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dados internacionais de catalogação na publicação – cip

N216 Naporano, Fernando. A agonia dos pássaros. / Fernando Naporano. Apresentação de Luiz Nazario. – São Paulo: V. de Moura Mendonça – Livros, 2014. (Selo Demônio Negro). 100 p.; il. ISBN 978-85-66423-14-3 1. Literatura Brasileira. 2. Poesia. I. Título. II. Selo Demônio Negro. III. Nazario, Luiz. IV. Sobre a agonia dos pássaros. V. Rodrigues, Claufe. VI. V. de Moura Mendonça – Livros.

CDU 821.134.1(81) CDD B869.1

Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino

A AGONIA DOS PÁSSAROS

© Fernando Naporano, 2014

EditorVanderley Mendonça

Desenho gráfico e Capa Vanderley Mendonça

IlustraçõesJac Leirner

SELO DEMÔNIO NEGROV. de Moura Mendonca Livros

Rua Araújo, 154 - 2o. Andar - CentroCEP 01220-020 São Paulo SP

Tel.: (11) 5825.2372

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Fernando Naporano

a agonia dos pássaros

SÃO PAULO

SELO DEMÔNIO NEGRO2014

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Este livro é dedicado àMelanie Havens

e Melody Mystic Damasand (in memoriam)

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APRESENTAÇÃO

luiz nazario

Para quem não teve o prazer de conhecê-lo, Fernando Naporano é o nosso David Bowie, o nos-so Morrissey. Ele evoca, não apenas fisicamente, dois dos meus ídolos pop favoritos. Na verdade, o líder da saudosa banda Maria Angélica Não Mora Mais Aqui e o maior conhecedor de música e colecionador de LPs e CDs do Brasil, sempre foi, antes de tudo, um poeta, na vida e na arte.

Quando nos conhecemos como críticos de cinema convidados a cobrir a Mostra Internacional de Cinema para a Folha de S. Paulo e o extinto jornal Viu – encontrei Fernando no MASP, onde deveríamos assistir a mais um filme abominável da Mostra. Ele vestia um macacão verde de plástico emborrachado, e se parecia com um astronauta loiro, uma Space Oddity em plena Avenida Paulista. Outra noite, nos idos dos anos de 1980, eu acompanhei Fernando até sua casa. Sua mãe, impagável, pediu-lhe que trocasse a camiseta que ele usava, com um desenho famoso do Tom of Finland, por “aquela roxa, com listras amarelas, que é tão bonita”...

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Crítico de cultura, e crítico do mundo, Naporano é um gênio incompreendido. Viveu muitos anos em Londres e Los Angeles, entrevistou centenas de celebridades; foi correspondente internacional de jornais como O Estado de S. Paulo e Correio Braziliense e colaborador de várias revistas de música inglesas e americanas. Agora, Fernando Naporano deu à luz uma seleção de seus milhares de poemas inéditos: a agonia dos pássaros, um verdadeiro colar de pérolas.

Como escrevi, a dedicação de Fernando à poesia é antiga. Lembro que, em 1987, quando eu ainda morava em São Paulo, na casa de meus pais, na Vila Mariana, Fernando levou-me um calhamaço de poemas, em páginas datilografadas, para que eu fizesse uma leitura crítica. Para facilitar o tra-balho, coloquei as folhas soltas na mesa da sala e, com tesoura e cola, pus-me a editar os poemas, re duzindo as trezentas páginas a umas cinquenta, que considerei publicáveis.

Gostei muito de um poema seu, que eternizava nosso horror a São Paulo, terminando com o verso: “...E as ruas tombando pelo chão...”. Fernando não se esqueceria do dia fatídico em que lhe devolvi os restos colados dos manuscritos datilografados. Não sei o que imaginou que eu iria fazer com seus poemas, mas de certo nunca passou-lhe pela cabeça que eu pudesse editá-los fisicamente. Porque ele não tinha outra cópia deles!

Tampouco havia passado pela minha cabeça

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que ele me confiara os próprios originais. Essa imprudência custou-lhe um trauma, mas eu não teria recortado e colado seus poemas se soubesse que tinha em mãos a única cópia deles. Hoje, temos os computadores, e editar um livro parece mais fácil. Tenho, porém, minhas dúvidas, pois o computador multiplica as cópias, e isso mais atrapalha que ajuda. Pode ser um inferno, e o fim de toda edição.

Com os anos, Fernando superou o  trauma “sim-bólico” que lhe causei. E mais: acumulou mais livros inéditos graças à incompreensão de alguns editores, aos planos econômicos de sucessivos desgovernos que levaram editoras de poesia à falência e até ao incêndio numa editora que mostrara interesse em seus livros. Hoje, graças a uma editora de visão apurada, ele conseguiu publicar uma primeira seleção de seus poemas. Felizmente já não preciso cortar nada.

a agonia dos pássaros é um livro quase perfeito. A poesia de Naporano atingiu a matu-ridade e seus versos foram depurados não por tesoura e cola, mas por uma vida de experiências extasiantes e doloridas. Estes são poemas densos, profundamente pessoais, e que se recusam, por isso mesmo, a pertencer a uma dessas categorias “badaladas” no Brasil: não são modernos nem modernistas, não são beat nem drumondianos, não são concretistas nem surrealistas.

São poemas naporanianos, que não poderiam

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ser escritos senão por Naporano, que se alinha, por misteriosa afinidade, a outro mestre de sensações indefinidas, o compositor e poeta Morrissey. Não conheço ninguém que viva tão intensamente suas emoções como Naporano. Ele é um exímio mergulhador de almas. E seus mergulhos meta-físicos e espirituais acabam se transformando na matéria de sua existência concreta. Fernando é capaz de passar dias sem dormir deambulando nas paredes da ausência até chegar ao fundo do poço, para ressuscitar em seguida num estalar de dedos.

Naporano identifica-se com o “sensacionismo” de Álvaro de Campos, para quem “a única rea-lidade da vida é a sensação” e “a  única realidade em arte é a consciência da sensação”. Esse herdeiro moderno do Spleen baudelairiano não se cansa de percorrer todas as paisagens do romantismo, embora este seu livro – ele me segredou – não seja dedicado aos redemoinhos do amor-paixão, mas à distância geográfica na convivência com sua filha e às suas reflexões carregadas de tristeza ante a perda eminente de sua cachorrinha, quase uma outra filha, que ele cercou de cuidados por dezesseis anos.

Toda a existência naporaniana é feita daquela “nova sensibilidade” de que fala Herbert Marcuse em A ideologia da sociedade industrial, absoluta e à flor da pele. Por isso ele precisa viver mergulhado em abstração, em música, em cinema, em poesia, embriagando-se num sonho imenso, feito de muitos sonhos, em constante agregação.

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Fernando Naporano também possui algo de Dom Quixote,  cavalgando nos campos de moran-go da cultura pop. Seus romances de cavalaria são dezenas de caixotes de LPs e livros que pesam dezesseis toneladas – como num eco de 16 Tons, de Tennessee Ernie Ford –, e que ele carrega pa-ra onde quer que se desloque em residência provisória – de São Paulo a Londres, de Londres a Los Angeles, de Los Angeles a Londres, de Londres a Florianópolis, de Florianópolis a Curitiba, de Curitiba a São Paulo, e assim por diante.

“Não tenho raízes, tenho pernas”, dizia Fernando Arrabal, e o nosso Fernando compartilha da máxi-ma, acrescentando: tenho pernas, e dezesseis tone-ladas de discos e livros. É um eterno errante, como os antigos judeus e os verdadeiros poetas, cujas únicas pátrias são a palavra e a imaginação.

A cultura musical de Fernando também pe-sa dezesseis toneladas. Mas no Brasil poucos se interessam por cultura. Por isso os pássaros agonizam. Pasolini constatou a dor mental que invade todo verdadeiro poeta no mundo pós-moderno: “A morte não é não poder comunicar, mas não poder mais ser compreendido”. Essa dor lateja em cada verso de Naporano. Como ele bem sabe, em nosso mundo pós-moderno não há mais espaço para uma criação crítica. Não porque criadores e críticos tenham desaparecido, ou deixado de criar e criticar, ou de publicar suas criações e suas críticas. Mas porque suas angústias e suas verdades – as únicas que

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de fato deveriam ser o objeto das atenções - não repercutem mais, foram afogadas em oceanos de mediocridades e soterradas por montanhas de banalidades. E se nada do que realmente importa é importante para o mundo,  a existência física deste livro é para o poeta e seus leitores um bálsamo e um alívio, um movimento sutil contra a corrente, uma faísca de vida inteligente que ainda se arrisca.

luiz nazário é escritor e professor de História do Cinema da Escola de Belas Artes da UFMG, autor de diversos livros, entre os quais A cidade imaginária (Perspectiva, 2003), Todos os corpos de Pasolini (Perspectiva, 2007) e O cinema errante (Perspectiva, 2013).

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na sórdida periferia da claridade

IÀs vezes bebo as lágrimasdessa distância num trago sóna dourada taçado inconformismo selvagem

IIAi saudade, escutai-me,faça o possívelpara não se movertanto

A ausência, restaurada,basta!transitando, velhacaem seu rosáriode mesquinho cântico

Saudade, tente ao menosnão feririnduzir-me ao prantocom a separação acintosadas imagensde cada ano

nesse lamaçal diamantíferoonde me afundoquando conto quanto

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deserto sem freios

Essas noitesfixadas em angústia-asfixiadas em tempo soçobrado-se enfaixamde amanhecer

No branconíricoda plenitude fugenteda insuportabilidadeai madrigal broxa em lírio maiúsculo (!)

sacudindoo lustro sexualde sua cintura devassamas renitente na falapouco dadaem despentear intenções

Mesmo assim, cá estou :

espectro erguendo-aping pong de ferroe gesto

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gritando pelos fundosde sua core princípio

De que adianta ser lagoa transitar exercícios?

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ao sol, antes que parta

Dedos da ordinal sombrame fazem um cafuné

Saudadeavestruz se recolhe,ardeno fogo da terra

e o gosto da chuva se entranhaa priscaraté a medula

Na polpadesse arviro-mede veste a oeste

Soul-me selváticodeslumbrado ditirâmbicoà simples esperada cruz de ciclone

para aprender a rezarpor tudo nominado sobra

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cicatriz vista através de alga

Enquanto e quandoem cinza-estioladovejona densidade marítimado vazioalgo imagemalgo que bate

Ah! É a tristeza insurgenteum tanto farta de siassim…... põe os punhos no queixoresoluta (!)a fitar-me

Sabe, em velado cinismo,que falta húmuspara enterrá-la

Sabe tambémque a impressãomais violentafundadeixadaem meus sentidosé a saudade

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e a intensidadede halode resíduos aéreos,madressilva podre

onde ser a fundomais tristeinsulsoé domínio absoluto

além da estiagemé pancadaé quase (cinzel de)Arte

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quase prece, a latejar

Não, não fique assim paradatome lá essa minha decepção-ela contém dores em transe-segure firmeessa tralha pesada

faça alguma coisa (!)faça dela o que quiser

Observe, por gentileza,na densidade transparentedo aressa angústiade piche ferventea abrir braços sem cessaraté sentir-se aveave sem lugar

Não me deixe assimexposto à saturaçãoda luz vespertina

Vai, por favor, juro que me calo,ofereça-me um sulou uma sementedo espaço

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Não me desmanche tão sócom este ramalhete de seixosde fel turquesamarelecidade flagelos colecionadosque não tenhoa quem doar

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o ouro do silêncio, a queimar

O silêncio roxoa por pernas, penas, pedrasdentro do peito

a me socar de dúvidasmuitas, cínicas, de viés

Hora de gritosem que as lembrançassaem de seus feudosanavalhammeu rosto de ar

Esta saudadea subir, de joelhos,a escadaria de cristalque conduz ao bustode seus quatro anos de idade(quando – desde então - lhe perdi)um angorá a gargalhar, a miarmijar nas paredes da demência

Aiii,minha margaridinha de areia,por misericórdia,queime os meus olhos

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faz-me inteiramente cegardiante da escada

que enrolou-se (quase agorinha!)em espiral

(em sereia sobrevive)

prestes a se suicidar

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cravo de giz no reencontro

Quando em ah-enfimnos reencontramosjá era tarde, muito tarde

As centenas de dias desabitadosse insurgiamcom cicatrizes, fantasmas de preces, uivos, deformações, bolore horríveis destroçosde sonhos

O incontrolável pânico da ausência,vividíssima de cabo a rabo,tomava contado que os meus olhos viame os seus de nada se apercebiam

O veneno da saudadehavia se infiltrado até os ossoso vírus da distânciaalastrado por todo o corpo

Por isso fiquei calado,ai-tão-calado,naquele momentocoitadoque nascia já acabadocom a auréola de durar quase nada

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Falsidade extrema,sorrirentre tanta efemeridadefingirque brotaria uma tulipano desertoaceitaras ilusões dos anjos do contágio

Por issopreferi deixar cair ao chãonosso longo, louro, abraço

para depois pisoteá-locomo uma beleza amarga

e caminhar de volta à Fortaleza da solidãoonde imaginava e imaginoo grande nadaque restou de nós

(a catarrada abruptanum poço fundo)

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tela negra com brasa de cigarro ao centro

No momento em que o crepúsculoinflama, avança,se lançacomendo todas as arestas de luzminha retóricaencolhe tudo o que souentre despedidas, fossas, estertorese retorno ao meu segredo,o inferno

Mas, lá não sei o que fazerde tanta dora deambular, a rolaraté confrontar-me com a mortede todas as coisas aprendidas

Por conseguintecabe à agoniatirar sua camisola rapidinho

acomodar-seentre o frescor dos lençóis

e brilhar, brilharbrilhar feito loucano vivo, lívido negrodo escuro

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soçobrado domínio

Ah! essas palavrasque me chegam do céuvêm cheias de pó

Não as ponhono papelnem tenho energiapara limpá-las

Já basta o irrecuperávelah, a épocadas frases soltassem muito apegodos versos anacrônicossuados de neve

dos meus tempos de meninoem que contavaquantas casinhasos reflexos das nuvensfaziam no mar

Já bastam as muitasoutras palavrasque vivem rente à terra

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Eu as sei de cornão tenho medo de pisá-lasou matá-las

Decorei também os poemasao íntimo dos oceanos- que nunca serviram para nada -onde aterradosapodrecerãocom o passar dos séculos

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do solo de silêncio

Era assimgraveto de vida qualquerHeráclito com um isqueiroentre os dedos

Eram traquinagensdo antigo coraçãoespatulado de violeta

Era o repousoda face brancacoral do diao inescritoque jamais precisariaser dito

Era tudo um pouco assimnão é mais (!)Entenda, entendaalma paradaque nem a raioconsegue andar (!)

Ai, acalma-te, Memória

já bastaessa poesia pobre

condenada ao silêncio

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violência em ser nu

Os elfos da imobilidadegorjeiam entre as dunasde nada com nadana estupenda praia nulado pensamento

A minuciosa devastaçãodo desejo,oriunda dos temposem que ainda se andava,encontra insondável leitono rio de silêncioque conduz a vida para trás

Finalmente há coragemem aceitar e assistir

a ilusão desfazendo todos os nósda sua fábula de João e Maria

com a certeza contráriade nunca mais haver regresso

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significado de um hieróglifo em linha reta

Enquanto o vaziotrabalha em pazentre alma e artériasminha íris bordaum grito na paisagem,instalação própriaa fantasiarquantas seriam as araucáriasque quiseram se arrancarde suas raízes

A linha que amarraminha rígida visãoao tronco desses caulesvagueia, vai- em pulsações medonhas -se inflandode dias e mais diasaté formar um lugar sobrecarregadode intacta inutilidade

Evitando a qualquer custoque a linha se rompa,às vezes balbucio

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uma mecha vocabular insensatacom qualquer-alguéma passar em voltados nomes dos meses

É quase assimsem qualquer propósitoque encontro Deusa correr atrás de si mesmocomo um escorpião exaustoquase-delito, decididoa aferroar a própria testa

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ocupação do ódio, quase em conclusão

INa maturidade da raivanão encontrava posturas cabíveisque ousasse ofertar ao fracasso- tremendamente a(l)tivo -de ações, não-ações, anti-ações

Na negra mudez da expressãoos jogos do olhareram adereços estraçalhados,águas fundastranquilas em suas insuficiências

O silêncio havia queimadoatas, atos, atadurasprivação que desembocavana grande peste de mim mesmo

IIAi! Quanto ódiodesce ao peito isoladogosto horrível de carvãoinsuportável observaçãodesta lagoacheia de vogais interditascom estrume de gemidosao fundo fundo

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Palavras que eu possuía- ora, eram minhas (!) -estão a soçobrarao lodo das margensa agonizar em ristea traçar em prumomiudíssimos suspirosentre as carpas

As mais fortes estão mortassobrenadam quase apodrecidasaos sons de espelho gelatinosoque a água modelapara em diáfano tempo posteriorlevá-las à decomposição,oh liturgia dos fósseis

Afirmativamente, eu que as possuícom desmedida convicçãovou ter com a covardia,essa assassina enrustida,sórdida feiticeira anilque vive às custasda impotência

Ah, e depoisem efeito, já bem feito, toupeira

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vou ter com Novalis,esse perpétuo porteirodo vale doirado da alma,e esbravejarao lado das papoulas cegas

que meu olhartambém foi "um piano de luzes"mas não serviu para nada

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coerência kierkegaardeando ao nada

Entre o repouso dos martíriose a audácia dos mistérios,o adquirido direitoda loucura branca

Entre uma lasca de Coltraneem azul grave-extensoe as engrenagens dos diasque se dobram invisíveis,a dádiva em dessentir, dessegredaras fibras, as falaso tudo a bater asinhas em nada

Por fim, sim, picnic (!)na galáxia das sensações desabitadas,gasosas em inofensiva ansiedadede veias marinhas bloqueadaspor lentas anêmonas catatônicas

Ah, conforto inigualável (!)laquê expectoradopela passagem do Curupira da lucidezque inverteu a ordem do pensamento

e aplainou-me- em alga como a oculta circunduçãoda seiva da pedra

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em algo como a teima do que haveriapor dentro da resignação -alto como a perenidade do sossegoao longo do cipreste ininterrupto

Este é o esconderijo (!)da serenidade em plenitude,o consolo internoem fixar os olhosna nitidezde tantos talentos do silênciona inegável luz dos charcos desta água de manhãque cega as razõesdos encontros esfiapados,das passadas anotações cintilantes

oh pútrida purpurina (!)que a insensatez deixa tombarquandodissolve-seem vazio

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o fulgor na desarticulação do presente

Ah, pertence à morteessa (ainda) distânciaque não ouso percorrerSoberano na vivacidade do silênciocerro profundamente as pálpebrasescuto - em ébano - exalar o lagoabaixo das ilusões da vidaque fulguravam à base de cachoeira

Não me interessa nenhum pouquinhoesse tal oásis prometido,ansiado pelos vendedores de solFoi a dor quem me ensinouque mesmo a miragem súbita,ao sibilar lantejoulas,em seu dorso,tem limites, muitos, por sinal

Que brote agorao primeiro arrebol de minha infânciaabarcado pela inocência a adivinhardistrações, fugas, desenlacessombras abraçadascolhendo a poalha do ouro do ar de calças curtasa separar o eu de mim

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Que sejam estes os corredoresas salas, os quintaisdas duas velhas casas em que viviQue reluzentes fiquemos rostos dos familiares mortos,oh fantasmas da lassidão,a quem cedo velas para me assistirema dançar em compasso de vento"Reach Out (I'll Be There)"aos cinco anos de idade

Com a malemolência dos que desistiramdo presente,em flutuações de pedrinhascicatrizadas de lodo- a atar círculos concêntricosao longo do corpo -abro as pálpebrasfito a Pedra,nela respiro, esti(c)o-mefinco, cinzo em pensamentoa dedicaçãoem ser simplesmente Azul na dorque enfim encontra a Paz vazia

Sabido a vácuo,em sua futilidade inexplicável,em sua procissão do indizível

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renasçoentre o pintassilgoque acabou de trinare o lento, alótropo silêncioque ainda não se iniciou

Abençoada sejaesta, tenazmente esta (!), fração do intervalo

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para recomeçar em natureza morta

Farto de lidar com a obraque não se satisfazem seus acabamentosrecomeço a andar no escusode mim mesmoreceando encontrarum outro, orientado desertoque consiga falar de seus mistériosou superfícies lisasonde costumam nascerintrigas, coisas e até jacintos

Por isso retorno à cavernadas palavras sem pensamentolá, diante da pedra fundamentaldo vácuo em lourejante brancode ausência a ausênciastateio a cor de mentol da páginaonde nada se compõeseja em métricaou princípio de teor

e há um medo esquivode que apenas euseja entãoo poema que não se escreve

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in the silence of highgate's eyes

IPedaços do diaarrancados como dáliasesmalte do que ficounum mundinhoque durou muito pouco

Mãos espalmadasencarando a face do céuestabanadas, insensatastentando o livramentodo corpo estacionado

IIAgarro um gorrinho da tua infânciaa lassidão da lã me transportaa um parque em Highgateonde estou desoladoramente sóxingando o tempo que te arruinou

Sensação de querer vomitar-meferir o vácuo internalizadoem riacho de argamassadecorado por cacos de cristalda própria saudade em ruínas

Sem mais saber sair daquidesta laje quente

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nesta asfixiada dor que não explodevivo onde o eco de teu sorrisofoi incapaz de envelhecer

IIIEm permanente retumbânciana tarde desmembradaformo um amiudado anjo de sonhorindo em tempo antigo

Cadeia eleita por calafriosimobilidade ouroclara a cegarimaginação da pedradesprendendo-se de si

Highgate Woods, a lembrança caicomo perfumado raiosem que nada o partana prata turquesa da obsessão

Nestas memórias em chamastua infância arde, criança-sabreem cardume de rubisimersos na aprofundada negritude

da inacessibilidadee suas esporas de impotência

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divagação com trapos ao centro

Quando a saudade busca libertar-sede seu significadoatolo no contexto precáriodo conformismo- entidade que mal suportao próprio espírito -e fingindo ser dança bailo, fulminado, assadoem clave de fel

Há uma violência exasperadana oxidação, nos escombrosdos tudos e tantos- ah também dos cantos! -do que poderiam ter sido

Toda a prudência ainda é poucapara andar, evaloarentre os múltiplos destroços que virei

Ai, há de tudo neste lixãoque já nem mais interessa examinarcertas so(m)bras, alguma utilidadeem preservar nas gavetas da ferrugemas fotografias, os pequenos rabiscosdos seus primeiros quatro anos

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Há uma violência contidanos olhos abatidosdos fantoches dos remorsosque instalaram o medonuma então suportável convivênciaentre distância e afeto

Há acima de tudoa violência despropositada, incontrolávelno coração da culpaa espreitar em roxíssimo ódioa coleção inviolávelde brinquedinhos do Kinder Ovoliricamente percorridos, perfiladosna decoração de sua infância

Quando a saudade tenta libertar-sede seu significadoatola no exorcismo rudimentardo poema,exercício de deslembrança, desconfiguraçãoque nunca encerra a própria intençãomas sobrevive a duras penasna agonia paralítica do tempo

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no precipício do dia claro

Com a boca descerradapupilas vítreas nas ervas- como se inalandoos vapores do abismo -desistia da vida- religiosamente! -todas as manhãs

(Minha verdadeira vocaçãoera negar, repudiarque ainda me perseguiamas mesmas peças shakespereanasdo mar)

Com a boca abertaíris embebida de branca monotonia- monocórdico círculo concêntricoque vagava do Onde ao Nada -me largava à melancoliaque com seu canivete de tempoe dedos de oxigêniome iluminava

No sul deste quadroentretanto, as vascas dos mosquitos- quais espinhos acesosem fístulas incuráveis -

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nada mais eram que a saudadea jazer em Jackson Pollock,vítima borrada,carmim-cinzel abstratode todas as futuras manhãs

dispostas ao Muro do ar,nitidamente pichado:"Cuidado!Há coisas que são para sempre"

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trilhas surdas do insondável

Em cada nódoa de mofo do sangue :odor dos desfechos mutiladosindefinição-ouropel transmutada em calcáriotrituradas ágatas de despedidasriozinhos secos por feitiço de outros braçosverde tão amarelado em musgocinzas de passeios que foram Mozart

a fonte azul sem regresso a tua bocao sol do pão que anoiteceu

Tudo isso resiste, reside em limolume inarredável largado ao frioque tem lá sua vidinha própriaem palpitações de puro abandonoum timbre diminuto, acuadoservil às transparências infernais do silênciosob tantas lâmpadas apagadas

pelo que não tinha de serpor tudo o que poderia ter sido

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despojamento em sol maior

IPenso o Claroentre as duas mãos

Toco o coração do ara respiração em concha

Admiro a musculaturasecretamente anis do vazio

Imagino implodir-mena brancura dos sentidos

(sangue e lama,única conjunção dos olhosquero me despedir de uma vidaque não consigo mais lembrar)

IISubo rampas de átomosidealizo a lápidenas nuvensde brancuralada

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Repouso meu cancrofossoao último fiapo de solna roda do dharmaentrevista pela manhãTudo é mais, mais Branco - oh limpidez pormenorizada -quando as ambiçõesse vão para sempre

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onde o vazio pensa o corpo

IAmar em risca retaexige demaisnem sequer distraia pernigrande dortornada Império Romanonas antiguidades das glândulas

Ah, me esquecer numa trilhaem excessiva atençãoestaria quase de bom tamanhosem pernilonguear o sentirpor onde não sinto nada ou nadir de nada

(ah, mas isto tudo não passade um permisto devaneioagora a cismarem qual canto ou banco de mimsobrevive a tal mágoaneste instante assim escrito)

IIPor dentro vejo o silênciodo próprio silêncioum sorriso de folhasfica perto da sombra

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do orgulho dos sentidos,algas que mal sabiam ser algas

Não tenho vontade mínimade compreender coisa algumanem a citada dorfaz sentido ou sentinelaao vácuo liberto, despertoem montanhas azuis

Fomento a dimensão intocávelcelebro ao longeo que deveria ter sidosorvo o sacro espaçodo vazio nutritivoa quem nada peço

Alimento de cordaencabulada, amarradíssimaaté o pescoçoaté o prazer de suforcar-seem escamas poéticaspara conseguir não morrer

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desta branca cama de água esquecida

IAté a morte sabe morrer quando querde preferência, atada a uma rochaem sinistra apatia, na ponta dos péssem semear limites ao rosto que habitasem ocultar as maneiras de esquecer

Hipnotizada em salsugem, lapida-se de dúvidasimpede a soma, o silvo, a salivade qualquer ato decisivoisso se é que o impulso da decisãopossa ser um zíper de camadas

IIA inércia toda exaltadaé mais traiçoeira que a angústiaah, essa daí, até me rejeitatão transitória e caleidoscópicaem meio aos que gostamde pegar a vida nas mãos

A vacuidade das manhãs insolúveiscom todos purgatórios morais dentro delaviola-me por completoinseto-me, flutuo no que antes fora riona fartura perdida da hesitaçãoa chafurdar na brancura da naúsea

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III(Não querer mais nada, nadinhamas sem muita vontade de esperarAssim ficamos? gramamos?com o lento despertar a farfalharatrapalhando as folhas do sono?Estamos quites, então? algo ainda a fazerem fiel costume de existir?)

-Ah, o tédio aparece (geladíssimo)onde menos o imaginamostem a respiração de uma colinadentro dos sorrisos do amorao lado de um coração de pérolasperto, pertinho de beijoscomo migalhasno chão dos olhos-

(Suicidar-me seria lógico demaisme cansaria pensar a melhor formae por esta via tão manjada,em Macário, a alma não somee acima de tudo, por Sun Ra, juroo que sempre mais quisera dar um fim à alma,auréola de sensações inúteis)

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neste hospício das saudades

Ouço com os olhosas risadas de sua infânciaos gestos miúdos da alegriaSão estes, hojeo tear e as tarefas da dor,essa coitada,que trabalha com as perdasentre os dedos

Contra a luz tamanhadeste amanhecer de águaesmoreço a eclodir em breuaté o negrumespasmorevelar todas as suas idadestapar a mortede seu próprio trigal,fenos que nunca ousou dizer

Com os olhos já surdosencosto os lábios na terrabarro, gaguejar silvado em recordações insuportáveisdouradas de formigas carismáticasque quase em carmim, em fases,adentram minha bocacardo epitáfio para língua

((Assim Foi Que Aprendi A Irromper No Vazio))

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no puído decurso dos que falam sozinhos

Concebo expurgar da ausênciao seu sentidopara que a destituição caibadentro de sua dimensão de ossose a escuridão adquira a mímica do solaté implodir as artérias das lâmpadas

A falta de liberdade em poder ire voltar da eternidadesem dar importância ao tatoé a grama de espinhosonde o desconforto em viverse traduz no silêncio da vida

Me esfrego todo, fe(i)to em toldonos tapetes do inconscienteaté o nada perder sua disciplinaaté não mais tocar as coisascom o olhar absortoou o roucoazul deixar a fala

(Eis a perversa perdiçãoda ansiedadede cílios inexpugnáveis)

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O tempo apanha toda essa pinturacom sua clara densidade infecundaaté que a solicitude engulao fastio das árvorespor continuarem existindo como árvoresno imortal rosto de Sempre

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no meio da luz deserta

Tento catar no pensamentonacos do anisete desvanescidode seus trajetos de infânciamas a sobra entre as unhasé a luminescência frouxa, amargaque a privação alimenta

Ciranda de aversões,empinadas pelo brilho do horizonte largado-lazulita,se espalham, se urinamnessas ondas que deliram no mar

O espaço abertoaperta-se em sua loucura,mingua, presságio-miragem,agarra-se à moldurada interposição dura ao ar de um Rembrandt qualquer

Ébrio de areia, afundopor fora de tudo o que pensonão alcanço a desesperada saudade estendidasobro inteiro, desfeitona praia onde o tempo não passa

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a pedra, amadurecendo

ITodas essas palavrascatadas do chão(resvalando em pedras)mica de conversas,soluços sem metafísica,vazadura de idéias,murmúrios vascularesda tarde

restos, enfim

são essas coisas,essas traças, tralhasque formam poemassão elasa aura da pedra

IIAi, dói ao pensar,latejao círio abstratoda razão

Ai, pis, quantos, prantosinumeráveis dicçõesassomados pensamentosnasceram

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desta pedradeste meu permanenteascendente, veementeolharesgrima à pedra

IIITudo assimtudodentro dessa pedra

É assim tambémque a Dorse sente em casa

Assim a umedeço com lágrimas(poucas bastam)todas as manhãspara sentir-me vivo

para amadurecê-la

até que um dianão possua mais nenhum,nenhum vocábulo

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sob a hipótese da continuidade

Incomensurável outonosem hesitaçõeslento megatério- até às raízes dos caninos -a desprezara ignorara cal, o salda luz

Oh esterilidade friaa exigira cometer, atingir limitesa trazermalemolência ogivalao entardecer grumosoque não cessadentro do peito

Internalização de outonoa suara soprar folhasque nada mais são que os dias que espalholentamente com os pésa troco de nadacom os trocos do tédio

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Em trono de outonoa alma quietinhaa lavrara queimaro choro sem fugaa reterum monte de escombrosque escorrem do eternoa serestátua outonalcom a ambiguidade- intrínseca -com o luar da florque talvez nem exista

Em outono completamenteconciso ou consciente que o temponão é mais parcialàs esmolhinhasque a razão cede de cócorasmas ao regojizo da purificaçãoao verde cinza branco desta gramaa perdurar imóvelaté que meus olhos de vidroreflitama visibilidadede todas as camadasdo silêncio

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ao sair do teatro dos restos

Frente a frentecom o encerramentode uma peça do destinotramava a fórmulada regeneração dos desenlacesque ficaram para trásmas perdi o sensacionismonas esferas do desesperoque giravamnos moinhos da ausência

Com um esforçoque fez arder os cabelosinvoquei a ilusãode tornar-me verniz, largar-me perdiz,vestir a saudadeem sua nudez animalui, lancei-me à magiadas ternurasai, tantas, petrificadas

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Aconcheguei o Longeentre mãos trêmulascomo se fosse um beija-flormuito, muito feridona própria nitidezde suas coresde seu poente pisadona angústia conclusaque ele não mais conseguiria voar

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legalização do insondável

De que adiantaria andar pelas lembrançasse, de tão decoradas, não dizem mais nada?Seria ainda plausível doar ao sofrimentoo mata-borrão das marcas da distância?

Haveria ainda fugaz orfanato, olfato na pele,capaz de inalar a salvação dos dias idos?A eternidade saberia esclarecer seu sentidopela mera permanência do carvalho milenar?

A carência - toda céu entre os braços do quarto -se enfeita sob os arcos da impossibilidadedestrama a sensação em beleza de camelo errante adia a hora com sua métrica indemonstrável

(ah, juventude onde fui líricoflamingo diante da muralha das estrelasa tricotar arranjos com os repeniquesque o coração mordiscava em versosde febris lilases em marcha-ré)

Não há sinal de noção do futuromesmo a pluralidade ou a idade do impalpávelagora exalam um cheiro muito escurosem virtude em pular o cerrado cérceo ao fim

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No átrio das imagens sem regressoo combate inútil das éguas de água mar ao teto que não desprende de sua raiza larga ferida incapaz de moldar-se

Sem aplicação possível a Saudade alaga-seno prato, na queixa em que reside sua substância que não envergonha-se das garras que tem

Resistir dentro dela ou morrer por elaeis a permanente, indecente afliçãoque nem ao vazio se redime

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finais sob gymnopédies e farelos

(Oh dogma em reprisar-me, tira-me daqui (!)devolva os biombos da lua,a inutilidade em Gnoissennes - deterritorizada (sim) -já é grandiosa demais)

Enquanto não sei muito bemcomo fazer para perder mais tempoa eternidade parece ter pressaem algo faca a soprar nuvenscom o faro do silêncioque nunca soube tomar às mãos

A exiguidade da paz é evidenteir para frente ou para trásdá na mesma vírgula insensata

O resíduo, em dissidente suplícioé a condição do gestoa varrer os quartos da vidacom intensa vagarosidadecom o ritmo do fascíniopelo cascalho que suspira na caligem

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(Oh dogma em deixar-menas sibilações fundas,imundas de silêncioque ferem demaisos ouvidos do espaço, lassoacaso em Satie)

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obra levada a exaustão

IArdo-me em remorsospor estrofes não escritasem homenagemà agonia dos pássarosque emigram imprecisosdos vales da noiteaos cenários sem equilíbrioaos aspectos das cinzas

Ah, eles são apenas Um exemplodesses protótiposque voam, zarpamcom as asas em brasas

Consulto a bruxados cinco sentidosem clamorem súplica funesta- ao pé dos joelhos -para que ela indiqueum jeito simples e eficientede sair da existência

Entretanto o sexto sentidoé aquele que atrapalhadissipa o efeitodo elixir do demônio

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que as sensaçõestragam do cotidianopovoando a almacom mais dias abandonados

IIIncólume ao cansaçoem fitar sombras movediçasregresso à relva ressequidados versos sem cabimentodos ditirambos inválidosaqueles convivasda fronteirados despenhadeiros

que embriagados girama exigir aos berrosa presença de minha mão inertepara reescrevê-lospor mais uma vez

Os sentidos desses poemassão apenas frases sem saída,léxico em sordidez,carrapatos amorfosque chulam suas determinadas lendasverbos e vendasque mal conseguem se mover

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IIIPor isso, perplexo, fitoaagoniadospássaros

enquanto os dedos acompanhamo labirinto de imagens,de mistérios,de miosótis pisoteadasque invariavelmente regressamà metáforada magia poética

essa que não permitedecifraro rosto do arcanjoa esperara anunciação do fim

ou (ainda) a mais adequada formade se morrer

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sobre o mar que trakl nunca viu

Pensar-me Mar no maraté ajuda secar a alheação

Ataviado no intáctil horizonteentre a maré alta e a vazia,a maresia cabisbaixacumpre lá suas coisinhas

e a espuma que é seu sangue- com pinceladas de algaem telas de ondas -deixa submergir gritos e gatafunhos fauvescomo fossem desdenhosas gladíolasdo desconhecido

Prostrado, atirado entre céue gestação de tela

na tarefa de ignorar-meno aprendizado em mergulharno Branco inabitadodo sensacionismo

Eis-me, assim quase Ungarettimeio bobo, meio águamijando estrelas de pratano infinito

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para levar à testa o sabor da pedra

A Impotência quando trina totalidade,fende chumbo, em manto, abriga-se na distância

Cheirando a suspiros,caminha aladasob o paul do desesperoentre o denso nevoeirodas coisas perdidasdas lamparinas pisoteadasantes mesmo de acesas

A memória assenta-seao solo, ao salitre de cacosmal suporta os rostos,os trastes, os motivosque carrega nas costassem ter para onde irsem comigo suportar ficar

A impotência caminha, miana lucidez do sono do sola tecer seu novo sentidode sina e sangue

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(Enquanto issoa inesgotável rigidezdo lado de fora da vidatem o andar da eternidade,essa canalha,que para os que perderamtudo (!)possui um significadomuito diferente)

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a ausência (quase) varrida pela insanidade Se a saudade conseguisseesquivar-se do corpoou içar ócio em hiatosos nervos da ausênciaseriam trilhas, troncosa receberapenas o pouso dos pássaros

As fibras do destinoficariam Brancas em róseo amanhecer

A cauda louca da tristezanão passariade uma nódoa expressionista

O hematoma, abertocom maior facilidade,sem sombra de causaviabilizaria o retornoà casa, até adonisada,sem a demênciados gritos mudos

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cuidadosamente, entre espinhos de extenuação

Essa saudade me envergonhaquando corada me apreciacom seus crimes audíveisem cruéis gargalhadas de tempo

Distância, fonte que agonizajorra lencinhos esfiapadoslamenta não escapardesse beco surdoque fica verde-acre entre sangue e espírito

(Sensação de lâmina de barbearentre os dentesmordendo isopor no bafoquente da tarde)

A mágoa extenuadaquando nada mais tem a fazermonta parques abandonadosdentro de mim

Alguns deles nem céu têmsão rostos ou roda-gigantesque antes reluziam movimentose agora são vultos, fadas perdidasuma edificante convivênciacom restos a rastos

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paul klee em bússola de desolação

Nas manhãs de gessocismas fuliginosasdissipam-se em Nada

Coleções de impossibilidadessão tragadasem distrações taciturnas

Este é o lugar da sedecomo insetívoros, as palavrasmal conseguem respirar

- e entre gemidos,uma delas, balbucias...a...u...d...a...d...e -

O vento incomodacomo um porco pegando fogocom o desconforto no limite

- de tudoque ao longe viveem fuligem despovoada -

Temperatura oca rutilaem súbito fulgor de corteno rosto seco da terra

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É o tocar nas cartilagensda Partida, no entretempodos cabelos aos pés

-é a herança das vidasah taças, tantaslevadas pelo suicídio-

Exposto a nucomo roseira negraque não consente aroma

Nas manhas do gessovou perdendo os diascom muita facilidade

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stravinsky, niente istrione

Dilato-me na tortura da primaveraonde a coloração da chuvaondula aprisionadaentre a neblinae os melros morgadosque não zarpam dos galhos

Deusa é a vacuidadeestabelecida nas folhagens do ar

Na tentativa de conter o desesperorumino se há alguma sensaçãona grama que me abrigano pinheiro que avistao grito mais internodo espelho cego

Cizânia, drink de tisanasde mãos dadas com o inferno

O coração anela ainda um refúgiocontempla a terracobiça um mergulho verticalpara o berçodo mundo ilegívela pura noite invisível do rosto

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Na poalha, folhas quentes se debatematé ficarem em carne viva

Resta caminhar em agrestecom essa maldita Atlântidano páreo, no peitocom o ódio em risteolhando para cimaatirando pedras em Deus

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sob(re) o esplendor da saudade

A ligação entre eu e o diaé mínima, alpiste massacradase resume em sentar-me ao chão do tempofitar a claridade da inérciaem sua altura viva

Estou onde árvores não acabamexisto como única permanência a cravá-las na sólida harmoniaentre o silêncioe as aparências, gris saliências da eternidade rigorosa

Sem aspirar a mais nadapercorro-me completamente na ventaniacom as pálpebras bem cerradasavanço com uma praia imaginárianas costas, na frentedos desejos que perderam o rumo

Lá, onde suponho sera última estância da estagnaçãoonde o olhar não tem mais saborna derradeira etapa do aclive do carecimentote encontro, nua como puro marfimoh surdo reflexo do sofrimento!

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água dobrada sob abajur

Nos destruídos temp(l)osonde Muito amavarecordo-me a vaguear sem verbos nas mãosmas com excessos arroxeadosentre as sobrancelhas

O desejo do rosto impossívelera subversão internaaquiescência quase maternarebeldia que criava, matava e até ressuscitava querubinsa qualquer preço

Compreendia o Inesperadoembora o maculasse de ilusõesfazendo névoa das facescirros, dos céus das bocashipnose com olhos mais densosque os próprios punhos

Dentro dos outrosexistia como um Magritte inéditoincaptável, plantando brasas azul labareda do restolhoa me lixarcom as penitências à minha volta

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Foi assim que adquiria violenta intimidade com a lama,suas ranhuras, casos de vime na viscosidadee quanto aos versos de Hölderlinah, essas orquídeas,as mandava para os quintos dos infernos

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suspiro, ao rosto do claro eterno

A sensibilidade faz-se deserta de si mesmao cigarro enquadra o perfilindiferente a quaisquer aproximaçõesa dor já foi escancarada ao mundo

e de todos-entre-tantos que passaram por elaalguém em ressonância dilálicadisse : ei-la! esfarelada em calcário

Não há ninguém além do Muito-arcom alvos ciprestes ao fundo, o nirvana, todo envenenado,contorna em revés sua sobrevivência

O aprendizado de queimar o silêncio,fixar lentamente os pirilampospor dentro do insuportável lumeda incompreensão, a perda de pétala

A existência humilhada diria Heideggerparece agora ainda mais desfeitanem a angústia se interessaem sobrevoar a imensidão do mar

Vazio maior que todo o Vazioeu, sentado, achado dentro de mimcom o lado (mais) sombrio da águaesmaltando o coração de ametistas

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no vacilante pus do tempo

Consigo sentir barcos e mais barcospor toda a circulação das vértebrasnas enchentes do sangue baldiono terror da distânciaonde mora o horizonte

Estico as pálpebras de ilhaaté encontrarem valia no vácuoou o abismo encher-se de sol

Este é o método para se respirar Alto

Na ramaria do ar, sobrevivoàs custas de imprecisões, rugas e poalha

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sob(bre) a liberdade dos pactos da vida

Toco o solo da saudadeinalo a estridente longitudeo torporda boca entreabertada penumbra

Até você, travessia de bílis,senda de estrelas caindo aos pedaçosOh, antigo pasto de luzfaminto e escurecidopelo tempo

Toco a cintura do vaziodesarmada intençãode consologesto inertena incandescência do Nada

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exercício do destino, sem isenções

Exiguidade brutalmais funda ainda ficaperante o brejo ocreinteiramente mudonulo a dizer onde se acaba

Tento dar a mão ao céualmejando ludibriara demência da dor

Esvaziada saudadenarcotizada entre dois braçoscomunga com este segredo

Rastejandoescapo desse écranpensando solo sáfarointeiramente surdocom uma pedraamarrada na íris

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águia sem orgulho nietzscheano

Dor, águia embalsamada,a envelhecer entre a vernizque te sustentae a aridez que se fezna linfa narrativa, lince aflitivadas lembranças

Ouço a gélida imobilidadedesta desgraçada avecadáver guardado em mimque em seus últimos dias de marcambaleava saracoteandopalavras desdoiradas, outras asasdiáfanas lascas sem nexo

Águia-leque em arindevassávelfluente na intemperança sórdida matança da corentre voos rasantes no infinito céu descampadoque nunca existiu

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violenta dissipação em óleo impressionista

Desarmado da fala- saboreando a intensidadede como dei as costasà rigidez do entendimento -engulo a brisa libertada friasecreção dos mortos

Ah, ao longe azul-marinhofui-me inteiro

aprendi com a célula do asteróidea sabedoria do isolamento

nunca mais dei bolaaos aracnídeosda suposta razãodo meio-dia deslumbrante

ou ao rascunho de emoçõesque atravessava ruas vazias

Apalpei por fima pura distânciaescavada, cingidaaté ao vermelho da pedrade cada pedraEra a glória,murmurava baixinho

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o orgulho em girarentre massas e mastrosde orvalhona língua do ventono lugar sem tempo

Era afinal, a liberdadetal pumatão incontrolávelem velocidade azul-clarano herbário dos sentidos

do tamanho de uma Putaestremecendo de alegria

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a lembrança no despenhadeiro

IApós a travessia da paisagemtalhada ao seu ladoem treze dias

recolhodo coração desfeito,a liquidez da penumbrado trânsito do sangue,sua proporção de buracoscrateras de lava gelada

em suma,a soma amargaque molda o corpo

Destarte, o inconformismose arrebenta, ventano último vestígiode teu olharcom olhosde despedida insular

Lascas intactas:eu as atravessoem fluir vagaroso

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IITocoo espaçoda dissolução

onde o impalpável tédioarde áridoarte em pústulado passado infantil de rosa-choque

A percepção da ruínafloresceNa sala íngreme da relva,enaltecea saudade de diamante

IIIOh, rocha de arco-íris (!)a torturar a sede criada,deixadaentre o prazer vividoe dissipadoem sobra dele mesmo

Assim, a lembrançaajusta-se ao despenhadeiroavista o horizontede águas enlameadasdeste território negro

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de escarlate saudosismorecolhe seus silênciosrecita o esbranquiçado gostodas cartas queimadas

inicia sua viagemao vento da serra

carregando nas mãosapenas treze diassob a mirada audácia precisado nada

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a nudez das fadas mortas

IEis-me imerso em pacóvia infantilidadedesinfetando as purulentas chagasdesde a Inglaterra

contemplando na raga da amargurao pavão morto nas frases de brasausadas para te seduziro anzol de neon fosforescenteespatifado no mofo das fábulasa que você não deu atenção alguma

(Soluço catando e esquartejando,com muita raiva,os sofismas das promessasos sacis que encenaram minha vida

com resignação, o entendimento incolorde que só o olho da abelhaconseguiu refletiro incêndio das deduções)

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IIEis-me em sintaxe, síntesena imaginação das cicatrizesonde a máquina de tecer esperançase o termostato das sensações abstratas

se cruzamna marra (!)Por fatos da lembrança se medem, de norte a sulsorvendo o horror de terem existidoe a vergonha da despedida em suicídio

(Sangro a partir e por toda tua infânciaainda esculpindo essa agenda tóxicacom a qual me enveneno

em releituras sem mais sentidoem covardias nascidas infeccionadasem afetos estropiadospor palavras enterradas vivas)

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o silêncio na pele dos exilados

Não consigo desenfeitiçaro que fica por dentro da mágoanem transpor a rigidez opacacom que ela se adorna

De nada me serve o lodo úmido do sorrisoou o multiplicado cobre-gris que o exílio traz dentro de si

Enquanto a lua minguantecom fogo nas pontasme afunda em sol menortudo o que mais queroé seguiro rutilado rito ruminantedo nadaentre os signos de nadacom a mais linda estrela do vazioentre os lábios

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sobre a agonia dos pássaros

claufe rodrigues

Conheci Fernando Naporano em 1978, num encontro informal de jovens escritores cariocas e paulistas no Posto Seis de Copacabana. Eu estava com tudo em cima para lançar meu primeiro livro no ano seguinte; ele, ainda um garoto, acabara de retornar de Londres e também planejava estrear em breve com o livro Estrelas De Gin, época em que também já escrevia o anti-romance Não Era Uma Loira, Era Uma Garrafa De Cidra.

Em décadas de amizade, acompanhei de longe e de perto as diversas trajetórias de Fernando: o brilhante crítico de rock e cinema; o carismático e inspirado líder da banda Maria Angélica Não Mora Mais Aqui; o dono da melhor e mais completa discoteca do Brasil; o radialista que embalou cora-ções paulistanos com o programa Blue Moon; o colecionador de loiras. Mas, e o poeta, onde se meteu?

Nunca imaginei que, tanto tempo depois da quele encontro no Cassino Atlântico, eu seria convidado a escrever a orelha do seu livro de estreia. O primeiro, finalmente! Por que a demora em publicar? De quem foi a culpa?

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Nas entrevistas, Naporano contará as incríveis peripécias que levaram da boca da gráfica de volta às gavetas cada um de seus catorze livros inéditos.

Como haverá sempre oportunidade de publi-cá-los, prefiro destacar nestas poucas linhas o que realmente interessa: estamos diante de um raro poeta, ferozmente intimista e metafísico, eter na-mente inquieto, sempre em busca de novas ex-pressões para a própria poesia.

Neste livro, o surrealismo de tempos atrás foi guardado em algum espelho; agora, são os tons expressionistas que recobrem a sua alma simbolista. E, a despeito das intenções do autor, um senso de humor involuntário e quase tísico respinga aqui e ali, oásis num deserto de dor, resignação e ceticismo.

De posse destes versos, podemos dizer com absoluta certeza que a vida continua – pelo avesso que seja – e que vale a pena escrever poesia, viver como poeta, correr todos os riscos.

claufe rodrigues, poeta, jornalista e compositor, tem dez livros publicados, entre eles “Amor e seus múltiplos”, “Escreva sua história” e “Livro dos Camaleões”.

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Agradecimentos

Fabiana CasoJac Leirner

Roberto Bicelli

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