a ten çã o a in da s e d ir igia s obretu do pa ra a por ta t ra n ca da . E ela era u m a pes s oa pers is ten te, a s s ídu a : n ã o des is t ia a s s im tã o fá cil. De tem pos em tem pos , ela con s egu ia pa s s a r pela por ta e en t ra r n o a pos en to, porém s em pre era rem et ida de volta a o tér reo, exatamente para o plano onde levava a sua vida.

Du ra n te todo es s e tem po a ca s a foi a os pou cos s en do p reen -ch ida com cois a s . Os m em bros da fa m ília pa recia m a cu m u la r ca da vez m a is cois a s e os qu a r tos ext ra s torn a ra m -s e depós itos de lixo. A ca s a foi fica n do tã o en tu p ida qu e n ã o h a via m a is es pa ço pa ra os convidados, e qu a s e qu e os m ora dores ta m bém fica ra m s em o s eu . Nã o h a via es pa ço pa ra m a is n a da n a ca s a exceto pa ra Doroth y, o m a r ido e os filh os , o qu e ta m bém es ta va ót im o porqu e es ta va m todos tã o p reocu pa dos com s u a s p róp r ia s pes s oa s qu e m a l conseguiam pensar em tomar conta de alguma outra coisa.

Aos pou cos , a obs es s ã o de Doroth y es ga rçou -s e. Su a lu ta para abrir aquela porta começou a ficar obsoleta. Em vez de passar ta n to tem po d ia n te da por ta , ela com eçou a fica r u m pou co m a is com os filh os e n etos , tom a n do ta m bém con ta da ca s a : os p is os fora m ren ova dos , a s cor t in a s t roca da s etc. A ca s a n ã o es ta va em m a u es ta do, m a s h a via s ido u m pou co n egligen cia da , porqu e Doroth y t in h a s e ocu pa do a pen a s de s eu p rojeto de s en ta r d ia n te da por ta . Su a a ten çã o len ta m en te foi des loca da de voíta pa ra o cuidado necessário às coisas diárias que precisavam ser atendidas. Foi u m len to p roces s o. Às vezes ela a in da s u b ia a té o ú lt im o a n da r e olh a va pa ra a por ta , m a s s e a a b r is s e s a b ia o qu e ir ia en con tra r . Mu ito deva ga r , o des en cora ja m en to e o des a pon ta m en to instalaram-s e. Ca da vez m a is ela s e es qu ecia de tu do o qu e n ã o fos s e s ó viver s u a vida , tom a n do con ta da s cois a s de u m m om en to pa ra ou tro. E en tã o u m d ia ela s u b iu a té o ú lt im o a n da r e por a ca s o olh ou pa ra a por ta qu e es ta va t ra n ca da . Ua u ! Es ta va es ca n ca ra da ! Lá den tro, p len a m en te vis ível, es ta va u m con for tá vel qu a r to pa ra h ós pedes . Ha via u m a bela ca m a e u m a côm oda e todos os pequ en os a ces s ór ios qu e torn a r ia m con for tá vel a qu ele quarto para um hóspede.

Ao ver a qu ele es pa ços o e delicios o qu a r to de h ós pedes , Doroth y percebeu n o qu e h a via s e torn a do o res to da ca s a . E la via com o tu do es ta va en tu lh a do e con fu s o e com o era d ifícil a n da r livrem en te pela ca s a . Dia n te des s a con s ta ta çã o a m u da n ça com eçou . Sem qu e fizes s e m u ito a lgu m a cois a , os a pos en tos da qu ela velh a m a n s ã o vitor ia n a com eça ra m a desentulhar-s e por

Page 238: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

s i. Com eçou a h a ver m a is es pa ço pa ra a s cois a s e a s pes s oa s n a qu ela ca s a . Apa receu es pa ço. Era com o s e todo o m on te de cois a s fos s e im a ter ia l, lixo fa n ta s m a gór ico. Nem es ta va lá rea l-m en te, a fin a l de con ta s . A ca s a voltou a o qu e t in h a s em pre s ido. Aliás, sempre tinha existido muito espaço para convidados, e agora Doroth y perceb ia qu e a por ta n u n ca es t ivera t ra n ca da , pa ra in ício de con vers a . Sem pre es t ivera a ber ta . Só s u a r ígida pos tu ra de empurrá-la mantivera-a fechada.

Es s a é a n os s a ilu s ã o es s en cia l a res peito da p rá t ica : qu e a por ta es tá t ra n ca da . A ilu s ã o é in evitá vel: todos a tem os , n u m gra u ou n ou tro. En qu a n to pen s a rm os qu e a por ta es tá t ra n ca da , ela es tá t ra n ca da . Pa ra ten ta r a b r i-la fa zem os de tu do. Va m os a todo cen tro pos s ível, pa r t icipa m os de workshops, experimentam os is s o e aquilo, para, por fim, descobrirmos que nunca esteve fechada.

Apes a r d is s o, a vida de es forços in ú teis qu e Doroth y levou pa ra ela foi per feita . Era is s o qu e ela p recis a va fa zer . Na da de, é is s o qu e todos n ós tem os de fa zer . Tem os de da r à n os s a p rá t ica tu do o qu e tem os pa ra con s egu irm os perceber qu e, des de o in ício, n ã o exis te s en ã o per feiçã o. O qu a r to es tá a ber to, a ca s a es tá a ber ta , s e n ã o a en tu lh a rm os com lixo in exis ten te. Ma s n ã o exis te meio de sabermos disso antes de sabermos disso.

Um a form a de d is cip lin a es p ir itu a l cr is tã é a p rá t ica da p res en ça de Deu s . Com o cr is tã os , es ta m os em bu s ca da qu ela ra d ia çã o em toda s a s cois a s qu e os m ís t icos ch a m a m de a fa ce de Deu s . Es s a ra d ia çã o n ã o es tá es con d ida em a lgu m lu ga r m u ito d is ta n te, m a s bem a qu i e a gora , exa ta m en te em ba ixo do n os s o n a r iz: Da m es m a form a , Doroth y percebeu qu e a qu ilo qu e t in h a bu s ca do s u a vida in teira era s im ples m en te a s u a p rópr ia vid a: as pes s oas , a cas a, os quartos . Tod os es tes eram a face d e Deus .

Nós porém n ã o en xerga m os is s o. Se rea lm en te o vís s em os , n ã o tor tu ra r ía m os os ou tros n em a n ós da m a n eira com o o fa zem os . Nã o s om os gen t is ; s om os m a n ipu la dores , des on es tos . Se vís s em os qu e es s a vida qu e es ta m os leva n do é a p rópr ia fa ce de Deu s , n ã o s er ía m os ca pa zes de n os com por ta r des s a s m a n eiras, n ã o em ra zã o de a lgu m m a n da m en to ou in terd içã o, m a s s ó porqu e veríamos a vida tal como ela é.

Não é que a prática sentar-se diante da porta seja inútil, m a s u m a gra n de pa r te do qu e ch a m a m os p rá t ica

ca ça r ideais ou a ilu m in a çã o

é u m a ilu s ã o. Is s o n ã o a bre a por ta . En qu a n to

Page 239: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

n ã o en xerga rm os es s e fa to com a m es m a cla reza com qu e com em os n os s o m in ga u de a veia pela m a n h ã , terem os de a t ra ves s a r m u itos des vios e a ta lh os , m u itos des a pon ta m en tos e enfermidades que são nossos mestres na vida. Todas essas lutas fa zem pa r te do a p ren d iza do rela t ivo à por ta . Se p ra t ica m os bem , m a is cedo ou m a is ta rde es s e qu ebra -ca beça fica m a is cla ro e a porta abre-se com mais freqüência.

ALUNA: Pa rece qu e Doroth y poder ia ter perd ido m en os tem po s e t ives s e s en ta do n a cozin h a , n o m eio de s u a fa m ília e de s eu s a fa zeres cot id ia n os , em vez de s e ret ira r pa ra o ú lt im o a n da r da casa, distante de tudo o mais.

JOKO: Sem pre bu s ca rem os lá on de pensamos qu e a res pos ta es tá en qu a n to n ã o es t iverm os p ron tos pa ra en xerga r . Fa zem os o qu e fa zem os a té qu e n ã o o fa zem os m a is . Is s o n ã o é bom n em m a u ; é só como as coisas são. Temos de desbastar-nos de nossas ilusões. Se d is s erm os pa ra n ós m es m os : "O ca m in h o pa ra a b r ir a por ta es tá em fica r m a is tem po com m eu s filh os ", ta m bém is s o s e torn a a pen a s u m a ou tra idéia obs es s iva . Pa s s a r tem po com m eu s filh os pa ra torn a r -m e ilu m in a da ta lvez n ã o vá m e torn a r u m a m ã e melhor, afinal de contas.

ALUNA: A p rá t ica n ã o d iz res peito a a b r ir o cora çã o? Nã o é is so que Dorothy estava realmente tentando fazer?

JOKO: Sim , es s a é u m a form a de des crever a cois a . E ela descobriu que...?

ALUNO: Que seu coração já estava aberto.

JOKO: Cer to. Os pa is qu e n ã o con s egu im os a gü en ta r , o pa rceiro qu e n os m a goou , o a m igo qu e ir r ita : n ã o h á n a da de er ra do com eles , a m en os qu e pen s em os qu e h á . En qu a n to n ã o estivermos prontos para ver isso porém, não o veremos.

ALUNO: Se a h is tór ia é a res peito de u m qu a r to de h ós pedes , então Dorothy nunca nem chegou a pensar em ter convidados.

JOKO: Certo. Ela nem pensaria nisso.

Nós pen s a m os : "Eu dever ia s er m a is s im pá t ico, m a is edu cado, m a is h os p ita leiro". Con tu do, s e es ta m os em a ra n h a dos em n os s a s ilu s ões , n ã o podem os s er verda deira m en te h os p ita leiros . Até des em pen h a m os os m ovim en tos n es s e s en t ido, m a s s er de fa to h os p ita leiro s ign ifica s er a pen a s qu em s e é, com o s om os . Nã o

Page 240: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

podem os a colh er n in gu ém em n os s a ca s a s e p r im eiro n ã o t iverm os acolhido a nós mesmos.

ALUNO: Qu a n do es ta m os em a ra n h a dos em n os s os m elodra m a s pes s oa is , com o Doroth y es ta va , n ã o es ta m os verdadeira m en te d is pon íveis a os ou tros . Qu a n do en xerga m os m a is a lém de n os s o m elodra m a pes s oa l, con s egu im os ver com m a is objetividade as necessidades dos outros e responder a elas.

JOKO: Sim . Todos n ós já pa s s a m os pela exper iên cia de es ta rm os tã o con tra r ia dos qu e s im ples m en te s om os in ca pa zes de ou vir os p rob lem a s de u m ou tro in d ivídu o. Nã o tem os es pa ço pa ra is s o. Todo o n os s o es pa ço es tá ocu pa do com n os s a s p rópr ia s cois a s . Nã o tem os n en h u m "qu a r to de h ós pedes ". Mes m o a s s im , n ã o podem os s im ples m en te d izer "Nã o vou fica r obceca da " e des e-ja r qu e is s o a con teça . Pois en tã o a ch a m os qu e a in da h á u m buraco em nossa vida, que temos de destrancar a porta e descobrir o que está do outro lado.

ALUNO: Min h a p rá t ica tem s ido u m a s ér ie de decepções . Eu im a gin o: "Es s e workshop va i res olver es s a s itu a çã o pa ra m im ". Pa r t icipo dele e em bora pos s a s er ú t il de a lgu m a m a n eira , em ú lt im a a n á lis e é des a pon ta dor . Ach o m u ito d ifícil s im ples m en te perm a n ecer com o m eu des a pon ta m en to, s en t ir a m in h a vu ln era -b ilida de. Em vez d is s o, en cu bro-os de a lgu m a form a e d igo pa ra m im m es m o: "Ba s ta con t in u a r ten ta n do. Vou des cobr ir u m ou tro workshop".

ALUNO: Sin to qu e perd i m u ito tem po e en ergia , qu e des perd icei m om en tos p recios os de m in h a vida qu eixa n do-m e de m eu s pa is e de m in h a s con d ições de vida , tu do n o es forço d e destrancar a porta.

JOKO: Nã o a d ia n ta n a da olh a r pa ra t rá s e d izer : "Eu dever ia ter s ido d iferen te". Nu m da do m om en to, s om os do jeito qu e s om os e vem os o qu e s om os ca pa zes de ver . Por es s a ra zã o, a cu lpa sempre é inapropriada.

ALUNA: Parece com o s e t ivés s em os qu e a t ra ves s a r u m cer to ta n to de s ofr im en to. Tem os de s er cru cifica dos a n tes de n os entregar.

JOKO: Sem exa gera rm os n a d ra m a t iza çã o des s e a s pecto, is s o é verdade. Somos muito teimosos. E isso também está certo.

Page 241: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNA: Doroth y con s egu iu des fru ta r s u a vida ? Me in com oda que alguém tenha de lutar por tanto tempo.

JOKO: Sim, imagino que ela às vezes desfrutou sua vida, antes m es m o de ter vis to o qu e era . Todos n ós des fru ta m os a n os s a vida à s vezes . Ma s por ba ixo do con ten ta m en to e da gra t ifica çã o es tá a ansiedade. Ainda estamos em busca de algo atrás da porta e temos m edo de n u n ca o en con tra rm os . Pen s a m os : "Se eu t ives s e is to ou a qu ilo s er ia feliz". Um a época de m om en tos p ra zeros os n ã o elim in a es s a in qu ietu de s u b lim in a r . Nã o exis tem a ta lh os . Devem os en fim en xerga r qu em s om os e o qu e é es s e a pos en to qu e es tá a t rá s da porta.

ALUNO: Com igo o s en t im en to qu e es tá por ba ixo de tu do é o m edo. É com o u m a cor ren te s u b ter râ n ea s u t il qu e flu i ju n to com tudo o que eu faço. Minha vida toda não fui plenamente consciente dele, mas ele estava lá, dirigindo a minha vida.

JOKO: Qu a n do s en ta m os pa ra p ra t ica r , leva m os n os s a a ten çã o pa ra es s a s u t il cor ren te s u b ter râ n ea . Is s o qu er d izer n ota r n os s os pen s a m en tos e a s s u t is con tra ções de n os s o corpo. Pa ra Doroth y is s o a con teceu qu a n do s u a obs es s ã o com a por ta t ra n ca da com eçou a a b ra n da r e ela com eçou a p res ta r m a is a ten çã o n a s con d ições do res to da ca s a . Su a s es pera n ça s começaram a morrer.

ALUNA: Basta que tomemos conta de nossas tarefas imediatas.

JOKO: Cer to. E tom a r con ta do qu e p recis a s er cu ida do remete-nos de volta ao que somos neste momento.

Na h is tór ia s obre Doroth y o qu e vocês pen s a m a cerca dos aposentos entulhados na casa?

ALUNO: Apegos . Pen s a m en tos a res peito de u m m on te de coisas. Recordações.

JOKO: Recordações, fantasias, esperanças.

ALUNA: Pa rece qu e, qu a n do tem os u m a cois a im ed ia ta a fa zer , n os s a ten dên cia é foca liza r , em vez d is s o, o m edo, ou a a n s ieda de, ou qu a lqu er ou tra cois a

a por ta t ra n ca da

e es qu ecer de prestar atenção na tarefa que está à nossa frente. De certo modo, o m edo (ou o qu e for ) é ir releva n te. Exis te es s a ta refa a s er feita e s ó p recis a m os fa zê-la , com ou s em m edo. Lu to con tra a m in h a vida

Page 242: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

porqu e em vez de fa zer o qu e p recis a s er feito, eu lu to con tra o medo subliminar, tento destrancar aquela porta.

JOKO: Cer to. Pa ra doxa lm en te, o ú n ico m eio de a b r ir a por ta é esquecendo a porta.

Os a lu n os cos tu m a m qu eixa r -s e com igo de qu e, qu a n do s e s en ta m pa ra p ra t ica r , a lgo in terfere em s u a percepçã o con s cien te: "Fico a éreo"; "Fico tã o n ervos a ! Nã o con s igo fica r qu ieta ". Por t rá s des s a s qu eixa s es tá o pen s a m en to de qu e, a fim de s en ta r e p ra t ica r com a lgu m a eficiên cia , tem os de n os livra r de toda s a s cois a s des a gra dá veis ; a por ta t ra n ca da tem de s er a ber ta pa ra podermos alcançar todas as coisas agradáveis.

Se es ta m os a éreos , es ta m os a éreos . Se es ta m os n ervos os , es ta m os n ervos os . Es s a é a rea lida de de n os s a vida n a qu ele m om en to. Um a boa p rá t ica s en ta da s ign ifica s im ples m en te es ta r presente com isso: ser esse nervosismo ou esse alheamento.

As pes s oa s s e dã o a im en s os t ra ba lh os qu a n do s e t ra ta de elim in a r s en t im en tos des a gra dá veis . "Es tou ten s o; ten h o de pa r t icipa r de u m workshop pa ra rela xa r ." En tã o a pes s oa va i pa ra o workshop e is s o a fa z rela xa r

m a s por qu a n to tem po? Qu erer a livia r a ten s ã o é com o olh a r pa ra a por ta t ra n ca da , ten ta n do im a gin a r o m odo de a b r i-la . Se n os obceca rm os com es s a idéia de a b r ir a por ta , poderem os des cobr ir técn ica s de a b r i-la por a lgu n s m om en tos ; m a s en tã o irem os n os perceber rem et idos de volta a n os s a s vida s , ta l com o ela s s ã o, viven do n a m es m a velh a ca s a de s em pre. Em vez de n os obceca rm os com a por ta t ra n ca da , p recis a m os ir toca n do a n os s a vida a d ia n te, o qu e s ign ifica lim pa r a casa, tomar conta das crianças, ir para o trabalho etc.

ALUNA: Um a a m iga e eu es tá va m os h á pou co fa la n do de com o t ín h a m os t ido u m a n o d ifícil. En qu a n to es tá va m os com vin te, t r in ta a n os , n ós .du a s t ín h a m os es pera n ça s de qu e a s cois a s fos -s em m elh ora r pa ra n ós . Agora , n a ca s a dos qu a ren ta , ch ega m os à des a n im a dora con clu s ã o de qu e is s o n ã o irá a con tecer : n os s a s vidas não vão melhorar em nada!

JOKO: Pa ra doxa lm en te, es s a doloros a decepçã o com o fu tu ro ajuda-n os a a p recia r a vida com o ela é. Só qu a n do des is t irm os da es pera n ça de qu e a s cois a s fiqu em m elh ores é qu e poderem os chegar à constatação de como elas estão bem do jeito que estão.

Page 243: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

ALUNO: Há pou co tem po t ive u m a percepçã o s em elh a n te. Durante a n os eu viera m e d izen do qu e m in h a vida s er ia m elh or qu a n do eu t ives s e pou pa do d in h eiro s u ficien te pa ra viver em s em i-apos en ta dor ia . Ter ia m a is tem po pa ra u m s erviço volu n tá r io. Ter ia m a is tem po de fa zer u m a p rá t ica m a is con s is ten te, de ler m a is etc. Agora es tou com eça n do a m e da r con ta de qu e o qu e p recis o fa zer es tá ju s ta m en te a qu i, n o t ra ba lh o. Se es tou ten ta n do term inar a lgu m a cois a e a lgu ém en tra e m e d is t ra i, is s o é ju s ta m en te o qu e p recis o fa zer n a qu ele in s ta n te. O qu e eu dever ia es ta r fa zen do é exatamente o que estou fazendo.

JOKO: Pa ra con clu ir , va m os pergu n ta r a n ós m es m os : "Com o é qu e es tou ten ta n do des t ra n ca r a por ta em vez de es ta r s im ples -mente viven do a m in h a vida ?". Todos es ta m os ten ta n do des t ra n car a porta, encontrar a fórmula certa. Estamos em busca do professor cer to, do pa rceiro per feito, do em prego in a cred itá vel etc. Con s ta ta rm os qu e es ta m os ten ta n do des t ra n ca r a por ta é imensamente valioso; ajuda-nos a ver o que nossa vida realmente é.

PEREGRINAR NO DESERTO

Peregr in a r n o des er to em bu s ca da Ter ra Prom et ida : eis o qu e a n os s a vida é. A d is cip lin a do sesshin in ten s ifica es s a im pres s ã o da peregr in a çã o; o sesshin pa rece qu e n os con tu n de, desestimu-la, decepcion a . Podem os ter lido livros qu e ret ra ta m u m a bela im a gem da Terra Prom et ida , do qu e é ch ega r à percepçã o con s cien te da n a tu reza bu da , da ilu m in a çã o etc. No en ta n to, percebemo-nos peregr in a n do. O m á xim o qu e podem os fa zer é s im plesmente s er a p rópr ia peregr in a çã o. Ser a peregr in a çã o s ign ifica s er ca da m om en to do sesshin, s eja e!e qu a l for . Qu a n do s obrevivemos, ten do a t ra ves s a do a a r idez e a s ede, ch ega m os ta lvez a u m a descoberta: peregrinar pelo deserto é a Terra Prometida.

É m u ito du ro com preen derm os is s o. Con h ecem os n os s a dor e n os s o s ofr im en to. Qu erem os qu e o s ofr im en to a ca be. Qu eremos chegar na Terra Prometida, onde o sofrimento não existe mais.

Page 244: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

Em s eu t ra ba lh o com m or ibu n dos e pes s oa s gra vem en te per tu rba da s , Steph en Levin e * obs erva qu e a verda deira cu ra a con tece qu a n do en tra m os com ta n ta p rofu n d ida de em n os s a dor qu e n ã o a vem os m a is com o a nossa dor a pen a s , e s im com o a dor d e tod o m und o. É im en s a m en te m obiliza dor e s olida r iza n te descobrir que minha dor não é exclusiva. A prática ajuda-n os a ver que o universo inteiro está na dor.

Pode-s e obs erva r o m es m o a s pecto qu a n to a os rela cion a -m en tos . Nos s a ten dên cia é pen s a r n eles com o even tos d is cretos n o tem po: com eça m , du ra m a lgu m tem po e term in a m . No en ta n to, sempre estamos em relacionamentos, sempre vinculados a alguém. Nu m a cer ta a ltu ra da h is tór ia , u m a rela çã o pode s e m a n ifes ta r de u m a form a pa r t icu la r , m a s a n tes des s a m a n ifes ta çã o es s a liga çã o já exis t ia e, depois qu e ela "term in a r", con t in u a rá . Continuamos em a lgu m a es pécie de rela çã o m es m o com a qu eles qu e já faleceram. Antigos amigos, amores e parentes continuam em nossa vida e s ã o pa r te de qu em s om os . Pode s er n eces s á r io qu e a m a n ifes ta çã o vis ível term in e, m a s a rela çã o rea l n u n ca a ca ba . Nã o es ta m os rea lm en te s epa ra dos u n s dos ou t ros . Nos s a s vida s es tã o reu n ida s ; exis te s ó u m a dor , s ó u m con ten ta m en to, e é o n os s o. As s im qu e en ca ra rm os a n os s a p rópr ia dor e es t iverm os d is pos tos a viven ciá -la , em vez de a d is fa rça rm os , evita rm os ou ra cion a liza rm os , ocor rerá u m des loca m en to in ter ior qu a n to à nossa visão de nós, de nossa vida e dos outros.

Com o obs erva Steph en Levin e, ca da m om en to em qu e pers evera m os com a s n os s a s d ificu lda des e s ofr im en tos é u m a pe-qu en a vitór ia . Ao perm a n ecerm os com a n os s a dor e com a n os s a irritabilidade, abrim os a n os s a rela çã o pa ra a vida e pa ra os ou tros . O p roces s o é len to; n os s o pa drã o n ã o s e rever te da n oite pa ra o d ia . Lu ta m os n u m a ba ta lh a in ces s a n te en t re o que qu erem os e o qu e é, a qu ilo qu e o u n ivers o n os a p res en ta . No sesshin, n ós vem os es s a ba ta lh a con ju n ta com m a is n it idez. Vem os a s n os s a s fa n ta s ia s , n os s os es forços pa ra en ten der a s cois a s e pa ra defen der n os s a s teor ia s ; vem os n os s a s es pera n ça s de en con tra r u m a por ta de a ces s o pa ra a Ter ra Prom et ida , on de toda lu ta e todo s ofr im en to ces s em de vez. Qu erem os , qu erem os , qu erem os u m a cer ta pes s oa , um certo relacionamento, um certo trabalho. Uma vez que nenhum qu erer des s es pode a lgu m d ia s er com pleta m en te res olvido, tem os

* Stephen Levine, Healing into life and death, Nova York: Doubleday, 1987.

Page 245: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

u m a ten s ã o e u m a a n s ieda de in ces s a n tes qu e a com pa n h a m de perto nossos quereres. São gêmeos inseparáveis.

Às vezes , é ú t il a cen tu a r a a n s ieda de, ch ega n do n u m pon to em qu e s im ples m en te n ã o a con s iga m os m a is tolera r . En tã o, podemos estar dispostos a recuar e, a distância de um passo atrás, ter u m a ou tra m a n eira de olh a r pa ra o qu e es tá a con tecendo. Em vez de nos preocuparmos interminavelmente com o que está errado lá fora

com o pa rceiro, o t ra ba lh o, ou ou tra cois a , podem os

com eça r a m u da r n os s a rela çã o com o qu e é. Apren dem os a s er a qu ilo qu e s om os n es te m om en to, n es te rela cion a m en to ou n a qu ele a s pecto a borrecido de n os s o t ra ba lh o. Com eça m os a en xerga r a liga çã o en tre n ós e os ou tros . Vem os qu e a n os s a dor ta m bém é a deles , e qu e a dor deles ta m bém é a n os s a . Por exem plo, u m a m édica qu e n ã o tem u m a rela çã o com s eu s pa cien tes irá vê-los s im ples m en te com o u m prob lem a a t rá s do ou tro, p rob lem a s a s erem es qu ecidos a s s im qu e s a írem de s eu con s u ltór io. O m édico qu e percebe qu e s eu p rópr io des con for to e a borrecim en to s ã o o des con for to e o a borrecim en to de s eu s pa cien tes terá a poio des s e s en s o de vin cu la çã o e irá t ra ba lh a r com mais precisão e eficiência.

O téd io cot id ia n o de n os s a s vida s é o des er to pelo qu a l peregr in a m os em bu s ca da Ter ra Prom et ida . Nos s a rela ções , n os s o t ra ba lh o e toda s a s pequ en a s ta refa s n eces s á r ia s qu e n ã o qu erem os , rea liza r s ã o todos p res en tes . Tem os de es cova r os den tes , tem os de com pra r com ida , tem os de la va r a rou pa , tem os de fa zer o ca n h oto do ta lã o de ch equ es . Es s e téd io

es s a peregr in a çã o n o des er to

é n a rea lida de a fa ce de Deu s . Nos s a s d ificu lda des , o pa rceiro qu e n os leva à lou cu ra , o rela tór io qu e n ã o queremos escrever essas coisas são a Terra Prometida.

Som os es pecia lis ta s n a p rodu çã o de pen s a m en tos a cerca de n os s a vida . Nã o s om os es pecia lis ta s , n o en ta n to, em a pen a s sermos n os s a s vida s , n os s a dor e p ra zer , n os s a s der rota s e vitórias. Até m es m o a felicida de pode s er doloros a porqu e s a bem os qu e podemos perdê-la.

A vida é m u ito cu r ta . Os m om en tos qu e a gora viven cia m os rapidamente se vão para sempre. Nunca mais os veremos. Todo dia qu e pa s s a leva con s igo m ilh a res e m ilh a res de m om en tos des s es . De qu e m a n eira irem os pa s s a r o pequ en o in terva lo qu e n os res ta ? Irem os ga s tá -lo rodop ia n do em torn o de n os s os pen s a m en tos a

Page 246: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

res peito de com o a vida é ter r ível? Es s es pen s a m en tos n ã o s ã o n em s equ er rea is . Terem os pen s a m en tos a s s im , m a s podem os s a ber qu e os es ta m os pen s a n do em vez de n os em a ra n h a rm os n eles . Qu a n do con s egu irm os s en ta r e a ten ta r pa ra n ossas s en s a ções corpora is e pen s a m en tos qu e s ã o a dor , o s ofr im en to s e transformará no universal, que é o contentamento.

A fin a lida de de n os s a vida , com o Steph en Levin e d iz, é cu m pr ir a qu ilo pa ra qu e n a s cem os , s a ra rm os n a vida . Is s o s ign i-fica s a ra r a pa r t ir da dor de n os s o "eu qu ero" pes s oa l, s epa ra do e con s t r ito, e torn a rm o-n os a ber tu ra . A fin a lida de de n os s a vida é s erm os a p rópr ia a ber tu ra , qu e é con ten ta m en to. Con ten ta m en to in clu i s ofr im en to, felicida de, tu do o qu e é. Es s e t ipo de cu ra é do qu e a n os s a vida s e com põe. Qu a n do cu ro a m in h a dor , s em n en h u m pen s a m en to a res peito, eu ta m bém cu ro a s u a . A p rá t ica consiste em descobrir que a minha dor é a nossa dor.

Sen do a s s im , n ã o con s egu im os en cer ra r n os s os rela cion a -m en tos . Podem os ir em bora , d ivorcia r -n os , m a s n ã o podem os acabar com eles. Quando achamos que podemos encerrá-los, todos s ofrem . Nã o con s egu im os term in a r com a rela çã o com n os s os filh os ; n ã o podem os n em s equ er en cer ra r u m a rela çã o com qu em n ã o a precia m os . Es s e térm in o ir ia exigir qu e fôs s em os a lgo qu e n ã o s om os e n u n ca s erem os , ou s eja , pes s oa s s epa ra da s da s dem a is . Qu a n do ten ta m os s er s epa ra dos , o s ofr im en to recom eça por toda parte.

Com o d iz Steph en Levin e, n a s cem os pa ra cu ra r -n os n a vida . Is s o qu er d izer qu e n os cu ra m os n a n os s a dor e qu e n os cu ra m os n a dor do m u n do. Pa ra ca da u m de n ós , es s a cu ra a con tece de u m m odo d iferen te, porém o ob jet ivo bá s ico é o m es m o. Precisamos ou vir es s a verda de e lem brá -la vá r ia s vezes s egu ida s , m ilh a res de vezes . Pa ra rea liza r es s e t ra ba lh o, tem os de ir con tra a cor ren te de n os s a s ocieda de, qu e n os en s in a a ir em bu s ca do n ú m ero u m : ca da qu a l pa ra s i. Na p rá t ica d iá r ia , em sesshins dos qu a is pa r t icipa m os , n a m a n u ten çã o do con ta to qu a n do m ora m os lon ge, tem os a ju da pa ra fa zerm os o t ra ba lh o, es s e t ra ba lh o de cu ra r -nos n a vida , e ch ega rm os a ver qu e, a té m es m o a gora , já a lca n ça m os a Terra Prometida.

Page 247: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

A PRÁTICA É DAR

A prática é de fato algo para se aprender a dar, mas isso pode s er fa cilm en te m a l-en ten d ido, por is s o tem os de s er cu ida dos os . Há pou co tem po li u m livro cu ja a u tora s e ch a m a va Peregrin a d a paz *- Em três décadas caminhou mais de 40.000 km, levando seus ben s con s igo, p rega n do a pa z. Seu livro m os tra qu e ela de fa to en ten d ia a p rá t ica , qu e ela des creve com m u ita s im plicida de. E la d iz qu e, s e qu is erm os s er felizes , tem os de da r , da r e da r . Em vez d is s o, a m a ior ia qu er receber , receber e receber . Es s a é a n a tu reza do ser humano.

Fora m n eces s á r ios m u itos a n os de á rdu o t rein a m en to pa ra qu e a Peregr in a da Pa z t ra n s form a s s e a s u a vida . Pa ra ela , o t rein a m en to foi da r tota lm en te. Is s o é m a ra vilh os o

s e en ten -derm os de m odo cor reto o in tu ito da a t itu de. Alu n os in icia n tes têm idéia s t ip ica m en te a u tocen tra da s a res peito da p rá t ica : "Vou p ra t ica r pa ra con s egu ir u m a in tegra çã o com pleta "; "Vou p ra t icar pa ra fica r ilu m in a do"; "Vou p ra t ica r pa ra fica r ca lm a ". Em vez d is s o, a p rá t ica é a res peito de da r , da r , da r . Ma s com etem os u m er ro s e s im ples m en te a dota m os es s a pos tu ra com o u m n ovo idea l. Da r n ã o d iz res peito a pen s a r . Nem n ós dever ía m os da r em fu n çã o de ob ter m elh ores res u lta dos pa ra n ós m es m os . Pa ra a m a ior ia , con tu do, da r é con fu n d ido com m ot iva ções a u tocen tra da s , e is s o con t in u a rá s en do vá lido en qu a n to n os s a p rá t ica n ã o es t iver bastante sólida.

Devem os pergu n ta r a n ós m es m os : "O qu e é da r?". Is s o pode n os m a n ter ocu pa dos por m u itos a n os . Por exem plo, deveríamos da r a os ou tros tu do o qu e eles qu is erem ? Às vezes

m a s à s vezes n ã o. As vezes p recis a m os d izer n ã o, ou s im ples m en te s a ir do caminho.

Com o n ã o exis tem fórm u la s , cor rem os o r is co de com eter erros

e es tá tu do bem . Pra t ica m os com os res u lta dos de n os s os a tos , e is s o leva tem po. Ta lvez depois de m u itos a n os com ecem os a a p reen der a verda deira n a tu reza do da r . Um profes s or zen n o

* Peace Pilgrim: Her life and work in her own words, compiled by some of her friends. Santa Fé, NM: Ocean Tree, 1991. Também Steps toward inner peace

A discourse by Peace Pilgrim: Suggested uses of harmonious principles for human living. Friends of Peace Pilgrim, 43480 Cedar Avenue, Hemet, CA 92343.

Page 248: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

J a pã o exige dos n ovos a lu n os qu e p ra t iqu em por dez a n os s em u m t ra ba lh o d ireto com ele. Qu a n do os a lu n os volta m depois de dez a n os , ele lh es d iz qu e voltem a p ra t ica r s en ta dos por m a is dez. Em bora n ã o s eja a s s im o m eu es t ilo de en s in a r , ele tem u m a finalidade. Leva tempo descobrir o que a vida é.

Na s em a n a pa s s a da receb i dois telefon em a s de pes s oa s em bu s ca de con s elh os a res peito da p rá t ica . Um a dela s d izia qu e s u a a m iga t in h a vivido u m a percepçã o es p ir itu a l u m pou co de-s in tegra da e qu e qu er ia s a ber qu a l era o livro cer to qu e a ju da s s e a a m iga a a p ru m a r-s e. A ou tra pes s oa ligou -m e à 1 :30 h da m a dru ga da pa ra d izer qu e t in h a lido u m livro m a ra vilh os o s obre ilu m in a çã o e a ch a do qu e s u a p rópr ia p rá t ica n ã o es ta va m u ito ilu m in a da . E la qu er ia a ju da pa ra en ten der o qu e s e pa s s a va . Eu lh e d is s e qu e n ã o era u m a boa idéia telefon a r pa ra a s pes s oa s n o m eio da n oite. E la res pon deu : "Oh , já es tá de m a dru ga da ?". Eu d is s e: "A ilu m in a çã o d iz res peito a des per ta r . E pa ra qu e você des per te você tem de s a ber qu e h ora s s ã o". E la d is s e: "Is s o n u n ca me ocorreu".

Ilu m in a çã o é a ca pa cida de de da r tota lm en te a ca da s egu n do. Nã o é ter a lgu m a s exper iên cia s ext ra ord in á r ia s . Es s es m omentos podem ocorrer , m a s n ã o torn a m u m a vida ilu m in a da . Precisamos pergu n ta r : "O qu e s ign ifica pa ra m im da r , n es te m om en to?". Por exem plo, qu a n do o telefon e toca , com o podem os da r? Qu a n do es ta m os n u m t ra ba lh o fís ico

lim pa n do, p in ta n do, cozin h a n do , o que significa dar totalmente?

Em bora n ã o pos s a m os n os torn a r pes s oa s ca pa zes de da r tota lm en te a pen a s pen s a n do s obre is s o, podem os n ota r qu a n do n ã o da m os tota lm en te. Ocu lta m os de n ós m es m os n os s a s m ot i-va ções a u tocen tra da s , e a p rá t ica a ju da -n os a perceber o qu a n to s om os a u tocen tra dos . A verda de é qu e, a qu a lqu er m omento, s om os com o s om os . Precis a m os viven cia r is s o, s a ber qu a is s ã o n os s os pen s a m en tos e s en s a ções corpora is , e, en tã o, a os pou cos , n os s a vivên cia pode volta r -s e s obre s i m es m a . Nós n ã o tem os de fa zer is s o. Is s o s e volta s obre s i m es m o por s i. Nã o podem os n os fa zer s er de u m a cer ta m a n eira . Im a gin a r qu e podem os é u m a da s m a iores a rm a d ilh a s da p rá t ica . Ma s podem os tom a r con ta to com a nossa intolerância e grosseria, com nossa preguiça e com os outros jogos qu e joga m os . Qu a n do percebem os com o s om os de verda de, a s cois a s len ta m en te com eça m a vira r

com o a con tece com ta n tos a lu n os qu e ten h o. É m a ra vilh os o a s s is t ir a is s o. Qu a n do a

Page 249: Nada de Especial - WordPress.com · 2017-11-19 · "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso

revira volta a con tece, es s a gen t ileza ou ca pa cida de de doa çã o difunde-se. É disso que trata a prática. Em vez de um novo ideal

"Eu n ã o qu ero vis itá -lo h oje à ta rde

m a s eu d everia estar

dando" , agimos e vivenciamos o que acontece dentro de nós.

Então, por favor: dar, dar, dar e praticar, praticar, praticar. É esse o Caminho.