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A concepção do espetáculo, portanto, é assumida primeiramente a partir das
possibilidades oferecidas pelos princípios da modernidade coreográfica. Não era o
primeiro espetáculo coreografado por Morgan, mas foi o primeiro em que ele trabalhou
intensamente com aspectos fundantes do arkhé29 religioso nagô, sem negar a dança
moderna, o balé clássico e as danças dos orixás.
Sua intenção, ao representar o Orixá, não era a de imitação, como o ele é
apresentado no Xirê30, e sim fazer com que seus intérpretes recriassem a qualidade de
movimentos e a energia interior provocadas pelo arquétipo desses orixás, acompanhadas
pelos ogãs alabês31 do Terreiro do Gantois, Vadinho, Dudu e Edinho. Particularmente,
para as dançarinas, havia certa dificuldade nessa interpretação, pois elas não faziam
parte do universo religioso do candomblé. Esse fato foi respeitado pelo coreógrafo,
aceitando os limites de cada intérprete.
As vivências experimentais no Ilê Axé Opô Afonjá, com as histórias dos mitos
contadas por Mestre Didi e as orientações sobre o que podia ou não ser colocado no
espetáculo, ou seja, a permissividade por aspectos do fundamento do sagrado feita pelo
Mestre Didi e sua esposa Juana Elbein dos Santos, foram conteúdos aproveitados por
Morgan para as criações dos mitos no referido espetáculo.
Segundo Mircea Eliade (1972: 32) a função do mito é:
Compreender a estrutura e a função dos mitos nas sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa da história do pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos.
29 Arkhé pode ser entendido como princípios, origem. 30 Xirê – Início da festa pública da cerimônia religiosa do candomblé, na qual os orixás são evocados através da dança e da música. 31 Ogãs Alabês – São homens de prestígios sociais que cuidam da parte musical e dos instrumentos do terreiro de candomblé, sendo destacados nas festas dos orixás.
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Nesse sentido, posso afirmar que a montagem e a estréia caracterizam-se
predominantes por envolver, na trajetória de sua experiência cênica, momentos de
paixão, entrega, talento e reciprocidade.
O espetáculo baseado neste conto mítico afro-brasileiro inicia-se mostrando a
arrumação espacial de um barracão para uma cerimônia religiosa pública, chamada
“Xirê dos Orixás – a festa e a distração dos Orixás – cujo espaço onde se realiza, é
decorado com bandeirolas de papel, nas cores do orixá festejado”.(CACCIATORE,
1988:35).
Ainda neste espaço, o chão é cuidadosamente varrido, salpicado com folhas
perfumadas especialmente de pitanga, e grandes palmas da planta também conhecida
como Peregun são amarradas com fitas e presas nas paredes.
Para os terreiros de candomblé a celebração pode se apresentar ambiguamente e
aí não vai nenhuma contradição na medida em que se denuncia a estrutura social vigente
em que os elementos negros-mestiços pobres estão inseridos sem a eqüidade por eles
reinvidincada. Por outro lado, a celebração pode se tornar um fim, em si mesma, ou
seja, nos terreiros é festejado e efêmero momento proxêmico; é como resume Maffesoli:
(...) se é inegável que existe uma sociedade “política” e uma sociedade “econômica”, existe também uma realidade que dispensa qualificativos, é que é a coexistência social como tal que proponho chamar ‘sociabilidade’, e que poderia ser a “forma lúdica da socialização”. No quadro do paradigma estético, que me é caro, o lúdico é aquilo que nada tem a ver com a finalidade, utilidade, “praticidade”, ou com o que se costuma chamar “realidade”. É, ao invés, aquilo que estiliza a existência, que faz ressaltar as características essenciais desta. Assim, a meu ver, o estar-junto é um dado fundamental [...] ele consiste nessa espontaneidade vital que assegura a uma cultura sua força e solidez específica (MAFFESOLI: 114/115).
Faço aqui uma ponte entre as colocações de Maffesoli e as noções de
“comunitas” e “estruturas” defendidas por Turner e tão largamente utilizadas pelos
antropólogos brasileiros que entendem a festa do candomblé como rituais (que podem
simbolicamente e denunciam aspectos estruturais da nossa sociedade).
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Para Turner, nas sociedades humanas encontram-se dois modelos sociais
contrastantes: a) estrutura e b) “comunitas”. No primeiro, a sociedade existe “como uma
estrutura de posições, cargos, status e funções jurídicas, políticas e econômicas, na qual
o indivíduo só pode ser ambiguamente aprendido atrás da personalidade social”
(TURNER, 1974:214).
Nele, a sociedade conhece “um sistema de posições institucionais diferenciado,
culturalmente estruturado, segmentado e freqüentemente hierárquico” (Op. Cit: 214).
Posso dizer que a vida social tem aí um objetivo essencialmente pragmático.
No segundo modelo – o “comunitas – a sociedade é formada de indivíduos
concretos e idiossincráticos que, apesar de diferirem quanto aos dotes físicos e mentais,
são, contudo considerados iguais do ponto de vista da humanidade comum a todos”
(Op. Cit: 214).
Neste modelo, a sociedade se apresenta “como um todo indiferenciado e
homogêneo, no qual os indivíduos se defrontam uns com os outros integralmente, e não
como ‘status’ e funções segmentarizados”.
Portanto, “socialidade” (Maffesoli) e “comunitas” (Turner) se caracterizam,
como vimos, por se expressarem primordialmente no contexto do coletivo. Se na
”comunitas“ é exercitado o rigor das estruturas pragmáticas da sociedade, a
”socialidade” se constitui no próprio sentido da vida comunitária.
Os ritos são a própria história dos homens, traduzidos de uma forma simbólica e,
como diz Cazaneuve, “são testemunhas que definitivamente se podem reconduzir às
estruturas simples” (CAZANEUVE 1978: 8).
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Eles (os ritos) têm a finalidade que refletem a sua própria natureza social e aqui
identificada por Da Matta (1980: 24):
(...) é o ritual que permite tomar consciências de certas cristalizações sociais mais profundas que a própria sociedade deseja situar como parte dos seus ideais eternos. (...) ele surge como uma idéia crítica para se penetrar na ideologia e valores de uma dada formação social.
Assim posso compreender o Ilê Axé Opô Afonjá como constituído por
microssistemas que, além de manifestar-se ritualmente em sua particularidade apontou o
dilema estrutural em que se encontram os seus religiosos.
Relevo para os esses estudos, o componente comunicativo presente nos rituais.
O componente de comunicação social presente nas festas do terreiro revela o lado
espiritual, dos seus filhos e adeptos, ao mesmo tempo, em que os relaciona às
expectativas de todo o corpo social em que estão inseridos seus atores, isto é, os filhos
de santo.
Em Porque Oxalá usa Ekodidé, enquanto projeto individual, a festa é passível de
trazer para o palco o conjunto de éticas comuns à sociedade como um todo. As
observações e a participação do autor deste trabalho no contexto do espetáculo, em
particular, dão conta de que neles coexistem a um só tempo a informalidade,
“comunitas” ou “socialidade” e a obediência a um conjunto de valores comuns aos
membros da sociedade: respeita-se uma hierarquia do orixá Oxalá, exerce-se uma
micro-política, enfim, segue-se uma ética comum a toda sociedade. Na prática, os
terreiros de candomblé criam e desenvolvem modos de defesa e autovalorização.
Externa e internamente, o terreiro de candomblé revela um componente de
“etnicidade”, cujos “fenômenos relativos a comportamento ou crenças determinadas ou
condicionadas pela situação de membros de povos - etnias ou nações - inseridos em
sociedades anfitriãs” (BACELAR, 1989: 88).
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No entanto, ocorre uma idealização de papéis sociais proporcionada pelo
momento extraordinário do espetáculo no qual vemos mestiços, negros e brancos no
espaço proporcionado (Solar do Unhão); um lugar de realização de uma vida ideal:
todos são iguais e são membros de uma orgulhosa tribo africana.
O espetáculo possui, em suas ‘raízes’, uma ligação entre o moderno e o
tradicional, também afirmando a sua contemporaneidade, através de uma identidade
mítica fundamentada em aspectos simbólicos da cultura afro-brasileira. Assim, os
símbolos espetaculares do candomblé e da Dança Moderna funcionam como um elo
entre esses dois tempos históricos.
No estudo de objetos mestiços, vê-se que ocorre a mestiçagem na coreografia
Porque Oxalá usa Ekodidé. Quando se observa as movimentações, encontro não só os
movimentos ijexá e giká do candomblé, como também encontro as piruetas, os passos
do balé clássico, as quedas e sustentações e as carregas da Dança Moderna.
O espetáculo traz uma base da memória cultural que se articula, não como se
articulava no passado de Morgan, mas sim, buscando uma nova intenção de dança. Com
sinais de intenção de contemporaneidade que estão no presente, Morgan traz para nós
um modo de dançar bastante peculiar nesse espetáculo, que é get down e a vitalidade do
orixá Oxalá e os movimentos de braços arredondados do balé clássico.
Quanto ao desenvolvimento técnico coreográfico vemos que a prática de
Morgan neste espetáculo e em outros trabalhos artísticos era bastante diferenciado dos
outros professores que o antecederam:
Morgan apresentava na Escola de Dança, estratégias metodológicas aprendidas
nas suas experiências e convivências em outros locais vividos como vou citar a seguir:
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• O aquecimento corporal na maioria das vezes era iniciado em círculo, no
qual todos podiam se ver enquanto desenvolviam os exercícios, enquanto
os outros professores ficavam de pé na frente e os alunos em posições de
fileiras. O círculo pode ser considerado como um continuum energético
vital nas tradições africanas e afro-brasileiras. É circular as formas de
habitações tradicionais africanas e indígenas, assim como é na forma
circular que se inicia o xirê do candomblé;
• Ele desenvolveu exercícios de improvisação, utilizando os instrumentos
percussivos já citados como também músicas de compositores africanos
e brasileiros;
• Estimulou a pesquisa de campo em espaços religiosos e populares como
o Parque São Bartolomeu, o Ilê Axé Opô Afonjá, Parque da Cidade e
feiras livres na capital e interior da Bahia;
• Estimulou as composições solísticas com temas e músicas nacionais;
• Respeitou as particularidades técnicas corporais do seu elenco/alunado;
• As trocas com outros profissionais e entidades despertaram no seu elenco
ampliação dos horizontes práticos/teóricos, ou seja, despertou em nós a
curiosidade e o gosto pelas pesquisas artísticas e sociais;
Mesmo sendo coreógrafo e diretor dos espetáculos, fazia questão de dançar
solos, como ocorreu no Porque Oxalá usa Ekodidé.
A seguir, apresento o programa do espetáculo:
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Porque Oxalá usa Ekodidé
PROGRAMA
Grupo de Danç a Contemporâ nea da UFBA Direç ã o Artí stica e Coreográ fia: Clyde Morgan
Coordenaç ã o: Laï s Gó es
Danç arinos  ngela Maria Oliveira
Armando Visuette Carmem Paternostro
Eusé bio Lobo da Silva Everaldo dos Anjos
Guio Borges Laï s Salgado Gó es Marli Sarmento
Eunice dos Santos (Danç arina Convidada) Lucia Helena Cordeiro (Danç arina Convidada) Reginaldo Daniel Flores (Danç arino Convidado)
Mú sica - Djalma Corrê a
Atabaquistas - Edson/Florisvaldo/Lula Som - Pedro Juraci Almeida Luz - Ednilson Machado Costureira - Stelita Silva
PERSONAGENS
OXALÁ – Clyde Morgan
OMO OXUM – Marli Sarmento IANSÃ – Carmem Paternostro
OXÓ SSI – Euzé bio Lobo MENINA – Guio Borges
OXUM – Laï s Gó es OGUM – Everaldo dos Anjos OMOLU – Armando Visuette
INVEJOSOS – Â ngela Oliveira, Armando Visuette, Lú cia H. Cordeiro
PESSOAS DO TERREIRO Carmem Paternostro
Euzé bio Lobo Everaldo dos Anjos Eunice dos Santos Reginaldo Flores Armando Visuette
Raimundo Bispo dos Santos
MÚ SICAS DO CULTO selecionadas por Deoscó redes M. dos Santos
ORIENTADORES DE PESQUISA REALIZADA NO TERREIRO ILÊ AXÉ OPÔ AFONJÁ Deoscó redes dos Santos e Juanita Elbein
LOCAL DE APRESENTAÇ Ã O
Solar do Unhã o
DIAS 14, 15 e 16 de dezembro de 1973, à s 21 h.
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A seguir, faço a descrição das cenas do Porque Oxalá usa Ekodidé:
A 1ª Cena é a procissão, com todos vestidos de branco conduzindo o orixá Oxalá
coberto com o seu Alá branco (tecido grande), vai entrando pelo grande salão do Solar
do Unhão – que foi transformado num palco para a encenação do auto-coreográfico.
Morgan é Oxalá, o personagem central deste momento; vai chegando com o seu corpo
todo curvado para baixo, pernas semi flexionadas e giká 32 nos ombros de forma suave,
ele vem andando bem devagarzinho como uma pessoa bem idosa, com as pernas
enfraquecidas. Ele vem chegando, amparado pelos seus dançarinos auxiliares Eunice
dos Santos e Reginaldo Flores.
Todos, com exceção de Oxalá, iniciam o espetáculo cantando uma canção
tradicional do candomblé para este grande ajudante de Olorum que, por sua indicação veio
à terra para criar a humanidade. O cortejo é acompanhado pela flauta de Elena Rodrigues e
os atabaques e agogô de Florisvaldo (Vadinho), Edson (Edinho) e Luís (Lula).
Em todas as cenas, segue-se a narrativa do conto literário do mesmo título, a
própria história escrita pelo mestre Didi. Na 2ª cena, a personagem central é Omon
Oxum que junto com a sua filha, tomam conta da coroa, estão lavando e espalhando as
roupas no sol, já preparando para a festa de Oxalá.
O espaço do andar superior do Solar do Unhão, está decorado, todo enfeitado.
As preparações são limitadas ao espaço, atuando no imaginário do espectador como
sendo o fundo do quintal de onde ela, Omo Oxum, trabalha.
Ainda nesta cena, vê-se os invejosos que vêem os pertences de Oxalá estendidos
no sol e resolvem roubar a coroa. Omon Oxum é interpretado pela dançarina Marli
32 Movimentos vibratórios e circulares dos ombros, bastante comum nas danças dos orixás do candomblé brasileiro.
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Sarmento e a sua filha é representada por Guio Brandão. Os invejosos são interpretados
por Armando Visuette, Lúcia Cordeiro e Ângela Oliveira.
Eles pegam a coroa e a jogam no mar. Nesta cena, se apresenta o desespero de
Omo Oxum e sua filha, ao não encontrarem a coroa de Oxalá estendida no local onde a
deixaram.
A 3ª cena é a do pescador, encenado por Euzébio Lobo da Silva. Para essa cena
Morgan orientou-o durante os ensaios, incumbindo ele de ficar algumas horas com um
lençol familiarizando-se para a cena da tarrafa33. Na coreografia Morgan, utilizou
realmente a tarrafa, que Lobo joga no mar e, eis que a puxando, surge um peixe grande
e prateado, que foi feito de arame e alumínio confeccionado por Morgan.
Morgan resolveu fazer a pesca dessa forma, para dar melhor efeito visual da
jogada da tarrafa e mais teatralidade do que o peixe pescado pela linha e anzol e, para
ver todo o jogo do corpo do pescador em pé. Esta cena é considerada por Morgan como
uma ação de plasticidade teatral. A tarrafa brilha com a luz prateada da iluminação
utilizada. O pescador pega o peixe com movimentações de extensão e contração de
braços e pernas, sob os efeitos de luzes esverdeadas dando um aspecto de luminosidade
na madrugada e depois parte, para levá-lo ao mercado onde será encontrado por Omon
Oxum.
A 4ª cena é o encontro dos dois para a entrega do peixe e também a chegada de
Omo Oxum em casa onde a filha a ajuda a abrir e tirar a coroa de dentro da barriga do
peixe. A movimentação não é de mímica, mas é uma movimentação estilizada, abstraída
do tema. Os movimentos que ilustram esta narrativa são circulares com os braços
elevados para cima mostrando a todos os presentes, a coroa encontrada. 33 Rede de nylon de pequeno porte utilizada por pescadores, com a qual podemos assistir, em algumas praias de Salvador, a puxada de rede, ou seja, o recolhimento dessa rede com pequenos peixes.
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A coreografia é desenvolvida em círculo, segurando a coroa com as mãos e com
a expressão facial de felicidade. A dançarina Marli Sarmento representando Omo
Oxum, juntamente com mais três dançarinas executam uma pequena seqüência
coreográfica com movimentos circulares e braços arredondados no plano alto. Daí, Omo
Oxum oferece um almoço para os seus convidados. Para este momento estão todos com
roupas brancas.
Ainda na 4ª cena, os dançarinos entram carregando cadeiras com fitas brancas
parecendo borboletas voando na sala, todos estão vestidos com roupas brancas,
carregando e girando as cadeiras. Nessa cena, temos a celebração entre as mulheres por
terem descoberto a coroa. A coroa está no centro da sala, sobre uma pilastra para
enriquecer a celebração. Neste momento é a dançarina Carmem Paternostro que dança
juntamente com Marli Sarmento e com Ângela Oliveira.
Na 5ª cena, a mesa para a festa de Oxalá. A mesa foi feita por um pano muito
comprido, esticado pelos quatro pontos. Morgan fez com que ela pudesse ficar inclinada
na horizontal. Essa técnica de criar uma mesa com tecido ele aprendeu com José Limón,
na dança chamada O Traidor, que era sobre a Santa Ceia, onde todos os discípulos
sentavam-se à mesa. Apenas um pano, segurado por todos os componentes, foi o que
deu a aparência de uma mesa. Com uma mão eles seguravam a mesa e com a outra mão
faziam gestos simulando estarem bebendo e comendo. Nesse almoço foi servido o
peixe, no qual foi encontrada a coroa.
Logo após esse momento do almoço e festejos, a 6ª cena acontece. Aí os invejosos
estão planejando, preparando o Ebó, ou seja, o feitiço contra Omon Oxum. E todos estão
vestidos de malhas, pintadas com impressões de mãos, para dar efeito de mãos sujas, e
também trazendo a impressão de elementos modernos. Eles engatinham como cobras,
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lagartixas, animais rasteiros, em nível baixo do espaço. Trabalham também com uma
vasilha, com uma gamela cheia de fogo com pedaços de algodão já acesos.
Eles movimentam com esse elemento ou com esse ebó na cadeira onde Omon
Oxum vai sentar-se. Então, essa magia do ebó é no sentido de destruição.O elemento
visual dá esse efeito de incêndio, um efeito de alguma coisa que vai causar dor, ou
desconforto. Então, o fogo é o elemento pensado para esse momento de magia.
Por falta de verbas, o próprio elenco é quem preparou todo o cenário. Eles
prepararam o espaço cênico espalhando isopor pelo chão, visando criar o sentido de
nuvens e ondas de mar. Quando as pessoas passam correndo, o isopor voa por todo o
chão do Solar do Unhão.
Convém afirmar que esse foi um elemento criado a partir do momento em que
Morgan participou de uma festa religiosa no Ilê Axé Opô Afonjá. Um dos elementos do
ritual no barracão do Opô Afonjá foi a pipoca, mas, as bolinhas de isopor são utilizadas
para dar esse mesmo efeito, pois pipocas iriam atrapalhar o desempenho nas
coreografias uma vez que poderiam ficar presas nos pés dos dançarinos. Então, Morgan
teve a brilhante idéia de aproveitar o isopor. Estas bolinhas de isopor criam um melhor
efeito cênico já que se deslocam no espaço com facilidade conforme as movimentações
coreográficas; voam melhor e criam formas como se fossem espumas e nuvens num
chão tão polido, tão especial.
O fogo, o peixe, as cadeiras, a mesa, o prato e as bolinhas de isopor foram
recursos empregados para dar mais teatralidade ao espetáculo.
Toda aquela ambientação de natureza mítica do Solar do Unhão foi aproveitada
nos ensaios. Nos momentos de improvisações, Morgan sempre pedia ao elenco que
olhasse e sentisse a energia vibratória positiva do mar, que inalassem aquele cheiro
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peculiar e especial, assim como olhassem em volta e vissem e refletissem sobre aquelas
plantas, aquelas pedras, aquele salão.
As colunas de cimento estavam todas enfeitadas de fitas brancas e, para dar o
efeito de céu, o teto está todo coberto de bandeirolas brancas. Estas bandeirolas são
inspirações oriundas do ambiente do Ilê Axé Opô Afonjá, pura imitação do que lá foi
visto por Morgan; o vento que passava no espaço durante o espetáculo, movimentava as
bandeirolas dando um efeito de nuvens.
A idéia de utilizar a cor branca nos enfeites, além de ser a cor do orixá Oxalá,
proporciona também melhor iluminação, assim como dá para esconder certas áreas
rústicas e criar um espaço definido e parecido com as casas de candomblé que existem
na Bahia.
Outros detalhes de importância para o Solar do Unhão são as próprias madeiras,
as tábuas largas e bem polidas naquela arquitetura antiga refletindo o próprio brilho
depois de enceradas, contrastando com o branco das roupas. Foram utilizadas ainda,
esteiras de palha para enquadrar determinadas áreas do espaço e fazer separações entre
o palco e a platéia.
A platéia ficava em posições diferentes. Sua disposição espacial não era um
procênio de um teatro tradicional e nem era de arena. Por todos os ângulos tinha-se uma
boa visão do evento. A estrutura das encenações era construída como se fosse uma arena,
como se fosse um próprio terreiro, uma vila tradicional ou um vilarejo africano. Essa
característica é um elemento das concepções espaciais da estética da Dança Moderna
À cerimônia que antecede a do Ebó ou feitiço, aparecem pessoas para as festas
das águas de Oxalá e, nessa altura está todo o elenco de branco, porque é uma festa para
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o povo, para a comunidade da redondeza. Neste momento que é a 7ª cena, os orixás
propriamente não apareceram como orixás já que o elenco não finge que está
“manifestado” como ocorre nos grupos folclóricos de Salvador quando encenam o
candomblé. Estar manifestado é estar possuído, na maioria das vezes a pessoa fica com
os olhos fechados ou semi-abertos, com as expressões faciais transformadas e o corpo
em estado alterado.
Na 8ª cena, que é a do Ebó contra Omo Oxum estão todos ainda vestidos de
branco. No momento em que Omon Oxum sentada tenta se levantar, não consegue fazê-
lo, nem mesmo ao ouvir o pedido de Oxalá para que ela traga a sua coroa. Como ela não
consegue se levantar da cadeira imediatamente, Sarmento, sob a orientação de Morgan
expressa-se corporalmente com sacudidelas e contorções em todo o corpo, criando
movimentações vibrantes de força, a tal ponto em que a cadeira sai do lugar e
simbolicamente causa nela um sangramento. Nesse momento, a saia branca desce
mostrando uma outra saia vermelha, para simbolizar a menstruação.
Os movimentos são contraídos na região do plexo solar e enquanto está sentada
na cadeira, Omo Oxum faz bastante força nas pernas e pés para cima e nos braços
empurra a cadeira para baixo no sentido de querer sair dela. E quando sai começa a girar
até cair no chão ainda contraindo o corpo e levando o espectador a imaginar que ela está
tendo ataques convulsivos.
Para a 8ª cena, foram utilizados tecidos e tiras vermelhas ligadas à cadeira e na
roupa dela, visando assim um efeito de violência com o próprio corpo, numa forma
espantosa de aparecer. A festa fica tumultuada. As pessoas protegem Oxalá para que ele
não veja o sangue (considerado uma tragédia segundo a mitologia africana), cobrem a
sua cabeça e saem correndo com ele para a sua morada.
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Enquanto Omo Oxum se contorce no chão, uma outra parte do elenco fica em
cena fazendo movimentos de giros e quedas dando uma idéia de tumulto e destruição
por todo o espaço. Destruição no sentido em que a beleza da festa é transformada numa
espécie de furacão com, giros, quedas, pulos, um comportamento muito violento, para
exibir toda a revolta. Omon Oxum desesperadamente, sempre correndo em círculos vai
pedir socorro a várias pessoas por todos os cantos o que lhe é sempre recusado. De
todos, uma das personagens interpretadas por Ângela Oliveira demonstra ser a mais
ciumenta da comunidade em que Omo Oxum e filha estão celebrando a descoberta da
coroa e a preparação das águas de Oxalá.
Constatei que as roupas para a festa de Oxalá são bem coloridas para dar um
sentido de festividade e de proporcionar expressão de alegria ao almoço, cuja felicidade
e descoberta têm origem nas águas sagradas de Iemanjá.
Omon Oxum vai à casa de Oxum para pedir ajuda, sendo bem recebida por sua
mãe espiritual que já tomou conhecimento do evento e do seu desespero provocado pelo
sangramento. As duas fazem um duo com movimentos circulares dos braços com o
abébe (leque dourado), Omo Oxum sai rolando pelo chão e, ao levantar-se encosta o seu
corpo ao de Oxum, acompanhadas pelo toque e dança do ijexá.
Toda essa mis-en-scène, além do pedido de socorro, apresenta o momento em
que a magia de Oxum está sendo manifestada e ela começa a transformar o sangue em
penas vermelhas ou Ekodidé. Depois que Omon Oxum é socorrida, fica transformada,
renovada pelo orixá Oxum e resolve fazer uma grande festa, para que Omon Oxum
retorne à comunidade.
Na 9ª cena, a comunidade reconhece a força e o poder dela como feiticeira e
dona das riquezas de uma espécie de reconciliamento social. E para essa festa vêm
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todos os outros reis e rainhas, ou seja, os orixás para conhecerem esta transformação: o
retorno de Omo Oxum como componente da família legítima e a sua purificação.
O poder de Oxum é de grande transformação para Omo Oxum. Os 6 orixás
chegam e cada um pega uma pena vermelha a as colocam nas suas testas e nas coroas.
Durante esta homenagem fazem as suas respectivas danças. Um por um.
Morgan faz questão de apresentar neste espetáculo a movimentação dos orixás
que são cultivados aqui na Bahia em ritos sagrados: Obaluaê ou Omolu, Iansã, Xangô,
Oxum, Oxóssi, Ogum e Oxalá.
Tudo isto é apresentado através das cores, ritmos, dos sentidos do olfato e da
visão. Este conto é afro-brasileiro e não autenticamente africano. Morgan afirma que a
coreografia é autenticamente afro-brasileira. Neste conto, Mestre Didi fala desde a
coroa até os sapatos. Durante a montagem do espetáculo, Morgan ficou em dúvida se
sapatos faziam parte da indumentária de Oxalá na África em época que nos remete à
escravidão. A história brasileira nos mostra que sapatos são objetos oriundos do
continente europeu; Morgan pensava se podiam usar chinelos, mas a história do mestre
Didi dizia sapatos.
Morgan afirma que certas colocações são colocações afro-brasileiras e têm a ver
com este espaço, o aqui e agora. Então, a dança dos orixás, cada um com a sua própria
roupa como se fosse uma festa que acontece aqui na Bahia. Principalmente quando se
realizam festas pra Oxum, é costume que outros orixás se manifestem.
A festa brasileira é sempre o momento em que as famílias dos orixás africanos
separados se reúnem. Vejo também que faz parte do cenário, o prato Opô Ifá – que é um
prato sagrado onde é feito o jogo das adivinhações, melhor dizendo o jogo do Ifá.
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Segundo Santos “(...) nas tradicionais comunidades afro-brasileiras os mitos são apenas
referências a um passado histórico; são meios de transmissão, de comunicação que se
revivem aqui e agora, dramatizados através da liturgia, da prática ritual”. (1972: 54),
A 10ª cena acontece quando os invejosos, confusos, fogem. Alguns atores fazem
duplos papéis, no caso, de Armando Visuette que dança Obaluaê e faz parte do trio dos
invejosos, Carmem Paternostro, que é uma das amigas de Omo Oxum, retorna
interpretando o outro papel, do orixá Iansã.
Ainda nesta cena, Oxalá, tomando conhecimento da maldição e do
conhecimento do feito pelos invejosos, resolve visitar a festa e homenagear Oxum. Vai
para saber o que está acontecendo e com toda a calma ouve, dos próprios invejosos, o
que fizeram para prejudicar Omon Oxum. Em seguida, resolve ir e fazer parte da festa.
No início do espetáculo que representa a festa das Águas de Oxalá, Oxalá chega
coberto por um Alá carregado pelos seus assistentes. Mas, quando aparece já na cena
que corresponde à festa de Oxum não vem coberto por este manto sagrado. Ele chega
simplesmente com a sua indumentária: calça, túnica e um pano grande cobrindo as suas
costas de cor branca, ao qual chamamos de filá.
Sua entrada é por último, dando prosseguimento ao processo de reconhecimento
de colaborar com todas as contribuições de Oxum para Omo Oxum, toda a sua riqueza
espiritual e também à volta de Omon Oxum para o seu palácio. Assim, se encerra o
espetáculo.
Em minha percepção, são corpos sujeitos que contam histórias dentro de um
conto, no qual Morgan coreograficamente criou formas, ondulando, deslizando,
saltando, girando, excitando, cortando, demonstrando capacidades corporais de tornar
140
presente sua ancestralidade. Ao mesmo tempo em que são capazes de executar tantos
outros movimentos, quantos assim sejam necessários, todos, a partir da consciência das
marcas da cultura da dominação racial, ferradas, tatuadas nestes corpos.
Como esse trabalho se insere na década de setenta percebi que a narrativa era
uma das características da Dança Moderna, estilo esse que começa a surgir no final do
século XIX incrementando-se realmente no século XX. Segundo Navas, “(...) a dança
viveu na Europa e nos Estados Unidos, momentos de ruptura e negação, onde cada nova
dança estruturava uma técnica acadêmica, instaurando uma tradição cíclica no
desenvolvimento da dança” (1987: 25).
A Dança Moderna, que nega os artifícios do balé clássico, introduz-se no Brasil
na década de cinqüenta, quando na Europa já havia se estruturado enquanto técnica
acadêmica. Já na tradição afro descendente, um dos sentidos primordiais de força está
na existência do corpo: sua ancestralidade e a relação de tempo e lugar, onde este corpo
se manifesta social e historicamente, bem como da subjetividade que compõe este
corpo, suas crenças e ritos de viver.
Neste sentido, o espetáculo mostra corpos fortes e fechados, conforme manda a
tradição africana. Corpos com forças, com axé, tornando possível a dinâmica africana.
Corpos que, como a palavra, são objetos ativos, que coexistem como objetos de poder,
de identidade, de linguagem e reflexão.
Com isso fica nítida a variação dos movimentos corporais apresentados no
espetáculo, que é orientada pela música percussiva sob a direção musical de Djalma
Corrêa. Observei variedade de movimentos nos pés paralelos, deslizando na meia ponta
com movimentos ondulados e cortados de braços, quadris com rotação, requebrados,
soltos e independentes, especialmente, nas danças de Iansã e Oxum.
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Estes corpos realizam, ainda mudanças de níveis do espaço – alto, médio e
baixo, alguns pulos e giros, mostrando as habilidades corporais do elenco nas formas
curvas e retas, reportando-nos às estratégias técnicas de José Limón.
Seguindo a proposta de se dialogar a dança com as artes visuais, o cenário deste
espetáculo e figurino também são assinados por Morgan, enriquecidos por papéis, flores
e tecidos. O lugar da cena vivida é, neste espetáculo, também o lugar da afirmação da
cultura africana, da esperança que se alcança.
Este espetáculo absorve das danças africanas a presença marcante da polirritmia,
da repetição e da fluidez. A bunda e as coxas roliças dos personagens que são os
invejosos em cena, esculpidas em roupas justas de helanca pintadas pelas mãos de
Morgan, ao mesmo tempo, em que nos denuncia uma beleza erótica exorbitante,
também nos aponta uma outra forma de denúncia, aquela do corpo como objeto de
desejo, de uso material, descartável.
Porém, a bunda expressa através dos macacões, é mais do que isso, é sonoridade,
é dança, é movimento. Para Luz (2002: 68), a origem da palavra bunda se desdobra de
um povo Bantu, os Mbundo.
A dança com os quadris é um patrimônio da nossa ancestralidade africana. Nas
danças africanas e afro-brasileiras o sacudir dos quadris, ou o rebolado das “cadeiras” dos
orixás, combina com o ritmo da percussão dos atabaques rum, rum pi e lé e com a Dança
Moderna. Para Oliveira (2005: 31), a dança com requebros sempre fez parte da vida dos
povos negros africanos, assim como a indumentária, a música e o canto.
E no conto de Mestre Didi, vejo que Omon Oxum herdou dos ancestrais
africanos o expressar da alegria e do contentamento através da dança por ter achado a
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coroa do orixá Oxalá. Esta é uma tradição que ainda se mantém, visto que é ainda
comum na sociedade soteropolitana, festejarmos com a dança e a música, as iniciações
religiosas, os batismos, os aniversários e as colações de grau.
Como define Santos, “o diálogo entre passado e presente, realidade
retextualizada, permite a emergência de um ethos que perpassa as fronteiras das
variáveis das comunidades-terreiros, das instituições afro-lúdicas e culturais”. (1986:
59) Para esta autora as artes africanas estão profundamente associadas à religião e
ambas impregnam todas as atividades do negro brasileiro, onde “o conceito estético é
utilitário, tem finalidade uma função. O belo está a serviço de um conteúdo”.(1986:60)
Este trabalho coreográfico desenvolvido por Morgan no G. D. C. na Escola de
Dança da UFBA, merece destaque em vários sentidos, entre eles a renovação técnico-
coreográfica e a criação artística sintonizada com valores culturais ancestrais. O seu
trabalho de recriação estética pluricultural para a Dança Moderna na Bahia, a partir de
uma re-significação das danças religiosas e sociais, de origens africanas, consideradas,
até então como danças folclóricas, também possibilitaram algumas manifestações
artísticas brasileiras, em especial a capoeira e o teatro popular.
A obra de Morgan propôs autonomia destes corpos-sujeitos, ou seja, corpos que
realizam suas danças como manifestações de si, de seus desejos e de suas
ancestralidades, expressões incorporadas como parte legítima da constituição integral
destes sujeitos, em si e em suas comunidades, principalmente na cidade de Salvador.
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Figura 28 – Dançarino Clyde Morgan (1971). Foto: Artur Ikishima
Figura 29 –Cartaz do II Concurso Nacional de Dança Contemporânea (1978). Desenho de Edsoleda Santos, inspirado em foto de Clyde Wesley Morgan.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho procurei estudar o contexto da trajetória artística do
coreógrafo norte-americano Clyde Wesley Morgan, tentando captar todo o seu processo
criativo. A partir desta perspectiva das relações criador-intérprete e intérpretes do Grupo
de Dança Contemporânea - G. D. C. da UFBA, vi que, embora um discurso teórico em
comum os justifiquem ideologicamente, no GDC existia, no entanto, determinadas
particularidades (ritmo, mística, espaço, gestos) que caracterizam cada um deles.
Em se tratando de Morgan – nosso objeto de estudo – é na busca de diferenciação
que se estabelecem as suas identidades culturais, do moderno e do tradicional. Ao
inspirar-se nas culturas musicais e religiosas afro-brasileiras, africanas, nordestinas,
européias e norte-americanas, embasadas num processo etno-histórico, desconhecidas
para alunos da Escola de Dança da UFBA até a sua chegada à Bahia, Morgan não perdeu
de vista o conjunto de relações sociais e de poder vividos pelo grupo.
Baseado nas experiências anteriores, que viveu no trânsito cultural por onde
circulou, é que ele criou para si uma identidade mítica, cuja maior fonte fora a sua
vivência nos paises africanos já citados e na comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá em
Salvador, na Bahia. Assim, é na identidade ancestral mítica que ocorre a afirmação da
sua identidade religiosa no candomblé, que não é fantasia nem tampouco a busca pelo
mundo prometido.
Artista e pedagogo afro norte-americano, Morgan contribuiu, a partir da década
de 1970 e atualmente, para a discussão da questão do negro na sociedade baiana e
brasileira, o que continua fazendo com determinação.
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Um fato particular da presença de Morgan, no GDC é o encontro do tradicional
com o moderno. Determinados símbolos referentes a tradicional cultura afro-brasileira,
a exemplo daqueles do candomblé, da capoeira e do samba, encontram-se com os
elementos da modernidade na Escola de Dança da UFBA. Nessa época a Dança
Moderna vem a ser, enquanto estilo de dança, um dos mais expressivos resultados da
criação proporcionada pelo homem.
A reação contra o seu interesse em criar coreografias voltadas para a cultura
afro-brasileira se constituiu num processo revelador do processo social do grupo: ao
conjunto de símbolos estigmatizantes atribuídos à cultura afro considerada como
“folclore”, num sentido pejorativo, Morgan procurou responder a esses conceitos
estereotipados com prática multirreferencial, pois ele buscava além das práticas
modernas da Escola de Dança da UFBA, algo que fosse expressivamente baseado na
cultura e arte afro-baiana. Assim se expressa:
Acreditamos que a importância da técnica e do conhecimento de todos os idiomas da dança melhora a definição e sua direção cultural. A atividade dos grupos de dança contemporânea e o estilo que predomina nos trabalhos de dança da juventude definem apenas uma faixa cultural das possibilidades. Nós queremos definir efetivamente os campos de ação e outras possibilidades da dança contemporânea. (Entrevista em 26/07/2005).
Embora as mulheres durante as entrevistas não afirmem, os homens negros
afirmam que ouviam certas opiniões sobre o trabalhar com determinados temas como
“fazer folclore” carregadas também pelo preconceito racial.
Nenhum mergulho no passado permanece sem conseqüências. E, assim, está
sendo com este trabalho sobre a presença deste “Alafiju de Oxalá” Clyde Wesley
Morgan de 1971 a 1978, enquanto diretor e intérprete no Grupo de Dança
Contemporânea da UFBA.
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Tentei fazer um trabalho de pesquisa cuidadosa, guiada com todo o zelo pelos
ancestrais, depois pela orientadora e, sobretudo, com zelo em preservar o passado e
reconstruir uma história documentada.
Mais que um arquivo para uma instituição, este trabalho visou oferecer à
memória de um personagem oriundo de uma geração, respaldado com falas desta
geração do Grupo de Dança Contemporânea, que teve o privilégio de ser jovem, quando
a nossa cidade não tinha ainda ações políticas que determinaram as ações atuais, em
especial o estudo das quotas para negros e indígenas nas Universidades públicas e
particulares.
E foi nessa condição de ter sido jovem (e de ainda ser), o criador-intérprete, que
Morgan chegava a Salvador no momento em que nascia um dos segmentos do
movimento negro – o bloco afro Ilê Aiyê, uma escola especial, a Escola de Música com
artistas como Lindembergue Cardoso, Rufo Herrera e Ernest Widmer – um movimento
cultural em Salvador, cuja riqueza materializou-se em marcas deixadas numa geração,
em que a lembrança me transtornou e me transportou.
O transtorno surgiu da pergunta que nos ocorre em diferentes momentos da vida,
ao perceber que a passagem por essa vida obriga –me a deixar preciosidades pelo
caminho: o que mudou em minha vida com essa preciosa convivência? Interrogo,
procurando reencontrar a presença dessas marcas na minha profissão.
Naturalmente, transporto-me ao passado e sou invadida pela nostalgia do já
perdido ou do nunca alcançado. E, a pergunta exigente: que fiz com todo aquele
entusiasmo que me acompanhava nas aulas de dança com Morgan acompanhadas pelos
músicos Elena Rodrigues, Ivan Machado e Edson Elias (Tamba). Foram momentos de
absoluta elevação espiritual, em que as apresentações, tanto na Escola de Dança, como
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no Jardim Suspenso da Praça Municipal ou no Solar de Unhão eram coroações festivas,
absolutamente imperdíveis.
Morgan teve, e continua tendo, uma vida profissional atuante e diversificada. É
personagem famoso e citado nas danças, nas artes plásticas, na música e como
protagonista do movimento negro. Aqui, deixou herança importante, de dimensões
incalculáveis e interagiu com personalidades ilustres como Ernst Widmer, Lindemberg
Cardoso, Mestre Didi, Pierre Verger, Caribé, dentre outros. Seu legado é inestimável.
Quando ele falava, não importava sobre o que, minha atenção era exclusiva para
ele. Ele nos ensinou a fazer o “diário de bordo”, ou seja, tudo que víamos e sentíamos
era para ser anotado no caderno de desenho, também reproduzíamos desenhos e
colagens cuidadosamente, sinalizando para nós mesmos, a importância da observação
crítica em arte.
Estudando, lendo os artigos, vendo as fotos, cartazes e programas deste período,
retorno ao mundo da mutação da consciência humana, sonhos e reflexões sobre a dança.
Não apenas na dança, mas na arte em geral, no mundo em geral, sempre na vanguarda,
captando e revelando as manifestações e formas de vida dos humanos.
Morgan lutou e luta por um ensino de dança e criação cênica regional sem perder as
referências ancestrais africanas e indígenas, baseadas numa cultura geral, num programa
moderno e eficiente que respeita no aluno os seus dons naturais, desenvolvendo sua
personalidade e conduzindo-o à procura de estilo e expressão próprios.
Mostrou e ainda mostra aos alunos que é possível a multirreferencialidade sem
perder de vista as culturas básicas e estruturais da sua comunidade atrelando a emoção
ao prazer de dançar.
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Posso dizer: bons tempos que não voltam mais. Porém, prefiro afirmar: foi um
tempo maravilhoso que deu bons frutos e que nunca deixará de retornar, pois além de
Morgan estar vivo, ativo e criativo, com os seus 66 anos de idade, ele continua deixando
seguidores neste mundo dançante do qual eu também faço parte.
Morgan trouxe o resultado de uma experiência, na qual se procurou explorar as
possibilidades de criações coreográficas espontâneas, para as quais são dadas regras,
sem, todavia, existir uma estrutura predeterminada. Ele reforçou e ensinou aos
dançarinos como se concentrarem interiormente para exteriorizarem através de suas
criações, emoções de idéias ou situações, a encontrarem pontos fixos e referências
técnicas durante o processo de improvisação e criação coreográfica.
Ele me fez pensar e me conduziu também, na escuta das outras culturas musicais
e dançantes que hoje temos. Estou segura de que a tradição africana e a afro-brasileira e
a contemporaneidade caminham juntas. Essa é quase uma certeza, pois certezas
absolutas, verdadeiramente, não posso tê-las. O ouvido do profissional de arte tem que
ser um ouvido atento à cultura que está no seu entorno, respeitando as criações e as
diversidades, pois, “da mesma forma (maneira) que as grandes águas e rochas definem a
nossa costa é assim que o tempo e a constituição intrínseca determinam a arte de um
povo” (MORGAN, 2005).