Narrativa - Richard Kearney

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    409Educ. Real., Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 409-438, maio/ago. 2012.

    Disponvel em:

    NarrativaRichard Kearney

    RESUMO Narrativa1. As histrias, como vias de compreenso da condio humana,

    tm preocupado a Filosofia desde Aristteles. O artigo, baseado em uma viso afirmativada narratividade (Ricoeur, Rorty e MacIntyre), elabora a ideia de que a resistncia nar-ratividade em nome de modelos redutores de cientificismo dever ceder compreensode que a verdade histrica tanto propriedade do chamado conhecimento objetivo, comodo conhecimento narrativo. Num dilogo crtico entre a potica aristotlica e leiturashermenuticas contemporneas, discute as relaes entre verdade narrativa e memria;fico e histria; catarse e testemunho; identidade narrativa e responsabilidade moral.Considerando as possibilidades de narrativa interativa e no-linear da era digital, anarrativa considerada um convite responsividade tica e potica.

    Palavras-chave: Narrativa. Histria. Fico. Potica. Fenomenologia.

    ABSTRACT Narrative. Stories offer us some of the richest and most enduring in-sights into the human condition and have preoccupied philosophy since Aristotle. Thisarticle, based on the affirmative view of narrativity advanced by theorists like Ricoeur,

    Rorty and MacIntyre, argues that historical truth is as much the property of narrativeknowledge as it is of so-called objective knowledge. It proposes a critical dialoguebetween Aristotelian poetics and contemporary hermeneutic readings, discussing therelations between narrative and memory, fiction and history, catharsis and testimony,narrative identity and moral responsibility. Considering the new possibilities of inter-active and non-linear narration in the digital era, narrative is seen as an open-endedinvitation to ethical and poetic responsiveness.

    Keywords: Narrative. History. Fiction. Poetics. Phenomenology.

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    H trs coisas importantes em relao s histrias: se contadas, elas gostamde ser ouvidas; se ouvidas, elas gostam de ser acolhidas; e, se acolhidas, elasgostam de ser contadas (Ciaran Carson).

    Muito se tem falado, enquanto avanamos terceiro milnio adentro, quechegamos ao final da histria. No me refiro apenas s usuais fantasias milena-ristas de apocalipse e anarquia, mas a um sentimento geral de afrouxamento eausncia de sentido. As velhas narrativas mestras a da redeno judaico-crist,a da libertao revolucionria ou a do progresso iluminista para muitos noinspiram mais a imaginao e a crena ocidentais. E nesse clima que ouvimosas conversas sobre o fim da histria (Francis Fukuyama), coincidindo com

    pronunciamentos sobre o fim da ideologia (Daniel Bell) e o fim da narrativa

    (Jean Baudrillard; ou, de uma perspectiva positivista, Carl Hempel).Em contraste, quando algum como Walter Benjamin falava em umaameaa radical ao poder da narratividade em nossa era da informao cadavez mais intensa, ele no queria, penso eu, referir-se ao fim da narrao dehistrias propriamente dita. Ele apenas assinalava a derrocada iminente decertas formas de recordao que pressupunham tradies ancestrais de expe-rincia herdada, transmitidas fluentemente de uma gerao para a seguinte.Isso de fato acabou. Dificilmente poderemos negar que a noo de experinciacontnua, associada narrativa linear tradicional, tenha sido fundamentalmentedesafiada pelas atuais tecnologias do computador e da internet. Nem podemosignorar a evidncia de uma sociedade onde a telecomunicao e os fluxos dedados digitais hiperavanados tenham comeado a substituir os antigos modosde expresso mnemnicos, epistolares e impressos. As noes que herdamosde um espao e de um tempo enraizados esto sendo profundamente sacudidas

    pela velocidade emergente da megalpole e por um imediatismo sempre emexpanso fazendo surgir aquilo que muitos veem como um mundo cada vezmais desterritorializado2.

    Nada disso pode ser negado. Mas podemos, acredito, questionar o vereditode alguns de que tenhamos chegado, por conta disso tudo, ao fim da linha dashistrias. A narrativa no vai acabar, pois sempre haver algum para dizerconta-me uma histria, e algum que responder era uma vez... claro que asvelhas histrias esto dando lugar a novas, com mltiplos enredos, mltiplasvozes e em contextos multimiditicos. E essas novas histrias frequentementeso, como sabemos, truncadas ou pardicas, a ponto de serem muitas vezeschamadas de micronarrativas ou de ps-narrativas. Algumas so at mesmo

    contadas de trs para a frente, como A Flecha do Tempo (Times Arrow), deMartin Amis; ou recontadas em diversas linhas narrativas simultneas, comoo filme digital Timecode, de Mike Figgis, onde quatro tomadas simultneasem longa-metragem ocupam a tela do incio ao fim, permitindo que mltiplasnarrativas se intercruzem e sobreponham. Mas tais experimentos narrativosinovadores esto aindaligados narrativa familiar ampliada, assim como fi-lhos prdigos ligam-se aos antepassados (mythos-mimesis) com quem mantmalgumas linhas de comunicao abertas, ainda que tnues.

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    Assim, quando um grupo de nouveaux-romanciers comeou a declararnos anos 1960 e 1970 que a narrativa [story], como tal, devia ser superada,

    penso que eles se referiam a uma noo muito especfica do velho romancerealista clssico. Basta lermos sua moratria sobre a narrativa para vermosquo restrita era a viso de narrativa que eles atacavam:

    Todos os elementos tcnicos da narrativa... a adoo incondicional dodesenvolvimento cronolgico, enredos lineares, um diagrama regular deemoes... tudo isso buscando impor a imagem de um universo estvel,coerente, contnuo, unvoco e inteiramente decifrvel (Robbe-Grillet apudNash, p. 203, 1990)3.

    Combinado. Mas no precisvamos daqueles letrados parisienses para ficarsabendo disso. O dublinense James Joyce j nos dissera a mesma coisa dcadasantes, quando revolucionou todo o processo de contar histrias com seus novose ousados experimentos em narrao ficcional. O simples fato de que as formasnarrativas sofram mutaes de uma poca para a outra no significa que elasdesapaream. Elas apenas mudam de nome e endereo. De fato, poderamosat mesmo dizer que a urgncia de certos obituaristas literrios em declarar ofim da narrativa , ironicamente, um sinal contnuo da necessidadede algumfechamento narrativo (aquilo que Frank Kermode chama de o sentido de umfinal). Ento, quando algum como Alain Robbe-Grillet afirma que [...] osromances com personagens pertencem decididamente ao passado, mais

    provvel que os seus romances que acabem pertencendo ao passado. Damesma forma, quando Roland Barthes anuncia que na narrativa ningum fala,

    ele prprio nega sua afirmao em uma tpica contradio performtica aoinventar uma narrativa sobre o fim da narrativa assinando seu prprio nomeautoral, ou seja, o de um narrador, nessa histria.

    No estou querendo ser jocoso, apenas lanar a aposta de que a narrao dehistrias sobreviver s suspeitas lanadas sobre ela tanto por anti-humanistasapocalpticos como por positivistas como Carl Hempel ou pelos estruturalistasda escola dos annales, que acreditavam que as cincias histricas deveriam selivrar de todas as funes narrativas em deferncia s normas e aos cdigosobjetivos. A persistente resistncia narratividade em nome de modelos re-dutores de cientificismo ir, estou convencido, logo ceder compreenso deque a verdade histrica tanto propriedade do conhecimento narrativocomodo chamado conhecimento objetivo. H mais, na cincia da histria, do que

    jamais sonharam os mtodos emprico-mtricos e baseados na lgica estrutural.Em termos de controvrsias recentes, eu pessoalmente endosso a visoafirmativa da narratividade desenvolvida por tericos como Ricoeur, Taylor,Rorty, MacIntyre ou Nussbaum. Ou mesmo por autores mais populares comoChristopher Vogler, autor de The Writers Journey [A Jornada do Escritor],que argumenta que o advento da cibercultura deveria ser visto no como umaameaa narrao de histrias, mas como um catalisador de novas possibili-

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    dades de narrativa interativa e no-linear. O fato que no importa o quantoas tecnologias transformem nossos modos de contar histrias, as pessoas irosempre apreciar entrar no transe da narrativa e deixar-se conduzir atravs deum conto por um mestre tecelo de histrias 4.

    Assim, eu gostaria de afirmar aqui a irreprimvel arte das histrias. Propo-nho faz-lo sob quatro subttulos esquemticos, cada um derivado da mais antigatentativa da filosofia ocidental de formular um modelo para a narrativa, ou seja,a potica aristotlica. Os quatro subttulos so os seguintes: enredo (mythos),re-criao (mimesis), alvio (catharsis), sabedoria (phronesis) e tica (ethos).Vou tomar cada um buscando recuperar e repensar essas funes duradourasda narrao de histrias luz de leituras hermenuticas contemporneas. Aofaz-lo, procurarei colocar a teoria mais antiga em dilogo crtico com seus

    correspondentes na linha de frente contempornea.

    Um: Enredo (Mythos)

    Toda existncia humana uma vida em busca de uma narrativa. Isto, noapenas porque ela se empenha em descobrir um padro com o qual lidar coma experincia do caos e da confuso, mas, tambm, porque cada vida huma-na quase sempre implicitamente uma histria. Nossa prpria finitude nosconstitui enquanto seres que, em resumo, nascem no comeo e morrem nofinal. E isso d a nossas vidas uma estrutura temporal que busca algum tipode significao em termos de referncias ao passado (memria) e ao futuro

    (projeo). Assim, poderamos dizer que nossas vidas esto constantementeinterpretando a si prprias pr-reflexivamente e pr-conscientemente emtermos de comeos, meios, e fins (ainda que no necessariamente nessa ordem).Em sntese, nossa existncia j segue de algum modo um enredo prvio, antesmesmo que conscientemente busquemos uma narrativa na qual reinscrevernossa vida como histria de vida.

    Aristteles foi um dos primeiros filsofos a identificar esse padro pr-narrativo, ao ponto de perceber que a existncia humana uma existnciade ao, e que a ao sempre conduzida tendo em vista alguma finalidade

    ainda que esse final seja o seu prprio. Em outras palavras, como agenteshumanos estamos sempre prefigurando o nosso mundo em termos de uma vidainterativa com os outros. O trabalho do mythos, tal como definido naPotica,fornece uma gramtica especfica a essa vida de ao, ao transp-la para 1)

    um contar; 2) uma fbula ou fantasia; e 3) uma estrutura construda. Todos ostrs sentidos do mythostrazem a funo comum da narrativa enquantopoiesis:ou seja, um modo defazerde nossas vidas histrias de vida. Este processo jest em ao em nossa existncia cotidiana, mas apenas se explicita quandotransposto para os gneros poticos da tragdia, da pica ou da comdia (ostrs gneros reconhecidos por Aristteles).

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    Santo Agostinho internalizava esta estrutura narrativa como sendo umarelao entre a disperso e a integrao, ocorrida no interior da prpria alma.Ele chamava a primeira de distensio animi, atribuindo-a a nossa naturezadecada evidenciada no espalhar-se do eupor sobre o passado, o presente e ofuturo. A segunda funo, integradora, ele atribua ao movimento contrrio da

    psique em direo identidade ao longo do tempo (intentio animi). O dramaresultante entre essas duas tendncias resulta em uma tenso entre discordnciae concordncia que torna cada vida um enredo temporal em busca de um autorfinal que, para Santo Agostinho, era Deus.

    Retomando essa descrio protoexistencial do enredamento e da tempo-ralidade humana, os fenomenlogos do sculo XX encontraram diferentesmodos de reformular esse drama narrativo. Husserl chamava-o de conscincia

    temporal de reteno e protenso; Heidegger, o ciclo temporal de repetio(Wiederholung) e projeto (Entwurf), luz de nossoser para um fim ou seja,nossoser-para-a-morte; Gadamer o chamava de a antecipao da completude,que organiza minha existncia como um todo; e, Ricoeur, a sntese do hete-rogneoprefigurativa. Nossa fenomenologia contempornea reconhece que anarratividade o que marca, organiza e esclarece a experincia temporal; eque todo processo histrico reconhecido como tal na medida em que pode serrecontado. Uma histria feita de eventos, e o enredo (mythos) a mediaoentre os eventos e a histria5.

    Mas a questo que mais precisamos ter em mente que, desde a descobertagrega da vida humana (bios) como ao significativamente interpretada (praxis)at as mais recentes descries da existncia enquanto temporalidade narrativa,

    existe um perptuo reconhecimento de que a existncia seja inerentementenarrativa. A vida est prenhe de histrias. Ela um enredo nascente em buscade uma parteira. Porque dentro de cada ser humano existem inmeras pequenasnarrativas tentando escapulir. A vida humana possui uma forma determina-da [...], como explica Alasdair MacIntyre, [...] a forma de um certo tipo dehistria. No apenas porque os poemas e as sagas narram o que acontece aoshomens e s mulheres, mas tambm porque em sua forma narrativa os poemase as sagas capturam uma forma que j estava presente nas vidas que relatam(MacIntyre, 1981, p. 117)6.

    por isso que a ao de toda pessoa pode ser lida como parte de umahistria em desdobramento, e que cada histria-de-vida clama por ser imitada,ou seja, transformada na histria de uma vida.

    Dois: Re-Criao (Mimesis)

    A mimesispode ser vista como uma redescrio imaginativa que capturaaquilo que Aristteles chamava de a essncia(eidos)de nossas vidas. A mimesisno significa um escapismo idealista ou um realismo servil. Ela uma trilhaem direo revelao dos universaisinerentes existncia que compem a

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    verdade humana (Potica, 1451)7. Longe de ser uma cpia passiva da realidade,a mimesisreencena o mundo real da ao ao ampliar seus traos essenciais(1448a). Ela refaz o mundo, por assim dizer, luz de suas verdades potenciais.

    A coisa mais importante em nossas descries da temporalidade domythos um latente entretecer do passado, do presente e do futuro (ainda queno necessariamente nessa ordem). O que distingue a ao humana do meromovimento fsico, descobrimos, que ela sempre uma synthesisdinmica,de sedimentao residual e com objetivos orientados para o futuro. Cada aovolta-se a um resultado que informa e motiva o impulso para agir do agente. isso o que Dilthey e os pensadores hermenuticos tinham em mente quandodiziam que a vida interpreta a si prpria(das Leben legt sich selber aus). E

    por conta dessa diretividade, consciente ou inconsciente, que nossas vidas po-

    dem ser descritas como um fluxo de eventos combinados para formar uma aoque ao mesmo tempo cumulativae orientada duas caractersticas cruciaisde qualquer narrativa8. Mas, enquanto a existncia pode assim ser consideradacomo pr-narrativa, ela no ser plenamente narrativa at sua recriao emtermos de um recontar verbal formal. Ou seja, at que o pr-enredo tcito denossa existncia temporalizante-sintetizante seja colocado estruturalmenteem um enredo. At que o mythosimplcito torne-sepoiesisexplcita. O duplomovimento da narrativa propriamente dita envolve um segundo padro denossa experincia j padronizada (simbolicamente mediada).

    Provavelmente a isso que Aristteles se referia quando dizia que anarrao potica a imitao de uma ao(mimesis praxeos). E penso que

    poderamos tambm fazer uma leitura liberal de sua afirmao de que a intui-

    o potica surge em um ponto da narrativa em que o protagonista reconhecenovamente (anagnorisis) a direo inerente de sua existncia chame-a dedestino, fado, sorte, ou de a divindade que d forma a nossos fins (Hamlet).Mimesis invenono sentido original do termo: inveniresignifica tanto des-cobrir comocriar, ou seja, revelar aquilo que j estava ali luz do que aindano (mas potencialmente). o poder, em resumo, de recriar mundos atuaisna forma de mundos possveis.

    Este poder de recriao mimtica mantm uma conexo entre fico evida, ao mesmo tempo em que reconhece a diferena entre elas. A vida podeser adequadamente compreendida apenas ao ser recontada mimeticamenteatravs das histrias. Mas o ato de mimesisque nos permite passar da vida paraa histria-de-vida introduz uma lacuna (ainda que mnima) entre a vida e seurecontar. A vida vivida, como nos relembra Ricoeur, enquanto as histriasso contadas. E, em certo sentido, a vida no contada talvez seja menos ricado que uma vida contada9. Por qu? Porque a vida recontada abre perspectivasinacessveis percepo ordinria. Ela marca uma extrapolao potica dosmundos possveis que suplementam e remodelam nossas relaes referenciaiscom o mundo-da-vida existente antes do recontar. Nossa exposio s novas

    possibilidades de ser reconfigura nosso estar-no-mundo cotidiano. De modoque quando retornamos do mundo narrado para o mundo real, nossa sensibi-

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    lidade enriquecida e amplificada em importantes aspectos. Nesse sentido,podemos dizer que a mimesisenvolve tanto o livre jogo da fico comoumaresponsabilidade em relao vida real. Ela no nos obriga a escolher, comodiria Yeats, entre a perfeio da vida e a da obra.

    Isso me traz, por fim, ao que Ricoeur chama de o crculo da tripla mimesis:1) apre-figuraode nosso mundo vivido, medida que este busca ser narra-do; 2) a configuraodo texto no ato da narrao; e 3) a refigurao de nossaexistncia, quando retornamos do texto narrativo para a ao. Esta orientaodo texto narrativo de volta vida do autor e adiante em direo vida do leitorquestiona a mxima estruturalista segundo a qual o texto no se refere a nadaalm de si mesmo. O que no significa negar que a vida seja linguisticamentemediada; equivale apenas a dizer que tal mediao aponta sempre para alm de

    si prpria e no se reduz a um jogo de significantes autorreferentes (aquilo queJameson chamou de a priso da linguagem). por essa razo que insistimosem que o ato de mimesisenvolve um movimento circular da ao ao texto e devolta ao passando da experincia pr-figurada para o recontar narrativoe de volta a um mundo da vida refigurado10. Em suma, a vida est sempre acaminhoda narrativa, mas no chega l at que algum escute e conte essavida como uma histria. por isso que a prefigurao latente da existnciacotidiana reivindica uma configurao mais formal (mythos-mimesis) por meiode textos narrativos.

    luz das reflexes acima, prefiro traduzir mimesis, juntamente comRicoeur e MacIntyre, como uma forma criativa de recontar, evitando assimas conotaes de representao servil erradamente associadas ao tradicional

    termo imitao. A chave da mimesisreside em um certo espao vazio demar-cando a fronteira entre o mundo narrado e o mundo vivido, aberto pelo fatode que toda narrativa contada de um determinado ponto de vista e seguindoum determinado estilo e gnero. Isso fica especialmente evidente no caso dafico, onde a narrativa toma a forma de pico, drama, romance, novela, ou,mais recentemente, de formas eletrnicas ou digitais como o filme, o vdeo eos hipertextos interativos11.

    Em todas essas formas, a lacuna separando a vida real da simulao deverossimilhana relativamente inconfundvel. Alguns, claro, defendem queexista uma conexo causaldireta entre a violncia miditica e a escalada daviolncia nas ruas, mas acredito que a maioria das pessoas reconheam quandoesto passando do real ao imaginrio e vice-versa sem a necessidade de fr-mulas como era uma vezpara sinalizar a transio. Tais coisas ficam implcitas.As regras da licena potica so em geral entendidas pelas pessoas sentadasna sala escura de um cinema ou teatro, abrindo as pginas de um romance ououvindo algum em uma mesa de bar comear a contar uma histria dizendoEu no sou de contar mentira...(coisa que na Irlanda significa justamente ooposto). A ideia central, como disse um juiz no tribunal de Nova York que

    julgou o Ulysses, de Joyce, que ningum foi jamais estuprado por um livro.Sugerir o contrrio seria no apenas subestimar a inteligncia das pessoas

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    comuns, como tambm insultar grosseiramente aqueles que experimentam aviolncia realno mundo real. As pessoas simplesmente sabem, e tem sabidodesde que o primeiro homem das cavernas no paleoltico disse Vou te contaruma histria..., que existe uma diferena entre vida vivida e vida recontada.E a primeira civilizao que erodir essa diferena, ou nossa conscincia dela,estar em srios apuros.A questo da mimesistorna-se bem mais controverti-da, por certo, no caso das narrativas histricas.Mas, tambm a o hiato entreo relato histrico do passado (historia rerum gestarum) e o passado histricoem si (res gestae) tem sido quase sempre reconhecido. Ainda que o passado

    possa apenas ser reconstrudo pela imaginao narrativa, a distncia entrerealidade e representao aqui de uma natureza qualitativamente diferentedaquela que opera na fico. Na narrativa histrica, no usufrumos da mesma

    licena potica oususpenso voluntria de descrena(como diria Coleridge)que opera na fico. As narrativas histricas no conseguiriam funcionar comoHistria12se no envolvessem algumas reivindicaes bsicas veracidade.No mnimo, h uma pretenso a que o passado esteja sendo contado como defato foi; se os historiadores devem ser levados a srio, seus relatos devem serverossmeis. Em outras palavras, as narrativas histricas, ao contrrio dasficcionais, afirmam que seus relatos se referem a coisas que efetivamenteaconteceram independentemente do quo variveis e discutveis possam seras interpretaes do que aconteceu. A referncia pode ser mltipla, dividida outruncada, mas ainda assim mantm uma crena nos eventos reais (genomena)recontados pelo historiador. Por isso to importante, por exemplo, reconheceruma diferena em nossas atitudes quando lemos o relato histrico de Michelet

    sobre Napeoleo e o relato ficcional em Guerra e Pazde Tolsti (apesar deambos envolverem uma certa mistura de Histria e Fico, o primeiro o fazcomo uma histria imaginativae o segundo o faz enquanto romance histri-co). Ou, para citar um exemplo mais grfico, vital percebermos a distinoentre a reportagem jornalstica sobre a menina vietcong coberta em napalm eo conto da pequena sereia coberta de escamas. Uma vez que uma histria sejacontada como Histria, ela assume uma relao com o passado muito diferenteda assumida pela Fico.

    A Histria e a Fico, em suma, referem-se ambas ao humana, mascada uma o faz com base em reivindicaes referenciais distintas. Onde a Fic-o desvela mundos possveis de ao, a Histria,grosso modo, busca seguiros critrios de evidncia comuns ao corpo geral da cincia. Ricoeur descreveassim as diferentes reivindicaes verdade envolvidas na Histria e na Fico:

    No sentido convencional associado ao termo verdade pela familiaridade como contexto da cincia, apenas o conhecimento histrico poderia reivindicar sua relao referencial um estatuto de verdade. Mas o prprio significadodessa reivindicao ao estatuto de verdade ele prprio medido pelos limitesda rede que rege as descries convencionais do mundo. por isto que asnarrativas ficcionais podem afirmar uma relao referencial de outro tipo,

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    apropriado referncia cindida do discurso potico. Esta pretenso referen-cial no mais que a pretenso de redescrever a realidade de acordo com asestruturas simblicas da fico (Ricoeur, 1983, p. 11)13.

    Isto no significa, claro, negar que, uma vez que a Histria seja narra-da, ela j assuma certas tcnicas de contare recontarque fazem dela maisdo que uma reportagem de fatos empricos. Mesmo a presuno de que o

    passado possa ser contado tal como verdadeiramente aconteceu ainda con-tm a lacuna da figura de linguagem tal como. A narrativa histrica nunca literal (com o perdo dos positivistas e fundamentalistas). Ela sempre, pelomenos em parte, figurativa, na medida em que envolve um narrar a partir dedeterminada seleo, sequncia, colocao em enredo e perspectiva. Mas ela

    tenta ser verdadeira [truthful]. Se assim no fosse, no haveria um modo decontradizermos as distores histricas dos negacionistas e propagandistas doHolocausto. Seramos incapazes de respeitar nossos dbitos com a memria,e em particular com as vtimas esquecidas da Histria. A narrativa histrica

    busca abordar os silncios da Histria dando voz aos que foram silenciados. Osignificado da existncia humana, como Ricoeur muito bem observa, no apenas o poder de mudar ou dominar o mundo, mas tambm a habilidade deser relembrado e recuperado no discurso narrativo (Ricoeur, 1997, p. 218)14.Mas esta controversa questo da verdade narrativa e da memria algo quevamos revisitar adiante, na seo 4, sobre asabedoria narrativa(phronesis).

    O papel mimtico da narrativa, para concluir nossa presente discusso, nun-ca est inteiramente ausente do recontar histrico, mesmo estando plenamente

    presente no recontar ficcional. Esta a razo pela qual estou argumentandoque nunca chegaremos ao final da histria. Nunca deveremos chegar a um

    ponto, mesmo nas mais ps de nossas culturas ps-modernas, onde poder-amos de forma crvel declarar uma moratria sobre a narrao de histrias.Mesmo as pardias ps-modernas da imaginao narrativa, tais como Se umviajante numa noite de inverno, de Calvino, ouImagination Dead Imagine, deBeckett, pressupem o ato narrativo que esto parodiando. Pense nos ttulos.Tais pardias subvertem velhos modos de contar, substituindo-os por modosalternativos. A serpente do contar histrias pode engolir seu prprio rabo, masno se extingue totalmente.

    Trs: Liberao (Catharsis)

    Quero agora examinar a proposio de que as histrias possuem um podercatrtico especfico. Refiro-me, primeiro, ideia de que as histrias nos alteram,ao nos transportar para outros tempos e lugares, onde podemos experimentaras coisas de outro modo. Este o poder desentir o que sentem os miserveis,nas palavras de Rei Lear. O poder de saber como estar no lugar, na cabea,na pele de outra pessoa. O poder, em sntese, da imaginao vicria.

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    Aristteles definia a catarse como sendo umapurgao pela piedade e peloterror. Vamos comear pelo terror, pelo medo (phobos). Aristteles acreditavaque as histrias dramatizadas podiam nos oferecer a liberdade de vislumbrartodo tipo de evento desagradvel e inacreditvel que, por ser narrado, perderia

    parte de seu poder danoso. Objetos que nos causam dor quando os vemos em simesmos, ele diz,podem causar deleite contemplao quando reproduzidoscom minuciosa fidelidade; tal como as formas das feras mais ignbeis e asde animais mortos(Potica, 1448b). Podemos, ele sugere, experimentar umcerto alvio catrtico diante dos trgicos sofrimentos da existncia em nosso

    papel de espectadores (antecipando a noo kantiana de desinteresse). Porqu? Porque o prprio estratagema e o artifcio da mimesisnos separam daao que se desenrola diante de ns, permitindo-nos suficiente distncia para

    apreender o sentido geral. Esse distanciamento ou aspecto temerosoda catarsevem da distncia aberta entre o literal e o figurativo pela arte da ao imitada.Ele provoca um certo espanto(phobos) diante das obras do destino. isso oque experimentamos em dipo Rei quando ficamos sabendo do verdadeirosentido do enigma da esfinge, ou emHamletquando percebemos a descobertado Prncipe de que uma divindade modela nossos finais. isto que StephenDaedalus chama em seu famoso relato da catarse aristotlica emRetrato doArtista quando Jovemo conhecimento da causa secreta das coisas. O espantocatrtico nos toma de assalto, nos desequilibra, nos tira o cho de baixo dos

    ps. Os gregos identificavam isso com o desapego dos deuses do Olimpo, noscapacitando a ver atravs das coisas, por mais perturbadoras ou terrveis, emdireo a seu sentido interior ou final.

    Mas isso s metade da histria. Ao mesmo tempo em que preciso dis-tncia, preciso tambm que estejamos suficientemente envolvidos na aopara que ela tenha importncia para ns. A catarse, como foi notado, nos purgapelapiedadeassim como pelo medo. Por piedade (eleos) os gregos entendiam ahabilidade de sofrer com os outros (sym-pathein). A ao narrada de um drama,

    por exemplo, nos solicita um tipo de simpatia mais extensivo e ressonante doque aquele que experimentamos na vida cotidiana. E o faz no somente porquegoza da licena potica de suspender nossos ref lexos normais de proteo (quenos guardam da dor), mas tambm porque amplifica o leque daqueles por quem

    poderamos sentir empatia para alm da famlia, dos amigos e familiares,abrangendo estrangeiros de todo tipo. Se lemos dipo Rei, experimentamoso que significa ser um grego que mata seu pai e casa com sua me. Se lemosAna Karenina, experimentamos o destino trgico de uma mulher apaixonadana Rssia do sculo XIX. Se lemos O Vermelho e o Negro, revivemos a vidade um jovem errtico e voluntarioso na Frana napolenica. E se lemos O Ja-guar, de Ted Hughes, podemos at mesmo nos colocar na pele de um animalno-racional. O que impossvel na realidade torna-se possvel na fico.

    Esse poder de empatia com seres vivos que no ns mesmos quanto maisestranhos, melhor um teste supremo no s de nossa imaginao potica,mas tambm de nossa sensibilidade tica. E nesse sentido que podemos chegar

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    a dizer que os genocdios e as atrocidades pressupem um fracasso radical daimaginao narrativa. Jonathan Swift acreditava nisso, por exemplo, quandoescreveu Uma Proposta Modesta, buscando assegurar uma compreenso do

    perodo da Grande Fome irlandesa a seus leitores ingleses. E um dos perso-nagens de J. M. Coetzee, Elizabeth Costello, aplica argumentos semelhantesao Holocausto:

    O horror particular dos campos, o horror que nos convence de que o queaconteceu ali foi um crime contra a humanidade, no o fato de que, apesarde terem uma humanidade compartilhada com suas vtimas, os assassinos astratassem como vermes. Isso muito abstrato. O horror que os assassinosrecusavam-se a pensar em si prprios como se pudessem estar no lugar dasvtimas. Eles diziam: so elesque a vo passando nessas carroas barulhen-tas. Eles no diziam Como seria se fosse eu que estivesse numa carroadessas? Eles diziam: Devem ser os mortos que esto sendo queimados hoje,empesteando o ar e caindo em cinzas nos meus repolhos. Eles no diziam:Eu estou sendo queimado, eu estou caindo em cinzas (Coetzee, 1999, p. 34).

    Em outras palavras, conclui Elizabeth Costello,

    [...] eles fecharam seus coraes. O corao o lugar de uma faculdade, asimpatia, que nos permite s vezes compartilhar o ser de um outro... H pes-soas que tm a capacidade de imaginar-se como outra pessoa, h pessoas queno tm essa capacidade, e h pessoas que tm a capacidade mas escolhemno exercit-la... no h limite para a extenso qual podemos nos colocarem pensamento no interior de outro ser. No h limites para a imaginao

    simptica (Coetzee, 1999, p. 35)15.

    Se possumos compaixo narrativa nos deixando ver o mundo do pontode vista do outro somos incapazes de matar. Se no a possumos, somosincapazes de amar.

    Podemos dizer, assim, que a catarse permite uma singular combinaode medo e piedade pela qual experimentamos o sofrimento de outros serestal comose os fssemos. E precisamente este jogo de diferena e identida-de experimentar a si prprio como outro e o outro como a si prprio que

    provoca uma reverso de nossa atitude natural diante das coisas e nos abrenovas maneiras de ver e ser.

    Um exemplo especialmente comovente de narrador catrtico HelenBamber, e uma razo fundamental para isso o fato de ela ser uma ouvin-te excepcional. A habilidade de Bamber de receber histrias reprimidas edevolv-las aos prprios narradores e a outros ouvintes e leitores possuiextraordinrios resultados curativos. [Em passagem anterior do livro], j citeiseu trabalho como testemunha das narrativas [do campo de concentrao] deBelsen, onde ela trabalhou como terapeuta e conselheira aps a libertao.Mas o trabalho de Bamber tambm se estendeu Anistia Internacional e seusmltiplos registros de testemunhos de vtimas de tortura ao redor do mundo.

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    Um caso particularmente poderoso, relatado em The Good Listener[A BoaOuvinte] (Bamber, 1998), o de Bill Beaushire, uma vtima desaparecidadogolpe chileno contra Allende, que sofreu o tratamento mais aterrador, incluindoeletrochoques e repetidos enforcamentos, antes de ser finalmente executado. Ahistria de Beaushire transmitida por Bamber era descrio, mas era tambmuma forma de pagar tributo memria, um reconhecimento da necessidadede ter sua histria [...] conectada ao mundo daqueles que no haviam sidotorturados. O dossi Beaushire serviria, graas ao seu testemunho, como umindispensvel testamento para o destino de um indivduo que de outro modoteria sido esquecido, [...] contado nas muitas vozes daqueles que o viram de-

    pois que desaparecera (Bamber, 1998, p. 228). Como um dos sobreviventesdo terror chileno observou, voc nunca abre mo de seus mortos... temos

    que reconhecera verdade, assim como tomar conhecimento dela (Bamber,1998, p. no informada). Este duplo dever de admisso e cognio a tarefairremissvel da rememorao narrativa.

    Um exemplo final de testemunho catrtico que eu gostaria de citar aqui ode um sobrevivente do massacre armnio. Em uma noite no vero de 1915, uma

    jovem me armnia escondeu seu beb em um arbusto de amoras no vilarejode Kharpert, nas montanhas da Turquia oriental. A criana, que sobreviveu subsequente chacina da populao do vilarejo pelas tropas turcas, era MichaelHagopian, que oitenta anos mais tarde completou um filme documentrio cha-mado Voices from the Lake[Vozes do Lago].A matana de um milho e meiode armnios chamada de o genocdio silencioso, j que foi sempre negada pelogoverno turco. Hagopian passou anos fazendo pesquisas para o filme, viajando

    muitas vezes para colher testemunhos em primeira-mo e costurando os eventosque ocorreram naquele ano fatdico. Uma das mais importantes evidncias foiuma srie de fotografias tiradas por um diplomata americano que servia naTurquia naquela poca, e que ele enterrou ao partir do pas, com medo de queelas lhe fossem confiscadas. Muitos anos mais tarde, ele retornou e recuperouas fotos, que estavam desbotadas e pudas, mas ainda eram provas das alegaesde que mais de 10 mil corpos haviam sido depositados num lago a oeste deKhapert. Esta recuperao de imitaes de uma aoenterradas serviu comoconfirmao do relato de genocdio de Hagopian, comprovando o ditado de quevoc pode matar um povo, mas no pode silenciar suas vozes (Montreal...22 abr. 2000, p. 10). Ao permitir que essas vozes suprimidas falassem afinal,aps mais de 80 anos de silncio, Hagopian permite um certo retrabalhar damemria, ainda que de modo algum uma cura. E isto crucial para a obrada catarse: trata-se de reconhecer verdades dolorosas atravs da lacuna daimitao narrativa mais do que uma poo mgica que miraculosamente asresolva. A catarse uma questo de reconhecimento, no de remediao16.

    O que as histrias de pessoas como Beaushire e Hagopian demonstram que os testemunhos podem servir imaginao emptica de forma to pode-rosa quando a fico. Quer se trate de Histria ou de Fico, a mimesis imita

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    a ao de tal modo que possamos re-presentar coisas ausentes ou esquecidas.E essa funo narrativa de tornar presentes coisas ausentes pode servir a um

    propsito teraputico.

    Quatro: Sabedoria (Phronesis)

    E assim retornamos controvertida questo: o que podemosconhecersobreo mundo a partir das histrias? Existe uma verdade prpria da fico? E, seexiste, em que ela difere da verdade histrica, entendida como eventos retraba-lhados por determinadas estruturas narrativas, mas mantendo uma pretensoreferencial em relao ao modo como as coisas efetivamente aconteceram?

    Presumindo que haja mesmo uma diferena entre as duas, como venho argu-mentando, poderamos ento nos perguntar sobre como isso se liga ao curiosofato de que a palavra histria, em ingls como em muitas outras lnguas (porexemplo, Geschiste,historia,histoire), signifique tantoos eventos quantoosrelatos que narramos a partir desses eventos. Esse um fato insuficientementeassinalado pela definio cannica de histoirenoDictionnaire Universelcomosendo ao mesmo tempo a narrao de coisas como acontecerame um relatofabuloso porm plausvel inventado por um autor17.

    Minha viso bsica a de que qualquer que seja o modo como as narrativashistricas e as ficcionais se relacionem entre si, existe um tipo de compreensoespecfica da narratividade em geral, que corresponde aproximadamente aoque Aristteles chamava dephronesis ou seja, uma forma de sabedoria pr-

    tica capaz de respeitar a singularidade das situaes, assim como a nascenteuniversalidade dos valores voltados s aes humanas. Esse tipo particularde compreensofronticaresulta de uma certasuperposio entre histria eHistria. Ele reconhece que existe sempre uma certa ficcionalidade em nossarepresentao da Histria, como setivssemos mesmo estado l no passado

    para experienci-lo (quando na verdade no estvamos). E, na mesma linha, elereconhece um certo carter histrico s narrativas ficcionais por exemplo, ofato de que a maioria das histrias sejam recontadas no pretrito, e descrevam

    personagens e eventos como se fossem reais.Como coloca Aristteles, para quea narrativa funcione, o que parece impossvel precisa ser tornado verossmil(Potica, 1460a, p. 26-27). Talvez seja essa a razo pela qual mesmo os maisinumanos monstros das narrativas de fico cientfica precisem guardar algumasemelhana com seres historicamente verossmeis para que sejam reconhecveis

    ou interessantes aos nossos olhos. J foi observado que os extraterrestres nasrieAlienpossuem rgos, bocas e caudas, e que mesmo o computador AI em2001: Uma Odissia no Espaopossui um nome humano,Hal, e fala com vozhumana. A questo da credibilidade literria absolutamente crucial para quea narrativa opere; pois o narrador cria um mundo secundrio, no qual, assimque entramos, fazemos de conta que o narrado verdadeiro, enquanto estiver

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    de acordo com as leis daquele mundo. Voc acredita, enquanto est, por assimdizer, ali dentro. No momento em que emergir a descrena, o encanto ser que-

    brado; a mgica, ou, melhor dizendo, a arte, fracassou (Tolkien, 1968, p. 60). este curioso tramado de funes narrativas que permite a) que a fico

    retrate as verdades essenciaisda vida de que fala Aristteles, e b) que a Histriaretrate um sentido verossmil de particularidade.Mas, mesmo confirmandoeste entrelaamento de Fico e Histria no arco da narrativa, eu insistiriaigualmente em identificar suas diferentes localizaes neste arco por exemplo,a primeira claramente gravita em direo ao polo do imaginrio; a segunda,em direo ao real. Indo alm, eu insistiria ainda em que a grande maioria dosleitores, incluindo as crianas, sabem como traar essa distino primordial18.A histria do Rei Sapo apenas possvel, como nos lembra Tolkien, porque

    sabemos que sapos no so homens e que princesas no se casam com eles nomundo real da histria!

    Sobram advogados do diabo, claro, quando se trata da verdade narrativa.Permitam-me ensaiar brevemente as ideias de alguns deles, para esclarecerminha prpria posio. J citei anteriormente [em captulos prvios do livro]certos construtivistas, como Schafer na psicoterapia ou Hayden White na his-tria, que assumem uma posio de relativismo pragmtico. Nesse contexto, asnarrativas so consideradas puras funes lingusticas desprovidas de refernciaa qualquer verdade alm delas mesmas. Elas envolvem um jogo de significadosautorreferentes, unidos em uma rede intratextual19. Assumindo uma posio deironia ps-moderna, White admite que esta viso tende a diluir

    [...] toda crena em aes polticas positivas. Em sua apreenso da insensateze do absurdo da condio humana, ela tende a engendrar a crena na loucu-ra da prpria civilizao e a inspirar um desdm superior por aqueles quebuscam apreender a natureza da realidade social, quer na cincia ou na ar te(White, 1973, p. 42).

    White argumenta basicamente que, porque toda narrativa histrica inevitavelmente mediada por processos lingusticos de colocao em enredo,explicaes e ideologia, somos de algum modo obrigados a abraar um ir-redutvel relativismo do conhecimento. E traando a evoluo da filosofiada histria relativista-idealista desde Hegel, passando por Nietzche, Croce,Gentile e alm , White conclui que a historiografia culmina hoje em umaverso sofisticada da condio irnica. O melhor que podemos fazer trocar

    a verdade histrica por uma efetividade pragmtica. Um relato histrico estcorreto sefunciona (White, 1973, p. 42)20.Em resposta a esse indeterminismo radical, eu diria que o conjunto de evi-

    dncias verificveis pertinentes a um evento histrico determina profundamenteo resultado de nossa interpretao. A realidade precisa transparecer, comoinsiste S. Friedlander emProbing the Limits of Representation [Investigando osLimites da Representao] mesmo que indiretamente. E, em resposta ao apelo

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    apologista de White para que uma nova voz seja testemunha dos crimes dopassado, Friedlander responde corretamente que [...] a realidade e o signifi-cado das [...] catstrofes que geram a busca por uma nova voz, e no o uso deuma voz especfica o que constri o significado desses eventos (Friedlander,1992, p. 7 e 10)21. Em sntese, podemos prontamente aceitar que a narrativaseja um processo fazedordo mundo assim como um processo revelador domundo cujos resultados nunca alcanam a exatido de um algoritmo ousilogismo sem ainda assim sucumbirmos ao relativismo lingustico. O fatode reconhecermos a funo narrativa do tal como senos relatos ficcionais, edo tal comonos relatos histricos, no significa que devssemos abandonartodas as pretenses referenciais realidade.

    Considerando tudo isso, eu sugeriria que as narrativas histricas fossem

    sujeitas tanto aos critrios externos de evidncia quanto aos critrios inter-nos de adequao lingustica ou genrica (por exemplo, no se pode retratarAuschwitz em um comercial turstico sobre a Polnia rural). Pois, se no foralcanado um equilbrio, ser difcil evitar os extremos do positivismo ou dorelativismo, sendo que ambos ameaam a legitimidade do testemunho narrativo.Mais do que isso, insisto em que aos critrios epistemolgicos para avaliarmosrelatos histricos rivais relatos mais aproximados do que exatos seja precisoacrescentar critrios ticos, ou seja, que busquem a justia, mais que a verdade.Precisamos recorrer a tantos critrios slidos quanto possvel lingusticos,cientficos, morais se queremos ser capazes de dizer que um relato histrico mais realou verdadeirodo que outro, que uma reviso particular da Histriaseja mais legtima do que outra. E deveramos ser capazes de dizer isso.

    A posio da extrema ironia ps-moderna parodiada pelo romancistaJulian Barnes em Uma Histria do Mundo em 10 Captulos e Meio.As citaesabaixo exemplificam seu sutil raciocnio sardnico: A Histria no o queaconteceu, ele escreve.

    A Histria apenas o que os historiadores nos contam. Havia um padro, umplano, um movimento, uma expanso, a marcha da democracia; uma tape-aria, um f luxo de eventos, uma narrativa complexa, conectada, explicvel.Uma boa histria puxa outra. Primeiro, eram reis e arcebispos que contavamcom alguma manipulaozinha divina nos bastidores, depois era a marchadas ideias e os movimentos de massa, depois pequenos eventos localizadosque significavam algo maior, mas o tempo todo eram conexes, progresso,sentido, isto levou quilo, isto aconteceu por causa daquilo. E ns, os leitoresda Histria, ns revistamos o padro em busca de concluses animadoraspara o caminho que nos espera adiante. E nos agarramos Histria como auma srie de pinturas de salo, assuntos de conversao cujos participantespodemos facilmente reimaginar como que se tivessem voltado vida, quandoo tempo todo se trata mais de uma colagem multimdia (Barnes, 1989, p. 240).

    Barnes conclui seu argumentum ad absurdumcom esta nota desanimadora:

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    A Histria do mundo? Apenas vozes ecoando na escurido, imagens que quei-mam durante alguns sculos e se extinguem; histrias, velhas histrias ques vezes parecem se superpor; estranhas ligaes, conexes impertinentes...Pensamos saber quem somos, apesar de nem mesmo saber por que estamosaqui, ou por quanto tempo seremos forados a permanecer. E enquanto noslamuriamos e contorcemos em protegida incerteza, fabulamos. Inventamosuma histria para encobrir os fatos que no conhecemos ou que no consegui-mos aceitar; mantemos alguns poucos fatos verdadeiros e tecemos uma novahistria em torno deles. Nosso pnico e nossa dor so em parte aliviados peloblsamo da fabulao; a isso chamamos de Histria (Barnes, 1989, p. 240).

    Mas fabulaes no so tudo. No quando se trata da histria de vidasindividuais, nem quando se trata de eventos coletivos. Ficaramos contentes

    em aceitar, por exemplo, que o relato dos horrores de Auschwitz ou Srebrenikseja mero exerccio de fabulao? Certamente que no. E por isto que venhoargumentando aqui que admitir que no conseguimos narrar o passado comabsoluta certezano significa endossar uma total arbitrariedade da narrativa.A tendncia de escavarmos um golfo intransponvel entre as crnicas empricase as histrias fantsticas um erro, penso; pois ao faz-lo perdemos qualquer

    possibilidade de atravessar de um lado a outro. Esse erro, curiosamente, compartilhado por relativistas e positivistas (ainda que por razes opostas):os relativistas alegam que os nicos critrios para interpretar o passado his-trico so retricos; enquanto os positivistas dizem que qualquer implicaonarrativa na prtica do relato histrico uma distoro dos fatos. Ambas as

    posies, no entanto, negam os laos entre a narrativa e a vida real, e ambas

    so, acredito, insustentveis. curiosamente revelador que esses dois argumentos tenham sido usadospelos negacionistas na controvrsia sobre os campos de concentrao. Enquantoalguns dos que negavam o Holocausto defendiam que a histria das cmaras degs era apenas uma narrativa entre outras, encampada como Histria Oficial

    pelos aliados, outros, incluindo David I rving e Maurice Faurisson, baseiamsua negao na convico de que no haveria suficientesfatos objetivospara

    prov-la. Estes no veem a si mesmos como relativistas irracionais comoacusam Deborah Lipstadt e outros mas justamente o contrrio: veem-secomo racionalistas incondicionais levados a refutar a histria do Holocaustocomo um mitosem fundamentao factual!22. Longe de rejeitarem a cincia,estes revisionistas afirmam que o problema das evidncias do Holocausto noserem suficientemente cientficas! Tais evidncias no podem, eles insistem,ser inequivocamente verificadas como histria emprica.

    Para contrabalanar efetivamente o negacionismo, acredito que o Holo-causto precise ser narrado tanto enquanto Histria como enquanto histria.Os apelos dogmticos aosfatos purosno so suficientes quando se trata detestemunho histrico, quer tais apelos partam de positivistas ou de revisionis-tas. A melhor forma de respeitar a memria histrica contra o revisionismo ,repito, combinar as mais efetivas formas de testemunho narrativo com as mais

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    objetivas formas de evidncia emprica, arquivstica, forense. Pois a verdadeno prerrogativa nica das chamadas cincias exatas. Existe tambm umaverdade, com sua respectiva forma de compreenso, que poderamos com

    propriedade chamar de narrativa. Precisamos de ambas.Toda essa questo da verdade testemunhal foi dramaticamente realada

    pelos recentes tribunais sobre a controvrsia do Holocausto. Acredito que ojuiz Charles Gray estava absolutamente correto, por exemplo, ao dizer, em seujulgamento no Superior Tribunal em Londres (em abril de 2000), que DavidIrving no era um historiador, mas algum que distorcia e representavaerroneamente as evidncias histricas, buscando obliterar da memria as

    profundezas a que chegou a humanidade. Irving e seus aliados revisionistasprocuravam de fato passar uma p de cal sobre o crime mais odioso da his-

    tria humana. E deve ser possvel atest-lo sem reservas. Mas no apelandounicamente a algum critrio cientfico absoluto do que seja um fato. No

    porque a histria seja informada em maior ou menor grau pela narrativa queela est condenada inverdade. Por essa razo que endosso plenamente aviso do historiador francs Pierre Vidal-Naquet, quando ele diz que ns po-demos reconhecer que a histria invariavelmente mediada pela narrativa eao mesmo tempoafirmar a existncia de algo irredutvel que ainda, querendoou no, podemos chamar de realidade. Sem algum apelo referencial reali-dade, ainda que indireto, parece que no teramos qualquer justificativa paradiferenciar a histria da fico (citaes a partir de Friedlander, 1992, p. 20).Como escreve Julian Barnes, em resposta a sua prpria pardia do relativismohistrico, citada acima,

    Todos sabemos que a verdade objetiva inalcanvel... mas ainda assimprecisamos acreditar que a verdade objetiva seja alcanvel; ou precisamosacreditar que ela seja 99 por cento alcanvel; ou, se isso no for possvel,precisamos ento acreditar que 43 por cento de verdade objetiva seja melhordo que 41 por cento. Precisamos disso porque do contrr io estaremos perdidos,caindo em uma relatividade glamorosa, valorizando tanto a verso de ummentiroso tanto quanto a de outro, lavando as mos diante do quebra-cabeas,admitindo que o vencedor tem direito no apenas ao esplio como tambm verdade (Barnes, 1989, p. 244).

    Permitam-me concluir dizendo que o que a narrativa promete queles dens preocupados com a verdade histrica uma forma de entendimento nemabsoluta nem relativa, mas sim intermediria. o que Aristteles chamava dephronesis, em contraste com a mera crnica dos fatos ou com a abstrao purada theoriacientfica. Ela mais prxima da arte do que da cincia; ou, se pre-ferirem, das cincias humanas do que das exatas23. Como a rgua do arquiteto,ela aproximativa, mas comprometida com a experincia vivida. Ela , talvez,aquilo que Shakespeare sugeria, em Conto de Inverno, quando falava de umaarte to legtima como comer. A questo no negar o papel da narrao dehistrias na Histria, mas sim reconhecer que sua funo ali diferente de sua

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    funo na fico. Deixo a ltima palavra no assunto com Primo Levi, que falapor aqueles proibidos de contar sua histria:

    A necessidade de contar nossa histria ao resto, de fazer o resto participardela, assumiu para ns, antes e depois da libertao, o carter de um impulsoimediato e violento, a ponto de competir com nossas outras necessidadeselementares (Levi, 1993, p. 9).

    Em casos como esse, contar histrias de fato uma arte to legtima, eto vital, quanto comer.

    Cinco: tica (Ethos)

    Vou concluir com algumas ref lexes sobre o papel tico de contar histrias.A questo mais bsica a recuperar aqui , creio, a de que as histrias tornam

    possvel a partilha tica de um mundo comum com os outros, na medida emque elas so invariavelmente uma forma de discurso.Todo ato de contar his-trias envolve algum (um narrador) contando algo (uma histria) a algum(um ouvinte) sobre algo (um mundo real ou imaginrio).

    Diferentes abordagens narrativa enfatizam um ou outro desses papis, svezes de forma exclusiva. Idealistas romnticos e existencialistas muitas vezessupervalorizam o papel intencional do contador; estruturalistas, o trabalholingustico da histriaem si; ps-estruturalistas, o papel receptivo do leitor;e materialistas e realistas, o papel referencial do mundo. A abordagem mais

    ponderada, eu argumentaria, a da hermenutica crtica que coloca todas asquatro coordenadas do processo narrativo em equilbrio.

    Isto nos permite reconhecer no apenas o trabalho altamente complexo dojogo textual, mas tambm o mundo da aoreferencial do qual o texto derivae ao qual retorna em ltima instncia. O reconhecimento de um caminho demo dupla entre ao e texto nos encoraja a reconhecer o papel indispensvelda agncia humana. Tal papel mltiplo, j que se relaciona com o agenteenquanto autor, ator e leitor. De modo que quando nos engajamos em umahistria estamos simultaneamente conscientes de um narrador (contando ahistria), de um personagem narrador (atuando na histria) e de um intrpretenarrativo (recebendo a histria e relacionando-a com um mundo vivo de aoe sofrimento).

    Sem este jogo interativo de agncia creio que no mais possuiramosaquele sentido de identidade narrativa que nos proporciona uma experinciaparticular de eu indispensvel a qualquer tipo de responsabilidade moral24.Todo agente moral precisa, afinal, ter algum sentido de autoidentidade que

    perdure ao longo do tempo de uma vida de passado, presente e futuro assimcomo ao longo de uma histria comunal de predecessores, contemporneos esucessores para que seja capaz de fazer e de manter promessas. Este sentidode si, que MacIntyre chama de a unidade narrativa de uma vida, deriva em

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    ltima anlise da questo: Quem voc? Em outras palavras, nossa vida torna-se uma resposta questo quem? em geral dirigida a ns por outra pessoa medida que contamos nossa histria-de-vida a ns mesmos e aos outros. Esterelato fornece a cada um de ns o sentido de ser umsujeitocapaz de agir e decomprometer-se com os outros.

    Agora, essa prpria reivindicao identidade narrativa que desafiadapela superenfatizao da indeterminabilidade e do anonimato textual. Maso que est em jogo no pouco. Com o proposto apagamento dosujeito queexperimenta e age, a prpria ideia de agir para mudar o mundo colocada emrisco25. E a velha questo o que fazer?permanece sem resposta. Contra essecenrio de paralisia poltica, relembro que a narrao de histrias intrinse-camente interativa; e que os pronunciamentos apocalpticos sugerindo que

    estejamos assistindo aofim da narrativano consideram as plenas consequn-cias do que propem.

    Um modelo de identidade narrativa pode, sugiro, responder s suspeitasanti-humanistas em relao subjetividade e, ao mesmo tempo, preservar umanoo significativa de sujeito tico-poltico. A melhor resposta a essa crisedo eu no , creio, reviver alguma noo fundamentalista da pessoa comosubstncia, cogito ou ego. No prudente negar a legitimidade de muitas dascrticas ps-modernas ao sujeito essencialista. Seria mais apropriado, sugiro,

    buscar um modelo filosfico de narrativa que apoie um modelo alternativo deautoidentidade. Ou seja, a identidade narrativa de uma pessoa, pressuposta

    pela designao de um nome prprio, e sustentada pela convico de que omesmo sujeito que perdura atravs de suas diferentes aes e palavras, entre

    o nascimento e a morte. A histria contada por um eusobre si prprio relata aao do quemem questo: e a identidade desse quem narrativa. isto o queRicoeur chama de um ipse-self de processo e promessa, em contraste com umidem-self, que responde apenas questo o qu?26Em suma, eu apostaria queno importa o quanto nosso mundo se torne ciber, digital ou galctico, semprehaver eushumanos a recitar e receber histrias. E estes eusnarrativos serosempre capazes de ao eticamente responsvel.

    O argumento mais convincente que encontrei at hoje contra o carter ticodas narrativas a afirmao de Lawrence Langer de que muitas testemunhasdo Holocausto eram eusdivididos ou diminudos, imunes aos critrios moraisde ao e avaliao. Seu raciocnio, que j mencionamos anteriormente [noscaptulos anteriores do livro] o de que o testemunho desses sobreviventesmuitas vezes indicava identidades estilhaadas [...] tentando elaborar suasmemrias da necessidade de agir e da simultnea inabilidade de faz-lo, quecontinuam a assombr-los at hoje (Langer, 1991, p. 183). E porque essanecessidade de agir partia de um agente [...] que nunca tinha o controle dasconsequncias, o drama resultante resiste a todos os esforos interpretativos

    baseados em expectativas morais tradicionais. Somos deixados, ele sintetiza,[...] com uma srie de histrias pessoais sem julgamento nem avaliao(Langer, 1991, p. 183)27. Mas o problema da refuta de Langer a uma funo

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    moral nas memrias narrativas do Holocausto que ele se arrisca, mesmo semquerer, a condenar os sobreviventes condio de um eupermanentementedesintegrado, o que justamente o que, segundo seu prprio relato, o que osnazistas tentaram conseguir. Ele assim desestabiliza seu prprio argumento,me parece, quando admite que o eu diminudo das testemunhas seja um sin-toma das [...] consequncias psicolgicas da estratgia nazista de fragmentara identidade aliando-a a desunidade em vez de comunidade (Langer, 1991,

    p. 182)28. Insistir em ver as testemunhas do Holocausto sob uma luz amoralpode, assim, paradoxalmente, fazer o trabalho dos nazistas no lugar deles.Deste modo, enquanto Langer nos relembra devidamente dos limites e dasdificuldades da narrao, especialmente no contexto do Holocausto, ele norefuta a legitimidade tica de se continuar a contar a histria apesar de tudo.

    Nem, suspeito, ele desejaria faz-lo.Contar histrias , certamente, algo de que participamos (como atores),

    assim como algo que fazemos (como agentes). Estamos sujeitos narrativa assimcomo somos sujeitos danarrativa. Somos feitos pelas histrias antes mesmode conseguirmos criar nossas prprias histrias. isso que faz da existnciahumana um tecido costurado por histrias ouvidas e contadas. Como narradorese seguidores de histrias, nascemos no contexto de uma certa historicidadeintersubjetiva, que herdamos juntamente com nossa linguagem, ancestralidadee nosso cdigo gentico. Pertencemos Histria antes de contar ou escreverhistrias. A historicidade prpria do contar histrias e da escrita da Histria abarcada pela realidade da Histria (Ricoeur, 1983, p. 14)29. Alm disso, em razo de nosso pertencimento Histria enquanto narradores e seguidores

    de histrias que as histrias nos interessam. A Histria sempre contada comdeterminados interessesem mente, como observa Habermas, sendo o primeirodeles o interessena comunicao. Esse interesse essencialmente tico, nosentido de que o que consideramos comunicvele memorvel tambm o queconsideramosvalioso. Aquilo que tem mais valor para ser guardado na memriaso [...] precisamente aqueles valores que regiam as aes individuais, a vidadas instituies, e as lutas sociais do passado (Ricoeur, 1983, p. 15). Foi tendoem mente esse tipo de interesse, na empatia intersubjetiva, que Richard Rortyrecentemente defendeu uma sociedade inspirada pela imaginao narrativa emvez de por sermes doutrinrios ou tratados abstratos.

    Em um mundo moral baseado naquilo que Kundera chama de a sabedoriado romance, comparaes e julgamentos morais seriam feitos com a ajuda

    de nomes prprios mais do que de termos gerais ou de princpios gerais. Umasociedade que buscasse seu vocabulrio moral nos romances em vez de emtratados onto-teolgicos ou onto-morais iria [...] se perguntar o que podemosfazer para nos darmos bem uns com os outros, como podemos arranjar as coisaspara que nos sintamos confortveis uns com os outros, como as instituiespoderiam ser transformadas para que o direito de cada um a ser compreendidotivesse uma melhor chance de ser atendido (Rorty, 1991a, p. 118)30.

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    429Educ. Real., Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 409-438, maio/ago. 2012.

    Certamente. Rorty chega a sugerir que as narrativas no apenas ajudem ahumanizar aliens, estrangeiros e bodes-expiatrios como fez Harriet BeecherStowe emA Cabana do Pai Toms, por exemplo, em relao aos preconceitosdos brancos contra os negros mas tambm para tornar cada um de ns umagente do amor, sensvel aos detalhes particulares da dor e da humilhao dosoutros (Rorty, 1991b).

    Contar histrias, podemos ento concluir, nunca uma ao neutra. Todanarrativa traz em si alguma carga avaliativa em relao aos eventos narradose aos atores apresentados na narrao. Afinal, como poderamos apreciar otrgico conto de Otelose no estivssemos convencidos de que Iago era deso-nesto e Desdmona inocente? Como poderamos realmente apreciar a batalhaentre Luke Skywalker e Darth Vader se no vssemos no primeiro um agente

    da justia e no segundo uma fora destrutiva? Faria algum sentido dizer queAnne Frank uma histria antissemita? Ou que Oliver Twist uma apologiaao capitalismo do sculo XIX? O fato de que as respostas so bvias umaindicao de que cada narrativa traz em si seu prprio peso com relao aovalor moral de seus personagens, e dramatiza a relao moral entre certas aese suas consequncias (era a isto que Aristteles se referia quando falava narelao colocada em enredo entre personagem, virtude e fortuna naPotica1448a-1450b). No h ao narrada que no envolva alguma resposta de apro-vao ou desaprovao relativa a alguma escala de bondade ou justia apesarde caber sempre a ns, leitores, escolher por ns mesmos entre as diferentesopes de valor propostas pela narrativa. A prpria noo de compaixo e medocatrticos, ligada a desgraas imerecidas, por exemplo, entraria em colapso se

    nossas respostas estticas fossem totalmente divorciadas de qualquer empatiaou antipatia dirigida qualidade tica de um personagem31.Longe de ser eticamente neutra, cada histria busca nos persuadir, de um

    jeito ou de outro, sobre o carter avaliativo de seus atores e de suas aes. Querabracemos ou no estas situaes retricas e morais, no podemos fingir queelas no estejam presentes no efeito do texto sobre ns. As histrias alteramnossas vidas quando retornamos do texto para a ao. Cada histria possuiuma carga. E se verdade dizer que nenhuma histria boa ou ruim, e queo pensamento que faz dela uma coisa ou outra, isso s vale at certo ponto.Certamente empregamos nossos prprios pressupostos ticos a cada vez querespondemos a uma histria, mas sempre temos algo a que responder. A histriano se confina apenas mente de seu autor (a falcia romntica da primaziadas intenes originais do autor). Nem ela confinada mente de seu leitor.

    Nem tampouco s aes narradas de seus atores. A histria existe no jogo in-terativo entre todos eles. Cada histria um jogo em que entram pelo menostrs pessoas (autor/ator/destinatrio) e cujo resultado nunca definitivo. Poresta razo a narrativa um convite em aberto responsividade tica e potica.O contar histrias nos convida a nos tornarmos no apenas agentes de nossasvidas, mas tambm narradores e leitores. [...] Sempre haver algum para dizer

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    conta-me uma histria, e algum para responder. Se no fosse assim, no maisseramos plenamente humanos.

    Recebido em maro de 2012 e aprovado em junho de 2012.

    Notas

    1 Traduo deNarrative Matters, captulo final do livro On Stories. London & NewYork: Routledge, 2002.

    2 Ver Fredric Jameson, Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism[Ps-modernismo: a Lgica Cultural do Capitalismo Tardio], London, Verso, 1991

    e Paul Virilio, Open Sky, London, Verso, 1997.3 A. Robbe-Grillet, Snapshots and Towards a New Novel.

    4 C.Vogler, The Writer s Journey: Mythic Structures for Writers [A Jornada doHeri: Estruturas Mticas para Escritores], 2. ed., Studio City, CA, Michael WiesePublications, 1998. Bruno Bettelheim adota um ponto de vista semelhante em seurelato psicanaltico do narrar histrias, The Uses of Enchantment [A Psicanlise dosContos-de-Fadas], London, Penguin, 1978; assim como faz Joseph Campbell desdea perspectiva da mitologia comparada e da psicologia profunda, em The Hero witha Thousand Faces [O Heri de Mil Faces], New York, Balantine Books, 1966.

    5 Ver, de Paul Ricoeur, On Interpretation, em The Continental Philosophy Reader(Org. Richard Kearney e Mara Rainwater, London, Routledge, 1996, p. 139). Vertambm Can fictional narratives be true?, de Paul Ricoeur, onde ele expande suaanlise da imaginao produtiva em Kant. A principal crtica de Ricoeur a Kant,que endosso, que ao confinar as funes narrativas de sntese e esquematismo aosentido interior da imaginao, ele ignora a dimenso essencialmente intersubjetivada narrativa. Ver minha anlise da controvertida leitura da imaginao kantiana feitapor Heidegger, em The Wake of Imagination(London; New York, Routledge, 1988).Sobre esse tema, ver tambm E. Husserl: On the Phenomenology of the Consciousnessof Internal Time[Lies sobre a fenomenologia da conscincia do tempo interno](Dordrecht, Kluwer, 1990); M. Heidegger: Kant and the Problem of Metaphysics[Kant e o Problema da Metafsica] (Bloomington, Indiana University Press, 1962);H. G. Gadamer:Truth and Method [Verdade e Mtodo] (New York, Continuum,1975); David Carr: Time, Narrative and History(Bloomington, Indiana UniversityPress, 1986).

    6 Devo registrar meu dbito aos esclarecedores comentrios de C. Guignon,NarrativeExplanat ion in Psychotherapy(American Behavioral Scientist, jan. 1998 v. 41, n.

    4, p. 569). Uma observao semelhante feita por Charles Taylor, para quem darsentido a ns mesmos apreender nossa vida em termos de uma nar rativa, pois paratermos um sentido de quem somos agora [...] precisamos ter uma noo de comonos tornamos e para onde estamos indo (Sources of the Self: the Making of ModernIdentity, Harvard University Press, 1989, p. 47). Taylor, concordando com pensadorescomo Ricoeur e MacIntyre, v a noo de identidade moral como sendo intimamenteligada da identidade narrativa. Na busca de algum sentido para nossas vidas, con-sideradas como um todo, queremos que o futuro torne o passado [...] parte de uma

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    histria-de-vida com algum sentido ou propsito, que o tome como uma unidadesignificativa (p. 51). No entanto, justamente a essa busca por unidade e identida-de narrativas que Lawrence Langer se ope de forma to veemente em HolocaustTestimonies (New Haven, Yale University Press, 1991), referindo-se Shoah comosendo uma ferida provocada em um passado ausente e inacessvel que nenhum graude rememorao narrativa poder jamais curar ou redimir no presente, O materialbruto das narrativas orais do holocausto, em contedo e forma de apresentao,resiste ao impulso organizador da teoria moral e da arte (p. 204).

    7 Nota Ediorial: O Autor no inseriu, neste texto, nenhuma referncia formal obraPotica, de Aristteles, ento adicionamos na lista de referncias uma edio da Po-tica, em lngua inglesa, que deve contribuir para a riqueza bibliogrfica do presenteartigo (Aristotle.Poetics. Harmondsworth: Penguin, 1996).

    8 Ver Guignon:Narrative Explanation in Psychotherapy(1998), e tambm P. Ricoeur:Life in Quest of a Narrative, em On Paul Ricoeur: narrative and interpretation(Org.David Wood).

    9 Ver Ricoeur: Entre o viver e o relatar, abre-se uma brecha por menor que seja.A vida vivida, a histria recontada (The Continental Phlilosophy Reader, Org.Kearney e Rainwater, p. 141). Ver tambmLife in quest of a narrative(1991, p. 31):Se verdade que a fico s se completa na vida e que a vida s pode ser entendidaatravs das histrias que contamos sobre ela, ento uma vida examinada, no sentidoda palavra que tomamos emprestado a Scrates, uma vida recontada.

    10 A vida recontada tem dimenses tanto poticas quanto ticas, tanto a liberdade daimaginao quanto a responsabilidade pelo real. Mas essa complementaridade entrepotica e tica narrativas no uma questo de identidade; ao preservar a diferenaentre elas que a potica e a tica melhor servem aos seus mtuos interesses. Enquanto

    uma potica da narrativa nos relembra que o real uma reconstruo, uma tica danarrativa nos relembra que ele tambm um dado. Mas uma potica da mimesetambm pode servir a uma tica do real ao recuperar a referncia de toda narrativa a(1) o mundo da vida do autor que ela originalmente prefigura, antes de configur-locomo um enredo textual, e (2) o mundo da vida do leitor que ela refigura, medidaque retorna do texto ao mundo da ao. Isto comprova o extremismo da mximade Roland Barthes segundo a qual le fait na jamais qune existence linguistique.

    11 Ver o trabalho pioneiro de Glorianna Davenport e outros colaboradores em pesqui-sas sobre formas futuras de narrativa e linhas do tempo para o pblico em geral noMedia Lab, MIT, Cambridge, Massachussets. Em especial, G. Davenport Your ownVirtual Storyworld, Scientific American, nov. 2000, p.79-82; G. Davenport, B. Barryet al., Synergistic Storyscapes and Constructionist Cinematic Sharing,IBM SystemsJournal, v. 39, n. 3-4, 2000, p. 456-469; Davenport and M. Murtaugh, AutomaticStoryteller Systems and the Shifting Sands of Story,IBM Systems Journal, 1997.

    12 Nota de Traduo: Quando a distino entrestorye historyprecisa ser destacada,optou-se pelo uso da maiscula (Histria) para traduzir a segunda, mesmo sabendoque no uma soluo ideal, e considerando que o uso da distino estria/histriatambm tem seus problemas.

    13 Ricoeur acrescenta este intrigante problema: A questo, assim, se, em outrosentido das palavras verdadeiro e verdade, a histria e a fico podem ser entendi-das como sendo igualmente verdadeiras, ainda que de formas to diferentes como

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    suas revindicaes referencialidade so em si diferentes. Ver a esse respeito osfascinantes artigos de D. McCloskey, B. Jackson, J. Bernstein, R. Harr e G. Myersna seo intituladaNarrative and FactemNarrative in Culture: the Uses of Sto-rytelling in the Sciences, Philosophy and Literature,C. Nash (Org.) (London; NewYork, Routledge, 1990).Para abordar adequadamente o papel to negligenciado danarrativa na cincia, seria necessrio um outro livro dedicado unicamente ao tema.Mas no subestimo sua crucial importncia.

    14 Ver a entrevista com Paul Ricoeur, The Creativity of Language, em meu States ofMind: Dialogues with Contemporary Thinkers (Edinburgh: Edinburgh UniversityPress e New York: New York University Press, 1997, p. 218). Ver tambm Ricoeur,Can Fictional Narratives be True?, onde ele fornece um sumrio muito til datenso entre as reivindicaes referenciaise ficcionaisda narrativa, p. 5-6: Umreconhecimento pleno da dimenso referencial das nar rativas ficcionais ficar mais

    plausvel se o componente ficcional da historiografia tambm tiver sido previamentereconhecido. [...] Isso no estranho tendncia geral reconstruo imaginativana historiografia. Esta expresso tem origem em Collingwood, apesar de que eleinsistisse na tarefa da reencenao no conhecimento histrico. Assim, enquantotoda a escola neo-kantiana de filosofia da histria, como apresentada por exemplopor Raymond Aron em The German Critical Philosophy of History, tende a aumentara distncia entre o que de fato aconteceu e aquilo que conhecemos historicamente, principalmente por meio de um tipo de transferncia das teorias narrativas da crticaliterria para a histria entendida como artefato literrio que a historiografia come-ou a ser reavaliada a partir de categorias que poderamos chamar de semiticas,simblicas ou poticas. Neste sentido, a influncia de The Anatomy of Criticism[Anatomia da Crtica],de Northrop Frye e de A Grammar of Mot ives [Gramticados Motivos], de Kenneth Burke, tem sido absolutamente decisiva, especialmentequando tomadas em conjunto com obras como a crtica das artes visuais feita porGombrich emArt and Illusion[Arte e Iluso]e da grande Mimesis: The Represen-tation of Reality in Western Literature [Mimesis: A Representao da Realidadena Literatura Ocidental], de Eric Auerbach. Destes trabalhos emergiu um conceitogeral da representao ficcional da realidade, cujo mbito suficientemente largopara ser aplicado escr ita da histria assim como da f ico. Hayden White chama[...] de Potica os procedimentos explanatrios que a histria tem em comum comoutras expresses literrias narrativas. [...] O historiador, de acordo com esse pontode vista, no meramente conta uma histria. Ele transforma um conjunto inteiro deeventos, considerados como um todo completo, em uma histria. Ricoeur prope aseguinte resposta ao enigma do duplo papel da narrativa como a) inveno ficcionale b) representao da realidade: Por mais fictcio que o texto histrico possa ser,ele reivindica ser uma representao da realidade. E sua forma de fazer essa reivin-dicao apoiar-se nos procedimentos de verificao prprios histria enquanto

    cincia. Em outras palavras, a histria tanto um artefato literrio quanto uma re-presentao da real idade. Ela um artefato literrio na medida em que, como todosos textos literrios, tende a assumir o estatuto de um sistema de smbolos contido emsi mesmo. Ela uma representao da realidade na medida em que se assume que omundo a que ela se refere o mundo da obra corresponde a ocorrncias factuaisno mundo real (p. 7).

    15 Julian Barnes expe uma ideia semelhante: Voc no consegue amar algum semter simpatia imaginativa, sem comear a ver o mundo de outro ponto de vista. Voc

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    no consegue ser um bom amante, um bom artista, um bom poltico, sem esta capa-cidade (voc at pode conseguir enganar bem, mas no disso que estou falando).Mostre-me os tiranos que foram bons amantes (1989, p. 241).

    16 Este apelo a reconhecer e relembrar atravs da narrao , claro, igualmente centralem toda a tradio bblica, sintetizada na convocao Relembre! (Zakhor!). Ela invocada em incontveis versos das Escrituras, incluindoEclesiastes44:9-13:Vamosagora entoar louvaes aos homens ilustres, nossos ancestrais atravs das geraes.Alguns deixaram seu nome atrs de si, para que outros lhes declarem elogios. Deoutros, porm, no h lembrana; pereceram como se no tivessem existido. Foicomo se nunca tivessem nascido, tanto eles como seus filhos. A religio crist, maisespecificamente, baseia-se explicitamente no testemunho narrativo. Ver Lucas 1:1-4:J que muitos se dedicaram a narrar os eventos que se passaram entre ns, assimcomo aqueles que os viram com seus prprios olhos desde o incio [...] tambm eu

    decidi, depois de investigar tudo novamente e com exatido, escrev-los em sequ-ncia ordenada para que voc, excelentssimo Tefilo, possa perceber a certeza dosensinamentos que alcanou.

    17 Outras definies formativas do maravilhosamente ambguo termo francs histoireincluem as seguintes: (a) Cest une narration continue de choses vraies, grandes etpubliques, crites avec esprit, avec loquence et avec jugement pour linstruction desparticuliers et des Princes et pour le bien de la societ civile. La verit et lexactitudeson lme de lhistoire (Dictionnaire franais, P. Richelet, 1680); (b) Narration desactions et des choses dignes de mmoire (Dictionnaire de LAcadmie Franaise,1694); (c) Recherche, connaissance, reconstruction du pass de lhumanit sous sonaspect gneral ou sous des aspects particuliers, selon le lieu, lpoque, le point devue choisi... Evolution de lhumanit travers son pass, son prsent, son avenir...Evolution concernant une personne ou une chose (Trsor de langue franaise), His-

    toire... contiens depuis la latinit (historia) lide de rcit fond sur ltablissementde faits observs (etymologiquement vus) ou invents. Para uma fascinantediscusso destas e outras definies e descries da dualidade da histria, verFace lhistoire, Petit Journal du Centre Beaubourg, Paris, 1997. Para uma interessanteanlise do papel da memria na histria, ver Jacques Le Goff,History and Memory[Histria e Memria], New York, Columbia University Press, 1992.

    18 Paul Ricoeur argumenta que uma potica da imaginao histrica requer uma her-menutica da historicidade especial, para avaliar os atributos referenciais respectivoss narrativas f iccionais e histricas, luz de uma forma de vida ontolgica especficaque abranja nosso uso da linguagem narrativa; ver Can Fictional Narratives be True?,p. 11-17; ver tambm Time and Narrative [Tempo e Narrativa], v. 3, especialmenteo captulo sobre o entrelaamento de f ico e histria; ver ainda os dilogos crticosentre Ricoeur, David Carr e Charles Taylor sobre esse tema Discussion: Ricoeuron Narrative , em On Paul Ricoeur: Narrative and Interpretation, D. Wood (Org.),London, Routledge, 1991, p. 160-187). David Carr desenvolve esses argumentos emseu livro muito til e perspicaz Time, Narrative and History(1986) especialmenteem p. 110-122.

    19 Ver a reviso crtica que C. Guignon faz dessa posio extrema em Narrative Ex-planation in Psychotherapy(1998), p.562-661.

    20 Ver tambm a posio mais moderada de White mas ainda, em ltima anlise,relativista-construtivista , emHistorical Emplotment and the Problem of Truth, em

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    S. Friedlander (Org.),Probing the Limits of Representation: Nazism and the FinalSolution, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1992, p. 37-53. Para umaverso eticamente mais persuasiva da abordagem pragmtica verdade histrica,ver Richard Rorty, Truth without Correspondence to Reality,Philosophy and SocialHope(London, Penguin, 1999).

    21 Tambm registro meu dbito discusso deste tema em dois outros ar tigos desse mes-mo volume, a saber, Perry Anderson, On Emplotment,p. 54-65; e Amos Funkenstein,History, Counter-history, and Narrative, p. 66-81. Ver em particular os pertinentescomentrios de Funkenstein (p. 79): O que torna uma histria mais real do que aoutra?... o que distingue uma reviso legtima de uma confabulao revisionista?...Nenhum empreendimento historiogrfico pode ter a presuno de representar arealidade se entendermos por representao um sistema de correspondncia entreas coisas e seus signos. Toda narrativa , a seu modo, um exerccio de criao de

    mundo. Mas ele no arbitrrio. Se a narrativa verdadeira, a realidade, qualquerque seja sua definio, deve transparecer... A aproximao realidade no pode sermedida nem provada por um algoritmo prova dgua. Ela precisa ser decidida casoa caso, sem critrios universais. Tudo o que existe em uma narrativa contedofactual, forma, imagens, linguagem pode servir como indicador.

    22 Deborah Lipstadt, Canaries in the Mine: holocaust denial and the limited powerof reasonemDenying the Holocaust: the Growing Assault on Truth and Memory.New York: Free Press, 1993.

    23 Ver P. Ricoeur,Life in Quest of a Narrative , p. 22-23. Ver tambm meus estudosrelacionados ao tema, The Narrative ImaginationemPoetics of Modernity: Toward aHermeneutic Imagination, Atlantic Heights, NJ, Humanities Press, eNarrative Imagi-nation The Ethical ChallengeemPoetics of Imagining Modern to Postmodern ,Edinburgh: Edinburgh University Press; New York: Fordham Press, 1998, p. 241-257.

    24 Ver Michael Bell,How primordial is narrative?Em C. Nash,Narrative in Culture(1990, p. 197): A narrativa pode dar corpo a uma forma de vida, e assim objetific-laou reinvindic-la, mas no consegue por si s cri-la ou induzir a sua aceitao. Emtermos fundamentais, ela precisa apelar ao consentimento do leitor enquanto dadoexistencial. Em suma, portanto, o sentido da narrativa existe na tenso dialtica entreseu mundo e o mundo do leitor. Ver tambm Ricoeur, Can Fictional Narratives BeTrue?, (1983, p.13): A narrao de histrias exibe sua habilidade imaginativa ao nvelda experincia humana, que j comunalizada. Enredos, personagens, elementostemticos etc., so formas de uma vida que de fato uma vida comum. Neste sentido,as autobiografias, memrias e confisses so apenas subitens de um arco narrativoque em seu todo descreve e redescreve a ao humana em termos de interaes.

    25 Ver Christopher Nash, Slaughtering the Subject: Literatures Assault on the Sub-ject, emNarrative in Culture (1990): Com qualquer apagamento consistente []

    de pessoas especficas como agentes de eventos e intenes especficas ou comqualquer descrio de um assunto como sendo uma simples manifestao de forascoletivas, nem podemos esperar relatar as mundanas de modo inteligvel, nem ex-plicar a ns mesmos como nos sentimos em desacordo com algum, e nem tampoucoresponsabilizar algum por seus atos. Em resultado disso, [...] a interao sociale a ao poltica tornam-se incompreensveis. Ver tambm meu ensaio Ethics andNarrative Selfem The Modern Subject, D. M. Christensen e S. Meyer (Org.), Centrefor the Study of European Civilisation from Universidade of Bergen, 1996, p. 48-62.

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    26 Ver P. Ricoeur, Time and Narrative, v. 3, Chicago: University of Chicago Press,1988; Oneself as Another, Chicago: Chicago University Press, 1992. Para um lcidocomentrio sobre a distino ipse/idem, ver Bernard Dauenhauer, Paul Ricoeur:The Promise and Risk of Politics, New York; Oxford: Brown and Littlefield, 1998,p. 120-122.

    27 Ver tambm as pertinentes contribuies a este debate em Jennifer Geddes (Org.):EvilAfter Postmodernism: Histories, Narratives, Ethics (London; New York: Routledge,2001); em particular os ensaios de Berel Lang,Evil Inside and Outside History: ThePost-Holocaust vs. the Postmodern, Roger Shattuck,Narrating Evil, e o meu Othersand Aliens: Between Good and Evil.

    28 , porm, porque Langer enfatiza to vigorosamente todos os obstculos ticanormal na narrativa e nos julgamentos das testemunhas do Holocausto repudiando

    as funes catrticas, compensatrias ou redentoras da narrao de histrias queseu trabalho serve como um caso-limite indispensvel para minhas prprias tentativasde defender e promover a narrativa.

    29 Ricoeur reconhece seu dbito, aqui, no apenas para com anlise da historicidadede Heidegger em Ser e Tempo, mas tambm para com Hans-Georg Gadamer e suanoo de Wirkungsgeschichte , ou histria efetivaem Verdade e Mtodo. Ver, porexemplo, a afirmao de Gadamer de que uma hermenutica apropriada deveriademonstrar a efetividade da histria no mbito da compreenso de si mesma (Truthand Method, London, Sheed and Ward, 1973, p. 267).

    30 Agradeo a Mark Doodley por me chamar ateno para estas citaes.

    31 P. Ricoeur, Time and Narrative, v. 1 (1984, p. 59). Como Ricoeur observa, a estratgiade persuaso empregada pelo narrador: [...] tem por objetivo dar ao leitor uma visodo mundo que nunca eticamente neutra, mas sim que implcita ou explicitamente

    induz a uma nova avaliao do mundo, assim como do leitor. Neste sentido, a nar-rativa j pertence ao campo tico, em virtude de sua reivindicao inseparvel desua narrao justia tica. Ainda assim, cabe ao leitor, agora agente e iniciadorda ao, escolher entre as mltiplas aes de justia tica apresentadas pela leitura(Time and Narrative, v. 3, 1988, p. 249). Mesmo quando as histrias procuram der-rubar o sistema herdado de estabelecimento de valores ticos, elas o fazem, quasesempre, a partir de um conjunto de avaliaes opostas ou alternativas. A poticanunca cessa de buscar apoio na tica, mesmo quando defende a suspenso de todosos julgamentos ticos ou sua inverso irnica. O prprio projeto de neutralidade ticapressupe a qualidade tica original da ao (Time and Narrative, v. 1, p. 59).

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  • 7/24/2019 Narrativa - Richard Kearney

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