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“Não vou deixar usarem a minha cultura”! O papel da cultura no ativismo de fã-gamers
em League of Legends1
Tarcízio Macedo, PPGCom-UFPA, PA, Brasil
Resumo
Neste artigo, partimos de uma observação de um movimento comunicativo de resistência
gerado no antigo fórum oficial brasileiro do jogo on-line League of Legends (LoL), de maio a
junho de 2014. Defendemos a hipótese de que os atos de resistência cultura e econômica dos
fãs do jogo estão baseados em uma relação cultural que funciona como elo que cria engajamento
e reforça as práticas de resistência frente à conduta da empresa em cobrar por um bem virtual
inspirado, pela primeira vez no game, em um elemento da cultura brasileira e amazônica: o mito
da Iara, remodelado sob a forma de skin para a personagem Nami. A metodologia constitui-se
de um processo articulado por dois eixos, baseado na triangulação metodológica e no uso de
protocolos etnográficos guiados por uma abordagem lurking. As conclusões apontam para a
diversidade das apropriações e usos dos fãs da cultura como um vetor que liga, estabelece laço,
une, encontra-se naquilo que é o interesse comum de uma parcela significativa do fandom de
League e permite uma relação de socialidade entre os que compartilham da comunidade, agindo
como impulsionadora da prática e dos atos de resistência.
Palavras-chave: Ativismo de fã-gamers; Socialidade; Comunicação e Cultura.
Introdução
Tendo em vista que toda comunidade de conhecimento é construída a partir de interesses
comuns recíprocos, qual a função da cultura, representada pela imagem da personagem Nami
Iara no jogo League of Legends2, no movimento comunicativo de ativismo de fã-gamers que
tomou conta do antigo fórum oficial brasileiro do jogo on-line entre os meses de maio a junho
de 2014? Trata-se, nesta pesquisa, de refletir sobre o papel da cultura e de sua manifestação
primeira, a imagem da personagem, na constituição do que definimos como manifestação do
ativismo de fã-gamers em League e da comunidade de conhecimento, e inteligência coletiva,
que o engajamento gera no âmbito do potencial de representação política da comunidade
brasileira de jogadores de LoL.
A importância do contexto cultural, e de sua representação imagética neste movimento,
aponta para a dinâmica de uma estética do estar junto em que o fator cultural funciona como
valor gregário que aproxima os diversos membros e auxilia na organização política
descentralizada dos fãs contra a atitude capitalista da empresa. Nossa análise sugere que uma
1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 25
e 27 de outubro de 2016, Belém/PA. 2 League of Legends (LoL), ou apenas League, é um jogo em ambiente digital produzido e distribuído pela empresa
norte-americana Riot Games. O jogo possui uma versão nacional desde 2012, totalmente dublado para o país. Mais
informações sobre o game estão disponíveis em Macedo e Amaral Filho (2015).
2
expressão frequente e significativa para a construção do engajamento de cunho resistente e da
formação desta comunidade de conhecimento é a cultura, cuja representação encontra-se na
imagem da personagem Nami Iara. O objetivo deste artigo é também, portanto, mostrar que as
memórias, imaginários, inconscientes, símbolos nacionais de pertencimento etc., ou seja, tudo
aquilo que pode ser definido como a cultura praticada em certos espaços geográficos, atuam de
modo decisivo como mediadores no contexto das ações de fãs em ambientes digitais.
A partir do tecido social presente neste movimento de resistência3, intentamos refletir
sobre o que está na origem do processo social que não é específico dessa comunidade de fãs,
mas que pertence a uma categoria fundamental partilhada: os interesses comuns que ligam,
reúnem e levam as pessoas a resistir. Tal conjuntura remete a procura por laços de socialidades4
temporárias ou duradouras, de um estar-junto, mesmo virtualmente, que o próprio fenômeno
engendra e atrai. É, sem dúvida, uma nova forma de laço social que igualmente merece atenção.
Por meio deste recorte específico, queremos compreender um dentre muitos elementos
que podem motivar essas práticas interacionais de resistência nessas novas ambiências
comunicativas, como os fóruns on-line, em que os indivíduos compartilham informações e
relacionam-se nesses espaços por meio de práticas interacionais emergentes que se propagam
no cenário comunicacional contemporâneo. Trata-se de discutir a forma que acreditamos ser o
referencial estruturante da interação neste ativismo de fã-gamers5 em particular: a cultura como
uma aisthesis para a resistência.
Comunidades virtuais: formas de associação na cultura contemporânea
A palavra “comunidade” pode ser utilizada para abordar diversos tipos de grupos
sociais. Conforme nos alerta Leandro (2008, p. 156), apesar de uma quantidade variada de
aplicações, a definição da terminologia passa pela dimensão subjetiva, principalmente. Ao
discorrer sobre “comunidade”, podemos abordar diferentes questões que subjazem ao
fenômeno, tais como a questão da territorialidade, o viver comum, o estar-junto (MAFFESOLI,
3 Partimos do pressuposto da resistência como um processo de engajamento e cultura participativa relevante,
constituído a partir do choque entre os discursos capitalistas da empresa e o de pertencimento cultural do público
de fãs (MACEDO; AMARAL FILHO, 2015; 2016, p. 159; MACEDO, 2016b, 9-10). 4 O termo socialidade é resgatado por Maffesoli (2003, 2010) a partir de sua interpretação da obra de Simmel
(2006) para definir os novos ajuntamentos urbanos, baseados nas relações banais do cotidiano, no presenteísmo,
no hedonismo e no sentir coletivo, características típicas, segundo Maffesoli (2003, 2010), das sociedades
ocidentais contemporâneas. 5 Em Macedo e Amaral Filho (2016) e Macedo (2016b) realizamos uma ampla revisão bibliográfica a respeito dos
conceitos de ativismo, ativismo de fã, participação política, engajamento cívico, ativismo de fã-gamers, resistência
e movimento comunicativo que não cabem neste artigo. Por ativismo de fã-gamers descrevemos como “[...] um
tipo específico de prática de contestação e resistência vinculada a conteúdos lançados ou existentes em plataformas
de jogos digitais por um lobby específico de fãs, referindo-se ainda a uma forma de engajamento cívico e
participação política gerada em espaços comerciais ou não-comerciais” (MACEDO; AMARAL FILHO, 2016, p.
162).
3
2014), ao sentimento de pertencimento, o sentimento coletivo de estar com outros, de “nós”.
“Esse sentimento propicia o estabelecimento de interconexões de comunicação, desde o mais
primitivo momento histórico até a vida contemporânea” (LEANDRO, 2008, p. 156-157).
Pode-se afirmar que este sentimento de pertença e existência de interesses comuns,
como a cultura, são os firmamentos para concretizar as conexões entre membros da
comunidade, porque serão estes valores que manterão a unidade social em contraponto a todos
os fatores que podem afastá-los. “A dimensão subjetiva se coloca, assim, como mais
significativa do que outras dimensões, como a da espacialidade, também inegavelmente
associada à ideia de comunidade” (LEANDRO, 2008, p. 157).
Rheingold (2005) foi o primeiro autor a difundir o conceito de comunidade virtual, a
partir de 1993. Para ele, uma comunidade virtual é um espaço de agregação cultural formada
pelo encontro de um grupo de pessoas no ciberespaço sistematicamente, que podem ou não
atenderem uns aos outros pessoalmente. Esse tipo específico de comunidade virtual é movido
pelo compartilhamento de ideias e palavras, nas quais existe a coatuação dos seus integrantes,
por meio do compartilhamento de interesses, valores, metas e posturas de apoio recíproco, por
meio da tela de um computador e pela rede.
Como qualquer comunidade, o conjunto de membros aderem a um determinado contrato
social (mais fluído) e que compartilham certos interesses (RHEINGOLD, 2008, p. 3). Palacios
(1998, on-line) elenca os elementos que caracterizam uma comunidade clássica: o sentimento
de pertencimento, uma territorialidade (geográfica e/ou simbólica); a permanência; a ligação
entre sentimento de comunidade, de caráter cooperativo e emergência de um projeto comum; a
existência de formas próprias de comunicação; e a tendência à institucionalização. Segundo
Palacios (1998, on-line), “o cyberespaço parece conter todo tipo imaginável de comunidade”,
desde as mais engajadas, de discussões, de marcas, até as mais solidarias, voltadas para causas
sociais, políticas e humanas.
Em uma crítica ao pensamento de Bauman (2003), Costa R. (2005) argumenta que a
noção de “comunidade” do autor é demasiado romântica, por impedir a compreensão do que
está ocorrendo nos movimentos coletivos da nossa época. Ele argumenta que, ao contrário do
que Bauman (2003) percebe, o processo de comunidade realizado em ambientes digitais é
baseado na cooperação e trocas objetivas de ideias, experiências e conteúdos, não na
permanência de laços sociais duradouros, como critica Bauman (2003), que se relaciona a um
dos princípios das comunidades clássicas que Palacios (1998) nos mostra. De toda forma, a
“‘comunidade’ produz uma sensação boa por causa dos significados que a palavra
‘comunidade’ carrega: é a segurança em meio à hostilidade” (BAUMAN, 2003, p. 7).
4
Conforme Castells (2003, p. 48), as comunidades virtuais funcionam baseadas em duas
características fundamentais: o valor da comunicação livre, horizontal, na qual as práticas em
comunidades virtuais são de livres expressões globais, e o que o autor chama de formação
autônoma de redes, ou seja, a possibilidade permitida a qualquer indivíduo de descobrir sua
própria direção na internet, e, “não a encontrando, de criar e divulgar sua própria informação,
induzindo assim a formação de uma rede” (CASTELLS, 2003, p. 49).
Kozinets (2014, p. 17) argumenta que existe algum senso de continuidade na
participação e uma interação social sustentada por uma certa familiaridade entre os membros
para determinar “afiliação à comunidade”, tais como autoidentificação como um membro,
repetido contato, familiaridade recíproca, conhecimento compartilhado de alguns rituais e
costume, algum senso de obrigação e participação. As comunidades virtuais organizam-se por
meio de grupos de pessoas inter-relacionadas em busca da inteligência coletiva, em potencial6.
Um grupo humano se interessa em se estabelecer como comunidade virtual para beirar-se do
ideal do coletivo inteligente7, mais capaz de instruir e ser instruído, de criar e propagar.
Tais grupos são assegurados por meio do processo de produção recíproca e bilateral
intercâmbio de conhecimento. Segundo Jenkins et al (2014, p. 209), os interesses dos membros
de comunidades virtuais são coletivos e envolvem “dar forma a representações, declarar
significados e valores, alterar termos de serviços e condições de trabalho e utilizar as
plataformas para movimentos maiores em prol da mudança social”, característica esta última
presente em parte das relações comunitárias que se estabelecem enquanto ativismo de fã-
gamers em League.
A respeito da formação de comunidades em jogos tradicionais, os clubes, Huizinga
(2000, p. 13) dizia que esses ajuntamentos de jogadores tendem a uma permanência, mesmo
após o fim do jogo.
[...] a sensação de estar “separadamente juntos”, numa situação excepcional, de
partilhar algo importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas
habituais, conserva sua magia para além da duração de cada jogo. O clube pertence
ao jogo tal como o chapéu pertence à cabeça (HUIZINGA, 2000, p. 13).
No contexto do nosso objeto, a comunidade virtual poderia ser considerada uma das
etapas para a constituição de um clube. Neste estudo, a comunidade virtual que analisamos é o
antigo fórum oficial do jogo mantido pela empresa que administra o jogo. “A comunidade
6 Em Macedo e Amaral Filho (2016), defendemos a hipótese do ativismo de fã-gamers como constituído a partir
das dinâmicas da inteligência coletiva. 7 Conforme Lévy (2003, p. 94) nos lembra, “o coletivo inteligente não submete nem limita as inteligências
individuais; pelo contrário, exalta-as, fá-las frutificar e abre-lhes novas potências”.
5
pertence ao jogo tal como o chapéu pertence à cabeça” (MACEDO; AMARAL FILHO, 2016,
p. 154).
Abordagem metodológica: percorrendo caminhos, delineando uma trilha
No início deste trabalho, dissemos que nosso objetivo é buscar compreender qual o
papel da cultura representada pela imagem da skin Nami Iara na construção da prática do
ativismo de fã-gamers em League, uma vez que ela é o motivo principal que gera o engajamento
e a participação dos fãs. Para viabilizar este objetivo, as metodologias aplicadas à pesquisa
foram adaptadas conforme as exigências colocadas pelo objeto. Para este fim, realizamos uma
proposta metodológica sustentada por dois eixos para constituir nossa esfera empírica.
Neste trabalho, utilizamos das duas grandes estratégias analíticas de dados
desenvolvidas dentro da pesquisa empírica: a análise quantitativa e qualitativa. A este tipo de
pesquisa, segundo Freitas e Jabbour (2011, p. 9), de mescla de abordagens e métodos de
pesquisa é chamado de triangulação metodológica, ou, conforme preferem outros
pesquisadores, de mixed-methodology, baseada a partir da utilização combinada e continuada
sequencialmente de uma fase de pesquisa quantitativa seguida de uma fase qualitativa, ou o
contrário. Com base neste pensamento, posicionamo-nos dentro de uma gama de pesquisadores
que misturam as duas abordagens, de modo que buscamos a apropriação do aporte quantitativo8
para fornecer e estimar o impacto do movimento, compilados em dados, que direcionam uma
melhor análise qualitativa posterior de modo a contextualizar, aprofundar e tencionar os
detalhes das singularidades do levantamento de dados quantitativos.
A priori, realizamos uma observação do movimento in loco durante o mês de maio a
junho de 2014 de como o movimento manifestava-se. Posteriormente, a partir de uma segunda
etapa exploratória realizada em julho de 2014, partimos para um mapeamento do movimento
travado no fórum para estimar seu impacto, auxiliando ainda na delimitação do corpus e na
construção de amostras qualitativas. Nesta fase, realizamos coletas de dados por palavras-
chaves na época em que o fórum oficial permitia o uso desta ferramenta. Em um terceiro
momento, realizamos duas triagens, uma parcial entre os dias 12 e 13 de julho de 2015 e uma
segunda varredura, mais sistemática e refinada, cujo objetivo era procurar validar os resultados
anteriores e acrescentar outra palavra-chave associado ao movimento, seguindo para uma
análise quantitativa do impacto comunicativo do ativismo no fórum. Realizamos um
mapeamento quantitativo do movimento para construção de uma amostragem com base em
8 Contudo, pela limitação textual, apenas expomos alguns dos critérios, fatores e resultados desse mapeamento e
análise qualitativa para nos determos na análise qualitativa.
6
cinco critérios: (1) local de incidência, (2) temporalidade, (3) representatividade numérica e
popularidade (agregação), (4) especificidade temática e (5), por fim, aceitação e vínculo.
Durante estas fases iniciais de observação e mapeamento, foram recolhidos exemplos e
realizadas anotações diversas parar aprofundamentos na segunda etapa, quantitativa.
Neste segundo momento, utilizando de protocolos do método etnográfico sob um viés
lurking, realizamos novas observações nos dias 21 a 25 de outubro de 2015. Nessa etapa de
observação, analisamos como os fãs articulavam-se a partir do elemento cultural no fórum para
impulsionar o ativismo de fã-gamers. A respeito do uso do método etnográfico nesta pesquisa,
conforme apontam Fragoso et al (2013, p. 188), tal abordagem é passível de combinação com
outros métodos e técnicas, reforçando e desvelando uma perspectiva holística de determinado
fenômeno, ampliando reflexões a partir da utilização de outros aparatos teórico-meotodológicos
para estudos empíricos.
O ambiente da internet permite uma proliferação na escala de milhões de mundos on-
lines, sites e comunidades de fãs, fóruns de discussões e uma infinidade de outros espaços que
propiciam discussões dos mais variados tipos. São ambientes nos quais há uma variedade de
fandoms9 de produtos midiáticos dispersos em diversas plataformas distintas nos quais
pesquisadores podem utilizar como campo de estudo de pessoas, culturas e jogos (COTE e
RAZ, 2015, p. 97).
No processo de coleta de dados quantitativos, construção de amostras qualitativas,
observação no ambiente on-line e nas distintas fases analíticas este estudo possui inspirações
etnográficas. Segundo Fragoso et al (2013, p. 168), uma pesquisa que utiliza deste recurso
metodológica apropria-se de partes dos procedimentos considerados etnográficos de pesquisa
possibilitando a inclusão de protocolos metodológicos e práticas de narrativa para formar a
análise dos dados, sem os rigores ou o comprometimento que são aplicados em um estudo de
viés etnográfico.
Na época da realização da pesquisa, o fórum de LoL, palco para os debates e as
discussões travadas sobre a criação da skin10 inspirada na Iara, sofreu uma grande mudança11
que o tornou um arquivo sobre a história da comunidade de League desde a chegada do servidor
9 A expressão inglesa fandom é um neologismo criado a partir da contração das palavras ingleas fan e kingdom,
que significam respectivamente fã e reino. Logo, a palavra fandom significaria “o reino dos fãs” ou a “comunidade
dos fãs” que promove uma variedade de formas de letramento que perpassam diversas possibilidades criativas que
vão desde comentários, notícias, ilustrações, ficções de fãs, etc. (MACEDO; AMARAL FILHO, 2015, p. 151). 10 Skins são itens vendidos dentro do jogo que alteram os designs de personagens dentro jogo, funcionam como
“peles” ou vestimentas para personagens e incorporam de referências estéticas e culturais diversas. Eles são
adquiridos por meio de moedas virtuais em League, obtidas por meio da troca por dinheiro (MACEDO; AMARAL
FILHO, 2015, p. 234). 11 A mudança entrou em vigor no dia 10 de fevereiro de 2015. Disponível em: http://goo.gl/fsPVNI.
7
ao Brasil. O fechamento do fórum o tornou estático, desativando uma série de funções antes
disponíveis e impedindo qualquer usuário de atualizar ou modificar qualquer comentário ou
conteúdo, além disso a mudança de nomes no jogo feitas pelos fãs permitidas no game não seria
mais atualizada automaticamente no fórum, o que dificulta ainda mais o acesso aos informantes.
Com o desligamento do fórum, houve também a remoção de várias ferramentas, como o sistema
de buscas e o sistema de classificação de posts que antes eram disponíveis, o que dificultou
consideravelmente e demandou maior tempo para a delimitação do corpus a ser analisado. O
fato do fórum estar desativado exigia, portanto, a busca por estratégias e alternativas para
compreender e delimitar a pesquisa sem, no entanto, comprometer a análise e os resultados.
Por conta desta razão, inicialmente não conseguimos entrar em contato com uma
quantidade considerável dos fãs participantes do movimento comunicativo de resistência para
que pudéssemos realizar algumas etapas fundamentais do estudo etnográfico – eis um dos
motivos pelos quais utilizados um estudo de inspirações etnográficas. A partir do mapeamento
e análise qualitativa do corpus empírico, esta pesquisa interessa-se pela análise de interações
de uma quantidade considerável de fãs que participaram de discussões no que tange a respeito
do nosso tema focal, a partir do qual procuramos defender a hipótese de que os atos de
resistência12 dos fãs podem ser baseados em uma relação cultural que funciona como elo que
cria engajamento e reforça as práticas de resistência frente à conduta da empresa em cobrar por
um bem virtual inspirado em um elemento da cultura nacional brasileira e amazônica.
Dentro dos estudos na internet, existem diversos modelos de observação on-line,
específicos para cada objeto empírico e que reivindicam abordagens próprias. Nessa
multiplicidade de possibilidades metodológicas existe uma prática na qual o ato de observação
do pesquisador pode não ser conhecida, considerada uma prática “à espreita” ou “encoberta”, a
partir da qual o intercâmbio entre o investigador e o informante ocorre abertamente por meio
da presença on-line do pesquisador em determinado ambiente digital: tal perspectiva é
conhecida como lurking13. Nela, Fragoso et al (2013, p. 192) identificam o chamado
pesquisador “silencioso” ou lurker.
Evidentemente, como indicam as autoras, a inclusão do pesquisador no campo, apesar
de não ser um participante ativo incorporado previamente na cultura em questão ou não se
12 Por atos de resistência, circunscrevemos às formas de engajamento dos fãs no âmbito da cultura participativa,
de modo mais específico qualquer tipo de interação no âmbito da comunidade virtual de LoL que esteja
posicionando a opinião de um fã explicitamente contra à venda da skin da Nami Iara ou insatisfeito com a decisão
da empresa (MACEDO; AMARAL FILHO, 2016, p. 149; MACEDO, 2016b, 1). 13 Segundo Fragoso et al (2013, p. 192), é o ato de entrar em fóruns, comunidades on-line, listas de discussão,
dentre outros, apenas como observador, contudo, sem participação ativa com os membros. Isto, por si só, não seria
permitido uma vez que o fórum estava desativado para comentários.
8
apresente enquanto tal, já provoca uma mudança no objeto. Eis, portanto, mais uma justificativa
que utilizamos para uma abordagem de inspirações etnográficas. Como toda e qualquer
abordagem metodológica, há ganhos e perdas com essa prática e isto deve ser esclarecido,
sempre tomando cuidado para proteger e garantir o anonimato de todos os informantes.
A escolha desta abordagem menos intrusiva perante o grupo pesquisado, descrita neste
artigo, é realizada e refletida de acordo com questionamentos e justificativas éticas que foram
confrontadas ao longo do curso de desenvolvimento desta pesquisa e que, muito seguramente,
possui impacto nos resultados. Além disso, partimos do pressuposto que o pesquisador lurking
deve mostrar-se aos poucos para a comunidade e construir um processo metodológico contínuo
que, atualmente, encontra-se em fase de elaboração para a segunda etapa desta pesquisa.
Para fins de análise, serão consideradas as interações diversas classificadas como “atos
de resistência” na matéria de lançamento da skin (“Deixe-se conquistar pela canção da Nami
Iara”, com 310 comentários), e em algumas publicações do tipo tópico no fórum oficial do jogo,
sobretudo uma postagem (“Sobre o preço da Nami Iara”) de um funcionário da empresa
informando a decisão da mesma sobre a mobilização gerada a respeito da skin. O tópico com
maior quantidade de interações por meio de comentários (740 dispostos em 75 páginas internas
do tópico, o equivalente a 36,58% do total de respostas) e visualizações (67,981, o equivalente
a 45,81% do total de visualizações) foi justamente este cujo objetivo era esclarecer a decisão
da empresa sobre o preço da skin, que também foi a última incidência (publicação) sobre o tema
no fórum, mas que gerou amplo debate e o maior número de práticas de resistência durante a
existência do movimento.
Entretanto, cabe ressaltar que nossa análise não se limita apenas a uma publicação com
o maior grau de incidência participativa da comunidade de fãs, seja de comentários ou
visualizações, mas também de outros tópicos (a saber, “Nami Iara será 975 RP”, “Nova Skin:
Nami Yara a caminho!!!” e “Skin da Nami ta de graça para os BR ou não???”, cada uma com
respectivamente 7, 8 e 10 comentários) que ajudam a contextualizar a movimento e nos quais
são travados ricos debates entre alguns poucos fãs. Apesar de não alcançarem visibilidade e
repercussão na comunidade, estes espaços e os argumentos utilizados nos comentários
enquadram-se na perspectiva de um movimento de resistência de fã-gamers na internet. Desta
forma, analisamos um total de 765 comentários dispostos em 78 páginas do fórum e em 310
comentários na matéria de lançamento da skin no site do game (não há numeração de páginas)
realizados nos cinco objetos escolhidos.
A formação de uma comunidade de conhecimento
9
Uma comunidade de conhecimento é concebida por Jenkins (2009, p. 57) como uma
nova forma comunitária que surge no contexto da convergência. Para o autor, “essas novas
comunidades são definidas por afiliações voluntárias, temporárias e táticas, e reafirmadas
através de investimentos emocionais e empreendimentos intelectuais comuns” (JENKINS,
2009, p. 57). Um indivíduo pode ainda pertencer a diversas comunidades, bem como se deslocar
de um grupo para outro de acordo com a mudança de interesses pessoais. Por sua vez, as
comunidades funcionam por meio da produção colaborativa mútua e pela partilha recíproca de
saberes. Tais grupos atuam para estimular cada membro a procurar por novas informações em
prol do bem comum que mantém os laços associativos entre as partes (JENKINS, 2009, p. 57).
Lévy (2003) denomina de comunidades de conhecimento uma organização de
consumidores midiáticos que procuram desempenhar maior potência em suas relações de
negociação com os conteúdos dos meios de comunicação por meio do poder aglomerado. O
que não se consegue realizar sozinho, constrói-se coletivamente. Este processo estaria
suscitando o nascimento de uma nova força colaborativa na cultura digital, e as ações desta
comunidade de conhecimento colaborativo mudariam as formas como a cultura de massa opera.
Uma comunidade de conhecimento é construída a partir de interesses intelectuais
mútuos, conforme afirma Jenkins (2009, p. 48), na qual os seus membros trabalham em equipe
para construir novos conhecimentos, em domínios com a ausência de especialistas tradicionais.
A avaliação e a busca por esse conhecimento estão permeadas por relações solitárias e
divergentes, ao mesmo tempo. Analisar o funcionamento de uma comunidade de conhecimento
pode revelar muito sobre a natureza social do consumo de mídia na contemporaneidade e
mostrar como o conhecimento torna-se uma ferramenta de poder importante na era da
convergência midiática (JENKINS, 2009, p. 48).
No nosso objeto, a skin da Nami Iara atende a um antigo anseio dos jogadores
brasileiros, um certo requisito de uma cultura em se ver representada no universo do jogo14. A
primeira incidência sobre o movimento gerado pela skin no fórum oficial foi encontrada na
página 1492 do subfórum “Discussão Geral” no dia oito de maio (data da notícia da prévia da
skin), dentre as 3462 disponíveis naquela sessão específica. Foram criados vários tópicos sobre
14 Tópicos criados no fórum como “RIOT precisamos de uma skin em homenagem ao Brasil”, no dia 26/06/2013,
com 183 upvotes e responsável por 85 páginas de discussões entre fãs e funcionários da empresa, e “[Discussão
aberta] Inspirações culturais no League of Legends”, no dia 20/03/2014, com 42 upvotes e responsável por 45
páginas de discussões com jogadores e membros da Riot Games, retratam o anseio da comunidade pela
representação no jogo, como uma forma de ganhar visibilidade. Disponível, respectivamente, em:
http://goo.gl/7VAjtR e http://goo.gl/EEWNka.
10
o possível anúncio de uma skin representativa do Brasil. Em alguns desses tópicos, foi possível
verificar alguns comentários.
Finalmente a SKIN BRASILEIRA que representa um tema uma cultura uma historia,
não a representação banal e boçal de um filme que apenas nos passa violência e a
impressão de um Pais sem preceitos. Espero que demonstre que foi feito em
homenagem a nosso servidor para que o mundo conheça um pouco de nossa cultura
(grifo final nosso).15
A parte grifada, no que diz respeito à homenagem ao servidor brasileiro, será um assunto
igualmente debatido pela comunidade após o lançamento oficial da skin. A pesquisadora Hine
(2000), ao pensar sobre a internet como objeto de estudos, propôs dois modelos de abordagens
teóricas, passíveis ou não de estarem conectados, para que se possa construí-la conceitualmente:
a internet enquanto artefato cultura e enquanto cultura. Segundo Fragoso et al (2013, p. 41), a
perspectiva da internet enquanto cultura é amplamente aceita como um espaço distinto do off-
line, de modo que os estudos focalizam aspectos de fenômenos que ocorrem nos ambientes
digitais.
Contudo, este estudo procura perceber a internet a partir da visão enquanto um artefato
cultural, mais especificamente percebendo a skin Nami Iara enquanto um artefato cultural. O
conceito de artefato cultural é proveniente da antropologia e dos estudos sobre as comunidades
(FRAGOSO et al, 2013, p. 42). Segundo nos mostra Shah (2005, p. 8),
um artefato cultural [...] pode ser definido como um repositório vivo de significados
compartilhados que são produzidos por uma comunidade de ideias. Um artefato
cultura é um símbolo comunitário de pertencimento e possessão (no sentido não
violento e não religioso da palavra). Um artefato cultura se torna infinitamente
mutável e gera muitas autorreferências que são mutuamente definidas, muito mais do
que gera uma narrativa linear central16. Por estar além do alcance da lei, o artefato
cultural torna-se um signo para a construção da Ordem Simbólica dentro da
comunidade. Ele carrega uma autoridade ilegítima, que não é sancionada por sistemas
legais ou pelo Estado, mas pelas práticas vivenciadas pelas pessoas que as criam
(tradução nossa).
Encarar a skin Nami Iara como um artefato cultural, um reservatório repleto de
significados que são compartilhados e ambientados culturalmente, permite perceber as
inserções da tecnologia na vida cotidiana. Desta forma, favorece o entendimento da rede como
um elemento da cultura e não como uma entidade distante e fronteiriça a ela, em um panorama
15 Excerto de comentário de um fã em post, intitulado “Nova Skin: Nami Yara a caminho!”, publicado no subfórum
de “Discussão Geral” em 08/05/2014. A resposta recebeu 1 upvotes. Alguns dos pequenos problemas de
formatação nesta e em outras citações de fãs presentes neste estudo foram marcados em itálico, além disso,
igualmente utilizamos deste recurso para dar ênfase em partes específicas das falas dos informantes. Optamos por
manter padrões de linguagens, transcrevendo-os diretamente da internet, para conservar a originalidade dos
enunciados dos fãs. 16 Para uma melhor contextualização sobre as múltiplas narrativas dos fãs para a empresa sobre o caso Nami Iara,
confira Macedo e Amaral Filho (2016).
11
que se distância da abordagem da internet como cultura, sobretudo, pela integração dos âmbitos
on-line e off-line e pelas influências realizadas entre ambos os contextos. O conceito de artefato
cultural depreende que há diversas definições culturais em diferentes âmbitos de uso. Enquadra-
se o objeto internet não como sendo único, e sim multiface e suscetível de adaptações.
Pelo fato dos estudos desta abordagem destacarem a perspectiva de artefato cultural
observando questões a respeito dos discursos sobre a internet, a exemplo dos discursos
libertários alusivos à natureza anárquica e “à atitude contracultural dos hackers e cyberpunks
do início da rede [...] e os processos de produção e consumo na construção do sentido dos seus
usos sociais” (FRAGOSO et al, 2005, p. 42), trabalhamos nesta perspectiva, uma vez que
refletimos sobre as vozes dos fãs em um movimento comunicativo. A noção de internet como
artefato cultural possibilita a compreensão do objeto como um espaço intersticial em que as
fronteiras entre o on-line e off-line são diluídas e ambos espaços interagem.
O interesse comum: a cultura como pertencimento, vetor de socialidade
O objetivo deste tópico é mostrar que o lugar físico, as memórias, imaginários,
inconscientes e culturas praticadas em certos espaços geográficos atuam de modo decisivo no
contexto de ambientes digitais.
Apenas o fato de receber algo gratuitamente, um presente, já é um motivo suficiente
para muitos se engajarem em prol de uma causa, até mesmo aqueles que sequer possuem
competências culturais para compreender o que é a Nami Iara. Isto porque um dos desafios da
inteligência coletiva, das comunidades de conhecimento, é lidar com a individualização que se
evidencia por meio de múltiplas pautas atendendo a múltiplas vontades (MACEDO; AMARAL
FILHO, 2016, p. 167): o interesse pelo benefício pessoal em primeiro lugar, da cultura do “eu”
sobrepondo ao “nós”, pois tais comunidades não estão imunes desse processo, apesar de
Maffesoli (2014) refletir sobre o declínio do processo de individualismo nas sociedades, ele
ainda está presente em diferentes facetas do cotidiano.
É um processo de desprendimento do indivíduo das redes de pertencimento que o leva
paralelamente a um processo de individualização, da forma como os laços sociais são frágeis e
podem facilmente serem desfeitos em casos de conflitos e desagrado para ambas as partes, de
modo que o relacionamento interpessoal ganha os ares mercantis (BAUMAN, 2007, p. 8-9).
Como corrobora Costa R. (2004, 2005), todo tipo de comunidade, sociedade ou grupo está
entremeando em negociações de preferências individuais. O fato de conviver com outrem
coloca em questão as próprias preferências individuais das pessoas em relação com as de outros.
12
Não pretendemos realizar grandes construções sobre o conceito de cultura, mas o
compreendemos a partir de alguns fatores: a cultura condiciona a visão de mundo do homem,
por meio da propagação da herança cultural como a narrativa mítica da Iara amazônica,
interferindo no plano biológico; possui uma lógica própria de dinamismo, no qual o lugar
geográfico possui expressão (o Brasil e a Amazônia) e por meio da qual os indivíduos
participam diferentemente de sua cultura (LARAIA, 1986). “O vínculo social”, segundo nos
mostra Leandro (2008, p. 157), “mantido em um determinado espaço pode ser entendido como
parte de uma comunidade”, caso este vínculo seja realizado a partir de alguma crença, tradição,
etnia ou característica outra comum que aproxima aqueles que compartilham tal situação.
Nesse sentido, as narrativas, como lendas e mitos, desempenham uma função de vínculo
social e organizadora dentro da sociedade, tentando fornecer explicações ao questionamento
humano (BENJAMIN, 1994). Para Simmel (2006, p. 71), sociação é, principalmente, interação
e o caso mais puro dela é aquela que ocorre entre iguais. “Abstraída da sociação pela arte e pelo
jogo, a sociabilidade demanda o tipo mais puro, claro e atraente de interação, aquele que se dá
entre iguais” (SIMMEL, 2006, p. 71). Para alcançar a socialidade e a “igualdade” é preciso uma
completa “eliminação” temporária daquilo que é inteiramente pessoal e material, dos seus
conteúdos objetivos, portanto, para se tornar sociavelmente semelhante perante um grupo.
Logo, “cada qual só pode obter para si os valores de socialidade se os outros com quem interage
também os obtenham” (SIMMEL, 2006, p. 71), feito isto, haveria um espírito comum unitário
no qual prevaleceriam contribuições iguais. Para nós, o que une a todos os fãs no ativismo de
fã-gamers em League e permite a socialidade enquanto forma é a cultura.
Voltemos nosso olhar para nossa hipótese de que a cultura é um dos fatores que nos liga
ao outro, uma maneira contemporânea de referenciar o simbolismo, cuja essência encontra-se
na ideia de conjunção para Maffesoli referindo-se à comunicação. Apropriando-nos do nosso
autor que reflete sobre a questão comunicativa, a cultura seria aquilo que promove religação, é
cimento social. O fenômeno de práticas comunicativas deve aqui ser tido como uma noção que
está implícita na socialidade, portanto, enquanto “a cola do mundo”. “A comunicação, antes de
tudo, remete ao estar-junto” (MAFFESOLI, 2003a, p. 14).
Para uma cartografia dessa inteligência, é necessário verificar as interações de um
grupo ou comunidade e de seu correspondente “ecossistema de ideias” (COSTA R., 2004, on-
line). Mas para isso, é preciso compreender o interesse comum que conecta as pessoas a
cooperarem e trabalharem cooperativamente em prol de objetivos específicos.
Para isto, tanto a memória quanto o inconsciente precisam enquadra-se em um âmbito
coletivo. Aos conteúdos do inconsciente coletivo, Jung (2000, p. 16) chama de “arquétipos”.
13
Lembrando Silva (2003), o imaginário é uma língua. Nós nos comunicamos por meio de nossos
imaginários, e nos games não seria diferente. Nas palavras do autor, “o imaginário é uma
narrativa mítica da era da imagem” (SILVA, 2003, p. 7). Para Maffesoli (2001, p. 75), o
imaginário seria uma ficção, opondo-se ao real, apesar disto também é algo que transcende o
indivíduo e alcança o coletivo, pertence a um grupo no qual se encontra inserido. Dessa forma,
para nosso autor, o imaginário molda e estabelece vínculo, é o estado de espírito de um grupo,
de um país ou de uma comunidade. É cimento social e vínculo gregário.
A imagem da Iara é a sua própria língua, que, mesmo silenciosa, comunica-se de forma
ininterrupta, ocupa mídias tradicionais e inventa formas midiáticas contemporâneas,
contagiando gerações, como percebemos em filmes, livros, e jogos como League of Legends.
A vida cotidiana, seus hábitos, costumes, rituais, organiza-se ao redor de imagens a partilhar,
sejam as imagens mais gerais até as que moldam as intimidades dos indivíduos e de
comunidades como de LoL. As comunidades tribais de cada cultura partilham a todo instante
essas pequenas emoções e imagens, a partir das quais organizam seu discurso dentro da vasta
imensidão do mundo (MAFFESOLI, 2003a, p. 17).
Estamos vivendo hoje, a partir do reencantamento do mundo para Maffesoli (2010, p.
116), a “queda das imagens” no mundo da vida, no conjunto do social, antes afastadas pela
ciência e pela técnica. “Negadas durante muito tempo, elas [as imagens] invadem, de uma
maneira desordenada e anárquica, o mundo contemporâneo” (MAFFESOLI, 2010, p. 118), elas,
enquanto forma, mediam a nossa relação entre o eu e o mundo natural e social.
Para Maffesoli (2010), a imagem não seria o conteúdo, mas a forma dessa nova
sociedade, o elemento que promove a socialidade17, o reencantamento do estar no mundo que
possui na experiência, enquanto cimento social que constitui essa dimensão estética de
experienciar em comum com outros, o vetor deste processo, Logo, a imagem não seria de
transmitir uma mensagem, e sim atuaria primordialmente desenvolvendo a experiência coletiva.
Entre outras palavras, a imagem não diz o um dever-ser, ela induz o que é ou poderia ser.
As imagens da cultura que povoam nossa memória, imaginário e inconsciente por meio
de formas arquetípicas, como a representada no jogo pela skin Nami Iara, tem função gregária,
cria microgrupos transitórios, efêmeros (ou não, tudo dependerá de cada indivíduo), gera laço
social. O principal papel da imagem em League é aproximar os jogadores, em torno de si, para
gerar vínculos e garantir o reconhecimento de si por meio do conhecer o outro e, juntos,
consumir de modo compartilhado. A imagem reforça o laço social e emocionará, ela agrega a
17 Para Maffesoli (2003a, 2003b, 2010), a socialidade contemporânea é transfigurada pelas imagens em diversos
domínios, no qual a vida social não estaria livre da força imagética.
14
comunidade, dos que têm prazer com um produto estético similar. Ela funciona como um meio,
um elemento primordial, um vetor do vínculo social (MAFFESOLI, 2003b, p. 47).
É a partir desses processos que a imagem passa a ter força, ou seja, pelo social na qual
ela se integra e liberta um “estar-no-mundo”, um participar do conjunto social, gerando vínculo
social (MAFFESOLI, 2010). É próprio, portanto, da dinâmica da imagem de revigorar os
sentimentos (aisthesis) partilhados em comum (MAFFESOLI, 2010, p. 98). A imagem,
portanto, ajuda nesse “impulso vital” humano que nos estimula à agregação, que faz a todos
buscar pela companhia alheia mesmo que momentaneamente. A imagem passa a ser, hoje, um
polo de agregação das muitas “tribos”, como na comunidade de League, tanto de quem resiste
como de quem apoia.
A atividade comunicacional dessa comunidade, nesta perspectiva, e nesse regime de
atrações e repulsões (MAFFESOLI, 2010, p. 29), encontram seus códigos, regras, costumes,
diminuindo o espaço da vontade racional. Nessa perspectiva, itens como Nami Iara também
produzem identificação de cada indivíduo com um grupo, como a cultura brasileira e
amazônica, ou uma série de outros, a cultura grega e tantas outras nas quais a fonte “Iara” é
reflexo como aponta Macedo e Amaral Filho (2015, p. 243) por meio do qual os fãs podem
operar um reconhecimento de si mesmos por meio de algo exterior, seja em um objeto ou em
outro. No fim, o que importa é se reconhecer em outro, a partir de outro (MAFFESOLI, 2010,
p. 34), ou como diz Simmel (2006, p. 24), a “partilha do comum de objetos no processo de
sociação dos seres humanos”. Esses totens, esses distintos itens, objetos de comunicação como
as skins, tornam-se vetores de agregação, fornecem uma variedade de cultos comuns.
A comunidade de League, portanto, possui uma mitologia comum a seus membros, que
tem um “formismo” particular, na acepção de Maffesoli (2010, p. 34), que propicia a esse dado
grupo formar-se enquanto tal e garante-lhe autonomia em relação a outros. A dinâmica dos
objetos é construída para ser vista em uma relação comunicativa que forma o mundo comum,
esse mundo no qual o indivíduo só é o que é na relação com o outro. Por meio dessa skin que
propicia uma relação de identificação, os membros da comunidade unem-se a outros fãs que
compartilham do sentimento comum de reivindicar pela gratuidade da skin. A comunicação é
encontro, e este só é possível quando “se participa de um destino comum” (MAFFESOLI,
2003a, p. 13-14).
Essa efervescência coletiva tornada banal, como aquilo que é experimentado em
comum, vivido, o que vincula o indivíduo fundamentalmente ao outro, é manifestação da
estética em que o emocional encontra-se como alicerce de “sentimentos comuns na experiência
15
partilhada, na vivência coletiva” (MAFFESOLI, 2010, p. 83) que repousam na memória e no
imaginário da cultura dos indivíduos e age como catalisadores para a resistência.
Jenkins et al (2014, p. 319) argumentam que ao longo da história os críticos do
imperialismo cultural procuraram advogar a aparente “pureza” das culturas indígenas da
chamada influência corrupta de terceiros, mas a análise realizada por Zuckerman (2010, on-
line) estabelece modos pelos quais a mixagem das culturas pode ser, em certo sentido,
empoderador para os que objetivam fugir do isolamento cultural e participar de uma conversa
transnacional e global. Ao que parece, era este o objetivo e a vontade do público brasileiro,
percebido na fala de vários jogadores: “Espero que demonstre [a empresa] que foi feito em
homenagem a nosso servidor para que o mundo conheça um pouco de nossa cultura”18. “Podiam
ao menos passar aos outros servers uma boa divulgação da mitologia a qual ela foi inspirada,
né?” 19, afirmou outro fã.
Elencaremos os enunciados de alguns fãs que expressão e expõem a reação quanto à
ação da empresa de não citar a referência da skin como sendo uma lenda brasileira, deixando
bastante evidente o interesse comum que moveu esta comunidade de conhecimento.
[...] ninguém tha pedindo que seja considerada uma skin brasileira seria justo apenas
mencionar q foi inspirada em uma lenda brasileira só isso. Não é para dizer: “Spirit
Nami é skin do Brasil". Pow quando a skin Ahri Estrela do Pop foi anunciada logo foi
associada à Coreia. No caso dessa skin não vai ser associada ao Brasil. O que adianta
“adaptação da nossa cultura para o universo do League of Legends” se ninguém sabe
disso!20
Ridículo a Riot lançar uma skin “homenageando” - COM ASPAS GIGANTESCAS
NESSA DITA HOMENAGEM, porque parece mais uma apropriação cultural! ¬¬ -
uma lenda brasileira e vendê-la, enquanto que ao fazer a mesma coisa com os outros
países os jogadores ganharam as skins. Absolutamente ridículo isso. Lembra muito
uma empresa japonesa que registrou “açaí” como nome de uma marca de popas de
frutas, e foi multada e perdeu o direito ao uso desse nome.21
Não adianta fazer skin de homenagem ao país e não divulgar isso pros demais
servidores. Ou vocês acham que os americanos conhecem a Iara? Isso foi falta de
respeito com a comunidade BR, com o próprio servidor que vocês administram. Eu
queria comprar essa skin, mas me recuso a pagar o preço da Nami inteiro pra comprar
a skin por metade do preço, e sendo que no fim somente os BR sabem que é
18 Passagem de comentário de um fã em post intitulado “Nova Skin: Nami Yara a caminho!” publicado no
subfórum de “Discussão Geral” em 08/05/2014. A resposta recebeu 1 upvotes. 19 Fragmento de comentário de um fã em post intitulado “Sobre o preço da Nami Iara” publicado no subfórum de
“Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 13 upvotes. 20 Trecho de comentário de um fã na matéria de lançamento da skin intitulado “Deixe-se conquistar pela canção
da Nami Iara” publicado em “Notícias” em 02/06/2014. A resposta recebeu 7 upvotes. 21 Trecho de comentário de um fã na matéria de lançamento da skin intitulado “Deixe-se conquistar pela canção
da Nami Iara” publicado em “Notícias” em 02/06/2014. A resposta recebeu 10 upvotes.
16
homenagem, isso é se foi realmente uma homenagem ou apenas se aproveitaram das
semelhanças e usaram para vender mais aqui.22
O que tem no lol representando nossa cultura? Isso mesmo, titica nenhuma, gangplank
forças especias foi em homenagem a um filme, UM FILME, e você quer que a skin
que homenageia a nossa CULTURA não seja de graça? [...] a população do Brasil é
ignorante o suficiente pra querer pagar uma skin que o próprio país deu as fontes para
que ela fosse criada, se essa skin for paga, quero que mude pra nami pira-nha de agua
doce porque eu não vou deixar usarem minha cultura e não nos darem nada em
troca!!! (grifo final nosso).23
O engraçado é que falam que a skin foi pensada e inspirada na cultura brasileira.
Entretanto, A PRÓPRIA empresa não divulga tal informação ou a história para outros
servidores. Para vocês terem uma ideia, o pessoal do NA está pensando que a skin é
baseada na Mitologia Grega e as sereias à ela relacionadas.24
Pois é, inspirada na cultura brasileira em que APENAS os próprios brasileiros sabem
disso. Acho que ficaram com vergonha de associar a skin ao servidor HUEHUE BR
[como na maioria das vezes são reconhecidos os gamers brasileiros no exterior]. Ai
vem o karinha do marketing e fala isso: “...temos que evitar pensar nela como uma
skin brasileira,...” Em outras palavras para não atrapalhar a venda dela lá fora.
“...adaptação da nossa cultura para o universo do League of Legends...” Tá Bom!!!!!!25
Legal, skin em HOMENAGEM A NOSSA CULTURA tem que SER PAGA.
Interessante, pagar por algo que nos representa. ***** riot, sou fã de seus trabalhos e
sei que dá MUITO trabalho administrar um joguinho como esse, mas, sério que
precisava de uma jogada de marketing dessas? Vocês realmente acham que irão lucrar
um pouco mais caso vendam uma skin INSPIRADA EM NÓS? Ah não, sério, parem
com isso. Nos ajudem a ajudar vocês, parem um pouco com esse instinto mercenário
de Brasileiro.26
Como muitos disseram, os outros servidores estão falando que a skin “brasileira” é
sobre a mitologia grega, mas ela é baseada sobre a lenda folclórica “Iara”. Não seria
mais simples vocês deixarem Nami Iara para todos os servidores e dar ela para o
servidor BR? (Sem contar que ela não representa o Brasil tão bem).27
Riot, finalmente tivemos algo nosso, da nossa cultura, PORQUE DIABOS VOCES
QUEREM LUCRAR NISSO, não serial só legal para os jogadores ser de graça, mas
pra o servidor no geral.28
22 Trecho de comentário de um fã em post intitulado “Sobre o preço da Nami Iara” publicado no subfórum de
“Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 16 upvotes. 23 Trecho de comentário de um fã em post, intitulado “Nami Iara será 975 RP”, publicado no subfórum de
“Discussão Geral” em 09/06/2014. A resposta permaneceu com 0 upvotes ou downvotes, isto porque era um tópico
sem grande visibilidade, mas que possui um debate rico para ser analisado de modo que não poderíamos descartá-
lo. Este fragmento grifado por nós feito pelo fã é o que sintetiza toda a ideia deste capítulo, da cultura enquanto
forma de pertencimento, e também é o trecho que é citado no título deste trabalho. 24 Trecho de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de
“Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 14 upvotes. 25 Trecho de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de
“Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 16 upvotes. 26 Fragmento de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de
“Discussão Geral” em 04/06/2014. A resposta recebeu 4 upvotes. 27 Excerto de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de
“Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 15 upvote. 28 Trecho de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de
“Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 12 upvote.
17
Ok, eu desisto, vocês Rioters só respondem o que convêm a vocês e não respondem
concretamente o motivo de todas as regiões não levarem o nome Nami Iara. Vocês
fazendo isso só confirmam o que todos ja sabem, mais uma skin que vocês fazem
baseada em outro país e só querem que o brasileiro acredite que é dele. Não teve
ofensa maior que todas as regiões levarem outro nome qualquer além de Nami Iara.29
[...] Mas uma coisa é certa, isso se trata de um crime contra o patrimônio brasileiro.
Link para quem tiver curiosidade:
(http://www.dji.com.br/codigos/1940_dl_002848_cp/cp163a167.htm). [...] Acho que
muita gente, inclusive eu ficaria satisfeita com um pronunciamento oficial no reddit
já que é um lugar aberto internacionalmente falando e nos fórum NA e EU sobre oque
se trata a Iara e oque e cultura ela representa, a maior revolta e saber que fora desse
país, pessoas não sabem porque aqui é único lugar que ela esta em promoção! E
arrogante admitir mas “gringos” são extremamente ignorantes em quesito de
educação! Fica uma sensação horrível que a Riot tem vergonha da nossa cultura e se
preocupa mais em Lucrar, devo informar para quem não sabe que isso é um CRIME
sujeito a muitos processos (grifo nosso).30
Bastava, para muitos jogadores, que a referência fosse mencionada, como a empresa fez
na notícia de lançamento da skin Morgana Noiva Fantasma, inspirada na lenda urbana mexicana
sobre a Llorona. A empresa, contudo, apresenta seus motivos para essa não vinculação direta:
Pelo mesmo motivo que não chamamos de “Morgana a Chorona” [mas sim Morgana
A Noiva Fantasma]. Cabe a cada região da Riot escolher o nome que mais se adequa
a sua região. Um nome que comunique a ideia de que ela é como se fosse um “espírito
do rio” é como maioria das regiões usou... mas se você vir os sites dos servidores
latinoamericanos, verá que eles optaram por manter “Nami, la Iara”.31
O objetivo com a Nami Iara nunca foi “espalhar nossa cultura mundo a fora”. É
apenas uma forma de transportar um pouco do nosso mito para dentro do jogo. A
posição geral é de fazer skins que sejam relevantes para o mundo todo, não só para
um país. Muitos estão falando que outras regiões não estão chamando de Nami Iara e
sim de River Spirit. Essa decisão cabe a cada região. Cada escritório da RIOT ao redor
do mundo tem que entender se “Iara” faz sentido para seus jogadores. Aqui no Brasil
também fazemos isso. A “Noiva Chorona” não se chama dessa forma pois a maioria
dos brasileiros não conhece esse mito mexicano. Adoraria que nossas histórias
indígenas fossem tão conhecidas lá fora como os gladiadores ou os sultões são aqui
no Brasil, mas infelizmente não é o caso (grifo nosso).32
Os relatos dos rioters confirmam nosso pensamento em estudo anterior, no qual
elencamos os motivos pelos quais a empresa realizou a troca do nome da skin de Iara para River
Spirit em outros servidores do jogo pelo mundo. Dentre os quais, está um processo de
hibridismo corporativo, conceito cunhado por Jenkins (2009, p. 156-159), que depende de
consumidores com competências culturais que se originam na cultura e nas relações com
29 Passagem de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de
“Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 11 upvote. 30 Dois trechos de dois comentários de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no
subfórum de “Discussão Geral” em 02/06/2014. As respostas receberam, respectivamente, 10 e 6 upvote. 31 Trecho de comentário de um rioter em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de
“Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 23 upvote. 32 Excerto de comentário de um rioter em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum
de “Discussão Geral” em 03/06/2014. A resposta recebeu 9 upvote.
18
lugares, somente passível de acesso pelo contexto da convergência global, exigindo, portanto,
conhecimento prévio da cultura popular amazônica. Como esse conhecimento ainda é restrito,
a empresa precisa compreender as semelhanças e diferenças em relação às tradições paralelas
do Ocidente e Oriente, apoiando-se em um ser mitológico mais conhecido, como a sereia, o
espírito do rio (MACEDO; AMARAL FILHO, 2015). A frase de um jogador exemplifica esta
questão:
Quando fiquei sabendo que a “origem” da ideia da skin da Nami era a Iara, eu tinha
quase certeza que ela seria dada ao nosso servidor. Mas quando vi o texto que a Riot
colocou para anunciar a skin deu pra perceber que eles iriam tornar essa skin mais
relacionada a qualquer lenda de sereia do mundo, então eles generalizaram. Se isso
for mantido não faz sentido dar a skin mesmo, apesar de ser uma pena já que a skin
foi feita pensando na Iara (grifo nosso).33
Dessa forma, valendo-se do arquétipo da sereia (uma fonte mitológica) e de referências
de gêneros populares, Nami Iara não precisa ser apresentada ou reapresentada, pelo fato de já
ser conhecida por meio de outras fontes. Como pontua Jung (2000, p. 15-16), o inconsciente
coletivo, a camada mais profunda da psiquè, é povoada por instintos e imagens primordiais que
são herdadas e compartilhadas pela humanidade. Consideramos, neste trabalho, a sereia como
sendo o arquétipo, ou seja, o primeiro modelo ou a imagem universal que existe desde os tempos
mitológicos a respeito do mito da Sereia, adaptado para a realidade amazônica com a
personagem Iara.
Contudo, um tanto quanto diferente, o arquétipo encontrado no mito ou no conto de fada
é cunhado de um modo específico e transmitido por meio de longos períodos de tempo,
conforme compreende Jung (2000, p. 17). Com o mito, entretanto, Jung (2000) percebe um
problema, pois os mesmos são elaborações “conscientes”, o que já classificaria o mito como
sendo fruto do inconsciente pessoal34, mas Jung (2000) propõe que esta forma do inconsciente
repousa sobre uma camada ainda mais profunda, “que já não tem sua origem em experiências
ou aquisições pessoais, sendo inata” (JUNG, 2000, p. 15): o inconsciente coletivo. Portanto,
Jung (2000, p. 17) propõe classificar os mitos como manifestações da essência da alma, sendo
assim, consegue enquadrá-los dentro do seu conceito de arquétipo e consegue estabelecê-los
como fruto das manifestações inconscientes gerais da humanidade.
33 Fragmento de comentário de um fã em post, intitulado “Skin da Nami ta de graça para os BR ou não???”,
publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 22/05/2014. A resposta permaneceu com 0 votos, por ser um
tópico sem grandes impactos. 34 Por algum tempo, Freud classificou o inconsciente como algo exclusivamente pessoal, porém, modificou seu
ponto de vista em trabalhos posteriores, designando o “id” e “superego”, correspondendo ao inconsciente coletivo
(JUNG, 2010, p. 15).
19
Seguindo o pensamento de Hall (2006, p. 48-49), por exemplo, as identidades nacionais
não nascem com as pessoas, mas são formadas e transformadas no interior da representação.
Nesta perspectiva, a nação é algo que produz sentidos, ou um sistema de representação cultural
como defendemos (MACEDO, 2016a, p. 124), isto porque as culturas nacionais são compostas
igualmente por símbolos e representações, como a Iara na cultura brasileira, não unicamente de
instituições culturais ou entidades políticas.
É importante ressaltar, portanto, que interior ao sentimento de comunidade dos fã-
gamers de LoL, eles se enquadram/identificam dentro do que podemos chamar de comunidade
nacional (brasileira), no qual a Iara funciona como uma representação, um símbolo de
pertencimento que impulsiona o debate ao redor dela, ou seja, essas características facilitam o
que argumentamos em Macedo e Amaral Filho (2016) ser a Nami Iara um atrator e ativador
cultural.
Considerações finais
Conviver nesse individualismo, estimulado pela lógica de mercado que promove a
divisão, a competição e a não unidade (BAUMAN, 2007, p. 9) e pelos valores dominantes dessa
sociedade baseada na competição e na vitória (KELLNER, 2006, p. 119), com os interesses
coletivos é um desafio que se mostra para o mundo contemporâneo. Mas podemos inferir a
partir desta pesquisa que uma justificativa recorrente para que a skin fosse dada ao Brasil era o
fato da conexão realizada pelos fãs do bem com a cultura nacional, provocando sentimentos de
pertença social. Neste sentido, não limitamos a existência de interesses comuns diversos,
distintos e até puramente econômicos e materiais, contudo, nossa análise sugere que um
enunciado frequente e um dos mais fortes para a construção do engajamento na comunidade de
conhecimento de League para resistência é o cultural.
Logo, skins como Nami Iara ajudam a perceber que os indivíduos necessitam se
enxergarem nas mídias, sentirem-se representados, funcionando como símbolos e
representações do que seria o Brasil no ambiente do jogo. Esses artefatos culturais tornam-se
um signo para a constituição da ordem simbólica que operam dentro das comunidades,
carregando consigo uma legitimidade sancionada pelas práticas vivenciadas pelos fãs que as
apropriam, conectam e estabelecem identificações, apropriações e ressignificações com
elementos da sua própria cultural local, sua própria experiência de vida35.
35 Como fizeram os brasileiros em relação à Nami Iara e americanos ao relacionarem a skin com a sereia grega
pelo desconhecimento cultura da Iara amazônica. Cada fã apropria-se dos produtos culturais conforme suas
próprias experiências de vida, seu estar no mundo.
20
Portanto, os argumentos críticos sobre a prática da empresa de não citar a homenagem
ao Brasil e inseri-lo formalmente perante a comunidade internacional do jogo estão ancorados
em um processo de cultura enquanto pertencimento. Em Macedo (2016a), analisamos alguns
fatores e lançamos hipóteses sobre a dinâmica de funcionamento do processo de representação
brasileira, com ênfase na temática amazônica, em jogos em ambientes digitais. Nesta pesquisa,
destacamos a relevância de que elementos distintos atuantes em alguns games funcionam como
símbolos nacionais de representação que se apropriam de elementos culturais, enraizados no
imaginário e na memória tanto coletiva quanto indivíduo dos indivíduos, com o objetivo de
garantir maior identificação com esses artefatos midiáticos.
Em estudo anterior (MACEDO; AMARAL FILHO, 2015, p. 246) reforçamos como as
empresas utilizam da cultura como uma estratégia de marketing cujo objetivo primeiro é de
promover “[...] experiência multissensoriais e multimídia a fim de estabelecer maior conexão e
identificação com os consumidores a partir de uma fonte mitológica que repousa no imaginário
e na memória coletiva global”. A partir dessa perspectiva, percebemos nestes dois estudos como
a lógica cultural atende ao requisito da cultura na era global, a abordagem da cultura passa a ser
vista crescentemente como um “recurso” para outros fins, passando a assumir sentidos e ideias
de cultura como conveniência na qual as grandes empresas midiáticas lucram com as novas
mercadorias da pluralidade abertas pelo processo de convergência global (YÚDICE, 2004).
Neste processo, a cultura passa a assumir um caráter fetichista das mercadorias, sendo
propulsora do desenvolvimento do capital, transformando a própria lógica do capitalismo
contemporâneo em um processo de “culturalização da economia” (ÝUDICE, 2004, p. 35).
Entretanto, ao passo que as empresas buscam no fator cultural para garantir lucro, os
fãs realizam suas formas de apropriação cultural que, neste caso, encontram na cultura um vetor
que liga, estabelece laço, une, encontra-se naquilo que é comum a todos e permite uma relação
de socialidade entre os que compartilham da comunidade, agindo como impulsionadora da
resistência. Em Macedo (2016b), discutimos como os fãs passam a assumir frequentemente
seus papeis de cidadãos ao agirem como fiscais atentos aos usos indiscriminados de discursos
emergentes que não correspondam às práticas corporativas das empresas. As apropriações e
usos de produtos contemporâneos, como a Nami Iara, ressaltam a sua dimensão simbólica como
elo representativo, como imagem mediadora da cultura que estabelece o comum aos fãs na
procura de resistir, levando consigo toda a heterogeneidade e os desafios entre a relação
individual e coletivo que o processo engendra e repulsa.
Nesse sentido, o ato dos jogadores de usar a cultura como pertencimento reforça a
resistência no âmbito cultural. Apesar do “pertencimento” e a “identidade” não serem rígidos,
21
não serem garantidos para sempre, mas bastante volúveis, multáveis e negociáveis, e que as
decisões dos fãs de se manterem firmes perante tudo isto é um fator crucial para o
“pertencimento” e para a “identidade” (BAUMAN, 2005, p. 17).
Partindo do pensamento explanado neste tópico, podemos entender como o mito da Iara
se incorporou no inconsciente e imaginário da comunidade, tornando-se um elemento
importante da constituição dos sujeitos enquanto fãs, dos quais compõem-se e formam um
sentimento de identificação com tais arquétipos e memórias.
Por fim, as comunidades de fã-gamers pertencem a um circuito de indivíduos que estão
conectados por efeito de relações mútuas, portanto, interesses em comum e que, apenas desta
forma, criam uma unidade que se caracteriza pelas influências recíprocas que determinam sua
união, a qual aqui defendemos a importância do elemento cultural como aquilo que gera laço,
aproxima os indivíduos mesmo que por um curto período (o tempo da mobilização) e os
incentiva a resistir. O gosto pelas imagens, contemporâneo e intenso, leva a estabelecer o laço
entre a comunicação de um lado, a informação de um outro e a imaginação.
Conforme Simmel (2006, p. 44), “o que é mais amplamente disseminado é também o
que plantou raízes mais firmes em cada indivíduo”, como é o caso da comunidade, da
comunicação. League, enquanto comunicação, dá uma nova substância nessa função arcaica
que é a comunidade e a comunicação, ele dá aos seus indivíduos um elemento em comum para
estar junto, a cultura como uma aisthesis, para resistirem uma vez mais.
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