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Texto fundamental para entender o problema do narcisismo na nossa formação subjetivida
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Narcisismo em Tempos Sombrios
Jurandir Freire Costa
Para Maria Célia, que até o fim lutou por um mundo melhor.
Apesar de sua atualidade clínica e teórica, o narcisismo
continua sendo uma noção problemática. Portanto, antes de
abordar o tema do ângulo das relações com os ideais em geral e
com os ideais sociais em particular, pensamos precisar o que
entendemos pelo termo. Só assim, acreditamos, algumas de
nossas hipóteses podem fazer sentido e contribuir para a
discussão do assunto.
O EGO E O NARCISISMO
Retenhamos de Freud a tese introdutória à questão: o narcisismo é o estado psíquico
resultante da localização no Ego dos investimentos libidinais. A articulação do Ego com a
problemática narcísica nasce da preocupação de Freud em responder aos impasses de sua teoria,
suscitados em boa parte pelo desafio lançado à sexualidade por Adler e Jung. Estes dois ex-
discípulos de Freud insistiam em mostrar que a psicanálise, hipnotizada pela sexualidade,
esquecia que o Ego também podia ser fonte de “traumatismo psíquico”, por assim dizer. 1Para
Adler, a prova da patogenecidade do Ego encontrava-se no complexo de inferioridade; para
Jung, a patologia das psicoses delirantes crônicas não esquizofrênicas mostrava que os
complexos sexuais, nestes casos, eram secundários diante dos “complexos” de um Ego
grandioso, reivindicante e sensitivo. Adler nunca importou muito a Freud; assim, o que quer que
ele pensasse era de pouca monta. Jung, não; era seu preferido. Por isso, Freud não via com bons
olhos a querela em torno do Ego. Na origem da polêmica estava o dedo de Bleuler e da Escola de
Zurique, que disputavam com o pai da psicanálise os favores intelectuais de Jung. Nesta disputa,
o papel do Ego nas psicoses não-esquizofrênicas representava o primeiro lance vitorioso do
mestre suíço. Obrigado a convir que a dinâmica das neuroses esbarrava na psicose, Freud recuou.
Admitiu a importância do Ego. Mas logo tratou de mostrar quem detinha a última palavra sobre
o assunto: “Eu não sei o que fazer com a personalidade, nem tampouco com o ego bleuleriano.
Penso que são conceitos de superfície”.2 Este trecho da correspondência com Jung é eloqüente.
O recado era claro: Bleuler descreve, mas só Freud explica. Qual a explicação? O argumento,
resumidamente, era o seguinte: se o Ego tem o papel que se vê na psicose é porque deixou de ser
o sensato representante dos interesses da auto-conservação, para tornar -se joguete das pulsões
sexuais. Por acaso não era isto que ocorria com Schreber, com o Homem dos ratos ou com os
“primitivos” de Totem e Tabu? A megalomania infantil e a onipotência das idéias, analisadas
naqueles estudos, não ilustravam este funcionamento sexual do Ego, que recebe sua plena
formulação com a teoria do narcisismo? Seria demais afirmar que a psicanálise, de modo
implícito, sempre sustentou a idéia de um Ego narcísico? A teoria analítica não precisava de
Bleuler para entender o valor do Ego na vida psicopatológica. Bleuler é que precisava da
psicanálise para compreender por que o Ego enlouquecia, arrastando o sujeito para a psicose. O
quebra-cabeças parecia decifrado. O Ego engrandecido da psicose era o Ego sexualizado. A
Originalmente apresentado no ciclo de palestras Tempo do Desejo, este texto também foi publicado emJoel
Birman (org.), Recursos na História da Psicanálise, Rio de Janeiro, Taurus, 1988. 1 Ver Paul Bercherie, Genese des concepts /reudiens, Paris, Navarin Éditeur, 1983, po. 315-345.
2 Ibid., p. 318.
deusa libido estava vingada.
Só que a suposta solução criou problemas ainda maiores. Até a primeira tópica, a
metapsicologia tinha aparência de uma linguagem bem-feita. Seus pressupostos eram fáceis de
esquematizar. O conflito psíquico, pedra angular da psicanálise, explicava-se por um jogo de
forças onde as partes se diferenciavam com nitidez. De um lado, as pulsões sexuais, as
representações recalcadas, o princípio do prazer e os processos primários; do outro, as pulsões de
autoconservação, as forças recalcantes, o princípio de realidade e os processos secundários. O
Ego representava, no sistema PCs-Cs, os interesses da autoconservação e o princípio da
realidade. Dele derivava a censura, que mantinha nas fronteiras deste sistema as representações
sexuais. Os pólos da tensão eram claros. O Ego recalcava; defendia os interesses da auto
conservação e do equilíbrio psíquico: a representação inconsciente era recalcada, pois a realização
da noção sexual punha em risco este mesmo equilíbrio.
No momento em que estas referências se embaralham, complica-se a dinâmica do
conflito. Com o narcisismo, o Ego passa de aliado a quinta-coluna da homeostase mental. Freud
tenta reestruturar a teoria. Propõe em sua segunda tópica a divisão do Ego numa parte
inconsciente e numa parte pré-consciente/consciente. Esta saída trouxe para a psicanálise mais
desconforto que alívio, pois uma pergunta ficava no ar: que Ego é este que, ao mesmo tempo que
se define como aquilo que recalca, possui as mesmas propriedades do recalcado? Onde e como
ficava a distinção tópica, econômica e dinâmica, que fazia do conflito psíquico uma noção
teoricamente coerente? O ego deixava de ser o puro embaixador da realidade junto ao psiquismo.
Em sua origem narcísica, não era mais o outro da sexualidade: era um objeto da libido, um
cúmplice na realização alucinatória do desejo.3 Não apenas o narcisismo, mas a teoria das
identificações, desde Luto e Melancolia, passando pela Psicologia das massas... até o Ego e o Id,
também apontava para esta gênese insuspeita da estrutura egóica. Objetivos do Ego e finalidade
da libido de repente confundiam-se, fundiam-se, minando nesta fusão os alicerces da
metapsicologia. O Ego tornava-se agora uma representação do tipo da representação sexual
recalcada da primeira tópica.
Freud, se quisesse salvaguardar a integridade teórica do conflito psíquico, teria uma dupla
tarefa por cumprir: primeiro, mostrar qual o destino deste narcisismo egóico que, com a teoria do
narcisismo, passa a ser considerado como uma etapa normal na evolução sexual e não somente
um fenômeno psicopatológico; segundo, mostrar que instância assumiria a função de guardíã da
realidade, antes devolvida ao Ego, e que princípio extralibidinal, no lugar da autoconservação,
iria opor-se à sexualidade, representando a realidade e determinando a ação recalcante.
O NARCISISMO E SEUS DESTINOS
As respostas de Freud às questões levantadas pela nova concepção do Ego são, à primeira vista,
desconcertantes Quanto ao futuro do narcisismo, duas soluções são propostas. Na primeira, Freud afirma
que o narcisismo egóico da primeira infância tem como destino normal os ideais. Nestas formações
psíquicas devem concentrar-se os investimentos sexuais do Ego. A fixação na posição libidinal passada
significa psicopatologia à vista. A distinção entre Ego Ideal e Ideal do Ego é posterior a Freud. No estudo
sobre o narcisismo, o que é dito é que o circuito dos Ideais e os investimentos objetais são a forma não-
patológica de metabolização do narcisismo infantil.
Na segunda solução proposta, Freud defende a hipótese de que, desde o início, a captura do Ego
pela sexualidade faz-se às custas de uma metamorfose da libido. Os investimentos libidinais dirigidos ao
Ego seriam dessexualizados ou sublimados na própria estrutura egóica. Esta energia, uma vez
neutralizada em seu teor sexual, seria em seguida posta à disposição dos Ideais.
3 A respeito do ego narcísico e do Ego enquanto objeto da libido, ver, além das fontes freudianas: Jacques Lacan. Les écrits
techniques de Freud. Paris, Seuil, 1975; Jacques Lacan. Le moi dans la théorie et dans la technique de la psychanaiyse. Paris,
Seuil, 1978; Diana S. Rabinovich. La teoria del yo en la obra de Jacques Lacan. Fundación del Campo Freudiano, Buenos
Aires, Mantial, 1980; Joel Birman. "A razão da impostura". In Teoria da Prática Psicanalítica-3. Rio deJaneiro, Campus,
1984, pp. 11-49.
Como se pode ver, as contradições das hipóteses são grandes. A primeira peca por pressupor a
existência da instância egóica, cuja gênese estaria sendo supostamente descrita ou explicada. O Ego, na
introdução ao narcisismo, como na teoria das identificações, passa a existir quando a libido investe certos
objetos que são a substância mesma da formação egóica. Ou seja, sem libido, sem a argamassa libidinal,
as representações constitutivas da estrutura egóica não existiriam. O Ego, portanto, não preexiste ao
narcisismo e está lá, de tocaia, esperando a sexualidade desviada de seu caminho objetal. Não se entende,
então, como esta instância pode desfazer-se de sua energia libidinal, sem que isto implique a
desarticulação das representações que a compõem. A libido é condição indispensável à estruturação do
sistema egóico e, portanto, permanecem intactas duas questões: primeiro, como conciliar a migração
libidinal em direção aos Ideais, sem esfacelamento da estrutura egóica; e, segundo, como distinguir a
formação normal da patológica se, para explicá-las, é invocado um mesmo fator, o narcisismo do Ego.
Na segunda hipótese, a contradição não é menor. Caso a idéia da dessexualização fosse correta, a
energia que investiria o Ego não mais seria sexual e, então, o sentido mesmo da noção de narcisismo
egóico estaria perdido. Porém, mesmo aceitando esta solução improvisada, qual seria a natureza desta
energia dessexualizada? Que processos seriam responsáveis pela misteriosa alquimia?
Acreditamos que as dificuldades de Freud provinham de um mesmo conflito teórico, deslocado da
esfera do Ego para a esfera dos Ideais. A instância ideal, chamada a resolver o conflito surgido com o
narcisismo, via ressurgir, na definição de sua gênese e natureza, os mesmos elementos conflitantes.
Expliquemo-nos. O Ego narcísico diluiu os limites entre ICs e PCs-Cs. A partir do narcisismo e da teoria
das identificações, ele emergiu como uma representação que nem podia ser recalcada, nem podia ser
fonte autônoma do recalque. O Ego não era mais a medida de julgamento da inconciliabilidade de
determinada representação, tendo em vista os interesses da autoconservação. A agência responsável pela
censura passou a ser o Ideal ou formações ideais. Porém, ao contrário do Ego da primeira tópica, o Ideal
já nasceu sob a égide do narcisismo!Se a dinâmica dos Ideais, inspirada no modelo do
contrainvestimento, explicava como o Ideal, monopolizando a libido, retirava o investimento da
representação egóica, deixando-a num estado análogo ao da representação inconsciente reca1cada, não
explicava, contudo, que estado de desinvestimento egóico era esse, nem como a libido podia, por sua
natureza, sustentar o Ideal em sua ação recalcante. Em outras palavras, a filiação narcísica do Ideal era
teoricamente incompatível com a exigência de um princípio extralibidinal necessário ao funcionamento
do recalque, e a pretensa dessexualização da estrutura egóica despia esta instância de toda energia
pulsional; sem ela, o ego freudiano, ou voltaria a ser concebido como uma entidade metafísica
representante da Razão, da Adaptação, da Realidade etc., ou simplesmente teria que ser concebido como
um amontoado de representações desarticuladas, sem unidade nem organização.
Na verdade, posto nestes termos, o problema não tem saída. Acontece que, com as denominações
Ego e narcisismo, Freud designava realidades psíquicas diversas. Numa primeira acepção, o uso da noção
de Ego narcísico, ou Ego da megalomania infantil, alude ao que, grosso modo, foi chamado de
narcisismo primário. Esta acepção representa um tempo fraco na conceituação de objeto, dado que a idéia
de um estado primário anobjetal do narcisismo egóico não encontra lugar coerente na teoria. Este
hipotético estado primordial dispensa a idéia de Ego e de narcisismo, pois a indiferenciação psíquica do
sujeito é contraditória com a idéia de interação complexa de sistemas ou estruturas heterogêneas entre si.
Falar de ego narcísico, ou ego megalomaníaco infantil, neste caso, só faz sentido quando se adota a
perspectiva do a posteriori psicanalítico. É o Ego narcísico, no sentido próprio do termo, de adultos ou
crianças, que, em retrospectiva, atribui ao passado do sujeito a suposta existência de uma completude
aconflitiva. A plenitude libidinal que os pais vêem em “sua majestade o neném” é invenção do olhar
narcísico adulto.
A segunda acepção de Ego narcísico ou narcisismo infantil é a que nos interessa. Ela corresponde
à afirmação de que o narcisismo e o Ego são contemporâneos e correlatos à totalização do sujeito, numa
unidade imaginária. Não vamos insistir no “estado do espelho” lacaniano, nem na idéia, hoje central na
psicanálise, de que a existência de um Ego anterior à especularidade narcísica dificilmente poderá ser
aceita.4 O Importante nesta concepção da gênese e definição do Ego narcísico é que esta formação surge
ao mesmo tempo que o Ideal. Ambos são herdeiros do “narcisismo infantil” dos pais e ambos são
encarregados de representar o sujeito diante de outros sujeitos, ou, se quiser, de outros egos e outros
ideais do Ego. A teoria do narcisismo é indissociável desta divisão do aparelho psíquico em instâncias ou
4 Do ponto de vista lacaniano, o desenvolvimento da questão do Ego, neste artigo, restringe-se à articulação desta instância
exclusivamente no registro do Imaginário. Enviamos o leitor ao texto anteriormente citado, de Diana S. Rabinovich, onde as
relações do Ego com o Real e o Simbólico são exploradas.
sistemas diversos de representações, através dos quais apreendemos ou reconhecemos a existência do
sujeito psíquico.
A partir disto é possível ordenar melhor as questões provocadas pelo narcisismo. Como vimos, a
libido da primeira infância investe objetos que, do ângulo da estrutura psíquica, têm todos o mesmo
estatuto. Qualquer objeto é objeto pardal e todos eles situam-se diante da libido com a mesma função de
atender ao princípio do prazer ou à descarga sexual. Com o surgimento do Ego, o investimento libidinal
pode tomar três direções que correspondem a “objetos” ou “locais” diferenciados, com estruturas e
funções específicas: o próprio Ego, os objetos e os Ideais. Neste ponto começam a surgir as
características deste objeto libidinal particular que é o Ego. Ao investir o Ego, o fluxo libidinal estanca e,
embora guiada pelo princípio do prazer, a libido egóica funciona primordialmente segundo a vertente
deste princípio que, de acordo com Freud, visa a “evitar a dor e a privação”. 5 Não custa lembrar: Freud
afirmava que o princípio do prazer busca o estado inercial. Esta redução da tensão ao mais baixo nível de
excitação poderá ser alcançada de duas maneiras: evitando a dor e a privação e buscando “fortes gozos”6
E, segundo ele, “de uma maneira geral a tarefa de evitar o sofrimento relega a segundo plano aquela de
obter o gozo”. 7
Isto significa que, mesmo sem levar em conta o além do princípio do prazer, a libido, operando
dentro de seu próprio campo de exigências, pode seguir ritmos diversos e até mesmo contraditórios. Ou
seja, a “tendência restitutiva”, característica do princípio do prazer, e que no dizer de Lacan opõe-se à
“tendência repetitiva”, não é uniforme em seus automatismos. O psiquismo pode inibir ou permitir a
descarga pulsional em nome do mesmo princípio do prazer, como de resto Freud afirma explicitamente
em suas considerações sobre o princípio de realidade. Eros tem uma duplicidade de objetivos e o Ego
narcísico encarrega-se de evitar a dor, o desprazer, o sofrimento ou a privação.
Com o narcisismo, o aparelho psíquico ganha uma instância especializada em manter os estados
de coisas como são e estão, evitando mudanças que, em princípio, podem acarretar desprazer. É esta
tendência ou finalidade que se afirma no psiquismo com o Ego narcísico e que destitui o Ego do papel de
agente autônomo do recalque. Procurando antes de mais nada perseverar no mesmo, o Ego narcísico
torna-se resistente a alterações na estrutura psíquica. Sua composição imaginária e sua característica de
unicidade determinam este modo de funcionamento. O Ego que, na relação especular e imagética,
apresenta-se como um todo, também aspira a representar um sujeito total ou a totalidade do sujeito. O
Ego narcísico é conservador e fonte de resistência, não só porque seus chamados mecanismos de defesa
seguem o curso do processo primário, mas porque, com ele, instaura-se no psiquismo a célebre
“compulsão à síntese”, que é a marca patente do imaginário. Assim, Freud dizia: “O Ego é uma
organização. Ele se funda sobre a livre circulação e a possibilidade, para todas as partes que o compõem,
de uma influência recíproca; sua energia dessexualizada revela ainda sua origem, que está na aspiração à
ligação e à unificação. E esta compulsão à síntese vai aumentando à medida que o Ego se desenvolve e se
torna mais forte”.8 Ou ainda, “ ... 0 Ego se diferencia particularmente do Id por uma tendência a sintetizar
seus conteúdos, a resumir e a uniformizar seus processos psíquicos, coisas, todas, das quais o Id é
absolutamente incapaz”.9
Esta compulsão à síntese, que Freud detecta em vários quadros psicopatológicos, em particular na
obsessão, vai até a inclusão do sintoma no sistema de representação egóico, que obtém, assim, ganhos
secundários, pela “satisfação narcísica”:10
“Os mesmos sintomas que, originalmente, tinham a
significação de limitações do Ego, graças à tendência do Ego à síntese, posteriormente passam a
representar satisfações”.11
A articulação desta compulsão à síntese com a evitação do traumatismo e de
seus efeitos dissociativos é ainda melhor explicitado no trabalho tardio sobre Moisés e o monoteísmo.12
Assim, o Ego, depois do narcisismo, continua defendendo a auto-conservação. Mas não a auto-
conservação biológica, cuja proteção não poderia ser deixada apenas aos cuidados do Ego. A auto-
conservação diz respeito à imagem egóica que, como toda imagem, dá-se como experiência de
5 Sigmund Freud. Malaise dans la civilisation. Paris, P.U.F.., 1971, p. 20.
6 Ibid.
7 Ibid., p. 21.
8 Sigmund Freud. lnhibition, symptôme et angoisse. Paris, P.U.F., 1951, p. 14.
9 Idem. Nouvelles conférences sur la psychanalyse. Paris, Gallimard, p. 102.
10 Idem. lnhibition ... , ob. cit., p. 39.
11 Idem, p. 21.
12 Idem. Moise et le monothéisme. Paris, Gallimard, 1950, pp. 103-106.
totalização. Nas palavras de Freud, eis como esta assertiva aparece: “Assim como o Id só obedece ao
atrativo do prazer, o Ego é dominado pela preocupação com a segurança. Sua missão é a conservação de
si, que o Id parece negligenciar. O Ego se serve das sensações de angustia como um sinal de alarme, que
anuncia todo perigo que ameaça sua integridade”.13
É a este fenômeno que a psicanálise alude quando fala
de envelope libidinal, superfície egóica ou aparelho de pára-excitação. Toda tentativa de alteração da
composição egóica age como estímulo para a autodefesa narcísica. Na clínica, este mecanismo é
particularmente bem observável nos casos de neurose traumática, onde a dor ou angústia provocam uma
exacerbação da tendência à restauração da unidade egóica, posta em xeque pelo traumatismo.
Em vista disso, a exigência teórica de uma norma extralibidinal, capaz de opor-se ao Ego regido
pela libido narcísica, torna-se desnecessária. A luta é interna ao próprio princípio do prazer ou às duas
maneiras pelas quais a sexualidade atinge suas finalidades. Do mesmo modo, pode-se entender o
funcionamento do Ego Ideal. Ego Ideal é o outro especular do Ego narcísico. É aquilo que fornece a
matriz imaginária do Ego e aquilo que o Ego aceita tendencialmente sem conflitos, como parceiro na
redistribuição da libido. Ou, visto de outro ângulo, é aquilo que o Ego aceita como um outro que também
pode representar a totalidade do sujeito, sem criar brechas em sua síntese imaginária. O Ego ideal é a
imagem idealizada dos traços constitutivos da forma egóica. É a única maneira não conflitiva que o
Ego tem de lidar com a alteridade e fazer face às exigências narcísicas dos outros Egos. O Ego
narcísico só aceita um “outro” que seja reedição inflacionada de um traço de sua forma passada ou
presente, isto é, um outro idêntico.
É a isto que os Ideais, como os objetos, se opõem, obedecendo a outro imperativo da libido,
que é o de buscar fortes gozos, no sentido freudiano. O ego narcísico quer manter íntegra a
representação da unicidade, continuidade e ipseidade14 do sujeito. Sua função sintética consiste em
reunir as múltiplas e diversas facetas dos fenômenos psíquicos, em um todo imaginário que se faz
fotografar pela consciência como mente, essência do sujeito etc.15 O Ideal ocupa outra função no
aparelho psíquico. Embora igualmente herdeiro do narcisismo infantil dos adultos, o Ideal aponta
para o futuro em vez de deixar-se amarrar pelo passado/presente. Também disputa com o Ego a
representatividade do sujeito. Mas, enquanto a matéria-prima da formação egóica é o suposto ser do
sujeito, a do Ideal é o vira-ser deste mesmo sujeito. Como o Ego, o Ideal também visa a sintetizar as
representações que unificam e totalizam a imagem do sujeito ou do que imaginariamente se pensa
que é a sua “essência”. Mas este sujeito é um sujeito futuro; um sujeito que ainda não é e que só
existe enquanto promessa, enquanto sombra falada, para usar a expressão de Piera Aulagnier.
Este atributo comum ao Ego e ao Ideal, a função de síntese, é o que levava Freud a dizer que
o Ideal era um estágio do Ego, assim como a libido tinha seus estágios de desenvolvimento. Contudo,
a função de síntese do Ideal obedece a regras distintas da síntese Ego-narcísica. As sínteses futuras
do sujeito obrigam o Ego, no melhor dos casos, a reequilibrar seu sistema homeostático pela
incorporação de novos traços. Como exemplo, citemos a observação de Freud a propósito do
“Desaparecimento do Complexo de Édipo”.16 O interesse narcísico do Ego pela integridade da
imagem corpórea é o móvel fundamental da renúncia ao desejo incestuoso. Só a via da ameaça ao
narcisismo faz com que o Ego deixe emergir o sujeito enquanto marcado pela castração. Ainda
assim, esta renúncia ao objeto incestuoso e a submissão à castração não são gratuitas. O preço é um
novo reequilíbrio narcísico. O Ego pós-edípico integra à sua forma imaginária a posse virtual de
todos os objetos sexuais que escapam à interdição do parentesco. A proibição do acesso a alguns é
paga com a permissão do acesso a muitos. A ilusão narcísica exige seu tributo. Não há como fugir
das cavernas e sombras egóicas.
Em suma, o Ideal representa o sujeito enquanto sujeito da falta. O Ego, pelo contrário, passa
de totalidade a totalidade, conforme sua constituição imaginária. O Ideal, na experiência psíquica,
13
Sigmund Freud. Abrégé de psychanalyse. Paris, P.U.F., 1970, p. 76 14
Filos Na linguagem escolástica, aquilo que faz com que uma essência se individualize e esteja presente no mundo.
15 A propósito da complexa relação teórica entre pluralidade de experiências e síntese das representações, através da
postulação da existência de um sujeito, uma mente ou uma consciência capazes de explicar a intencionalidade que preside
estas sínteses ou atos sintéticos, ver, entre outros: Jacques Lacan. Le moi ... , ob. cit.; Gilbert Ryle. El concepto de lo mental. Buenos Aires, Paidós, 1961, e “La phénoménologie contre The Concept of Mind”. In, la philosophie analytique.
Paris, Minuit, 1962, pp., 62-85. Bento Prado Jr. "A imaginação: Fenomenologia e filosofia analítica". In Alguns Ensaios.
São Paulo, Max Limonad, 1985, pp. 56-76. 16
Sigmund Freud. "La disparition du Complexe d'Oedipe", in Ia vie sexue!le, Paris, P.U.F.., 1970, p. 120.
representa o provável; o Ego representa o certo. Isto implica que a representatividade do Ideal dá-se
como síntese antecipada, sujeita a cláusulas de realização.
A primeira destas cláusulas é o adiamento do prazer imediato, típico da satisfação narcísica.
O “prazer ideal”, como diz Bleichman,17
correlato à realização do Ideal, e que é uma das modalidades dos
fortes gozos de Freud só surge como possível se o Ego aceita transformar-se. Esta transformação, por sua
vez, supõe a admissão do outro, do modelo Ideal, como alteridade e diferença desejável. Ora, o desejo de
algo que não se é ou não se tem revela, ipso facto, uma falha no sujeito, falha esta que aparece à revelia
do narcisismo egóico. O Ideal, com sua presença obrigatória no mecanismo psíquico, mostra a divisão do
sujeito e sua dependência do desejo do outro.
A segunda cláusula é a exigência de um trabalho psíquico em que as certezas narcísicas possam
ser postas em dúvida, permitindo a mobilidade dos investimentos em direção de novos objetos psíquicos.
Todo Ideal, portanto,impõe uma coerção ao Ego e provoca uma resistência contrária, que seria
incontornável, caso ele próprio não estivesse magnificado pelo investimento libidinal. Por isso, Freud
achava inevitável atribuir ao Ideal um suporte pulsional capaz de mantê-lo em sua função, e foi buscar no
narcisismo da primeira infância a chave do problema.
Bem sabemos que fazer do Ideal mais um delegado do princípio do prazer seria reduzir o alcance
da experiência analítica. Enquanto expressão do sistema simbólico, o Ideal tem uma dimensão própria,
que ultrapassa a economia libidinal. A linguagem impõe-se ao homem da mesma maneira que a ordem
das necessidades vitais, ou seja, sem consideração pela sexualidade. Porém, na experiência normal, a
vigência de uma linguagem sem arranjos imaginários e, conseqüentemente, sem ganho de prazer, é
inviável. Assim como uma necessidade biológica libidinalmente desinvestida corre o risco de não ser
atendida e gerar distúrbios físicos, também a linguagem, quando não pode ser investida libidinalmente,
produz distúrbios psicopatológicos. Se o Ideal, em sua natureza teórica, pode e deve ser desvinculado de
sua aparência imaginária e de seu coeficiente libidinal manifesto, em sua natureza psíquica, tem que estar
ligado à economia sexual para poder cumprir sua função. A menos que se opte por uma entificação
idealista desta instância e se reintroduza na psicanálise um tipo de perspectiva axiológica que Freud
sempre repudiou. Não por acaso, diante do medo neurótico em reconhecer a raiz pulsional de seus
pensamentos ou sentimentos, ele dizia: “inter urinas et faeces nascimur”.18
No entanto, embora investido libidinalmente, o Ideal em sua ação evoca conseqüências psíquicas
radicalmente estranhas à dinâmica da libido objetal ou da libido narcísica. Investir uma promessa de
prazer, um estado psíquico ou imagens do sujeito futuro pouco têm que ver com a circulação autárquica
da economia narcísica ou com a satisfação imediata da relação com o objeto. De olho neste problema,
Freud não ousou referir-se à energia do Ideal como sendo sexual. Donde a idéia de sexualidade
sublimada. Dadas as características do Ideal, ele insistia em distinguir idealização de sublimação, fazendo
desta última motor e processo das injunções dos Ideais.
De fato, na idealização (como a do líder das massas ou a do fetiche sexual), o objeto gira em torno
da economia do Ego narcísico, a título de traço ou imagem constitutiva do Ego Ideal. Em contrapartida,
na sublimação, este mesmo Ego é neutralizado em seu automatismo totalizante e a libido pode investir
objetos que contradizem os interesses do narcisismo. Freud, entretanto, achava que sexualizar o Ideal
significava dar a esta instância o estatuto de objeto idealizado, que na clínica é sinônimo de perversão ou
alienação. Mas, se a sublimação e o Ideal são a porta de entrada para as “atividades sublimadas”, não há
como entender a adesão do psiquismo à arte ou ciência, para ficarmos no terreno freudiano, sem a
presença da componente libidinal. Como diz Mellor-Picaut, o que distingue um processo de outro é que,
“ao contrário da idealização, que visa a criar um estado aconflitivo, onde a falta estaria ausente, e que
encerra o sujeito no fascínio por um objeto-engodo (laurre) o processo sublimatório deixa subsistir a falta
e assegurar ao sujeito a possibilidade de investi-la como aquilo que permite a mobilidade dos
investimentos e do questionamento”.19
NARCISISMO E CULTURA DA VIOLÊNCIA
O narcisismo é o modo mesmo do funcionamento egóico. Sem a compulsão à síntese ego-
narcísica, duas exigências essenciais à sobrevivência do sujeito estariam comprometidas. A primeira delas
17
Hugo Bleichmar. Angustia y fantasma. Madri, Adorraf, 1986. 18
Ver Sigmund Freud. Malaise ... , ob. cit., p. 58.(“nascemos entre urinas e fezes”) 19
Sophie Mellor-Picaut. "Idéalisation et sublimarion", in N.R.P, nº 27, Paris, Gallimard, 1983, p. 139.
é consciente, pragmática, visível à luz da “psicologia de superfície”. O Ego é uma ficção necessária à
ação e à adaptação ao mundo. Sem ele, o sujeito não poderia ser representado como unidade.
Sentimentos, pensamentos, sensações e experiências de todas as ordens perder-se-iam num caos de
impressões sem história e sem sentido. A paralisia psicossocial do indivíduo seria inevitável.
A segunda exigência é inconsciente e mais relevante para nosso propósito. Decorre do estado
inicial da experiência humana, chamado por Freud de impotência/desamparo (Hilflosigkeit). Esta
impotência jaz no coração da angústia, das ilusões religiosas e de outros processos culturais.20
A síntese
ego-narcísica é o primeiro anteparo imaginário que, na luta contra a angústia derivada da impotência,
assume a forma de um Eu em face de um outro. O Ego é o primeiro “não” dado à onipotência do outro. É a primeira reação imaginária capaz de diferenciar fonte e objeto da angústia. Com o Ego e seus contornos
imaginários, o sujeito separa-se do outro sujeito (representado por outro Ego), assim como separa o
dentro do fora e o antes do agora e do depois. A imagem egóica é a forma psiquicamente eficaz do
aparelho psíquico ordenar o magma contínuo que é o fluxo do existente.
Obviamente, toda imagem representa um objeto. E, para que possa representar qualquer coisa -
e não ser a coisa - a imagem tem que apresentar o objeto através de recortes, perspectivas,
enquadramentos, em suma, categorias ou a prioris, que requerem a precedência de um sistema simbólico
de codificação e decifração das experiências. O imaginário humano é indissociável do simbólico. No
nível do funcionamento egóico, a imagem totalizante representa um “objeto” que não pode ser percebido,
nem pode ser definido. Esta é a especificidade do “objeto-sujeito”. O sujeito não pode ser percebido, pois
não possui qualidades sensíveis, nem pode ser definido, pois, “no momento em que desejamos dizer
quem alguém é, nosso próprio vocabulário nos induz ao equívoco de dizer o que esse alguém é; enleamo-
nos numa descrição de qualidades, que a pessoa necessariamente partilha com outras que lhe são
semelhantes; passamos a descrever um tipo ou “personagem”, na antiga acepção da palavra, e acabamos
perdendo de vista o que ela tem de singular e específico.21
O sujeito, portanto, é essa singularidade
indizível, revelada na ação e no discurso, e que está no fundamento da emergência do início, do novo, do
imprevisível, na “teia das relações humanas”. É aquilo que obrigatoriamente pressupomos quando
dizemos que o homem, pela ação e pelo discurso, é “capaz do inesperado” ou de “realizar o infinitamente
improvável”.22
Por conseguinte, o sujeito não é um objeto que se possa perceber ou representar do mesmo modo
que representamos objetos com conteúdos positivos. Não há como avaliar, através de critérios empíricos,
a adequação da representação à verdadeira natureza do sujeito. A objetividade mundana que ele exibe é a
ação e o discurso, com seu correlato que é o imprevisível. Esta é a única positividade do sujeito.
Positividade que sempre mostra um desejo sem história, já que é um desejo inicial e iniciante. Onde há
início, há sujeito; e onde há sujeito há desejo, mundanamente objetivado por ações e discursos. No mais, é
o Ego narcísico que, de acordo com sua constituição imaginária, tenta historicizar o início imprevisível,
criando representações positivas de quem age e quem fala, como sendo o que sou Eu ou o que é o outro. O Ego dá testemunho do sujeito, mas só pode definir a si próprio ou aos outros egos. Voltando,
entretanto, à impotência e desamparo, é preciso dizer que esta condição do sujeito não é um momento
genético e sim um dado estrutural. Freud localiza-a no início de cada vida individual, mas também em
meio à cultura e à civilização, sob a espécie da Ananké. A Ananké, aliada de Eros na tarefa civilizatória,23
confronta o sujeito com uma tríplice vicissitude, marca do estado de impotência estrutural: “A caducidade
do corpo; a potência esmagadora da natureza; a ameaça proveniente das relações com os outros seres
humanos”. 24
Mais uma vez, para reagir a esta situação de “humilhação narcísica”,25
o Ego entra em cena,
acionando seus mecanismos de autodefesa. Ora, uma das razões dos fenômenos conhecidos como
distúrbios narcísicos encontra-se justamente no modo como os elementos da Ananké/HiIflosigkeit apresentam-se ao Ego e no modo como o Ego reage a esta presença. Isto é verdadeiro, tanto para os casos
classificados na psicopatologia clínica, quanto para os casos da psicopatologia da vida cotidiana.
Incluímos nesta rubrica as personalidades narcísicas ou as representações do indivíduo na cultura
20
Ver Sigmund Freud. lnhibition ... , ob. cit. L´avenir d'une illusion, Paris, P.U.F., 1971. 21
Hannah Arendt. A Condição Humana. São Paulo/Rio de Janeiro, Forense-Salamandra-Edusp, 1981, p. 194. 22
Ibid., p. 191'. 23
Sigmund Freud. Malaise ... , ob. cit., p. 51. 24
Ibid., pp. 21 e 32. 25
Sigmund Freud. L'avenir. .. , ob. cit., p. 23.
narcísica:' Este último termo, criado por Christopher Lasch, foi discutido em seu sentido e implicações,
num trabalho anterior de nossa autoria.26
Hoje, definiríamos cultura do narcisismo como aquela em que o
conjunto de itens materiais e simbólicos maximizam real ou imaginariamente os efeitos da Ananké,
forçando o Ego a ativar paroxisticamente os automatismos de preservação, em face do recrudescimento
da angústia de impotência. Ou.visto de outro ângulo, é a cultura onde a experiência de
impotência/desamparo é levada a um ponto tal, que torna conflitante e extremamente difícil a prática da
solidariedade social. Lasch chamou esta cultura de cultura da sobrevivência, e o Eu que nela subsiste de
“mínimo Eu”,27
denominação bastante apropriada ao fenômeno.
No trabalho já referido, procuramos entender como o sentimento de impotência que tem origem
na caducidade do corpo é manipulado pelo comércio e indústria da “vida saudável” e do “sexo normal”,
em certas faixas de nossa população urbana. Pensamos agora em refletir sobre outras manifestações da
cultura narcísica, tendo como pano de fundo a crise brasileira atual.
Vivemos dias difíceis. O regime que se sucedeu ao autoritarismo não conseguiu capitalizar o
desejo de mudança da nação, imprimindo novos rumos à sociedade. O País continua aos pedaços. A
dívida externa; o fracasso do Plano Cruzado; a inflação; a desordem do déficit público; o emperramento
do aparelho produtivo; os impasses da questão agrária; a degradação da vida urbana e da ecologia como
um todo; a criminalidade assustadora das grandes cidades; o empobrecimento da classe média; o
desemprego dos trabalhadores; o panorama atroz da mendicância e das crianças abandonadas; a
impunidade com que é tratada a corrupção de políticos, altos burocratas e empresários etc. criam uma
atmosfera social sombria. “O que fazer?” torna-se uma pergunta urgente e assustadora.
Neste clima de desorientação e ansiedade, os indivíduos tendem a perder, em maior ou menor
grau, o sentido de responsabilidade e pertinência sociais, por si já precários nas sociedades burguesas,
particularmente naquelas subdesenvolvidas como a nossa. A apatia política, usualmente exigida do
indivíduo nos sistemas capitalistas, nestes momentos se acentua e toma direções inquietantes. Em épocas
de estabilidade, o apoliticismo da sociedade é compensado pela adesão dos indivíduos à ordem existente e
pela crença no poder da autoridade dominante. Nas crises, estes pilares da organização político-social
desmoronam. O homem comum, habituado a delegar à classe dirigente o poder e a iniciativa de decidir o
que é bom para si e para os outros, perde a confiança na justiça. É a crise moral que acompanha a crise
política, econômica e social.
Freud, numa espécie de ensaio de ficção social, procura antever o funcionamento de uma
sociedade onde o declínio da autoridade e a perda da crença na transcendência da justiça descessem a seu
nível mais baixo. Utilizou, então, o tema de um romance inglês, chamado When it was dark28
, pàra
ilustrar seu raciocínio.29
Neste romance, a imortalidade de Cristo era contestada mediante a descoberta de
supostos fatos históricos que contrariavam a versão religiosa da ressurreição. A conseqüência da morte de
Cristo, enquanto Deus, era o completo desmantelamento da vida social, pelo aumento insuportável da
violência. Os indivíduos, sem deus nem lei, agiam exclusivamente pressionados pelo medo ou por
motivos e interesses privados. O estado social, “When it was dark”, era o de “pânico narcísico”.
A observação da sociedade brasileira não nos autoriza, é claro, a transpor esta situação social, da
ficção para a realidade. Ainda não chegamos ao estado de pânico narcísico. Entretanto, se o transe
narcísico do País não chegou ao auge, há indícios sociais que apontam para esta direção. Mesmo porque a
anomia social real, para existir, não precisa assumir necessariamente o colorido dramático de um romance
de tese. Certos padrões de comportamento social no Brasil de hoje são suficientemente estáveis e
recorrentes, para que possamos afirmar a existência de uma forma particular de medo e reação ao pânico,
que é a cultura narcísica da violência. Esta cultura nutre-se e é nutrida pela decadência social e pelo
descrédito da justiça e da lei. Seu efeito mais imediato e mais daninho é a exclusão de representações ou
imagens do Ideal do Ego que, contrapondo-se aos automatismos conservadores do Ego narcísico, possam
oferecer ao sujeito a ilusão estruturante de um futuro passível de ser libidinalmente investido. Na cultura
da violência, o futuro é negado ou representado como ameaça de aniquilamento ou destruição. De tal
forma que a saída apresentada é a fruição imediata do presente; a submissão ao status quo e a
oposição sistemática e metódica a qualquer projeto de mudança que implique cooperação social e
negociação não violenta de interesses particulares.
26
Jurandir Freire Costa. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro, Graal, 1984. 27
Christopher Lasch. O M.ínimo Eu. São Paulo, Brasiliense, 1984. 28
Quando tudo era escuro. 29
Sigmund Freud. Essais de psychanalyse. Paris, Petite Bibliotheque Payot, 1970, p. 118.
Os traços da cultura da violência são diversos e aparecem inscritos em vários planos da vida
sociocultural.
A título de ilustração, descrevamos alguns deles.
O primeiro corresponde aproximadamente ao que Slavoj Zizek analisou como visão cínica do
mundo.30 A razão cínica, conceito que o autor toma emprestado a Peter Sloterdijk, é a que procura
fazer da realidade existente instância normativa da realidade ideal. Em outras palavras, é a razão que
confessa conhecer os fundamentos violentos das aparências ideais do social, mas, mesmo assim,
defende a validade destes fundamentos, a pretexto de que são “verdadeiros”, posto que inevitáveis.
Como exemplo, vejamos a leitura que a razão cínica faz da lei.
O pensamento crítico, voltado para os Ideais, mostra que a abstração da Lei Universal oculta
em cada momento histórico os interesses particulares de grupos ou classes de legisladores concretos.
A letra da lei e suas condições de aplicação mostram que só legisla quem tem força para fazer leis e
impor sanções. E como a força é propriedade de quem domina e controla os instrumentos de
dominação, o fundamento último da lei é a violência. Mas o pensamento crítico, afirmando que a
origem da lei está na violência, não procura inocentá-la ou legitimá-la como algo necessário. Quando
fala do lugar do Ideal, a razão crítica quer, isto sim, mostrar que não existe uma essência da Lei; que
as leis são plurais e frutos de fatos históricos contingentes. Por isso mesmo, colocando-se
hipoteticamente do lado da Lei Ideal, a crítica propõe, no horizonte do possível, a idéia da
perfectibilidade das instituições sociais, através da práxis, da ação ou do discurso.
É verdade, a condição humana torna vão qualquer sonho de definir fora da história quais as
condições ideais para uma comunicação social livre de violência ou interesses. Mas esta mesma
condição também nos impede de predizer aquilo que pode resultar da práxis e da ação humana, e de
dizer que o que é sempre foi e sempre será. A imprevisibilidade dos negócios humanos é
incompatível com a redução determinista do social e não com a experimentação de novas formas de
viver ou com a crítica das formas de vida conhecidas.
A razão cínica, pelo contrário, caminha aparentemente ao lado da razão crítica, mas para
afirmar a primazia da violência, ornando-a de atributos essenciais e universais. Depois de criticar o
“universalismo da Lei Idealista”, o cinismo reifica escancaradamente uma outra abstração, a da
violência universal e necessária! E, o que é mais inescrupuloso, não esconde o particularismo de
interesses, responsável pela reviravolta ideológica. Em nome do realismo, o cínico convida a todos
para que subscrevam a moral da violência, que ele decretou universal e verdadeira.
Naturalmente, esta moral beneficia antes de mais nada seus artífices. É um jogo onde o
vencedor é conhecido de antemão. Os poderosos pensam continuar mandando; os descamisados
sabem que vão continuar obedecendo. O mais importante, no entanto, são as táticas de sedução que
tornam esta moral aceitável. Se o público é intelectual, a tática é a do discurso bem pensante. Para os
porta-vozes eruditos da moral do desespero e da violência, todo pensamento crítico é burguês,
racionalista, idealista, conformista, conservador ou caduco diante da moda. Se a audiência ou
conveniência recomendam, não se hesita em usar despudoradamente Nietzsche, Freud, Foucault, Lacan
etc. a fim de que o sotaque pós-moderno pareça convincente. Sobre esta faceta da cultura da violência, o
que se pode dizer é que sua futilidade salta aos olhos. Não é preciso muito empenho para ver que o
esforço em investir contra a “burguesia”, o “liberalismo” ou a “senilidade intelectual” dos conservadores
é um esforço inócuo. Não é contra a parede que se está batendo a cabeça: é contra portas arrombadas!
Pois esta parcelada elite brasileira choca-se tanto com a “subversão cínica” quanto a burguesia alemã de
Weimar, de quem Hannah Arendt disse que “idiotizada por sua própria hipocrisia”, aprendeu a deleitar-se
com a “expressão da banalidade em que vivia”. 31
Por outro lado, se o público não é “cultivado”, os “argumentos” da moral cínica são outros. São os
fatos que são chamados a prestar depoimento em favor da violência. Pergunta-se, “didaticamente”, onde
estão os assassinos de mulheres, algumas quase crianças, mortas cruelmente por alguns destes
30
Slavoj Zizek. "Sur le pouvoir politique et les mécanismes idéologiques", in ORNICAR, n? 34, Paris, Lyse e Seuil, pp. 41-60. 31
Hannah, Arendt. "As origens do totalitarismo - totalitarismo, o paroxismo do poder". Rio de Janeiro, Documentário,
1979, p. 66. A tradução brasileira do texto, cuja fonte citamos acima, diverge um pouco da versão que demos e que é
citada por Lasch em O Mínimo Eu. Conferir nessa obra, na p. 97.
freqüentadores das alegres noites cariocas? Onde estão os homens públicos que pilham os cofres de um
país miserável, à beira da derrocada econômica? Onde estão os proprietários de terra que dizimam
camponeses, numa escalada de fazer inveja a qualquer westernspaghetti? Onde estão os policiais que
invadem favelas, brutalizam e humilham cidadãos inocentes, em busca de traficantes que vivem e
enriquecem, às custas do consumo de drogas da burguesia e da classe média? Onde estão os sonegadores
de medicamentos e gêneros alimentícios, durante o Plano Cruzado? Onde estão os contrabandistas,
contraventores, marajás e outros monumentos à corrupção, que as elites brasileiras elegeram como brasão
de sua emasculação, rapacidade e inconseqüência histórica? É verdade, para o pequeno-burguês abúlico e
desorientado politicamente, esta lista de “virtudes cívicas” pode não servir de catecismo moral. Mas, pelo
efeito da repetição, não raro passa a ser vista como prova inequívoca do que o cinismo quer demonstrar:
lei é isto; é violência travestida de transcendência. Não há por que empregar meios-termos. O discurso
cínico, refletidamente ou não, avaliza a prática social mais suja, calhorda e ensandecida que se possa
imaginar. Por meio de exemplos ou argumentos, o que se diz ao homem comum é que ele só tem saída se
vier a compactuar com a violência e a escroqueria. O segundo traço da cultura da violência não pertence
ao “mundo dos valores”, como a moral cínica. Embora tendo nesta moral sua caução, é na órbita dos
comportamentos sociais que ele se manifesta. A prática e o elogio irresponsáveis da violência
desmoralizam a idéia da lei e de Ideais sociais. No lugar do Ideal surgem então as miragens Ego-Ideais,
contrapartida previsível da insegurança e ansiedade Ego-narcísicas. Os indivíduos acuados pela lei do cão
servem-se das armas que têm ou das que lhes são oferecidas, para se defenderem. Já que nos dizem,
provam e repetem incansavelmente que somos todos jurídica, moral e fisicamente supérfluos, pois bem,
em “Roma com os romanos”! Sejamos todos “fora-da-lei”! A cultura da violência rapidamente degenera
em cultura da delinqüência. O desaparecimento da figura do Ideal coletivo dá lugar ao surgimento da
figura do fora-da-lei, como imagem Ego-Ideal. O delinqüente é a forma que o homem supérfluo encontra
de sobreviver socialmente na cultura da violência.
Como toda imagem narcísica, não sustentada pela dinâmica dos Ideais do Ego, o Ego-Ideal
delinqüente regese pela aspiração totalizante e imediatista da completude. Diante de uma realidade social
que se mostra sob a aparência de uma potência natural esmagadora, o Ego-delinqüente vive
alternadamente como absolutamente impotente ou onipotente. Quando impotente, o comportamento
delinqüente incorpora o modelo da subserviência voluntária! O perfil típico desta conduta é o do
burocrata cegamente obediente a qualquer ordem e a qualquer autoridade. Sua lei é a da “obediência
devida”; sua postura é a da hibernação social, onde procura manter o metabolismo de cidadão reduzido ao
mínimo. Incapaz de opor-se ou de falar e agir em causa própria, com vistas à defesa de seus interesses e
de seus pares, o subserviente só consegue sobreviver, renunciando a qualquer desejo que possa nomear.
Suas armas são a bajulação, a maledicência e a pequena intriga. Autoridade e autoritarismo, para ele, são
termos indiscerníveis, porquanto fontes exclusivas de temor. Do mesmo modo, é incapaz de distinguir
entre hierarquia e obediência consentida com vista à realização de objetivos comuns, de poder escorado
em violência.
No pólo oposto ao burocrata servil, encontra-se a arrogância onipotente, para a qual a
“desobediência à lei” é lei. Aqui o Ego edemacia-se. Desde o marginal que não hesita em tirar a vida de
quem lhe nega a carteira ou um simples par de tênis, até o “cidadão” que não respeita as convenções do
trânsito - porque pouco lhe importa atropelar alguém ou abalroar o carro de quem quer voluntariamente
obedecer a uma lei que beneficia a si e aos outros -, o que se observa na delinqüência arrogante é o
absoluto desprezo pelo estatuto de pessoa que tem seu semelhante. Ninguém ou nada que ponha limites à
demência onipotente da imagem Ego-Ideal do delinqüente é respeitado. Engravatado ou de pés descalços,
o delinqüente arrogante irrealiza o mundo, considerando-se acima da lei e desafiando, de maneira
grotesca, todos que não queiram converter-se em apêndice d.e sua onipotência. A imagem de marca deste
tipo social é a caricatura do que Freud chamou “deus protético”.32
Como o “deus protético”, que procura
inutilmente driblar a Ananké, multiplicando os artefatos à sua volta, o delinqüente procura evitar a
dependência inevitável dos outros, recusando-lhes o papel de fonte de desejo, prazer e dor, no jogo do
convívio humano.
No fundo, este tipo de fora-da-lei é movido pelos mesmos temores de seu sósia servil. Ambos
vivem num universo de descompromisso social que lhes parece fantasmagoricamente como sem saída.
Como os personagens do Quinteto de Robert Altman, eles sentem-se premidos pela iminência da morte
moral e social. E, como estes mesmos personagens, também procuram dominar magicamente o medo da
morte, ora fingindo que já estão mortos o burocrata servil -, ora fingindo que podem controlar a morte
32
Sigmund Freud. Maiaise ... , ob. cit., p. 39.
porque são capazes de matar os outros - o delinqüente arrogante.
A cultura da violência mostra como a falência dos Ideais, acenando com o “pânico narcísico”,
desequilibra a economia egóica e compromete seriamente o bem-estar do sujeito e de sua sociedade. É
necessário repetir esta evidência, pois vivemos numa era em que cada apelo à responsabilidade social é
ridicularizado como fábula moralizante ou pregação para órfão em noite de Natal. Não se instiga
impunemente o temor humano da impotência radical. Conduzido a este extremo, o homem está inch of
nature,33
segundo a metáfora freudiana; pode criar o impensável e o inimaginável. O horror nazista hoje
parece ficção, mas um dia foi fato. Quanto aos que acham que a psicanálise nada tem que ver com isto,
deixemos a última palavra a Freud: “Quando aquele que caminha na obscuridade canta, nega sua
ansiedade, mas nem por isso passa a ver mais claro”.34
33
Ibid. 34
Sigmund Freud. InhibÜion ... , ob. cit., p. 12.